1048-manual de historia do brasil

596
História do Brasil Manual do Candidato

Upload: ricardo-pessoa

Post on 26-Oct-2015

271 views

Category:

Documents


12 download

TRANSCRIPT

  • Histria do Brasil

    Manual do Candidato

  • MINISTRIO DAS RELAES EXTERIORES

    Ministro de Estado Embaixador Antonio de Aguiar Patriota

    Secretrio-Geral Embaixador Eduardo dos Santos

    Presidente Embaixador Jos Vicente de S Pimentel

    Instituto de Pesquisa de Relaes Internacionais

    Centro de Histria e Documentao Diplomtica

    DiretorEmbaixador Maurcio E. Cortes Costa

    A Fundao Alexandre de Gusmo, instituda em 1971, uma fundao pblica vinculada ao Ministrio das Relaes Exteriores e tem a finalidade de levar sociedade civil informaes sobre a realidade internacional e sobre aspectos da pauta diplomtica brasileira. Sua misso promover a sensibilizao da opinio pblica nacional para os temas de relaes interna-cionais e para a poltica externa brasileira.

    Ministrio das Relaes ExterioresEsplanada dos Ministrios, Bloco HAnexo II, Trreo, Sala 170170-900 - Braslia - DFTelefones: (61) 2030-6033/6034/6847Fax: (61) 2030-9125Site: www.funag.gov.br

  • Joo Daniel Lima de Almeida

    Histria do Brasil

    Braslia, 2013

    Manual do Candidato

  • Direitos reservados Fundao Alexandre de Gusmo Ministrio das Relaes ExterioresEsplanada dos Ministrios, Bloco HAnexo II, Trreo, Sala 1 70170-900 Braslia - DFTelefones: (61) 2030-6033/6034Fax: (61) 2030-9125Site: www.funag.gov.brE-mail: [email protected]

    Equipe Tcnica:Eliane Miranda PaivaFernanda Antunes SiqueiraGuilherme Lucas Rodrigues MonteiroJess Nbrega CardosoVanusa dos Santos Silva

    Projeto grfico:Wagner Alves

    Programao Visual e Diagramao:Grfica e Editora Ideal

    Fotografia da capa:Sem ttulo 10, da Srie Jardim, de Chiara Banfi. Obra premiada no I Concurso Itamaraty de Arte Contempornea (2010/2011). Acervo do Ministrio das Relaes Exteriores.

    Impresso no Brasil 2013

    A447h

    Almeida, Joo Daniel Lima de.Histria do Brasil / Joo Daniel Lima de Almeida. Braslia : FUNAG, 2013.595 p. (Manual do candidato)

    ISBN 978-85-7631-445-5

    1. Histria do Brasil. 2. Brasil - perodo colonial. 3. Brasil - perodo regencial. 4. Brasil - perodo republicano. 5. Regime militar - Brasil. 6. Nova repblica - histria. I. Ttulo. II. Srie.

    CDD 981

    Bibliotecria responsvel: Ledir dos Santos Pereira, CRB-1/776Depsito Legal na Fundao Biblioteca Nacional conforme Lei n 10.994, de 14/12/2004.

  • Joo Daniel Lima de Almeida graduou-se em Histria pela Universidade Federal Fluminense. mestre em Relaes Internacionais (PUC-Rio). Foi professor das graduaes e ps-graduaes em Relaes Internacionais da PUC-Rio, da FGV e da Cndido Mendes. Nesta ltima foi coordenador da graduao de 2004 a 2008 e fundador do Curso de ps-graduao. Adicionalmente leciona Histria do Brasil e Histria da Poltica Externa Brasileira para candidatos ao Concurso de Admisso Carreira Diplomtica, tendo contribudo para aprovar mais de 400 novos diplomatas desde 2004.

  • Embaixador Georges LamazireDiretor do Instituto Rio Branco

    Apresentao

    A Fundao Alexandre de Gusmo (Funag) retoma, em importante iniciativa, a publica-o da srie de livros Manual do Candidato, que comporta diversas obras dedicadas a mat-rias tradicionalmente exigidas no Concurso de Admisso Carreira de Diplomata. O primeiro Manual do Candidato (Manual do Candidato: Portugus) foi publicado em 1995, e desde ento tem acompanhado diversas geraes de candidatos na busca por uma das vagas ofe-recidas anualmente.

    O Concurso de Admisso Carreira de Diplomata, cumpre ressaltar, reflete de maneira inequvoca o perfil do profissional que o Itamaraty busca recrutar. Refiro-me, em particular, sntese entre o conhecimento abrangente e multifacetado e a capacidade de demonstrar conhecimento especfico ao lidar com temas particulares. E assim deve ser o profissional que se dedica diplomacia. Basta lembrar que, em nosso Servio Exterior, ao longo de uma carreira tpica, o diplomata viver em diversos pases diferentes, exercendo em cada um deles funes distintas, o que exigir do diplomata no apenas uma viso de conjunto e entendimento am-plo da poltica externa e dos interesses nacionais, mas tambm a flexibilidade de compreender como esses interesses podem ser avanados da melhor maneira em um contexto regional especfico.

    Nesse sentido, podemos indicar outro elemento importante que se encontra sempre presente nas avaliaes sobre o CACD: a diversidade. O Itamaraty tem preferncia pela diver-sidade em seus quadros, e entende que esse enriquecimento condio para uma expresso externa efetiva e que faa jus amplitude de interesses dispersos pelo pas. A Chancelaria brasileira , em certo sentido, um microcosmo da sociedade, expressa na mirade de diferen-tes divises encarregadas de temas especficos, os quais formam uma composio dos temas prioritrios para a ao externa do Governo brasileiro. So temas que vo da Economia e Fi-nanas Cultura e Educao, passando ainda por assuntos polticos, jurdicos, sobre Energia, Direitos Humanos, ou ainda tarefas especficas como Protocolo e Assistncia aos brasileiros no exterior, entre tantas outras. Essa diversidade de tarefas ser tanto melhor cumprida quanto maior for a diversidade de quadros no Itamaraty, seja ela de natureza acadmica, regional ou ainda tnico-racial. O CACD , em razo disso, um concurso de carter excepcional, dada a

  • grande quantidade de provas de diferentes reas do co-nhecimento acadmico, buscando com isso o profissional que demonstre o perfil aqui esboado.

    No entanto, o perfil multidisciplinar do Concurso de Admisso Carreira de Diplomata pode representar um desafio para o candidato, que dever desenvolver sua prpria estratgia de preparao, baseado na sua expe-rincia acadmica. Em razo disso, o Instituto Rio Branco e a Funag empenham-se em disponibilizar algumas ferra-mentas que podero auxiliar o candidato nesse processo. O IRBr disponibiliza, anualmente, seu Guia de Estudos, ao passo que a Funag publica a srie Manual do Candi-dato. Cabe destacar, a esse propsito, que as publicaes se complementam e, juntas, permitem ao candidato ini-ciar sua preparao e delimitar os contedos mais impor-tantes. O Guia de Estudos encontra-se disponvel, sem custos, no stio eletrnico do Instituto Rio Branco e constitudo de coletneas das questes do concurso do ano anterior, com as melhores respostas selecionadas pe-las respectivas Bancas.

    Os livros da srie Manual do Candidato, por sua vez, so compilaes mais abrangentes do contedo de cada matria, escritos por especialistas como Bertha Becker (Geografia), Paulo Visentini (Histria Mundial Con-tempornea), Evanildo Bechara (Portugus), entre outros. So obras que permitem ao candidato a imerso na mat-ria estudada com o nvel de profundidade e reflexo crtica

    que sero exigidos no curso do processo seletivo. Dessa forma, a adequada preparao do candidato, ainda que longe de se esgotar na leitura das publicaes da Funag e do IRBr, deve idealmente passar por elas.

  • Sumrio

    Palavras introdutrias: o manual do manual 11

    1. O Perodo Colonial 17

    1.1 O sentido da colonizao 171.2 A sociedade colonial 221.3 Escravido e trabalho compulsrio na Colnia 281.4 Histrias do serto 321.5 As guas da discrdia 351.6 O Tratado de Madri de 1750 391.7 O perodo minerador e a poca pombalina 441.8 Levantes coloniais: insatisfao, separatismo e apropriaes contemporneas 53

    2. O Processo de Independncia (1808-1831) 65

    2.1 O perodo joanino e o processo de emancipao brasileiro (1808-1831) 652.2 O Primeiro Reinado 792.3 A poltica externa no Brasil entre 1808 e 1831 902.4 A economia das primeiras dcadas 1042.5 O panorama cultural do Brasil antes e durante o processo de independncia 115

    3. O Perodo Regencial (1831-1840) 127

    3.1 O avano liberal (1831-1837) 1273.2 As foras centrfugas 1353.3 O regresso conservador 1433.4 A poltica externa do perodo regencial 153

    4. O Segundo Reinado (1840-1889) 173

    4.1 Governo de Gabinetes 1734.2 As reformas eleitorais no Imprio 1934.3 A economia brasileira no Segundo Reinado 1974.4 O panorama cultural do Segundo Reinado 2124.5 A poltica externa do Segundo Reinado 2254.6 A Gerao de 1870 e a crise do Imprio 2434.7 A legislao abolicionista 2484.8 As Foras Armadas 257

  • 5. A Primeira Repblica (1889-1930) 267

    5.1 O processo poltico na Primeira Repblica 2675.2 Os movimentos sociais e o papel do Exrcito na Primeira Repblica 2795.3 O processo econmico da Primeira Repblica 2975.4 A poltica externa da Primeira Repblica Parte I (1889-1902) 3085.5 A poltica externa da Primeira Repblica Parte II (1902-1912) 3215.6 A poltica externa da Primeira Repblica Parte III (1912-1930) 3375.7 O panorama cultural da Primeira Repblica 343

    6. A Era Vargas (1930-1945) 355

    6.1 O Governo Provisrio (1930-1934): Foras Polticas e Dissidncias 3556.2 Da Revoluo Ditadura 3656.3 O Processo Econmico 3796.4 As relaes internacionais do Brasil (1930-1945) 3906.5 O Modernismo domesticado 402

    7. A Experincia Democrtica (1946-1964) 415

    7.1 A democracia brasileira (1945-1954) 4157.2 Os anos JK 4357.3 A polarizao poltica no incio dos anos sessenta 4547.4 A euforia cultural do Brasil em transformao 464

    8. O Regime Militar (1964-1985) 481

    8.1 Os generais presidentes 4818.2 A economia do Regime Militar 5068.3 Da Interdependncia Diplomacia do Interesse Nacional 5148.4 Do Pragmatismo ao Universalismo 5308.5 A Cultura do Regime Militar 546

    9. A Nova Repblica (1985-) 563

    9.1 Apontamentos introdutrios para a histria da Nova Repblica 563

    Referncias bibliogrficas 583

  • 11

    Palavras introdutrias: o manual do manual

    Alberto da Costa e Silva em seu magnfico artigo em O Itamaraty na Cultura Brasileira toma emprestado o quadro de Hans Holbein, Os embaixadores, para avaliar, por meio das representaes iconogrficas da tela, as caractersticas do diplomata. O mapa, o alade, o sex-tante, o globo, o livro e a tapearia seriam metforas indicativas da qualidade de homens capazes de decifrar todos os cdigos nos mais diversos campos da inteligncia humana. Eis o diplomata.

    Para os atuais candidatos carreira diplomtica persiste a fixao no glamour intelectual da profisso. Ampla erudio e sofisticao cultural, ainda que teis, no so mais, contudo, h longa data, precondies para que algum se torne diplomata. Afinal, necessrio apenas passar no concurso pblico. Mesmo sendo o mais difcil do pas, , to somente, um concurso pblico: avalia cidados e aprova servidores. Lembrar da simplicidade desta enunciao facili-tar sua aprovao e tornar sua carreira posterior mais til sociedade.

    Este manual tem o intuito de facilitar sua aproximao imensa quantidade de infor-maes necessrias ao sucesso de uma das etapas do Concurso de Admisso Carreira Diplo-mtica, que a prova de histria do Brasil. Sem sombra de dvidas, nesta, mais que em todas as outras provas, ainda persiste a necessidade de alguma erudio que mantm a mstica em torno da carreira e da prova. Entretanto, no basta a erudio. H candidatos famintos, que inoculados com o vrus da gula livresca leem tudo o que podem, anotam e ficham, resumem e digerem informaes factuais, mas apresentam desempenho subtimo na prova quando ela se apresenta. Apesar de saberem muito, so incapazes de traduzir esse conhecimento em um texto articulado, com argumentos sustentveis e apresentado de modo objetivo e coe-so. Questes sem introduo ou concluso. Questes jornalsticas. Questes narrativas e no dissertativas. Questes nas quais os fatos sucedem outros fatos em um estilo de lista de super-mercado histrica, cujo texto poderia ser facilmente transformado em bullets itemizados. Textos prolixos que no levam em considerao o limite de linhas e so forados a encerrar seus argumentos abruptamente quando elas acabam. So todos exemplos de provas fadadas ao fracasso, ou ao menos ao insucesso, em conquistar uma pontuao alta.

  • 12Histria do Brasil

    Por outro, h candidatos excelentes em estabelecer argumentos e em discutir temticas. Para estes, o que ne-cessrio o domnio factual do contedo histrico cobra-do, que lhe permita minimamente articular informaes de diversos matizes polticas, sociais, econmicas, culturais e artsticas, ou no plano internacional, sistmicas, regionais, bilaterais ou multilaterais para que forme um argumento ao mesmo tempo coerente, objetivo e embasado.

    Identificar que tipo de candidato voc uma prio-ridade. Permitir que voc concentre seus esforos em su-perar as dificuldades que voc realmente possui e no as que acredita possuir. A maior parte dos candidatos acredita que estudar, estudar, estudar, ler e fichar o nico modo de passar, quando parcela significativa deles vive proble-mas de ordem diversa da simples aquisio de contedo, e deveriam passar mais tempo treinando a redao de ques-tes e aprendendo a organizar melhor o contedo de que j dispem. Abandonar a iluso de que possvel dar conta de todo o contedo histrico no ! No no tempo de uma vida humana ajudar bastante no processo.

    Este trabalho busca auxiliar ambos os tipos de can-didatos. Sistematiza em captulos, cronolgicos, e em ses-ses dentro de cada captulo em geral temticas (exceto nos captulos III e VII, onde se optou pela cronologia), pra-ticamente todo o conhecimento de Histria do Brasil ne-cessrio ao candidato iniciante no estudo para o Concurso de Admisso Carreira Diplomtica. Naturalmente, foram

    feitas muitas escolhas. O que aprofundar? O que deixar de fora? O que discutir historiograficamente e o que apresen-tar apenas factualmente?

    A diretriz que guiou essas escolhas foi sempre a anlise dos contedos exigidos e da forma pela qual esses contedos foram cobrados nas provas de Histria do Brasil do Concurso de Admisso Carreira Diplomtica. Foram analisados os Testes de Pr-Seleo e, principalmente, as avaliaes discursivas da Terceira Fase. Foram lidos e reli-dos alguns milhares de espelhos aos quais este autor teve acesso desde 2003. Avaliaes bem-sucedidas e, tambm, a maior parte, que no tiveram sucesso. Essas ltimas fo-ram muito mais instrutivas sobre Como no se deve fazer uma questo de Histria do Brasil.

    Com base neste material, foi dada nfase na histria poltica, em especial na histria da poltica externa brasilei-ra. Sem, naturalmente, negligenciar os demais temas, en-fatizou-se ainda o papel dos partidos polticos, os debates parlamentares e a histria institucional do Ministrio das Relaes Exteriores. Estes temas e fontes so muito privi-legiados nos textos publicados pelos membros da banca.

    Inicialmente composta por Amado Luiz Cervo e, bre-vemente, em 2008, por Eugnio Vargas Garcia, a banca tem sido composta, nos ltimos anos, pelo trio de professores formados pela UnB e especialistas em Histria da Poltica Externa: Jos Flvio Sombra Saraiva, Antonio Carlos Lessa e Francisco Doratioto. Os novos integrantes imprimiram um

  • 13 Palavras introdutrias: O manual do manual

    tipo de avaliao que, naturalmente, foca os temas afeitos histria das relaes internacionais do Brasil, tendo, em alguns anos (2011, por exemplo), sido a prova inteira cons-tituda por questes de poltica externa. Em mdia, desde 2007, trs das quatro questes anuais tratam de Poltica Externa o que compreensvel, dada a natureza do exa-me, mas que acaba negligenciando temas importantes. A histria cultural no cobrada h anos houve, em 2006, uma questo sobre o Modernismo e, em 2007, outra sobre o impacto cultural do xodo rural e no mais desde en-to. Apesar disso, o presente trabalho procurou abranger cuidadosamente os principais temas da histria artstico- -cultural brasileira, tema que causa arrepios aos candida-tos, justamente por quase nunca ser cobrado. A menos que a banca mude (ou leia estas linhas), o candidato mais pragmtico pode, por exemplo, pular o captulo cultural sobre o Regime Militar, que jamais foi objeto de avaliao.

    Naturalmente, qualquer discusso sobre a relevn-cia comparativa dos temas imbuda de juzos de valor ideolgicos. A teledramaturgia brasileira tem a mesma ida-de da Operao Pan-Americana, e o Rock Nacional apenas um pouco mais velho que o Mercosul. Se estas iniciativas do Itamaraty foram mais ou menos bem-sucedidas que Roque Santeiro ou a Legio Urbana, se tiveram mais ou me-nos impacto em nossa sociedade a ponto de serem ou no objeto de avaliao na prova de Histria do Brasil, caber naturalmente aos membros da banca decidir. At ento

    suas decises apontam em favor dos temas considera-dos srios, e que, naturalmente, tiveram prioridade neste manual.

    Outra tendncia perceptvel nos ltimos anos tem sido o progressivo abandono de questes de longa dura-o. O multilateralismo na segunda metade do sculo XX, a frica nos anos 60 e 70 e a poltica brasileira de seguran-a nas dcadas aps a Segunda Guerra Mundial tm dado lugar a um enfoque em questes bem especficas, como a Comisso Mista Brasil-Estados Unidos, as arbitragens da virada do sculo XIX para o XX, a frica durante a Poltica Externa Independente, o papel do Brasil na Conferncia Pan-Americana de Washington. Acredito que o intuito te-nha sido o de dificultar a prova, que conta em geral com candidatos cada vez mais preparados, mas que nem sem-pre dominam profundamente as especificidades da hist-ria da Poltica Externa brasileira. Por isso recomenda-se aos candidatos usar este manual como ponto de partida para o aprofundamento e creio ser esta sua maior utilidade. Sintetiza-se, aqui, temas j cobrados e indica-se bibliogra-fia suplementar qual se deve recorrer. Naturalmente, impossvel cobrir todas as temticas especficas de modo detalhado. Nem seria esse o objetivo.

    Por ser introdutrio, geral, sinttico e panormico, ronda o texto o espectro da superficialidade, do qual nem sempre foi possvel escapar, apesar de grandes esforos. As notas de p de pgina so um exemplo desses esforos.

  • 14Histria do Brasil

    Desnecessrias compreenso geral do texto, tm quase sempre o carter de uma informao adicional, anedtica, reflexiva, ou ainda bibliogrfica. H aqueles que tero seu raciocnio interrompido ao l-las. Pulem-nas sem culpa. H, no entanto, aqueles que encontraro funo mnemnica nos detalhamentos das notas, que podero ser teis ao crebro na hora fatal do TPS (Teste de Pr-Seleo do Con-curso de Admisso Carreira Diplomtica), por exemplo.

    Igualmente pela funo mnemnica, o autor prefe-riu arredondar, quase sempre, todas as estatsticas. A nica funo de apresentar um percentual com duas casas deci-mais ou um nmero de exportao de US$ 207.343.722,17 dotar de legitimidade matemtica o texto. O nmero imediatamente esquecido pelo leitor. Acredito que 49,7%, quando vira 50%, cumpre uma funo pedaggica que superior necessidade de preciso, exceto quando isso traz consequncias polticas (tal qual o percentual de vo-tos que Getlio Vargas teve em 1950, e que motivou o gol-pismo udenista por no ter alcanado 50%). Pela mesma razo, as tabelas foram evitadas, ainda que isso no tenha sido possvel nas sesses econmicas.

    Estas palavras introdutrias j devem ter sido sufi-cientes para que o leitor tenha se dado conta do carter pragmtico deste autor. Em nome deste pragmatismo, fao um ltimo apelo ao candidato, que quase certamente considera histria sua disciplina favorita, ou ao menos uma das favoritas no ia querer ser diplomata se assim no

    fosse. Para voc, estudar histria um prazer, mais que um dever. Dado o carter subjetivo da prova so desconhe-cidas notas mximas na prova de Histria do Brasil, e, ra-rssimas aquelas acima de 85% convm lembrar-lhe que cada hora dedicada ao estudo de Histria hora a menos dedicada ao estudo de Direito, Portugus, Economia ou Ingls, disciplinas mais cartesianas, com contedos finitos, nas quais o esforo pode ser mais transparentemente tra-duzido em pontos que levaro voc ao passaporte verme-lho. Um ponto em histria vale o mesmo que um ponto em Direito, Ingls ou Economia, ainda que a satisfao ad-vinda de horas de estudos seja desigual. So aprovados os candidatos mais disciplinados, mas tambm os mais prag-mticos, para o bem do nosso servio exterior.

    Gostaria de agradecer Sabrina Primo e Priscilla Ne-greiros, que revisaram o texto de alguns captulos. Roberta Lemos e Camila DE Carli, que ajudaram a compilar o con-tedo do capitulo II e parte do Captulo IV. Rita de Curtis, que fez o mesmo com a sesso das Sedies Coloniais. O excelente professor Daniel Arajo, que coautor da ses-so poltica do Regime Militar, tema sobre o qual especia-lista. Roberta Luz, que organizou parte da bibliografia. Ri-cardo Victalino de Oliveira, insigne constitucionalista, deu palpites sobre a CF/88 e Larissa Lacombe, herdeira de uma dinastia de historiadores ilustres, que leu partes e disse ter gostado, me estimulando a prosseguir. Que todos os equ-vocos so meus, a va sans dire.

  • 15 Palavras introdutrias: O manual do manual

    Fora do plano do contedo, cabe enorme agrade-cimento ao incrvel staff da Funag Fernanda, Henrique, Dirceu, Pablo que apoiaram essa iniciativa, mas principal-mente, ao Embaixador Gilberto VergneSaboia, que apos-tou no sucesso do trabalho. incrvel coordenadora-geral de projetos Marta Cezar e Eliane Miranda, do setor de pu-blicaes, que tiveram enorme pacincia com os atrasos deste autor. Ursula, ao lson e Din, que ofereceram o melhor lugar do mundo para que eu redigisse a maior par-te deste trabalho. E aos muitos, todos, alunos que tive ao longo dos ltimos dez anos preparando candidatos para o Concurso de Admisso Carreira Diplomtica. Sem eles esse trabalho no existiria.

    No existiria tambm sem Maria, minha me, que me dividiu com este Manual durante as numerosas sesses de quimioterapia e o leito do hospital onde veio a falecer em agosto de 2012. No existiria ainda sem Stefanie Tom Schmitt, que insistiu muito para que eu colocasse por es-crito o que falava durante as aulas. Ambas criaram lite-ral ou metaforicamente parte relevante deste trabalho: o autor. A elas dedico este esforo.

  • 17

    1.1 O sentido da colonizao

    Para que serve uma Colnia? Mercantilismo e monoplio.

    Prticas e mtodos do mercantilismo. O impacto da economia mercantil na Colnia.

    A cidade colonial como expresso do poder da metrpole.

    mar salgado, quanto do teu sal So lgrimas de Portugal!

    Por te cruzarmos, quantas mes choraram,Quantos filhos em vo rezaram!

    Quantas noivas ficaram por casarPara que fosses nosso, mar!

    Valeu a pena? Tudo vale a pena Se a alma no pequena.

    Quem quer passar alm do Bojador Tem que passar alm da dor.

    Deus ao mar o perigo e o abismo deu,Mas nele que espelhou o cu.

    Mar portugus (Fernando Pessoa)

    No surpresa que colnias so estabelecidas em virtude do interesse das metrpo-les. Em alguns casos, sua instalao se d como simples vlvula de escape demogrfico a fim de evitar conflitos sociais (na Antiguidade, temos as colnias mediterrnicas gregas do perodo arcaico); em outros casos, como locais de desterro ou priso (at o sculo passado, a ilha do Diabo, na Guiana Francesa, por exemplo). A Colnia portuguesa na Amrica do Sul no foi exceo.

    Existe um amplo debate sobre o sentido da colonizao, mas no h dvidas de que esse sentido era mercantil. O mercantilismo portugus engendrou a ocupao do ter-ritrio americano subordinando essa ocupao a seus interesses econmico-comerciais.

    1. O Perodo Colonial

  • 18Histria do Brasil

    Inicialmente de modo tmido, aos poucos a colonizao assume feies cada vez mais intensas, com a presena da Coroa portuguesa fazendo-se sentir de forma to signifi-cativa. Em suma, se um estudante mais afoito exigisse, sob ameaa de morte, um resumo da histria da colonizao em uma nica frase, este professor diria que se tratou de uma crescente presena dos interesses mercantis do Esta-do portugus na Amrica do Sul. No entanto, essa uma simplificao radical. Nem todos os interesses do Estado portugus eram mercantis; ao menos, no exclusivamente mercantis.

    As dcadas iniciais do chamado perodo pr-colo-nial demonstram que o interesse mercantil de Portugal no estava na Amrica, mas na sia, e a ocupao ameri-cana tinha objetivo estritamente geopoltico. Como diria Fernando Pessoa, o objetivo era o controle do Mar portu-gus, o mar oceano, o Oceano Atlntico, cuja rota levaria s especiarias asiticas; estas, sim, objeto de cobia mer-cantil lusitana. Os objetivos religiosos tambm no podem ser negligenciados. Por que outra razo encontramos na Colnia, vivendo em meio aos nativos, em condies mui-to distintas das que tinham na metrpole, padres, sobretu-do da Companhia de Jesus, a espalhar a palavra de Deus? Os mtodos, o desfecho de sua empresa ou mesmo a manipulao poltica de seu servio podem ser ques-tionados hoje, mas a sinceridade religiosa era em geral genuna e no deve ser subsumida esquematicamente em

    modelos explicativos estruturais surgidos sculos depois, que reduzem as causalidades dimenso econmica ou a qualquer outra.

    Um segundo reducionismo bvio que o geogrfico. A empresa mercantil da Coroa portuguesa tinha, dentre as capitanias, suas filhas preferidas. A Bahia, Pernambuco e, mais tarde, o Rio de Janeiro estavam sempre sob a ateno de Sua Majestade, o que no ocorria com o Maranho ou com So Vicente. Por serem menos relevantes gozavam de maior autonomia. No caso paulista isso trouxe consequn-cias expressivas: a aventura para o serto. A autoridade da Coroa sobre a Amrica colonial, crescente no tempo, foi desigual no espao. O fracasso geral do ensaio das capita-nias hereditrias exemplar disso. Largadas prpria sorte, poucas vingaram.

    Abandonadas, sujeitas ao ataque de ndios, eviden-ciando escassez de braos e/ou de vontade, as capitanias manifestam o relativo anacronismo do modelo jurdico ao qual se vinculavam, o feudal. Doar terras de modo he-reditrio aos fidalgos do reino mantinha a tradio que vinha desde a Reconquista moura, passando pela tomada de Ceuta e pela aventura africana: premiar o servio ao rei com a doao de terras. Esse modelo se reproduziria de forma bastante adaptada realidade colonial. O capito donatrio doava sesmarias, que eram ocupadas apenas em sua testada e alugadas ou arrendadas para novos colonos, reproduzindo uma relao de hierarquia muito

  • 19 O Perodo Colonial

    verticalizada, marco at hoje da sociedade brasileira. Se, de um lado, isso lembra a herana feudal da Idade Mdia portuguesa, de outro, aos poucos seus marcos jurdicos, como a vassalagem, a segurana, o carter militar, bem como a liturgia existente na Idade Mdia, no existem mais. Haveria na Colnia menos institucionalizao jurdi-ca da hierarquia, mas esta permanecia sendo trao essen-cial da sociedade colonial. Tal hierarquia o fio condutor da organizao da sociedade colonial, expressando-se na forma de monoplios.

    O monoplio a sntese do mercantilismo. Assumin-do a lgica mercantil como definidora da empresa colonial, devemos nos perguntar o que define o mercantilismo. No sendo uma teoria econmica como o liberalismo e sem se constituir em uma escola terica, o mercantilismo no abstrato. emprico e, por isso mesmo, pouco homogneo. Trata-se de um conjunto de prticas econmicas adotadas pelos modernos estados absolutistas europeus para sus-tentar os crescentes gastos com a burocracia e, sobretudo, com as Foras Armadas. Esses gastos eram inexistentes no modelo feudal, que terceirizava as funes estatais jus-tia, coero, segurana, cobrana de impostos , exerci-das privadamente, na Idade Mdia, por senhores feudais. Toda essa trajetria centralizadora no faz parte do escopo deste livro, mas foi sintetizada na formulao weberiana de que o Estado o monoplio legtimo dos meios de coer-o e discutida longamente por debatedores e estudiosos

    da formao dos estados nacionais, como Perry Anderson, Charles Tilly, Hendrik Spruyt, Janice Thomson e outros. Assim sendo, o mercantilismo o que viabiliza economi-camente o Estado moderno absolutista. Poderamos dizer que so duas faces da mesma moeda, metfora que ser ampliada em breve, quando voltarmos da Europa para a Colnia, se ainda houver pacincia do leitor para com esta breve digresso. O mercantilismo a expresso econmica dos monoplios assumidos pelo Estado ao final do pero-do feudal, enquanto o absolutismo seria a expresso polti-ca desse monoplio, que bom que se diga sempre foi mais uma pretenso que uma realidade (o Estado, no raro, ser obrigado a terceirizar monoplios tanto na esfera pol-tica corsrios, mercenrios quanto na esfera econmica companhias de comrcio, capitanias hereditrias, zonas de contratao como o distrito diamantino).

    Dessa forma, o monoplio, ou a pretenso a ele, vai tal qual um polvo, um monstro necessrio, como na ima-gem hobbesiana, espalhando seus tentculos polticos, econmicos, militares progressivamente. Quanto mais longe alcanavam, mais forte era considerado o Estado. Eram recorrentes as guerras mercantis com o objetivo de engrandecer o Estado e enriquecer o rei; com frequncia, essas guerras eram mais caras que os lucros que advinham delas. A obsesso dos monarcas franceses com a conquis-ta de Flandres nada mais era que a cobia por seu rico comrcio. A conquista portuguesa de Ceuta (1415),

  • 20Histria do Brasil

    entreposto comercial muulmano no norte da frica, no fez seno desviar as rotas de comrcio que at ento afluam para aquela metrpole antes da chegada dos cris-tos. A concepo de que a guerra era um instrumento de acumulao de ouro e de recursos, to comum ao esprito mercantil da poca moderna, segue arraigada em nossos dias e dita as regras nos jogos de tabuleiro ou eletrnicos dos dias de hoje, cuja pretenso conquistar o mundo1. Nem todo mercantilismo lucrativo. No entanto as tenta-tivas e/ou pretenses de conquista, por caras que fossem, aumentava o prestgio do rei, fortalecendo-o. Dir Charles Tilly, em captulo clssico do livro Coercion, Capital and Eu-ropean States, no qual desenvolve a definio weberiana, que, se os estados fizeram a guerra tanto quanto as guerras fizeram os estados nacionais.

    A expresso varivel do monoplio mercantil se d nas distintas estratgias de arrecadao em muitos casos, desesperadas e crescentemente insolventes que os reis modernos e seus ministros vo inventar ao longo dos s-culos XIV ao XVIII. O famoso Colbert, ministro do rei francs buscou criativamente aumentar as rendas de seu soberano

    1 Em War e Risk, para cada dois territrios, mais um exrcito. Em jogos eletrnicos, como Civilization e afins, mais matrias-primas e mais poder militar afluem dos territrios conquistados. So jogos que em algum momento viciaram toda uma gerao nerd. Esquecem os designers de jogos que, no raro, controlar esses territrios mais custoso que os lucros que eles poderiam produzir. A lgica deles a mesma do mercantilismo.

    estimulando manufaturas de luxo que, por exclusivssimas, contriburam, junto com Versalhes e demais extravagncias do monarca heliocntrico, para a fama de capital do bom gosto, da moda e da sofisticao que a Frana evoca at os dias de hoje. Outros menos criativos ou mais pragm-ticos recorriam tributao pura e simples, como o ca-meralismo austraco. Os ingleses e holandeses investiram na criao de companhias de comrcio. Oliver Cromwell leva o monoplio a um novo patamar com os Atos de Na-vegao, que contribuiriam para a primazia naval britnica nos sculos seguintes. Os reis de Portugal e Espanha, so-bretudo em virtude do pioneirismo na expanso martima e legitimados que estavam pelo Tratado de Tordesilhas (1494) o testamento de Ado, na colorida imagem do rei francs Francisco I , priorizaram desde cedo o colonialis-mo como forma de acumular recursos. No caso espanhol, a prata justificava o esforo; no caso portugus, a esperana do ouro.

    O monoplio, caracterstica absoluta do mercantilis-mo, chega ento Amrica portuguesa. Ilmar Mattos nos ensina que o monoplio est to arraigado mentalidade mercantil que ele percebido at entre as colnias de um mesmo Imprio. Sugestes de que Portugal plantasse pi-menta no litoral brasileiro foram ignoradas pela metrpole, pois feririam o exclusivo das colnias. O acar foi uma al-ternativa. Ante o preo exorbitante do frete, s faria senti-do a produo de bens de alto valor agregado por volume,

  • 21 O Perodo Colonial

    e isso explica a opo pelo acar, produto to exclusivo na Europa que chegou a ser parte do dote de princesas portuguesas.

    A civilizao produzida pelo acar tem a realizao de sua produo em um mercado muito distante, controla-do e dirigido de um outro continente2. Reitera a afirmativa inicial de que as colnias servem aos propsitos mercantis; monopolistas da metrpole. Na obra de Roberto Simonsen, encontramos o esforo de sntese bastante famoso na construo de um modelo histrico que estruturasse a experincia mercantil portuguesa na Amrica do Sul.

    Em Histria Econmica do Brasil de 1937, Simonsen defende uma viso cclica e evolucionista da economia co-lonial. Teramos vivido sucessivos ciclos com a primazia de um nico produto o acar, o ouro, o caf. Esta viso est presente de tal forma e durante tanto tempo nos livros di-dticos que se tornou parte do senso comum, talvez por sua simplicidade quase didtica, mas vem sendo, desde

    2 Isso dito a brasileiros do incio do sculo XXI pode parecer curioso. Afinal passamos boa parte do sculo XX buscando a autonomia da substituio de importaes e ocupando fatia do comrcio internacional, mnima, desproporcional ao tamanho de nossa economia. Aps quase seis dcadas voltados para dentro foi apenas recentemente que o setor primrio exportador da economia voltou a ter impacto poltico determinante, como se percebe em nossa influente bancada parlamentar ruralista. Na Repblica Velha, todo o Congresso, e no apenas uma bancada, era ruralista. Na Colnia, quando no existia bancada, o pas era governado de fora, de Portugal, os intermedirios monopolistas de nosso modelo mercantil de produo.

    ento longamente questionada. Entendimentos mais re-centes complexificam o panorama colonial tanto em razo de pesquisas que desmontam empiricamente a posio do industrial paulista quanto por novos insights interpreta-tivos ou abordagens metodolgicas.

    Um exemplo a perspectiva de Ilmar Mattos. Este autor resgata as complexidades internas da sociedade colonial que foi aos poucos ganhando dinmica prpria, independente dos interesses metropolitanos. Isso se deu medida que o colonizador portugus, com seu intuito de monoplio colonial, foi se transformando em colono brasileiro. Tambm este colono era titular de outros ti-pos de monoplios da violncia sobre os escravos, por exemplo ao mesmo tempo que seguia submetido aos monoplios emanados da metrpole monoplio comer-cial, monoplio da f, entre outros. Estes monoplios ema-navam dos centros de poder aqui criados para disseminar a autoridade do rei: as cidades coloniais.

    Ao contrrio da cidade medieval, expresso da liber-dade contra a opresso feudal dos camponeses, servos dos nobres, a cidade colonial era expresso da autoridade me-tropolitana e centro administrativo e burocrtico do poder portugus. Seu smbolo era o pelourinho, marco do exer-ccio da violncia. Na famosa expresso medieval o ar da cidade liberta. Bastava ao servo viver um ano e um dia para se tornar um homem livre. Muito diferente era a dinmica da cidade colonial. A vida dos escravos, mas tambm a dos

  • 22Histria do Brasil

    senhores, dos funcionrios e dos homens livres, era objeto de constante vigilncia social. As autoridades metropolita-nas exerciam sobre eles controles social, religioso, comer-cial e legal. No surpreende que, nos registros histricos, seja frequente a meno a brancos e mestios em quilom-bos. O quilombo desterritorializado negava o espao de poder e se constitua em espao de liberdade.

    A cidade, no raro nascida a partir de um forte e de uma igreja (expresso do monoplio poltico-militar e religioso), era igualmente a forma do Imprio portugus se afirmar perante inimigos como os franceses e os es-panhis. As fundaes do Rio de Janeiro (1565) e Belm (1616), originada do Forte do Prespio, serviram de ele-mento de defesa e dissuaso contra os franceses invasores na Guanabara e na Amaznia. A Colnia do Sacramento originariamente apenas um forte portugus; e, mesmo na frica, a presena portuguesa no Daom era originaria-mente composta de fortes. O mais famoso foi So Jorge da Mina, em torno do qual surgiu toda uma cidade de portu-gueses, estrangeiros e brasileiros retornados, transforman-do Uid em centro exportador de escravos, fundamental para o abastecimento das Minas Gerais no sculo XVIII.

    1.2 A sociedade colonial

    A moeda colonial de Ilmar Mattos. Esquema didtico da

    sociedade colonial: uma pirmide heterodoxa.

    Os colonizadores e a expresso de seu monoplio na

    Colnia. Os comerciantes e os grandes senhores: ascenso

    social e tenses. Os senhores: de engenho, de terras, de

    escravos. Os colonizados: escravos, mestios e brancos

    pobres. O trabalho como estigma na sociedade colonial.

    Ilmar Mattos cunhou uma boa metfora para ilustrar a relao da metrpole com a Colnia: tratava-se de uma moeda. No um pacto, tampouco uma sucesso de ci-clos. A moeda colonial tem dois lados: em um deles, h os interesses da metrpole; no outro, esto os interesses dos colonos. Um no existe sem o outro, e cada qual tem inte-resse no/necessidade do outro, embora nem sempre com o mesmo entusiasmo.

    A interpretao de Mattos sobre o perodo colonial tem o propsito mais amplo de iluminar uma poca mais recente. Trata-se apenas de um prembulo em sua obra cujo cerne da anlise posterior. Est este autor mais preocupado com a fase de recunhagem da moeda colonial, que se daria aps a Independncia. No chamado perodo do regresso (de 1837 em diante), uma faco conservadora foi capaz de articular-se de modo bem-sucedido para restaurao, com modificaes, o modelo de produo mercantil. Retomaram

  • 23 O Perodo Colonial

    o monoplio da violncia legitimada pelo Estado imperial que se desejava fortalecer. Mattos chamou essa poca de tempo saquarema, ttulo de seu livro homnimo, clssico da historiografia sobre o Imprio brasileiro.

    Mesmo ciente do propsito ilmariano, tomo aqui emprestada sua sntese didtica da formao da sociedade colonial sob a hegemonia da lgica mercantil monopolis-ta. O monoplio estava presente em todas as relaes so-ciais e, para fugir dele, o indivduo, fosse branco ou negro, precisava escapar para um quilombo, j que at na morte estava sob o controle da igreja que decidia se ele podia ou no ser enterrado em campo santo. A imagem de uma pirmide ilustra visualmente o entendimento do que era a sociedade colonial de acordo com Tempo saquarema.

    O colonizador, que aos poucos vai se transmudando em colono, , ao chegar, agente do Imprio portugus, tra-zendo para a Colnia o monoplio mercantil gravado nas leis e nos editos reais. O monoplio era a liga, o metal no qual era cunhada a moeda colonial e se expressava em diversos nveis. Era monoplio do colonizador o comrcio, estabelecido para o interesse da metrpole e feito exclu-sivamente com a metrpole. Mais que um pacto a rela-o entre a metrpole e a colnia se traduzia na inteno do estabelecimento jurdico de uma lgica exclusivista. O contrabando notrio e constante, estimulado pela cor-rupo dos agentes da coroa, garantiram que raramente essa inteno fosse plenamente posta em prtica.

    Alm do monoplio comercial, havia o monoplio religioso. Expressava-se de modo violento nas visitaes do Santo Ofcio Colnia, que punia comportamentos desviantes da f catlica. O controle era espiritual e com-portamental. Eram punidas tanto as prticas ditas judaizan-tes ou protestantes preocupao grave aps a expulso dos holandeses quanto nas prticas nefandas, sexual-mente desviantes ou animistas dos escravos africanos e dos brancos que fossem denunciados. Havia o tempo do perdo, no qual aqueles que confessavam voluntariamen-te seus crimes sofriam penas menores. O confisco de bens e a pena de morte foram com frequncia aplicados nos crimes contra a f.

    Como vimos, esses monoplios eram expressos a partir da cidade colonial, centro de difuso do poder me-tropolitano e quanto mais longe desses centros, mais difu-sa era a presena da autoridade metropolitana. O serto era

    Colonos

    Colonizados

    Colonizadores

  • 24Histria do Brasil

    a expresso da liberdade. O serto alm do lugar dos qui-lombos era tambm para onde partiam os bandeirantes, to ciosos de sua autonomia que chegam a aclamar um rei paulista em 1640. Essa vocao para o serto explica o grau de liberdade de que gozavam os bandeirantes paulis-tas que apenas remota e nominalmente estavam a servio de Portugal e, no raro, desobedeciam as ordens de El-Rei. A desobedincia mais frequente era no tocante escravi-zao dos ndios.

    Com o passar dos anos e com o crescimento da po-pulao branca na Colnia, comeam a se diferenciar mais claramente os papis dos colonizadores e dos colonos. O interesse dos primeiros est na metrpole. O colonizador agente direto ou indireto dos interesses da metrpole. Comer-ciantes, funcionrios da Coroa, padres e bispos no existia separao entre Estado e Igreja; esta era um brao do Estado portugus eram todos agentes do exclusivo metropolitano em suas expresses religiosas, polticas ou comerciais.

    Tal distino, entretanto, nunca foi to rgida como a que ocorria na Amrica espanhola entre criollos e penin-sulares, os chapetones. Muitos agentes da Coroa e grandes comerciantes nascidos no Brasil, tendo estudado na Uni-versidade de Coimbra ou se tornado cortesos em Lisboa, adquiriram prestgio social muito mais difcil de conseguir para um criollo nascido no Peru ou em Buenos Aires.

    Fiquemos com dois exemplos. Alexandre de Gus-mo, secretrio particular de D. Joo V, negociador do

    Tratado de Madri, e Azeredo Coutinho, bispo de Pernam-buco, fundador do Seminrio de Olinda, inquisidor do rei-no em Lisboa. O primeiro nasceu em Santos, litoral paulista; o segundo, em Campos, no norte do Rio de Janeiro. No estava fechado aos brasileiros talentosos, afortunados ou com fortuna, o cursus honorum da burocracia portuguesa. Essa distino com a Amrica espanhola explicada por Srgio Buarque de Holanda. O pai de Chico nos ensina que a escassez de gente em Portugal, sobretudo alfabetizada, obrigava a incorporao burocracia portuguesa de talen-tos coloniais. Favorecia-se uma certa democratizao no acesso s instituies do Estado. Na Colnia, entretanto, no eram infrequentes as tenses entre os colonos e os colonizadores, em torno do questionamento no dos pres-supostos, mas da aplicao do exclusivo metropolitano.

    Quem so os colonos? Os colonos eram os senhores da colnia. Tais senhores eram detentores do monop-lio sobre os meios de produo: o engenho, a terra e o escravo.

    A hierarquia medieval relegava ao comerciante, burgus, um lugar de pria na sociedade. Desconfiava-se daquele indivduo que viajava, era livre e no tinha um senhor. J o senhor de terras invariavelmente era um nobre, nunca um plebeu. A lgica se invertia na sociedade colo-nial criada pela empresa mercantil portuguesa na Amrica. O comerciante, rico e poderoso, era agente da Coroa. Titular do monoplio comercial que controlava o mercado ao qual

  • 25 O Perodo Colonial

    se subordinava o colono brasileiro. No raro era tambm o comerciante credor dos senhores de Engenho. Os colo-nos dependiam dos comerciantes para o abastecimento dos escravos africanos. Dependiam deles igualmente para fazer escoar sua produo. Apesar desta dependncia, no se muda da noite para o dia a mentalidade secu-lar preconceituosa contra os comerciantes. Os senhores eram ciosos de sua pretensa nobreza e ressentiam-se da posio subordinada. Defendiam seu status dificultando como podiam a expresso poltica dos comerciantes nas cidades coloniais, o que gerou enfrentamentos conheci-dos3. Esta relao tensa era amenizada pela relativa tole-rncia da coroa que se valia da concesso de ttulos, car-gos, sinecuras e honrarias para os colonos. Dotava assim, a administrao colonial de elementos brasileiros. Vendia cargos e prebendas. Arrendava o privilgio de cobrar im-postos o arrematador que lhe adiantava os recursos.

    s vezes, porm, em vez de amenizar o conflito, essa estratgia favorecia o confronto, como no caso da

    3 Na Guerra dos Mascates (1684) os grandes comerciantes que buscavam em Portugal a elevao do bairro de Recife condio de Vila viram seu pelourinho derrubado pelos grandes senhores de Olinda. Estes, estavam endividados e eram ciumentos da nova Vila controlada pelos comerciantes, chamados pejorativamente de mascates. O episdio, tratado pelo embaixador Evaldo Cabral de Mello em A fronda dos mazombos, inverte no ttulo do livro a zombaria aos comerciantes ao usar a expresso que caracterizou a rebelio da nobreza francesa contra Lus XIV, associada mazombice mestia desses pretensos aristocratas.

    Guerra dos Emboabas. Nessa ocasio, paulistas, estimu-lados indiretamente por cargos e ttulos recebidos do rei de Portugal, julgaram que eram os donos das minas e atacaram grupos estrangeiros que igualmente haviam sido agraciados pela Coroa com cargos e comeavam a rivalizar com os paulistas em termos de autoridade e de prestgio na zona das minas recm-descobertas. Discuti-remos essas rebelies, suas semelhanas e diferenas na ltima seo deste captulo.

    Quanto questo da hierarquia, ela estava presente mesmo no nvel intraestamental. Havia uma clara hierar-quia entre os colonos, que dependia do tamanho da terra possuda, do nmero de escravos em sua(s) senzala(s) e/ou do nmero de foreiros em suas possesses. Esses homens bons que se queriam nobres se relacionavam entre si em um mundo em que a hierarquia era clara para todos e cada um sabia qual era o seu lugar. Entretanto, ao possuir um nico escravo, o indivduo se libertava da carga negativa estigmatizante do trabalho e se tornava um senhor, ain-da que dos mais humildes. Dentre os fatores de produo, a mo de obra era o mais escasso. Na economia mercantil, ainda que existissem pequenos posseiros, com poucos ou nenhum escravo, o modelo de plantation era hegemnico, sendo necessrio um grande nmero de escravos para a realizao da produo.

    A terra, em relao mo de obra, era muito mais abundante. O modelo de doao de sesmarias

  • 26Histria do Brasil

    na zona litornea e as chamadas datas aurferas na zona mineradora. Impressiona o tamanho das sesma-rias doadas, imensas, e, s vezes, mais de uma, para o mesmo beneficirio. Est a a origem do sistema lati-fundirio que ainda hoje hegemnico no Brasil. Era frequente a ocupao apenas parcial da terra para fins de produo, j que seria impossvel para a maior parte dos sesmeiros ocupar completamente suas ses-marias sem fim. Resulta disso que a ocupao se res-tringia chamada testada da sesmaria, deixando o serto desocupado. Outra prtica frequente era o alu-guel da sesmaria aos foreiros que pagavam, geralmen-te em bens e produtos, o foro ao proprietrio. Muitas eram as ordens religiosas que tiravam do foro o grosso de suas rendas.

    Esse modelo perpetuava a hierarquizao at entre os colonos; desde o simples posseiro, que mediante gri-lagem ocupava a terra at ento desocupada, at o ses-meiro, passando pelo foreiro que alugava a terra. Da se depreende que, em uma sociedade na qual a plantation era a norma, no adiantava muito ser dono de uma grande terra sem possuir escravos. O padre Joo Daniel, uma es-pcie de Antonil amaznico, relata a situao de famlias, outrora ricas e titulares de imensas propriedades, reduzidas misria em virtude da fuga de seus escravos indgenas.

    Cabem ainda algumas palavras sobre os colonizados. So os homens obrigados ao trabalho. Fossem escravos ou

    libertos, brancos pobres ou mestios, carregavam em seu cotidiano dirio o estigma do pecado original, reforado a cada dia em uma cultura escravocrata. Humilhados, subor-dinados a um senhor, aprendem a cada dia que sua sobre-vivncia e subsistncia residem apenas e exclusivamente no trabalho que exercem. Seu lugar na sociedade mui-to pouco prestigioso. Tais indivduos na base da pirmide carregavam consigo uma esperana. Esperana perniciosa cujo eco ainda hoje se percebe em nossa sociedade. Seu principal sonho era o de liberdade. O dia em que livres, no mais precisariam trabalhar. Sonhavam ainda, aps a alforria, com a compra de um escravo que trabalhasse por eles. O escravo como aposentadoria. Nos dias de hoje, tais imagens se transmudaram no sonho do enriquecimento rpido, da loteria, da aposentadoria precoce ou at de um emprego pblico no qual no seja necessrio trabalhar. O trabalho segue sendo visto por muitos como um castigo.

    Havia ainda, e quase sempre um consolo para os po-bres coitados da colnia. Havia sempre algum ainda mais abaixo na escala de degradao social.

    Quase todos esto abaixo do senhor de engenho, ttulo a que muitos aspiram e que poucos podem pos-suir, segundo Antonil, exceto o rei e seus representantes (bispos, governadores, inquisidores). O senhor de engenho subordina a cana obrigada de outros senhores que, sem engenho, no tm outra escolha seno recorrer a ele para beneficiar industrialmente sua cana, transmudando-a em

  • 27 O Perodo Colonial

    pes de acar. O senhor de terras explorado pelo senhor de engenho que o extorque est acima, no entanto, do co-lono que s possui escravos, mas tem de alug-los por no ter terras. Este, por sua vez, se sente feliz por no estar na desdita do idoso ou da idosa que s tem um escravo para chamar de seu, escravo que o sustenta com sua jornada de aluguel e que foi comprado com o esforo de uma vida de trabalho.

    Bem pior era a vida dos que no possuam escra-vos. Restava-lhes apenas a alegria de no ser escravo. Trabalhavam mas eram brancos. Ou libertos. No tinham donos, apenas um senhor. No eram aoitados. Se es-cravo, preferia ter a felicidade de viverem em cidades. Os escravos urbanos se consolavam com a oportunidade de terem alguma chance de montar peclio, trabalhar por jornal, ser escravo de ganho, invivel no ambiente rural da senzala. Melhor que a senzala era ao menos vi-ver na Casa Grande, como domsticos. Comemoravam poder viver perto de seu senhor ou capataz. Eram dis-pensados de trabalhar no eito. Mas mesmo na senzala havia diferenciao. Os escravos ladinos tinham nascido no Brasil ou pelo menos falavam portugus. Com isso conseguiam privilgios, vantagens, impossveis para os que no conseguiam se comunicar, diferentemente dos recm-chegados da frica, chamados pretos boais. Tinham a pior das fortunas na colnia portuguesa: no estavam acima de ningum.

    No de surpreender a to propalada incapacidade do povo brasileiro para se indignar, de se rebelar contra as malversaes, a indignidade dos poderosos de hoje, dos corruptos. Desde a Colnia, cada grupo social aprendia rapidamente que era melhor olhar para baixo em bus-ca de consolo ou vingana do que para cima. Olhar para cima significava ameaar algum poderoso, ciumento e cioso de sua posio, que vigiava constantemente os que estavam abaixo. Puniam-se violentamente os que no soubessem o seu lugar. Acomodao era sobrevivncia. O monoplio da violncia era o monoplio do senhor con-tra o escravo rebelde, que sofria as mais variadas sevcias at que seu esprito, sua resistncia, irremediavelmente alquebrada, no pudesse mais planejar fugas, vinganas ou rebelies. O tronco e o pelourinho eram os lugares do castigo pblico. Serviam de exemplo recorrente e pedago-gicamente eficiente. Marcavam na alma o aprendizado da submisso. Era ensinamento que se generalizava um pou-co mais a cada vergastada assistida. Contra um poder que lhe era muito superior, restava ao escravo e resta, muitas vezes, ainda hoje ao povo conformar-se. Se, como sabe-mos, democracia e cidadania so prticas cotidianamente aprendidas, no podemos ser acusados de maus alunos. A lio por muitos sculos repetida formou o aprendizado hierarquizante do submeter e da submisso.

  • 28Histria do Brasil

    1.3 Escravido e trabalho compulsrio na Colnia

    Escravido e trabalho compulsrio. A complexidade social

    e as variantes do trabalho compulsrio colonial. A transio

    da mo de obra nativa para a mo de obra africana.

    Casos singulares de organizao da mo de obra. Eixos

    econmicos da expanso territorial.

    O ubquo historiador Ciro Flamarion Cardoso, em captulo sobre o trabalho colonial, desmonta o excessivo esquematismo da dicotomia senhores/escravos. Tece uma anlise na qual se acolhem as complexidades do imenso nmero de brancos pobres, mestios e mulatos que no eram nem senhores nem escravos. Estes foram, segundo Cardoso, negligenciados pelos historiadores em virtude da obsesso plantacionista que esteve presente nas narrativas sobre a Colnia e o Imprio. Fora da plantation, no existia histria.

    Em termos sociais, colocar escravos africanos, indgenas, mestios e mulatos no mesmo barco dos colo-nizados tal qual fizemos seo anterior aceitar a afirma-o musical de Caetano Veloso de que mestios e mulatos eram quase pretos de to pobres. Cardoso nos resgata da esquematizao e sugere o conceito de trabalho compul-srio, no qual a escravido est presente junto com outras formas de coero anlogas escravido e em concomi-tncia com ela. Ele investiga as principais linhas estruturais

    que favoreceram e caracterizaram o trabalho compulsrio no Brasil colonial.

    O autor nos lembra que, em que pese a corrente mi-gratria forada do trfico negreiro, no convm negligen-ciar o intenso fluxo de brancos que veio para o Centro-Sul, o que explicaria, segundo Cardoso, a melhor possibilidade de ascenso social dos negros libertos no Nordeste, onde a concorrncia com brancos com posses era muito menor. Kehinde, a personagem africana que seria Lusa Mahin, me do abolicionista Lus Gama, no incrvel romance de Ana Maria Gonalves, Um defeito de cor, torna-se uma self-made woman na Bahia do incio do sculo XIX. Cardoso nos ensina que talvez ela fosse to bem-sucedida se tives-se sido traficada para a parte meridional da Colnia.

    Outro fator relevante foi a abundncia de terras, guardadas as diferenas no tempo e no espao. At mea-dos do sculo XIX, em um quadro em que o acesso a terra no era difcil, o nico modo dos grandes senhores necessitados de trabalho intenso era o recurso fora. O trabalhador precisava ser obrigado a trabalhar, pois, se livre, cultivaria a prpria terra ou as terras abandonadas e abundantes do serto.

    Na literatura de Ana Maria Gonalves, a linha de vida de Kehinde ilustra detalhadamente a complexidade que historiadores como Cardoso resgatam nas linhas na-turalmente mais ridas da historiografia. Havia, no Brasil, escravos que tinham escravos. Escravos que compravam a

  • 29 O Perodo Colonial

    liberdade de seus familiares, mas no conseguiam comprar a prpria (eram escravos de ordens religiosas, ou valiosos demais, ou estavam hipotecados como garantia de dvidas de seus senhores). Escravos que formavam cooperativas, verdadeiros consrcios de liberdade, depositando seus ga-nhos nessas sociedades de complexa administrao eco-nmica, conquistando, aos poucos, a liberdade; quando livres, continuavam a contribuir para a liberdade dos de-mais. Existia o fenmeno generalizado da brecha campo-nesa, que era quase um direito dos escravos em muitas regies. Cultivavam sua prpria roa aos domingos, o que era bom para o senhor que se eximia da responsabilida-de da subsistncia e melhorava a dieta dos seus escravos. Alguns acumularam peclio suficiente para se alforriarem.

    A manumisso no Brasil, portanto, foi muito mais intensa e recorrente que em qualquer outra zona do es-cravismo moderno na Amrica. Foi recorrente, por exem-plo, nas Minas Gerais em virtude da maior urbanizao e se intensificou com o declnio econmico das minas. Ante a perspectiva cada vez mais decrescente das rendas aur-feras, os senhores preferiam libertar seus escravos a seguir sustentando-os. Resultou da imenso contingente de liber-tos, ingnuos (filhos de cativos e ex-cativos que nasciam livres) e escravos de ganho ou urbanos que construam espaos de liberdade nas cidades da Colnia e do Imp-rio, e provocavam o terror na populao branca. Eles eram controlados e vigiados intensamente pela polcia, sendo

    proibidos de andar na rua noite ou sem carta de alforria ou sem bilhete do senhor que evidenciasse estarem a seu servio. Esse medo foi agravado aps o levante haitiano da virada do sculo XVIII para o XIX. O haitianismo teria, mais tarde, consequncias polticas muito relevantes na histria do Imprio.

    Cabia ao Estado, portanto, a represso no mbito coletivo que garantia e legitimava a escravido. Reprimir rebelies, destruir quilombos e punir no pelourinho escra-vos urbanos castigados por seus senhores era uma funo pblica. Esse sistema contaria ainda com o tempo de ra-cionalizao ideolgica racial. Uma srie de leis racistas foi baixada pelas autoridades coloniais a fim de limitar o aces-so de ndios e de africanos a certas profisses e posies sociais. Isto nada mais era do que a atuao das elites que controlavam o Estado para forar os libertos ao trabalho.

    claro que a maior parte dos escravos viveu a vida inteira na zona rural. Nas cidades, apesar da represso e vigilncia constante, as possibilidades de algum grau de liberdade sob a escravido eram muito maiores que nas grandes fazendas. Tambm era maior a possibilidade de se conseguir alforria. interessante notar que, mesmo nas zonas rurais da Colnia, a escravido no aparece to con-centrada nas mos de poucos grandes senhores, como se acreditava at pouco tempo. Havia muitos pequenos se-nhores com cinco escravos ou menos que dormiam na mesma casa que seus escravos. Produziam farinha de

  • 30Histria do Brasil

    mandioca e outros gneros alimentcios ou cana-de-a-car na terra arrendada de algum grande senhor de enge-nho, a quem o pequeno senhor se subordinava.

    O trabalho compulsrio africano foi, aos poucos, substituindo o trabalho indgena. Considerada sua veloci-dade, esse processo foi muito desigual regionalmente. Se o trfico negreiro ganha relevncia impressionante ao longo do sculo XVII, em zonas de economia perifrica como o Maranho ou So Paulo o processo demoraria muito mais. Srgio Buarque de Holanda nos lembra que, no incio do sculo XIX, na cidade de So Paulo ainda se ouvia com fre-quncia a lngua geral dos ndios sendo usada na comuni-cao cotidiana.

    A disseminao da escravido africana acelerou-se com a descoberta de Minas Gerais. A razo dessa substitui-o altamente controversa e constantemente debatida pela historiografia. ndios preguiosos e inadaptados ao trabalho escravo de agricultura intensiva a explicao que muitos de ns recebemos de nossas professoras primrias. A seu respeito s nos resta o riso. Se pudssemos voltar ao tempo, perguntaramos tia da escolinha: Quem se adapta ao trabalho escravo?. Parece-me que a escravido, inerentemente violenta, tem acelerados mtodo de adap-tao: o tronco e o chicote garantem a anuncia dos mais recalcitrantes. Tal explicao ainda veladamente racista. Faz parecer que o africano se adaptou plenamente vida escrava. Para os defensores dessa opinio, s faltaria des-

    cobrir nos arquivos africanos que haus, benguelas, fons e eves, mandaram seus currculos para disputar vaga nas senzalas da Amrica.

    bem verdade que, ao contrrio do que existia no Peru ou na Mesomrica, no Brasil inexistiam sociedades autctones de agricultura intensiva. O valor das coisas era o do uso, e no o valor mercantil presente nas sociedades europeias e naquelas do litoral africano que estimularam o trfico. Nesse sentido, a resistncia cultural do nativo sul-americano tendia a ser maior, mas essa explicao cul-turalista no parece ser capaz de fazer frente chibata e ao pelourinho. O elemento demogrfico parece ser mais determinante.

    Os engenhos brasileiros funcionaram ao longo de dcadas com mo de obra indgena e aos poucos o trfico negreiro se tornou alternativa para o desapareci-mento gradual dos ndios e para a crescente dificuldade em obt-los. interessante esse ponto em que a procura diversifica o tipo de oferta. Isso desconstri a viso tra-dicional monopolista do pacto colonial, j que o trfico negreiro foi um tipo de comrcio internacional em que se evidencia a significativa autonomia comercial da Colnia. Os traficantes de escravos estavam estabelecidos no Rio de Janeiro e em Salvador, e no em Lisboa. A libertao de Angola, que foi ocupada pelos holandeses no se-gundo quartel do sculo XVII, foi planejada e executada de modo bem-sucedido pelos traficantes fluminenses.

  • 31 O Perodo Colonial

    Em certo sentido foi a primeira fora expedicionria sada do Brasil. Sob o comando do governador Salvador Cor-reia de S e Benevides, a expedio retomou Angola, So Tom e Prncipe dos holandeses e garantiu o restabeleci-mento do trfico para o sul da colnia.

    O desaparecimento progressivo dos ndios ge-nocdio causado por escravizao, epidemias, destruio de seu modo de vida e ecossistema , concomitante crescente necessidade de mo de obra por parte dos co-lonos, estimulou o trfico africano, mas este sempre foi imensamente vantajoso para a metrpole, que o tributava, e tambm para os padres. A igreja justificava ideologica-mente a manuteno da reserva de mo de obra indgena. Os ndios, livres da escravizao por parte dos colonos, eram monopolizados sobretudo pelos jesutas. Isso explica a presso constante dos jesutas pela proibio da escravi-zao dos ndios. A coroa decretou a proibio sucessivas vezes, provocando at rebelies, como maranhense, lide-rada pelos Beckman. As ordens metropolitanas no seriam capazes, no entanto, mesmo em suas sucessivas ressurrei-es, de impedir que o preamento dos ndios a partir de regies como So Paulo e Maranho.

    A mo de obra era investimento mais que um cus-to fixo. Um investimento alto tornando o investidor muito cioso. Em um quadro avesso incorporao das inovaes tecnolgicas e com enorme abundncia de terras, a mo de obra era o principal fator de produo.

    bom lembrar que h casos singulares de organi-zao do trabalho compulsrio, como a Amaznia e o Rio Grande do Sul. Na Amaznia havia reproduo interna da mo de obra. Era suprida por bandeiras de apresamento denominadas tropas de resgate, por sua pretensa funo de resgatar ndios condenados morte em suas tribos. A base econmica desse modelo era o extrativismo, e no a minerao ou o plantation, como nas zonas coloniais cen-trais. Havia, alm das misses que controlavam o grosso da mo de obra nativa, um amplo setor campesino inde-pendente de posseiros livres e etnicamente heterogneos e um grande nmero de pequenas propriedades.

    No sul do pas por sua vez, a destruio das mis-ses espanholas pelos paulistas, tornou o gado selvagem. Grupos nmades e mestios caavam este gado em uma regio de escassa densidade demogrfica. A exportao de couro serviu de embrio para a crescente valorizao do gado, que ganhou novo impulso com a descoberta de ouro. Este empreendimento passou a demandar carne e tambm as mulas que serviriam para o transporte dos tropeiros. No sculo XVIII as estncias de criao e a orga-nizao da mo de obra se impuseram vida nmade do sculo XVII. Nestes extremos geogrficos, do norte e do sul a ocupao se iniciou mais por ditames geopolticos o controle da fronteira e a expulso de estrangeiros do que por ditames econmico-mercantis. Em ambos os casos, a

  • 32Histria do Brasil

    iniciativa da Coroa, ao criar Belm em 1616 e Sacramento em 1680, foi essencial.

    Contudo, alm da atividade da Coroa, a base econ-mica da expanso territorial foi muito diversa no tempo e no espao. Ainda que iniciada no sculo XVII, dinamizou--se aceleradamente apenas no sculo XVIII, basicamente a partir de quatro eixos: 1) o bandeirantismo paulista (de apresamento para o Sul no sculo XVII e monoeiro de abastecimento no sculo XVIII); 2) o extrativismo amaz-nico das drogas do serto; 3) a minerao; e 4) a pecuria. A anlise deste processo ser objeto das prximas sees.

    1.4 Histrias do serto

    Nomenclaturas. Expanso paulista: primazia

    poltica ou econmica?

    O papel do rio no movimento sertanista. Os ciclos didticos.

    O impacto da Unio Ibrica. O mito da ilha Brasil.

    A lenda negra dos jesutas.

    O legado do movimento sertanista para a histria.

    Trata-se de senso comum, universalizado pelos li-vros didticos e sem base emprica, a diviso corrente entre entradas e bandeiras. As primeiras seriam encomenda-das pela Coroa; as segundas teriam motivao particular ou privada. Tal diviso no faz sentido por duas razes. Em primeiro lugar, certo que o nome bandeiras uma atri-buio posterior. No se relaciona a nenhum estandarte ou smbolo poltico da Coroa, mas a bandos, nome que era atribudo s incurses ao serto junto com tropa, guer-ra ou mesmo arraial, que passavam a ideia de cidade em movimento. Alm disso, a expresso bandeira s teria se vulgarizado em meados do sculo XVIII, quando o fenme-no j se esgotara. Em segundo lugar, a maior parte dessas entradas ou bandeiras no tinha motivao poltica, mas econmica, ainda que haja algumas excees, em geral comandadas por portugueses, como a bandeira de Rapo-so Tavares; mesmo nesses casos, bem provvel que pre-dominasse o estmulo escravocrata.

  • 33 O Perodo Colonial

    O bandeirantismo mais tpico era o de apresamen-to, e seu objetivo, era a captura de ndios para o trabalho na lavoura. Inicialmente se aproveitando de conflitos entre as tribos para fazer escravos, os paulistas aos poucos alar-garam o horizonte de suas razias rumo ao serto, s vezes capturando centenas, milhares de ndios de uma s vez. Iam cada vez mais longe de So Vicente e no poupavam os jesutas que tinham estabelecido misses onde hoje o Paran e, mais tarde, no que hoje o Rio Grande do Sul. Os inacianos fugiam para longe dos bandeirantes, mas no ficavam, com esse distanciamento, livres dos ataques, tendo at, por volta da quinta dcada do sculo XVII, con-seguido autorizao do papa e do rei da Espanha para se armarem em defesa.

    Outra crena desmontada pela recente historiogra-fia foi o papel do rio, sobretudo o Tiet, no processo de incurso ao serto. H razovel consenso sobre o ban-deirantismo paulista, ter sido um fenmeno terrestre, ao menos at o advento das mones (incio do sculo XVIII). O rio era guia, era rumo, mas seguia-se, por terra, o cami-nho s margens dos rios.

    Uma viso didtica estimulada pela ideia de ciclos divide o bandeirantismo em: bandeiras de apresamento; bandeiras de prospeco (que partiam de So Paulo e acabavam por encontrar ouro em Minas Gerais, na ltima dcada do sculo XVII, e na Bahia, em Gois e no Mato Gros-so nos anos iniciais do sculo seguinte); o sertanismo de contrato (para a represso armada de quilombos e de

    tribos hostis, da qual a guerra palmarina a mais famosa expresso); e as mones. Em muitos casos, um se sobre-punha ao outro e me parece difcil acreditar que um ban-deirante do final do sculo XVII, oprimido pelo didatismo contemporneo, deixasse passar uma pepita de ouro por ser fiel sua misso de bandeira de apresamento.

    Teve a Unio Ibrica muita importncia para o fen-meno do bandeirantismo paulista? Synesio Sampaio Goes Filho descarta essa hiptese. Segundo ele, os nicos pon-tos de contato frequentes entre portugueses e espanhis eram as misses, justamente foco de conflito. De resto, ningum sabia onde ficava o meridiano de Tordesilhas, e a fronteira entre os dois reinos, se que assim poderia ser chamada, era livre e fluida. Nunca foi fiscalizada, nem antes, nem durante, nem depois da unio das coroas. Servindo--se de um contrafatual, o autor de Navegantes, bandeiran-tes, diplomatas aventa, no entanto, que a escassez de mo de obra escrava, em decorrncia da invaso holandesa do Nordeste e de Angola, pode ter estimulado o bandeirantis-mo escravista ao longo do segundo quartel do sculo XVII, o que evidenciaria algum impacto da Unio Ibrica, ainda que indireto, no bandeirantismo. Outra controvrsia seria o carter despovoador do bandeirantismo genocida paulis-ta, que Gos Filho considera exagerado. Lista ele dezenas de vilas e cidades que foram fundadas pelos paulistas, o que faria deles, no mnimo, simultnea e dialeticamente povoadores e despovoadores.

  • 34Histria do Brasil

    Ainda que a Coroa portuguesa tenha estimulado o mito da ilha Brasil a crena de que as bacias setentrional amaznica e meridional do Prata se encontrariam em uma grande lagoa conformando geograficamente o destino manifesto portugus na Amrica , cada vez mais parece que o movimento bandeirante foi espontneo e motiva-do por motivos econmicos locais, e no para viabilizar a ocupao do territrio. Mesmo em casos famosos como o de Raposo Tavares, no parece ter a Coroa portuguesa real-mente organizado e provido a expedio, tampouco que seu fim tenha sido a ocupao do territrio. Documentos da poca comprovam a finalidade apresadora.

    A historiografia sobre os bandeirantes se inicia com o silncio. No h relatos contemporneos, muito menos representaes iconogrficas dos bandeirantes. Suas re-presentaes clssicas s foram recriadas sculos depois, fruto da imaginao idealista da ascenso paulista do scu-lo XX, que buscou, no bandeirantismo, legitimao histri-ca. So os ancestrais valentes das famlias quatrocentonas enriquecidas pelo caf. V-se isso nos monumentos e lo-gradouros paulistas: Rodovia Ferno Dias, Raposo Tavares, Palcio dos Bandeirantes, Rodovia dos Bandeirantes ou O monumento s bandeiras, de Brecheret, inaugurado em 1954, no quarto centenrio da cidade, pelo governador Lucas Garcez (1951-55), que bizarramente recebeu uma borduna do cacique Krumare, um botocudo.

    Esse tipo de idealizao muito posterior. Os primei-ros escritos a mencionarem os bandeirantes so bastante negativos e produzidos, claro, pelos inacianos espanhis. A chamada lenda negra enfatizava o aspecto violento, escravizante, genocida das bandeiras paulistas, que tam-bm faz parte do movimento. Por meio das pesquisas do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro (IHGB), so redes-cobertas e republicadas obras como as de Pedro Taques (1714-1777), que ainda no perodo colonial, mas j depois do apogeu do bandeirantismo, deixam extrair informaes vlidas sobre o movimento.

    Na dcada de 1920, com a organizao dos arquivos de So Paulo, a obra extraordinria e interessantssima de Alcntara Machado permite ver o bandeirante como um indivduo muito pobre, ignorante e truculento, cuja maior riqueza, alm dos escravos indgenas, os negros da terra, eram os tecidos e panos de vestidos femininos usados em dias de festa para ir igreja. No se movem para o interior, na epopeia sertanista, em busca de riquezas ou para alar-gar os domnios de El Rey, mas por necessidade ou como sugere, em sua passagem mais potica, o extraordinrio captulo do embaixador Goes Filho sobre o bandeiran-tismo por uma inexplicvel, quase mstica atrao pelo serto, que poderia vir da miscigenao com o sangue in-dgena e que, segundo o autor, ainda nos persegue musi-cal e literariamente nas homenagens que nossos maiores fizeram aos Sertes, ao Grande serto ou ao Luar do serto, e que ainda hoje lemos e ouvimos.

  • 35 O Perodo Colonial

    1.5 As guas da discrdia

    O elemento fluvial no embate luso-espanhol na Amrica.

    Semelhanas e diferenas entre as ocupaes meridional e setentrional.

    A fundao de Belm e a de Sacramento. As dificuldades no estabelecimento das duas colnias.

    As consequncias das metrpoles no Prata. Os agentes envolvidos.

    No estudo da expanso territorial, inescapvel evidenciar o papel que tiveram os grandes rios no Norte e no Sul na ocupao portuguesa na Amrica. As duas principais bacias hidrogrficas, o Prata ao Sul e a amaz-nica ao Norte, tiveram para os brasileiros dos sculos XVII e XVIII importncia anloga, mas creio que ainda maior do que a dos rios Mississippi-Missouri para franceses e anglo- -americanos na Amrica do Norte. No h a, claro, muita novidade. Sabemos recorrentes e poderosos os impactos que os grandes corpos correntes de gua doce tiveram na aventura humana, desde que o primeiro historiador decre-tou que O Egito uma ddiva do Nilo.

    No caso portugus, no entanto, por motivos distintos daqueles dos antigos egpcios, possvel parafrasear He-rdoto e dizer que o Mato Grosso portugus uma d-diva do Prata e que a regio amaznica brasileira uma

    ddiva do rio que a batiza. Esses rios serviam de curso, estrada molhada, via de entrada privilegiada para o serto, a qual a Coroa portuguesa no se esquivou de buscar con-trolar, com mais sucesso ao Norte e menos ao Sul. Essa talvez a principal diferena da presena portuguesa nos dois extremos do Brasil de hoje. A ocupao do Norte, com exceo das duas dcadas turbulentas aps a criao de Belm (1616), foi mais mansa e pacfica, na terminologia jurdica, do que a do entorno de Sacramento (1680), confli-tuosa em qualquer tempo desde ento.

    Diferencia-se tambm a, politicamente, esses eixos de expanso Norte e Sul daquele implementado pelos bandeirantes paulistas rumo ao serto, no centro do terri-trio portugus. A presena da Coroa, constante, vigilante e diuturna no Par e no Prata, era fluida, escassa e cons-tantemente desobedecida em So Vicente. A expanso bandeirante era muito mais privada que pblica, ainda que seus efeitos tenham sido aproveitados pelo estadis-ta paulista quando houve oportunidade para tanto. Uma rstica tentativa de sntese visual didtica est presente na imagem a seguir.

    O tringulo representaria o Brasil ps-Madri (1750), e as setas a aventura sertanista na Amaznia (A), no ban-deirantismo paulista (B) e no Prata (C), que permitiram a anulao da linha de Tordesilhas. Maior alcance ela tem de cima para baixo, acompanhando justamente a menor quantidade de resistncia espanhola. Percebe-se ainda

  • 36Histria do Brasil

    que as setas escuras representam significativa presena da Coroa portuguesa. J na seta transparente, a presena dos interesses metropolitanos quando da organizao dessas expedies era, perceptivelmente, muito mais limitada.

    poderosos que Portugal, as demais coroas europeias ja-mais deram grande prioridade para esta regio4. Tendo sido descobertos por navegantes a servio do rei da Espa-nha (h controvrsia se foi Amrico Vespcio ou Vicente Pinzn), a bacia amaznica e seu delta foram abandonados por quase um sculo, sendo, ao contrrio do que se deu com o Prata, ocupados afinal por portugueses.

    A origem de Belm como forte em defesa da bacia amaznica aps a ocupao francesa do Maranho esta-beleceu a proximidade entre as duas regies cujo nome original era Estado do Maranho. O nome mudaria para Gro-Par e Maranho em 1737, quando a capital deixou de ser So Lus e passou a ser Belm. O Estado existiu de 1622 a 1774, sendo extinto pelo Marqus de Pombal. A rea-lidade jurdica, junto com a criao de cidades, era o meio institucional de a Coroa portuguesa dar corpo a seu proje-to colonial de ocupao daquele territrio. Isso tambm se verificaria algumas dcadas depois no Prata.

    O rei de Portugal, muito provavelmente acreditan-do (erroneamente) estar a foz do Prata dentro do lado portugus delimitado por Tordesilhas, mandou, em 1678, Jorge Soares, governador no Rio de Janeiro, fundar povoa-o fortificada na margem oriental do rio. O mau tempo

    4 Tambm no o era para os espanhis que batizaram o Rio por conta das mulheres indgenas guerreiras com as quais Francisco Orellana se deparou ainda no sculo XVI.

    A

    B

    C

    Belm foi fundada em 1616, pouco depois da sa-da dos franceses liderados por La Touche do Maranho. A localizao estratgica do Forte do Prespio, origem da cidade, garantiria a ocupao futura do rio e de seus afluentes, apesar da resistncia de ingleses, franceses e ho-landeses afinal expulsos por volta de 1645. Apesar de mais

  • 37 O Perodo Colonial

    forou o retorno antecipado da expedio a Santos com um navio a menos. Isso fez que a honra da fundao da Co-lnia do Santssimo Sacramento coubesse a Manuel Lobo, que l se estabeleceu em janeiro de 1680, com cerca de 400 pessoas, quase em frente a Buenos Aires. inequvoca a primazia dos interesses da Coroa nessa empresa. Alm da esperana de compartilhar os lucros do comrcio de Buenos Aires, possvel que os portugueses acreditassem ainda que Sacramento seria apenas a ponta de lana para a conquista completa da regio no futuro. O que no se pe em dvida a necessidade de garantir a ocupao de am-plo territrio desocupado ao sul de So Paulo, que se cons-titua em perigoso vazio demogrfico aberto conquista espanhola na parte meridional da Amrica portuguesa. No tardou para os espanhis perceberem, atacarem e ocuparem, ainda em 1680, a Colnia. Seria devolvida aos portugueses no ano seguinte pelo Tratado Provisional de Lisboa, esperando um arbitramento papal sobre a questo, que nunca ocorreu.

    Seriam mais trs invases ao longo do perodo colonial: alm da primeira, j em 1680, os espanhis con-quistaram Sacramento em 1704, em 1762 e em 1776. Devolveram a Colnia nos dois primeiros casos: depois de ocup-la por doze anos at a devoluo do segundo Tra-tado de Utrecht (1715) e, logo, aps cerca de um ano de ocupao pelo Tratado de Paris em 1763. Houve tentativas frustradas de invaso, resistidas de modo bem-sucedido pelos

    defensores portugueses em 1735, cujo cerco durou quase dois anos. O que podemos depreender diante de tanta dis-crdia em disputa dessa que hoje considerada a capital histrica do Mercosul?

    Em primeiro lugar, que se tratava de foco prioritrio para as duas metrpoles. A Espanha tinha a inteno de controlar as duas margens do Prata, e Portugal no queria perder o acesso ao rio; Os espanhis insistiam que Sacra-mento e seu entorno eram seus por direito5. J Portugal ambicionava toda a margem oriental do Prata, ou seja, todo o Uruguai, e assim permaneceu considerando, exceto no perodo que se seguiu ao Tratado de Madri (1750-1761) quando Alexandre de Gusmo cedeu Sacramento aos Espanhis.

    Em segundo lugar, essa disputa estimulou a ocu-pao demogrfica do entorno, ento desabitado. Depois de frustrarem no incio da terceira dcada do sculo XVII a fortificao portuguesa do stio prximo onde fica hoje a capital uruguaia, os espanhis, valendo-se da boa visi-bilidade homenageada pelo nome que teria, fundam a ci-dade de Montevidu em 1726, que serviu de ncleo para a ocupao do entorno uruguaio, insulando Sacramen-to, que aos poucos se tornava enclave luso em territrio majoritariamente ocupado por espanhis. Alexandre de

    5 Por entorno os espanhis consideravam a distncia de um tiro de canho.

  • 38Histria do Brasil

    Gusmo, secretrio pessoal do rei D. Joo V desde 1730, percebe isso e estimula o estabelecimento de ncleos co-lonizadores na Lagoa dos Patos, o chamado Continente de So Pedro, base originria do que hoje o Estado do Rio Grande do Sul. A parte norte da lagoa seria ocupada nas dcadas seguintes, a partir de Viamo, com a chegada dos casais aorianos que dariam origem a Porto Alegre.

    Em terceiro lugar, cabe a pergunta: por que a Espa-nha sempre devolvia Sacramento depois de conquist-la trs vezes? necessrio nos voltarmos para a configura-o de poder sistmica na Europa. L encontraremos uma pennsula Ibrica dividida em uma Espanha sob influn-cia francesa desde 1712, com a coroao de um prncipe Bourbon, neto de Lus XIV, e Portugal sob forte influncia inglesa, consolidada comercialmente aps o Tratado de Methuen, de 1703. Nas guerras do sculo XVIII, no raro, a aliana liderada por Londres levou a melhor e Portugal se beneficiava disso, como no caso dos dois tratados de Utrecht em 1713, conseguiu que os franceses aceitassem estabelecer a fronteira no Oiapoque; e, em 1715, conseguiu a devoluo de Sacramento, ocupada desde 1704 ou no caso do Tratado de Paris (1763), que encerrava favoravel-mente para a Inglaterra e seus aliados (Portugal, Prssia) a Guerra dos Sete Anos. Novamente, voltava a Colnia do Sacramento soberania portuguesa, demonstrando, em muitos casos, a primazia do elemento sistmico em detri-mento das configuraes de poder favorveis Espanha

    no Prata. Na maioria das vezes, um padrinho forte vale mais que dez mil soldados.

    Por ltimo, convm lembrar que a semelhana da presena firme da Coroa na bacia amaznica e na bacia platina, coadjuvante na expanso bandeirante, mesmo no caso das mones cuiabanas, esconde uma diferena de agncia. Os agentes a servio da Coroa no Prata estavam diretamente a servio do rei de Portugal. Eram governa-dores, capites, soldados, colonos enviados da metrpole para povoar o Continente de So Pedro. No caso amazni-co, estavam a servio da Coroa os padres, sobretudo jesu-tas, mas igualmente outras ordens, que, a partir de 1657, fundaram a primeira de suas muitas redues indgenas. Assim como os jesutas espanhis eram um brao da Co-roa madrilena no Prata, no teria sido possvel a Portugal estender sua soberania sobre quase toda a regio seten-trional sem o servio dos homens de Deus.

    A base econmica dessa ocupao era a extrao das chamadas drogas do serto: baunilha, salsaparrilha, castanhas, ervas variadas especiarias americanas que substituam aquelas asiticas no mais submetidas ao monoplio portugus, e que garantira tantos lucros nas dcadas que se seguiram viagem de Vasco da Gama. semelhana do bandeirantismo meridional, o fator de produo mais importante era a mo de obra indgena, capturada por bandeiras fluviais que partiam de Belm e faziam do Amazonas e de seus subsidirios estrada de guerra,

  • 39 O Perodo Colonial

    abastecendo com nativos os colonos do Norte. No raro, a disputa acerba por mo de obra provocou conflitos entre leigos e padres, sendo os jesutas expulsos pelo governo revolucionrio dos Beckman, que tomou o poder no Mara-nho em 1684, anos depois de a Coroa proibir, sem muito sucesso, a escravizao dos ndios em 1680.

    Se verdade que interesses estatais e privados coe-xistiram nem sempre de modo harmnico na conquista portuguesa da Amaznia, tambm verdade que o pro-jeto, a concepo, as ordens, a organizao e a mobiliza-o dos recursos humanos e dos materiais necessrios empreitada tiveram, com frequncia e ao contrrio do bandeirantismo , sua origem em Lisboa. Isso evidencia que, como no Prata, a prioridade dada por Portugal re-gio amaznica foi o que garantiu sua soberania mesmo em disputa com naes mais poderosas.

    1.6 O Tratado de Madri de 1750

    As motivaes do Tratado de Madri. Alexandre de Gusmo.

    O contexto internacional na poca do tratado. As consequncias do tratado para a Colnia.

    Urgncias e definies. O legado de Madri.

    Negociado ao final do reinado de D. Joo V, o mais rico dos reis portugueses, o Tratado de Madri a culminn-cia diplomtica desse reinado. Apesar de ter tido parcos resultados em curto prazo, em longo prazo a obra de Ale-xandre de Gusmo , com exceo de pouco mais que o Acre, a base para o que hoje o territrio brasileiro.

    Mas quais foram seus antecedentes?Todos os tratados de fronteira colonial assinados

    pela Coroa portuguesa at 1750 eram tratados tpicos, isto , circunscritos regionalmente. Ou se disputava Sacramen-to (como nos dois tratados de Lisboa, de 1681 e de 1700), ou o Cabo Norte (como em Utrecht, 1713). A novidade de Alexandre de Gusmo era um tratado compreensivo que substitusse o caduco diploma das Tordesilhas e definisse para todo o sempre as fronteiras entre Portugal e Espanha na Amrica, o que por si s j era empresa ambiciosa.

    Algumas diretrizes nortearam a longa negocia-o entre as duas coroas. Em primeiro lugar, o princpio do uti possidetis, complementado pela ideia de fronteiras

  • 40Histria do Brasil

    naturais. O uti possidetis uma adaptao inteligente de Gusmo do direito romano para o direito internacional. No direito romano, tratava-se de simples frmula cautelar para evitar a continuao de conflito por territrio em litgio an-tes da deciso final do pretor ou juiz romano. Ficava ento o territrio, cautelarmente, com quem o estava ocupando. Sua natureza era temporria. A aplicao que Gusmo deu ao princpio princpio, alis, pouco aceito ou usado de modo generalizado no direito internacional, com exceo do Brasil bem mais ampla em escala temporal. No se tratava mais de, como est ocupando, seguir ocupando, como na traduo literal da expresso latina uti possidetis, ita possideatis, mas sim da livre traduo usada hoje no princpio do usucapio: Quem possui de fato deve possuir de direito. A traduo livre de Gusmo do latim no fez mal a Portugal.

    Outro aspecto negociador pertinente foi a princpio das fronteiras naturais, que permaneceu sendo basilar nas negociaes lindeiras at a Repblica. O negociador no deveria negligenciar os acidentes geogrficos visveis, como rios, montanhas etc., que favorecessem a demarca-o posterior assinatura. Caberia at o sacrifcio da regio efetivamente ocupada para facilitar a demarcao em ca-sos bvios de acidentes geogrficos que tornassem a fron-teira evidente.

    Claro est que esses preceitos no eram, primei-ra vista, favorveis Espanha. Como se explica ento o

    enorme sucesso de Gusmo? Teria a capacidade do ne-gociador santista superado em talentos o negociador es-panhol de modo to formidvel a ponto de este entregar aos portugueses quase tudo o que hoje o Brasil? Que vantagens teve Portugal na negociao que redundou no Tratado de Madri?

    Em primeiro lugar, o timing. Foi bem utilizado o pa-norama da balana de poder europeia e ibrica em mea-dos do sculo XVIII. A disputa sistmica que, no sculo anterior, se dava entre os Habsburgo austro-espanhis he-gemnicos e a Frana contra-hegemnica tinha cedido lugar a uma frgil estabilidade na qual a Inglaterra exercia a funo de contrabalanar a crescente hegemonia da Fran-a ps-rei Sol. O rei espanhol era um Bourbon, sob influn-cia de Paris (em 1761, seria assinado o Pacto de Famlia, que uniria formalmente os Bourbon de toda a Europa: Frana, Parma, Espanha e Npoles), e Portugal estava h mais de um sculo vinculado politicamente Coroa britnica. Com o tratado de Methuen ao vnculo poltico somou-se o eco-nmico.

    A Pennsula Ibrica era um tabuleiro privilegiado, ainda que perifrico, da balana de poder europeia, em que as grandes potncias Inglaterra e Frana podiam testar seu poder. J haviam feito isso, dcadas antes, na Guerra de Sucesso espanhola, encerrada com o Tratado de Utrecht em 1713. Mal comparando, os ibricos eram, para a disputa franco-britnica do sculo XVIII, o que a

  • 41 O Perodo Colonial

    Alemanha foi para a Guerra Fria. Se, para Espanha, estar subordinada Frana favorecia percepo geral de deca-dncia do pas (a Espanha tinha sido a grande potncia dos sculos anteriores), para Portugal, ao contrrio, a vin-culao Inglaterra era a uma tbua de salvao de sua autonomia. Monarca de um pas diminuto, de importncia limitada na geopoltica continental, D. Joo V precisava dos ingleses, que eram a garantia de independncia dos Bra-gana. Eram tambm, o que no trivial, um escudo naval para a manuteno da soberania colonial.

    J no havia grandes disputas entre portugueses e ingleses na Amrica (voltariam a existir com os brasileiros, na fronteira com a Guiana Inglesa no sculo XIX), e o apo-geu da minerao havia tornado abastado D. Joo V. El Rey era tido por monarca mais rico do mundo dada a ostenta-o sem precedentes de seu reinado. No Brasil, as Minas Gerais eram o tesouro que valia a pena defender. A aliana com a Inglaterra, ainda que trouxesse ou talvez justamente por trazer prejuzos comerciais a Portugal, servia a esse fim.

    A aliana com os britnicos contra a Frana na Guerra de Sucesso espanhola j demonstrara valer resultados in-ternacionais favorveis a Lisboa. Na negociao do primei-ro Utrecht (1713), o rei francs havia acatado o Oiapoque como fronteira provisria das duas coroas na Amaznia. Tal desfecho certamente no se teria logrado se lbion no estivesse ao lado de Portugal. de se supor bvio para os estadistas da poca e no apenas para Gusmo, que

    servira anos em Paris que o crescendo de tenses entre Inglaterra e Frana redundaria em nova guerra sistmica. Isso prenunciava os conflitos anglo-franceses, ocorridos na dcada de 1840 duas vezes: diretamente no subcontinen-te indiano e indiretamente na Guerra de Sucesso austra-ca. A sombra dessa guerra, que eclodiria definitivamente em 1756 a Guerra dos Sete Anos pairou sobre toda a negociao do Tratado de Madri.

    Estava claro que haveria diviso na Pennsula Ibrica, como de fato houve: Portugal, do lado ingls, e Espanha ao lado dos Bourbon franceses. Urgia, portanto, resolver, e logo, as indefinidas e fluidas fronteiras americanas, antes que pudessem ser envolvidas no conflito generalizado que se avizinhava. Isso era do interesse de ambos os pases, e o famoso artigo 21 do tratado de Madri, que consolidaria ju-ridicamente o isolamento colonial dos potenciais conflitos ibricos, foi sugesto de Jos Carvajal y Lancaster, o nego-ciador espanhol.

    No queria a Espanha um novo Utrecht. Naquela ocasio, foi Madri que pagou a conta do compromisso post- bellum anglo-francs de 1713. A Frana aceitara encerrar a guerra e manter o trono espanhol para os Bourbon, com a anuncia britnica, mas ao preo da cesso de Gibraltar, alm de significativos privilgios de carga para os ingleses em navios espanhis. Ficava claro que o suborno ingls po-deria novamente ser quitado em pesetas. A Gusmo no devia ser difcil supor igualmente que, em eventual derrota

  • 42Histria do Brasil

    inglesa, o pourboire parisiense que poderia evitar maiores perdas para Londres poderia ser a Amaznia, celebrada em vinho do Porto. Ajuda a corroborar esse temor genera-lizado lembrarmos que as negociaes foram entabuladas secretamente pe