10.12.01 especiais além da diferença
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Especiais além da diferença
Idiana Tomazelli
Conquistas, evoluções, sonhos, preconceitos. Todas essas palavras fazem
parte do mundo de alguém com deficiência, seja ela física ou mental. Também
integram a realidade dos familiares, que fundem seus sentimentos aos do filho,
irmão, primo dito “especial”. Neste cenário, um novo passo costuma ser a glória, e o
desrespeito fere, machuca. Dói na carne. Dói na alma de cada um.
“Lidar com doença é ruim”. O desabafo angustiado de Ciro José Jacques
Daubermann, 49 anos, não tem como motivo sua deficiência, um retardo mental
moderado desde que nasceu. O que o aflige é a saúde do tio – a quem costuma
chamar de pai –, que no final de semana anterior passara muito mal e fora internado
no hospital já em coma. “Pensei que eu podia fazer alguma coisa, mas acho que
dessa vez ele não escapa”.
O lamento é de alguém já calejado pelas várias perdas que sofreu ao longo da
vida (mãe, avó, tia-avó) e preocupa sua irmã, a nutricionista Marlowa Jacques
Ourique de Paula, de 38 anos. Ela insiste para que Ciro não abdique de seu
propósito. À beira da piscina terapêutica do Parque Esportivo da PUCRS, ele hesita
em participar da aula de natação e práticas aquáticas para pessoas com
necessidades especiais. “Enquanto tu não entrar, tu não vai ficar bem”, apela a irmã.
A professora de Educação Física Daniela Boccardi Goerl, coordenadora do projeto e
do Grupo de Estudos e Pesquisa em Intervenção Motora para Populações Especiais
(Gepimpe), pede ao aluno que deixe as preocupações de lado por um momento:
“Esse momento é teu”.
Ciro assente, mas, já dentro da água, não parece ter esquecido completamente
o problema do tio e se mantém sozinho. Ao menos integra as atividades e exercita o
corpo com a ajuda dos estagiários, alunos da disciplina de Estágio em Atividade
Motora Adaptada do curso de Educação Física da universidade. Essa é uma das
raras vezes desde sua entrada no programa – no início de 2009 – em que se viu
desânimo e pesar apontados em seu rosto. Ele é um fã declarado das aulas. “Foi a
melhor coisa que aconteceu”, define Marlowa, destacando a melhora física e no
convívio social percebida no irmão em comparação a antes.
Assim como para Ciro, o projeto da Faculdade de Educação Física e Ciências
do Desporto (FEFID) proporciona a dezenas de alunos a chance de
desenvolvimento motor e integração com outras pessoas com deficiência. Além da
natação, aulas de dança e iniciação esportiva completam o quadro de atividades,
que ocorrem às terças e quintas, das 16h45 às 18h30 – duas turmas com 45
minutos cada. As inscrições são gratuitas, mas há lista de espera. Até o momento,
são 12 pessoas que deixaram os dados para contato e uma ficha do aluno e estão
no aguardo de vaga – embora o número pudesse ser maior, caso não houvesse
aqueles que desistem já na primeira tentativa por desejarem matricular-se de
imediato.
Enquanto seus filhos lutam por cada novo movimento, cada nova conquista,
pais e, na maioria, mães procuram transformar o tempo ocioso em lazer. Nas rodas
de conversa, o frenesi das agulhas de tricô e o cheiro de café tomam conta do
ambiente. Revistas com temáticas para donas de casa e sacos de pipoca doce
costumam passar de mão em mão. “É o grupo de convivência deles, também”, diz
Daniela. O que não falta são mães orgulhosas, corujas e amorosas, de câmara em
punho prontas para registrar todas as braçadas, os passos de dança ou os
arremessos que vão contra a tabela antes de entrar na cesta e se converter em
ponto.
Na dança, os passos de quem tem gosto por superar limites
De tênis ou com pés descalços, os nove alunos se alongam ao som de Abalou,
de Ivete Sangalo – para espantar o clima negro e chuvoso da quinta-feira. É o tira-
gosto para a penúltima aula que precede a apresentação final, na festa de
encerramento que acontece na quinta-feira, 02 de dezembro. A coreografia ensaiada
exaustivamente pelas professoras, alunas da Educação Física, é cheia de trejeitos e
marra. Pudera: o ritmo escolhido é o hip-hop, representado na figura do jovem
cantor estadunidense Chris Brown e sua música Run It.
Ao toque do play, o grupo segue em frente de um até oito para então fazer a
pose característica – braços cruzados, queixo erguido e dedos em sinal de “V”. No
meio da dança, o menino Henrique, que vive em uma das unidades do Núcleo de
Abrigos Residenciais (NARs), localizada no bairro Belém Novo, lança o corpo
adiante e mostra sua criatividade em estrelinhas, gingas e atitude. Tanta
empolgação e gosto pela coreografia o fazem atirar o boné no chão e recriar passos
diferentes a cada sessão do ensaio. Detentor de uma deficiência intelectual leve, ele
supera aos poucos suas limitações. Nos desenhos presenteados por ele, a
professora Ivani Labres, paulista de 33 anos e estudante do 5º semestre de
Educação Física, mostra os traços de um carro completo: quatro rodas, duas portas,
janelas, capô e a estrada. “Antes ele não sabia como desenhar isso”, conta.
Outros alunos do mesmo abrigo fazem parte do projeto de dança. Uma delas,
Jéssica, sempre estampa um sorriso no rosto e é um dos motivos de orgulho de
Ivani. “Ela era toda travada. Agora, olha a alegria dela... É uma graça”, comenta. A
professora exibe no rosto a satisfação de poder ajudá-los e receber um retorno tão
gratificante. A dor provocada pela fratura no braço, ainda não curada
completamente, não é capaz de demovê-la de seu desejo de permanecer na aula.
Para Gabriela Sanders, 15 anos, o gosto pela dança tem muito a ver com outra
paixão de sua vida: a música. A artesã Heralda Sanders, 39 anos, garante que a
filha escuta todos os gêneros, sem exceção. “Até ópera”, faz questão de ressaltar.
Ela, por outro lado, prefere música eletrônica. “Acho que a Gabriela me
acompanharia tranquilo numa rave”, aposta. Moradoras do bairro Santa Izabel, em
Viamão, elas cumprem a longa jornada de ônibus há quase dois anos. Tudo para
que Heralda possa assistir à libertação da filha em meio ao salão. Segundo a mãe, a
atividade a torna mais sociável, sem falar no prazer de dançar.
Desde o momento em que descobriu os primeiros problemas de Gabriela –
gastrosquise (má-formação da parede abdominal) e epilepsia –, foi um susto atrás
do outro. “Já levei choque quando nasceu, então estava no embalo”, diz Heralda,
esboçando um olhar de conformidade e tristeza, apesar do tom leve da voz. Gabriela
também tem deficiência mental moderada, conhecida tecnicamente como F71 (“As
mães e quem é do meio já sabem”, esclarece), e autismo, cujos traços começaram a
ser percebidos quando a menina tinha um ano e meio. O período foi de superação e
aprendizado, respaldado por acompanhamento psicológico. “A mãe precisa desse
apoio, senão ela pira”.
A soma dos diagnósticos pesou para que o pai de Gabriela abandonasse a ela
e à mãe dois meses depois da confirmação de autismo. Ele nunca mais as procurou.
No entanto, a menina de cabelos castanho-escuro e olhos negros tem o suporte
incondicional do padrasto, o vigilante Rogério Franco, 37 anos.
Aluna do segundo horário, Pamela Corrêa Ribeiro, 21 anos, chega falante
acompanhada da mãe, a dona de casa Rosimeri. “Nossa, ela nunca tá assim”,
surpreende-se Camila Carlet, 23 anos, também professora do projeto e aluna da
universidade. Pamela e o colega Carlos formam uma turma de cadeirantes. Os dois,
sempre sorridentes, tomam o aprendizado a sério. O simples movimento de abanar
o braço é algo a ser ensinado e acaba constituindo uma tarefa árdua.
Quando nasceu, Pamela atingiu o nível zero na Escala de Apgar, que vai de
zero a dez e avalia os sinais cardíacos, respiratórios, tônus muscular, reflexos e cor
da pele do bebê nos primeiros minutos de vida. Era o indicativo de uma asfixia grave
e o prenúncio de uma lesão cerebral que comprometeu seriamente sua função
motora. Depois de 18 dias hospitalizada, recebeu alta e só então Rosimeri pôde
voltar para casa com sua filha aninhada nos braços. Antes, o médico a advertiu que
Pamela deveria fazer fisioterapia. “Que remédio é esse? Onde é que compra?”,
perguntou na época, lembrança que lhe provoca uma risada incontida.
Participante desde agosto do projeto, Pamela já apresenta progressos. Nas
aulas, além da música e da dança, ela aprende a empurrar a cadeira sozinha e a
“massagear” o braço com uma bolinha de borracha – movimentos talvez prosaicos
para a automaticidade cotidiana, mas que emocionam aqueles que assistem à cena.
“Quase chorei quando vi isso pela primeira vez”, murmura Ivani, observando a
aproximação de Pamela impulsionada pelas próprias mãos.
A aluna faz questão de exibir suas conquistas para a professora, a quem
sempre busca com os olhos e parece ser sua preferida. Em casa, ela já aprendeu a
secar a parte de dentro das panelas. “Ela gosta de se sentir útil”, diz a mãe, que
admite, sob o olhar travesso da filha, que ela só enxuga as louças “quando tá afim”.
A psicóloga Yáskara Palma defende o estímulo dessas atividades, desde que
dentro das possibilidades. “A pessoa com deficiência não deve ser considerada com
alguém sem validade”, explica. Os efeitos, segundo ela, são extremamente
positivos. “Ela sente que está contribuindo para algo, sente-se amada, responsável,
importante. Todas essas questões são fundamentais para o bom desenvolvimento
psíquico”.
Tais feitos compensam a jornada de uma incansável Rosimeri, que aos 44
anos leva em torno de 50 minutos para ir da Vila São José até o Parque Esportivo.
Ela cumpre o trajeto a pé e admite que alguns acessos são complicados em função
da cadeira de rodas. “Tem que ter prática”, descontrai. Na ida para a aula, quando o
caminho é em declive, garante que não há tanta dificuldade. “O problema é subir”.
Entretanto, a “boba e chorona” Rosimeri fica feliz com a alegria da filha e tenta
superar os percalços com boa autoestima. “Como mãe, sou realizada”.
Na quadra, a evolução representada em cada cesta marcada
“Ô Ielma, a Kelly amanhã tem que ir pra PUC”. Ao ouvir a frase-chave, a dona
de casa Ielma Mattos Rodrigues, de 62 anos, já sabe o que a filha Kelly quer dizer.
No dia seguinte, as duas irão do Parque dos Maias, na zona norte da Capital, até o
Parque Esportivo da PUCRS para a aula de iniciação esportiva para pessoas com
necessidades especiais. A fala é assim mesmo, sem “eu” nem “mãe”. “Só me chama
de mãe quanto tem algum outro interesse”, garante Ielma, com uma pontinha de
desconfiança.
Vestindo uma camiseta verde com a personagem sul-coreana Pucca
estampada, Kelly, no auge de seus 21 anos, corre, joga a bola, faz uma cesta atrás
da outra e se mostra bastante participativa. As limitações trazidas pela Síndrome de
Down vem sendo trabalhadas desde o início do ano, quando a menina entrou no
projeto. O progresso é visível, tanto na questão motora quanto social. “Não vou sair
daqui. Só mesmo se acabar”, garante Ielma.
“Ó, ela fez uma cesta!”
Kelly nasceu quando a mãe já tinha 41 anos. A primogênita Fabiana estava
com 12 na época. O parto foi de alto risco, e os médicos apontaram a idade como
um fator determinante para que a menina carregasse nos genes o distúrbio. Só com
a criança já nos braços é que Ielma viu que algo estava errado, que a filha parecia
ter uma “cabeça de porco roxa”, mas nunca imaginava se tratar de Down. Ela admite
que sua primeira reação foi entregá-la de volta ao médico. “Depois olhei de novo e
não larguei mais”, sorri. Com os olhos estreitos e o cenho franzido, ela relembra que
só depois de seis dias no hospital que ela soube da deficiência.
“Olha lá, fez outra cesta!”
Além das complicações no parto, Kelly teve de ser submetida a uma cirurgia
aos quatro anos, devido a problemas no coração. Uma veia invertida e o diagnóstico
de sopro cardíaco lhe deixaram 1% de chance de sobrevivência, ao qual ela se
apegou até o fim. “A Kelly tá aí por causa do amor”, festeja Ielma.
“Outra cesta!”
Apesar de a filha mais nova ter tido um início de vida conturbado, a dona de
casa tenta minimizar os problemas. “Eu não sou aquela mãe sofrida”, despista. Sua
convivência com Kelly é normal, como a de qualquer mãe e filha. Adoram dormir,
conversam sobre o que pretendem fazer e vão juntas à Igreja. Ielma ainda leva Kelly
todos os dias à Escola Estadual Especial Cristo Redentor, onde ela está aprendendo
a decifrar as letras e formar palavras.
“Outra cesta!”
Assim como outros colegas, Kelly adora música e, segundo a mãe, dança
muito bem. Tem preferência por música gaúcha, “chula, bater o pé”. Como
instrumentista, está bem encaminhada: toca violão, cavaquinho, teclado e flauta.
Pode também ser uma bela degustadora, já que é boa de garfo. “Come de tudo”,
entrega Ielma. Ao fundo, ouve-se uma gargalhada gostosa. Kelly fazia sua última
cesta da tarde. Ielma rende-se à felicidade da filha: “Viu por que ela gosta?”
Os olhos azuis de Márcia Wallmann, 33 anos, miram com curiosidade a
estranha que chega à quadra do 4º andar do Parque Esportivo. Abana
freneticamente, mas não há tempo para retribuição, já que ela logo se ocupa em
tentar fazer outra cesta. Sentada no banco de madeira do lado de fora, a
aposentada Zilma Castro Wallmann, 62 anos, aprecia a dedicação da filha, que pelo
primeiro semestre participa da iniciação esportiva – antes, já havia feito parte do
grupo de dança.
Márcia teve paralisia cerebral devido à asfixia sofrida na hora do parto. Tanto a
parte psicológica quanto a motora ficaram parcialmente comprometidas. Contudo, o
diagnóstico só foi feito no segundo ano de vida, após uma crise convulsiva. Na
época, ela e o marido, Luiz Antônio Wallmann, pensaram que a deficiência fosse
hereditária e decidiram não ter mais filhos. Quando descobriram que não tinha a ver
com genética, prepararam-se para receber Patrícia Castro, hoje com 30 anos. A
irmã impulsionou o crescimento de Márcia, que se sentia desafiada (de forma
positiva) pelas conquistas da outra.
Além do incentivo familiar, as atividades vêm proporcionando uma sensível
melhora no estado físico e psicológico de Márcia. Ultimamente ela gosta de mostrar
sua mais nova descoberta: pular. “Como eu nunca desisti, ela também superou
muita coisa”, avalia a mãe. “Cada conquista tem um gostinho especial”. As aulas
também cumprem o papel disciplinador e de inclusão social. “Antes, a Márcia ficava
naquele mundinho dela”, conta Zilma. Agora, no dia em que sabe que tem projeto,
ela arruma a sacola com seus pertences já pela manhã. De certo, ao som dos
artistas favoritos: Sandy e Júnior, Ivete Sangalo, Eliana e especialmente Daniel – de
quem ela é fã incondicional.
No fim da aula, Márcia dirige-se apressada ao encontro da mãe. “Carinha do
coração”, comemora com voz infantil e afetuosa. Provocada pelas outras mães, ela
defende seu professor de natação, por quem ela tem um carinho especial. “Ele não
é coisa feia. É lindão!” Depois de argumentar, ela finalmente encontra ali de pertinho
a repórter – a estranha que chamara sua atenção. O abraço dura poucos segundos,
mas é apertado e aconchegante. Ao despedir-se, ouve a ordem da mãe:
- Dá tchau para a amiga.
- Tchau, amiga!
Na piscina, as braçadas em direção à independência
Entre boias em forma de espaguete colorido, argolas de borracha, toucas,
sapatilhas e óculos de nadador, lá estão braços e pernas desbravando o mundo
aquático, debatendo-se e desafiando a si mesmos em busca do grande objetivo –
tocar a borda oposta da piscina.
Ivanete Oliveira, dona de casa de 43 anos, aguarda a chegada da filha,
Nathálya Werlang, que se encontrava na aula de dança. Quando surge na cadeira
de rodas, a mãe abre um largo sorriso e salta para ajudá-la na troca de roupa.
Enquanto isso, ouve relatos minuciosos de todos os movimentos realizados na
coreografia. No meio do burburinho de mães carregadas de mochilas e roupas para
os filhos, Nathálya ainda recebe o abraço e a saudação animada de Márcia
Wallmann, colega de natação: “Oi, amiguinha!”.
Para entrar na piscina, a menina de 16 anos é ajudada pelos professores, que
a tomam no colo e, com movimentos cautelosos, transportam e a colocam em
contato com a água morna. A deficiência física decorre de uma paralisia cerebral
ocorrida após uma sucessão de problemas de saúde e que também deixou sequelas
na parte mental.
Aos cinco meses, Nathálya teve meningite. Permaneceu internada durante
quatro meses e meio e acabou contraindo uma infecção hospitalar que atingiu os
sistema ventricular do cérebro – cuja função é produzir e permitir a circulação do
líquido cefalorraquidiano (líquor), que sustenta, limpa e nutre o cérebro e a medula
espinhal, além de auxiliar na difusão de células imunológicas. Com mais de um ano,
uma nova descoberta: Nathálya tinha Síndrome de West.
“Ela nunca vai ser um médico como eu, ou uma advogada... Não vai
conseguir”, teria dito o médico que tratou a filha de Ivanete. A síndrome, que
provoca crises muito graves de epilepsia, não tem cura, mas pode ser controlada.
Antes do diagnóstico, a criança costumava se assustar de repente. “No início, a
gente achava que era uma porta que batia, alguém que tivesse falado mais alto”,
conta a mãe. Só com um episódio mais agudo e com nova internação é que foi
detectado o problema.
Passado o período crítico, Nathálya já mostra sinais de que está progredindo.
Participa dos exercícios na piscina, é mais falante e está aprendendo a ler. “Acho
que ele (o médico) foi infeliz no que ele disse”, lamenta Ivanete.
Há quase cinco anos inscrita no projeto, a filha agora cobra frequência maior
nas aulas. “Eu quero ir mais vezes”, pede. Quem a viu no início, tímida e calada,
talvez não imagine o sorriso estampado em seu rosto e o abano insistente para a
mãe, que não faz o tipo cobrona. Alegra-se com as conquistas que a filha puder lhe
proporcionar. “É um amor incondicional”, tenta traduzir em palavras. Tanto é que
ficou feliz mesmo quando Nathálya lhe fez uma declaração às avessas, em meio à
brabeza de adolescência: “Eu te dodeio”.
Na deficiência do tio, a inspiração para a carreira profissional
Aos 18 anos, quando ingressou no curso de Licenciatura em Educação Física
na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Daniela Boccardi Goerl já
sabia exatamente o que queria: trabalhar com pessoas com algum tipo de
necessidade especial. O interesse tem a ver com um caso na família, do tio que
possui deficiência intelectual profunda e “é completamente dependente, vegetativo”.
“Eu nasci e cresci nesse ambiente, então foi uma trajetória natural”, conclui a
coordenadora do projeto. Daniela também é coordenadora do Grupo de Estudos e
Pesquisa em Intervenção Motora para Populações Especiais (Gepimpe), que
desenvolve análises na área e aposta na formação de novos profissionais.
Logo que começou a lecionar na PUCRS, após a titulação de Mestrado em
Ciências do Movimento Humano, ela lançou a proposta de uma turma de atividade
aquática para pessoas com deficiência, juntamente com outra professora da
universidade. No primeiro semestre de 2004, o Parque Esportivo abriu as inscrições
e formou o primeiro grupo de alunos. A expansão veio ao longo dos anos, grande
parte pela gratuidade do programa, mas também pelas indicações de pais cujos
filhos já são participantes.
Apesar do sucesso dos projetos e das outras duas modalidades – dança e
iniciação esportiva – e também da lista de espera, atualmente é inviável aumentar o
número de vagas. Por serem atividades ministradas por estagiários, alunos do curso
de Educação Física, a professora argumenta que não há estudantes em número
suficiente para expandir o limite de matriculados do projeto. Daniela reconhece que
há turmas com um grupo reduzido de inscritos, mas dispara em seguida: “Eu primo
muito pela qualidade, não pela quantidade”.
Nas aulas, a coordenadora circula entre as três atividades constantemente.
Assim que aparece na quadra, no salão ou na piscina, pais e alunos se voltam a ela,
seja para conversar sobre algum problema ou simplesmente para soltar um efusivo
“Oi, professora Dani!”. Ela destaca a confiança dos pais como uma condição
essencial para que o trabalho possa ser desenvolvido com sucesso. Contudo, além
da confiança, há uma relação muito próxima de afetividade – afinal, muitos ali
convivem semanalmente há mais de dois anos, alguns desde o início do projeto.
A cumplicidade e o contato permanente com a família contribuem nos períodos
de férias – no inverno, um mês; no verão, três. É nessa época que os alunos
costumam regredir em suas conquistas, justamente por não seguirem praticando o
que aprenderam em aula. Se, ao contrário, os pais incentivam o filho a não
abandonar os exercícios que já vinha realizando com os professores, o retorno e a
readaptação são mais fáceis. “A família é o que dá a continuidade”, garante Daniela.
A despeito da importância do ambiente familiar para o desenvolvimento da
pessoa com deficiência, há pais que não entendem as etapas superadas como algo
significativo. “Alguns vibram com a mínima conquista dos filhos. Mas, para outros, é
uma ação pequena, muito pequena. Então, eles não visualizam isso como uma
grande conquista”, lamenta Daniela. A psicóloga Yáskara Palma aponta como
essencial que os pais percebam as necessidades do filho desde o momento do
nascimento e lhe proporcionem o acompanhamento adequado. “Existe uma grande
diferença em uma criança deficiente que é estimulada e outra que não é”, diz.
A professora, ao contrário das famílias menos engajadas, se permite
emocionar-se com cada novo movimento. Conta com um sorriso nos lábios sobre o
caso de um aluno que não conseguia fechar a mão e agarrar uma bolinha de
borracha. Um dia, o menino finalmente conseguiu segurá-la e apertá-la contra os
dedos. “Ele me olhou com os olhos cheios de lágrimas, e eu chorei também”,
relembra. Ver os alunos avançando passo a passo, para ela, é uma grande
satisfação. “É o meu grande sonho!”, confidencia.
Embora possa não parecer, o aprendizado das pessoas com necessidades
especiais tem uma relevância muito grande para as práticas cotidianas. Saltar com
os dois pés pode ser algo custoso de se aprender, mas acaba sendo útil em um dia
de chuva, por exemplo, quando houver uma poça d’água em frente e for necessário
pular para não molhar os pés. Segundo Daniela, fazer com que o aluno assimile o
conhecimento adquirido ao longo das práticas e empregue isso em seu dia-a-dia é
um dos principais objetivos do projeto.
Na faculdade, a oportunidade de uma experiência diferenciada
Se por um lado a professora Daniela Boccardi Goerl já sabia, desde o início,
que queria voltar seu trabalho para pessoas com necessidades especiais, ela
reconhece que tal determinação não é tão comum. Muito menos antes de ingressar
na universidade, “A maioria desperta esse interesse na faculdade, quando eles têm
contato com essa realidade”, supõe.
Sempre com um sorriso nos lábios e o brilho nos olhos, a paulista Ivani Labres,
professora da turma de dança, não esconde a satisfação de fazer parte do
programa. Da mesma maneira que ensina aos alunos, ela também aprende. Entrou
por curiosidade e pela prática e agora se rende a momentos emocionantes. “Tem
uns que fazem a gente chorar vendo o desenvolvimento deles”, comenta. O
sentimento é recíproco: nota-se que Ivani é o alvo da busca de muitos pares de
olhos na sala, cuja expectativa é mostrar um novo passo, exibir um largo sorriso ou
simplesmente transmitir um agradecimento silencioso.
Eduardo Neves está no 7º semestre, fase final do curso de Educação Física.
Com as recentes mudanças de currículo, seu programa previa estágio com a
terceira idade. Como queria ter uma experiência diferenciada, solicitou à
coordenação permissão para se inscrever no grupo de iniciação esportiva do estágio
em atividade motora adaptada. Foi atendido. “É importante conhecer mais a
realidade de quem tem certas deficiências”, explica.
Aos 32 anos, ele acredita que a prática e o conhecimento adquiridos valerão
para futuros trabalhos. O contato com os alunos que possuem deficiência já lhe diz
que o tratamento e a evolução dependem, em grande parte, do círculo social e de
como eles são inseridos nas atividades cotidianas. “A diferença está relacionada à
vivência”, reflete.
O companheiro de turma Carlos Torres tem opinião similar à de Neves. As
atividades desenvolvidas ao longo do semestre são muito importantes nas questões
afetivas e comportamentais. “Os pais depois nos contam que seus filhos chegam
diferente em casa”, diz.
Também professor da iniciação esportiva, Geovane Cruz, aluno do 5º semestre
do bacharelado em Educação Física, cruza os braços e dispara, com ênfase: “Tô
gostando muito”. Pensando no que essa experiência pode lhe proporcionar no
futuro, ele acredita que estará preparado para lidar, auxiliar e orientar pessoas com
deficiência em atividades físicas, caso haja oportunidade. “Não vai ser uma
surpresa”, presume.
Na família, o porto-seguro dos filhos
Embora sejam os filhos considerados “especiais”, por sua condição que
requere certos cuidados específicos, a família também precisa de apoio. A psicóloga
Yáskara Palma explica que os pais se sentem culpados pela deficiência dos filhos e,
por isso, eternamente responsáveis por eles. “Isso gera um grande sofrimento”,
reflete. A historiadora e mestranda em Ciências Sociais pela PUCRS Maria
Aparecida Gomes de Almeida opina que esse sentimento é comum, já que há uma
idealização de “filho perfeito”, que se acaba na constatação que a criança possui
uma deficiência.
O papel da psicologia, segundo Yáskara, é tentar reverter a situação.
Geralmente, são organizados grupos de conversa com familiares que acabam se
identificando pelos problemas vividos por cada um. Isso permite que as angústias,
os medos e as ansiedades sejam minimizados.
Durante dois anos, a psicóloga trabalhou na unidade da Associação de Pais e
Amigos dos Excepcionais (APAE) em Feliz, na região do Vale do Caí, Rio Grande do
Sul. A experiência lhe proporcionou muito mais do que conhecimento científico. “Lá
eu pude perceber como o engajamento da família no tratamento da pessoa com
deficiência traz benefícios e auxílio”.
Maria Aparecida também acredita que os pais precisam de ajuda psicológica,
assim como de momentos de lazer. “A atenção volta-se para o deficiente, mas não
deve ser assim”, questiona. O “cuidador”, como ela titula, precisa estar bem consigo
mesmo para poder passar isso ao filho. Por isso, muitas vezes o trabalho do
psicólogo acaba se estendendo para questões pessoais que não têm a ver com as
necessidades especiais do filho. “O objetivo é fortalecê-los para que se sintam
encorajados a continuar dando o apoio necessário a seus filhos”, entende Yáskara.
Manter-se firme apesar das adversidades é um dos pontos mais importantes,
ainda que difícil. “Se filho ‘dito normal’ não se cria sozinha, deficiente muito menos”,
alerta a historiadora. A chegada de uma criança com necessidades especiais
provoca obrigatoriamente mudanças no relacionamento da família. “Não é mais a
mesma rotina, a mesma organização”, avalia.
Os estudos referentes a pessoas com deficiência, seja física ou mental, e suas
famílias no campo da sociologia não são muito comuns – o tema costuma ser
abordado com mais frequência por pesquisadores da medicina, psicologia ou
enfermagem. No Brasil, os primeiros artigos começaram a surgir na década de 70,
algo muito recente se comparado a outros assuntos já com uma bibliografia mais
vasta e variada.
Para ajudar a preencher essa lacuna, Maria Aparecida está desenvolvendo sua
dissertação de mestrado com base no tema “’Filhos Especiais’: cuidados e relações
parentais na perspectiva de gênero” (título provisório). A partir da diferenciação de
gênero, ela busca entender e analisar como é a reação e os cuidados quando chega
à família uma pessoa com deficiência.
A ideia surgiu durante as tardes em que ficava à espera de seu filho na aula de
judô na Associação Cristã de Moços (ACM), no centro de Porto Alegre. No mesmo
horário, havia as aulas do Projeto Borboleta, promovido pela instituição com foco em
crianças e adolescentes com necessidades educativas especiais. No tempo livre,
pôde observar que na maioria dos casos eram as mães que acompanhavam os
pequenos à aula. Bastou uma simples pergunta para lançar-se a faísca do estudo.
“Por quê?”.
No projeto da PUCRS, também é possível notar a presença massiva das mães,
em contraponto ao tímido número de pais que comparecem. O mesmo quadro era
perceptível na APAE de Feliz, segundo Yáskara. Para ela, isso ocorre
principalmente por que a sociedade mantém um sistema patriarcal. “A mulher ainda
possui o papel de ser a cuidadora dos filhos e filhas”, reflete.
Na sociedade, o preconceito ainda velado
Um dos principais problemas enfrentados por pessoas com deficiência é o
preconceito social. Embora os vários projetos existentes contribuam para minimizar
esse sentimento e conscientizar, e apesar de a psicologia voltar-se justamente para
a temática social (e não tanto na área clínica, como se poderia pensar), ainda é
comum deparar-se com situações de pré-julgamento.
“A deficiência é justamente a percepção da sociedade sobre a deficiência”,
dispara a historiadora Maria Aparecida Gomes de Almeida. Em suas observações de
campo, ela pôde notar que quem manifesta a deficiência no corpo tem muito menos
chances de inclusão social do que quem não aparenta. O efeito desse tipo de
preconceito, contudo, não recai somente sobre a pessoa com necessidades
especiais. O cuidador também sofre. Uma mãe relatou um episódio a Maria
Aparecida de quando foi ao cinema com o filho e as pessoas começaram a olhar
diferente. “Dói muito”, desabafou à pesquisadora.
As opiniões preconcebidas a respeito de pessoas com deficiência tomam como
ponto de referência o conceito atual do que seria a normalidade. Contudo, não se
leva em conta que essa definição é muito relativa e que, em outras épocas, já teve
outros parâmetros e significados. “O que pode ser um comportamento muito normal
na nossa sociedade, em outra pode ser algo completamente estranho, que vai
causar incômodo”, contesta Maria Aparecida.
De maneira bastante objetiva, a historiadora propõe uma reflexão: “O que é
normal? A normalidade existe ou é construída?”. Ela reconhece que não tem a
resposta, mas cruzar os braços ante o desprezo sofrido por algumas pessoas com
deficiência tampouco é a saída. Nesse caso, aceitação, respeito e compreensão
seriam os termos ideais para guiar a conduta social. Yáskara, porém, lamenta que
isso não tenha se concretizado até agora. “Mesmo estando no século XXI, ainda
vivemos em uma sociedade muito preconceituosa, onde o diferente não é tolerado,
seja uma diferença física, mental ou sexual”.