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DENNIS DONATO PIASECKI O conceito de Consciência infeliz na Fenomenologia do espírito de Hegel UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CENTRO OESTE UNICENTRO Guarapuava - 2006

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DENNIS DONATO PIASECKI

O conceito de Consciência infeliz na Fenomenologia do espírito

de Hegel

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CENTRO OESTE

UNICENTRO

Guarapuava - 2006

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DENNIS DONATO PIASECKI

O conceito de Consciência infeliz na Fenomenologia do espírito

de Hegel

Trabalho de conclusão de curso (TCC) apresentado como pré-requisito para aprovação no curso de Filosofia, da Universidade Estadual do Centro Oeste – UNICENTRO, tendo como orientador o Prof.º Ms. Manuel Moreira da Silva.

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CENTRO OESTE

UNICENTRO

Guarapuava - 2006

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DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho a quatro pessoas.

A Gênese: meu pai, Ivo Donato Piasecki; e a minha mãe, Vera Lúcia

Piasecki.

Ao fruto: eu, Dennis Donato Piasecki.

Á semente plantada, onde a esperança está efetivada na realidade: meu filho,

Paulo Leonardo Rodrigues Piasecki.

VOS AMO...

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AGRADECIMENTOS

Agradeço aos meus pais por tudo que me proporcionaram na vida.

Momentos, palavras, a própria vida...

A eles minha eterna gratidão.

Agradeço também ao Professor Manuel Moreira da Silva, meu orientador

nesta pesquisa. Obrigado pela paciência e pelo conhecimento transmitido nestes

anos de caminhada juntos. Cresci muito filosoficamente devido a este mineiro.

Além de tudo, um amigo.

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EPÍGRAFE

É indiferente a esse rio da vida que

espécie de moinhos ela faz girar.

HEGEL

A miséria da condição humana é tal

que a dor é o seu sentimento mais

vivo.

D’ALEMBERT

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SUMÁRIO

RESUMO .......................................................................................................... pág. 6

INTRODUÇÃO ................................................................................................ pág. 7

1. A EMERGÊNCIA DA CONSCIÊNCIA INFELIZ .................................. pág. 13

1.1 Discussão histórico-sistemática ............................................................... pág. 13

1.2 A Consciência infeliz nos escritos do jovem

Hegel, segundo Jean Hyppolite ............................................................... pág. 15

1.3 A Consciência infeliz tal como se apresenta como resultado do

processo epistemológico- dialético da Consciência-de-si ..................... pág. 19

2. A DINÂMICA DA CONSCIÊNCIA INFELIZ .......................................... pág. 28

2.1 Consciência mutável face à consciência Imutável ................................. pág. 30

2.2 O Imutável figurado ................................................................................. pág. 33

2.3 Unificação da realidade com a Consciência-de-si .................................. pág. 36

3. A CONSCIÊNCIA INFELIZ COMO ACESSO À RAZÃO ...................... pág. 42

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................ pág. 48

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................. pág. 50

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RESUMO

Trata-se de uma investigação do conceito de Consciência infeliz tal como

desenvolvido por Hegel no item B do capítulo IV de sua Fenomenologia do

espírito. Tal Consciência infeliz, enquanto se apresenta a si mesma como a

consciência da contradição de sua essência, é na verdade a consciência da dor que

permeia a consciência em sua totalidade. Para Hegel, isso ocorre em função da

Consciência-de-si compreender-se a si mesma de um lado como consciência

simples ou Imutável e de outro, ser de fato para si exclusivamente consciência

mutável. Todavia, essa contradição da essência da Consciência-de-si, justamente

porque se apresenta como dor infinita, constitui-se como uma tentativa de ir além da

cisão entre o seu elemento Imutável ou essencial e o seu elemento mutável ou

inessencial. Assim, explanaremos em que medida o conceito de Consciência infeliz

é, para Hegel, a Consciência-de-si como essência duplicada e somente contraditória

e discutiremos o elemento da necessidade da Consciência infeliz enquanto processo

de reconciliação da Consciência-de-si consigo mesma, bem como verificaremos, se

além de elemento necessário, a Consciência-de-si também se constitui como

elemento suficiente dessa reconciliação.

Palavras-chave: Hegel; Fenomenologia do espírito; Consciência-de-si; Consciência

infeliz; Razão.

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo acompanhar a tematização do

conceito de Consciência infeliz na Fenomenologia do Espírito de Hegel, limitando-

se às análises no plano da Consciência-de-si. Neste sentido, explanaremos em que

medida o conceito de Consciência infeliz é, para Hegel, a Consciência-de-si como

essência duplicada e somente contraditória e discutiremos o elemento da

necessidade da Consciência infeliz enquanto processo de reconciliação da

Consciência-de-si consigo mesma, bem como verificaremos, se além de elemento

necessário, a Consciência-de-si também se constitui como elemento suficiente dessa

reconciliação. Dessa forma, explicitaremos (1) a emergência e (2) a dinâmica da

Consciência infeliz - que em seu movimento dialético atravessa três momentos: a

consciência mutável face à consciência imutável; a figura do imutável para a

consciência mutável e a unificação da realidade com a Consciência-de-si – como

também (3) o acesso à Razão que se dá através da extrusão da singularidade da

Consciência infeliz.

O escopo da Fenomenologia do espírito (Phänomenologie des Geistes),

escrita por Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), em relação à Filosofia é,

nas palavras do próprio Hegel, aproximar a Filosofia do molde da ciência, deixando

assim de chamar-se amor ao saber1 para tornar-se saber efetivo2. Contudo, é

necessário esclarecer que este erigir da Filosofia em Ciência não ocorre ex abrupto,

de modo imediato, num melífluo átimo que elucida e põe termo à proposição do

filósofo.

Em 1807, Hegel publica a Fenomenologia do Espírito, obra que se impõe

como unicum na tradição filosófica e que veio a inaugurar e servir de propedêutica

ao Sistema da Ciência hegeliano. A Fenomenologia é objeto de diversas discussões

e interpretações, tanto no sentido mais geral do seu conteúdo quanto nos capítulos

que os estudiosos setorializam para melhor absorver as particularidades do texto.

Isso se deve a riqueza filosófica das manifestações do espírito, que enlaça Ser e

1 Sentido vulgar e banalizado na convicção do senso comum, que leva em conta na sua definição de Filosofia apenas o caráter etimológico da palavra, que é formada por dois radicais gregos filos (amor) e sofia (saber).2 Cf. na Fenomenologia do espírito o § 5, pp. 27-28.

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Consciência no automovimento do Conceito, e que parece nunca ser exaurida em

sua totalidade e, também, pela abundância das manifestações do Espírito que muitas

vezes situam o leitor no imenso labirinto do kháos.

Em linhas gerais, encontramos na Fenomenologia o Saber em devir

(werdende Wissen) ou o caminho percorrido pela consciência, que partirá do

conhecimento sensível ou do saber-carente-de-espírito, para tornar-se Saber

Absoluto ou Ciência e, que no término deste percurso, o espírito se saberá como

Espírito ou saber conceituante.

Para Hegel a Ciência é a coroa do mundo do espírito. Deve, porém, se

desvencilhar da aparência do saber fenomenal para transformar o seu objeto (o

mundo a si apresentado) e a si mesma, ou seja, tomar posse da verdade, do saber

que ela é em si mesma. Para que o começo do novo espírito venha à luz, será

necessária uma longa mudança e preparação nas diversas formas de consciência,

algo que só se impõem através da peregrinação dolorosa de um caminho complexo.

Contudo, seguindo as palavras de Hegel, podemos considerar a

Fenomenologia apresentando o vir-a-ser da ciência em geral ou do saber3 ou a

ciência da experiência da consciência4. Devemos ressaltar que experiência

(Erfahrung) no léxico hegeliano denota não apenas a experiência teorética, o saber

apenas do objeto; mas a experiência em sua totalidade, ou seja, tanto o movimento

dialético que a consciência executa em si mesma ao reconhecer-se como

consciência experimentando-se a si, tanto como consciência que experimenta seu

objeto, seu saber do mundo; dessa forma surge o novo objeto que será tomado como

verdadeiro para a consciência. Esse movimento dialético ou experiência que a

consciência efetua é, na Fenomenologia do Espírito, a série de etapas da formação

do espírito ao longo de seu caminho, pois afinal o aprendizado dos momentos que

se apresentam no decorrer do itinerário do espírito só se faz através da experiência,

seja ela adquirida por re-memoração (Er-innerung) de conhecimentos do espírito

predecessor, onde o em-si pensado obterá a forma do ser-para-si; ou por um novo

momento vivenciado pelo espírito que se encontra em um patamar mais alto do que

o anterior e que interiorizará no seu conceito tais experiências.3 Cf. na FE, § 27, p. 40.4 Cf. na FE, § 88, p. 81.

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É correto dizer que na progressão do espírito em busca de sua meta – o Saber

Absoluto – a experiência é inerente para a formação da consciência. A consciência

experimentando-se a si mesma acaba por chegar ao conhecimento do que ela é em

si mesma e, assim, supera-se a cada nova figura (Gestalt5) do Espírito que lhe é

apresentada em seu caminho para a Ciência. Essa superação da consciência das

figuras diversas do Espírito ocorre através da suprassunção (Aufhebung), que é a

incensada dialética6 do negar-conservar-elevar em que o espírito vai se construindo

através da História e sempre se elevando a um plano mais alto do seu processo.

Tendo em vista o que já foi dito, podemos inferir que o processo pelo qual

passa o espírito até alcançar seu objetivo supremo, tal como é descrito por Hegel na

Fenomenologia, é algo detidamente intrincado, uma complexa articulação de

figuras que exigem do espírito não menos que um flagício, que necessita da virtude

da paciência e da determinação para obter seu êxito. É o que Hegel parece querer

nos indicar quando na Fenomenologia7 refere-se ao saber autêntico que, para tornar-

se realmente saber puro, terá que se extenuar através de um longo caminho;

caminho este que condicionará o espírito em diversas situações/provações e fará

com que o mesmo se detenha em cada uma delas até suprassumi-las no interior do

seu conceito, condensando assim o seu propósito. Portanto, o espírito se constrói

dolorosamente através da série de suas experiências no decorrer da História

universal.

Uso a palavra ‘dolorosamente’ porque o percurso dialético do espírito é

marcado por vários momentos em que o mesmo se encontra em uma oposição

necessária no e para seu desenvolvimento. Citada oposição é assinalada pela cisão

(Entzweiung8) – cerne do movimento dialético - que a consciência sofre no devir de

si-mesma, algo como uma ruptura, que acaba gerando a contradição

(Widerspruche9) no percorrer do espírito pelas etapas da consciência. Tal cisão tem 5 Indicam as determinações da Fenomenologia. Tais determinações são as figuras da Consciência ou os graus do caminho já traçado e batido pelo Espírito Universal, ou seja, as etapas através das quais a consciência chegou à Consciência-de-si como Consciência Infinita ou Absoluta. 6 “A dialéctica é o esforço intelectual para coincidir com o princípio da vida e para o acompanhar na infinita diversidade das suas especificações”. (D’HONDT, 1984, p. 40)7 Cf. na FE, § 27, p. 41.8 “Já Entzweiung, cisão, dicotomização, ressalta a oposição dos contrários, fonte da própria atividade filosófica, diz Hegel.” (MENEZES, 1969, p. 249).9 “Todo pensamento hegeliano se desenvolve inspirado nesta raiz especulativa: a contradição como fonte do real e do ideal. ‘A contradição é a própria determinação da essência’. ‘A vida é a união e contradição em

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a functione de mediação no qual o espírito alcança a sua verdade quando encontra a

si mesmo no dilaceramento absoluto. O espírito, para poder se compor como sua

própria Verdade terá que ater-se em todos os momentos de contradição ou negação,

no qual deverá assumi-los demoradamente para transformar o negativo, ou a não-

igualdade, em efetividade ou ‘ser’ de seu movimento, sendo tal operação parte

essencial no desenvolver de sua dialética.

Ora, nosso problema aqui a ser tratado focaliza-se justamente em uma das

oposições pela qual a consciência irá ater-se. Uma oposição interiorizada no seio da

própria Consciência-de-si (Selbstbewusstsein). Como já citado, trata-se de uma

investigação do conceito de Consciência infeliz (unglückliche Bewusstsein) tal

como desenvolvido por Hegel no capítulo IV de sua Phänomenologie des Geistes.

A Consciência infeliz é a subjetividade da consciência posta como verdade, mas tal

subjetividade se mostra incapaz de encontrar-se consigo mesma na unidade e sente

a dor que é o nada de sua particularidade.

A Consciência infeliz, enquanto se apresenta a si mesma como a consciência

da contradição de sua essência, é na verdade a consciência da dor que permeia a

consciência em sua totalidade. Para Hegel, isso ocorre em função da Consciência-

de-si compreender-se a si mesma de um lado como consciência simples ou imutável

e de outro ser de fato para si exclusivamente consciência múltipla e mutável.

De um lado, portanto, ela se mostra como Consciência-de-si infinita que está

além da finitude do mundo e das coisas no mundo, inclusive de seu manifestar-se

nesse mundo; de outro, ela se mostra como Consciência-de-si finita que sabe de sua

finitude e que, por isso, ela mesma não pode ser o que é se não consistir em algo

justamente na finitude. Tal é a razão de a mesma apresentar-se como Consciência

infeliz, essa contradição da essência da Consciência-de-si, ou, em outras palavras,

como dor infinita.

Todavia, essa contradição da essência da Consciência-de-si, justamente

porque se apresenta como dor infinita, constitui-se como uma tentativa de ir além da

cisão entre o seu elemento imutável ou essencial e o seu elemento mutável ou

geral, não simplesmente oposição de conceito e realidade’. ‘Há vida somente onde há o interno e externo, causa e efeito, fim e meio, subjetividade e objetividade.’ (Hegel).” (MENEZES, 1969, p. 252)

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inessencial. Por isso, a Consciência infeliz constituir-se-á como um elemento

necessário do verdadeiro retorno da Consciência-de-si a si mesma.

Consciência infeliz aparece-nos como sinônimo de consciência dolorosa, ou

seja, a infelicidade da consciência é propriamente dor; cisão e contradição são

expressos na dor enquanto esta se caracteriza pela infelicidade da consciência. No

entanto, a dor é o impulso constante da consciência no percorrer da Fenomenologia

do Espírito; é algo essencial ao Saber em devir e que atravessa todo o caminho que

a consciência percorre para chegar até o Saber Absoluto, ou, dito de outra forma, o

caminho que o espírito percorreu através da consciência para retornar a Si mesmo10.

A Fenomenologia torna-se assim a Via Dolorosa da consciência e a Consciência

infeliz exprime em sua essência a maximização do trágico no itinerário do espírito.

Portanto, a justificativa deste trabalho reside no fato de que o conceito de

Consciência infeliz, tal como trabalhado por Hegel, permanece atual na época que

corre e de um alcance ontológico-existencial essencial no que tange à seguinte

questão: pode a consciência, enquanto se reconhece como o ser finito que é

reconciliar-se com o infinito? E, não conseguindo obter essa unidade, como se porta

em um mundo onde se sente só e infeliz devido à não reconciliação com a

realidade? Ainda que, no plano de um Trabalho de Conclusão de Curso, nos

proponhamos apenas a uma melhor compreensão dessas questões, uma investigação

sobre o conceito hegeliano de Consciência infeliz torna-se fundamental, visto que o

mesmo surge com uma onipresença inquestionável na modernidade, pois a dor

parece se inserir e se expressar pelo processo de fragmentação cada vez mais

contundente no capítulo da expressão contemporânea. Em suma, os ideais

humanísticos retroagem ao nível desse estado de consciência dilacerada, onde

podemos encontrar exemplos de fragmentação do espírito nas tendências éticas,

políticas, sociais, religiosas, econômicas e filosóficas.

10 Cf. na FE, § 78, pp. 74-75. Sendo a Fenomenologia um estudo das experiências da consciência, conduz sem cessar a conseqüências negativas. Aquilo que a consciência toma como a verdade se revela ilusório; portanto, é preciso que abandone sua convicção primeira e passe a uma outra. Hegel, que parte da consciência comum, não poderia pôr como primeira a dúvida universal que é própria somente à reflexão filosófica e, quem sabe, a dor não caberia neste momento da consciência comum como impulso da Consciência no percorrer do seu caminho. É por isso que opõe, a uma dúvida sistemática e universal, a evolução concreta da consciência que aprende de modo progressivo a duvidar daquilo que anteriormente tomava por verdadeiro. No caminho da dúvida e da dúvida desesperada a consciência natural perde sua verdade: o que tomava como saber autêntico e real mostra-se a ela como um saber não real.

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Em nosso intento de explicitar o conceito de unglückliche Bewusstsein

segundo Hegel, ou seja, trabalhando o traçado dialético da figura do Conceito de

Consciência infeliz na Fenomenologia do espírito, mais precisamente no plano da

Consciência-de-si, empreenderemos no presente trabalho uma investigação

eminentemente teórico-filosófica, tendo como texto-base a própria Fenomenologia

do Espírito; além disso, buscaremos realizar uma leitura imanente do texto aqui

proposto no sentido de uma consideração especulativa. Desse modo, além da leitura

anotada do capítulo IV da Fenomenologia, estudaremos alguns dos principais

comentadores da obra, onde serão analisados pontos fundamentais e de relevância

para que o trabalho seja bem sucedido.

Sendo assim, nosso trabalho em termos de análise demonstrativa, mais

estritamente, tentará evidenciar:

No primeiro capítulo, o surgimento da Consciência infeliz, tanto no plano

histórico – onde observaremos um primeiro aparecer da Consciência infeliz na

evolução histórica da passagem do mundo antigo ao mundo cristão moderno, –

quanto no curso do desenvolvimento da Consciência-de-si no interior da própria

Fenomenologia, onde a Consciência infeliz será o resultado desse desenvolvimento.

Em seguida, no segundo capítulo, demonstraremos a dinâmica dialética da

Consciência infeliz que perpassa três momentos: a consciência mutável sendo

rejeitada pela consciência imutável por ser singular; a existência singular é

assumida pelo imutável; enfim, pela alienação da singularidade da Consciência

infeliz, há o regozijo da reconciliação: a Consciência-de-si unifica-se com a

realidade.

Já no derradeiro capítulo, iremos examinar o acesso à Razão, que advém

devido ao fato de a Consciência infeliz extrusar sua singularidade para tornar-se

universal, um objeto, a totalidade do real. Desta forma, a consciência adquire a

certeza de ser toda a realidade, ou seja, torna-se Razão.

CAPÍTULO 1

A EMERGÊNCIA DA CONSCIÊNCIA INFELIZ

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1.1 DISCUSSÃO HISTÓRICO-SISTEMÁTICA

O espírito para Hegel é a história, tese fundamental que é idêntica àquela

segundo a qual o Absoluto é sujeito. Somente o espírito tem uma história, isto é, um

desenvolvimento de si por si, de tal modo que permanece ele mesmo em cada uma

de suas particularizações e, quando as nega – o que é o próprio movimento do

conceito -, conserva ao mesmo tempo tais particularizações para elevá-las a uma

forma superior. Somente o espírito tem um passado que ele interioriza e um porvir

que projeta diante de si porque deve tornar-se para si o que é em si.

Há uma concepção do tempo e da temporalidade implicada na

Fenomenologia e que implica num desenvolvimento simultaneamente universal e

particular. A Consciência nos apresenta a possibilidade de um tal desenvolvimento.

Escreve Hegel: “É desse modo que a consciência, entre o espírito universal e a sua

singularidade, ou consciência sensível, tem por meio-termo o sistema das figurações

da consciência, como uma vida do espírito ordenando-se para [constituir] um todo:

é o sistema considerado nesta obra, e que, como história do mundo, tem seu ser-aí

objetivo”11.

A consciência sensível é propriamente a consciência singular, mas

abstratamente singular, aquela que está limitada a um aqui, a um agora, tais como

são apresentadas no início da Fenomenologia, no capítulo sobre a certeza sensível12;

contudo, o próprio espírito universal é a consciência abstratamente universal, capaz

de descobrir em sua particularidade a universalidade que lhe é essencial. Esse

movimento – por meio do qual toda consciência particular torna-se ao mesmo

tempo consciência universal, constituindo a singularidade autêntica e o vir-a-ser

dessa singularidade, através de todas as fases de seu desenvolvimento -, é

precisamente a Fenomenologia.

Contudo, a Fenomenologia não é a história do mundo, embora de certo modo

seja uma história e tenha uma relação com essa história do mundo. Que a

Fenomenologia seja distinta da história do mundo ou de uma filosofia da história do 11 HEGEL, FE, § 295, pp. 214-215.12 Cf. FE, § 90 ss, p. 85.

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mundo, Hegel o diz com suas próprias palavras no texto que acabamos de comentar

– “sistema considerado nesta obra, e que, como história do mundo, tem seu ser-aí

objetivo” -; ademais, sob uma forma mais ambígua no final da obra, quando opõe a

história em seu livre desenvolvimento temporal e essa história concebida que é a

Fenomenologia. Citemos Hegel:

“A meta – o saber absoluto, ou o espírito que se sabe como espírito – tem por seu caminho a rememoração dos espíritos como são neles mesmos, e como desempenham a organização de seu reino. Sua conservação, segundo o lado de seu ser-aí livre que se manifesta na forma da contingência, é a história; mas segundo o lado sua organização conceitual, é a ciência do saber que se manifesta. Os dois lados conjuntamente – a história conceituada – formam a rememoração e o calvário do espírito absoluto; a efetividade, a verdade e a certeza de seu trono, sem o qual o espírito seria a solidão sem vida; somente ‘do cálice desse reino dos espíritos espuma até ele sua infinitude’ ”13.

Enfim, em muitas outras passagens Hegel fala de um espírito do mundo cujo

desenvolvimento é distinto do desenvolvimento fenomenológico14.

A história desempenha um grande papel na Fenomenologia, apesar de não

apresentar a história de um modo uniforme e contínuo. As épocas históricas são

tratadas como paradigmas de fases de pensamento e cultura; com freqüência, mas

não invariavelmente, a ordem lógica ou sistemática dessas fases coincide com a

ordem de seu surgimento na história.

Naquilo que denominamos a primeira parte da Fenomenologia – e que

compreende as grandes divisões: Consciência, Consciência-de-si e Razão -, a

história não desempenha senão o papel de exemplo; segundo Hegel, ela permite

ilustrar de modo concreto um desenvolvimento original e necessário da consciência.

É sobretudo nos capítulos mais concretos, o da Consciência-de-si e o da Razão, que

se encontram essas ilustrações históricas. A Consciência-de-si se forma mediante as

relações de luta entre Consciências-de-si opostas, tais como as do senhor e do

escravo, que não são propriamente temporais, embora se encontrem na origem de

todas as civilizações humanas e se reproduzam, aliás, sob formas diversas em toda a

história da humanidade. Os desenvolvimentos seguintes evocam, mais

precisamente, momentos definidos da história humana; trata-se do estoicismo, do

ceticismo e da consciência infeliz.13 HEGEL, FE, § 808, p. 545.14 Cf. FE, § 199 (pp. 153-154), § 234 (p. 175).

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Como sabemos pelos trabalhos de juventude de Hegel, a Consciência infeliz

se confunde em sua origem com o judaísmo e, depois, estende-se ao cristianismo da

Idade Média. Mas o texto da Fenomenologia sobre a Consciência infeliz não

contém nenhuma menção explícita ao judaísmo nem ao cristianismo. O certo é que

estas ilustrações históricas servem como contextualização para servir a um

desenvolvimento necessário da Consciência-de-si. O mesmo acontece no capítulo

sobre a Razão, onde encontramos alusões ao Renascimento.

Por fim, o certo é que na Fenomenologia não há uma filosofia completa da

história. De resto, Hegel insiste nitidamente neste ponto: os três momentos –

Consciência, Consciência-de-si e Razão – não devem ser considerados sucessivos;

não são no tempo, são três abstrações praticadas no Todo do espírito e estudadas

separadamente em sua evolução.

1.2 A CONSCIÊNCIA INFELIZ NOS ESCRITOS DO JOVEM HEGEL,

SEGUNDO JEAN HYPPOLITE

Segundo Jean Hyppolite15, o tema da Consciência infeliz já se anuncia nos

primeiros escritos teológicos de juventude de Hegel. Num desses escritos –

Diferença entre a imaginação grega e a religião positiva cristã –, concebido em

Berna (1793-1796), Hegel descreve a passagem do mundo antigo para o mundo

moderno, ou seja, à passagem da Cidade antiga ao despotismo romano, do

paganismo ao cristianismo e, em tal texto, podemos encontrar um esboço do que

seria a Consciência infeliz. O termo ‘consciência infeliz’ ainda não é utilizado, mas

já encontramos nesse estudo os principais caracteres de tal consciência. De início,

Hegel descobriu o que será mais tarde a infelicidade da consciência, em uma certa

transformação do espírito do mundo (Weltgeist16), de onde surgiu o mundo

moderno. 15 Cf. o trabalho feito por Jean Hyppolite, Introdução à Filosofia da História de Hegel, cap. 2.16 “O Weltgeist ou ‘espírito do mundo’ era, no século XVII, o espírito ‘secular’ em contraste com o espírito divino; tornou-se então (por exemplo, em Thomasius) um espírito cósmico impregnando a natureza inteira, como a alma do mundo; e, finalmente, em Herder e Hegel, é o espírito que se manifesta na História. A História é um desenvolvimento coerente e racional, porque a ascensão e queda de nações é governada por um espírito singular. Assim, o Weltgeist é usualmente tratado sob o título de ‘espírito objetivo’ e ‘direito’, mas também é responsável pelo desenvolvimento da arte, religião e filosofia, e, assim, do espírito absoluto. (INWOOD, 1997, P. 118).

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Escreve Hegel que “a supressão da religião pagã pela religião cristã é uma

das revoluções mais surpreendentes, e a procura das suas causas deve ocupar mais

particularmente o filósofo da história”17. Essa revolução foi precedida por uma

transformação silenciosa e contínua do espírito do mundo. A passagem da Cidade

antiga ao mundo moderno e à sua religião, o cristianismo, não pode ser explicada de

um modo simples. Não foi o espírito crítico que um dia fez desaparecer o

paganismo, mas esse desaparecimento se deveu a uma transformação social e

espiritual do mundo humano. “Como” diz Hegel, “pôde desaparecer uma religião

que havia séculos estava enraizada nos Estados, que tinha uma conexão tão íntima

com a constituição do Estado?”18.

Atualmente, consideramos as divindades pagãs indignas de toda crença, e

todavia os homens mais sábios da Antigüidade aderiram ao que hoje nos parece

absurdo. De início, compreendemos que a religião dos gregos e dos romanos era

vinculada a toda a vida antiga. Era a religião de um povo, de um povo livre. Ora, foi

com a perda da liberdade que desapareceu a potência dessa religião sobre as almas.

O cidadão antigo ignorava a liberdade da consciência; a noção moderna do livre

arbítrio não poderia ser aqui evocada. Para o jovem Hegel, a liberdade de que se

trata exprime somente a relação harmoniosa entre o indivíduo e a cidade. O cidadão

antigo era livre na medida em que se confundia com sua Cidade, na medida em que

a vontade do Estado não era distinta de sua vontade própria. Ignorava, então, tanto o

limite de sua individualidade como a coerção externa de um Estado dominador. “A

idéia de sua pátria, de seu Estado, era para o cidadão antigo a realidade invisível, a

coisa mais elevada pela qual ele trabalhava, era o seu fim final do mundo ou o fim

final do seu mundo”19 diz-nos Hegel.

“O cidadão antigo era livre porque precisamente ele não opunha a sua vida

privada à sua vida pública; ele pertencia à cidade, mas a cidade não era, como

Estado, um poder estranho que o constrangesse”20 escreve Hyppolite. O Estado,

portanto, não era para ele um déspota estranho. Ali havia uma totalidade viva, e a

17HEGEL apud HYPPOLITE, Introdução à filosofia da história de Hegel , p. 25.18Ibidem, p. 26.19Ibidem, p. 27.20 HYPPOLITE, Introdução à filosofia da história da Hegel, p. 27.

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religião pagã só era a expressão dessa bela individualidade. O cidadão antigo punha

a parte eterna de si mesmo em sua Cidade.

No entanto, a Cidade – espírito imediato – se dissolveu sob a ação das

guerras. Um imperialismo nivelador lhe sucedeu. O cidadão como tal desaparece, e

em seu lugar surge a pessoa privada. O indivíduo se redobra em si mesmo. Em lugar

da bela relação viva entre o indivíduo e o Todo, surge o interesse limitado do

indivíduo pela sua própria conservação e a dominação abstrata do Estado. É a

propriedade privada que constitui a meta do indivíduo. Cada cidadão já não pode

considerar o Estado senão como uma potência estranha que ele utiliza para o melhor

de seus interesses. O direito de cidadão já não oferece senão um direito à segurança

da propriedade.

Desde então, a religião antiga não tem mais sentido; novas crenças vem à luz

do dia nessa infelicidade do mundo, e o cristianismo estabelece sua dominação

sobre as almas. O dualismo entre o aquém e o além sucederá à unidade viva,

presença a si mesmo que existia na Antigüidade. O cristianismo conduziu, portanto,

a um distanciamento entre o homem e o todo no qual ele estava inserido e, o

individualismo, começa por fragmentar a sociedade. Escreve Hyppolite:

“É nesta decomposição da cidade que aparece a consciência infeliz, e o cristianismo é uma expressão dela. Mas Hegel não volta aquilo que passou. Esse grande dilaceramento tem a sua necessidade, e a consciência infeliz é uma cisão necessária para que seja possível uma reunificação. Nesse momento o problema que se apresenta para ele é o seguinte: como reencontrar essa relação harmoniosa do indivíduo com a sua cidade, através do dilaceramento contemporâneo, dilaceramento pelo qual o cristianismo é particularmente responsável”21.

Outra forma de infelicidade da consciência, descrita por Hegel,nas palavras

de Staccone, relaciona-se com o judaísmo. Hegel define o judaísmo como uma

religião positiva:

“Uma fé positiva é um tal sistema de princípios religiosos, que para nós deve revestir-se de verdade, porque nos é imposto por uma autoridade à qual não podemos recusar de sujeitar a nossa fé. Neste conceito de fé positiva, se nos apresenta, antes de mais nada, um sistema de princípios religiosos ou de verdades que devem ser consideradas como tais independentemente do nosso juízo e que, mesmo que ninguém nunca os reconheceu, mesmo que ninguém nunca as tomou como verdadeiras, permanecem, ainda assim,

21 Ibidem, p. 31.

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verdades, de maneira que elas são chamadas, habitualmente, de verdades objetivas. E estas verdades têm que tornar-se verdades também para nós, têm que tornar-se verdades subjetivas”22.

Para Hegel, uma religião é positiva quando ela estabelece dogmas, rituais e

regras que devem ser aceitos simplesmente porque são prescritos por autoridade

terrena ou divina, e não porque sejam coerentes com a vida e os costumes de seus

adeptos ou possam ser considerados racionalmente justificados. Assim sendo, o

paradigma de Hegel de religião positiva é o judaísmo; ele liga a sua positividade à

sua crença numa transcendente, inescrutável e estranha deidade, que exige serviço

incondicional.

No povo grego, Hegel viu o povo feliz da história, realizando a unidade

imediata do homem com o divino; opôs a ele o povo judeu, povo infeliz, que ao

contrário, aprofundou a separação entre os dois termos, ou seja, enfatizou a

separação entre homem e deus. “O povo judeu era o povo infeliz da história porque

representava a reflexão total da consciência fora da vida (...) o povo hebreu não

pode senão se opor incessantemente à natureza e à vida (...) descobre uma

subjetividade mais profunda (e) prepara a subjetividade cristã”23. Ao contrário do

helenismo, o judaísmo não apenas abdicou de buscar a verdade pelo raciocínio; o

judaísmo o desprezou, elevando o mito à categoria de verdade incontestável porque

transmitida por uma deidade. Enquanto mesmo os filósofos gregos iniciais

buscaram nos elementos primordiais a causa do universo, o judaísmo preferiu uma

intervenção divina, ex-nihilo, como explicação absoluta, incontestável e, por isto

mesmo, indialogável.

Em seus trabalhos de juventude, ao caracterizar a consciência de Abraão –

patriarca hebreu -, Hegel mostra como a reflexão esfacela uma unidade primeira e

imediata. Abraão se separa de si próprio. Sua vida, a vida em geral, aparece-lhe

como um outro que não ele mesmo. É, no entanto, o que há de mais próximo dele,

de mais íntimo e de mais longínquo. Com a reflexão o homem se separa do meio

vivente e a ele se opõe.

22 HEGEL apud STACCONE, Filosofia da religião, p. 84.23 HYPPOLITE, Gênese e estrutura da Fenomenologia do espírito de Hegel, p. 206.

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A descendência de Abraão, o povo judeu, tem como doloroso destino viver

eternamente separado de deus e dos homens, por ter, pela reflexão, projetado o ideal

fora de si e o ter cortado da vida. A reflexão conduz, portanto, à separação do finito

e do infinito. “A vida foi rompida, só há relações de senhor e escravo que sejam

concebíveis entre os seres, porque o infinito foi separado do finito. A vida deixou,

pois, de ser imanente às coisas vivas, mas o infinito está além, tornou-se ele próprio

uma coisa – o infinito separado – e os momentos perderam sua vitalidade, o infinito

que estava neles pelo amor, para tornarem-se coisas reduzidas à sua finitude”24.

O judaísmo põe a essência num plano além do homem (deus fora do

homem), negando-se, assim, o homem como tal. O indivíduo se experimenta como

nada; é o pensamento de toda a finitude, e deus, a negação da finitude, permanece

num além jamais atingido.

1.3 A CONSCIÊNCIA INFELIZ TAL COMO SE APRESENTA COMO

RESULTADO DO PROCESSO EPISTEMOLÓGICO-DIALÉTICO DA

CONSCIÊNCIA-DE-SI

O momento da Consciência infeliz, no interior da Fenomenologia do

espírito, resulta do desenvolvimento dialético da Consciência-de-si. Isso depois da

Consciência ter atravessado a experiência da sua relação com os objetos, que

constitui o tema das análises de Hegel nas três primeiras seções da Fenomenologia.

Trata-se da primeira parte da obra, dedicada à Consciência nos seus três momentos:

(1) certeza sensível (sinnliche Gewissheit), (2) percepção (Wahrnehmung) e (3)

entendimento (Verstand). Aqui a Consciência deve ser entendida no seu sentido

gnosiológico e, portanto, em sua acepção mais estrita. É o tipo de consciência que

olha e conhece o mundo como algo diferente e independente de si.

No momento da (1) certeza sensível, a realidade imediata, a coisa que se

manifesta para a consciência e é experimentada pelos sentidos, aparece como a mais

24 HYPPOLITE, Introdução à filosofia da história de Hegel, p. 48.

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rica em determinações25. Em verdade não é assim, e a consciência descobre logo a

seguir que tal manifestação do objeto é de todas a mais pobre.

O particular aparece como verdade, mas aparece muito mais como

contraditório, a tal ponto que, para compreender o particular, é necessário passar

para o universal26. O pensamento de Hegel é que os sentidos proporcionam-nos

consciência imediata de alguma coisa.

Não podemos escapar desta conclusão, sustenta Hegel, supondo que a

individuação dos elementos do “dado” pode ser levantada adiante por meio de

demonstrativos, tais como ‘isto’. Isto porque a identificação de alguma coisa como

‘isto’ pressupõe um contraste com ‘aquilo’. De fato, alega Hegel que palavras como

‘isto’, ‘aqui’, ‘agora’ e ‘eu’ constituem, sem exceção, universais, a despeito de seu

aparente caráter demonstrativo ou indicador. Por isso mesmo, não podem

determinar objetos imediatos da consciência independentemente do papel mediador

de universais. A única coisa imediata é a própria consciência porque ela mesma se

limita ao que é imediato27. A consciência não pode permanecer na intranqüilidade e

inconsistência do saber sensível. Ela progride para uma nova forma de relação com

o mundo, para a percepção.

No momento da (2) percepção a consciência descobre que o objeto como

Uno, ou seja, apreendido na multiplicidade de suas qualidades, supõe a intervenção

do eu, de uma consciência que conhece. É a consciência que identifica, que aponta

esse objeto, aquele objeto, é ela que na relação de conhecimento diz aqui e agora

por oposição a acolá e depois. Na dialética da certeza sensível, a consciência supera

o ouvir, o ver e assim por diante. Como consciência que percebe, ela chega a

pensamentos universais incondicionados28.

Na percepção, sabemos que somos tornados conscientes de objetos que

possuem qualidades. Mas, pergunta Hegel, de que modo qualquer número de

propriedades determina a identidade única de uma coisa? De que modo pode uma

propriedade, ou conceito, se aplicar a muitas coisas, e como pode uma única coisa,

tal como um cubo de sal, ter uma identidade única quando é constituído de um 25 Cf. FE, § 91, pp. 85-86.26 Cf. FE, § 96 ss, p. 87.27 Cf. FE, § 109 ss, p. 92. 28 Cf. FE, § 114 ss, p. 97.

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conjunto de propriedades, ou conceitos, todos eles universais?29 Este problema só

seria solucionado com a mudança para uma figura mais elevada da Fenomenologia

sendo detalhado no capítulo três da Fenomenologia, intitulado “Força e

Entendimento; Fenômeno e Mundo Supra-Sensível”.

No (3) entendimento, o objeto se apresenta somente como força; ele é pura

manifestação, segundo leis bem determinadas. Mas força não é outra coisa que

conceito30, pensamento do mundo sensível, reflexão desse mundo sobre si mesmo,

mediado pela consciência31. Aquele pensamento do mundo sensível, que se

manifesta à consciência como o lado vazio desse mundo – o supra-sensível -, torna-

se o interior, a essência do mundo em um sistema de leis. Essas leis, leis da

experiência, situam-se além dos fenômenos e constituem, assim, a sua própria

sustentação32.

O objeto aparece como “fenômeno”, produzido por força e leis: aqui, o

sensível se resolve na força e na lei, que são precisamente obras do intelecto, e, de

certo modo, de si mesma (o objeto se resolve no sujeito). A solução ao nível do

entendimento para o que proporciona o princípio de unidade de uma coisa é, na

verdade, uma lei. São forças de caráter imperativo que unem as propriedades de

uma coisa, transformando-a, assim, em uma unidade. Essas forças constituem a

natureza real e agem reciprocamente com outros objetos e com nós mesmos. Ao

procurar apreender a natureza unificada de uma coisa, o entendimento tem que ir

além das propriedades aparentes com as quais se preocupa na percepção direta para

chegar à natureza subjacente. Hegel supõe que podemos ter alguma apreensão dela

porque o entendimento pode levar-nos além do que é dado aos sentidos. É a

mudança para o conceito de força que transporta o entendimento para além das

meras aparências e, portanto, para o reino do supra-sensível.

29 Cf. FE, § 119 ss, p. 101.30 Cf. FE, § 136, p. 110. Num imã, pensar a força de atração ou a força magnética é pensar a própria relação, a passagem de um momento ao outro enquanto passagem. Mas a força é absolutamente idêntica à sua manifestação, embora as diferenças sejam apenas diferenças para a consciência. Quando mantemos os dois momentos em sua unidade imediata, é porque o entendimento pertinente ao conceito de força é, propriamente, o conceito que sustém os momentos distintos como distintos, pois na própria força não devem ser distintos; a diferença está somente no pensamento. Em outros termos, foi posto acima somente o conceito da força, não ainda sua realidade.31 Cf. FE, § 136, pp. 110-112.32 Cf. FE, § 149, pp. 119-120.

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Hegel entra em alguns detalhes sobre como tudo isso funciona e o que se

consegue. Mas o passo seguinte que ele dá é usar essa dialética do entendimento a

fim de demonstrar que a consciência pode, por isso, elevar-se à Consciência-de-si.

O supra-sensível é um reflexo da própria consciência e a consciência torna-se

consciência disso.

Uma vez que a consciência se eleva ao entendimento, é levada a

experimentar-se como Consciência-de-si. Com efeito, a consciência constata que,

no entendimento ela só faz experiência de si mesma; que, se não houver uma

consciência que vê, não há nada para ver no mundo dos objetos; numa palavra, que

o real é sujeito-objeto. Mundo sensível e supra-sensível, fenômeno e lei identificam-

se no Conceito. A Consciência, através do entendimento, caminha em direção à

certeza de si, ao autoconhecimento, à Consciência-de-si.

Vemos, portanto, que o resultado da dinâmica da consciência, enquanto

entendimento, consiste na experiência de que a consciência sabe enquanto se sabe a

si mesma. Deste modo a consciência suprassume seus momentos anteriores e é

agora Consciência-de-si; “com a consciência-de-si entramos, pois, na terra pátria

da verdade”33 .

Inicialmente, a Consciência-de-si se manifesta como caracterizada pelo

apetite e o desejo, ou seja, como tendência a se apropriar das coisas e fazer tudo

depender de si. Dessa forma “a consciência-de-si é certa de si mesma, somente

através do suprassumir desse Outro, que se lhe apresenta como vida

independente”34. Primeiro, a Consciência-de-si exclui abstratamente de si toda a

alteridade, considerando o Outro como inessencial e negativo. Mas logo deve sair

dessa posição porque se defronta com outras consciências-de-si e,

conseqüentemente, nasce de modo necessário a luta pela vida ou pela morte através

da qual e somente pela qual a Consciência-de-si se realiza (ou seja, sai da posição

abstrata do em si e tornar-se para si).

No plano da Consciência-de-si, portanto, a experiência da luta pelo

reconhecimento, mas a verdade dessa experiência engendra uma outra, a

experiência das relações de desigualdade no reconhecimento, a dominação e da 33 HEGEL, Fenomenologia do espírito, § 167, p. 135.34 Ibidem, § 174, p. 140.

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servidão. Com efeito, segundo Hegel, toda Consciência-de-si tem necessidade

dialética de outra Consciência-de-si e a luta não deve ter como momento a morte de

uma das duas, mas o domínio de uma à outra.

Nasce assim a distinção entre senhor e escravo, com sua conseqüente

dialética, que Hegel descreve em páginas que se tornaram famosas, para as quais

sobretudo os marxistas35 chamaram a atenção e que estão efetivamente entre as mais

profundas e belas da Fenomenologia. O senhor arriscou seu ser físico na luta e, na

vitória, tornou-se conseqüentemente o “Senhor”. O servo teve medo da morte e, na

derrota, para salvar a vida física, aceitou a condição de escravidão e tornou-se como

que uma “coisa” dependente do senhor. O senhor usa o servo e o faz trabalhar para

si, limitando-se a desfrutar das coisas que o escravo faz para ele.

Mas nesse tipo de relação, desenvolve-se um movimento dialético que acaba

por levar à subversão dos papéis, em que “o senhor revela-se, em sua verdade, como

o escravo do escravo e o escravo como senhor do senhor”.36 Com efeito, o senhor

acaba por se tornar dependente das coisas, ao invés de independente, como era,

porque desaprende a fazer tudo o que o escravo faz, ao passo que o servo acaba por

se tornar independente das coisas, fazendo-as.

“A verdade da consciência independente é por conseguinte a consciência escrava. Sem dúvida, esta aparece de início fora de si, e não como a verdade da consciência-de-si. Mas, como a dominação mostrava ser em sua essência o inverso do que pretendia ser, assim também a escravidão, ao realizar-se cabalmente, vai tornar-se, de fato, o contrário do que é imediatamente; entrará em si como consciência recalcada sobre si mesma e se converterá em verdadeira independência”.37

Isso implica em que o senhor não pode se realizar plenamente como

Consciência-de-si, porque o escravo, reduzido a coisa, não pode representar o pólo

dialético com o qual o senhor possa se confrontar adequadamente; o escravo tem, ao

contrário, no senhor o pólo dialético tal que lhe permite reconhecer nele a

consciência, porque a consciência do senhor é a que comanda, enquanto o servo faz

o que senhor ordena. Assim, Hegel identifica perfeitamente o poder dialético que

deriva do trabalho: “precisamente, no trabalho, onde parecia ser apenas um sentido 35 Cf. especialmente o incensado trabalho feito por Alexander Kojève, Introdução à leitura de Hegel.36 HYPPOLITE, Gênese e estrutura da Fenomenologia do espírito de Hegel, p. 187.37 HEGEL, FE, § 193, p. 149.

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alheio, a consciência, mediante esse reencontrar-se de si por si mesma, vem-a-ser

sentido próprio”.38 Portanto, é no trabalho, precisamente onde parecia exterior a si,

que a consciência escrava descobre a si mesma e atinge a sua verdade de ser-para-si,

ou seja, se torna objeto para si mesma.

Uma vez suprassumida essa contradição, formada pelo caráter formador do

trabalho, a Consciência-de-si experimenta-se como pensamento. Abandonando as

representações, a consciência se identifica com o seu conceito. Por isso, no

pensamento, ela é livre, pois seu objeto está em unidade com ela mesma. Começa,

assim, um novo processo dialético, cujos momentos são figurados pelo estoicismo,

ceticismo e a consciência infeliz, que representam o desdobramento da Consciência-

de-si.

O estoicismo39 (Stoicismus) expressa bem este princípio da liberdade

pensante: “a consciência é uma essência pensante; uma coisa é boa e verdadeira

para a consciência quando a consciência se conduz em relação a ela como essência

pensante”40. Exprime a liberdade da consciência que, reconhecendo-se como

pensamento, instala-se acima da dominação e da escravidão, que, como sabemos,

constituem para os estóicos meros ‘indiferentes’ (do ponto de vista moral, ser

senhor ou escravo não faz diferença). Escreve Hegel: “Essa consciência (estóica) é

por isso negativa no que diz respeito à relação de dominação e escravidão. Seu agir

não é o do senhor que tem sua verdade no escravo, nem o do escravo que tem sua

verdade na vontade do senhor e em seu servir; mas seu agir é livre, no trono como

nas cadeias e em toda (forma de) dependência de seu ser aí singular”41.

Indiferente às circunstâncias da vida, a consciência estóica é

autodeterminação, tanto na concepção e juízo do mundo, quanto na conduta prática.

Mas a libertação da sujeição, das paixões e apetites, não é ainda uma liberdade viva,

mas abstrata e formal, pois reduz a consciência-de-si a ela mesma, e o mundo

continua sendo exterior a ela. A consciência estóica não levou a cabo a negação das 38 Ibidem, § 196, p. 151.39 “Como é sabido, chama-se estoicismo essa liberdade da consciência-de-si, quando surgiu em sua manifestação consciente na história do espírito”. (HEGEL, FE, § 198, p. 153) Como vimos anteriormente, o desenvolvimento fenomenológico, que reencontra necessariamente um momento da liberdade abstrata da consciência-de-si, utiliza a fase correspondente da história do mundo para ilustrar e precisar sua descrição. Reconhecemos assim, na Fenomenologia, uma certa interpretação histórica.40 MENESES, Para ler a Fenomenologia do espírito, p. 64.41 HEGEL, FE, § 199, p. 153.

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determinações de seu objeto, não chegou a dissolvê-las na simplicidade do para-si.

Recolhendo-se antes do tempo a si mesma, trouxe-as consigo como determinações

pensadas que escapam da infinidade do pensamento. Sua liberdade de pensamento

acaba sendo um mero pensamento obstinado de liberdade, um pensamento sem

conteúdo, e não uma liberdade efetivamente vivida:

“O estóico sabe ter uma vontade universal: não quer tal coisa determinada, mas quer-se a si mesmo em todo conteúdo. Entretanto, a dualidade do conteúdo não engendrado pelo pensamento e do pensamento igual a si mesmo não pode, afinal, se manifestar. Pelo contrário, é o cético que realiza a verdadeira negação dessas determinações, ao pretender um valor absoluto em seu caráter de determinação”42.

O estoicismo translada-se dialeticamente para o ceticismo (Skeptizismus),

que transforma o afastamento do mundo em atitude de negação do mundo; é a

primeira experiência que a Consciência-de-si faz como movimento seu. O ceticismo

supera o estoicismo num ponto fundamental, pois, como diz Hegel “o cepticismo é

a realização do que o estoicismo era somente o conceito; - e a experiência efetiva do

que é a liberdade do pensamento: liberdade que em-si é o negativo, e que assim

deve apresentar-se”43.

Desse modo o ceticismo libera-se de tudo o que a consciência tinha como

certo e, por isso, reduz de fato a Consciência-de-si a si mesma. Opera eliminando

falsas independências, valores e sofismas; dissolvendo-os todos no fluxo da

negatividade da consciência. Mas negando tudo o que a consciência tinha como

certo, o ceticismo, por assim dizer, esvazia a Consciência-de-si, levando-a à

autocontradição e à cisão de si consigo mesma. Com efeito, a Consciência-de-si

cética nega as próprias coisas que é obrigada a fazer e vice-versa, enredando-se

assim, em contradições: nega a percepção, mas percebe; nega a essencialidade da

moral, mas age de acordo com ela; discute as formas do pensamento, mas pensa

com elas. Deste modo, fica oscilando na sua inconsistência. É uma consciência

dupla. Por um lado, põe o mundo entre parênteses e se eleva acima dele. Por outro

lado, ela mesma fica presa no mundo, como uma parte contingente dele.

Escreve Hegel acerca da consciência cética:

42 HYPPOLITE, Gênese e estrutura da Fenomenologia do espírito de Hegel, p. 199.43 HEGEL, FE, § 202, P. 155.

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“Seu agir e suas palavras se contradizem sempre; e desse modo, ela mesma tem uma dupla consciência contraditória da imutabilidade e igualdade; e da completa contingência e desigualdade consigo mesma. Mas mantém os termos dessa contradição separados um do outro, e se comporta nisso como no seu movimento puramente negativo em geral”44.

Como notamos pela citação acima, o ceticismo ainda não se elevou à

consciência de si mesmo, à operação dialética puramente negativa; é preciso ver

como tal consciência cética pode pôr sua própria certeza de si. É evidente que ela só

o pode mediante a negação daquilo que é outro; logo, ela própria está vinculada a

essa alteridade e, por isso, sua dualidade deve se manifestar. Ela própria ainda não

tem uma verdadeira consciência disso, pois então seria a Consciência infeliz.

Contudo, a consciência não pode ficar na experiência da oscilação cética,

pois sendo uma mesma Consciência-de-si, não pode manter separados, como faz o

ceticismo, os dois pólos da sua contradição. Assim, a verdade da consciência cética

será a Consciência infeliz, que reúne nela mesma o que o ceticismo tinha separado,

e experimenta essa dualidade como contradição interna. Desse modo:

“(...) a duplicação que antes se repartia entre dois singulares – o senhor e o escravo – retorna à unidade; e assim está presente a duplicação da consciência-de-si em si mesma, que é essencial no conceito do espírito. Mas não está ainda presente a sua unidade, e a consciência infeliz é a consciência-de-si como essência duplicada e somente contraditória”45.

Agora, esta nova figura da Consciência-de-si, a Consciência infeliz, é para si

mesma uma consciência duplicada. Tem em si por um lado, a consciência liberta,

igual a si mesma; e por outro, a consciência da confusão e da inversão absolutas.

Retoma num plano mais alto a dualidade Senhor e Escravo; só que os papéis não

são distribuídos por dois personagens, mas interiorizados na própria consciência.

Nela está presente o desdobramento da Consciência-de-si em si mesma, que é

essencial ao conceito de Espírito. Falta apenas a unidade desta contradição, que a

Consciência infeliz, cindida em contradição íntima, não pode atingir.

44 Ibidem, § 205, p. 158.45 Ibidem, § 206, p. 159.

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É a dialética da Consciência infeliz que, mais precisamente, observaremos no

capítulo seguinte.

CAPÍTULO 2

A DINÂMICA DA CONSCIÊNCIA INFELIZ

Vários estudiosos debruçaram-se sobre o texto da Consciência infeliz e o

fizeram objeto de profundas meditações46. Podemos até mesmo imaginar que

chegaram a ver nessa figura a chave central de toda a Fenomenologia, cujo

movimento dialético tem precisamente a cisão da consciência em todos os níveis do

seu percurso – e, como vimos, a cisão é a característica essencial da Consciência

infeliz.

46 Cf. por exemplo os trabalhos feitos por Jean Wahl – La malheur de la conscience dans la philosophie de Hegel (1929) – e de Gwendoline Jarczyk e Pierre Jean Labarrière – Hegel: le malheur de la conscience ou l’accès à la raison (1989).

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Entre estes estudiosos encontramos Jean Hyppolite47 que escreve que a

Consciência infeliz é o tema fundamental de toda a Fenomenologia do espírito e se

refere, em sentido amplo, ao fato de que a consciência como tal é, por princípio,

infeliz, na medida em que supõe um além dela mesma e, portanto, uma separação e

uma ruptura com a vida. Deveras, a Consciência infeliz não fica condicionada a um

dos momentos que a consciência natural terá que necessariamente atravessar rumo

ao saber verdadeiro sobre si mesma. Justamente por isso é que encontraremos a

Consciência infeliz apresentada sob diversas formas no itinerário do espírito, como

por exemplo nos capítulos sobre o estado do direito e a verdade do Iluminismo48.

Mas como aparece mais precisamente a Consciência infeliz?

Como vimos no capítulo anterior, o ceticismo relaciona todas as diferenças

da vida49 com a infinidade do eu e descobre, portanto, seu nada; ao mesmo tempo,

porém, ele próprio se conhece como uma consciência contingente, engajada nos

meandros da existência, sem que disso consiga se libertar. É por isso que a

consciência cética é em si a consciência de uma contradição; mas ainda não o é para

si. Explana Hegel sobre a consciência cética:

“Assim, essa consciência é um desvario inconsciente que oscila para lá e para cá, de um extremo da consciência-de-si igual a si mesma, ao outro extremo da consciência casual, confusa e desconcertante. Não consegue rejuntar em si esses dois pensamentos de si mesma: ora conhece sua liberdade como elevação sobre toda confusão e casualidade do ser-aí; ora torna a conhecer-se como recaída na inessencialidade e como azáfama em torno dela”50.

A característica da cisão, implícita na autocontradição do ceticismo, torna-se

explícita na Consciência infeliz que é a Consciência-de-si como cindida e envolvida

inteiramente na contradição. Ou seja: a Consciência infeliz descobre tal contradição:

se vê a si mesma como internamente duplicada; eleva-se acima da contingência da

47 HYPPOLITE, Gênese e estrutura da Fenomenologia do espírito de Hegel, p. 205.48 Cf. respectivamente na FE os § 477 ss e § 574 ss.49 Hegel se esforça em pensar o ser mesmo da vida e o ser da Consciência-de-si. Quando fala do conceito absoluto ou da vida universal, ele não parte de tal existente particular ou de tal consideração biológica, mas do ser da vida em geral; igualmente, a Consciência-de-si, que emerge da vida, é caracterizada em seu próprio ser. O desenvolvimento da Consciência-de-si no seio da vida universal nos mostrará, em seguida, como a verdade, ou a razão universal, tem por condição tal certeza de si que a consciência alcança e que, para ela, se torna uma verdade.50 HEGEL, FE, § 205, pgs. 157-158.

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vida e capta-se como certeza imutável e autêntica; mas, por outro lado, se vê

mergulhada no ser aí determinado, como consciência mutável e sem essência, e ela

mesma se percebe como sendo essa contradição, essa íntima cisão. Escreve Hegel:

“Por ser ela inicialmente apenas a unidade imediata das duas [consciências-de-si],

mas não serem as duas para ela a mesma consciência, e sim consciências opostas -,

então para essa [consciência infeliz] uma é como essência, a saber, a consciência

simples e imutável; mas a outra, mutável de várias formas, é como o inessencial”51.

Assim, a Consciência infeliz tem apenas a consciência fragmentada de si,

porque procura encontrar sua unidade no Além Imutável, mesmo estando instalada

no aquém mutável. A Consciência-de-si nos aparece agora como Consciência

infeliz, aspirando reencontrar, na reconciliação, aquela unidade de si mesma e da

consciência Imutável, que nela é apenas uma aspiração subjetiva. Para a

Consciência infeliz, toda aproximação ao Imutável transcendente significa a própria

mortificação e o sentir a própria nulidade.

Sendo consciência-de-si, ao mesmo tempo da vida e do que supera a vida, a

Consciência infeliz mostra a subjetividade que almeja ao descanso da unidade.

Enquanto reflexão da vida eleva-se à liberdade, mas apenas como inquietude que

não escapa a esta dualidade. Segundo Hegel, o sentido e a verdade da Consciência

infeliz está na suprassunção dessa dualidade e dessa infelicidade, quando a

consciência, tornando-se Razão, ultrapassará sua subjetividade, extrusando-a e

efetivando-a como ser no mundo ético e na cultura, isso já no plano do Espírito.

Então, o ser mesmo passará a ser Consciência-de-si e a Consciência-de-si será ser.

Em suma: a Consciência infeliz exprime essencialmente a subjetividade, o

para-si em oposição ao em-si, ou ainda, a singularidade diante da universalidade. A

Consciência infeliz é, portanto, a culminância da certeza de si que procura ser, para

si mesma, sua própria verdade. Ela é a subjetividade – a certeza de si mesma – que

deve ser em si e para si. Inversamente, porém, descobre que tal certeza de si é a

perda de si; sendo para si absolutamente, já não pode ser em si.

É no interior desse contexto fenomenológico mais amplo que acontece o

dinamismo dialético próprio da Consciência infeliz, onde analisaremos a seguir os

51 Ibidem, § 208, P. 159.

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seus três momentos: (2.1) a consciência mutável face à consciência imutável; (2.2) a

figura do imutável para a consciência mutável e; (2.3) a unificação da realidade e da

Consciência-de-si.

2.1 CONSCIÊNCIA MUTÁVEL FACE À CONSCIÊNCIA IMUTÁVEL

Uma vez que a consciência elevou-se à certeza de si mesma, parece difícil

escapar de sua subjetividade. Mas esta é insustentável, pela própria dinâmica do

reconhecimento exigido pela Consciência-de-si. Só sou na medida em que o outro

me reconhece e eu reconheço ao outro. Deste modo, a Consciência-de-si se opõe a

si mesma e é para si, uma outra Consciência-de-si. O senhor e o escravo do

momento anterior, quando a consciência se empenhava na luta pelo

reconhecimento, antes de atingir a liberdade da Consciência-de-si, passam agora a

ser os dois pólos internalizados na mesma consciência: o Imutável (transcendente) e

o mutável (mundano).

Quando a consciência cética tornou-se Consciência infeliz, descobriu a

nulidade de sua vida particular. A consciência de sua contingência particular e

mutável se opõe, pela reflexão – que é sempre opositiva - , a uma outra consciência

de uma certeza de si Imutável e simples. Esta, além da vida, é posta como essencial;

e a outra, da vida mutável e múltipla, é considerada como inessencial. Portanto,

deve libertar-se da mutabilidade e, assim, encontramos a. primeira forma de

oposição na dialética da Consciência infeliz que vem a ser entre o Imutável e o

mutável.

Estas duas consciências – a mutável e a Imutável, embora intimamente

correlatas, opõem-se reciprocamente, e a Consciência infeliz passa continuamente

de uma à outra. Afirma Hegel:

“Por conseguinte, a posição que atribui às duas consciências não pode ser uma indiferença recíproca, quer dizer, uma indiferença de si mesma para com o Imutável; mas ela é imediatamente ambas as consciências; a relação entre ambas é, para ela, como uma relação da essência para com a inescência, de sorte que essa última deve ser suprassumida. Mas enquanto as duas consciências são igualmente essenciais e contraditórias, ela é

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somente o movimento contraditório, onde o contrário não chega ao repouso em seu contrário, mas nele se reproduz somente como contrário”52.

Encontramos assim a tragédia da Consciência infeliz: ter sempre, na unidade

de sua essência, a outra consciência; ser expulsa imediatamente de cada uma,

quando pensa ter chegado ao repouso da unidade. Seu verdadeiro retorno a si

mesma, ou reconciliação consigo, apresentará o conceito do espírito53 tornando-se

ser vivo e entrando na existência; mas ainda não chegou a esta unidade54.

É claro que, em sua dualidade, ela é igualmente unidade, através da

mediação do espírito existente. Nele, oposição e unidade não procedem

isoladamente, mas na Consciência infeliz ainda predomina a oposição. Na realidade

ela já é essa unidade, mas não tem consciência disso. Nesse sentido, afirma Hegel

“ela mesma é ambas (as consciências), e a unidade de ambas é também para ela a

essência. Contudo para si, ainda não é a essência mesma; ainda não é a unidade das

duas”55.

A consciência, justamente pelo fato de ser a consciência desta contradição,

ou seja, por ter a consciência da duplicidade dos termos, identifica-se com a

consciência da mutabilidade e da inessência. Desta forma, a consciência extrusa de

si sua própria essência e a põe como um termo transcendente, além da existência,

inalcançável, o Imutável fora do mutável, condenando-se assim à infelicidade. A

consciência singular torna-se um esforço impossível para alcançar sua essência, já

que esta é posta no início da relação da Consciência infeliz como um dévio

transcendente.

52 Ibidem, § 208, p. 160.53 No início do capítulo da Consciência-de-si, Hegel parece indicar o que vem a ser o conceito do espírito. “Quando a consciência-de-si é o objeto, é tanto Eu quanto objeto. Para nós, portanto, já está presente o conceito do espírito. Para a consciência, o que vem-a-ser mais adiante, é a experiência do que é espírito: essa substância absoluta que na perfeita liberdade e independência de sua oposição – a saber, das diversas consciências-de-si para si essentes – é a unidade das mesmas: Eu, que é Nós, Nós que é Eu”. (FE, § 177, p. 142) Eis uma das tarefas do Fenomenologia do espírito: fazer a consciência singular sair de seu pretenso isolamento, de seu ser-para-si exclusivo, para elevá-la ao plano do espírito. O que Hegel chama espírito (Geist) na Fenomenologia é a experiência do espírito objetivo tornando-se espírito absoluto. Assim, a Consciência-de-si singular se elevou à Consciência-de-si universal por meio da luta pelo reconhecimento, da oposição entre o senhor e o escravo e, agora, da Consciência infeliz, que, por fim, alienando sua subjetividade, nos conduzirá a Razão. 54 MENESES, Para ler a Fenomenologia do espírito, p. 69.55 HEGEL, FE, § 207, p. 159.

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Ao identificar-se como consciência do seu contrário, ou seja, da sua

essência, toma-se como consciência de seu próprio nada, de sua nulidade

inessencial. Logo, a consciência ascenderá rumo ao Imutável, mas tal

empreendimento tem como descoberta que esta ascensão é feita pela consciência

mesma, pela consciência que tinha apreendido-se como mutável, ou seja, ao

empreender tal ascensão para o Imutável, a consciência mutável já o possui de

alguma forma. A Consciência infeliz não está retida em um dos termos da

contradição; assim descobre-se como movimento para ultrapassar tal dualidade e a

ascese da Consciência infeliz para se libertar de sua singularidade é, ela própria,

uma consciência mutável e múltipla. Grafa Hegel:

“Uma luta se trava, assim, com um inimigo contra qual a vitória é, antes uma capitulação; ter alcançado um [dos contrários] é, antes, a sua perda em seu contrário. (...) Daí parte na ascensão rumo ao Imutável. Mas tal ascensão é essa consciência mesma, e portanto, imediatamente, a consciência do contrário; isto é, de si mesma como singularidade. O Imutável que entra na consciência é, por isto mesmo, tocado igualmente pela singularidade, e só se faz presente junto com ela. E a singularidade, em vez de ter sido eliminada na consciência do Imutável, somente reponta ali de novo”56.

Em seu desenvolver dialético a Consciência infeliz empreende a anulação de

sua singularidade, mas a tentativa de libertar-se de sua inessência é a mesma

consciência singular; por conseguinte, sua sina é tomar conhecimento que, ao se

superar, conserva-se constantemente no interior de si mesma. A própria ascensão é

essa consciência. Em vista disso, o Imutável só é tocado no âmago da existência

singular e a existência singular só se encontra na ascensão em direção ao Imutável.

Desse modo, o Imutável que vai para o interior dessa consciência é, por sua

vez, afetado pelo singular e apenas com ele figura-se. Revela-se então o emergir da

existência singular no âmago do Imutável e do Imutável no seio da consciência

singular. Conseqüentemente, gera-se a unidade para a consciência cindida; todavia a

conjuntura ainda dominante nela é o da oposição dos termos que se unem.

“O imutável não é mais, portanto, o termo transcendente que a reflexão opõe

a vida, está unido ao ser, apresenta-se como uma figura (Gestalt)”57.

56 Ibidem, § 209, p. 160.57 HYPPOLITE, Gênese e estrutura da Fenomenologia do espírito de Hegel, p. 216.

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Agora o Imutável se torna o Imutável figurado e a Consciência infeliz

passará a procurá-lo na sua figura singular, isto é, na figura do Uno essente, o

Universal concreto. Pela unidade do Imutável com a singularidade da consciência, a

união da universalidade e da singularidade finalmente se realiza. É mais

precisamente está relação entre a Consciência-de-si e o Imutável figurado que

iremos observar no tópico adiante.

2.2 O IMUTÁVEL FIGURADO

Segundo Hegel, o relacionamento entre a consciência singular e a sua

essência (Imutável) perpassa três momentos:

“1º - ela mesma [consciência singular] reponta de novo para si como oposta à essência Imutável, e é recambiada ao início da luta, que permanece o elemento da relação em seu todo. 2º - O próprio Imutável tem nele a singularidade para a consciência, de maneira que a singularidade é figura do Imutável, que se encontra por isso revestido de toda a modalidade da existência. 3º - A consciência encontra a si mesma como este singular no Imutável”58.

Hac hora, iremos analisar o segundo momento da relação acima, que

segundo Hyppolite “a consciência da vida e da existência singular vai se

aprofundar”59.

Como vimos anteriormente, a Consciência infeliz, não estando fixada num

dos pólos de sua contradição, descobre-se como movimento ascensional para o

Imutável. Mas, como este movimento é movimento de si mesma como consciência

singular, o Imutável que entra na consciência é também afetado pela existência

singular. Portanto, ao superar-se nesse movimento ascensional, a consciência

singular continua estando no interior de si mesma. Assim, o Imutável só se alcança

na existência singular, e a existência singular só se encontra neste movimento

ascensional.

O Imutável se apresenta adquirindo a figura da singularidade, tornando-se

uma figura concreta, uma Consciência-de-si singular tal como a Consciência infeliz,

58 HEGEL, FE, § 210, pgs. 160-161.59 HYPPOLITE, Gênese e estrutura da Fenomenologia do espírito de Hegel, p. 215.

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representando então o surgimento da existência singular no seio do Imutável e vice-

versa. O Imutável se põe à vista como a figura do Uno essente e, nele, se realiza

para a consciência a unidade do universal e do singular, da consciência Imutável e

da consciência mutável, da verdade transcendente e da subjetividade singular.

Nesse instante, é preciso que a Consciência infeliz volte do estado de

separação que caracteriza o seu conceito e que realize em si mesma esta unidade

que, para ela, veio a ser sob a forma do Uno essente.

Contudo, ao passo que tal unidade é para a Consciência infeliz, ainda não é

ela mesma, ainda não é o espírito vivente. A Consciência-de-si singular ainda não

está posta como Consciência-de-si universal; ademais, é ainda uma unidade

imediata, portanto afetada por uma contradição. Exprime-se Hegel:

“Por esta razão, a consciência imutável conserva também em sua própria figuração o caráter e os traços fundamentais do ser-cindido e do ser-para-si, frente à consciência singular. Portanto, em geral, é apenas um acontecer para esta consciência, que o Imutável adquira a figura da singularidade. Também a consciência singular somente se encontra oposta a ele, e assim tem essa relação pela [própria] natureza. Encontrar-se enfim no Imutável lhe aparece, em parte, como produzido por ela mesma – ou ter ocorrido porque ela mesma é singular. Mas de outra parte, essa unidade [com o Imutável] lhe aparece como pertencendo ao Imutável, quanto à sua existência; e a posição permanece nessa unidade mesma”60.

A infelicidade da consciência resulta pelo fato de que a essência da

subjetividade particular, que é agora reconhecida no além configurado, escapa

sempre que a consciência mesma quer captá-la. A Consciência infeliz é, assim, o

sentimento do valor infinito da existência singular. De qualquer modo, o Imutável

revestiu uma figura sensível para a consciência; foi arrastado na dialética do isto

sensível. Pelo fato mesmo de que tomou uma figura, de que se apresentou de modo

sensível à Consciência-de-si, o Imutável desaparece necessariamente e, sob tal

forma, torna-se tão inacessível à consciência quanto o além Imutável. Aquilo que

inicialmente se realiza é a unidade imediata entre o Universal e o Singular; é esse

caráter de imediatez que o afasta da Consciência-de-si.

Paulo Meneses nos explica o motivo do não apreendimento da consciência

para com o Uno essente:

60 HEGEL, FE, § 212, pgs. 161-162.

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“Na experiência que faz a consciência (infeliz), surge o Imutável como sendo o [outro pólo] da consciência e, portanto, afetado de contradição: é representado com a forma que a consciência julga ter: cindido e para-si. (...) Assim, a esperança de tornar-se um só com ele tem de ficar só na esperança, sem realização nem presença, devido ao obstáculo da contingência absoluta e desesperadora que revestiu essa figura que é o fundamento da nossa esperança. Pela natureza que assumiu – de ser singular existente – ocorre que desaparece no decurso do tempo e se situa num espaço distante, definitivamente longe”61.

Portanto, neste segundo momento da oposição da Consciência infeliz, o além

é captado como unido a uma Consciência-de-si, à subjetividade. A unidade entre o

Universal e a singularidade põe o Imutável figurado, o universal concreto, mas

apenas de forma imediata, de modo que a consciência não se elevou ainda ao plano

do espírito. Esta unidade, que é a essência e o objeto da Consciência-de-si, ainda é

posta fora dela, como uma presença, no Uno essente, que ainda não é a imanência

do espírito, pois permanece afetada por uma oposição.

“Com efeito: agora, para essa consciência, o ser-um do singular com o Imutável é essência e objeto; como no conceito, o objeto essencial era o Imutável abstrato e sem-figura. Agora, o que tem de evitar é essa situação do absoluto ser-cindido do conceito. Mas essa consciência deve elevar ao absoluto vir-a-ser-um sua relação inicialmente exterior com o Imutável figurado como [sendo] uma efetividade alheia”62.

Ora, no começo da dialética da Consciência infeliz, a consciência tendia a

absorver a sua singularidade na essência Imutável; depois, em vez do Imutável não-

figurado, quer relacionar-se exclusivamente com o Imutável figurado. Agora, a

cisão atinge o próprio conceito e o movimento da Consciência infeliz vai ser um

esforço para unificar, na singularidade concreta, a exigência de universalidade do

Imutável, ou seja, para dar um conteúdo de unidade plena a seu relacionamento,

inicialmente exterior, com o Imutável figurado. É mais precisamente o que veremos

no próximo tópico.

.

2.3 UNIFICAÇÃO DA REALIDADE COM A CONSCIÊNCIA-DE-SI

61 MENESES, Para ler a Fenomenologia do espírito, p. 70.62 HEGEl, FE, § 213, p. 162.

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Como o Imutável assumiu uma figura singular, a consciência passa a buscá-

lo assim e não mais sem figura. O movimento da consciência singular para alcançar

o ser-um apresenta-se sob três formas:

“1º - como pura consciência;

2º - como essência singular que se comporta ante a efetividade como desejo

e trabalho;

3º - como consciência de seu ser-para-si”63.

Como pura consciência ou em si, a Consciência infeliz tem como objeto a

unidade do Imutável e do singular, mas só tem o sentimento desta unidade; não é

ainda seu conceito, quer dizer, ainda não ultrapassou sua cisão característica. Por

não formar seu sentimento da unidade em conceito, ou seja, por não elevar o puro

pensamento e a singularidade em pensamento autêntico ou puro pensar, ela recai em

seu estado de divisão e de separação consigo. “A consciência, por assim dizer,

apenas caminha na direção do pensar e é fervor devoto [An Denken/Andacht]. Seu

pensamento, sendo tal, fica em um informe badalar de sinos, ou emanação de

cálidos vapores; um pensar musical que não chega ao conceito, o qual seria a única

modalidade objetiva imanente”64.

No fervor devoto a consciência tem apenas um sentimento do Imutável. Tal

sentimento não se possui como uma verdade autêntica, imanente à Consciência-de-

si. A consciência singular reconhece no Uno essente, o Imutável como

singularidade pensante, mas não como singularidade universal. Assim, falta à

Consciência infeliz o pensamento do seu sentimento, a superação da imediatez do

contato entre pensamento e singularidade. Por isso, a Consciência-de-si continua

cindida e infeliz, uma vez que sua essência, a unidade do imutável com o singular,

está num além inatingível, uma verdade com a qual não pode coincidir. Sente-se,

assim, como cisão nostálgica infinita.

Para a Consciência infeliz, o universal concreto realizou-se no Uno essente,

mas como a consciência não compreendeu o sentido da unidade do Imutável com a

singularidade, e como não o pensou conceitualmente, a verdade da consciência

63 Ibidem, § 214, p. 163. 64 Ibidem, § 217, p. 164.

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voltou a cair na separação de sua essência. É o que parece nos indicar Hegel quando

escreve:

“(...) essa essência é o Além inatingível, que foge quando abraçado, ou melhor, já fugiu. Já fugiu, pois de um lado é o Imutável que se pensa como singularidade, e assim a consciência nele alcança imediatamente a si mesma; a si mesma, mas como o oposto do Imutável. Em vez de captar a essência, apenas a sente, e caiu de volta em si mesma; como no [ato de] atingir não pode manter-se à distância como este oposto, em lugar de atingir a essência só captou a inessencialidade”65.

A consciência devota é no seu íntimo, puro sentimento. Sente-se como cisão,

movimento de nostalgia sem fim; tem certeza de ser conhecida pelo Uno essente,

pois também é um singular. Porém sua essência está num Além inatingível. Onde o

procura não se pode encontrá-lo. Procurado como singular, como objeto sensível, já

desapareceu. Sob essa forma, o que a Consciência infeliz vai encontrar é o sepulcro;

este sim, é uma realidade sensível, mas que não pode ser conservado; e a luta por

ele tem de terminar em derrota.

Nos cabe agora considerar o segundo momento da relação da consciência

singular na tentativa de encontrar a unidade como o Imutável. Para si, a Consciência

infeliz volta sobre si e se manifesta agora como negação do aquém, pelo desejo e

pelo trabalho. Mas o que procura agora, com a sua ação, é uma nova maneira de

unir-se com o Imutável. A consciência renuncia a buscar sua essência fora dela

mesma. Então, só poderá objetivar sua certeza de si mesma, pelo desejo, pelo

trabalho e pelo gozo, isto é, pela sua operação no mundo, que parece estar aí, só

para que ela se encontre e se ponha para si como ela é em si. Escreve Paulo

Meneses:

“Assim sucede porque a consciência infeliz só sabe se encontrar como desejosa e laboriosa; não se deu conta de que, para assim se achar, deve-se apoiar sobre a certeza interior de si mesma; nem que seu sentimento da essência é, no fundo, sentimento de si mesma. Mas como não alcançou a certeza desta verdade, seu íntimo é a certeza cindida de si mesma. A segurança que lhe proporcionam o trabalho e o gozo é cindida também: segura mesmo, só está de sua cisão interior”66.

65 Ibidem, § 217, p. 164.66 MENESES, Para ler a Fenomenologia do espírito, p. 72.

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Mas, no âmbito da Consciência infeliz, e pela unidade do Imutável com a

singularidade, o mundo no qual se insere a consciência também aparece como uma

figura do Imutável. De fato, esta realidade efetiva “é uma efetividade cindida em

dois pedaços, tal como a própria consciência: só por um lado é em si nula; mas pelo

outro lado é um mundo consagrado, a figura do Imutável. Com efeito, esse assumiu

em si a singularidade, e por ser universal enquanto é o Imutável, em geral sua

singularidade tem a significação de toda efetividade”67.

Neste momento, o aquém evanescente, tal como a Consciência infeliz, é uma

realidade efetiva cindida em dois pedaços: a nulidade (consciência singular) e o

mundo consagrado (figura do Imutável). Desta forma, toda a existência sensível

torna-se um símbolo e se entrega à consciência como dom do Imutável. Mas, então,

a consciência percebe que sua operação (desejo, trabalho, gozo) só procede dela em

aparência. Põe em prática as capacidades e potencialidades que não são

especificamente suas, mas senão que os deve ao Imutável: “são as faculdades e as

forças – um dom alheio que o Imutável concede igualmente à consciência para que

dele goze”68.

Portanto, a Consciência infeliz experimenta de novo, na sua operação, a

transcendência de sua própria essência; já não tem em si mesma sua própria certeza,

já não tem a autonomia que pretende ter a Consciência-de-si. “Sua certeza de si tem

como verdade um termo transcendente, o que a condena a não ter mais em si mesma

sua própria certeza. As relações entre o senhor e o escravo são aqui reencontradas

no próprio seio da consciência”69.

Dessa forma, a consciência vem a agradecer ao Imutável pelos dons que dele

recebe e pela operação que destes dons resultam; a consciência presta assim,

graças. “Quer dizer: se nega a satisfação da consciência de sua independência, e

transfere a essência de seu agir de si para o além”70. Assim, a consciência perde sua

independência, mas ganha o sentimento de sua unidade com o Imutável;

reconhecendo na prestação de graças, sua dependência do Imutável, humilhando-se

diante dele, a consciência entra em comunhão com ele. 67 HEGEL, FE, § 219, p. 165.68 Ibidem, § 220, p. 166.69 HYPPOLITE, Gênese e estrutura da Fenomenologia do espírito de Hegel, p. 226.70 HEGEL, FE, § 222, p. 167.

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Mas, na verdade, a Consciência-de-si não se despoja realmente de sua

liberdade; ela não se abandonou. De fato, a existência singular não se põe em sua

absoluta liberdade sem renunciar a si mesma. Mas tal renúncia é obra sua. Portanto,

na sua operação, a consciência se põe como para-si e descobre a vaidade deste ser

para-si; põe sua essência no Imutável, mas este ato de por-se fora de si é também ela

mesma. Deste modo, como diz Paulo Meneses, “como desejante, operante, saciada

e agradecida, é mais Consciência-de-si que nunca, já que na própria renuncia de si

mostra-se oposta ao Imutável, como existência singular, que é para si”71.

A verdade da Consciência infeliz será, pois, a consciência que tenta anular a

própria singularidade, para tornar-se uma consciência de si mais profunda. Esta

consciência toma conhecimento da vaidade do seu si mesmo. “Por isso, agir e gozo

perdem todo conteúdo e sentido universais- pois assim teriam um ser-em-si-e-para-

si; e ambos se retiram à sua singularidade, à qual a consciência está dirigida para

suprassumi-la”72. É este o sentido da renúncia de tal consciência e de sua oposição a

sua própria natureza. Mas, como não consegue abandonar de vez suas tendências e

funções naturais, surge uma consciência de culpa e do mal, que gera uma

personalidade “tão infeliz quanto miserável”73.

Contudo, a tentativa de anular a singularidade passa pela mediação do

Imutável, por isso a relação, que é negativa, acaba gerando uma nova unidade

positiva. Pela negação completa de si, a Consciência infeliz acaba encontrando o si

mesmo universal, embora não se saiba ainda como tal. Mas, para isso, torna-se

necessária uma mediação entre a consciência singular e o Imutável, um meio-termo.

Assevera Hegel: “Esse meio-termo, portanto, é tal que representa os dois extremos,

um para o outro, e é ministro recíproco de cada um junto do outro. Esse meio-termo

é, por sua vez, uma essência consciente, pois é um agir que imediatiza a consciência

enquanto tal; o conteúdo desse agir é o aniquilamento – que a consciência

empreende – de sua singularidade”74.

Nessa mediação, a consciência singular se aliena e se aniquila como tal, e é

elevada à universalidade. Com efeito, nega-se como vontade singular e abandona 71 MENESES, Para ler a Fenomenologia do espírito, p. 73.72 HEGEL, FE, §225, p. 168.73 Ibidem, § 225, p. 169.74 Ibidem, § 227, p. 169.

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sua liberdade de decisão: transfere para o mediador sua vontade, decisão e

culpabilidade. É certo que ainda lhe restam os frutos do seu trabalho e o gozo, mas

também renuncia parcialmente a eles. Ainda por cima, presta-se a fazer o que não

compreende, privando-se de sua liberdade exterior e interior; a consciência renuncia

a sua particularidade, reduzindo-o a uma coisa objetiva. Hegel demonstra esse

processo:

“Renuncia à efetividade [1] em parte como à verdade alcançada de sua independência cônscia de si – enquanto a consciência se põe a fazer algo totalmente estranho: [ritual] que se move em representações e fala linguagem sem sentido; [2] em parte, como à propriedade exterior – enquanto abre mão do que possuía, que ganhara pelo trabalho; [3] em parte, como ao gozo possuído – enquanto no jejum e na mortificação torna-o de novo totalmente proibido para si. Através destes momentos (...) ela se priva, em verdade e cabalmente, da consciência da liberdade interior e exterior, e da efetividade como seu ser-para-si. Tem a certeza de se ter extrusado verdadeiramente de seu Eu, e de ter feito de sua consciência-de-si imediata uma coisa, um ser objetivo”75.

Dessa forma, a consciência renuncia a sua própria independência; sua

operação não é mais sua e está superada a condição infeliz que dela resultava. por

esta alienação, realiza em-si uma Vontade Universal. Só que a consciência ainda

desconhece tal realização; só retém o aspecto negativo de sua operação. A unidade

que atinge não se torna conceito de sua operação, nem objeto de sua consciência, a

não ser de forma mediata, - através do mediador. Este lhe assegura que está

reconciliada; mas suas palavras caem numa consciência ainda cindida, que continua

achando que sua ação é uma miséria; que seu gozo é uma dor, que só pode ser

suprassumida num Mais-Além76.

Só numa nova etapa dar-se-á a unidade da consciência (o em-si) e da

consciência-de-si (o para-si). Tal unidade não é outra coisa senão a Razão, isto é, a

certeza da Consciência de ser, na sua singularidade, toda a realidade. É o que

observaremos no próximo capítulo.

75Ibidem, §§ 228 – 229, p. 170.76 Cf. MENESES, pp. 74-75.

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CAPÍTULO 3

A CONSCIÊNCIA INFELIZ COMO ACESSO À RAZÃO

A Fenomenologia do espírito vai do abstrato ao concreto, eleva-se a

desenvolvimentos cada vez mais ricos, mas que sempre assumem em si mesmos os

desenvolvimentos anteriores. Cada um dos conceitos antes explicitados por Hegel é

retomado, refundido e, por assim dizer, repensado num estágio superior do

desenvolvimento da consciência. Tal retomada de todos os momentos abstratos que

se enriquecem progressivamente é característica da própria maneira de pensar de

nosso filósofo, a tal ponto que ele próprio experimenta a necessidade de voltar atrás

incessantemente e resumir as etapas já transpostas para mostrar que voltamos a

encontrá-las com um novo sentido e em um outro patamar no plano da consciência.

Tal procedimento de Hegel faz da Fenomenologia um verdadeiro sistema

orgânico. Quando um primeiro desenvolvimento é realizado, nasce um elemento

novo, mas neste novo elemento o desenvolvimento anterior vem assumido e adquire

uma significação mais rica e mais condensada, e assim até o término da obra em

que deve apresentar-se a Fenomenologia em sua riqueza concreta; por seu turno, tal

riqueza se torna um elemento incomplexo no seio do qual a Ciência continuará seu

desenvolvimento.

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Dentro deste encadeamento dialético fenomenológico podemos observar que

a consciência através da certeza sensível, percepção e entendimento nos conduz à

Consciência-de-si, e a Consciência-de-si desenvolvida acaba por nos levar à Razão.

No primeiro caso, a consciência é em si mesma abstrata, universal, somente seu

conteúdo é concreto, mas tal conteúdo é para ela. No segundo caso, decerto que a

consciência tornou-se concreta, é para si mesma o conteúdo, mas está limitada à

individualidade, ao subjetivismo que aspira a liberdade sem atingi-la

verdadeiramente. A realidade permanece exterior para ela. É somente na figura do

Imutável, na Consciência infeliz, que se realiza a unidade do universal e do

singular. Mas tal unidade está além da consciência; de fato, é a unidade da

consciência e da Consciência-de-si que se realiza num terceiro momento, o da

Razão (Vernunft) ou a certeza e a verdade da Razão, que é a identidade do

Pensamento e do Ser. Neste momento, a consciência retorna sobre si mesma certa

de ser toda a Verdade.

Mas o que é Razão, propriamente dita, para Hegel?

“A razão é a certeza da consciência de ser toda a realidade”77. A razão vem a

ser a síntese dialética da consciência e da Consciência-de-si.. Para a consciência, a

realidade das coisas era somente objetiva, era em-si; para a Consciência-de-si, era

somente um meio com vistas à satisfação de seus desejos. O exterior era para-si,

não em-si. A Razão reúne numa unidade arquetípica esses dois momentos. No ser-

em-si, elucida sua verdade; na realidade, faz a experiência de si.

Para Hegel, a Razão é a identidade da Consciência-de-si como pensamento,

com suas determinações ou manifestações, que são as coisas e os acontecimentos; é

a identidade de pensamento e realidade. “É a certeza de ser toda a realidade”. Como

Consciência-de-si a Razão nunca é formal: é sempre idêntica a realidade.

A Consciência-de-si se reconhece em seus objetos, sem apreender ainda,

porém, sua unidade com a consciência em si enquanto espírito, que é, ao mesmo

tempo, substância absoluta e sujeito absoluto. Ao dizer que a Consciência-de-si é

Razão78, Hegel diz que aquela está suprassumida, como momento, na Razão. O

mesmo vale para a consciência (do objeto): ela está suprassumida, como momento, 77HEGEL, Fenomenologia do espírito, § 233, p. 173.78 Ibidem, § 232, p. 172.

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na consideração racional da realidade. Tanto a Consciência-de-si como a

consciência do objeto são, aqui, modificadas: a Consciência-de-si deixa de buscar

autonomia e liberdade à maneira da finitude, dado que ela se reconhece como a

realidade pura, não mais podendo afirmar, contra esta, sua autonomia; a consciência

do objeto deixa de ser consciência de uma realidade independente da Consciência-

de-si.

Resumindo o processo acima: a consciência considera o objeto como sendo

somente um outro que ela, ou seja, um ser-em-si. A Consciência-de-si é a

descoberta que se faz através do outro. Essa Consciência-de-si é nesse momento

consciência singular. A Consciência-de-si singular, na sucessão dialética de suas

figuras, torna-se universal. A Consciência-de-si que deseja, na dialética do sensível,

transforma-se em uma Consciência-de-si que pensa. O conteúdo da consciência é

agora não só o em-si, o outro, mas ainda o para-si, ela própria. O saber do objeto

torna-se saber-de-si e o saber-de-si é então saber do ser-sem-si. Pensar e ser, ser e

pensar são a mesma coisa, a consciência chegou ao momento da Razão – pensar-se

a si próprio e pensar o mundo é um e o mesmo ato. A partir desse momento, a

consciência, enquanto Razão, passa a pensar a realidade, assumindo todas as

conseqüências dessa sua condição.

Como vimos nos capítulos anteriores, a verdade da liberdade estóica e cética

exprime-se na Consciência infeliz, sempre cindida no interior de si mesma,

consciência ao mesmo tempo da certeza absoluta de si e do nada de tal certeza. A

Consciência infeliz é a verdade de toda a dialética da Consciência-de-si; é o

sentimento da dor da subjetividade que já não tem, em si própria, sua substância.

Manifestação da subjetividade, a Consciência infeliz recambia-se, pelo movimento

da extrusão de si, à consciência da universalidade. Opondo-se a si mesma, a

Consciência infeliz se desenvolve e só reencontra-se após um momento de

separação e oposição. Assim, a Consciência-de-si torna-se Razão, ou seja, é por

meio da extrusão de sua singularidade que a Consciência infeliz se eleva à

universalidade da Razão.

O próprio Hegel desenha, de maneira bem clara, todo esse desenvolvimento

desde a Consciência infeliz até a Razão, no capítulo sobre a Frenologia:

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“A Consciência-de-si infeliz extrusava de sua independência e lutava para converter seu ser-para-si numa coisa. Retrocedia, com isso, da consciência-de-si à consciência – isto é, à consciência para a qual o objeto é um ser, uma coisa. Mas o que é a coisa é a consciência-de-si; ela é assim a unidade do Eu e do ser, a categoria. Quando o objeto é determinado desse modo para a consciência, ela tem razão. A consciência, como também a consciência-de-si, é em si propriamente razão: mas só pode dizer que tem razão a propósito da consciência para a qual o objeto se determinou como categoria”79.

A Consciência infeliz nos mostrou a completa extrusão da Consciência-de-si

singular. Para a Consciência infeliz, que não é o sentimento doloroso da

negatividade cética, o ser-em-si era o além dela própria. Incapaz de sair de sua

subjetividade, sentia ao mesmo tempo sua insuficiência; ademais, seu além se

apresentava como o Imutável que conciliaria em si a subjetividade e a objetividade,

a singularidade da Consciência-de-si e a universalidade do em-si. Assim, nele, a

Consciência-de-si singular poderia se reencontrar e ganhar ao mesmo tempo a

universalidade, tornar-se Consciência-de-si universal permanecendo Consciência-

de-si.

A Consciência-de-si simultaneamente universal e singular, que serve de

transição à Razão, é o mediador, que por seu intermédio, a consciência singular se

eleva verdadeiramente à universalidade. “Nesse [processo] veio-a-ser também para

a consciência sua unidade com esse universal. Unidade que para nós não incide

mais fora dela – já que o singular suprassumido é o universal. E como a consciência

se conserva a si mesma em sua negatividade, essa [unidade] constitui na consciência

como tal a sua essência”80. O meio termo entre o Universal e o Singular, o em-si e o

para-si, aqui representado pelo mediador, é a unidade que tem um saber imediato

dos dois extremos e os coloca em relação.

Tal é a Razão: a certeza que tem a consciência de ser toda a realidade, toda a

verdade; a certeza de que a verdade não se encontra além, mas se apresenta de

modo imediato à consciência. Entretanto, semelhante certeza não era possível senão

pelo fato da alienação da consciência singular. É a alienação que eleva a

Consciência-de-si à universalidade: a consciência se mantém em sua própria

negatividade: o Si se torna o Universal, mas o Universal é posto como o Si por um 79 Ibidem, § 344, p. 246.80 Ibidem, § 231, p. 172.

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choque estranho81. Ambos os termos fundamentais da dialética hegeliana, o Singular

e o Universal, o Si e o ser-em-si, intercambiam suas determinações, de modo que a

verdade se torne subjetiva e a subjetividade adquira uma verdade. Esta unidade

imediata, resultado de toda a dialética anterior, apresentando-se perante a

consciência como uma nova figura - eis a Razão - momento particular no

desenvolvimento geral da consciência ou na Fenomenologia do espírito.

O mundo, então, se oferece à consciência como realidade presente, efetiva,

não mais como um aquém ou como um além. Nesse mundo, a consciência sabe

como pode encontrar-se a si mesma, empreenderá o conhecimento de tal realidade.

“Só agora - depois que perdeu o sepulcro de sua verdade e que aboliu a abolição de sua efetividade, e [quando] para ela a singularidade da consciência é em si a essência absoluta – descobre o mundo como seu novo mundo efetivo. Agora tem interesse no permanecer desse mundo, como antes tinha somente no seu desvanecer; pois seu subsistir se lhe torna sua própria verdade e presença. A Consciência tem a certeza de que só a si experimenta no mundo”82.

Anteriormente, a consciência procurava salvar-se do mundo: trabalhava o

mundo ou procurava refugiar-se dele em si mesma. Sua preocupação essencial era a

reconciliação com o Imutável, que para ela estava sempre além da presença. Agora,

quer encontrar-se neste mundo e nele buscar sua própria infinitude. O conhecimento

da realidade será, para a consciência, um conhecimento de si, isto “por ser uma

presença e subsistência sua, por estar certa de fazer nele uma experiência de si

mesma”83.

Mais tarde, dissertando a respeito da religião, Hegel parece resumir a

significação da Consciência infeliz, indicando a passagem desta à Razão:

“(...) a consciência-de-si, que na figura da consciência infeliz tem sua implementação; - [era] somente a dor do espírito lutando por chegar de novo à objetividade, mas sem consegui-la. A unidade da consciência-de-si singular e de sua essência imutável, a que se dirige, permanece portanto um além da consciência infeliz. O ser-aí imediato da razão, que para nós brota dessa dor e suas figuras peculiares, não tem

81 Ibidem, § 238, pgs. 177-178.82 Ibidem, § 232, p. 173.83 MENESES, Para ler a Fenomenologia do espírito, p. 78.

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religião (justamente por ser a Razão toda ela presença imediata)84 : porque sua consciência-de-si se sabe – ou se busca – no imediato Presente”85.

Assim, a consciência que antes mantinha frente ao objeto uma atitude

negativa e temerosa, por ver no ser-outro uma ameaça, contra a qual procurava

manter sua liberdade, às custas do mundo e de sua própria singularidade, que se

manifestavam como negação de sua essência, agora toma uma atitude positiva, uma

vez que sabe que toda a realidade é ela mesma. Seu pensamento é que é a realidade

efetiva. Por isso, no capítulo da Fenomenologia intitulado “Certeza e verdade da

Razão”, Hegel encara a Razão como a expressão do novo comportamento da

Consciência diante da efetividade.

84 Grifo nosso.85 HEGEl, FE, § 673, p. 458.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como pudemos observar, a Consciência infeliz é o resultado da dialética da

Consciência-de-si. A característica da cisão, implícita na autocontradição do

ceticismo, torna-se explícita na Consciência infeliz que é a Consciência-de-si como

cindida e envolvida inteiramente na contradição. Ou seja: a Consciência infeliz

descobre tal contradição: se vê a si mesma como internamente duplicada; eleva-se

acima da contingência da vida e capta-se como certeza imutável e autêntica; mas,

por outro lado, se vê mergulhada no ser aí determinado, como consciência mutável

e sem essência, e ela mesma se percebe como sendo essa contradição, essa íntima

cisão.

Vemos então que a Consciência infeliz tem apenas a consciência

fragmentada de si, porque procura encontrar sua unidade no Além Imutável, mesmo

estando instalada no aquém mutável. A Consciência-de-si aparece como

Consciência infeliz, aspirando reencontrar, na reconciliação, aquela unidade de si

mesma e da consciência Imutável, que nela é apenas uma aspiração subjetiva.

O resultado da dialética da Consciência-de-si – a Consciência infeliz - pode-

se, então, expressar-se como reconciliação da Consciência-de-si consigo mesma.

Contudo, mesmo sendo elemento necessário, a Consciência-de-si não basta-se como

elemento suficiente dessa reconciliação. Tem que ascender a outro plano da

Fenomenologia.

Assim, pois, o processo dinâmico da Consciência infeliz, expressa na sua

totalidade, o desenvolvimento da Consciência-de-si que chega a renunciar a si

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mesma. Mas, segundo Hegel, esta negação da Consciência-de-si, tem como

resultado um novo patamar no plano da Fenomenologia, a Razão. A Consciência-

de-si não é mais simplesmente um em-si. Passou a ser o em-si para-si. Portanto,

uma substância, uma realidade, que é igualmente Consciência-de-si, que se põe a si

mesma como aquilo que é.

Isso só foi possível pelo fato da Consciência infeliz recambiar-se, pelo

movimento da extrusão de si, à consciência da universalidade. Opondo-se a si

mesma, a Consciência infeliz se desenvolve e só reencontra-se após um momento

de separação e oposição. Assim, a Consciência-de-si torna-se Razão, ou seja, é por

meio da extrusão de sua singularidade que a Consciência infeliz se eleva à

universalidade da Razão.

Podemos dizer que há uma certa tendência especulativa pela finitude do

espírito na contemporaneidade, pela sua fragmentação, pela angústia e dor da

separação de sua unidade, pela contingência absoluta do espírito. Tal tendência

apóia-se, de fato, numa análise lúcida e bem argumentada da finitude e

fragmentação do Espírito, tanto no plano das atividades teóricas (Filosofia), quanto

no das atividades práticas (arte, religião, ética, política). Neste sentido, podemos

valorizar as análises fenomenológicas de Hegel sobre a Consciência infeliz que

parece ter sopros no desenvolver do espírito atual.

No âmbito da Fenomenologia, a reconciliação da Consciência-de-si consigo

mesma, a partir da suprassunção da sua cisão interna na figura da Consciência

infeliz, não consiste no apaziguamento da dor ou da angústia da finitude da

Consciência-de-si, nem na eliminação do caráter dramático da Consciência infeliz,

mas na captação pelo pensamento, do sentido profundo da finitude e do trágico da

Consciência , juntamente na sua conexão dialética com a vida do Absoluto.

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