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26 1 – Definindo um conceito Por uma autêntica e verdadeira religião profética, queremos afirmar toda e qualquer manifestação solitária ou em grupo, de cunho sócio, religioso ou político, que se coloca contra a ordem estabelecida pela classe dominante e que visa a uma mudança de situação. Conforme veremos, ela não se circunscreveu apenas nos limites do reino norte- israelita, mas também constataremos que ela também se fez presente em muitas das regiões vizinhas a Israel. Mas diferentemente dos povos vizinhos, Israel irá desenvolver uma religiosidade com algumas nuances bem interessantes e profundamente diferentes. É essa diferença entre Israel com relação aos seus vizinhos que torna a religião norte- israelita tão peculiar. Sua singularidade está no fato de que Israel não se deixa moldar pelo imaginário religioso vizinho, mas, numa simbiose entre a fé professada e a vida concretamente vivida, que Israel irá adotar um único Deus, com a intenção de somente a ele adorar e servir. Esta exclusividade na adoração de um único Deus é que fará de Israel um povo com características bem distintas em relação aos demais povos. E como conseqüência dessa exclusividade, conforme afirma Werner Schmidt, é possível escrever

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1 – Definindo um conceito

Por uma autêntica e verdadeira religião profética, queremos afirmar toda e

qualquer manifestação solitária ou em grupo, de cunho sócio, religioso ou político, que se

coloca contra a ordem estabelecida pela classe dominante e que visa a uma mudança de

situação.

Conforme veremos, ela não se circunscreveu apenas nos limites do reino norte-

israelita, mas também constataremos que ela também se fez presente em muitas das

regiões vizinhas a Israel. Mas diferentemente dos povos vizinhos, Israel irá desenvolver

uma religiosidade com algumas nuances bem interessantes e profundamente diferentes. É

essa diferença entre Israel com relação aos seus vizinhos que torna a religião norte-

israelita tão peculiar. Sua singularidade está no fato de que Israel não se deixa moldar

pelo imaginário religioso vizinho, mas, numa simbiose entre a fé professada e a vida

concretamente vivida, que Israel irá adotar um único Deus, com a intenção de somente a

ele adorar e servir. Esta exclusividade na adoração de um único Deus é que fará de Israel

um povo com características bem distintas em relação aos demais povos. E como

conseqüência dessa exclusividade, conforme afirma Werner Schmidt, é possível escrever

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uma história de Israel a partir dessa premissa básica: Israel adora um único Deus e tem no

primeiro mandamento toda a expressividade dessa exigência10.

Essa religião presente no Antigo Testamento, como veremos, estende suas raízes

ao longo de toda a escritura vétero-testamentária. Desde o período tribal, passando pelo

regime monárquico, tanto no norte quanto no sul, bem como também pelo movimento

pós-exílico – cunhado pelo termo: judaísmo – até culminar no Novo Testamento, com a

vinda de Jesus Cristo.

Essa religião nascida junto às tribos localizadas no reino do norte de Israel irá

plasmar o movimento profético norte- israelita, bem como também, posteriormente, o

movimento profético jerusolimitano. Uma peculiaridade dela é que ela não está atrelada

ao poder. Muito pelo contrário. Porque desvinculada de toda sujeição ao poder

dominante, ela se sente livre para se impor e fazer frente a este mesmo poder,

principalmente nos momentos de crise. É nesses momentos, que como veremos, surgiram

no cenário religioso norte-israelita profetas como Amós e Oséias. Ele s testemunham de

modo inequívoco a força dessa religiosidade.

2 – Análise da trajetória autonômica do Reino do Norte – Israel

Este projeto de pesquisa visa estabelecer os aspectos mais marcantes da trajetória

da monarquia norte- israelita, no tocante à tríade: estado – religião – profecia. Para isso,

submeterei a pesquisa entre estes dois marcos: Ex 20,22-23,33 (Código da Aliança) e Os

9,1ba que servirão como pontos de partida e de chegada, respectivamente.

Fazendo um recorte de caráter transversal ao longo de toda trajetória existencial

da monarquia norte- israelita, procurarei analisá-la segundo o conceito da autonomia .

Segundo encontramos nos dicionários, o termo autonomia etimologicamente vem do

grego autos: “si mesmo” e nomos : “lei”. Portanto, autonomia, dentro do meu projeto de

pesquisa terá o significado de: capacidade de dar a si mesmo, normas com vistas à

10 Werner H.Schmidt, A fé do Antigo Testamento, São Leopoldo, Sinodal, 2004, p.138.

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práxis, e assumir a própria vida em função dessa posição11. Mais especificamente, o

projeto visa estabelecer a “trajetória autonômica” da monarquia norte- israelita, isto é,

aqueles momentos em que Israel teve autonomia suficiente para ser dono de seu próprio

destino, – expandir suas fronteiras, desenvolver o seu comércio, estabelecer suas leis,

seus mais nobres ideais, enfim, sua moral e sua ética – bem como também, aqueles

momentos em que se viu oprimido e subjugado por outros estados e nações, perdendo

assim, sua tão árdua e difícil conquista: sua independência e, consequentemente sua

liberdade, mas, acima de tudo, desenvolver um estudo de como Israel foi desenvolvendo

suas leis, normas e regras de vida, nos diferentes períodos políticos pelos quais passou,

evidenciando assim, que a grande crise que antecedeu à sua destruição em 722 a.C. se

deve, basicamente, à falta de coerência entre os valores – que serviram de base para a

formação desse povo – e a arrogância e egoísmo de seus líderes, que desprezando essas

leis, agiram autonomamente em benefício próprio.

Por isso, o termo “autonomia” será complementado pelo conceito “política”.

Segundo E.Chiavacci o conceito “política pode ser definido como:

Uma estrutura presente em um grupo com a função de regular e coordenar as diversas finalidades e funções de seus membros (indivíduos ou associados) do grupo, e o modo de funcionar desta estrutura [...] a atividade encaminhada para determinar os critérios ou valores básicos de regulamentação da vida global do grupo, as finalidades primárias e intermediárias que precisam ser procuradas, os instrumentos para sua consecução.12

A partir destas duas definições conc eituais de “autonomia” e “política”, pretendo

submeter todo o projeto de pesquisa ao termo conjunto: “autonomia política”. Pela junção

destes dois conceitos especificados acima, conclui-se por “autonomia política”:

11 Mariano Moreno Villa (org), Dicionário de pensamento contemporâneo, São Paulo, Paulus, 2000, p.65. 12 Marciano Vidal (org), Dicionário de teologia moral, São Paulo, Paulus, 1997, p.974.

A capacidade que um determinado grupo tem de

definir e estabelecer que critérios ou valores

básicos vão regular a vida global do grupo

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A partir desta pragmática definição, é possível iniciar o desenvolvimento dos

diferentes períodos pelos quais Israel passou ao longo de sua história, sob a ótica da

autonomia política.

Estes dois marcos, citados acima, serão analisados nos capítulos subseqüentes,

conforme esquema abaixo:

- Código da Aliança13: Ex 20,22 – 23,33 : conjunto de regras, normas e leis, que

em parte, nasceram da experiência amarga, vivida por diferentes grupos na periferia das

cidades-estado cananéias no período de Amarna. São aquelas pessoas, que por não terem

outra alternativa, aprenderam a duras penas, o valor da compaixão e da solidariedade.

Partilhando com seus vizinhos o pouco que lhes sobrava daquilo que as cidades-estado

tributavam, eles socorriam às necessidades uns dos outros, para que assim, pudessem

continuar a sobreviver e a sonhar, na esperança de dias melhores.

A situação de pauperização a que foram submetidos como também pela

desestabilização das cidades estados, fez nascer dentro de muitos deles uma força de

resistência e insubmissão, que culminou em fuga e num destino incerto na região

montanhosa da palestina.

13 Conforme Georg Fohrer, História da religião de Israel, São Paulo, Ediç ões Paulinas, 1983, p.143-167, “dificilmente se pode determinar especificamente que leis devem ser atribuídas ao período anterior ao estado. De qualquer modo, o assim chamado Código da Aliança como um todo (Ex 20,24 – 23,9) não data desse período ... surgiu, mais provavelmente, no Reino de Israel (Norte) durante o século IX talvez no contexto da revolução de Jeú. Por sua vez, Frank Crüsemann, A torá , Petrópolis, Vozes, 2002, p.162, afirma que “temas centrais e repetidos no código como a lei dos escravos e o direito dos estrangeiros (gerim) não podem ser localizados no período pré-estatal ... o Código da Aliança sempre aparecerá como uma forma tardia e sobretudo como uma coleção mais ou menos casual e confusa de tradições e formas de direito diferentes”. Já Roland de Vaux, Instituições de Israel no Antigo Testamento, São Paulo, Vida Nova, 2004, p.176-177, defende a tese de que “não se pode assegurar que o Código da Aliança, tal como o temos atualmente, seja a lei promulgada por Josué em Siquém, contudo, pode-se afirmar que o estudo interno e os testemunhos da tradição concordam em datar este código como sendo dos primeiros tempos da instalação em Canaã, antes da organização do Estado. É a lei da federação das tribos”.

CÓDIGO DA ALIANÇA Os 9,1ba

TRAJETÓRIA AUTONÔMICA DO REINO DO NORTE - ISRAEL

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Na verdade, o Código da Aliança não são normas que foram impostas de fora ou

por algum grupo com a finalidade de obter algum tipo de vantagem. Não. O Código da

Aliança são critérios e valores morais que nasceram com o povo simples da roça, ou

talvez quem sabe, com os pastores nômades, que pelo tipo de vida que levavam, para

sobreviver, necessitaram desenvolver essas virtudes.

- Os 9,1ba: estabelece o limite da pesquisa, no sentido de que o sonho de um

estado autonomamente político, segundo o “projeto de Deus”, chega ao seu término.

O profeta Oséias sem meias palavras vai ao cerne da crise político-social e

denúncia o(s) chefe (s) de Israel: “Eis que te prostituíste para longe de teu Deus”.

Esta palavra profética na conclusão deste projeto de pesquisa será interpretada da

seguinte forma:

Penso que esta é uma chave de leitura muito importante para a compreensão de

todo o desenvolvimento do projeto. Antecip á-la ao leitor facilitará a compreensão das

portas hermenêuticas que pretendo abrir, a fim de poder elucidar e justificar o

desenvolvimento de meu projeto de pesquisa.

Portanto, como veremos, os critérios e valores morais presentes no Código da

Aliança, não desapareceram. Mais do nunca, estavam presentes e de certa forma,

continuaram vivos e alimentavam sonhos e esperanças de todos aqueles, que para fugir à

destruição assíria de 722 a.C., não tiveram outra solução, senão descer para a região de

Judá, e lá se juntar àqueles que também viviam igualmente esses valores.

“Eis que te prostituíste para longe do Código da Aliança”.

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Assim, o tribalismo, com veremos graficamente abaixo, não morreu, mas

continuou vivo.

Obs/. Na verdade, baseado, como veremos, nos mais recentes dados da pesquisa

arqueológica, esta “monarquia unida”, como é narrado na Bíblia, nunca existiu, por que

nunca existiu um império davídico-salomônico. O que pode ter existido ou acontecido foi

uma tentativa, a partir de Judá, de unificar as duas regiões (norte e sul) num só estado.

Mas isso, se ocorreu, foi num período bem posterior. Esta “monarquia unida”, na

verdade, foi uma idéia criada pelo redator da OHD, que serviu como carro-chefe, para

justificar seu elaborado projeto teológico-político.

TRIBALISMO

MONARQUIA

UNIDA

REINO DO NORTE - ISRAEL -

REINO DO SUL - JUDÁ -

P A T R I A R C A S

E G I T O

DESERTO

Cronolgia bíblica Onde podem ser destacados 3 períodos bem distintos

conforme a ótica do redator da OHD

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Mas, como veremos abaixo, pode ser traçado outro gráfico com uma cronologia e

períodos bem diferentes, a partir dos mais novos dados da pesquisa arqueológica.

Obs/. A “monarquia do sul (Judá), quase que sem nenhuma expressividade no

cenário palestinense em relação à monarquia do Reino do Norte (Israel), tentará cooptar o

apoio e a participação dos remanescentes do norte, no seu projeto de consolidação

política, somente depois de 722 a.C., após a destruição da capital do Reino do Norte,

Samaria, pelos Assírios.

Mas, neste exato momento se fazem pertinentes algumas perguntas:

- este conjunto de leis, normas ou regras de vida se mantiveram vivas na vida das

comunidades tribais?

- o impulso para viver esses critérios e valores morais diminuiu ou aumentou ao

longo de toda a trajetória autonômica de Israel?

- como e quando esses valores foram associados à religião?

- será que em determinados momentos houve dificuldades em vivenciá- los?

- com a instauração da monarquia é plausível dizer que esses valores que eram

vividos de forma espontânea quando necessário, se tornam agora uma premente

TRIBALISMO

SOCIEDADE IGUALITÁRIA SEM IDEALISMOS E

UFANISMOS

REINO DO NORTE (ISRAEL)

REINO DO SUL (JUDÁ)

722 a.C.

E X Í L I O

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necessidade, ou melhor, uma prioridade axiológica a ser vivida pelos membros das

comunidades tribais?

- como os profetas, tais como Amós e Oséias, interpretaram essas regras?

Bem, são essas e muitas outras perguntas que, por hora, ficarão em suspense,

tendo, no momento oportuno, com o desenvolvimento da pesquisa, o devido

esclarecimento.

2.1 – Período tribal: Israel pré -monárquico

Antes de entrar propriamente no assunto deste tópico, convêm fazer uma

explanação de como se encontrava a região chamada de crescente fértil, mais

especificamente a região de Canaã antes do início dessa maravilhosa experiência de

vivência comunitária que se traduziu numa sociedade igualitária: socialmente política e

politicamente correta.

2.1.1 – Análise da conjuntura social, política e econômica no crescente fértil

dos séculos XV – XIII a.C.

Lançando um olhar panorâmico por sobre toda a região do crescente fértil a partir

do século XV a.C., percebe-se uma alternância de domínio por parte da política

imperialista de diferentes impérios, bem como também, um vácuo desse mesmo poder e

domínio, dando assim, a possibilidade de algumas cidades-estado obterem certa

autonomia política, no corredor siro-palestinense. Pois, como afirma Gottwald14:

[...] as unidades básicas feudais, articuladas como cidades-estado em Canaã, eram autônomas e altamente competitivas visto que a sua única ligação estável situava -se no controle imperial egípcio abobadante que era, pela sua própria natureza, muitas vezes excessivamente nominal. Existiu uma razão inversa entra suserania egípcia e a autonomia cananéia: quanto mais forte a presença egípcia, mais fraca as alegações de independência cananéias e mais “harmonioso” o quadro de assuntos políticos; quanto mais fraca a

14 Norman K.Gottwald, As tribos de Iahweh: uma sociologia da religião de Israel liberto 1250-1050 a.C., São Paulo, Paulinas, 1986, p.401.

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presença egípcia, mais virulentas as alegações competitivas das múltiplas autonomias cananéias e mais “desagregadora” a aparência da vida política.

Com a ascensão do faraó Amenófis I (1527 – 1506), o Egito inicia seu novo

império. Seu exército avança até a Ásia Menor, em perseguição aos Hicsos, que nos dois

séculos anteriores (1730 – 1580) haviam penetrado até no norte de seu território, fazendo

com que os egípcios tivessem que recuar até os extremos da região de Tebas. Essa

expansão militar fazia parte de uma nova reorganização geopolítica dos faraós, mas, que

com o passar dos anos foi se afrouxando, a ponto de se contentarem com uma relativa

autonomia política no corredor siro-palestinense. Fazia parte de sua estratégia política

manter a região dominada através de pequenos dinastas ou príncipes que governavam

suas cidades-estados como vassalos, tendo a obrigação de pagar regularmente

determinados tributos.

Com o surgimento de novos impérios vindos do leste e do norte asiáticos, o

império egípcio se vê forçado a restringir seu campo de domínio apenas ao corredor siro-

palestinense.

Graças às recentes descobertas arqueológicas na região de El Amarna, junto às

margens do Rio Nilo, distante 300 km ao sul de Cairo, em 1887 foi descoberto uma

coleção de tabuinhas contendo diversas correspondências diplomáticas dirigida a

Amenófis III e a seu filho Amenófis IV, pelos dinastas e príncipes vassalos das cidades-

estado cananéias. Nelas, os príncipes se queixam de que eles já não estão conseguindo se

impor em suas cidades-estado, pois constantemente eles são alvos de ataques de

determinados bandos, chamados de “hapirus”, bem como, são obrigados a conter diversas

rebeliões de seus súditos, que descontentes se revoltam e fogem, deixando assim, os

pequenos feudos sem condições de sobrevivência.15

15 Ao todo são “313 cartas trocadas entre os príncipes da Síria, da Fenícia e da Palestina com a corte egípcia”. Elas nos fornecem uma breve visão de como andava a situação política em Canaã durante o século XIV. Como pode-se notar, a situação esteve muito confusa. Algumas destas inscrições se acham presentes no livro: VV.AA., Israel e Judá: textos do Antigo Oriente Médio , São Paulo, Paulinas, 1985, p. 24-32. Conforme Norman K. Gottwald, As tribos de Iahweh ..., p.402: “os textos de Amarna até agora só de modo imperfeito são interpretados, tanto por causa do seu caráter ocasional em cartas, como também por causa dos numerosos termos e idiotismos cananeus utilizados pelos escribas”.

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Com a subida ao trono dos faraós ramessidas (séculos XII – XI), o Egito, já sem

força política e militar, será completamente reduzido às terras do Nilo, perdendo por

completo sua influência na Ásia Menor. Esse recuo se deve em parte ao surgimento dos

chamados “povos do mar”. 16

Os filisteus, como eram conhecidos dentre esses “povos do mar” dominaram toda

a planície costeira a sudoeste de Canaã, desde Gaza no sul até Jope no norte. Conforme

Gottwald observa é possível uma reconstrução – através de textos extra bíblicos e a

diversos achados arqueológicos17 – suficiente “para estabelecer com segurança o fato de

que os filisteus surgiram em Canaã como herdeiros do imperialismo egípcio e do

feudalismo cananeu das cidades-estado”18.

Sua autonomia política, porém, será paulatinamente ameaçada com a ascensão da

monarquia israelita (cf. 2 Cr 26,6; 28,18) e, definitivamente extinta com a entrada em

cena de um novo império no final do século VII a.C.. Depois da queda do império assírio,

os filisteus se deram conta, de que estavam bem no meio de um grande conflito. Estavam

nada mais nada menos, do que entre o Egito e a Babilônia, que terminaria por ganhar a

hegemonia em toda a região. Por volta do ano 600 a.C., as cidades filistéias foram

destruídas durante as campanhas militares de Nabucodonosor, que assim, assume o

controle do corredor siro-palestinense.19

Como é de se notar, a luta pela autonomia política do corredor siro-palestinense

sempre esteve na mira dos diferentes imperadores, principalmente dos faraós egípcios,

pois para eles, o corredor era naturalmente o único meio de acesso ao seu território vindo

pelo norte, bem como também, o único meio de passagem entre África e a Mesopotâmia.

16 Amihai Mazar relata que “a fonte mais significativa com relação à chegada desses povos são os monumentais relevos e inscrições nas paredes do templo mortuário de Ramsés III em Medinet Habu (Tebas), onde as batalhas contra esses povos durante o oitavo ano de seu reinado estão documentadas”. Arqueologia na terra da Bíblia: 10.000 – 586 a.C., São Paulo, Paulinas, 2003, p.297. 17 Conforme Amihai Mazar, Arqueologia na terra ..., p.297-322: “a chegada e o assentamento daqueles indivíduos étnicos coletivamente denominados pelos estudiosos de ‘povos do mar’ é um dos mais fascinantes episódios da Idade do Ferro I no Levante”. 18 Norman K.Gottwald , As tribos de Iahweh ... , p.418. 19 Amihai Mazar, Arqueologia na terra ..., p.503.

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Assim, seu controle era de vital importância como via de comércio entre as duas grandes

regiões, bem como também, um importante entroncamento para a cobrança de tributos

das diferentes caravanas que por ali circulavam constantemente. Sendo assim, seu

controle sempre esteve nos objetivos de todos, não só dos grandes impérios, mas também

era de suma importância para os governantes das pequenas cidades-estado presentes

naquela região.

Abaixo, segue uma tabela contendo os diferentes períodos arqueológicos com

suas respectivas cronologias.

Tabela 1 – Períodos Arqueológicos20

Idade do Bronze antiga 3500 – 2200 a.C.

Idade do Bronze intermediária 2200 – 2000 a.C.

Idade do Bronze média 2000 – 1550 a.C.

Idade do Bronze posterior 1500 – 1150 a.C.

Idade do Ferro I 1150 – 900 a.C.

Idade do Ferro II 900 – 586 a.C

2.1.2 – Da força que brota da dor e da sofrimento nasce um povo novo

Aqui mais do que em qualquer outro lugar do meu projeto de pesquisa, devo fazer

algumas opções, pois realizar uma síntese dentre as diversas teorias que tentam fazer uma

reconstrução da história do Israel pré-monárquico não é trabalho fácil. Partir somente

dos dados bíblicos é impossível. Fazê-la com a ajuda dos manuais tradicio nais21 como “A

História de Israel” de John Bright ou de Georg Fohrer também não dá, pois são obras

totalmente recusadas nos círculos acadêmicos. Sendo assim, não me resta outra opção, se 20 Amihai Mazar, Arqueologia na terra da Bíblia: 10.000 – 586 a.C., São Paulo, Paulinas, 2003, p.51. 21 Mas é claro e óbvio que nem tudo aquilo que estes homens escreveram contraria os dados da pesquisa atual. Existem muitos trabalhos de base de boa qualidade.

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não lançar mão, dos atuais trabalhos desenvolvidos pelos mais recentes pesquisadores22

que, unindo criteriosidade metodológica ao estudo dos dados levantados, principalmente

pela pesquisa arqueológica, bem como também por outras disciplinas, tais como a

antropologia e a sociologia, tentar reunir as propostas mais plausíveis, de acordo com o

objetivo por mim buscado.

Não é tarefa fácil, pois mesmo dentro do ambiente acadêmico existem muitas

divergências. Muitas são as teorias, e algumas bem complexas, para explicar o

surgimento do Estado de Israel como uma nação politicamente estabelecida. Os relatos

bíblicos (cf. Js 1-12) sobre a aparição de Israel no cenário canaãnita não coincide com os

dados arqueológicos levantados mais recentemente. Há uma discrepância que, para os

menos eruditos nas ciências bíblicas, toda essa situação provoca um sentimento de

angústia e desespero, pois, aquilo que tínhamos como certo e seguro, as ciências estão

colocando à prova e, assim por sua vez, colocando em cheque algumas dessas verdades

que possuíamos como fundamentos de nossa fé, sagradas e reveladas por Deus.

a) As diferentes teorias

Conforme Gottwald apresenta em seu livro “As tribos de Iahweh: uma sociologia

da religião de Israel liberto 1250-1050 a.C.”, três eram os modelos, tradicionalmente

aceitos, dentre os quais se poderiam traçar uma história da instalação israelita em Canaã.

a.1 - modelo da conquista23: este modelo é o que se deduz diretamente do texto

bíblico. Ele é fruto de uma leitura sincronizada dos livros do Pentateuco com a Obra

Historiográfica Deuteronomista (OHD). O livro de Jos ué e de Juízes seriam uma

continuação lógica e “histórica” das narrativas presentes no livro do Gênesis (Patriarcas)

e do Êxodo (Moisés, libertação do Egito, a aliança no Sinai, caminhada pelo deserto e

“terra prometida”).

22 Thomas L.Thompson, Lester L.Grabbe, Niels Peter Lemche, M.Liverani, Gary A. Rendsburg, Rolf Rendtorff, Van Seters, Israel Finkelstein , Christa Schäfer-Lichtenberger, Philip R. Davies, William Dever, Neil Asher Silberman dentro outros tantos pesquisadores. 23 Norman K.Gottwald , As tribos de Iahweh ..., p.202-213.

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Mas, a arqueologia desde há muito tempo, lá pelo início do séc. XX tem mostrado

que o relato bíblico presente em Js 1-12 não condiz com os dados coletados por ela.

Roland de Vaux, em seu livro: “Historia Antigua de Israel” 24, fez uma coletânea de

diversos resultados, dentro os quais cito apenas um pequeno trecho para ilustrar como

esse modelo tradicionalmente aceito por mais de vinte séculos chegou ao seu ocaso. Com

relação às escavações feitas em Jericó, K.M.Kenyon chega à seguinte conclusão: “resulta

imposible asociar la destrucción de Jericó com esa fecha (el éxodo em siglo XIII a.C.)”.

Através de análise estratigráfica dos tells, Kenyon constatou que a cidade de Jericó já

havia sido destruída há alguns séculos, bem antes da chegada de Josué e de seu grupo.

O mesmo se diz das cidades de Ay e de Gabaon. “J.B.Pritchard declara que, según

los testimonios de la arqueología, no existía en ese lugar ninguma ciudad de cierta

importancia en la época de Josué; y prosigue: Las anomalías que aparecen em los

resultados arqueológicos sobre tres lugares que ocupan um puesto preeminente en los

relatos da la primera parte del libro de Josué (Jericó, Ay y Gabaón) sugieren que hemos

llegado a um callejón sin salida alintentar apoyar com pruebas arqueológicas la

interpratación tradicional”.

a.2 – modelo da imigração: este segundo modelo, conforme a descrição de

Gottwald 25, começou a ser desenvolvido no final do século XIX e início do século XX,

tendo como maior expoente Martin Noth, que posteriormente, diante dos dados

arqueológicos, veio a fazer diversas ressalvas ao modelo da imigração. Este modelo

mostra que “os israelitas seguramente não destruíram esta ou aquela cidade”, mas

segundo Albrecht Alt, os israelitas penetraram nos espaços vazios entre as cidades

cananéias espalhadas nos planaltos. Outros adeptos do modelo da imigração vêem uma

ligação entre ao israelitas e os ‘apiru, citados nas cartas de Amarna. Segundo esses

teóricos:

24 Ro land de Vaux, Historia Antigua de Israel – II, Madrid, Ediciones Cristiandad, 1975, p.25-26. 25 Norman K.Gottwald, As tribos de Iahweh ..., p.214-219.

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Um dos elementos fundamentais foi a ênfase dada a movimentos não coordenados de israelitas para Canaã, a partir de direções diferentes e em épocas diferentes. Sendo a estrutura redacional das tradições bíblicas contestada pela crítica literária e a sua fachada centralizadora desfeita pela crítica das formas, as diversas tradições tornaram-se mais relevantes e é possível reunir um conjunto impressionante de indicadores para uma imigração não coordenada de proto-israelitas em levas separadas.

Para estes teóricos torna-se evidente que se o êxodo é de fato histórico, apenas

uma pequena parte deve ter saído das terras do Egito para se juntar a outros que, ou já

estavam lá em Canaã, ou vieram de outras localidades.

a.3 – este modelo citado por Gottwald é o “modelo da revolta”26, do qual ele é um

grande defensor. Segundo ele, este modelo está assentado sob dois sólidos fundamentos:

“um é a tradição bíblica essencial decidida e persistente a respeito de um grupo de

escravos, libertados do Egito e que cultuavam a Iahweh, que finalmente chegaram em

segurança a Canaã”. O outro elemento que serve também como pano de fundo para o

modelo da revolta, é o de que as cidades-estado cananéias, – desde a época dos Hicsos,

bem como também, durante todo o período de domínio egípcio em Canaã, –

desenvolveram um esquema amplamente feudal de organização social, criando com isso

uma profunda divisão entre uma minoria (classe governante) e uma maioria de

camponeses que deveriam sustentar com seu trabalho à classe citadina. Eles eram

explorados através de seu trabalho e, quando necessário, recrutados também para servir

no exército.

Por causa dessa situação de desigualdade, mas principalmente por causa da

exploração e escravização a que eram submetidos esses camponeses, Gottwald vê nessa

situação motivo suficiente para alimentar a classe explorada no sentido de uma revolta,

isto é, uma fuga dessas cidades-estado para a região das montanhas, onde o acesso dos

soldados com seus carros de guerra não era possível.

26 Norman K.Gottwald, As tribos de Iahweh ... , p. 220-229.

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Assim sendo, podemos passar agora à posição adotada pelos pesquisadores

“minimalistas”27, conforme citados na nota de número 11. Conforme pesquisa feita por

Airton José da Silva num artigo seu incluído no livro: “História de Israel na pesquisa

atual”28, pode-se dividir este seleto grupo de pesquisadores dentre quatro opções,

relativas ao modelo do surgimento do Israel pré-monárquico. Antes porém, parece muito

elucidativa a reflexão que Finkelstein faz sobre as três teorias citadas acima por

Gottwald:

Todas as três teorias da conquista israelita – invasão unificada, infiltração pacífica e revolução social – referendaram a noção bíblica fundamental de que o aparecimento do antigo Israel foi um fenômeno excepcional e singular na história do país. Novas descobertas, em décadas recentes, destroçaram essa idéia .29

a.4 – modelo da retirada pacífica: conforme análise das escavações e também dos

materiais retirados dos tells, Joseph Callaway constatou que tanto os israelitas como os

cananeus utilizavam a mesma técnica na agricultura, na fabricação de ferramentas, na

construção de casas e na construção de cisternas. Diante dessas evidências, ele deduziu

que havia uma continuidade cultural entre essas duas realidades sociais e sugere que as

pessoas fugiram do vale e se refugiaram nas montanhas para fugirem dos conflitos da

planície. E também conforme estudos o número de povoados nas montanhas passou de 23

para 114 entre os períodos de 1200 a 900 a.C..

Gösta Ahlström, evidenciando também a continuidade cultural entre cananeus e

israelitas, diz que o fato desse novo povo chamar-se de “Israel”, corrobora ainda mais

esta tese, pois sendo El a principal divindade do panteão canaãnita, nada mais lógico do

que denominar-se com uma deferência toda especial a ele.

27 Minimalistas são aqueles pesquisadores que defendem que tudo aquilo que não é corroborado por evidências contemporâneas aos eventos deve ser descartado. Estes pesquisadores são conhecidos também como membros da “Escola de Copenhague”. Para um aprofundamento ver: http://www.airton-jo.com/minimalistas.htm. 28 A História de Israel na Pesquisa Atual, em J.de Freitas Faria (org.), História de Israel e as pesquisas mais recentes, Petrópolis, Vozes, 2003, pp. 43-87. 29 Israel Finkelstein, A Bíblia não ..., p.452.

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Discordando de Gottwald, Ahlström não concorda com a hipótese de uma

retribalização ocorrida nas montanhas, pois sendo sua estrutura de base familiar, não

corresponderia ao tipo nômade demonstrado por Gottwald.

a.5 – nomadismo interno: dentre os vários defensores deste modelo destaca-se

C.H.J. de Geus, que outrora “defensor das teorias de Mendenhall e Gottwald, propõe que

os israelitas eram etnicamente unidos, morando nas montanhas e usando categorias

tribais”. Segundo Geus, estando já a muito tempo nesta região, eles seriam os ‘apiru das

cartas de Amarna.

Já Volkmar Fritz, que era defensor da teoria da infiltração pacífica de Albrecht

Alt, analisando a estrutura das casas israelitas, percebe nelas, com relação à casa dos

cananeus, uma nítida diferença na qual se baseia para justificar sua teoria de que estes

povos das montanhas não saíram das planícies, mas vindos de fora, foram se

sedentarizando, entrando em contato simbiótico com as culturas citadinas.

Para Israel Finkelstein:

a emergência do Israel primitivo foi um resultado do colapso da cultura cananéia, e não a sua causa. E a maior parte dos israelitas não veio de fora de Canaã – eles emergiram de dentro desta terra. Não ocorreu um êxodo em massa do Egito. Não houve uma conquista violenta de Canaã. A maior parte das pessoas que formaram o primitivo Israel eram moradores locais – as mesmas pessoas que vemos nas montanhas nas idades do Bronze e do Ferro. Os israelitas eram – ironia das ironias – eles mesmos originariamente cananeus!30

a.6 – modelo de transição ou transformação pacífica

Questionando o uso da Bíblia Hebraica como fonte para a reconstrução de uma

história de Israel, Niels Peter Lemche , “acredita que muito pouco pode ser dito das

origens de Israel antes do século X a.C.”. Diferentemente de outros pesquisadores que

acreditam que deva ter havido um vácuo de poder egípcio na região de Canaã a partir do

30 Israel Finkelstein, A Bíblia não ..., p.452.

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final do século XIII a.C. em diante, ele acredita que o afastamento das pessoas das

cidades-estado se deve ao fato, na verdade, de uma pressão por parte dos egípcios em sua

exigência por mais tributos e trabalho forçado.

Já William Stiebing vê nas mudanças climáticas ocorridas no Mediterrâneo na

segunda metade do século XIII a.C., o grande fator de desagregação social que contribuiu

para a formação de novos povoados nas montanhas.

Robert Drews, dando pouca importância aos fatores climáticos, defende que a

pressão que se exerceu sobre os canaanitas veio dos filisteus, que obrigou grandes

contingentes de pessoas que viviam nas cidades-estado a se deslocarem para as

montanhas. Devido às necessidades, ali descobriram a necessidade de um novo

comportamento ético, a solidariedade e o igualitarismo.

Robert Coote & Keith Whitelam sugere que houve um grande processo de

integração entre as pessoas que habitavam na região das montanhas e aqueles que

habitavam nas cidades. Ele acredita que o fator mais preponderante foi a crise comercial,

pois, colocando em crise a sobrevivência das cidades-estado, “exigiu dos povoados das

montanhas uma forma mais eficaz de colaboração e cooperação para a sobrevivência,

levando a um aumento populacional significativo”.

a.7 – modelo do amálgama pacífico: Baruch Halpern descreve o processo de

assentamento nas montanhas tendo como causa principal, as mudanças complexas na

região, fazendo com que diferentes grupos fossem se encontrando na região montanhosa.

Um determinado grupo, talvez o do Egito, trouxe a fé em Iahweh. Segundo ele, “todos

esses grupos foram reunidos pela necessidade de manter rotas de comércio abertas com a

ausência do Egito na região. Progressivamente controlaram também as planícies, levando

ao surgimento da monarquia”. E Halpern faz uma afirmação contundente: “o Israel

histórico não é o Israel da Bíblia Hebraica, mas foi o Israel histórico que produziu o

Israel bíblico”.

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William Dever que já foi simpatizante do modelo da revolta de Gottwald acredita

que foram os refugiados nas cidades-estado, mais alguns nômades e, principalmente,

cananeus, que deram origem aos povoados das montanhas. “Progressivamente criaram

uma identidade que os diferenciou dos cananeus das planícies”.

Thomas L.Thompson, que é considerado “um dos mais polêmicos minimalistas, é

ferrenho defensor de uma história da Palestina escrita somente a partir dos dados

arqueológicos”, não aceitando qualquer história ou arqueologia de caráter bíblico. Como

William Stiebing vê nas mudanças climáticas o “principal fator de transformação social e

política da região”.

Thompson acredita que a unidade política de Israel surgiu apenas no século VIII

a.C., após a interferência assíria na região. Para ele “toda a história bíblica do império

davídico-salomônico e dos reinos divididos de Israel e Judá são pura ficção pós-exílica”.

Posto estas diferentes teorias, R.K.Gnuse acredita que este último modelo deverá

impor-se por sobre os demais, pois é o modelo que melhor se alinha por considerar

melhor os pressupostos do debate teórico atual.

Sendo assim, esta também será a teoria que norteará todo o desenvolvimento do

projeto: o modelo do amálgama pacífico

b) Quem são estes israelitas

Gottwald e Mendenhall, diferentemente de Albright e seus discípulos (escola

americana), baseados principalmente nos resultados obtidos com a análise das cartas de

Tell el-Amarna, acreditam que entraram na formação deste novo povo diversos grupos

que aos poucos foram se juntando e se identificando quanto a alguns aspectos: a não

aceitação do regime político e social imposto pelas dinastas e príncipes das cidades-

estado, que consistia na estratificação (desigualdade social), escravização e trabalhos

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forçados (exército, agricultura, etc.), além da tributação que constantemente sofriam,

tanto por parte da elite quanto por parte dos egípcios.

Com o enfraquecimento da presença egípcia na região, como também, certa

deterioração do sistema imperial- feudal implantados nas cidades-estado no final do

Bronze posterior, estes diferentes grupos31: ‘apirus, shosus, camponeses e pastores,

motivados por uma nova ideologia – a fé javista32 – que havia chegado à região,

empreenderam uma revolução social contra seus senhores feudais.

Assim, estes novos habitantes das montanhas passam por um processo de

retribalização, desenvolvendo assim, uma sociedade igualitária.

Mas, Finkelstein, bem como grande parte dos pesquisadores33 atuais, rejeitam

essa posição de Mendenhall e Gottwald, de uma rebelião contra o sistema imposto pelas

cidades-estado e argumenta a favor de uma infiltração lenta e processual de habitantes

cananeus, que devido a processo de colapso e desintegração do sistema imperial-feudal,

foram subindo para as montanhas e ali se fixando. Eles argumentam que Gottwald, assim

como os pesquisadores anteriores, basearam suas teorias em “falsas evidências

arqueológicas”34.

Essa posição de Finkelstein se baseia nos novos dados arqueológicos, que

conforme ele mesmo afirma estão revolucionando o estudo do antigo Israel.35

Esses levantamentos revelaram onde os antigos povos se fixaram e o tamanho desses povoamentos. A escolha de certos nichos topográficos (tais como os cumes da região montanhosa em vez dos vales), de certos nichos econômicos (como o cultivo de grãos em vez da horticultura) e da facilidade de acesso a estradas principais e a fontes de água

31 Norman K.Gottwald, As tribos de Iahweh ... , p.397-469. 32 É possível também afirmar que a “fé javista” tenha sido inculturada posteriormente ao estabelecimento das tribos nas montanhas da Palestina. 33 Ver nota de número 24. 34 Israel Finkelstein, A Bíblia não ..., p.149-150: segundo ele, a teoria da revolução camponesa proposta por Gottwald “infelizmente … não é sustentada por nenhuma evidência arqueológica – e, de fato, muito da evidência a contradiz de forma categórica. Como vimos, a cultura material das novas vilas era bem distinta da cultura das planícies cananéias; se os colonizadores tivessem sido refugiados das planícies, esperaríamos ver maior semelhança nos estilos da arquitetura e cerâmica”. 35 Israel Finkelstein, A Bíblia não ..., p.150.

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mostra muito mais sobre o estilo de vida e, em última análise, sobre a identidade social da população de grandes áreas do que de comunidades individuais [...] A descoberta de remanescentes de uma densa rede de aldeias nas regiões montanhosas – todas aparentemente estabelecidas num espaço de tempo de poucas gerações – indicou que houve dramática transformação social na área central montanhosa de Canaã, por volta de 1200 a.C. [...] cerca de 250 comunidades se instalaram repentinamente nas colinas. Esses foram os primeiros israelitas.

Conforme o próprio Finkelstein conclui, não é possível saber se esses habitantes

forjaram uma nova etnia, pois este processo se prolongou até o período de instalação das

monarquias.

Mas, pode-se supor que o antigo estado de vida, devido à experiência amarga

vivida por estes habitantes das montanhas nas cidades-estado, deu lugar a um novo modo

de vida que são aqueles princípios éticos e morais presentes na tradição (Dt 12-26).

2.1.3 – Tribalismo: uma sociedade igualitária e autônoma

Autônoma, por que igualitária ou igualitária por que autônoma ?

Não se pode acentuar demasiadamente que essa experiência nas montanhas foi

insuperável, que ali tivemos a oportunidade de ver algo, definitivamente original e

divinamente inspirado. É essa a posição de Gottwald, quando sacralisa esta experiência

de tal maneira, que temos a impressão de que lá, naquela sociedade igualitária não havia

problemas. Todos se entendiam e viviam como verdadeiros irmãos. Parafraseando ao

livro dos Atos dos Apóstolos, alguém poderia dizer: eram um só coração, uma só alma e

um só sentimento. Ninguém dizia que eram suas as coisas que possuíam. Tudo entre eles

era em comum (cf At 2,42).

Como afirma François Houtart a respeito da sacralização da vida tribal:

“as sociedades tribais que abordamos constituem o modelo típico das sociedades não diferenciadas, isto é das sociedades sem classes. Isso não significa em absoluto que elas eram sociedades sem complexidade, sem conflitos ou sem dominações. Precisamos nos

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livrar da imagem idílica das sociedades ditas primitivas, bem como da impressão de que os únicos conflitos possíveis sejam aqueles que nascem das relações de classe”.36

Bem, como já foi demonstrado anteriormente, a historiografia atual afirma que a

história vivida por aqueles homens e mulheres nos séculos XII ao X a.C.

aproximadamente, não foi bem assim. Concordo com Gottwald de que a experiência do

Israel pré-monárquico foi sui-gêneris. Até, de que houve uma retribalização, ou melhor,

uma volta a determinados costumes (princípios éticos e morais). Mas, endeusá-la, a ponto

de se ter a impressão de que tudo acontecia as mil maravilhas e que reinava entre todos

eles um profundo espírito de igualdade é, como se diz na gíria, querer tapar o sol com a

peneira, e não ver o que as evidênc ias das pesquisas antropológicas, sociológicas e

arqueológicas estão nos apresentando. Pois, como afirma Sicre: “não podemos exagerar

essa igualdade nem convertê-la em princípio utópico”37.

Mas, como o foco neste tópico não é questionar o modelo sugerido por Gottwald,

e sim, demonstrar que um tribalismo igualitário, como ideal de vida foi possível, não só,

devido às experiências amargas nas cidades-estado como já afirmei acima, mas

principalmente, devido àquele impulso antropológico original de vivência em

comunidade, isto é, satisfazer à íntima e necessária dimensão de alteridade a que somos

con-vocados.

O fato de termos hoje a certeza de que o núcleo original de Dt 12-26, assim como

o chamado Código da Aliança (Ex 20,22 – 23,33), que é mais antigo ainda, se constitui

num conjunto de leis que originalmente nasceu com as tribos do norte38, ou até quem

sabe, com estes primitivos israelitas, antes de ser ampliado e incorporado na OHD, nos dá

condições e possibilidades de argumentar a favor de uma sociedade com profundo

sentido axiológico.

36 François Houtart, Religião e modos de produção pré-capitalistas, São Paulo, Edições Paulinas, 1982, p.49. 37 José Luis Sicre, A justiça social nos profetas, São Paulo, Edições Paulinas, 1990, p.62-63. 38 Conforme Antonius H.Gunneweg, Hermenêutica do Antigo Testamento, São Leopoldo, Sinodal, 2003, p.110, Martin Noth, que em 1940 redigiu seu trabalho Die Getsetze im Pentateuch (As leis do Pentateuco) “demonstra que, originalmente, as leis não estavam associadas ao Estado e sim à confederação das tribos; só depois do exílio” com a inserção de outras tantas leis é que elas serão oficialmente tidas como emanadas pelo Estado.

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Roland de Vaux, apesar de ter sugerido algumas idéias que os pesquisadores

atuais consideram ultrapassadas, pois como um maximalista, fez uma leitura um tanto

literal e histórica do texto bíblico. Mas, ele teve algumas intuições interessantes quanto às

grandes instituições que forjaram o Israel pré-monárquico. Seu modo de se organizar e

seus princípios morais dão a nós, hoje, a possibilidade de tentar reconstruir o núcleo

desse corpo de leis (Dt 12-26), e ter a certeza de que foram esses princípios morais e

éticos que deram ao Israel pré-monárquico o status de uma sociedade igualitária e, por

assim dizer, autônoma.

Para Roland de Vaux, assim como para tantos outros pesquisadores, esta

sociedade encontrava na instituição da família, que na Bíblia Hebraica é caracterizada

pelo termo “bet ’ab” (casa paterna), seu ponto de apoio mais sólido, pois, os laços de

sangue eram de importância vital para o desenvolvimento da personalidade de seus

membros. Isso torna evidente a importânc ia do sistema das relações de parentesco e,

segundo Houtart, “se constituem num “elemento -chave da organização da vida social”39

tribal. Assim, um conjunto de famílias formava um clã (a “mispahah”). E vários clãs se

constituíam numa tribo (“sebet” ou “matteh”).

E entre os membros de uma tribo, não havia desigualdades ou estratificação

social, pois a “riqueza relativa das tribos era comunitária, e a pertença à tribo trazia

consigo a plena participação nos bens comunitários. Nessa época não se pode falar,

portanto de pobres, nem em sua dimensão sociológica nem na teológica, porque a

pobreza não existia de fato”40. De fato, François Houtart também é dessa mesma opinião,

pois, sendo os clãs compostos por extensas famílias, devido ao valor das relações de

parentesco, segundo ele, isso possibilita:

“uma grande autonomia ao nível da organização da vida material, o que se manifesta tanto no plano da organização da produção como no plano da distribuição do produto social, fazendo com que elas se constituam em unidades auto-suficientes. Essa

39 François Houtart, Religião e modos ... , p.34. 40 Ildefonso Camacho, Praxis cristã III: opção pela justiça e pela liberdade , São Paulo, Edições Paulinas, 1988, p.28.

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autonomia familiar ao nível da vida cotidiana, combinada com a inserção das famílias, em uma unidade social superior, o clã, é vista como natural pelos protagonistas sociais”.41

Segundo os dados da sociologia, tanto da realidade tribal de três milênios atrás,

assim como nos dias de hoje, sendo o sistema dominante, o sistema de parentesco, é ele

quem assume as relações de produção. A organização do trabalho baseia-se ao mesmo

tempo num caráter individual no que se refere à produção direta, e num caráter coletivo

(meio de produção: terra / floresta) constituindo propriedade do clã. Não existiam

intercâmbios comerciais, pois o produto era distribuído no interior do grupo segundo um

sistema de troca regulado pelas relações de parentesco.

Portanto, as relações de parentesco, constituem simultaneamente a própria

condição de sobrevivência dos indivíduos dentro da sociedade tribal, bem como também,

sua identidade.

Comentando a respeito das escavações em Tersa42, De Vaux afirma: “As casas do

século X a.C. tem todas as mesmas dimensões e a mesma instalação; cada uma representa

a moradia de uma família, que levava o mesmo tipo de vida de seus vizinhos”.43

Abaixo segue uma figura44 contendo a planta da área de moradia perto do portão

de entrada da cidade de Tersa. Com isso, é possível verificar, apesar de termos aqui uma

pequena porção de casas, que existia certa similaridade quanto à construção das casas.

41 François Houtart, Religião e modos ..., p.34. 42 Tersa foi a subseqüente cidade-sede, depois de Siquém, do governo de Jeroboão I. 43 Roland de Vaux, Historia Antigua ..., p.115. 44 Amihai Mazar, Arqueologia na terra ..., p.441.

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Figura 1 – Planta aérea de cidade de Tersa 45

2.1.4 – Os Códigos da Aliança e Deuteronômico (Dt 12 – 26), a tradição

efraimita e a “sentinela de Efraim” (Os 9,8a).

Falar do profeta Oséias como a “sentinela de Efraim” (Os 9,8a)46, implica

necessariamente em falar da tradição efraimita e, descendo ainda mais longe no tempo,

tecer alguns comentários sobre o Código da Aliança e sua ligação com Efraim, bem

como, com o profetismo, pois, “há projeto. E esse projeto é tipicamente tribal. Ao

45 Amihai Mazar, Arqueologia na terra ..., p.441. 46 Este tópico será plenamente desenvolvido na segunda parte deste projeto, no item “conteúdo” da perícope de Os 9,1-9.

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ameaçarem as instituições da cidade e do Estado, esses profetas propõem, no concreto,

uma revitalização da experiência tribal47.

Martin Noth ao elaborar sua teoria a respeito da Obra Historiográfica

Deuteronomista (OHD)48 chega à seguinte conclusão: vê Dt 12-26 como um quadro –

proclamação da lei deuteronômica – envolto pela moldura parenética de Dt 5 – 11 e 28,

que se articula diretamente com Dt 1 – 3 (4) e 29-34, que se constituem, respectivamente,

na introdução ao livro de Josué, formando assim, o início da grande OHD49. Sem entrar

em detalhes, quanto aos estudos de forma e redação, bem como também nos dados

posteriores alcançados pela pesquisa, que de certa forma são relevantes no estudo do livro

do Deuteronômio , destaco apenas, neste início, a grande intuição que teve Martin Noth ao

deduzir toda a extensão da OHD.

Apesar de Martin Noth haver intuído que Dt 4,44 – 30,20, que ele chama de

“deuteronômio primitivo”, conter um núcleo original, que define como seção “Tu”, em

contraposição a outra seção “vós”, Minette de Tilesse50 avançou na pesquisa, reavivando

a discussão redacional, a partir do critério da hipótese Numeruswechsel51. Percebeu que

as seções “tu” se constituíam na verdade, no deuteronômio primitivo, enquanto as seções

“vós”, seriam reinterpretações que foram acrescentadas posteriormente pelo “redator

deuteronomista” (Dtr) 52.

47 Carlos Mesters e Milton Schwantes, Profeta: saudade e esperança , São Paulo, CEBI, 1989, vol.17/18 p.16. 48 Martin Noth, O deuteronomista, em Revista Bíblica Brasileira, Fortaleza, Editora Nova Jerusalém, 1993, p. 13-193, traduzido e completado por Pe.Caetano Minette de Tilesse 49 Conforme Israel Finkels tein, A Bíblia não ..., p.229-233, a OHD (Obra Historiográfica Deuteronomista) que é composta pelos livros do Dt, Js, Jz, 1 e 2 Sm e 1 e 2 Rs, começou a ser escrita no final do século VI a.C., durante o reinado de Josias e se estendeu até o período posterior ao exílio babilônico (século V a.C.). Muitas são as referências que podem ser deduzidas da leitura desta obra que confirmam sua datação. Uma das mais claras é quando o narrador coloca na boca de um profeta do século X a.C. o nome de um futuro rei, no caso o rei Josias (cf. 1 Rs 13,1-2), que iria governar Judá 3 séculos depois. Essa é uma das provas mais evidentes que denunciam, de certa forma, o período histórico em que o narrador se encontrava, bem como também, sua motivação para fazê-lo. 50 Minette de Tilesse, Revista Bíblica Brasileira , Fortaleza, nº4, Editora Nova Jerusalém, 1987, p.138 -140. 51 Julio Paulo Tavares Zabatiero, Tempo e espaço sagrados em Dt 12,1-17,13: uma leitura semio-discursiva, São Leopoldo, 2001, p.35 (Tese de Doutorado). 52 Martin Noth, O deuteronomista , p. 31, considera o Dtr como um único redator de toda a OHD: “Dtr não foi apenas o ‘Redator’, mas o verdadeiro AUTOR duma obra histórica, que integrou materiais muito diversificados e os organizou de acordo com um plano bem elaborado. Nisto, Dtr respeitou geralmente as Fontes utilizadas por ele como substrato de sua obra literária, simplesmente como as encontrava; mas

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Ao que tudo indica estas leis e normas morais que eram transmitidas oralmente

foram registradas entre os anos do reinado de Jeroboão (786 a 746 a.C.) e a queda da

capital do reino de Israel Samaria, em 722 a.C.53

Este núcleo original deuteronômico54, que outrora era parte da tradição oral55, é

agora colocado por escrito para ser um contraponto contra a realidade de

empobrecimento dos camponeses, pois tem claro para si que se na “monarquia os

conflitos sociais se agravam, é preciso repensar as origens, a partir dos que agora mais

sofrem”56. Por trás desta elaboração deuteronômica estariam os camponeses aliados a

grupos levíticos e proféticos.

Provavelmente nos capítulos 12 – 26, neste núcleo mais antigo, encontramos as

partes mais antigas desta obra que deu origem à grande Obra Historiográfica

Deuteronômica (OHD).

No livro do Deuteronômio, as leis não estão voltadas para a formação e

constituição de um estado. Em Israel o direito se entende como surgido antes do estado e

está colocado acima deste.57 O Deuteronômio revela um conceito de lei que difere do

Antigo Oriente. Nele a lei não é instituída pelo rei, mas por Deus (cf. Dt 6,3).

articulou os diversos elementos dessas Fontes entre si mediante um texto redacional que os integrava. Ocasionalmente, Dtr escolheu no meio do material à sua disposição somente aquilo que o interessava”. 53 Edésio Sanchez, Deuteronômio – comentário bíblico iberoamericano , Buenos Aires, Kairos, 2002, p.19; Werner Hans Schmidt, Introdução ao Antigo Testamento, São Leopoldo, Sin odal, 1987, p.16. 54 Conforme citação feita por Julio Paulo Tavares Zabatiero, Tempo e espaço sagrados ..., p.36: N.Lohfink e seus discípulos acreditam que esta “versão mais antiga do Deuteronômio data do período assírio e foi redigida como uma proposta javista ao choque político econômico, cultural e teológico provocado pela dominação assíria , que causou extensas perdas de vidas humanas, território e produção, além de oferecer ao povo judaíta uma poderosa cosmovisão alternativa ao javismo, com sua imposição de religião e formas de pensamento estranhos às tradições de Israel” 55 Julio Paulo Tavares Zabatiero, Tempo e espaço sagrados ..., p.39: para aprofundamento a respeito destas “tradições orais” consultar as famosas “teorias escandinavas”. 56 Carlos Arthur Dreher, “As uvas do vizinho”, em Revista de Interpretação Bíblica Latino Americana, Petrópolis, Vozes, 1993, vol.14, p.25 57 Frank Crüsemann, A torá – teologia e história social da lei do Antigo Testamento, Petrópolis, Vozes, 2ª Edição, 2002, p.32.

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Seguindo a pesquisa no seu desenvolvimento, Robert Wilson, faz uma ponte

interessante entre as tradições efraimita e axiológica, pois, de certa forma, unidas,

forjaram e animaram o movimento profético em Israel, particularmente através dos

profetas escritores, quando afirma: “Os profetas, em particular, teriam extraído sua

sensibilidade ética e suas intuições teológicas da tradição, e como conseqüência profetas

através de toda a história de Israel teriam partilhado de ‘teologia profética’distintiva”58.

Conforme Milton Schwantes, o projeto da unicidade de Javé, do lugar sagrado e

do povo é mediado não por um sacerdote ou pelo rei, mas pelo profeta. O rei e o

sacerdote exercem uma função. O profeta tem caráter carismático. Ele é chamado por

Deus entre o povo (cf. Dt 18,18). Ele irá cumprir o projeto da unicidade de Javé.59

Também E.Nicholson é da mesma opinião, pois também ele defende a hipótese da autoria

profética para o núcleo mais antigo de Dt 12 – 26: “os círculos responsáveis pela

preservação e transmissão das tradições subjacentes ao Deuteronômio são grupos

proféticos do Reino do Norte que, após o fim de Israel, migraram para Judá”60.

Segundo Albert de Pury pode-se constatar uma estreita ligação entre Oséias e a

tradição profética que cultiva esses princípios e normas morais, pois, “se a perspectiva

oseana ... parece prescindir da realeza, do sacerdócio e dos santuários (cf. Os 3,4), isto

demonstra que o ideal profético se alimenta da utopia de uma relação direta – sem outra

mediação além da dos profetas – entre o povo e seu Deus”. 61

Avançando mais ainda nos resultados da pesquisa sobre o núcleo original presente

em Dt 12 – 26, bem como também, sobre a OHD, Shigeyuki Nakanose desenvolve

algumas percepções interessantes que trazem ainda mais luz para o trabalho iniciado por

Martin Noth.

58 Robert Wilson, Profecia e sociedade no Antigo Israel, São Paulo, Edições Paulinas, 1993, p.206. 59 Milton Schwantes, Sofrimento e esperança no exílio , São Leopoldo, Sinodal, 1987, p.37 (Coleção Temas Bíblicos). 60 Julio Paulo Tavares Zabatiero, Tempo e espaço sagrados ..., p.55. 61 Albert de Pury, O pentateuco em questão: as origens e a composição dos cinco primeiros livros da Bíblia à luz das pesquisas recentes , Petrópolis, Vozes, 2ª edição, 2002, 323p.

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Nakanose teoriza sobre Dt 12 – 26, afirmando que dentro desta unidade, podem

ser encontradas dois tipos de leis: humanitárias e centralizadoras. Por “leis humanitárias”,

ele entende como sendo aquelas leis que estão sempre a favor da vida. Provavelmente, essas leis

teriam nascido:

[...] na terra fértil da vida das famílias, clãs e tribos, no período pré-estatal. O espírito dessas leis é fruto da experiência de escravidão, pobreza, miséria, simbolizada pelo êxodo (Dt 24,18.22) [...] A experiência de pobreza, libertação ... cria no povo uma grande sensibilidade para com os pobres, órfãos e viúvas (Dt 14,28-29) e um profundo espírito de gratidão para com o Deus vivo e libertador presente na vida do povo (Ex 3,14-15). 62

Já, as “leis centralizadoras”, seriam aquelas leis que estão também presentes na

perícope de Dt 12 – 26, mas que, claramente, são leis que tem como fim último a

manutenção da monarquia estatal. Segundo Nakanose, essas leis nasceram no Reino do

Norte, por volta da metade do século VIII a.C.

Dt 12,15 é um exemplo claro dessa característica, pois, segundo as tradições mais

antigas, o culto era permitido em diferentes locais (cf. Gn 28,28; 35,14; Ex 20,24; 24,4;

Js 24,26). Na verdade, o que aconteceu, foi que a monarquia começa a se apossar do

excedente de produção, através da imposição sobre os pobres camponeses da ideologia

perversa, que obrigava todos a fazerem ofertas e dízimos. Por isso, a estratégia de

centralização do culto, como meio de aumento da arrecadação, com a finalidade de

manutenção de todo o aparelho estatal (casa real, aristocracia e exército).63

É sabido também que juntamente com os refugiados vindos do norte, após a

destruição da capital Samaria, pelos assírios, aquele núcleo original que serviu de base

para o movimento de resistência contra a opressão da elite citadina, depois de ter

recebido alguns acréscimos, agora, já em Judá, será mais uma vez ampliado com a

introdução de diversas leis, com a finalidade de justificar a centralização do culto. Os

62 Shigeyuki Nakanose, “Para entender o livro do Deuteronômio: uma lei a favor da vida?” em Revista de Interpretação Bíblica Latino -americana, nº 23, Petropolis, Vozes, 1996, p.177-193. 63 Este assunto das “leis centralizadoras” será retomado e desenvolvido com maior profundidade na 2ª parte.

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capítulos de 5 a 11, provavelmente foram acrescentados durante este período de

consolidação da monarquia judaíta (pré-exílio).64

Portanto, pode-se concluir este tópico, afirmando que, de fato, Os 9,1b está em

estreita relação com Dt 12 – 26, que é uma retomada dos valores do Israel tribal. Como

mostra Robert Wilson, provavelmente, o Dtr deve ter sido influenciado pelos escritos do

profeta Oséias, – assim como ele também foi influenciado pela tradição efraimita – pois,

como pode ser verificado, existe muita semelhança “entre a linguagem de Oséias e a

linguagem da história deuteronomista [...] confirma-se a sugestão pelo fato de os laços

verbais mais estreitos entre Oséias e a literatura deuteronomista ocorrerem em expressões

da teologia deuteronomista”65.

2.1.5 – O Israel pré-monárquico tribal-javista e o panteão cananeu

Partindo da descrição encontrada na Bíblia, mais especificamente nos livros do

Tetrateuco66, e nos 3 primeiros livros da OHD (Deuteronômio, Josué e Juízes), sobre o

javismo israelita pré-monárquico, portanto, javismo-tribal, tem-se a impressão de uma

religião bem elaborada, com uma quantidade enorme de epifanias, símbolos e ritos, isto

é, um culto bem definido e organizado, com uma série de leis prescrevendo em detalhes

uma série de comportamentos religiosos, morais, etc.

Mas, como vimos anteriormente, estes livros citados acima não são e nem contêm

relatos históricos, mas essas narrativas pertencem a diferentes gêneros literários – mito,

lenda, saga, novela, anais, crônicas, biografias, discursos, etc. –, tal como o gênero

64 Gottfried Seitz, Redaktionsgeschichtliche Studiem zum Deuteronomium, Stuttgart, W.Kohlhammer, 1971, p.308. 65 Robert Wilson, Profecia e sociedade ..., p.208. 66 Por tetrateuco, compreende-se os quatro primeiros livros da Bíblia: Gênesis, Êxodo, Números e Levítico. “Uma das linhas da discussão propõe que o Tetrateuco não foi uma obra independente, mas já nasceu como prólogo à Obra Deuteronomista. Esta é a posição de M.Rose, seguido por H.Schmid, que afirma que J, um texto deuteronômico/deuteronomista, é o artífice do Tetrateuco. Ainda na trilha aberta por H.Schimd, J.van Seters propõe uma tese similar à de M.Rose: para ele o Pentateuco é uma ampliação da bra historiográfica deuteronomista, um trabalho historiográfico análogo ao de Heródoto na Grécia. R.Whybray retoma esta tese e propõe que o Pentateuco é obra de um único autor, do período exílico, que teria empregado técnicas similares às de Heródoto para escrevê-lo”. Julio Paulo Tavares Zabatiero, Tempo e espaço sagrados ..., p.39.

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etiológico 67, que corresponde na verdade, a uma narrativa onde as situações vividas pelos

seus redatores é transposta para um período bem anterior como forma de justificar o

presente vivido por eles, ou por aqueles que encomendaram tal trabalho redacional. Este

gênero literário pode ser encontrado em diversas passagens da OHD.

Neste tópico sobre o javismo-tribal (Israel pré-estatal ou pré-monárquico), quero

identificar até que ponto, ou de que modo o culto a Iahweh foi se impondo na vida

daqueles homens e mulheres que precederam à formação do Israel monárquico.

A análise dos textos, ou melhor, de algumas tradições68, necessariamente terá que

passar pelo viés da análise sociológica, que , como sabemos, tem por objetivo verificar a

repercussão do fenômeno religioso dentro da sociedade na qual ela incide. Outro

instrumento metodológico extremamente necessário nesse trabalho são os dados

levantados pela fenomenologia da religião, que diferentemente da história das religiões,

que estuda os fatos religiosos em si mesmos, pergunta pelo significado de uma

determinada experiência religiosa bem situada, isto é, “explora especificamente seu

sentido, sua significação para o ser humano específico que expressou ou expressa esses

mesmos fenômenos religiosos”69.

Conforme veremos, muitas foram as posições assumidas pelos pesquisadores ao

longo de todo o século passado. Porém, seguindo o fio condutor da pesquisa atual, penso

não ser relevante citar aqui quais eram as posições assumidas pelos diversos

pesquisadores que se lançavam nesse desafio de teorizar sobre o javismo pré-monárquico,

apesar de que, em alguns momentos, será conveniente fazer alguns contrapontos.

67 Conforme Ildo Bohn Gass, Uma introdução à Bíblia, nº 3, São Paulo, Paulus, 2003, p.69. A “etiologia tem como objetivo explicar as razões por que uma realidade de hoje está nesta ou naquela situação. Quer explicar as ‘causas’ que deram origem a uma realidade, justificando-a. Para legitimar, por exemplo, a dominação sobre os cananeus, fez-se uma acusação a seus antepassados. Se Cam, o pai dos cananeus, teve aquela atitude desrespeitosa para com Noé, nada mais justo que hoje seus descendentes vivam subjugados por outra nação”. 68 A opção de estudar determinadas “tradições” e não os “textos” se devem ao simples fato de que as narrativas contidas nos livros citados acima, que relatam fatos cronologicamente bem anteriores, começaram a ser inicialmente redigidas somente a partir do século VII a .C., e complementadas durante o exílio e no pós-exílio. 69 José Severino Croatto, As linguagens da experiência religiosa: uma introdução à fenomenologia da religião , São Paulo, Paulinas, 2001, p.25.