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1 Ordem Internacional e Instituições 1.1 Introdução O trabalho propõe uma análise do surgimento e atuação do G-20 na primeira rodada de negociações da Organização Mundial do Comércio, concentrando-se sobre o significado sistêmico do ressurgimento da clivagem Norte-Sul no pós Guerra Fria. O objetivo da tese consiste em explicar como a principal conseqüência do surgimento do Grupo dos Vinte resultou na impossibilidade de conclusão das negociações da Rodada de Doha (2001), determinando a suspensão das negociações, que coincidiria com o racha no núcleo da coalizão em Julho de 2008. A análise se sustenta teoricamente a partir de uma perspectiva sistêmica da ordem internacional, construída em torno das instituições. Nesse sentido, o G-20 que busca uma reforma fundamental da agricultura na OMC consiste no estudo de caso central desse trabalho, mas ele não se restringe ao regime de comércio. Ao contrário, trata-se aqui de perceber a iniciativa de ação coletiva dos PEDs no interior do regime, a partir do papel da OMC na ordem internacional pós Guerra Fria, tornando possível o surgimento daquela aliança. Para além de um label; numa perspectiva sistêmica o G-20 pode ser visto como materialização da ação coletiva liderada por grandes mercados emergentes – BRICs- buscando resgatar as bases da aliança dos países em desenvolvimento no interior da OMC, a partir da polarização centrada no tema da Rodada de Doha (2001), enquanto o direito ao desenvolvimento. Esse tema se encontrava no centro da agenda internacional desde fins da década de 90, tornando o surgimento das iniciativas de ação coletiva dos países em desenvolvimento estreitamente relacionadas com a posição das instituições econômicas internacionais em relação ao tema. Sob uma perspectiva institucionalista, o G-20 pode ser entendido como sintoma de um momento de transição da ordem internacional pós Guerra Fria. Naquele momento, o tema do PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510704/CA

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1

Ordem Internacional e Instituições

1.1

Introdução

O trabalho propõe uma análise do surgimento e atuação do G-20 na

primeira rodada de negociações da Organização Mundial do Comércio,

concentrando-se sobre o significado sistêmico do ressurgimento da clivagem

Norte-Sul no pós Guerra Fria. O objetivo da tese consiste em explicar como a

principal conseqüência do surgimento do Grupo dos Vinte resultou na

impossibilidade de conclusão das negociações da Rodada de Doha (2001),

determinando a suspensão das negociações, que coincidiria com o racha no núcleo

da coalizão em Julho de 2008.

A análise se sustenta teoricamente a partir de uma perspectiva sistêmica da

ordem internacional, construída em torno das instituições. Nesse sentido, o G-20

que busca uma reforma fundamental da agricultura na OMC consiste no estudo de

caso central desse trabalho, mas ele não se restringe ao regime de comércio. Ao

contrário, trata-se aqui de perceber a iniciativa de ação coletiva dos PEDs no

interior do regime, a partir do papel da OMC na ordem internacional pós Guerra

Fria, tornando possível o surgimento daquela aliança. Para além de um label;

numa perspectiva sistêmica o G-20 pode ser visto como materialização da ação

coletiva liderada por grandes mercados emergentes – BRICs- buscando resgatar as

bases da aliança dos países em desenvolvimento no interior da OMC, a partir da

polarização centrada no tema da Rodada de Doha (2001), enquanto o direito ao

desenvolvimento.

Esse tema se encontrava no centro da agenda internacional desde fins da

década de 90, tornando o surgimento das iniciativas de ação coletiva dos países

em desenvolvimento estreitamente relacionadas com a posição das instituições

econômicas internacionais em relação ao tema. Sob uma perspectiva

institucionalista, o G-20 pode ser entendido como sintoma de um momento de

transição da ordem internacional pós Guerra Fria. Naquele momento, o tema do

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desenvolvimento se achava deslocado do seu lócus tradicional no interior das

outras instituições de Bretton Woods, que reviam sua atuação nas crises da década

de 90 e analisavam a vulnerabilidade do seu modelo de desenvolvimento,

sugerindo uma possível reorientação de rumos na sua atuação. Essa conjuntura de

balanço permitiria que o tema do desenvolvimento fosse incorporado à OMC, na

sua primeira rodada de negociações.

Sobre as bases dessa inflexão nos rumos do desenvolvimento no interior

das instituições, os ataques do onze de setembro de 2001, poucas semanas antes

da Conferência de Doha (2001), representaram o último determinante para a

incorporação do tema à OMC. Na conjuntura, o lançamento de uma nova rodada

comercial consistia na única instância capaz de realizar um avanço do

multilateralismo. O tema do desenvolvimento foi incorporado à OMC como parte

da grande manifestação de solidariedade internacional surgida em resposta aos

ataques, congregando países desenvolvidos e em desenvolvimento naquela

iniciativa. Essa resposta à crise política através da OMC permitiu superar o

impasse que se manifestara no lançamento de novas negociações dois anos antes,

em Seattle (1999), mas traria amplas conseqüências sobre as futuras negociações.

A incorporação do direito ao desenvolvimento no Mandato de Doha

(2001) equivalia a reservar um espaço propositivo para os países em

desenvolvimento no interior do regime de comércio que não mais existia na

ordem internacional pós Guerra Fria. O que chama a atenção no surgimento do

grupo consiste na reemergência da clivagem Norte-Sul, num momento em que o

espaço de proposição dos países em desenvolvimento na ordem internacional se

restringe como conseqüência da maior institucionalização.

Isso se relaciona à evolução do regime que surge como o pilar menos

institucionalizado da ordem econômica de Bretton Woods para se converter na

instituição com o maior nível de institucionalização do sistema internacional. A

nova institucionalidade do regime buscaria se adaptar a essa nova circunstância,

apresentando implicações centrais para o destino da rodada e para o papel que o

G-20 seria capaz de desempenhar nas negociações, tomando parte no círculo mais

estreito das negociações.

Sob a perspectiva desse impacto sistêmico sobre a OMC, torna-se preciso

compreender as implicações da trajetória das instituições econômicas de Bretton

Woods, sob o prisma da mudança ou da continuidade nas bases da ordem

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internacional. Afinal, a continuidade dessa evolução pode ser vista como

responsável pela tensão política que se manifesta sobre a OMC, sendo

indissociável da sua inserção na ordem internacional no fim dos anos 90. Somente

a partir desse resgate, torna-se possível compreender as implicações e significado

da emergência de um movimento de balanço, como o do G-20, a partir do interior

da OMC, enquanto instituição com maior grau de institucionalização no sistema

internacional.

Nesse sentido, a partir de uma perspectiva sistêmica, a análise precisa

estabelecer o papel das instituições em relação às possibilidades de continuidade

ou mudança na ordem internacional.

Segundo Ikenberry (2001), uma das principais características da ordem

internacional construída no pós Guerra consiste na grande estabilidade derivada

do papel das instituições. Uma ordem internacional institucionalizada reduz os

retornos do uso direto do poder e aumenta o retorno do comportamento dos

Estados no interior das instituições. Esse processo parte da pactuação das bases da

ordem no pós Guerra que envolveu a restrição estratégica do uso direto do poder

pelos países desenvolvidos, tornando atrativa a participação dos países com menos

poder nas instituições, para se resguardarem dos efeitos do uso do poder pelos

Estados mais poderosos. Em contrapartida, os Estados com mais poder projetam

grande influência sobre a ordem internacional através das instituições, que

encarnam regras, normas, valores e princípios compatíveis com suas preferências.

Essas características da ordem se reforçaram com o fim da Guerra Fria,

pela multiplicação de instituições, incorporando muitos países em arranjos de

segurança ou econômicos. Entretanto, como explicar nesse caso a emergência de

um Grupo como o G-20 que, a partir de uma estratégia de coalizão, busca se

contrapor ao poder de influência dos países desenvolvidos sobre a OMC?

Segundo Ikenberry (2001), certas áreas do sistema internacional se

apresentam tão institucionalizadas que se poderia falar na emergência de uma

ordem constitucional. O conceito de uma ordem internacional constitucional

corresponde à algum grau de semelhança entre o papel das instituições no cenário

doméstico e internacional. Em ambos os casos, instituições diminuem os retornos

do uso do poder. No entanto, existe uma distinção fundamental entre a atuação das

instituições no cenário interno e externo dos Estados.

No âmbito doméstico, instituições operam em conjunto, garantindo através

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da complementaridade da sua atuação que o uso do poder se restrinja em prol do

engajamento nas instituições. No caso das Relações Internacionais, apenas certas

áreas se sujeitam ao conceito de ordem constitucional. Particularmente no caso

das instituições econômicas criadas em Bretton Woods, sua trajetória assume

momentos de grande complementaridade. É o conjunto das instituições, operando

de forma complementar que assegura a restrição ao uso do poder no sistema

internacional, gerando grandes retornos para os atores se engajarem nas

instituições.

No entanto, uma ordem estável não significa que ela não passe por

desafios. Ao contrário, uma ordem só pode ser considerada estável, caso passe por

desafios e os supere. Quando isso ocorre, além de estável a ordem pode ser

considerada também resiliente (IKENBERRY, 2001).

O surgimento do G-20 buscando contrabalançar o poder dos países

desenvolvidos sobre a OMC, lança um desafio às bases da ordem internacional,

tais como construídas sobre as instituições no pós Guerra. Caso o grupo fosse bem

sucedido em obter uma reforma fundamental do comércio agrícola que

satisfizesse a ambição do mandato de Doha (2001) poderíamos falar de uma

ruptura fundamental nas bases da ordem.

O fato de isso não ter ocorrido sugere que um momento de transição na

atuação das instituições de Bretton Woods teria permitido que o tema do

desenvolvimento ressurgisse com força na década de 90, possibilitando a certos

BRICs capitalizarem a legitimidade do tema, na construção de uma coalizão que

se compunha de mercados emergentes liderando uma maioria de países de menor

desenvolvimento.

Nesse sentido, a trajetória do G-20 oferece uma oportunidade de teste para

a teoria de Ikenberry (2001), pois na ausência de uma grande ruptura, mas diante

de um momento de transição, as instituições buscam reorganizar as bases da sua

atuação conjunta. Isso ocorreu nas discussões sobre coerência entre os mandatos

do Banco Mundial, da OMC e do FMI, que acontece na Conferência de Monterrey

(2002).

Naquele momento, o desenvolvimento se deslocara da agenda das

instituições que tradicionalmente lidavam com o tema. Precisamente no mesmo

momento, a OMC foi capaz de lançar uma rodada centrada no tema do

desenvolvimento, que consistia no debate que assumira o proscênio na agenda das

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Nações Unidas. Isso aparece nas Metas do Milênio (2000) e seria enfatizado na

Conferência de Monterrey (2002), quando o tema do desenvolvimento entra com

força na agenda internacional, a partir do debate sobre a reforma das instituições

de Bretton Woods.

Quando o G-20 se forma o que lhe permitiria contar com o apoio de uma

grande variedade de países em desenvolvimento - como no caso de um G-90, em

Cancun (2003) e de um G-110, em Hong Kong (2005) - era a perspectiva de que a

ênfase da rodada no desenvolvimento seria deslocada da agenda pela tradicional

liderança transatlântica das negociações. Nesse sentido, a costura de uma proposta

concreta de negociação em agricultura consistiu na reação ao domínio das

negociações pelos EUA e a UE. Essa consistiu na alternativa possível para

capitalizar as frustrações dos PEDs com o rumo das negociações que se afastavam

do conteúdo do Mandato de Doha (2001) e do seu compromisso com o

desenvolvimento.

As implicações da conjuntura da ordem internacional se fizeram sentir

sobre a rodada pelo comportamento da coalizão, desde o início. Isso ocorre pelo

G-20 não esgotar seu âmbito de atuação na OMC, pois ele consiste na

materialização da ação coletiva dos países em desenvolvimento, liderados por

BRICs, ou grandes mercados emergentes que emprestam seu grande peso político

ao grupo.

A distribuição do poder no G-20 se apresenta extremamente concentrada

num G-6, que se divide entre um G-3, formado por BRICs – Brasil, Índia e China

- e outro G-3 composto por membros de menor expressão – Argentina, Chile e

África do Sul.

O núcleo duro da estratégia do G-20 partiu de BRICs que haviam

despontado no cenário internacional nos anos 90, ostentando níveis de

desenvolvimento que os afastavam profundamente da maior parte dos países em

desenvolvimento, dificultando a construção de qualquer agenda mais ampla para a

coalizão.

Esses mercados emergentes fazem parte de outros grupos de governança

global, como o G-20 econômico, surgido na ressaca das crises financeiras da

década de 90, composto por países que vinham buscando exercer uma maior

influência sobre as instituições que correspondesse a sua recente ascendência

econômica. Essa composição apresentaria impactos centrais sobre a coalizão, pois

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ao lado desses mercados emergentes, o grupo envolvia uma maioria de países em

desenvolvimento que não auferiram os benefícios da inserção na economia

internacionalizada dos anos 90 da mesma forma que os seus líderes. Em contrário,

para esses países se tornava claro que a distância entre os níveis do seu

desenvolvimento e o das economias desenvolvidas se ampliara.

Quando a trajetória das instituições desloca o tema do desenvolvimento

para o interior da OMC, abre-se a oportunidade para o surgimento do G-20,

enquanto iniciativa de BRICs que buscavam uma maior influência sobre a ordem

internacional que correspondesse ao seu nível de desenvolvimento econômico.

Estes países aspiravam, entretanto, por uma maior inclusão na ordem

internacional, e na OMC em particular, mas jamais a contestação às bases da

ordem.

Isso consiste num problema, que implicaria numa grande ambigüidade da

coalizão, conduzindo às dificuldades futuras para a manutenção da sua coesão.

Afinal, a condição para uma maior influência dos países em desenvolvimento

sobre instituições como a OMC implica teoricamente numa ruptura fundamental

nas bases da ordem internacional construída no pós Guerra, que apresenta como

sua característica mais fundamental o poder de influência dos países

desenvolvidos sobre as instituições (IKENBERRY, 2001).

As implicações para a rodada do surgimento do grupo se tornariam mais

intensas a partir do momento em que o G-20 toma parte do círculo mais estreito

de negociações da rodada, conjuntamente aos países desenvolvidos no FIPs.

Principalmente por as bases da ordem ampara da nas instituições não permitirem

ao grupo a realização das suas ambições de uma reforma fundamental do

comércio agrícola.

O que passa a se sobressair, a partir do momento em que Brasil e Índia

adentram esse círculo de negociações, são as divergências entre esses líderes do

grupo e a grande maioria dos demais membros que não se sentem representados,

mas identificam as divergências entre os interesses dos líderes do grupo e os seus.

Nesse quadro, uma longa trajetória das negociações teria o poder de

crescentemente desgastar a coalizão, cujas bases repousavam sobre uma proposta

agrícola que só se sustinha a partir da possibilidade de concessão do tratamento

especial e diferenciado para a grande maioria dos seus membros, que jamais

cogitaram a liberalização dos seus mercados em agricultura.

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A partir de então, o grupo se veria diante de crescentes dificuldades para

manter a sua coesão, conforme a evolução das negociações não entregasse

resultados concretos para os seus participantes. Nesse caso, muito além da sua

proposta agrícola, o que parece sustentar a coesão do grupo consiste no

compromisso com o tema do desenvolvimento dos PEDs, que figura no Mandato

negociador de Doha.

Em nome dessa bandeira de legitimidade, o G-20 passa a assumir a

posição de guardião desse Mandato. Em seu nome, busca sempre o apoio das

demais coalizões de PEDs na OMC - como o ACP, o G-90, o G-33- como

imprescindível para as suas reivindicações. No entanto, quando conquista esse

apoio à frente de um G-110 em Hong Kong (2005), o grupo se torna incapaz de

negociar à frente de uma coalizão tão ampla e heterogênea.

Ao contrário, o grupo assume uma postura ambígua pela sua liderança, que

paralelamente ao apoio dos PEDs na OMC, persegue incansavelmente uma

solução para o avanço das negociações da rodada Doha (2001) se aliando aos

países desenvolvidos em muitas ocasiões. A partir desse ponto, compromete

crescentemente a sua coesão interna desgastando as bases da aliança durante o

transcorrer das negociações.

A pergunta que esse trabalho pretende responder consiste em como, a

partir do momento de transição da ordem internacional que permitiu o lançamento

da rodada, as restrições do sistema internacional contemporâneo às iniciativas

contra-hegemônicas atuaram sobre a OMC, associando profundamente a atuação

do G-20 com a trajetória das negociações da rodada.

1.2

Justificativa

Um trabalho sobre o tema do G-20 se justifica preliminarmente pela

escassez de análises acadêmicas sobre um Grupo tão relevante, quanto recente,

consistindo em contribuição valiosa à literatura de Relações Internacionais na

academia brasileira. A maior parte da literatura sobre o tema aplica o modelo de

Robert Putnam (1985) dos jogos de dois níveis, concentrando-se sobre as

implicações de diferentes win-sets sobre o cálculo estratégico dos países no seu

relacionamento na OMC. (CAMPOLINA, 2002; CAMPOLINA e DELGADO,

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2005; OLIVEIRA, 2005). Algumas análises exploram a teoria de coalizões

(ONUKI; AMÂNCIO, 2009), que se concentra sobre as limitações e

possibilidades da ação coletiva dos países em desenvolvimento no interior do

regime.

Essas análises contribuem com a literatura de Relações Internacionais, ao

salientarem características do regime que constrangem as iniciativas dos países

em desenvolvimento na OMC ou a partir das suas implicações sobre o cenário

interno dos países do G-20. No entanto, elas não exploram as relações entre essas

características do regime e a ordem internacional pós Guerra Fria, na qual a OMC

se insere desempenhando um papel fundamental para o avanço do

multilateralismo num momento em que a resposta das instituições à crise era

fundamental.

Também não enfatizam o momento particular em que o G-20 se forma no

que diz respeito às conseqüências das crises sobre as perspectivas de

desenvolvimento dos países da periferia naquele momento, quando o

desenvolvimento passa a ser incorporado na OMC. Em suma, não ressaltam a

capacidade de resposta das instituições às crises e as implicações que podem advir

desse processo.

Ao priorizarem na análise as características do regime de comércio da

OMC isoladamente das demais instituições de Bretton Woods, enxergam o G-20

como um fenômeno similar à outras iniciativas dos países em desenvolvimento

dentro do regime de comércio. Contrastando essa coalizão com iniciativas

anteriores dos PEDs no regime, o que se sobressai são as características desse

formato de ação coletiva que se insere no conceito de coalizões de terceira

geração ou de geometria variável.

Refletindo a nova institucionalidade do regime, essas seriam coalizões

pautadas pela aliança restrita a temas específicos, não se estendendo a outros

temas ou arenas de negociação, onde o posicionamento dos mesmos atores

tenderia a se apresentar bastante divergente. Ou seja, seriam coalizões pautadas

por maior pragmatismo, formadas com base na identificação de interesses e

preferências por área de negociação no interior da OMC. Essas análises explicam

a coesão em torno do G-20, como assentada sobre propostas de negociação

concretas, distinguindo o G-20 das iniciativas anteriores da ação coletiva dos

PEDs no interior do regime.

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Ao contrário, a partir de uma perspectiva sistêmica, a proposta concreta

em Agricultura formulada pelos membros do grupo e que é comumente vista

como indício de uma grande ruptura ou evolução na atuação desses países na

OMC sugere grandes linhas de continuidade com o seu comportamento anterior.

O que os BRICs que lideravam o G-20 buscavam evitar a todo custo era a

reedição do domínio das negociações pela aliança entre EUA e UE. Para esse

objetivo se revelava fundamental a construção de algum elemento de coesão entre

os países em desenvolvimento no interior do regime. Esse elemento de coesão foi

introduzido pela trajetória das instituições fundamentais da ordem econômica

internacional, que o incluíram na OMC, como parte da resposta das instituições à

um momento de crise das Relações Internacionais.

O G-20 surge de forma reativa à aliança entre EUA e EU e à proposta

agrícola comum, em agricultura. Não é o novo comportamento pró-ativo dos

membros do G-20 à frente de um novo formato de coalizão o que se destaca, mas

o recurso a um elemento de coesão que torne possível reeditar a clivagem Norte-

Sul. Isso é conseguido através do tema do desenvolvimento. A construção da

proposta agrícola sempre dependeu da concessão do tratamento especial e

diferenciado durante as negociações para que a coalizão adquirisse viabilidade.

Essa proposta parece antes uma tentativa de reeditar as bases de aliança

anterior dos PEDs no regime através das coalizões de bloco. Aqui parece antes

haver grande continuidade e não ruptura no comportamento dos PEDs, pois essa

fragilidade da coalizão se encontra deslocada da nova institucionalidade do

regime. Ela encontra abrigo, apenas, a partir da trajetória das instituições e da

grande legitimidade do tema do desenvolvimento que passa a ser incorporado na

OMC.

A principal justificativa para uma análise que explore os constrangimentos

à atuação do Grupo a partir dos impactos sistêmicos da ordem internacional sobre

a OMC e suas implicações sobre o ressurgimento da clivagem Norte-Sul consiste

na possibilidade de uma explicação alternativa do surgimento do G-20 que

também torne compreensível os dilemas com que os países em desenvolvimento

se defrontaram para manter a sua coesão na aliança. A partir de uma perspectiva

sistêmica, a coesão do G-20 não se assenta tanto sobre o compromisso dos seus

membros com a proposta de negociação em agricultura construída para evitar o

domínio das negociações pelos países desenvolvidos. Ao invés disso, a grande

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coesão dos países em desenvolvimento em torno do G-20 e que em diversas fases

das negociações contou com o apoio de muitos outros grupos de PEDs, como o

ACP, G-33, G-110, G-90, encontrava-se no tema do desenvolvimento que foi

incorporado à OMC, no Mandato de Doha (2001).

Nesse caso, o G-20 liderado por BRICs ou mercados emergentes que não

pretendem questionar as bases da ordem, mas aspiram a uma maior inclusão e

influência, compatíveis com seu desenvolvimento recente, deveriam conduzir as

negociações buscando neutralizar a grande heterogeneidade nos níveis de

desenvolvimento econômico que a coalizão abrigava no seu interior. Somente

assim seria possível prosseguir negociando unidos frente aos países

desenvolvidos. Nesse sentido, o trabalho se justifica por buscar explicar não

apenas o surgimento, mas também o comportamento do G-20, a partir da grande

vulnerabilidade do grupo que se associa intimamente com o momento vivido

pelas principais instituições da ordem econômica internacional que permanece

condicionando a trajetória das negociações, a partir da sua formação.

1.3

Problema e hipótese

 

Segundo Ikenberry (2001), após as Guerras abrem-se oportunidades para a

criação de uma nova ordem internacional. Somente a partir dos momentos de

grandes rupturas das instituições, torna-se possível que os Estados construam as

bases de uma nova ordem. A oportunidade da mudança permanece restrita a essas

condições, devido ao efeito estabilizador das instituições sobre a ordem

internacional, pois ao vincularem os Estados em arranjos pactuados nos

momentos de emergência de uma nova distribuição do poder no cenário

internacional, instituições estabelecem características path dependent da ordem,

relacionadas à prevalência dos princípios, normas e regras procedurais nas

Relações Internacionais.

A nova assimetria de poder após as Guerras consiste em estímulo e

incentivo para os Estados estabelecerem instituições que os vinculem em torno

dos novos princípios e regras. Para Ikenberry (2001), a ordem internacional

emergente no pós Guerra se caracterizou pela opção estratégica dos Estados

Unidos de restrição do uso direto do seu poder sobre os demais Estados, em

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contrapartida pelo consenso internacional sobre o seu domínio. A partir do

engajamento dos Estados nas instituições, foram estabelecidas as bases desse

pacto entre Estados poderosos e com menos poder, originando um processo de

baixos retornos do poder e alto retorno das instituições como característica

fundamental da nova ordem internacional.

A teoria apresenta como implicação central que instituições tanto projetem

quanto restrinjam o poder no sistema internacional, a partir da natureza

consensual das instituições. Desse modo, o dilema central da política consiste na

conversão do poder, enquanto capacidades materiais, em autoridade legítima,

mediante o conceito de ordem constitucional:

Constitutional orders are political orders organized around agreed-upon legal and political institutions that operate to allocate rights and limit the exercise of power... the stakes in political struggles are reduced by the creation of institutionalized processes of participation and decision making that specify rules, rights, limits on power holders. A constitutional order is neither identified nor ensured by the existence of a constitutional document or charter...but by the way in which agreed-upon and institutionalized rules, rights, protections and commitments combine to shape and circunscribe the wielding of power within the order. (IKENBERRY, 2001, p. 29) O papel estabilizador das instituições, a partir da restrição do poder

consiste em estabelecer direitos, compromissos e prerrogativas, restringindo nesse

processo o uso direto do poder. A partir desse papel das instituições, a teoria

identifica em certas áreas do relacionamento entre Estados, sob grande

institucionalização, algum grau de semelhança entre os efeitos das instituições no

âmbito doméstico dos Estados e seu papel no sistema internacional. Quando isso

ocorre, poderíamos falar de uma ordem constitucional internacional se

manifestando em certas áreas das Relações Internacionais.

Particularmente, no caso da ordem econômica criada em Bretton Woods, a

grande institucionalização dessa área das Relações Internacionais permite

identificarmos elementos de constitucionalidade como efeito das instituições

sobre a ordem. As instituições criadas em Bretton Woods regulavam as trocas

internacionais no GATT (1947), supervisionavam e proviam o equilíbrio

macroeconômico dos países (FMI) e possibilitavam a reconstrução da Europa

devastada pela Guerra (BIRD).

Sob uma grande complementaridade de atuação, o design institucional

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formulado e implementado no pós Guerra era capaz de mitigar o surgimento de

disputas distributivas entre os países. Sob o compromisso de Embeeded

Liberalism (RUGGIE, 1983), era possível a conciliação entre a autonomia dos

instrumentos de política doméstica dos Estados, com a estabilidade

macroeconômica no cenário internacional, resultando em grande crescimento

econômico nos primeiros anos do sistema econômico inaugurado em Bretton

Woods.

Como parte dessa estrutura econômica, a baixa institucionalização do

regime de comércio, frente às outras instituições da ordem econômica possibilitou

que as primeiras rodadas do GATT promovessem um avanço inaudito do processo

de liberalização comercial. A grande flexibilidade da aplicação das regras fazia

com que o Acordo Geral atuasse como válvula de escape das obrigações dos

Estados com as demais instituições, pois sua operação era plena de exceções para

acomodar as necessidades da correção dos déficits nos balanço de pagamentos dos

países com o fito da preservação da estabilidade macroeconômica.

O início da crise dessa arquitetura viria em 1971 com o fim do

compromisso de Embeeded Liberalism (RUGGIE, 1993), sepultando a fase da

atuação conjunta das instituições que possibilitava a convivência do Welfare State

com o grande crescimento da liberalização comercial da primeira fase do GATT.

A partir do seu fim, fantasmas do período do entre guerras ressurgiriam, como o

protecionismo comercial dos Estados industrializados que buscavam lidar com a

crise econômica, agravando as conseqüências da crise do compromisso liberal.

A partir de então, o papel estabilizador das instituições da ordem

econômica envolveria uma grande rearticulação da sua atuação. Na capacidade de

resposta das instituições às crises reside a prova do seu efeito estabilizador sobre a

ordem internacional, pois uma ordem internacional que não passasse por desafios

não poderia ser considerada estável (IKENBERRY, 2001). Nesse sentido, como

condição da sua estabilidade, uma ordem internacional deve também ser resiliente

às crises (IKENBERRY, 2001). No que diz respeito ao regime de comércio do

GATT, o grande efeito da rearticulação das instituições da ordem econômica

sobre o seu pilar menos institucionalizado apresentaria conseqüências definitivas

para a inserção dos países com menos poder no regime.

Na Rodada Tókio (1973-1979), os principais resultados vieram pela

criação dos Códigos em novas áreas nas quais os países em desenvolvimento não

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tinham condições de assumir os maiores compromissos necessários à celebração

dos acordos. Como contraparte desse avanço do regime por novas áreas que

excluía das vantagens da liberalização comercial a grande maioria das suas partes

contratantes, houve a concessão de uma base jurídica ao SGP3, pela Cláusula de

Habilitação (1979), permitindo que a periferia usufruísse o direito ao Tratamento

Especial e Diferenciado, já incluso na Parte IV do GATT, como fruto da luta do

G-77 no interior da UNCTAD, desde 1964.

Esse resultado gerou uma grande fragmentação do Acordo Geral, pois

incorporava ao interior do GATT a diferença de níveis de desenvolvimento

econômico entre os países, tornando-se efetiva a existência de um espaço

diferenciado e exclusivo para os PEDs no interior do regime de comércio. Nesse

avanço do regime na direção de temas do interesse dos países desenvolvidos, que

buscavam contornar os impactos da crise econômica internacional sobre as suas

economias, princípios fundamentais do regime foram sacrificados, como o

princípio de Nação Mais Favorecida e do Tratamento Nacional. Contribuía para

isso a natureza do GATT, enquanto pilar menos institucionalizado da ordem

econômica criada em Bretton Woods, ostentando grande flexibilidade para

acomodar as exceções necessárias à satisfação dos interesses das economias

desenvolvidas que conduziam as negociações no interior do regime

Essa resposta à crise envolvendo o regime de comércio cindia o espírito do

Acordo, ao romper com os seus princípios fundamentais, gerando um GATT

dinâmico e responsável pelo avanço da liberalização comercial entre os países

desenvolvidos e outro GATT, que resguardava os países em desenvolvimento no

interior do regime da barganha por concessões comerciais nas novas áreas nas

quais eles não se encontravam preparados para negociar reciprocamente com o

mundo desenvolvido.

A resposta à crise implicava que na rearticulação da atuação das

instituições, o pilar menos institucionalizado da ordem econômica sofresse uma

ruptura, a partir da maior influência dos países desenvolvidos nas instituições,

possibilitando responder à crise pela formalização da pouca expressão da inserção

dos países menos desenvolvidos no interior do Acordo.

Tradicionalmente, a periferia que esposava a estratégia de

                                                            3 Sistema Geral de Preferências.

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desenvolvimento da industrialização por substituição de importações buscava uma

inserção às margens do engajamento no processo de liberalização comercial para

os seus produtos manufaturados, postulando o reconhecimento das diferenças de

nível de desenvolvimento entre os países na busca pela excepcionalidade do seu

tratamento no regime. Para essa inserção às margens, também concorria a

exclusão das disciplinas do Acordo sobre os produtos de maior interesse

exportador dos países menos desenvolvidos como nos casos da Agricultura e do

setor Têxtil, regulado pelo Acordo Multifibras.

No entanto, as exceções que acomodavam os PEDs no GATT não

configuraram uma cisão do Acordo Geral como a implicada na fragmentação

criada a partir do GATT à La Carte. Teoricamente, qualquer avanço posterior

deveria integrar as partes menos desenvolvidas ao Acordo, para unificá-lo e

satisfizer as bases do pacto institucional entre Estados. Se instituições reduzem os

retornos do poder, refletindo um consenso acerca da maior influência dos Estados

com mais poder, em contrapartida pela garantia que os Estados com menos poder

não seriam abandonados ou dominados pelos Estados mais poderosos

(IKENBERRY, 2001), estabelecia-se um grande desafio à evolução futura do

regime que não poderia prosseguir avançando com a liberalização comercial

exclusivamente entre os países desenvolvidos.

A principal repercussão da crise de Bretton Woods envolvendo a

rearticulação das instituições seria fundamental para que o GATT superasse o

desafio da sua fragmentação, apresentando conseqüências definitivas para a

trajetória futura do regime. Devido a sua baixa institucionalização, o

funcionamento do GATT tornava imprescindível a liderança política dos EUA,

desde o lançamento das rodadas, passando pelo comando das negociações. A

partir da Rodada Tókio (1973-1979), esse foco de liderança foi transferido em

grande parte para o G-7.

O novo ator surgido em 1975, em resposta à crise, congregava os países

mais industrializados, consistindo numa resposta institucional imprescindível para

a coordenação multilateral em temas econômicos e financeiros, mas sua

repercussão sobre o GATT viria pela influência dos países desenvolvidos na

evolução do regime. Dentre os inúmeros efeitos da coordenação produzidos sob

essas bases – de um Roumbaillet Effect - destacam-se a negociação dos acordos

das duas últimas rodadas do GATT, nas quais a atuação do Grupo se revelou

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imprescindível para o fechamento das duas últimas rodadas de negociação,

conformando a trajetória da sua nova fase de evolução que levaria à criação da

OMC, como um dos principais resultados da Rodada do Uruguai (1986-1994).

O surgimento do G-7 rearticulava o poder de influência das sete maiores

economias do planeta sobre as instituições internacionais, a partir de um novo

formato de coordenação, idealizado para trabalhar sempre em conjunto com as

instituições econômicas (HAJNAL, 2007). Esse novo ator inaugurava um formato

institucional não-ortodoxo (HAJNAL, 2007), que possibilitava que as sete

maiores economias mundiais coordenassem seu comportamento, a partir da

grande informalidade das reuniões para tratar da temática multilateral na

economia e nas finanças. Apenas chefes de Estado negociavam, prescindindo de

um maior grau de burocratização das discussões e permitindo que os líderes

entretivessem grande informalidade em debates que consideravam os limites

individuais dos países à celebração dos acordos, tendo em conta as resistências

identificadas nos respectivos cenários domésticos das suas economias.

A informalidade do formato de cooperação inaugurado pelo G-7 buscava

superar em certo grau o fim dos efeitos da conciliação entre as esferas doméstica e

internacional das políticas econômicas dos seus membros, vigente durante o

compromisso de Embeeded Liberalism (RUGGIE, 1983). Fazia-o, entretanto, a

partir de uma grande exclusão, possibilitando grande concentração de poder em

bases informais indispensáveis para lidar com a gestão macroeconômica da crise.

Instituições representam um consenso entre países poderosos e com menos

poder em torno da maior influência dos primeiros sobre a ordem internacional,

como contraparte da redução dos retornos do uso do poder no sistema

internacional (IKENBERRY, 2001). Essas características path dependent da

ordem que derivam da presença das instituições se mantiveram naquele momento

de rearticulação da sua atuação.

Enquanto os países desenvolvidos rearticulavam as bases da sua

influência, através da concentração do seu poder no G-7 ou pelo sucesso das

demandas por uma resposta de estímulo econômico diante da recessão, como a

trazida pelo lançamento da Rodada Tókio (1973-1979), a resposta institucional

aos impactos da crise sobre a periferia envolvia também a redução dos retornos do

poder no âmbito financeiro, pois os países menos desenvolvidos não sentiram

num primeiro momento o impacto do fim de Bretton Woods.

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Nos anos 70, o FMI gerenciava o processo de reciclagem dos petrodólares,

permitindo que essas economias não sentissem os impactos da crise, ancoradas na

grande liquidez financeira proporcionada pelas linhas de crédito da instituição,

que transferiam recursos dos países superavitários nos seus balanços de

pagamentos como nos casos dos produtores de petróleo, para os países

deficitários. Isso retardou os efeitos do fim de Bretton Woods sobre a periferia na

década, sendo apenas a partir do segundo choque do petróleo (1979), que a

resposta dos EUA envolveria o choque dos juros de Paul Volcker à frente do FED

(1979), estancando a viabilidade daquele financiamento e lançando grande parte

da periferia, e da América Latina em particular, na crise da dívida e na década

perdida dos anos 80.

As características path dependent da ordem que se preservam mesmo

durante as crises derivam do consenso prevalecente entre os Estados no seu

engajamento nas instituições. A legitimidade das instituições apoiadas sobre o

consenso não prevenia o surgimento de iniciativas anti-hegemônicas dos países da

periferia. Ao contrário, essas iniciativas encontravam abrigo no interior das

instituições, pois ao reduzirem os retornos do poder no sistema internacional, as

instituições possibilitam que seus membros menos influentes busquem capitalizar

o sentido da legitimidade do pacto institucional a seu favor. O processo de

redução dos retornos do poder no sistema internacional equivale ao

estabelecimento das prerrogativas, direitos e compromissos através das

instituições (IKENBERRY, 2001). Somente a partir da vinculação dos Estados

nas instituições se tornaria possível a luta dos países em desenvolvimento para

que esses direitos, prerrogativas e compromissos que reduzem os retornos do

poder pudessem refletir as circunstâncias cambiantes da conjuntura internacional.

Dentro do foco da legitimidade das instituições sustentada pelo consenso,

a bipolaridade da Guerra Fria exercia efeitos importantes sobre a inserção dos

países com menos poder. Como aponta Lima (1996), foi a criação das instituições

multilaterais globais, pelos EUA no pós Guerra, que possibilitaria ao Movimento

Terceiro-Mundista, emergente do processo de descolonização, desfrutar de um

grande espaço para suas reivindicações:

 O processo de descolonização nos anos 60 e a entrada dos novos Estados nos fóruns globais erodiram a condição majoritária dos países desenvolvidos nessas arenas, permitindo que os países em desenvolvimento pudessem constituir

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maiorias em questões econômicas e sociais. Este recurso institucional e a Guerra Fria foram responsáveis pela constituição da, assim chamada, “Agenda do Desenvolvimento”, cujo eixo era a transferência de recursos e a revisão da ordem econômica internacional em favor dos países em desenvolvimento. A estrutura dual da ONU, com um Conselho de Segurança no qual as superpotências exercem o poder de veto e uma Assembléia Geral em que vale o princípio de “cada país um voto”, ilustra a arquitetura de poder da antiga ordem. Independentemente dos resultados alcançados pelas demandas do Terceiro Mundo por justiça distributiva no plano internacional, os maiores espaços de negociação para países sem poder nessa ordem bipolar constituíram um fenômeno atípico na história do sistema internacional. (LIMA, p. 120)

As demandas pela reforma da ordem econômica internacional surgiam

embaladas pela grande adesão do Terceiro Mundo às instituições internacionais.

No entanto, esse engajamento se dava a partir da bipolaridade, possibilitando que

esses países representassem uma alternativa ao alinhamento automático às duas

esferas de influência. No interior das instituições, um mundo bipolar sustentava o

maior direito à voz dos países com menos poder, que passavam a expressar uma

visão alternativa que resguardasse as necessidades do seu desenvolvimento do uso

direto do poder como exclusivo determinante da agenda internacional.

A controvérsia ideológica entre os dois pólos do poder provia um foco ao

sistema internacional, ao gerar coerência entre o poderio econômico-militar e a

produção de sentido, no âmbito dos valores. A universalidade das mensagens em

confronto ideológico, vindas do Leste e do Oeste sustentava a polarização

econômico-militar (EUA X URSS), numa polarização correspondente de visões

de mundo. Essa correspondência entre poder e significado, como a conceitua

Lafer (1994), não prevenia a existência de um amplo espaço para negociação entre

o Norte e o Sul, pois a agenda internacional não se esgotava nas relações Leste-

Oeste. Na impossibilidade do enquadramento ideológico de todos os países sob

um desses pólos, resguardava-se certa autonomia de inserção na ordem

multilateral, tanto no campo econômico, quanto político.

É nesse contexto que surgem, no campo econômico, o Grupo dos 77 e, no político, o Movimento dos Não Alinhados. Com efeito, o parâmetro último do sistema internacional era dado pela relação Leste-Oeste, mas como esta não tinha poder suficiente para organizar a agenda internacional exclusivamente em torno de sua polaridade, essa situação abriu espaço para as tensões e para os conflitos regionais, e para que a temática Norte e Sul tivesse uma dinâmica própria em todos os campos, inclusive no dos valores. Nesse sentido, no âmbito do multilateralismo, o Grupo dos 77 e o movimento dos não-alinhados foram a expressão possível da polaridade Norte e Sul, no enquadramento da polaridade Leste-Oeste. (LAFER, 1994, p. 100)

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Para Lafer (1994), a polaridade Norte-Sul se enquadrava ou se construía a

partir da polaridade Leste X Oeste. Nesse sentido, estabelecia-se uma relação de

dependência entre da economia em relação à política, pois a bipolaridade

apresentava efeitos sobre as possibilidades da cooperação nas relações

econômicas. Segundo Gilpin (2001, p.5), a ênfase nos interesses de segurança e de

coesão das alianças que conformavam a bipolaridade provia a coesão política para

a economia mundial operar sem grandes rupturas, facilitando o estabelecimento de

compromissos, a despeito das divergências nas preferências econômicas entre os

Estados.

A partir dessa relação complementar da política como base para as

transformações da economia é que se inseriam os esforços dos Países Não-

Alinhados, que instrumentalizavam seu maior espaço de proposição na ordem,

para reformas da economia internacional.

[...] em vista do “sucesso” do planejamento central do socialismo (resolve os problemas agudos de pobreza ao comandar processos de redistribuição) e, entre os capitalistas, das fórmulas social-democratas, era legítima a noção de que seria possível intervir politicamente para, corrigindo os defeitos do mercado, alcançar níveis melhores de distribuição de renda, maior dose de justiça social... A política corrigiria a economia. Em termos mais concretos, o movimento dará os fundamentos de instituições como a UNCTAD, e de correções de marcos legais, como na introdução do capítulo IV do GATT, e, sobretudo, de uma série de propostas que se resumem na idéia de uma Nova Ordem Econômica. (FONSECA JR., 2004, p. 202) Os resultados da Rodada Tókio (1973-1979) e a reciclagem dos

petrodólares pelo FMI se inserem dentro dessa matriz da bipolaridade, implicando

na construção de um espaço próprio para os países com menos poder nas

instituições. Espaço construído a partir dos efeitos da bipolaridade sobre a

legitimidade das instituições internacionais e que determinava o reconhecimento

da diferença dos níveis de desenvolvimento entre os países como fator central

para o processo de redução dos efeitos do poder no sistema internacional.

As conseqüências do fim da bipolaridade sobre as instituições da ordem

econômica e sobre o regime de comércio em particular alteraram a inserção dos

países com menos poder no sistema internacional. Nesse sentido, grande parte da

literatura converge sobre a redução sistêmica do espaço de proposição desses

países na ordem pós Guerra Fria (LIMA, 1996; FONECA JR, 2004; LAFER

1994). Essa restrição de espaço propositivo se relaciona intimamente com o pacto

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dos Estados em torno das instituições, pois o efeito da bipolaridade sobre a

legitimidade na ordem internacional consistia nos pólos do poder condicionar a

adesão das potências às normas internacionais. (FONSECA JR, 2004)

Dada à natureza socialmente construída da legitimidade se apoiar sobre

consensos, durante a Guerra Fria a legitimidade se limitava ao interior de cada

bloco de poder, sendo incapaz de gerar ou sustentar normas que superassem a

divisão do mundo em blocos ideológicos. A universalidade sobre a qual se

sustentava a legitimidade era sempre parcial e restrita a um dos pólos do sistema

(FONSECA JR, 2004).

Com o fim da bipolaridade, generaliza-se a visão de mundo liberal, onde

democracia e mercado foram percebidos como pólos convergentes do progresso,

havendo no âmbito dos valores, a ausência de uma visão de mundo alternativa

como aquela antes representada pelo socialismo. Cria-se, então, a expectativa de

uma nova ordem política mundial, baseada no Direito e na razão, assim como uma

nova articulação “otimizada” de princípios e meios, que se estende para o Leste e

para o Sul (LAFER, 1994).

Na economia internacional, a alteração fundamental se dá com o retorno

ao liberalismo como doutrina econômica hegemônica no mundo desenvolvido,

com a crença no mercado como responsável e propulsor do desenvolvimento, ao

disciplinar as relações entre os agentes econômicos. Essa dinâmica irá ferir o

vínculo de coesão das demandas do mundo em desenvolvimento nas instituições,

pois os temas suscitados pelo diálogo Norte-Sul perdem legitimidade, a partir da

restauração do princípio da reciprocidade no relacionamento entre os países.

Nesse contexto ideológico, desfavorável às demandas dos países menos

desenvolvidos, que se articula a concentração das questões comerciais no GATT,

onde as negociações são regidas pela regra das concessões recíprocas; e, depois,

na OMC, em detrimento da UNCTAD. Essa situação expressa tendência de

garantir institucionalmente a igualdade de concorrência entre “ricos” e “pobres”

sem discriminação, sob a regra das concessões recíprocas (FONSECA JR, 2004).

Desde então, as iniciativas da ação coletiva dos PEDs, inspirados na

coesão ideológica dos seus membros, enfraquecem-se, principalmente quando

considerada a natureza tradicional da articulação desses países em torno de sua

visão do sistema internacional, como projeto contra-hegemônico.

Sob a perspectiva da política enquanto conversão do poder material em

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autoridade legítima, a partir do engajamento dos Estados nas instituições

(IKENBERRY, 2001), o fim da Guerra Fria inaugura um novo momento de

historical break. Embora de menores proporções se comparado àqueles momentos

que se seguiram às Guerras, no qual o que se acentuaria, a partir do fim da

bipolaridade seria o aumento da institucionalização da ordem internacional,

reforçando as características path dependent da ordem criada no pós Guerra. Ao

invés da ruptura, sobressaía-se a continuidade e aprofundamento do processo de

redução dos retornos do poder no sistema internacional, através de um novo

momento de construção e ampliação da abrangência das instituições existentes

para acomodar os novos atores egressos do pólo que se dissolvera.

The Western order has actually become more stable over time because the rules and institutions have become more firmly embedded in the wider structures of politics and society…Over the decades, the core institutions of Western order have sunk their roots ever more deeply into the political and economic structures of the states that participate within the order. The result is that it is becoming increasing difficult for “alternative institutions” or “alternative leadership” to serious emerge. Western order has become institutionalized and path dependent...This makes whole sale change less likely. (IKENBERRY, 2002, p. 215-216) Destacava-se nesse processo o papel do regime de comércio que vinha

evoluindo da regulação da liberalização comercial restrita às tarifas, para abranger

um número crescente de novas áreas. Desde a rodada Kennedy (1963-1967),

passando pelas negociações da Rodada Tókio (1973-1979), culminando na

Rodada do Uruguai (1986-1994), a tendência que se reforçava após o fim da

Guerra Fria era a da redução dos retornos do poder, a partir da unificação das

transformações da economia internacional sendo incorporadas ao regime de

comércio. Ou seja, as transformações econômicas, unificadas pela ampliação da

regulação do GATT, foram impulsionadas pelo novo formato da ordem

internacional, que implicava em uma nova relação entre a economia e política

internacionais, a partir de um mundo economicamente mais integrado e aberto à

participação de novos atores. Segundo Gilpin (2005, p. 5).

“[...] the market-oriented world grew much larger as formerly communist and third world countries became more willing to participate in the market system; this has been exemplified by the much more active role taken by the less developed countries (LCDs) in the World Trade Organization (WTO)”.

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A criação da OMC consiste no fenômeno mais ilustrativo desse momento

de maior institucionalização da ordem no pós Guerra Fria. As bases do regime de

comércio do GATT sofreram uma grande institucionalização, tornando a OMC a

instituição mais legalizada no sistema internacional. Esse impacto sobre a

trajetória do regime de comércio reflete a influência dos países desenvolvidos

sobre o regime, que se interessavam na sua expansão, tornando-o mais abrangente

e complexo, para disciplinar as novas áreas da economia dos setores mais

dinâmicos da nova economia intensiva em conhecimento. Essa nova agenda

consistia em temas como Investimentos (TRIMs), Direitos de Propriedade

Intelectual (TRIPs) e Serviços.

A redução do espaço de proposição dos países em desenvolvimento na

ordem internacional pós Guerra Fria incidiria sobre essa trajetória do regime

durante as negociações da Rodada do Uruguai (1986-1994), pois a decisão de

criação de uma nova Organização Mundial do Comércio jamais figurou como

objetivo da rodada, sendo incluída no Acordo na fase final das negociações,

quando os efeitos do fim da bipolaridade se manifestavam sobre o sistema

internacional, conferindo grande legitimidade à unificação das normas

econômicas sob a regulação da nova OMC, cuja criação simbolizava o ponto

culminante de uma nova relação entre a economia e a política que vinha se

desenvolvendo a partir do papel das instituições na década de 80.

A partir dessa década, uma nova relação entre a economia e a política

internacionais ganhava fôlego, diante do crescente questionamento da estratégia

de desenvolvimento esposada pela periferia, baseada na substituição de

importações, que prevenia essas economias de uma maior integração ao mercado

internacional. A partir da crise da dívida externa, a vulnerabilidade econômica

desses países que precisavam de financiamento internacional para sustentar o

grande passivo da dívida levaria a um movimento de convergência com o

programa das reformas econômicas dos governos conservadores que assumiram o

poder nos EUA, com Ronald Reagan (1981) e Margareth Tatcher (1979), na

Inglaterra.

A formalização desse ideário de reformas econômicas para aplicação na

América Latina viria pelo Consenso de Washington, formulado por John

Willianson enquanto adaptação do ideário do centro à periferia, ferindo o cerne do

que havia sido a concepção de desenvolvimento predominante na América Latina.

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Nesse movimento ruíram as bases da industrialização por substituição de

importações. A CEPAL reformularia a direção das suas análises em 1989,

refletindo a concepção do desenvolvimento desses países sendo crescentemente

percebida na estreita dependência da liberalização comercial, do ajuste estrutural

para o enxugamento dos custos nos Estados da periferia, visando à estabilidade

macroeconômica, que envolvia as privatizações e reformas des-regulatórias e de

liberalização dos seus setores financeiros domésticos.

Para a aplicação das reformas, o papel das instituições de Bretton Woods

se revelou fundamental pelos constrangimentos impostos sobre as economias em

transição, a partir das políticas de condicionalidades do FMI e do BIRD para

concessão de empréstimos. Dentro desse quadro, a Rodada do Uruguai se insere

como o primeiro avanço do regime de comércio, após o fim de Bretton Woods. O

resgate da participação dos países menos desenvolvidos no regime, como

necessidade originada da fragmentação produzida pela Rodada Tókio (1973-

1979), deveria ser atingido contando para isso com esse momento de grande

sinergia da atuação das instituições econômicas, que buscavam vencer a

resistência dos países em desenvolvimento em embarcar nas novas negociações.

As negociações da Rodada Uruguai do GATT (1986-1994) que

terminariam levando à criação da OMC ocorreram, portanto, com os países da

periferia sofrendo um grande constrangimento por parte das instituições. A partir

do grande poder de influência dos países desenvolvidos sobre o FMI e o BIRD, já

reorganizado no novo formato de cooperação pós Bretton Woods do G-7,

reunindo mais da metade dos votos necessários para a aprovação das decisões em

ambas as instituições, foi possível enquadrar as economias da periferia no

processo de ajuste das reformas econômicas. As negociações da Rodada Uruguai

(1986-1994), representaram um dos pontos fundamentais desse processo com

grandes implicações e condicionamentos sobre os desdobramentos posteriores das

negociações no regime que desde então se dariam sob outras bases.

A Rodada do Uruguai (1986-1994) representou verdadeira reforma

regulatória da economia internacional, cuja concretização dependia

fundamentalmente da extinção do espaço diferenciado dos PEDs no interior do

GATT, condicionado pela bipolaridade e seus efeitos sobre a inserção desses

países no regime. Nesse sentido, para o avanço da rodada seria preciso atrair esses

países para as negociações, pela inclusão da Agricultura e dos Têxteis, que nunca

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fizeram parte do GATT e passaram também a compor a agenda da rodada. No

entanto, a alteração mais significativa da transição do modo de inserção

tradicional dos PEDs no regime viria pelas repercussões da nova concepção de

desenvolvimento propagada pelas instituições, que negava às peculiaridades do

nível de desenvolvimento econômico desses países um reconhecimento

diferenciado que os prevenissem de arcar com os custos da sua inserção na ordem

internacional.

A partir dessa nova rodada, os PEDs teriam de ofertar concessões e

barganhar por elas nas futuras negociações, sob as bases da barganha em

condições de reciprocidade com o mundo desenvolvido. Essa alteração da

participação dos PEDs no GATT, entretanto, implicava também na alteração da

sua forma tradicional de representação, que organizava a resistência ao

lançamento das negociações da Rodada do Uruguai (1986-1994), mediante

coalizões de bloco, como o G-10, que emergira formalmente do Grupo Informal

de países em desenvolvimento, com esse objetivo de bloqueio. Seria a partir do

princípio da reciprocidade nas negociações que o G-10 seria derrotada por um

racha definitivo que, simultaneamente, sepultava o estilo tradicional de

representação dos PEDs no regime e permitia o lançamento da rodada sobre os

novos temas. A partir de então, a busca por uma nova forma de representação no

interior do regime consistiria em um grande dilema para esses países.

Principalmente, a partir das implicações políticas das novas áreas de

regulação econômica, anteriormente restritas às prerrogativas das instâncias

decisórias internas sob a soberania dos países. Os temas negociados nessa rodada

implicavam num grau de interferência da regulação multilateral inaudito sobre as

políticas econômicas nacionais. Se sob Bretton Woods, as instituições

resguardavam as bases de autonomia da política interna, os novos temas

negociados na Rodada do Uruguai (1986-1994) assinalaram uma transição

importante. As novas disciplinas do regime nas novas áreas não mais pertenciam

ao âmbito de uma regulação negativa, que previa o que os Estados não deveriam

fazer. Ao contrário, as novas regras assinalam a evolução do regime para uma fase

de regulação positiva, prescrevendo como os Estados deveriam se comportar, em

uma série de áreas da economia.

Essa transição apresentaria repercussões fundamentais mais tarde, pois ela

ocorre dentro do amplo quadro de reformas econômicas de ajuste estrutural e a

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partir da convergência entre o ideário de desenvolvimento do centro e da periferia

dos anos 80. Na década, economias em desenvolvimento eram constrangidas,

pelas políticas de condicionalidades das instituições econômicas a aderirem a essa

nova regulação, havendo em muitos casos interiorizado a necessidade das

reformas e da adesão às novas disciplinas do comércio como um meio de

vinculação entre o curso da sua política econômica interna e a tendência da nova

economia internacional que exigia um maior grau de inserção nos mercados como

condicionante das possibilidades do seu desenvolvimento econômico.

Naquela conjuntura de criação da OMC e institucionalização do regime de

comércio, abriu-se a oportunidade para que a instituição abrigasse na sua

constituição uma grande fragilidade política. Enquanto uma das organizações

internacionais que ostentam um maior grau de institucionalização, pelo seu alto

índice de legalização (ABBOTT et al., 2000),4 a OMC encarnava de modo

privilegiado, os dilemas colocados pelo estabelecimento de consensos políticos,

entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Segundo Ikenberry (2001,

p.279), instituições tanto projetam o poder no sistema internacional, quanto o

restringem. Uma das implicações centrais do argumento consiste em que a

possibilidade da mudança permanece dependente das instituições, tanto quanto a

resistência a quaisquer alterações no status quo, consoante as alterações na

percepção dos atores acerca da legitimidade dos processos nos quais se encontrem

envolvidos, repercutindo sobre o consenso sobre o qual operam os princípios e

normas organizacionais.

Decorre da natureza das instituições de projetarem o poder no cenário

internacional, a partir da formalização de um consenso, que se perceba o poder da

OMC relacionado aos interesses das maiores potências econômicas mundiais.

Entretanto, precisamente por se apoiar sobre os interesses dos países

desenvolvidos, refletindo seus interesses pela conservação das trocas

internacionais que lhes são favoráveis, a Organização também poderia ser

utilizada em favor dos países em desenvolvimento, pois instituições também

restringem o poder dos Estados mais poderosos, refletindo o consenso que serve

de base para sua criação:

                                                            4 A legalização é assumida aqui como forma de institucionalização, seguindo o argumento de Abbot et al., (2000). Na seção metodológica deste projeto, explicaremos em maior detalhe as implicações e o significado do conceito de legalização.

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The more countries rely in practice on the WTO to resolve trade disputes, and the more throughly institutionalized it becomes, the greater the incentive to try to utilize it as a mechanism for collective redress...The WTO provides a potential quite useful forum in which developing countries might explore ways of reshaping the rules aimed at reducing first/third world disparities, but it is doubtful whether developing countries will ever take advantage of this potential. (EVANS, 2000, p. 4) O processo de restrição e projeção do poder pela OMC sobre o sistema

internacional pode ser identificado ao contraponto ou ambigüidade existente entre

o seu caráter formal e informal. Formalmente, o caráter democrático do processo

decisório na OMC, consoante a regra de um país, um voto, permite que ela seja

percebida como uma das organizações internacionais mais democráticas no

sistema internacional. Entretanto, na prática, sua operação poderia ser mais bem

definida como oligárquica, tendo em vista a conservação do precedente

estabelecido no GATT, de que todas as decisões deveriam ser tomadas por

consenso. Esse expediente permite que os EUA e o mundo em desenvolvimento

estabeleçam a agenda da organização (EVANS, 2000).

O contraste entre uma democracia formal e uma oligarquia informal

conforma um ambiente de negociação que opera em tensão constante, sugerindo

grande potencial para a mudança. Esse contraste entre o caráter formal/informal

da OMC repercute sobre o seu poder e o papel central que ela desempenha. Como

fórum central para a regulação do comércio internacional, suas atribuições

incluem o seu veredicto ou julgamento da política doméstica dos Estados, criando

a impressão de que o poder da OMC deve se estender, inclusive, ao interior das

fronteiras nacionais, por legitimar sanções comerciais sofridas por países que não

seguiram as suas regras (EVANS, 2000). Entretanto, em termos formais, a OMC

não justifica essa estimativa, pois seu poder legal é limitado, de forma a evitar

ameaças à soberania dos Estados membros:

 The WTO was given no formal power to dictate national trade policies or even punish (directly) countries that refuse to abide by the obligations for oppeness that they have legally agreed to follow. Its only formal power is to legitimize the right of countries to engage in bilateral trade sanctions when their interests have been damaged by trade restrictions that violate the WTO agreements. (EVANS, 2000, p. 3)

 

Essa limitação do seu poder se revela também como fragilidade política

em relação à reserva que caracteriza o apoio dos países desenvolvidos à

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Organização. É importante a distinção entre a hegemonia ideológica da

conveniência da liberalização comercial em princípio e as interferências na

soberania dos seus Estados membros pelas decisões da OMC, que permanecem

como questão politicamente sensível, pois Estados superam o poder de atração das

instituições de governança global (EVANS, 2000). Essa fragilidade política pode

consistir tanto numa ameaça à própria sobrevivência da Organização, quanto em

estímulo para debates e reflexões acerca de estratégias de evolução da

Organização, para a superação das suas limitações, em favor de iniciativas de

reforma, em termos compatíveis com um mais amplo suporte político.

Somente diante desse amplo quadro da evolução de evolução das

instituições econômicas de Bretton Woods, contemplando sua capacidade de

resposta às crises, quando as instituições superam os desafios buscando manter o

processo de restrição dos retornos do poder e grande influência dos países

desenvolvidos sobre a ordem internacional, torna-se possível avaliar as

repercussões de novos impactos sistêmicos sobre instituições como a OMC.

Logo em seguida à criação da nova Organização (1995), as crises de fuga

de capitais nos mercados emergentes, partindo da Ásia (1997), passando pela

Rússia (1998) e chegando ao Brasil (1999) colocava em cheque a convergência

em torno do receituário do desenvolvimento da nova ortodoxia econômica. As

críticas provinham da academia, como Ha-Jon-Chang (2002), e Dani Rodrik

(2000) ou mesmo de dentro das próprias instituições, como no caso do presidente

do Banco Mundial, Joseph Stiglitz (1999) e do Diretor Geral do FMI, Rodrigo

Ratto.

Para BACHA (2002)5, originava-se um movimento que poderia ser

designado como Consenso de Cambridge, em alusão ao berço intelectual de

alguns dos principais críticos. Além de vulnerável, a orientação econômica das

instituições passaria a ser vista como desastrosa na gestão da crise, agravando

muitos dos problemas que se propunha endereçar. Naquele momento, as críticas

se orientavam no sentido de recomendar cautela na adesão dos países ao modelo

econômico. Recomendava-se cautela e maior atenção às especificidades das

economias nacionais que deveriam ser analisadas caso a caso. Especialmente no

âmbito financeiro, criticava-se a vulnerabilidade do crescimento econômico, a

                                                            5 Bacha, Edmar.

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partir do financiamento com poupança externa.

A partir desse quadro, a recém criada OMC (1995) discute os impactos da

crise sobre o comércio na Conferência de Genebra (1998), quando é celebrado o

qüinquagésimo aniversário do regime de comércio e recomenda-se o avanço das

negociações de uma nova rodada, como forma de resposta do regime diante da

crise, ficando decidido o lançamento de uma nova rodada para o ano seguinte, em

Seattle (1999). Entretanto, esta Conferência terminaria em colapso, a partir da

grande manifestação de forças contra-hegemônicas que rejeitaram o avanço da

globalização e do multilateralismo da OMC, já refletindo os impactos da crise e

das críticas ao modelo econômico que a OMC representava.

Desde então, dois eventos no cenário internacional apresentaram grandes

repercussões sistêmicas para o formato que assumiriam as negociações da futura

rodada, pois eles condicionariam a forma como as possibilidades de lançamento

de negociações comerciais subseqüentes deveriam se conjugar ao imperativo da

conquista do apoio dos países em desenvolvimento que compunham a grande

maioria dos membros da OMC.

O primeiro desses eventos foram os ataques ao World Trade Center, em

Onze de Setembro de 2001, que ocorreram apenas algumas semanas antes do

lançamento da Declaração Ministerial de Doha (2001). Sob a sombra do fracasso

anterior da Conferência de Seattle (1999), os ataques tornaram não apenas

necessário, mas urgente o resgate do compromisso da comunidade internacional

com o avanço do multilateralismo através da OMC. Naquele momento, houve

grande manifestação de solidariedade internacional congregando países

desenvolvidos e em desenvolvimento pelo compromisso com a agenda e o avanço

do regime de comércio. Uma repercussão fundamental daquela conjuntura e que

se tornou decisiva para o conteúdo e formato futuros das negociações da rodada

consistiu no tema do desenvolvimento, anteriormente circunscrito aos outros

pilares institucionais da ordem de Bretton Woods, como o FMI e o BIRD, haver

sido incorporado ao regime de comércio como tema da primeira rodada de

negociações, na Declaração Ministerial de Doha (2001).

Essa incorporação refletia o que se encontrava em jogo no momento de

lançamento da rodada de Doha (2001), poucas semanas após os ataques do11 de

setembro, enquanto o compromisso com o multilateralismo, cujo foco exclusivo

de um avanço possível consistia no lançamento da nova rodada da OMC. Para

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essa incorporação do tema do desenvolvimento ao regime, também contribuíram

as repercussões das crises de fuga de capitais das economias emergentes do fim

dos anos 90 sobre as instituições de Bretton Woods que tradicionalmente

abrigavam o tema no seu interior, como o FMI e o BIRD. A ressaca das crises

financeiras se abateria sobre estas instituições, levando a que digerissem as

críticas à sua atuação através de um momento de balanço, que passava pela

administração de processos internos que sugeriam uma possível correção de

rumos na sua atuação, especialmente em relação às diretrizes de políticas

recomendadas por elas como via para o desenvolvimento dos PEDs.

A partir desses condicionamentos sistêmicos que respondem pela forma

como a OMC consegue lançar sua primeira rodada de negociações, em meio à

crise em duas das instituições fundamentais da ordem econômica, abria-se espaço

para o debate e questionamento das concepções do desenvolvimento prevalecentes

no receituário do Consenso de Washington.

Seria apenas a partir desse maior espaço de questionamento das bases da

ordem econômica internacional que o lançamento de uma Rodada do

Desenvolvimento em Doha (2001) passou a envolver uma disputa fundamental

entre países desenvolvidos e em desenvolvimento em torno do significado de uma

rodada comprometida com o tema do desenvolvimento econômico, levando a que

a política do Brasil e da Índia na OMC fosse diretamente relacionada à

concentração sistêmica de poder e não o simples produto de interesses

especificamente comerciais (HURREL, 2009. P 36).

Teoricamente, a restrição dos retornos do poder no sistema internacional

deriva de um pacto dos Estados em torno das instituições, garantindo a

estabilidade da ordem internacional. Apenas quando há consenso em torno das

bases do engajamento nas instituições, o poder material se converte em autoridade

legítima pela atuação das instituições restringindo o poder e projetando a

influência dos países desenvolvidos sobre a ordem internacional (IKENBERRY,

2001). No momento seguinte ao lançamento da rodada em Doha (2001), houve

grande oportunidade para que a clivagem Norte-Sul fosse ressuscitada em Cancun

(2003), dando origem à formação do G-20 na fase preparatória daquela

Conferência.

O que se sobressai, levando-se em conta a trajetória da tríade de

instituições criadas em Bretton Woods, foi a migração do tema do

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desenvolvimento para o interior da OMC, como parte da resposta à crise nas

demais instituições da ordem econômica. Somente dessa forma foi possível

superar os impasses que impediam o lançamento de uma nova rodada de

negociações da OMC, possibilitando ao mesmo tempo um avanço do

multilateralismo que reafirmasse o compromisso da comunidade internacional

com as bases da ordem amparada nas instituições. Mantinha-se pelo lançamento

da rodada, a estabilidade da ordem internacional tributária do processo de baixos

retornos do poder e projeção da influência dos países desenvolvidos sobre a

ordem internacional.

Diante daquela conjuntura de transição, quando o tema do

desenvolvimento se encontrava deslocado nas instituições onde se abrigava, abriu-

se a oportunidade para que alguns BRICs liderassem muitos países em

desenvolvimento, passando a consistir na expressão da voz destes países,

apontando o significado de uma rodada assentada sobre o tema do seu

desenvolvimento, como residindo na liberalização do comércio agrícola,

conforme figurava no Mandato negociador de Doha (2001).

O cerne das reivindicações do G-20, desde o início, repousou sobre o seu

papel de guardião da ambição do Mandato Negociador de Doha e do seu

compromisso com uma reforma fundamental do comércio agrícola, sempre como

via para o seu direito ao desenvolvimento.

A partir desse Mandato, os BRICs, que despontaram no cenário

internacional ostentando grandes níveis de crescimento nos anos 90 se

defrontaram com uma oportunidade de capitalizar essa legitimidade possibilitando

a formulação da coesão em torno do G-20. Coesão forjada em bases reativas e ad

hoc no momento preciso em que conquistas que figuravam na Declaração de

Doha (2001) pareciam escorregar por entre os dedos dos futuros membros do

grupo. Nesse sentido, o principal catalisador da ação coletiva consistiu na reedição

da aliança entre EUA e UE, através da formulação da sua proposta conjunta em

agricultura que foi percebida, pelo Brasil, como ameaça concreta de isolamento,

diante de uma possível reedição de Blair-House (1992), implicada na liderança

transatlântica das negociações.

A implicação fundamental do surgimento do G-20 de uma perspectiva

sistêmica sobre a ordem internacional (IKENBERYY, 2001) consiste nos BRICs

capitalizarem essa oportunidade de afirmarem sua influência sobre a OMC,

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buscando alterar uma das características centrais da ordem internacional surgida

no pós Guerra enquanto a grande influência dos países desenvolvidos sobre as

instituições (IKENBERRY, 2001).

Apesar de inicialmente formada como coalizão destinada a lidar

exclusivamente com as negociações agrícolas na OMC, a grande legitimidade

internacional do tema do desenvolvimento foi capaz de implicar em uma alteração

fundamental, desde a criação da ordem no pós Guerra. Essa alteração diz respeito

ao papel que os líderes do G-20 passaram a desempenhar nas negociações da

OMC, a partir da negociação do documento de modalidades do Marco de Julho de

2004, que definiu as modalidades de negociação da Rodada de Doha (2001). Na

negociação desse documento, os BRICs líderes do G-20 foram incorporados ao

círculo mais estreito de negociações da OMC, mediante a constituição do FIPs –

Five Important Parties - que envolvia, além de Brasil e Índia, EUA, UE e

Austrália.

Apesar de participarem diretamente do núcleo das negociações, entretanto,

os esforços da coalizão não foram capazes de traduzir essa maior influência em

resultados concretos. Ao contrário, a partir da conjuntura que propiciou a sua

formação, a atuação do G-20 se associou intimamente com a trajetória da Rodada

do Desenvolvimento de Doha (2001), pois os países em desenvolvimento,

liderados por grandes mercados emergentes, converteram-se no grande obstáculo

à celebração de um acordo na OMC. O G-20 e sua atuação terminariam levando à

suspensão das negociações por tempo indeterminado, coincidente com um grande

racha no seu núcleo de liderança, compartilhado pela Índia e pelo Brasil.

Isso sugere que o processo de restrição dos retornos do poder e projeção da

influência dos países desenvolvidos sobre a ordem internacional, através das

instituições permaneceu operando. Confirmou-se o argumento de Ikenberry

(2001) de que a característica mais fundamental da ordem internacional criada no

pós Guerra consiste na grande influência dos países com mais poder sobre a

ordem internacional, através das instituições.

Nesse sentido, a partir do ponto em que os BRICs que formam o G-20

buscam sustentar sua legitimidade contra o curso das negociações que os países

desenvolvidos buscam imprimir à OMC, eles se contrapõem à grande legitimidade

da ordem baseada em instituições, que permite a conversão do poder dos países

desenvolvidos em autoridade legítima. Ao postular indicar o caminho legítimo das

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negociações da OMC, correspondente à ambição do Mandato de Doha (2001), o

G-20 não se contrapõe apenas ao poder de influência dos países desenvolvidos,

mas adentra uma disputa de legitimidade frente à própria OMC.

É aqui que as dificuldades do grupo começariam a se tornar maiores, pois

a trajetória do regime de comércio criado no pós Guerra que se institucionaliza

pela criação da OMC, apresenta uma fragilidade política possível de ser

capitalizada em momentos de ruptura. Entretanto, aquela não consistia em uma

ruptura fundamental nas bases da ordem internacional.

Ao contrário consistia num momento em que a OMC respondeu à crise nas

demais instituições, sustentando a legitimidade da ordem econômica multilateral,

a partir do lançamento da rodada. Nesse sentido, a capacidade da instituição em

responder ao desafio colocado pelo surgimento do G-20 se ligava diretamente à

trajetória do regime de comércio como parte da evolução das instituições da

ordem econômica criada em Bretton Woods.

Precisamente na capacidade de incorporar a liderança do G-20 ao centro

do seu processo de negociação, a OMC ostentava sua capacidade de superar os

desafios, demonstrando grande resiliência ao desafio. Isso ocorreu pela evolução

do regime de comércio haver partido do pilar menos institucionalizado da ordem

econômica, preservando, entretanto, a grande informalidade do seu processo de

negociação, orientado para a produção de consensos. Esta característica de

informalidade se desenvolveu de uma prática prevalecente desde o GATT que foi

institucionalizada na criação da OMC.

Isso permitiu que a instituição lidasse com o movimento de balanço do G-

20, sem alterar quaisquer das suas normas, mas amortecendo as tensões políticas e

críticas que buscavam denunciar um déficit democrático na operação da

instituição. Desde o malogro de Seattle (1999), essa característica foi fundamental

para que a OMC buscasse superar os desafios ao lançamento de uma nova rodada

de negociações.

A partir da incorporação dos líderes do G-20 no FIPs, abriu-se o caminho

para que o G-20 se tornasse crescentemente vulnerável à grande legitimidade da

OMC. Como o G-20 capitalizara um momento de transição, mas não de ruptura

nas bases da ordem internacional para o seu surgimento, seria sempre sobre a

bandeira da grande legitimidade do desenvolvimento que o grupo deveria buscar

manter a sua coesão. Somente a partir disso, seria possível manter coeso um grupo

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tão heterogêneo, que, na sua grande maioria, jamais admitiria a liberalização dos

seus mercados agrícolas, conservando sua adesão ao grupo apenas diante da

possibilidade da concessão do tratamento especial e diferenciado por parte dos

países desenvolvidos naquelas negociações. Nesse sentido, a trajetória do G-20 na

rodada se aproxima de um verdadeiro guardião do Mandato de Doha (2001),

constantemente invocando a ambição daquele documento para sustentar o apoio

dos demais grupos de PEDs, o que possibilitava que o grupo tivesse o apoio de

um G-90, em Cancun (2003) ou de um G-110, em Hong Kong (2005).

Essa coesão que resultara no resgate da clivagem Norte-Sul, a partir dos

níveis de desenvolvimento entre os países, fragilizar-se-ia crescentemente diante

da grande assimetria os níveis de desenvolvimento que separava os mercados

emergentes do restante dos membros do G-20.

Esse desgaste minaria crescentemente as bases de legitimidade que

sustentavam a coesão do G-20, principalmente diante da ausência de resultados,

perante um longo período de negociações. Para uma grande parte dos países em

desenvolvimento, a redução dos retornos do poder pela OMC, a partir do seu

Sistema de Solução de Controvérsias se afigurava muito forte.

No entanto, esse poder de atração da OMC atuava igualmente sobre a

liderança do grupo, que nutria a ambição por uma maior inclusão de países que

tradicionalmente não participam das instâncias decisórias multilaterais e que,

impulsionados pelo seu grande crescimento econômico nos anos 90 passaram a

reivindicar espaço nessas arenas

Nesse sentido, o G-20 possui muitas afinidades com o G-20 econômico,

que surge como conseqüência das crises financeiras do final da década de 90,

como iniciativa de estímulo da coordenação multilateral entre as vinte maiores

economias mundiais, pela incorporação de economias emergentes, visando uma

ampliação da tradicional liderança do G-7 na coordenação econômica multilateral.

Em ambos os casos, a falta de efetividade dessas iniciativas sinaliza para

limites claros, balizados pela ordem internacional, impedindo o aumento das bases

de influência dos países, pelas características path dependent das instituições que

conformam essa ordem e inviabilizam reformas na ausência de grandes rupturas

institucionais.

Nesse sentido, o surgimento e a trajetória do G-20 refletiram a trajetória da

ordem econômica, a partir da resposta das instituições de Bretton Woods às crises:

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financeiras do fim dos anos 90 e política, após os ataques do onze de setembro de

2001. Os impactos desses desafios sobre as instituições possibilitaram que alguns

BRICs liderassem muitos países em desenvolvimento, num resgate extemporâneo

da clivagem Norte-Sul. O maior desafio do G-20 seria preservar sua coesão,

diante da grande institucionalização da ordem internacional no pós Guerra Fria,

que reduzira o espaço propositivo dos países em desenvolvimento. Nesse sentido,

o G-20 não encontra bases para manter sua união, tornando-se refém da bandeira

da legitimidade do direito ao desenvolvimento dos PEDs, constante do Mandato

de Doha (2001). A partir disso, uma crescente vulnerabilidade surgiria da resposta

da OMC ao desafio lançado pelo surgimento do G-20, pois a instituição incorpora

os BRICs ao seu núcleo de negociações. A partir de então, a trajetória do G-20

ilustraria as implicações da projeção da influência dos países desenvolvidos e a

restrição do uso do poder sobre a ordem internacional na OMC (IKENBERRY,

2001).

A hipótese desse trabalho consiste em que o lançamento da Rodada de

Doha (2001) refletiu um momento decisivo de transição na trajetória das

instituições fundamentais da ordem econômica, consistindo o G-20 no sintoma

mais importante que se manifesta sobre a OMC, condicionando o processo

daquelas negociações pelas restrições às iniciativas contra-hegemônicas na ordem

internacional pós Guerra Fria.

1.4

Metodologia

Para testar a hipótese acima referida, a tese se sustenta teoricamente sobre

a concepção de ordem internacional de Ikenberry (2001). Segundo a teoria, a

grande estabilidade da ordem internacional pós Guerra Fria se baseia na aderência

dos Estados às instituições, numa linha de continuidade com o momento de

construção da ordem no pós Guerra. Nesse sentido, a variável que explica a maior

estabilidade da ordem internacional foi a sua crescente institucionalização,

enquanto tendência que se reforçou após o fim da Guerra Fria.

A partir dessa grande estabilidade da ordem internacional baseada nas

instituições, o trabalho utiliza a hipótese de Ikenberry (2001) para demonstrar por

que o G-20 não pode ser considerado uma coalizão contra-hegemônica como

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tradicionalmente o grupo é visto pela literatura. Ao contrário, o G-20 consistiria

numa ação coletiva em bases reativas à reedição da aliança entre os EUA e a UE,

mas a partir das grandes oportunidades abertas por impactos sistêmicos sobre as

instituições fundamentais da ordem econômica.

A partir da formação do grupo, o que se sobressaem são as grandes

dificuldades com que se defrontaram esses países na busca por exercer maior

influência sobre a OMC, refletindo as características de path dependency do pacto

em torno das instituições que não são facilmente alteradas, na ausência de grandes

rupturas sistêmicas. Quanto mais no momento pós Guerra Fria, quando se

restringe o espaço de proposição dos países com menos poder na ordem

internacional, a partir do avanço da institucionalização da ordem.

American foreign policy after the Cold War is largely consistent with the institutional model of order building. As a rising post-Cold War power the United States had incentives to use institutions to lock in favorable policy orientations in other states. NATO expansion, NAFTA, APEC all contain elements of this thinking. American officials calculated that bringing newly reforming countries into these organizations would help reinforce domestic institutions and political coalitions in these countries that were committed to political and market liberalization. In return, the United States accepted some additional obligations to these countries in the form of security commitments (NATO expansion) or institutionalized access to American Markets (NAFTA, APEC, and the WTO). (IKENBERRY, 2001, p. 255) Segundo essa concepção da ordem internacional, a hegemonia passa a ser

compreendida como profundamente relacionada à identidade dos Estados Unidos

e à universalização de sua cultura política, por meio da crescente

institucionalização da ordem. Ou seja, o poder de influência sobre as bases da

ordem parte dos valores e do consenso em torno dos mesmos que coordena o

comportamento dos Estados nas instituições, a partir do formato multilateral.

A perspectiva de análise adotada possibilita perceber outra relação entre o

poder material e a hegemonia no cenário internacional. Nesse sentido, para

Ikenberry (2001), ao partir do conceito de anarquia internacional, o Realismo

limita as Relações Internacionais às relações de poder6. A consideração da política

em bases materialistas restringe a segurança dos Estados e a sua sobrevivência à

dinâmica do equilíbrio de poder, tornando-o responsável exclusivo pela

estabilidade da ordem internacional. Nesse sentido, uma situação de hegemonia

                                                            6 O foco de Ikenberry se centra na crítica à derivação estrutural de Kenneth Waltz (1979).

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levaria à instabilidade sistêmica diante da maximização do poder pelo Estado

hegemônico frente às demais potências que se perceberiam sob constante ameaça

e resistiriam crescentemente às iniciativas desse poder.

Do mesmo modo, na Teoria da Estabilidade Hegemônica aparece a mesma

irrelevância da legitimidade para a estabilidade da ordem, pois nesse caso se

atribui a estabilidade sistêmica à presença do Estado hegemônico. Refletindo sua

filiação realista, essa teoria também enxerga a política sob uma ótica materialista,

por partir da mesma premissa da anarquia internacional. Conseqüentemente,

relações políticas são determinadas por relações de poder e a questão da

legitimidade internacional não se coloca ou é explorada pelas teorias. O

argumento apresenta como conseqüência que a potência hegemônica poderia se

dedicar às estratégias políticas ofensivas, diante da ausência de restrições ao seu

poderio sob uma ordem unipolar. Entretanto, nesse caso, tornar-se-ia crescente a

percepção de ameaça para os demais Estados, e a ordem internacional estaria

fadada a assumir características imperiais ou conduzir à decadência da potência

hegemônica, mediante a guerra que deveria restabelecer o equilíbrio do poder.

A crítica de Ikenberry (2001) às teorias realistas quando buscam explicar a

mudança ou estabilidade da ordem se concentra sobre a concepção materialista da

anarquia internacional, escamoteando da análise os valores, os princípios, a

cultura política, as normas e as instituições. Ao contrário, partindo-se de uma

concepção alternativa da anarquia assumem relevância central os tipos de Estados,

definidos por seus regimes e cultura políticos, apresentando efeitos fundamentais

sobre o sistema internacional. Nesse sentido, suaviza-se a ruptura teórica entre a

ordem interna aos Estados e a ordem internacional. Essa flexibilização da cisão

dos âmbitos interno e externo, relaciona-se à definição da política pelo autor que

repousa na conversão do poder em autoridade legítima, guardando semelhanças

entre o ocorrido nas ordens doméstica e internacional. O conjunto de valores e

princípios, aceitos consensualmente pelos Estados, representam o locus da

legitimidade sistêmica, pactuados em seguida às guerras nos momentos de

construção da ordem quando os Estados pactuam as bases da sua adesão às

instituições.

Em oposição às concepções da hegemonia que sustentam que a criação e a

manutenção da ordem internacional dependem do poder material da potência

hegemônica, utilizado coercitiva e unilateralmente, essa perspectiva enxerga a

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maior influência sobre a ordem internacional como limitada e institucionalizada. É

isso que confere legitimidade à ordem que se sustenta sobre as instituições, pois

somente a partir do consenso, o poder material pode se converter em autoridade

legítima. O ponto crucial dessa distinção repousa sobre o papel das instituições

multilaterais pelas quais a potência exerce sua hegemonia, pois a partir do formato

multilateral das instituições, pode-se falar de uma hegemonia multilateral dos

EUA, como responsável pela criação da uma ordem política multilateral

(IKENBERRY 2001).

O multilateralismo implica, sobretudo, numa dimensão qualitativa do

relacionamento entre Estados e constitui uma alternativa crítica ao racionalismo,

oferecendo uma conceituação alternativa da política internacional e suas práticas

(KRATOCHWILL, 1993, p. 450):

Its critical contribution is also evident in rescuing History from the phantasmagorical constructions to which we often get treated. This critical function is most clearly visible in pointing to the gaps that appear in realist and functionalist constructions of history. Uma vertente do mainstream da teoria das Relações Internacionais que se

concentrou sobre as possibilidades de cooperação a partir das instituições foi o

Institucionalismo liberal. No entanto, nessa perspectiva as instituições são tratadas

de forma genérica, pois o formato das instituições não foi explorado. Essa

generalidade com que foram tratadas as instituições resultou na

instrumentalização da cooperação para a resolução de problemas da ação coletiva.

No entanto, o formato que as instituições apresentam repercute fundamentalmente

sobre papel que elas desempenham no cenário internacional. Nesse sentido, a

ordem internacional contemporânea se sustenta sobre muitas instituições que

mostram grande capacidade de adaptação e resistência às mudanças não apenas

por cumprir determinadas funções ou instrumentalizar a cooperação, mas

fundamentalmente por apresentarem o formato multilateral como responsável por

reforçar sua durabilidade e capacidade de adaptação (RUGGIE, 1993).

O formato multilateral consiste na coordenação da ação dos Estados,

baseada em princípios gerais, apresentando implicações para o surgimento de uma

maior coesão internacional. Essa coesão se apresenta como construção social e

não como uma condição objetiva, como os racionalistas acreditam (RUGGIE,

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1993). A partir dessa natureza socialmente construída, o multilateralismo também

seria responsável por gerar os efeitos de “reciprocidade difusa”, como expectativa

criada entre os membros das instituições multilaterais em relação à distribuição

equitativa dos ganhos com a cooperação ao longo prazo e não necessariamente a

cada rodada de negociações. No formato multilateral das instituições residem,

portanto, as causas de suas capacidades adaptativas e reprodutivas que não são

observadas em outros formatos institucionais. A forma multilateral consiste em

explicação central para o papel estabilizador da ordem internacional em um

período de transformações como as que se seguiram à Guerra Fria (RUGGIE,

1993).

Afinal, reforçava-se através das instituições a projeção da ordem

doméstica dos EUA, em termos mundiais, especificamente por via multilateral7.

Isso se deu por ter havido consenso no sistema internacional quanto à necessidade

dos programas de reforma política doméstica dos países, no longo prazo,

necessitarem de uma ordem internacional compatível e favorável. Além disso, já

havia o compromisso internacional com as formas institucionais da política

doméstica norte-americana que se irradiaram da revolução legal e administrativa

que acompanhou o New Deal (BURLEY, 1993).

A combinação desses fatores possibilitou que os esforços dos EUA para a

institucionalização da ordem a partir do multilateralismo, fossem bem sucedidos,

pois a estrutura institucional doméstica dos EUA gerava credibilidade em relação

ao seu comprometimento com o multilateralismo. Nesse sentido, as características

da sua política interna incluíam um sistema eleitoral direcionado ao eleitor

mediano, uma divisão de poderes que faz com que uma reversão de posição nos

compromissos assumidos se torne difícil e uma grande transparência no acesso à

arena política doméstica, mesmo da parte dos interesses estrangeiros (COWHEY,

1993).

A ênfase colocada sobre os valores e a cultura política reflete a

centralidade da estrutura ideológica internacional, pois tratar o poder pela

perspectiva da sua conversão em autoridade legitima indica que a legitimidade nas

                                                            7 “I conclude that the form of the postwar order was strongly influenced by the US conceptualization of international problems and their solution in domestic legal terms...the history of the postwar planning process recapitulates this dynamic on a more specific level. The formal characteristics of multilateralism are the byproduct of a distinctively American effort to regulate the world”. (BURLEY, 1993, p. 126)

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relações internacionais deve ser buscada na estrutura ideológica internacional

responsável pelos consensos políticos. Como aponta Rosenau (2000), somente

através da relação entre níveis distintos das estruturas subjacentes à ordem

internacional, torna-se possível compreender a relação entre a sua estrutura

ideológica e a política internacional.

“Pode-se imaginar que numerosas estruturas que sustentam a ordem mundial desenvolvam-se em três níveis fundamentais de atividade: o nível ideacional ou intersubjetivo do que as pessoas sentem com pouca clareza, percebem intuitivamente ou de algum outro modo entendem como os arranjos com os quais seus assuntos são tratados; o nível objetivo ou comportamental do que as pessoas fazem rotineiramente, muitas vezes de forma inconsciente, para manter os arranjos globais prevalecentes; o nível político ou agregado onde se situa a governança no qual as instituições e os regimes voltados para a ordenação implementam as políticas inerentes aos dois primeiros níveis (ROSENAU, 2000 p. 28)8. Nesse sentido, a ênfase na cultura política e nos valores por Ikenberry

(2001) não implica desconsiderar a distribuição do poder, que permanece como a

questão central das Relações Internacionais nos momentos que se seguem às

guerras, quando os Estados pactuam os termos da sua adesão às instituições da

nova ordem. Nesses momentos, a escolha dos Estados reflete um cálculo

estratégico, pois o Estado com mais poder garante sua influência no longo prazo

sobre a ordem internacional e o comportamento dos demais Estados, através dos

princípios e das regras pactuados nas instituições. Para os Estados com menos

poder, a adesão às instituições assegurava que a assimetria de poder que os

desfavorecia naquele momento não seria utilizada em estratégias de domínio ou

abandono dos seus interesses.

Após a distribuição de poder haver se mostrado decisiva para os termos

desse pacto institucional, as instituições se convertem crescentemente em

obstáculos para mudanças de orientação nos termos dos seus princípios e regras

fundamentais. Não obstante, o processo de redução dos retornos do poder e

projeção da influência dos países desenvolvidos, através das instituições, não

exclui o fato de que o poder dos Estados e as suas assimetrias permanecem

determinando os dilemas básicos com que os Estados têm que se defrontar não

                                                            8 Rosenau, James N. Governança, Ordem e Transformação na Política Mundial. In: Governança Sem Governo: Ordem e Transformação na Política Mundial. Brasília: UNB, 2000.

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apenas na criação, mas também na manutenção da ordem criada, gerando alguma

margem de variação nas respostas que são formuladas a partir desses dilemas.

State power and its disparities determine the basic dillemas that states face in the creation and maintenance of order, but variation in the ‘solutions’ that states have found to these dillemas require additional theorizing”. (IKENBERRY, 2001, p. 10) Uma ordem internacional amparada nas instituições adquire grande

estabilidade pela continuidade das bases de adesão dos países à ordem

internacional. Entretanto, isso não significa que a ordem não passe por desafios,

pois apenas a partir da sua capacidade de resposta a esses desafios é que se pode

afirmar que além de estável, a ordem internacional apresenta como corolário dessa

estabilidade uma grande resiliência (IKENBERRY, 2001). Dentro da variação das

respostas que as instituições apresentam para esses dilemas, visando manter as

bases do pacto institucional, assegurando as características path dependent da

ordem, sobressai-se a definição e o papel estabelecido para as instituições pela

teoria.

Entendemos instituições como organizações formais ou informais, regras,

rotinas e práticas que se encontram permeadas na ordem política internacional,

conformando o ambiente de interação dos Estados (IKENBERRY, 2001). Desse

modo, exercem sua influência sobre a forma como o poder é distribuído entre

indivíduos e grupos no sistema político, estabelecendo vantagens e recursos a

alguns, mas também constrangendo as opções de outros (IKENBERRY, 2001).

Ou seja, instituições alteram ou conservam a distribuição do poder na ordem

internacional.

As instituições atingem essa grande projeção, pela teoria lhes conceder

maior autonomia do que as teorias racionalistas, situando essa autonomia na

interação prática entre os atores e as Organizações, regras e práticas. As

instituições se situam entre os atores e os seus interesses, devido à sua

independência e legitimidade. É sobre essas bases de autonomia e legitimidade

que instituições possibilitam a emergência de áreas ou setores das Relações

Internacionais, regidos por uma lógica constitucional (IKENBERRY, 2001).9

Lógica tributária do consenso sobre princípios e regras que explica a adesão e

                                                            9 Nesse sentido, Ikenberry pode ser considerado um institucionalista.

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participação dos Estados na ordem, permitindo que as instituições dêem

surgimento a vínculos entre eles e limites ao uso do poder. A implicação central

do argumento consiste em que ao limitarem o poder dos Estados, as instituições

apresentam autonomia para também limitar e conformar os interesses das suas

forças sociais internas, pois, as regras e as instituições estão permeadas de tal

forma no sistema político que elas não podem ser facilmente alteradas.

Essa concepção da ordem internacional permite explorar a grande atração

que as instituições exercem sobre os Estados. Essa é a base para analisar a

trajetória do regime de comércio, sob a perspectiva dos dilemas apresentados para

os Estados, consoante a percepção da sua inserção nas instituições da ordem

econômica de Bretton Woods. Principalmente no que diz respeito aos momentos

nos quais o consenso que determina a adesão dos Estados ao pacto institucional

não chega a se cindir, mas abre espaços para questionamentos sobre as bases da

adesão dos Estados com menos poder. Nesses momentos, a resposta das

instituições da ordem econômica ao desafio envolve uma grande capacidade de

rearticulação, para resgatar o consenso entre os Estados, que provê legitimidade à

ordem internacional e às suas instituições fundamentais, das ameaças à sua

legitimidade.

A grande capacidade de rearticulação deste “layer cake” (IKENBERRY,

2001) institucional que reacomoda as suas funções originais e permite aos atores

permanecerem vinculados − mesmo após os momentos de crise quando não é

possível manter as instituições operando nas mesmas bases que anteriormente −

permite a identificação entre a estabilidade da ordem internacional e a restrição às

iniciativas de alteração das bases de influência dos PEDs sobre a ordem.

Nesse sentido, a institucionalização como responsável por a ordem

internacional apresentar características constitucionais coloca a questão das

implicações de diferentes graus de institucionalização e suas conseqüências sobre

os atores nos termos das suas percepções associadas aos seus interesses no regime

de comércio. No caso da criação da OMC, o momento de grande

institucionalização ocorreu mediante um lapso temporal de 50 anos, em relação às

outras esferas da regulação econômica estabelecidas em Bretton Woods, devido à

trajetória das instituições nas respostas às crises. Apenas a partir de meados dos

anos 90, essa área das relações entre Estados passou a incorporar os países em

desenvolvimento como membros efetivos da nova Organização. Nesse momento,

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estes países deveriam tomar parte ativa nas negociações do seu tema mais

fundamental da agricultura, a ser negociado em bases recíprocas com o mundo

desenvolvido, enquanto parte integrante da Agenda da OMC, em seguida à

frustração com os resultados obtidos nas negociações da rodada anterior.

Teoricamente, há muitas diferenças entre o ambiente de negociação da

Rodada do Uruguai (1986-1994) e a etapa seguinte da trajetória das instituições de

Bretton Woods, quando foi lançada a Rodada de Doha (2001). O Consenso de

Washington permitiu que as instituições de Bretton Woods constrangessem os

PEDs na adesão às negociações da rodada, como parte indispensável da sua

inserção na ordem econômica a partir do modelo de desenvolvimento

hegemônico. Naquela conjuntura, os PEDs foram incorporados às negociações

recíprocas com os países desenvolvidos, que resultaram numa grande reforma do

regime de comércio. Para isso contribuiu o fim da Guerra Fria que atingiu a

rodada em cheio, colaborando para que o espaço de proposição do mundo em

desenvolvimento se restringisse na ordem internacional. O momento seguinte da

evolução do regime, marcado pelo início da operação da OMC (1995) foi

sucedido pelas crises financeiras em muitos países em desenvolvimento, com

repercussões centrais para a trajetória do FMI e do BIRD. Essa evolução da

trajetória das instituições da ordem econômica fez com que a resposta das

instituições aos ataques do onze de setembro tivesse que incorporar o

desenvolvimento como tema da primeira rodada de negociações da nova

instituição, pois naquele momento o único avanço possível do multilateralismo

econômico só poderia vir da OMC, diante do balanço que feria o consenso em

torno do tema do desenvolvimento, conforme tratado pelas outras instituições.

Capitalizando esse momento pela legitimidade do tema no cenário

internacional, alguns BRICs conseguem formar uma coalizão com grande nível de

heterogeneidade e concentração de poder. Entretanto a partir da sua formação o

grupo se defrontaria com o grande obstáculo da resiliência das instituições aos

desafios. Nesse sentido, tanto a formação do grupo como os obstáculos que

constrangeram sua atuação se relacionam às características das instituições nas

respostas às crises, como capazes de grande poder de estabilização sobre a ordem

internacional.

Na ausência de uma grande ruptura sistêmica, a ordem internacional

evoluiu aprofundando muitas das características que preservam o poder de

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influência dos países desenvolvidos sobre o seu processo decisório, como no caso

da prática do consenso, que passa a ser institucionalizada na nova OMC. Aduz-se

a essa maior influência dos países desenvolvidos sobre o regime (BARTON et al.,

2006) a alteração da natureza da regulação exercida, refletindo a convergência em

torno do ideário econômico do centro nas negociações da rodada anterior.

Ampliara-se o escopo dos temas que a OMC passaria a regular, implicando em

que o regime assumisse crescentemente funções regulatórias que aprofundavam

sua capacidade de interferência sobre as políticas domésticas dos países.

A maior institucionalização do regime de comércio ocorria pelo aumento

dos seus níveis de legalização, cujas mais fundamentais expressões residiam no

automatismo do seu novo sistema de Solução de Controvérsias (BARTON et al.,

2006) e na criação de um Órgão de Apelação que passaria a legislar em matérias

sob júdice da Organização. Além disso, passou-se à fase de monitoração das

políticas comerciais praticadas pelos membros da nova instituição.

Essas modificações da incidência de um maior nível de legalização sobre a

OMC apresentam um alto grau não apenas de continuidade, mas também de

aprofundamento das mudanças que já ocorriam sob a evolução do GATT,

preservando as bases do pacto em torno das instituições que reduziam os retornos

do poder, em contrapartida pelo aumento da influência dos países desenvolvidos

sobre a OMC.

Essa evolução do regime que reforçava, enrijecendo mediante a

legalização as características path dependent da ordem internacional contribuíram

para que os BRICs capitalizassem a oportunidade de liderarem uma coalizão em

torno do tema do desenvolvimento. Os dilemas colocados pela nova

institucionalidade da OMC aduziram uma grande tensão política sobre a operação

da Organização.

Principalmente diante da ausência de um órgão político no interior da

OMC, pois o regime evoluiu combinando características de uma forma

institucional rule-based, mas que permanece member-driven, apontando para os

limites da própria instituição para lidar com demandas políticas. Essas

características refletem a trajetória da evolução do regime que levou à criação da

OMC, a partir do pilar menos institucionalizado da ordem econômica do GATT.

Nesse sentido, o impulso político para o fechamento das duas últimas rodadas de

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negociações, provinha da coordenação política dos países desenvolvidos, reunidos

no G-7.

O ressurgimento da clivagem Norte-Sul sobre essa base técnica ou legal

que correspondeu à maior institucionalização do regime, reclama uma análise da

legalização sobre a OMC e das suas implicações políticas sobre a legitimidade da

nova instituição.

Para Goldstein et al. (2000), a Legalização constitui uma forma particular

de institucionalização que suscita muitas questões relativas às suas implicações,

em especial no que diz respeito à decisão dos Estados em aderirem a uma forma

institucional que impõe obrigações, constrangendo seu comportamento

(GOLDSTEIN et al., 2000).

A explicação racionalista nos termos do neoliberal institucionalismo ou do

realismo, como as classifica Ruggie (1993) que não admitem variações nos

interesses ou identidades dos Estados não poderia avançar além das razões do

cálculo político dos Estados que avançam interesses maximizadores no cenário

internacional. Nesse sentido, legalização tem de ser compreendida enquanto

profundamente permeada (embbeded) na política internacional e respondendo aos

interesses políticos, ao poder e às instituições. Isso implica em que as leis

internacionais não possam ser compreendidas desvinculadas das suas implicações

em termos do poder. A relação entre lei e política passa a ser recíproca e mediada

pelas instituições (GOLDSTEIN et al., 2000).

[...] greater instituctionalization implies that institutional rules govern more of the behavior of important actors – more in the sense that behavior previously outside the scope of particular rules is now within that scope or that behavior that was previously regulated is now more deeply regulated. (GOLDSTEIN et al., 2000, p. 387) Desde o GATT, muitos estudos sobre a judicialização do seu sistema de

solução de controvérsias apontaram para as disputas entre “legalistas” e

“pragmatistas”, que defendiam, respectivamente, a resolução das disputas

comerciais por delegação a partes neutras no conflito que empregassem regras

claras e legais, frente aos que defendiam a resolução dos conflitos por meios que

permitissem maior uso do poder e da diplomacia. A vitória dos legalistas se

confirmou com o estabelecimento de maior legalização na solução de

controvérsias da OMC:

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Contemporary WTO panels are conducted in accord with legal norms. Lawyers present detailed legal arguments that require a response from all parties; panel members construct their decisions with the assistance of a legal secretariat that helps them to resolve legal issues rather than broker a political compromise. (GOLDSTEIN et al., 2000, p. 389)

Na definição de Goldstein et al. (2000), o conceito de legalização se

caracteriza por apresentar três dimensões: obrigação, precisão e delegação. Abbott

et al. (2000) trabalham sobre as possibilidades empíricas de mensuração de graus

de legalização, a partir da variação entre a combinação desses elementos na

análise das formas institucionais. Em particular, a conceituação de legalização

nesses termos rompe com uma rígida dicotomia entre a esfera “legal” e a “política

mundial”, relacionando leis e política em todos os níveis da legalização no sistema

internacional.

At one extreme, even “pure” political bargaining is shaped by rules of sovereignty and other back ground legal norms. At the other extreme, even international adjudicaton takes place in the “shadow of politics”: interested parties help shape the agenda and initiate the proceedings; judges are tipically alert to the political implications of possible decisions, seeking to anticipate the reactions of political authorities. Between these extremes, where most international legalization lies, actors combine and invoke varying degrees of obligation, precision and delegation to create subtle blends of politics and law […] (ABBOT et al., 2000, p. 44) As dimensões do conceito de legalização consistem: na obrigação, que diz

respeito ao comprometimento legal dos atores com um conjunto de regras ou

compromissos, de modo que seu comportamento se encontre sujeito ao

enquadramento em regras, procedimentos ou discurso da lei internacional; na

precisão, que se refere à clareza ou ausência de ambigüidade na especificação da

conduta exigida, autorizada ou proscrita; e na delegação, que corresponde ao

estabelecimento ou transferência de autoridade para terceiros, no sentido da

implementação, interpretação ou aplicação das regras, englobando, também, a

resolução de conflitos, assim como a possibilidade de criação de novas regras.

O conceito de legalização admite variação contínua e gradativa, não se

restringindo a padrões rígidos ou polares. Nesse sentido, cada uma das três

dimensões especificadas é autônoma e se sujeita a diferentes graus de variação,

independentemente do comportamento ou variação das outras duas variáveis.

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Instituições altamente legalizadas correspondem àquelas nas quais regras

são obrigatórias para os Estados membros, mediante a correspondência existente

entre as regras estabelecidas e os princípios da lei internacional. Além disso, as

regras devem ser precisas, assim como deve estar presente a delegação de

autoridade a uma terceira parte que se incumba da interpretação e aplicação das

regras. A definição de legalização em apreço se foca sobre as suas características

centrais como consistindo em regras e procedimentos e não nos termos dos seus

efeitos.10

We regard substantive content and legalization as distinct characteristics. A conference delclaration or other international document that is explicit not legally binding could have exactly the same substantive content as a binding treaty...but they would be very different instruments in terms of legalization [...]. (ABBOT et al., 2000, p. 402)

 

Nesse sentido, a crítica de Martha Finnemore e Stephen Toope (2001) ao

conceito de legalização de Goldstein et al. (2000) aponta para um tratamento

limitado e restrito desse fenômeno, ao restringi-lo a um conjunto de características

formais que as instituições podem ou não apresentar, enquanto obrigação,

precisão e delegação. Esses autores argumentam que uma melhor conceituação

dessas características corresponderia ao conceito weberiano de “burocratização

legal” (FINNEMORE; TOOPE, 2001, p. 744).

Under a broader view of law, the legalization of politics encompasses more than just the largely technical and formal criteria of obligation, precision and delegation. It encompasses features and effects of legitimacy, including the need for congruence between law and underlying social practice. It attends to the purposive construction of law within inherited traditions, the way participating in law’s construction contributes to legitimacy and obligation and to the continuum of legality from informal to more formal norms. Indeed, without this broader view of law that causes us to pay attention to legal procedures, methodologies, institutions, and processes generating legitimacy, the author’s three components of legalization lack theoretical coherence and raise more questions than they answer […]. (FINNEMORE; TOOPE, 2001, p. 743-758)

                                                            10 Os autores exemplificam as possíveis implicações da consideração dos efeitos da legalização sobre a conceituação de legalização pretendida, valendo-se do exemplo da delegação: “delegation of legal authoriy (to domestic courts or agencies as well as equivalent international bodies) does not include the degree to which rules are actually implemented domestically or to which states comply with them. To do so would be to conflate delegation with effective action by the agent and would make it impossible to inquire whether legalization increases rule implementation or complience. Nor does our definition extend to the substantive content of rules or their degree of stringency”.

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Uma análise das características do processo de legalização deveria levar

em conta outras características, assim como desenvolver conceitos mais robustos,

como a questão da sua legitimidade. Notadamente, o conceito de legitimidade tem

estado ausente das análises sobre obrigação gerada pela lei internacional,

mediante o conceito de legalização de Goldstein et al. (2001). No entanto, revela-

se fundamental explorar a relação entre legitimidade como uma fonte fundamental

da obrigação e do “complience pull” gerado pelas leis.

Legitimacy in law has been argued to have a number of interrelated sources, Legitimacy is generated in part through attention to internal legal values that we seen to take for granted in the liberal democratic West but that students of repression will recognize as essential. Law is legitimate only to the extent that it produces rules that are generally applicable, exhibit clarity or determinacy, are coherent with other rules, are publicized (so that people know what they are) seek to avoid retroactivity, are relatively constant over time, are possible to perform, and are congruent with official action. Law that adheres to these values is more like to generate a sense of obligation, and corresponding behavior change, than law that ignores these values. Legal legitimacy also depends on agents in the system understanding why rules are necessary. Participating in constructing law enhances agents’ understanding of its necessity. Finally, adherence to specific legal rationality that all participants understand and accept helps to legitimate the collective construction of the law. Legal claims are legitimate and persuasive only if they are rooted in reasoned argument that create analogies to past practice, demonstrate congruence with the overall systemic logic of existing law, and attend to contemporary social aspirations and the larger moral fabric of society. Law that exhibits this kind of rationality – that is viewed as necessary, involves in its construction those it binds, and adheres to international legal values- is more likely to be viewed as legitimate than law that does not have these features. (FINNEMORE; TOOPE, 2001, p. 749)

 

A legitimidade da lei gera obrigação, não apenas no sentido formal, mas

num sentido mais subjetivo de comprometimento, associando a obrigação ao

comportamento, com implicações diretas sobre o papel das leis internacionais.

Finnemore e Toope (2001) percebem a legitimidade como profundamente

associada ao fenômeno da legalização, mediante a sua percepção enquanto

processo. É nesse sentido que a legitimidade consistiria numa variável anterior á

legalização capaz de gerar um sentido de obrigação. Alterações na legitimidade

repercutiriam, portanto sobre modificações no processo de legalização. Desse

modo, Finnemore e Toope (2001) apontam que a expansão formal de instituições

legais depende, de forma geral, da legitimidade dos processos formais legais da

sua elaboração e, especificamente, da forma particular desses processos em cada

instituição onde ocorrem.

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When one thinks about what legitimates law, however, another possibility emerges. Law, and by implication legalization, may be much more about process than about form or product. Much of what legitimates law and distinguishes it from other forms of normativity are the processes by which it is created and applied- adherence to legal process values, the ability of actors to participate and feel their influence, and the use of legal forms of reasoning. A view of legalization that focused on legal relationships and processes rather than forms would be more dynamic and better suited to explaining change. (FINNEMORE; TOOPE, 2001, p. 750)

1.5

Conclusão

A pesquisa pretende aplicar a perspectiva constitucionalista da ordem

internacional de Ikenberry (2001) à análise da conjuntura internacional de crise da

concepção do desenvolvimento das instituições de Bretton Woods ao fim dos anos

90.

Sob essa perspectiva da ordem internacional, pretende-se explorar as

implicações de um momento em que o desafio ao consenso que comanda a adesão

dos Estados às instituições da ordem econômica permitiu que o tema do

desenvolvimento desse surgimento a uma coalizão de balanço no regime de

comércio.

Como nesse momento de transição o significado da nova perspectiva do

desenvolvimento desses países ainda se encontrava em disputa no centro dos

debates da agenda internacional, a pergunta que a pesquisa deve responder

consiste nas conseqüências desse momento sobre a trajetória futura das

negociações da rodada.

Desse modo, se a conjuntura da crise teria permitido que uma coalizão

com uma grande heterogeneidade de interesses se formasse, a evolução das

negociações deveria demonstrar os limites colocados para as iniciativas de

balanço dos países em desenvolvimento no interior das instituições de Bretton

Woods. Esses limites se ligavam diretamente à legitimidade do regime, que para

superar o desafio foi capaz de incorporar a liderança do grupo no seu interior.

A hipótese de que a rodada refletiu um momento de transição na trajetória

das instituições de Bretton Woods, do qual o G-20 consistiu no sintoma mais

importante - a partir das restrições às iniciativas contra-hegemônicas na ordem

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internacional pós Guerra Fria – oferece uma oportunidade de teste da perspectiva

de Ikenberry (2001).

Nesse sentido, é necessário explorar momentos anteriores da trajetória

dessas instituições, resgatando à luz da teoria o seu comportamento nas respostas

às crises, bem como os seus impactos sobre a institucionalidade do regime.

A estrutura da tese busca reconstruir a trajetórias dessas instituições, a

partir de uma perspectiva histórico-descritiva, reservando um capítulo a cada

alteração substantiva do consenso internacional sobre a concepção do

desenvolvimento que orienta a atuação dessas instituições. Nesse sentido, a sua

divisão em capítulos deve consistir em:

Um segundo capítulo com foco sobre o surgimento do regime de comércio

como parte da ordem econômica de Bretton Woods, estendendo-se até a crise que

determinou o fim desse sistema econômico, explorando suas implicações sob a

forma do fim do consenso do modelo para o de desenvolvimento econômico da

periferia, assentado sobre o processo de Industrialização por substituição de

Importações da CEPAL.

Um terceiro capítulo que explore a transição para o novo consenso em

torno do desenvolvimento, a partir das reformas econômicas de ajuste estrutural

preconizadas pelo Consenso de Washington. Essa reconstrução da arquitetura

econômica nos anos 80 deve ser analisada priorizando as implicações da alteração

do consenso internacional sobre o desenvolvimento sobre o regime de comércio

do GATT-1947. O ponto central dessa análise consiste na incorporação dos PEDs

à reciprocidade nas negociações com os países desenvolvidos através das

negociações da Rodada do Uruguai (1986-1994).

Um quarto capítulo dedicado ao novo momento de crise, quando o

questionamento do Consenso de Washington, quanto às suas perspectivas do

desenvolvimento, determinam o surgimento de uma nova fase de transição. A

partir do fim dos anos 90, algumas análises apontam para o surgimento de um

dissenso (BACHA, 2002) quanto às perspectivas do desenvolvimento dos PEDs.

Essa análise é importante pelos grandes impactos sobre as negociações da OMC

que aduziram muitas tensões à negociação a partir da disputa pelo novo

significado do desenvolvimento dos PEDs na rodada.

Finalmente, um quinto capítulo final fecha a estrutura da tese, explorando

as conseqüências desse momento de transição sobre o regime de comércio

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enquanto foco central de análise desse trabalho, consistindo num estudo de caso

do surgimento e da trajetória do G-20 nas negociações da Rodada do

Desenvolvimento de Doha (2001).

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