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1 1. Introdução A guerra. Sempre a guerra. Da Pré-História aos dias atuais, o homem não parou de guerrear. Como objeto da História, a atividade bélica é tão antiga quanto as primeiras tentativas de escrita de um relato verídico do passado, como atestam as obras de Heródoto (485? a.C. – 420 a.C.), Tucídides (460/455 a.C. – c. 400 a.C.) e Políbio (210/200 a.C. – c. 127 a.C.). Das suas narrativas aos mais recentes estudos, a História Militar manteve-se em contato com o presente quiçá mais que qualquer outra parte da História, explicando em parte o porquê de sempre despertar interesse. A forma e a intensidade como se tem estudado o tema variou e se diversificou. Consequentemente, o olhar sobre a atividade militar se enriqueceu e abarca hoje quase todas as suas nuances. Lawrence H. Keeley, autor do recém-lançado A guerra antes da civilização – o mito do bom selvagem, diz que a guerra “permanece a mais teatral de todas as atividades humanas, combinando tragédia, drama, melodrama, espetáculo, ação, farsa e até mesmo comédia de situação. A guerra mostra os extremos da condição humana." 1 Foi a partir de aspetos ligados a esse rico fenômeno social e cultural que este trabalho foi produzido. Assim, a análise acompanha os rumos tomados pela História Militar na atualidade. Já faz um bom tempo que os historiadores militares deixaram de focar exclusivamente uma “História das batalhas.” O campo de pesquisa estendeu-se a várias outras direções: o estudo das relações entre exércitos e sociedades, o lugar do exército no Estado, a ética militar, o lugar ocupado pela guerra na História, dentre outras. 2 O presente trabalho, tendo como pano de fundo o fenômeno da guerra, abordará as mudanças no sacramentum dos soldados romanos e suas relações com o Estado romano do século IV. 1 Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/livrariadafolha/1058612-em-livro-antropologo-explica-o- fascinio-pela-guerra.shtml >. Acesso em 09 de abril de 2012. 2 CORVISIER, A. Militar [História]. In: BURGUIÈRE, A. (org.). Dicionário das Ciências Históricas. Tradução de Henrique de Araújo Mesquita. Rio de Janeiro: Imago, 1993, p. 548.

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    1. Introduo

    A guerra. Sempre a guerra. Da Pr-Histria aos dias atuais, o homem no parou

    de guerrear. Como objeto da Histria, a atividade blica to antiga quanto as primeiras

    tentativas de escrita de um relato verdico do passado, como atestam as obras de

    Herdoto (485? a.C. 420 a.C.), Tucdides (460/455 a.C. c. 400 a.C.) e Polbio

    (210/200 a.C. c. 127 a.C.). Das suas narrativas aos mais recentes estudos, a Histria

    Militar manteve-se em contato com o presente qui mais que qualquer outra parte da

    Histria, explicando em parte o porqu de sempre despertar interesse.

    A forma e a intensidade como se tem estudado o tema variou e se diversificou.

    Consequentemente, o olhar sobre a atividade militar se enriqueceu e abarca hoje quase

    todas as suas nuances. Lawrence H. Keeley, autor do recm-lanado A guerra antes da

    civilizao o mito do bom selvagem, diz que a guerra permanece a mais teatral de

    todas as atividades humanas, combinando tragdia, drama, melodrama, espetculo,

    ao, farsa e at mesmo comdia de situao. A guerra mostra os extremos da condio

    humana."1 Foi a partir de aspetos ligados a esse rico fenmeno social e cultural que este

    trabalho foi produzido.

    Assim, a anlise acompanha os rumos tomados pela Histria Militar na

    atualidade. J faz um bom tempo que os historiadores militares deixaram de focar

    exclusivamente uma Histria das batalhas. O campo de pesquisa estendeu-se a vrias

    outras direes: o estudo das relaes entre exrcitos e sociedades, o lugar do exrcito

    no Estado, a tica militar, o lugar ocupado pela guerra na Histria, dentre outras.2 O

    presente trabalho, tendo como pano de fundo o fenmeno da guerra, abordar as

    mudanas no sacramentum dos soldados romanos e suas relaes com o Estado romano

    do sculo IV.

    1 Disponvel em . Acesso em 09 de abril de 2012. 2 CORVISIER, A. Militar [Histria]. In: BURGUIRE, A. (org.). Dicionrio das Cincias Histricas. Traduo de Henrique de Arajo Mesquita. Rio de Janeiro: Imago, 1993, p. 548.

  • 2

    Quo rdua essa tarefa! Trata-se de uma pesquisa sobre um objeto muito

    recuado no tempo, bastante interpretado e reinterpretado (apesar da escassez de fontes),

    e sobre o qual se projetam tantos preconceitos contemporneos. Como foi observado,

    Nada se encontra mais longe de ns do que esta antiga civilizao; extica, extinguindo-se, e os objetos que encontramos nas escavaes so to surpreendentes como aerlitos. O pouco que passou para ns da herana de Roma est em ns em doses a que ponto diludas, e pelo preo de que novas interpretaes! Entre os Romanos e ns, um abismo foi cavado pelo cristianismo, pela filosofia alem, pelas revolues tecnolgica, cientfica e econmica, por tudo o que constitui a nossa civilizao. E por isso que a histria romana interessante: obriga-nos a sair de ns prprios e a explicitar as diferenas que nos separam dela.3

    No esforo para compreender uma realidade to distante, optou-se pela

    hermenutica. Esta pode ser definida essencialmente como a tarefa de compreender

    textos. o estudo da compreenso, um mtodo de decifrao da marca humana numa

    obra, o seu significado.4 Ocupa-se assim com o aspeto interno no uso do universo

    semntico, ou melhor, com o processo interno da fala, que visto de fora, apresenta-se

    como a utilizao de um universo de signos. Trata-se de uma direo de

    questionamento e investigao surgidos por detrs do campo de investigao que

    analisa a constituio da linguagem de um texto como um todo e que destaca sua

    estrutura semntica (...). A hermenutica fundamenta-se no facto de que a linguagem

    nos remete tanto para alm dela mesma como para alm da expressividade que ela

    representa. No se esgota no que diz, ou seja, no que nela vem fala.5 Assim, o

    historiador trabalha como verdadeiro arquelogo das palavras.6

    Um primeiro dado causador de estranhamento acerca do passado a ser tratado aqui

    era a coexistncia num mesmo plano de reas que no Ocidente esto hoje separadas. No

    Mundo Antigo, diferentemente, a religio, a poltica e a guerra eram indissociveis. A

    separao entre a vida civil e a militar se deu tardiamente, em fins do sculo II a.C., 3 VEYNE, P. O inventrio das diferenas. Lisboa: Gradiva, 1989, p. 9. 4 PALMER, R. E. Hermenutica. Traduo de Maria Lusa Ribeiro Ferreira. Lisboa: 70, 1986, p. 19. 5 GADAMER, H. - G. Verdade e mtodo II. Petrpolis, Rio de Janeiro: Vozes; Bragana Paulista, So Paulo: Editora Universitria So Francisco, 2002, pp. 205 e 209. 6 Cf. COSTA, R. O conhecimento histrico e a compreenso do passado: o historiador e a arqueologia das palavras. In: Outros Tempos, vol. 1, pp. 53-65. Disponvel em . Acesso em 20 de janeiro de 2012.

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    como ser explicado adiante. E a separao total no campo institucional s se deu no

    sculo IV, quando os senadores foram definitivamente afastados dos comandos

    militares. Portanto, a Antiguidade e a Antiguidade Romana, em especial, foram

    marcadas pelo intercmbio constante entre a poder estatal, a religio e o exrcito, sendo

    que cada uma destas esferas concedia fora, legitimao e identidade7 para a outra.

    J na lenda da origem da cidade de Roma8 essa questo aparecia. Marte, o

    principal deus da guerra, teria fecundado Reia Slvia. Esta ento deu luz aos gmeos

    Rmulo e Remo, que foram jogados no Tibre e depois amamentados por uma loba. O

    fundador da urbs, Rmulo, teria delimitado-a mediante um fosso, o pomoerium. Este

    limite militar e religioso foi ousadamente transposto por Remo, que assim lanava um

    desafio militar e cometia um sacrilgio. Consequentemente, Rmulo, investido como

    legtimo rei e sacerdote da urbs, matou o irmo, culpado por desrespeitar a

    inviolabilidade do pomoerium.9 Desta forma, Roma estaria ligada a um ancestral blico

    e a origens violentas. Seu destino seria conquistar os outros povos, como fica claro em

    uma obra como a Eneida10, de Verglio (70 a.C. 19 a.C.). Importa menos que a urbs

    tenha demorado cerca de quinhentos anos para tomar o orbis, e que obras laudatrias

    como a Eneida tenha sido em grande parte fruto de uma propaganda muito posterior aos

    acontecimentos. O que interessa aqui apontar um substrato muito antigo sobre o qual

    se construiu a ntima relao entre a poltica, a religiosidade e o militarismo romano.

    Uma das instituies mais ilustrativas dessa relao foi o colgio dos feciais.

    Surgido durante a Realeza (753 a.C. 509 a.C.), este colgio era composto por vinte

    sacerdotes selecionados por cooptao. Tomavam a si a responsabilidade de toda

    matria de poltica estrangeira. No era permitido declarar a guerra ou firmar um tratado

    7 Esta dissertao toma como pressuposto que a identidade sustenta-se a partir da excluso, bem como atravs de smbolos. Assim, a construo da identidade tanto simblica quanto social (WOODWARD, K. Identidade e diferena: uma introduo terica e conceitual. In: SILVA, T. T. (org.). Identidade e diferena a perspectiva dos estudos culturais. Petrpolis, RJ: Vozes, 2000, pp. 9-10). Assim, os militares romanos se caracterizavam a partir dos valores da romanidade que os colocavam em distino com o mundo civil e brbaro, contribuindo para tanto uma abundncia de smbolos materiais e imateriais. A identidade militar romana assentava-se tambm em um forte componente religioso, e em algum momento ligou-se s identidades locais provincianas. Ao longo do trrabalho a questo da identidade dos soldados romanos ser mais bem discutida. 8 Cf. a localizao das principais cidades do Ocidente romano no anexo 1. 9 TITO LIVIO. Historia de Roma desde su fundacin. Introduccin general de ngel Sierra, traduccin y notas de Jos A. Villar Vidal. Madrid: Gredos, 1997, 1.4-7. 10 VERGLIO. Eneida. Traduo de Cristina A. Guerreiro e Ana A. T. L. Alves, coordenao, reviso e notas de Lus M. G. Cerqueira, 3 edio revista. Lisboa: Bertrand, 2011.

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    de paz sem sua participao, imprescindvel, inclusive, nas delegaes diplomticas. Se

    as reparaes exigidas cidade agressora no fossem atendidas, os feciais invocavam

    Jpiter e os demais deuses e proclamavam que a causa da guerra era justa. O ritual

    inclua o sacrifcio de um porco e o fincamento de uma lana em solo inimigo smbolo

    da declarao de guerra. Como os feciais s existiam na Itlia Central, sua atividade

    religiosa aos poucos foi esquecida quando a expanso de Roma extrapolou os limites

    dessa regio. O gradual esvaziamento da atividade diplomtica dos feciais deu lugar aos

    embaixadores seculares, que eram j os intermediadores convencionais das outras

    cidades. Mas o declnio definitivo do colgio dos feciais s se deu no incio do

    Principado (27 a.C. 284).11

    Isso no significou o fim da importncia da religio como fora legitimadora de

    um poder que extraa do exrcito a sua principal fora. A lei fecial, por exemplo, e a

    ideia de que o sucesso dos Romanos na guerra se devia aos seus escrpulos religiosos

    exerceu um efeito duradouro sobre a mentalidade romana. Assim, as relaes entre a

    guerra e a religio, fortes em todas as sociedades antigas, em nenhuma outra foram mais

    ntimas que em Roma.12 O panteo da cidade, extraordinariamente repleto de deuses da

    guerra, e o calendrio religioso, cheio de festivais militares, no deixam dvidas de que

    os Romanos no separavam a guerra da religio.

    Como j foi referido, as transformaes polticas e sociais do fim do sculo I a.C.

    no produziram uma secularizao das guerras de Roma. O que mudou foi que o foco

    da articulao entre a poltica, a guerra e a religio foi redirecionado a um s homem.

    Para cada uma dessas reas (que, no entanto, no se separavam), ele recebeu um ttulo:

    era o princeps, o primeiro cidado do Senado, o imperator, chefe supremo do exrcito e

    o pontifex maximus, o sumo sacerdote. Desta forma, ele assumiu a governao da Res

    publica e o protagonismo da intermediao com o divino. Ningum questionava uma

    guerra por ele declarada. O sacramentum, o juramento de fidelidade feito pelos

    soldados, passou a ser-lhe pessoalmente direcionado. Como ser discutido, esse

    11 AZEVEDO, A. C. A. Dicionrio de nomes, termos e conceitos histricos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, pp. 183-184. 12 DAWSON, D. A. As origens da Guerra no Ocidente. Traduo de Jos Olvio Dantas. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exrcito, 1999, pp. 196-197.

  • 5

    juramento possua forte carga religiosa que cimentava a relao dos militares com seus

    superiores.

    Nem aps a morte o princeps desligava-se da religio. Pelo contrrio. Tal como

    ocorrera ao dictator Jlio Csar (101-44 a.C.), aps o falecimento o governante

    supremo passou a ser divinizado. A seduo do poder, contudo, exerceu uma fora

    irresistvel sobre soberanos mais autoritrios, que procuraram ser proclamados deuses

    em vida. Tal foi o caso dos imperadores Calgula (37-41), Domiciano (81-96), Cmodo

    (180-192) e Heliogbalo (218-222). Mesmo que alguns pudessem efetivamente t-los

    considerado deuses, eles no poderiam alcanar grande vulto na imensido do panteo

    greco-romano. De modo geral, era grande o desprezo ou indiferena por esses

    imperadores narcisistas. O sentimento de repulsa deve ter sido especialmente forte entre

    aqueles que, sob o governo desptico de Calgula, se lembravam de Augusto, princeps

    que preservou traos do regime republicano. Os coetneos do vaidoso Domiciano

    deviam ter clara a memria do arrojo dos seus antecessores imediatos. Os primeiros

    anos da dinastia dos Antoninos (96-192) foram caracterizados pelo exerccio moderado

    do poder imperial e pelas boas relaes com o Senado, pelo que o seu ltimo

    representante, Cmodo, fez relembrar aos historiadores os velhos tempos de tirania.

    Desta forma, at o final do sculo II, a divinizao da figura imperial em vida foi

    percebida pelos historiadores da poca (e provavelmente no s) como uma exceo

    motivada por um carter deformado.

    O sculo III foi marcado por certo despertar religioso, inclusive por parte dos

    imperadores, que se viam na obrigao de renovar o pacto com os deuses. Graves

    problemas poltico-militares os impeliram a se aproximar do divino, e isso acabou por

    acelerar o processo de sacralizao do poder imperial. A completa mistificao da

    realeza pode ter sido uma reao s frequentes usurpaes e guerras civis. Essas e outras

    alteraes no espao scio-poltico romano levaram ao surgimento do Dominato (284-

    476).13 No incio do sculo IV, a surpreendente adoo da crena monotesta por parte

    dos imperadores no conteve o processo de sacralizao do poder, mas o reforou.

    Houve uma fuso de elementos pagos com a mensagem crist, o que forjou uma

    imagem de imperador supremo, todo-poderoso, inacessvel, e quase divino.

    13 Cf. infra, p. 45 e ss.

  • 6

    Durante esses trs sculos, o cristianismo, a religio monotesta supracitada, havia

    se espalhado por quase todo o Imprio. Sua origem se deu numa provncia remota e

    agitada a Judia. A religio crist foi fundada por Jesus de Nazar, um pregador e

    milagreiro judeu itinerante da primeira metade do sculo I. O ministrio de Jesus,

    reformista e popular, logo suscitou forte oposio por parte das autoridades religiosas

    judaicas. Assim, por presso dos seus prprios compatriotas, Jesus foi crucificado pelos

    Romanos. Nos anos que se seguiram, seus discpulos levaram sua mensagem ao mundo

    helenstico governado pelos Romanos. Os adeptos da nova religio cresceram

    vigorosamente, sobretudo nos meios urbanos humildes de Jerusalm, Antioquia,

    Alexandria e Roma.14 O facto de ser monotesta no era o nico elemento que a

    diferenciava das religies tradicionais do mundo mediterrneo. Era uma religio

    exclusivista, proselitista, pregadora do amor e da redeno, e que foi construindo

    doutrinas, hierarquia e organizao eclesistica bem definidos.

    Com diferenas to marcantes, logo os grupos cristos e no-cristos entraram em

    coliso. Qualquer forma de superstitio que, como a crist, se manifestava publicamente

    e atraa um extraordinrio nmero de adeptos, era considerada uma sria ofensa aos

    deuses e um ataque direto ao Estado romano. Tal foi a poltica seguida em 186 a.C.,

    quando os iniciados nos ritos de Baco foram perseguidos e sumariamente

    assassinados.15 A mesma poltica foi aplicada depois, no incio do sculo I, na forma da

    legislao contra os druidas gauleses.16 A superstitio supostamente implicava numa

    14 Cf. a localizao das principais cidades do Oriente romano no anexo 2. 15 Cf. TITO LIVIO. Op. cit., 39.8-18. Os decretos sobreviventes concentram-se na estrutura das clulas bquicas seus juramentos de lealdade, sua organizao e financiamento, seus membros, sua propriedade. Supem-se da que foi o poder dos lderes das clulas sobre os adoradores, rompendo os padres tradicionais de famlia e autoridade, que perturbou o Senado, ao invs dos alegados atos criminosos ou ritos orgisticos. Estas alegaes, como quaisquer outras que poderiam surgir, teriam servido para minar o crdito de um culto ento poderoso e com muitos seguidores (HORNBLOWER, S.; SPAWFORTHY, A. [eds.]. The Oxford companion to Classical Civilization. New York: Oxford University Press, 2004, p. 110). As bacanais, no entanto, no foram suprimidas. De acordo com o relato de Lvio, apenas se regulou o nmero de pessoas reunidas para o culto e, em particular, o nmero de homens em cada grupo. 16 Assim como as bacanais, o culto nacional dos druidas apresentava, aos olhos dos Romanos, claros indcios de sedio poltica. Essas religies reuniam seguidores das aristocracias romana e gaulesa, respetivamente, pelo que foram encaradas como uma ameaa Res publica romana. Apenas por isso receberam sanes, uma vez que os Romanos, historicamente, no perseguiam por motivos religiosos (no obstante todo o desprezo que nutriam contra o que consideravam superstitio). Portanto, as aes que tomaram contra os dois cultos em questo mostram, em primeiro lugar, a preocupao de se precaverem contra formas de associao potencialmente subversivas. Todavia, as perseguies contra os cristos nos sculos III e IV, podem ter constitudo uma exceo regra: teriam sido motivadas antes pelo fervor

  • 7

    reverso da ordem natural e era, portanto, um ataque direto pietas,17 virtude romana

    por excelncia. No s era tido como uma ameaa pietas romana, mas tambm como

    uma doena contagiosa que se alastrava, representando um perigo real para a

    humanidade.

    Assim, a tenaz recusa crist em aceitar a venerao do imperador e preconceitos

    das mais diversas origens complicaram a situao dos nazarenos. Alm disso, o

    cristianismo era uma religio proselitista e a converso de um Romano significava um

    rompimento completo com o mos maiorum,18 com os costumes e a religio de seus

    ancestrais. Os cristos afastavam-se do nomen Romanum e constituam um nomen

    prprio, o nomen Christianum, o que para o governo romano derivava de suas mens

    insana.19 Com tantos ingredientes explosivos, bastaram algumas situaes

    particularmente delicadas para que os imperadores se convencessem de que deveriam

    redobrar o zelo pela pietas e perseguir os inimigos do Estado.

    geralmente aceite que no houve perseguio de cristos por parte do governo

    romano antes do ano 64.20 Neste ano, um terrvel incndio devastou boa parte da cidade

    de Roma. Logo se espalharam rumores de que o prprio imperador, Nero (54-68), teria

    provocado a destruio a fim de reconstruir a urbs de forma mais racional, segundo seus

    padres estticos. Ento, para dissipar os boatos, ele tomou uma srie de iniciativas

    religiosas e administrativas. Como isso no surtiu efeito, voltou-se contra os cristos:

    Et haec quidem humanis consiliis providebantur, mox petita [a] dis piacula aditique Sibyllae libri, ex quibus supplicatum Volcano et Cereri

    renovado dos imperadores de ento pela religiosidade tradicional. Adiante essa questo ser melhor explicada.

    17 A pietas define-se habitualmente como um sentimento de obrigao para com aqueles a quem o homem est ligado por natureza (pais, filhos, parentes). Quer dizer, por conseguinte, que liga entre si membros da comunidade familiar, unidos sob a gide da patria potestas, e projectada no pretrito pelo culto dos antepassados. Est, pois, firmada nos sentimentos religiosos dos Romanos (...)(ROCHA PEREIRA, M. H. Estudos de Histria da cultura clssica, II volume Cultura Romana. 4 edio revista e actualizada. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2009, pp. 338-339). 18 Os Romanos tinham como suporte fundamental e modelo do seu viver comum a tradio, no sentido de observncia dos costumes dos antepassados, mos maiorum (Idem, p. 457). 19 Cf. JANSSEN, L. F. Superstitio and the persecution of the Christians. Vigiliae Christianae, vol. 33, n 2 (jun. 1979), pp. 131-159. Disponvel em . Acesso em 16 de maio de 2011. 20 GRIG, L. Making martyrs in Late Antiquity. London: Duckworthy, 2004, p. 12.

  • 8

    Proserpinaeque, ac propitiata Iuno per matronas, primum in Capitolio, deinde apud proximum in Capitolio, deinde apud proximum mar, unde hausta aqua templum et simulacrum deae perspersum est; et sellisternia ac perviglia celebravere feminae, quibus mariti erant. Sed non ope humana, non largitionibus principis aut deum placamentis decedebat infmia, quin iussum incendium crederetur. Ergo abolendo rumori Nero subdidit reos et quaesitissimis poenis adfecit, quos per flagitia invisos vulgus Chrestianos appellabat. Auctor nominis eius Christus Tibero imperitante per procuratorem Pontium Pilatum supplicio adfectus erat; repressaque in praesens exitiablilis superstitio rursum erumpebat, non modo per Iudaeam, originem eius Mali, sed per urbemetiam, quo cuncta undique atrocia aut pudenda confluunt celebranturque. Igitur primum correpti qui fatebantur, deinde indicio eorum multitudo igens haud proinde in crimine incendii quam dio humani generis convicti sunt. Et pereuntibus addita ludibria, ut ferarum tergis contecti laniatu canum interirent aut crucibus adfixi [aut flammandi atque], ubi defecisset dies, in usu [m] nocturni luminis uerentur. Hortos suos ei spectaculo Nero obtulerat, et circense ludicrum edebat, habitu aurigae permixtus plebivel currculo insistens. Unde quamquam adversus sontes et novssima exempla maeritos miseratio oriebatur, tamquam non utilitate publica, sed in saevitiam unius absumerentur.21

    21 Eram estas as medidas sugeridas pela prudncia humana. Sacrifcios expiatrios foram feitos para apaziguar os deuses, os livros de Sibila consultados e, a eles obedecendo, fizeram-se splicas a Vulcano, a Ceres e Proserpina. Damas romanas foram propiciar Juno, primeiramente no Capitlio, depois junto mais prxima praia do mar, donde apanharam gua para espargir no templo e na esttua da deusa e as mulheres que tinham maridos, celebraram as selistrnias, e viglias religiosas. Mas nem por meios humanos, nem pelas liberalidades do imperador nem pelas expiaes religiosas se apagava o rumor infamante que atribua o incndio s ordens de Nero. Para destruir tais murmrios ele procurou pretensos culpados e f-los sofrer as mais cruis torturas, pobres indivduos odiados pelas suas torpezas e vulgarmente chamados cristos. Quem lhes dava este nome, Cristo, no tempo de Tibrio foi condenado ao suplcio pelo procurador Pncio Pilatos. Embora reprimida no momento, esta perigosa superstio irrompia de novo, no s na Judia, bero desse flagelo, mas at mesmo na prpria Roma, para onde afluem do mundo inteiro e conquistam voga todas as coisas horrveis e vergonhosas. Logo a princpio foram presos os que se confessavam cristos, depois pelas revelaes destes grande multido foi convencida no do crime do incndio, mas de odiar o gnero humano. Ao suplcio dos que morriam juntava-se o escrnio, pois envolviam as vtimas com peles de feras, e as expunham s laceraes dos ces, ou eram amarradas em cruzes ou destinadas a serem queimadas e, desde que acabava o dia, eram destrudas pelo fogo guisa de tochas noturnas. Nero tinha cedido seus jardins para esses espetculos e ao mesmo tempo celebrava jogos no circo, confundindo-se com a plebe, em hbitos de auriga, conduzindo carros.

    Ento, posto que os castigos se dirigissem aos cristos culpados e merecedores dos maiores suplcios, levantava-se por eles comovida compaixo, porque eram imolados menos por um motivo pblico que pela crueldade de um s homem (TCITO. Anais. Traduo de Leopoldo Pereira. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1964, 15.44). Negritos acrescentados.

    Sobre essa questo, e tudo o que est sua volta, h muitos debates historiogrficos. H quem cogite, inclusive, a possibilidade de os cristos terem sido mesmo os responsveis pelo incndio de Roma (cf. FINI, M. Nero o imperador maldito: dois mil anos de mentiras. Traduo de Mrcia Justum e Alessandro Giannini. So Paulo: Scritta, 1993). Uma discusso pormenorizada fugiria aos objetivos desta dissertao.

  • 9

    Para os objetivos deste estudo, mais importante que apresentar uma longa

    discusso acerca do episdio acima, destacar a repulsa anticrist da sociedade romana

    de ento. Mas no eram apenas os Romanos que os cristos deviam temer. Os judeus

    tambm eram hostis aos cristos, embora muitos destes partilhassem com aqueles a

    mesma origem tnica. Dois anos antes do incndio de Roma, o sumo-sacerdote de

    Jerusalm promoveu uma onda de perseguies contra os cristos. E provavelmente

    foram os judeus de Roma que apresentaram a denncia e a acusao de incendirios

    feita contra os nazarenos. Certamente os perseguidores foram bem informados, visto

    que desempenharam com xito o seu trabalho.22

    Embora os judeus gozassem o status de religio licita, e colaborassem com as

    autoridades romanas, como no episdio acima, a situao deles para com o Imprio no

    era das melhores. O judasmo era considerado superstitio, assim como os demais cultos

    nacionais da populao no-romana. Assim, ao menos parte da animosidade dos

    Romanos contra o cristianismo decorria do facto de esta religio ser considerada um

    ramo heterodoxo do judasmo. As frices entre os representantes do Estado romano e a

    sociedade judaica se acumulavam desde o incio da ocupao romana da Judia, e eram

    alimentadas por um messianismo poltico-religioso judaico que aspirava a libertao. A

    tenso latente acabou por desembocar numa rebelio aberta pouco aps o incndio de

    Roma, no ano 66. Nem a destruio do Templo e a disperso dos judeus, no ano 70,

    foram suficientes para evitar duas outras rebelies judaicas, no sculo II. O

    enfrentamento aberto tornou ainda mais precrio o estatuto do judasmo. Por sua ligao

    umbilical com tal religio, muitos politestas tradicionais acreditavam que os cristos

    tambm estavam obcecados pelos mesmos sentimentos antirromanos, o mesmo

    irracional odium humani generis.23

    22 RODRIGUES, N. S. Iudaei in Vrbe: os judeus em Roma de Pompeio aos Flvios. Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2004, pp. 598-600. 23 No entanto, aps o incndio de Roma em 64, os Romanos aparentemente comearam a ter conscincia das diferenas religiosas entre o cristianismo e o judasmo (RODRIGUES, N. S. Op. cit., p. 601). Mas os preconceitos romanos eram duradouros e, juntamente com o esprito de rebelio dos judeus, contriburam para que os cristos se afastassem do judasmo e constitussem uma religio autnoma. Os cristos procuraram ento se destacar como ramo religioso divergente do judasmo, valorizando a paz com a ordem secular. Diferentemente dos judeus, no possuam quaisquer reinvindicaes nacionalistas ou tnicas. Esse processo de afastamento da fervente religio judaica determinou a formao dos dogmas da Igreja. Assim, por exemplo, ela paulatinamente abandonou o repouso no stimo dia da semana, identificado ao Sabbath judaico, e adotou o descanso dominical. Para este no existe nenhuma sustentao bblica direta, o que refora a tese de que a razo da mudana esteve mesmo ligada ao esforo

  • 10

    Entre a primeira perseguio de Nero, que se concentrou em Roma, e a Grande

    Perseguio (303-313), de alcance muito mais amplo, em vrias ocasies pontuais os

    cristos sofreram com a violncia originada da presso popular ou dos vrios nveis da

    administrao romana. Essas perseguies no foram ininterruptas ou uniformes em

    alcance e em intensidade sobre as cidades e provncias do Imprio. Mas h registos de

    cristos que foram banidos de funes pblicas, presos, condenados s minas24,

    torturados, mutilados25 ou mesmo mortos.26 Procurava-se manter a ordem no mundo,

    punir os transgressores, assegurar o favor dos deuses to ofendidos com a impiedade

    crist e preservar os valores tradicionais. O exrcito era o instrumento chave dos

    imperadores nessa rdua tarefa. Era tambm o primeiro foco das aes de intolerncia:

    procurava-se purg-lo do elemento cristo, to hostil ordem natural das coisas.

    No obstante as perseguies, os conversos se multiplicavam por toda a parte. O

    exrcito no passou inclume, muito embora fosse um bastio do paganismo e dos

    valores tradicionais romanos. Por isso e pela resistncia dos sacerdotes e apologistas

    cristos em permitirem o alistamento de batizados, a converso dessa instituio foi

    lenta. Quando, afinal, foi concedida plena liberdade de culto aos cristos, no incio do

    sculo IV, e medidas foram aplicadas a fim de tornar o cristianismo a religio de

    Estado, tudo indica que o nmero de cristos no exrcito e no Imprio ainda fosse

    minoritrio.

    Uma das prioridades dos imperadores passou a ser o exrcito, por vrios motivos.

    O objetivo central deste trabalho discutir esse processo. Da insero de smbolos

    de separao absoluta do judasmo. Para um vigoroso estudo sobre esta questo, cf. BACCHIOCCHI, S From Sabbath to Sunday a historical investigation of the rise of Sunday observance in Early Christianity. Roma: The Pontifical Gregorian University Press, 1977. Vale a pena ressaltar que, analisando em retrospectiva, a perseguio aos judeus impulsinou a constituio do cristianismo como religio autnoma e, em ltima anlise, o seu xito no sc. IV, quando a Igreja se ligou ao Estado. Mas, no incio, quando os Romanos perseguidores no distinguiam claramente os dois ramos religiosos, ningum poderia prever que algum dia os nazarenos obteriam o reconhecimento, e muito menos o favorecimento oficial do Estado romano.

    24 Cf. Condenados a las minas bajo Valeriano, in: Actas de los Mrtires. Texto bilinge, introducciones, notas y versin espaola por Daniel Ruiz Bueno, quinta edicin. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1996, pp. 702-717. 25 As mutilaes, em especfico, exceto em situaes de guerra, no foram praticadas antes da Grande Perseguio acima mencionada. Depois os cristos tambm a praticaram contra aqueles que rotularam como hereges, os cristos heterodoxos (MONTSERRAT TORRENTS, J. El desafo cristiano Las razones del perseguidor. Madrid; Milo: Anaya & Mario Muchnik, 1992, p. 151). 26 Os mortos, no entanto, sempre constituram uma minoria, mesmo no auge das perseguies.

  • 11

    cristos nos estandartes militares, s preces antes das batalhas, assistncia de

    sacerdotes cristos aos militares e a cristianizao do sacramentum, ser discutido

    aqui como se forjou essa espada to necessria ao basileus. E este no foi o nico

    beneficiado, como se ver. Os soldados encontraram no cristianismo no sua fraqueza,

    como quis Gibbon no sculo XVIII. Como se pretende aqui mostrar, eles encontraram

    sim, uma identidade que lhes forneceu fora, motivao e um alento por que lutar no

    final do Imprio, posto que a Ptria que defendiam era uma Res publica christiana.

    ***

    Esta dissertao foi redigida segundo o Novo Acordo Ortogrfico da Lngua

    Portuguesa de 1990 e que passou a vigorar entre 2010 e 2012. De modo geral, o texto se

    aproxima mais da variante brasileira da Lngua Portuguesa, embora apresente algumas

    afinidades sintaxe e termos mais usuais do Portugus europeu.

    A fim de tornar a narrativa inteligvel aos leitores em geral, procurou-se fornecer a

    contextualizao poltica e militar, dos primrdios da civilizao romana ao fim do

    sculo IV. Naturalmente, os primeiros sculos foram analisados muito mais brevemente

    que o perodo que constituiu o foco do estudo. As datas e nomes no foram citados

    fortuitamente, e sim para orientar o leitor. Com a mesma de meta de clarear o quadro

    histrico, foi estabelecida a ligao entre os protagonistas da Histria. Assim, ao

    discutir a cristianizao do exrcito no sculo IV, procurou-se explicar tambm os

    processos de sucesso e outros pormenores polticos, a fim de que no existissem

    lacunas narrativas. Alm disso, dois mapas e duas imagens de peas de arte, importantes

    para a compreenso geral, constam nos anexos, ao final da dissertao.

    Tendo isso em vista, aps esta introduo h um esboo da formao do Imprio

    Romano e seu exrcito, bem como a problemtica que envolveu os cristos e o servio

    militar (captulo I); segue a apresentao de um importante testemunho de fins do

    sculo IV e o debate sobre o sacramentum cristo (captulo II); por fim, constam as

    consideraes finais (captulo III), a bibliografia (captulo IV) e os anexos.

  • 12

    1. A guerra na Roma Antiga

    1.1 Dos primrdios ao incio do sculo IV: o exrcito romano tradicional

    A estrutura, a disciplina e a identidade do exrcito romano forjaram-se com a

    expanso imperialista romana. Esta ao conquistadora pretendia mais do que a posse e

    explorao de novos territrios. Ela deveria promover o estilo de vida e valores

    culturais romanos entre os provincianos. Orgulhosa, Roma arrogava a si um estgio de

    civilizao mais avanado, pelo que teria a misso de estender os seus valores aos povos

    mais atrasados. Isso se dava com a ao do exrcito, com a criao e o

    desenvolvimento de cidades e pela introduo de regras jurdicas.27

    As linhas gerais desse processo histrico so facilmente mapeadas. Segundo a

    tradio, os reis etruscos criaram mecanismos que possibilitaram a expanso romana

    pela Itlia e alm. De entre esses reis se destacou Srvio Tlio (578-534 a.C.) que, por

    meio do censo, repartiu os encargos civis e militares proporcionalmente fortuna

    pessoal de cada cidado.28 Assim, at conquista da Itlia (400-270 a.C.) a guerra

    romana era marcada por traos aristocrticos: os patrcios exerciam papel militar nico e

    tomavam quase todo o esplio de guerra.

    Foi principalmente sob a Repblica (509-27 a.C.) que Roma constituiu seu

    imperium. A conquista da pennsula itlica, impulsionada pela infantaria ento recm-

    criada (sc. V a.C.), desenvolveu a cultura militar romana.29 Por conseguinte, a fase

    militar aristocrtica foi gradualmente superada. Tornando a expanso um objetivo

    pblico e religiosamente sancionado30 (cf. supra, pp. 3-4), os conquistadores

    estenderam a cidadania aos novos aliados. Estes, em troca, deviam-lhes unicamente o

    27 MARTIN, J.-P. As provncias romanas da Europa Ocidental e Central. Portugal: Europa-Amrica, 1999, pp. 181-182. 28 AZIZ, P. A civilizao dos etruscos. Rio de Janeiro: Otto Pierre Editores, 1978, p. 104. 29 FUNARI, P. P. A. A cidadania entre os romanos. In: PINSKY, C. B. & PINSKY, J. (orgs). Histria da cidadania. So Paulo: Contexto, 2003, p. 51. 30 DAWSON, D. A. Op. cit., p. 198.

  • 13

    servio militar. Consequentemente, Roma formou uma reserva militar inalcanvel para

    os seus inimigos.

    Esse sistema sustentou as trs guerras pnicas que garantiu aos Romanos o

    controlo sobre o Mediterrneo ocidental (270-200 a.C.). A etapa derradeira da

    constituio do imperium romanorum deu-se aps a conquista do mundo helnico (200-

    146 a.C.). Em essncia, estava formada uma unidade territorial que se manteve em

    relativa integridade at o sculo V.

    ***

    Antes da ascenso da nova potncia, a Grcia inspirou a constituio das tropas

    romanas que combatiam a p, as precursoras das legies. E as contribuies helnicas

    permaneceram com as legies, que se tornaram as unidades mais prestigiadas do

    exrcito romano. Seu contingente variou muito no decorrer de sua existncia, mas girou

    em torno de 4200 e 5 mil homens, alm de 300 cavaleiros. Todo aquele que aspirasse a

    uma magistratura deveria cumprir o mnimo de dez anos de servio militar. Assim,

    sempre existiam patrcios interessados no comando legionrio, que era constitudo, da

    base para o topo, por 59 centuries; um tribuno (ou vrios), que comandava a cavalaria;

    cinco tribunos (angusticlvios) da ordem equestre, cada qual responsvel por duas

    coortes; um prefeito do acampamento; um tribuno designado laticlvio e, finalmente,

    um legado da legio, ambos procedentes da ordem senatorial.31

    Alm das questes prticas da vida militar, a hierarquia tambm era importante

    para a vida espiritual das legies, visto que era atravs de sua intermediao que as

    sensibilidades dos soldados se impregnavam pela religio, ento percebida mais como

    uma obrigao coletiva que individual. Os sincretismos de associao eram

    provavelmente mais comuns entre os militares do que entre os civis, visto que eles

    buscavam assegurar toda a proteo divina possvel. A noo do sagrado entre os

    31 POLIBIO. Historias. Introduccin de A. Daz Tejera, traduccin y notas de Manuel Balasch Recort. Madrid: Gredos, 1991, 6. 19-42 e BOHEC, Y. L. El ejrcito romano. Traduccin de Ignacio Hierro. Barcelona: Ariel, 2004, pp. 33-34.

  • 14

    soldados romanos possuiu tambm uma dimenso espacial o pomoerium, j

    mencionado, era o limite sagrado da cidade na poca republicana.32 Sob o Imprio, o

    conceito sofreu uma transferncia e se aplicou tambm ao limes, a zona fronteiria que

    alm de ser uma barreira militar possua valor jurdico e religioso. Portanto, o Imprio

    era protegido tambm por uma milcia celestial.33

    A guerra romana era uma adaptao da guerra hoplita grega, e a legio, uma

    adaptao da falange grega. A legio dividia-se em vrias linhas, cada uma subdividida

    em pequenas unidades capazes de manobra independente.34 Mesmo os escudos

    legionrios, por exemplo, se basearam em modelos gregos (embora o gldio fosse

    hispnico, e o pilum, samnita).35 Portanto, foram principalmente elementos gregos e

    romanos que, unidos, moldaram a legio. Esta, no entanto, acabou por desenvolver-se

    opostamente ao modelo da falange hopltica e adquiriu sua identidade clssica j nos

    primrdios do sculo III a.C.36

    Assim surgiu um sistema militar sempre vitorioso sobre tropas desorganizadas

    quando o terreno era favorvel. Tal fenmeno levou alguns estudiosos a acreditarem

    que a disciplina militar romana, combinada com seu sistema de organizao ttica, foi

    provavelmente a mais eficaz do mundo.37 Assentado nessa disciplina38, tal sucesso

    32 Cf. supra, a lenda da fundao de Roma e as razes do fratricdio cometido por Rmulo (p. 3). 33 BOHEC, Y. L. Op. cit., pp. 332-334. 34 DAWSON, D. A. Op. cit., pp. 191-92. 35 GRIMAL, P. O Imprio Romano. Lisboa, Edies 70, 1999, p. 119. 36 BRIZZI, G. O guerreiro, o soldado e o legionrio. Traduo de Slvia Massimini. So Paulo: Madras, 2003, pp. 26-27. 37 FERRILL, A. A queda do Imprio Romano a explicao militar. Traduo de Octavio A. Velho. Rio de Janeiro: Zahar, 1989, p. 30. 38 A disciplina entre os romanos no significava necessariamente uma obedincia mecnica s ordens. Se isso ocorria, era mais como consequncia. Na palavra latina disc-iplina h a raiz disc-o, -ere, verbo que significa aprender. Em sntese, todos os cdigos da conduta de um soldado para com seu superior pautavam-se em uma relao semelhante de um aluno para com seu professor (BOHEC, Y. L. Op. cit., p.144). Em situaes adequadas, a iniciativa e agresso individuais eram muito encorajadas pelos militares romanos, visto que a atitude de alguns homens podia ser decisiva em uma batalha (GOLDSWORTHY, A. Generais romanos. Traduo de Carlos Fabio. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2007, p. 484). Este conceito distingue-se radicalmente de como a disciplina se apresenta na contemporaneidade: portadora de um contedo no qual o que interessa apenas a execuo da ordem recebida, coerentemente racionalizada, metodicamente treinada, e exata, na qual toda crtica pessoal incondicionalmente eliminada e o agente se torna um mecanismo preparado exclusivamente para a realizao da ordem (WEBER, M. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1974, p. 292). O melhor estudo sobre a disciplina militar romana PHANG, S. E. Roman military service ideologies of discipline in the Late Republic and Early Principate. New York: Cambridge University Press, 2008. A autora observa que mesmo punies exigem legitimao e a ideia de uma obedincia dos soldados como categrica e absoluta foi mais um ideal da elite que uma realidade (p. 111). Toda essa questo pode ser

  • 15

    reprimia severamente a ferocitas daqueles que desrespeitavam o sistema de combate em

    fileiras.39 Apesar disso, a ferocidade distinguiu o modo de guerrear dos romanos do de

    seus contemporneos.40

    Ainda que a legio tivesse consolidado sua identidade, no possua ainda uma

    estrutura militar profissional. A Roma de ento desconhecia distines entre civis e

    militares e entre cidados e soldados. Os cidados eram convocados sempre que surgia

    uma guerra ou ameaa externa, aps as quais eram desmobilizados e retornavam vida

    civil. Essa realidade mudou sensivelmente a partir de fins do sculo II a.C. Em 129 a.C.

    o Senado reduziu o patrimnio mnimo requerido para ingresso na classe V do exrcito.

    Em 107 a.C., Gaio Mrio (157-86 a.C.) oficializou uma reforma que finalmente

    profissionalizou o exrcito. A carreira civil separou-se da militar, algo que muito

    contribuiu para a consolidao de uma identidade militar. No entanto, tal mudana

    cobrou seu preo res publica, visto que, em ltima anlise, Mrio fundou um forte

    lao de fidelidade e dependncia entre o general e o soldado, e no mais entre o Estado

    e o soldado.41 Como observa Norma Mendes, aps Jlio Csar essa nova forma de

    relacionamento entre as legies e seu general tornou-se irreversvel.

    Eleito cnsul em 59 a.C., Csar formou o primeiro triunvirato com Pompeio (106 a.C.

    48 a.C.) e Crasso (115 a.C. 53 a.C.). Recebeu as provncias da Glia Cisalpina e, depois, as da

    Glia Transalpina. A seguir, dedicou-se conquista do resto da Glia. Com a morte de Crasso, o

    conflito com Pompeio tornou-se inevitvel. A essa altura, j contava com a fidelidade plena dos

    seus veteranos.

    condensada por Polbio, para o qual as conquistas romanas se explicavam no s pelos castigos, mas tambm pelas honras militares (op cit., 6.39).

    39 O combate fora das fileiras, algo como o duelo, s era lcito quando excepcionalmente permitido pelos superiores. Assim, o soldado Tito Mnlio, aps receber a autorizao do dictator que ento governava, matou um Galo que desafiava os romanos. Em recompensa, recebeu uma coroa de ouro e, inclusive, o apelido Torquato, que fez com que at os seus descendentes fossem honrados (TITO LIVIO. Op. cit., 7.9-10). Posteriormente, outro Tito Mnlio, desprezando a ordem expressa dos cnsules que proibia qualquer enfrentamento fora das fileiras, envolveu-se num combate singular contra um Tusculano, guerreiro famoso pela sua linhagem e pelos seus feitos. Aps mat-lo e recolher os despojos, Mnlio retornou ao acampamento, onde foi ovacionado pelo seu esquadro de reconhecimento. Sua proeza, contudo, no o livrou da pena capital, ordenada pelo cnsul e pai. O terrvel incidente deixou uma lio duradoura: a de que ningum quebraria a disciplina militar e ficaria impune (idem, 8.7). 40 KEEGAN, J. Uma histria da guerra. Traduo de Pedro Maia Soares. So Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 343. 41 MENDES, N. M. Roma Republicana. So Paulo: tica, 1988, pp. 65-66.

  • 16

    O partido senatorial, encabeado por Pompeio, acabou derrotado em Farslia (09

    de agosto de 48 a.C.). Csar ento decidiu reconquistar o Oriente, ocupando o Egito

    aps a tomada de Alexandria. Entre abril de 46 e maro de 45, esmagou o que restava

    das foras de Pompeio na frica, Tasos e na Hispnia (Munda). Aps sair vitorioso e

    celebrar seus cinco triunfos, recompensou com prodigalidade os soldados to notveis

    por sua fidelidade pessoal. 42 Vitorioso, popular e dispondo de tropas to fiis, Csar se

    tornou um dictator poderoso. No entanto, acabou executado por opositores antes de

    consolidar seu projeto pr-monrquico. Mesmo assim, deixou as bases sobre as quais

    seu herdeiro, Otvio, tornou-se o primeiro princeps.

    Para assegurar o poder, Otvio teve que iniciar outra sangrenta guerra civil. Ao

    fim dela, seu inimigo Marco Antnio (83 a.C. 30 a.C.) acabou derrotado e morto.

    Otvio deu grande contribuio ao exrcito, embora tenha comandado diretamente as

    legies em apenas duas ocasies.43 evidente que no inventou tudo: em muitos casos

    recorreu herana do exrcito republicano. Mesmo assim, ele forjou a organizao

    militar do Alto Imprio: a distino entre a guarnio de Roma e a das provncias, a

    diferena entre unidades auxiliares e legies, o comando de uma e outras, os modelos de

    recrutamento e a estratgia implantada nas fronteiras datam de seu principado.44 Alm

    disso, a enfermaria de campanha estava disposio dos feridos. O servio dos efetivos,

    as licenas, a certeza de que o exrcito uma profisso, a reforma e as representaes

    teatrais para as tropas tambm j eram conhecidos.45 A partir do reinado de Otvio

    Augusto, os recrutas, uma vez integrados na sociedade militar, aprendiam diversos

    aspetos da cultura romana, e desenvolviam comunitariamente um nvel particular de

    conscincia imperial. Os militares desenvolveram assim um distinto modo de vida, com

    um horrio particular de deveres militares e religiosos que formavam parte de suas

    atividades cotidianas. Esta cultura militar tambm gravitava em torno da ligao de cada

    soldado para com o regime imperial.

    42 SUETNIO. Os doze csares. Traduo de Gilson Csar Cardoso de Sousa. So Paulo: Germape, 2003, Csar, 38, p. 29). 43 Isso aconteceu na Dalmcia, quando ainda era bem novo, e na Cantbria, aps derrotar Marco Antnio (SUETNIO. A vida do Divino Augusto, 20. In: AUGUSTO; SUETNIO. A vida e os feitos do Divino Augusto. Traduo de Matheus Trevizam, Paulo S. Vasconcellos e Antnio M. de Rezende. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007, p. 64). 44 BOHEC, Y. L. Op. cit., p. 255. 45 CARRI, J. M. O soldado. In: GIARDINA, A. (dir.). O homem romano. Traduo de Maria J. V. de Figueiredo. Lisboa: Editorial Presena, 1991, p. 89.

  • 17

    Contudo, a principal fonte de unidade relacionava-se mais com uma distinta

    identidade militar, disciplina, rotina e camaradagem, ao invs de uma ideologia global

    romana. Resultou de formao e aculturao no seio de um modo de vida militar que se

    distinguia por variveis como estilos de vestimenta militar, arquitetura de fortes e

    fortalezas, e do latim, lngua comum a muitos soldados e que tambm forneceu

    coerncia vida da caserna. Alm disso, muitos soldados foram deslocados para as

    regies fronteirias, onde se tornaram um grupo especial, graas a fatores como o poder

    proporcionado por sua identidade militar e sua importncia econmica. Assim, em

    provncias como Britnia e Germnia (mas no s), soldados na ativa e, principalmente,

    veteranos reformados, ligaram-se s elites locais. Formaram assim uma identidade que

    deve ter forjado formas de solidariedade imperial que estavam alm da elite imperial.

    Esta identidade militar pode ser definida pela conexo com outras formas de cultura da

    no-elite romana, ou cultura subordinada que, embora recorresse a algumas fontes

    comuns identidade da elite, foi definida e manifestada de muitos modos diferentes.46

    O principado de Otvio no foi marcado apenas por avanos na rea militar. Foi

    tambm um perodo de intensa propaganda imperial destinada a construir a imagem do

    princeps da Pax Romana. Um dos pontos altos dessa propaganda se deu no ano 13,

    quando o imperador possua (para a poca) a extraordinria idade de 76 anos. Nessa

    altura ele gravou suas realizaes no Res gestae Diui Augusti.47 No trecho abaixo

    referido, Augusto elencou algumas de suas realizaes militares e diplomticas, fazendo

    questo de passar a imagem de um general justo:

    Omnium prouiciarum populi Romani, quibus finitimae fuerunt gentes quae non pererent imperio nostro, fines auxi. Gallias et Hispanias prounicias, item Germaniam qua includit Oceanus a Gadibus ad ostium Albis fluminis pacaiu. Alpes a regione ea, quae proxima est Hadriano mari, usque ad Tuscum pacificaui, nulli genti bello per iniuriam inlato. Classis mea per Oceanum ab ostio Rheni ad solis orientis regionem usque ad fines Cimbrorum nauigauit, quo neque terra neque mari quisquam Romanus ante id tempus adit, Cimbrique et Charydes et Semnones et euisdem tractus alii Germanorum populi per legatos amicitiam meam et populi Romani petierunt. Meo iussu et auspicio ducti sunt duo exercitus eodem fere tempore

    46 HINGLEY, R. Globalizing Roman culture unity, diversity and Empire. New York: Routledge, 2005, pp. 93 e 94. 47 Cf. CORASSIN, M. L. Comentrio sobre as RES GESTAE DIVI AVGVSTI. In: JOLY, F. D. (org.). Histria e retrica ensaios sobre historiografia antiga. So Paulo: Alameda, 2007, pp. 97-118.

  • 18

    in Aethiopiam et in Arabiam, quae appellatur Eudaemon, maxima eque hostium gentis utriusque copiae caesae sunt in acie et complura oppida capta. In Aethiopiam usque ad oppidum Nabata peruentum est, cui proxima est Meroe: in Arabiam usque in fines Sabaeorum processit exercitus ad oppidum Mariba.48

    O primeiro imperador construiu assim a imagem de general. Ao lado dela,

    usufruiu da imagem religiosa de Augusto (venervel) e a imagem cvica de Pai da

    Ptria.49 Embora se mostrasse preocupado com a extenso territorial e a afirmao de

    Roma como superpotncia, ao menos na propaganda procurava assegurar antes disso a

    segurana e a paz dos cidados, como atesta a magnfica Ara Pacis. Como observou

    Aurlio Vtor, o imperador

    Iactantisque esse ingenii et leuissimi dicebat ardore triumphandi et ob lauream coronam, id est folia infructuosa, in discrimen per incertos euentus certaminum securitatem ciuium praecipitare, neque imperatori bono quidquam minus quam temeritatem congruere. Satis celeriter fieri, quidquid commode gereretur, armaque, nisi maioris emolumenti spe, nequam mouenda esse. Ne compendio tenui, iactura grani, petita uictoria similis sit hamo aureo piscantibus, cuius abrupti amissique detrimentum nullo capturae lucro pensari potest.50

    48 Aumentei os territrios de todas as provncias do povo romano, onde havia povos vizinhos que no obedeciam a nosso poder. Pacifiquei as provncias das Glias e das Espanhas, bem como a Germnia: aqum do Oceano, de Gades [Cdiz] at a foz do rio Elba. Tornei pacficos os Alpes desde a regio que prxima ao mar Adritico at o Tirreno, a nenhum povo levando injustamente a guerra. Minha esquadra navegou pelo Oceano da foz do Reno para o Oriente, at o territrio dos cmbrios, aonde romano algum havia chegado por terra ou mar.

    Os cmbrios, crides, smnones e outros povos germnicos das mesmas regies rogaram por embaixadores a minha amizade e a do povo romano. Por minha ordem e iniciativa foram levados dois exrcitos, quase ao mesmo tempo, Etipia e Arbia que se chama Feliz; um enorme nmero de inimigos dos dois povos foi morto em batalha e muitas cidades tomadas. Foi-se Etipia at a cidade de Nabata, perto da qual se encontra Mero; o outro exrcito prosseguiu na Arbia ao territrio dos sabeus, at a cidade de Mariba (AUGUSTO. Feitos do Divino Augusto, 26. In: AUGUSTO; SUETNIO. Op. cit., p. 135 e p. 123, respetivamente). Negritos acrescentados. 49 Os ttulos destacados foram concedidos pelo senado (idem, 34 e 35, pp. 137-138). 50 Dizia ser prprio de um esprito presunoso e mais do que ftil ceder paixo dos triunfos e a uma coroa de louro, isto , a folhas estreis, a segurana dos cidados e precipit-la no perigo dos incertos desfechos de batalhas. Nada convm menos ao bom general que a temeridade; fazer algo depressa o bastante faz-lo bem. Jamais se deve pegar em armas seno na esperana de um interesse maior; a busca de uma vitria de ganho exguo e graves perdas no deve ser como a dos que pescam com anzol de ouro: impossvel compensar com o lucro de captura alguma o prejuzo de quebr-lo e perd-lo (SEXTO AURLIO VTOR. Vida e costumes dos imperadores romanos V. Augusto, 2. In: NERI, M. L.; NOVAK, M. G.; PETERLINI, A. A. (orgs.). Historiadores latinos: antologia bilngue. So Paulo: Martins Fontes, 1999, pp. 278-279).

  • 19

    O sistema poltico-administrativo e, sobretudo, a estrutura militar montada por

    Augusto estavam fadados a durar. Aps ele, a primeira guerra civil s ocorreu entre 68 e

    69, no chamado ano dos quatro imperadores (quando, aps o suicdio de Nero, Oto,

    Galba e Vitlio se sucederam at que Vespasiano restabeleceu a ordem poltica).

    Tambm ocorreram algumas rebelies provinciais, dentre as quais as judaicas, j

    mencionadas, representaram a maior ameaa. Ainda assim, nos trs primeiros sculos

    do exrcito imperial, predominaram as caractersticas do modelo augustano. Houve

    pouco espao para alteraes ou evoluo. Mesmo Trajano (98-117) praticamente no

    alterou a organizao herdada, que foi mantida durante suas expedies vitoriosas

    contra os Dcios e os Partos.

    Ao longo do sculo II cresceu a importncia do exrcito enquanto elemento

    basilar da fora imperial. Nesse perodo, o auge da influncia dos militares para com o

    poder central provavelmente se deu com Septmio Severo (193-211). De entre as

    principais medidas deste imperador destacam-se um aumento considervel do soldo e a

    autorizao para que os soldados se casassem legalmente. H que destacar que o

    aumento de soldos e donativos concedidos por ele e seus filhos ao exrcito no foi to

    grande a ponto de ter se constitudo uma monarquia militar. Tal termo, alis,

    inadequado por outro motivo o principado romano sempre se apoiou no exrcito, e

    no apenas com a Dinastia dos Severos. Conta-se que, em seu leito de morte, Severo

    recomendou aos filhos e sucessores que beneficiassem os soldados e esquecessem os

    demais. No possvel confirmar a autenticidade dessa anedota. Em todo caso, embora

    Severo tenha sido o primeiro imperador que as legies impuseram ao Senado, este no

    deixou de ser procurado como base para a legitimao de seu poder.51 Portanto, tambm

    equivocada a ideia segundo a qual sua monarquia militar sustentava-se unicamente

    pela fora das armas.

    O fim da dinastia dos Severos abriu um perodo de enfraquecimento poltico e

    desordens generalizadas. Tudo culminou no que a historiografia denominou anarquia

    militar (235-284). Esse perodo de quase meio sculo foi marcado por sucessivos

    golpes de Estado, guerras civis, assassinatos de imperadores, protagonismo do exrcito

    51 Cf. GONALVES, A. T. M. Os Severos e a Anarquia Militar. In: MENDES, N. M. & SILVA, G. V. Repensando o Imprio Romano. Rio de Janeiro: Mauad; Vitria: Edufes, 2006, pp. 175-191.

  • 20

    como instrumento poltico e governos to breves que no chegaram a imprimir uma

    diretriz administrativa. Tudo isso foi aproveitado pelos inimigos germnicos e Persas,

    que infligiram vrias derrotas s legies.

    A anarquia terminou com Diocleciano (285-305), que restaurou a ordem ao

    mundo romano. Tendo em conta as dificuldades para governar sozinho um Imprio to

    vasto e perturbado, instituiu primeiro uma diarquia ao nomear Maximiano primeiro

    como Csar e, depois, como Augusto do Ocidente (286-305). Fala-se em diarquia

    (com aspas) porque o soberano mais antigo resguardou para si a proeminncia e o

    Imprio permaneceu um patrimnio indivisvel (patrimonium indiuisum) a ele

    submetido. Em 01 de maro de 293 proclamaram-se dois Csares: Constncio52,

    associado a Maximiano em Milo, e Galrio53, associado a Diocleciano em Nicomdia.

    Era a tetrarquia, sistema de governo marcado por uma teologia poltica segundo a qual

    Diocleciano (Iouius, descendente de Jpiter) e Maximiano (Herculeus, descendente

    de Hrcules) teriam os Csares como filhos.54 Os laos dessa famlia divina foram

    reforados por meio de casamentos com mulheres das famlias dos tetrarcas.

    Segundo Lactncio, um autor cristo e crtico mordaz de Diocleciano, este teria

    quadruplicado o exrcito, subdividido as provncias ao extremo e elevado as exaes

    a um nvel insuportvel.55 Quanto ao aumento do contingente militar, consenso na

    historiografia que Lactncio exagerou e que o imperador teria, no mximo, duplicado os

    efetivos. Embora seja difcil determinar o total de homens das novas unidades, no

    restam dvidas de que Diocleciano substituiu o princpio baseado na qualidade do

    recrutamento por outro que insistia no aspeto quantitativo.56

    Houve, portanto, um aumento significativo da fora militar e da burocracia civil.

    O objetivo era no s proteger o Imprio dos inimigos externos mas tambm resguardar

    a autoridade imperial de usurpadores e das guerras civis. A importncia do exrcito para

    o novo sistema de governo depreende-se da propaganda tetrrquica, que enfatizou

    52 Csar entre 293-305 e Augusto entre 305 -306. 53 Csar entre 293-305 e Augusto entre 305-3011. 54 Os Augustos, aps experimentarem o segundo nascimento (note a semelhana com o batismo cristo), passaram a celebrar os seus aniversrios divinos no mesmo dia (geminis natalis). O parentesco divino foi uma ideia familiar nas culturas helensticas e romana: Jlio Csar, mais de trezentos anos antes de Diocleciano, j havia se proclamado descendente de Vnus (WILLIAMS, S. Diocletian and the Roman recovery. London: Routledge, 2000, p. 59). 55 LACTNCIO. Sobre la muerte de los Perseguidores. Introduccin, traduccin y notas de Ramn Teja. Madrid: Gredos, 1982, 7. 56 BOHEC, Y. L. Op. cit., p. 361.

  • 21

    grandemente a apresentao do imperador como soldado. O soberano passou a retratar a

    si prprio em moedas e esttuas com a barba de um dia, e vestindo e retirando o barrete,

    como suas tropas muitas vezes o viam. A relao entre os imperadores e os soldados

    como indivduos foi reforada pelos donativos, doaes em dinheiro feitas pelo

    imperador aquando da sua elevao como Csar ou Augusto e depois em intervalos de

    cinco anos. Ddivas menores eram concedidas tambm nos aniversrios imperiais e

    consulados.57

    1.2 Os cristos no exrcito romano (sc. I incio sc. IV)

    At aqui foram sumarizadas as realizaes do exrcito romano, e como este foi

    moldado a fim servir aos interesses da Repblica e do Imprio. sem dvida

    insuficiente, mesmo como panorama daquele que foi um dos maiores instrumentos de

    conquista de todos os tempos. Mas esta no uma dissertao sobre as suas conquistas,

    e sim sobre como este foi conquistado. E esta referncia no diz respeito ao modo como

    foi conquistado por qualquer fora invasora, mas sim como foi conquistado por uma

    fora muito mais subtil: a da f crist. Essa conquista no lhe trouxe um prejuzo

    evidente, pelo contrrio.

    Ao contrrio das teses formuladas ainda na poca do Iluminismo, no sculo

    XVIII, tentar-se- explicar como o cristianismo foi positivo ao exrcito romano e aos

    imperadores tardios, que acabaram por tambm adotar essa religio. No entanto, antes

    dessas questes que ocuparo a parte final deste estudo, cumpre analisar a problemtica

    dos cristos no exrcito romano no-cristo.

    1.2.1 Os fundamentos bblicos para as objees crists ao servio militar

    57 ELTON, H. Warfare and the military. In: LENSKI, N. (ed.). The Cambridge companion to the Age of Constantine. New York: Cambridge University Press, 2006, p. 338.

  • 22

    Alm do elemento blico, intrnseco de qualquer milcia, o exrcito romano,

    enquanto propagador dos valores romanos, tambm era um baluarte do politesmo

    greco-romano que tanto ofendia os cristos. Considerando que a f crist se baseia nas

    Escrituras (a Bblia crist), cumpre esboar o que esses textos trazem sobre a guerra e

    sobre a idolatria. Estes passos serviram de fundamento aos objetores de conscincia

    cristos e aos telogos e autoridades da Igreja quando condenaram o envolvimento de

    seus fiis no servio militar.

    Em relao s duas problemticas colocadas guerra (incluindo violncia de um

    modo geral) e idolatria (adorao de imagens) cumpre destacar que a ltima bastante

    assertiva na Bblia. No h margem para qualquer dvida, pelo que era um ponto

    pacfico aos cristos dos primeiros sculos. Talvez essa seja uma das maiores heranas

    judaicas para o cristianismo, religio intransigente na condenao adorao de

    imagens de deuses pagos. O primeiro e o segundo mandamento do Declogo

    condenam a adorao a outros deuses e a fabricao de imagens de escultura (x. 20, 3-

    4; cf. Dt. 4, 24). O Novo Testamento (conjunto de livros escritos aps a vida de Jesus e

    que pertencem somente ao cnone da Bblia crist) manteve o tom de forte condenao

    idolatria (cf. Mc. 12, 28-34). Segundo as palavras que teriam sido ditas pelo prprio

    Jesus, Deus esprito, e os seus adoradores devem ador-lo em esprito e verdade (Jo.

    4, 24). Isso significa que o Deus dos judeus e dos cristos no poderia ser representado,

    de tal modo era fundamental o princpio monotesta.58

    Encerrada a exposio do posicionamento bblico com relao idolatria, seguem

    os aspetos relacionados com a guerra. O primeiro livro da Bblia, o Gnesis, trata das

    origens dos cus e da Terra. Tudo teria sido criado na mais absoluta perfeio, at que

    uma serpente falante teria tentado a mulher do primeiro casal a pecar. Na concepo

    bblica, o mal do qual a guerra uma das puras expresses passou ento a grassar

    entre os homens. Os antecedentes deste relato surgem a posteriori, no ltimo livro da

    Bblia crist, o Apocalipse. O embate csmico entre o Bem (representado por Miguel) e

    58 Como se sabe, o cristianismo tardo antigo e medieval evoluiu no sentido de harmonizar o substrato politesta ao monotesmo cristo, no s atravs da venerao dos mrtires, das suas relquias e mais tarde dos santos, como pela cristianizao de festivais e de templos dedicados aos deuses tradicionais. A Reforma Luterana do sculo XVI procurou recuperar na disciplina religiosa a centralidade do culto ao Deus nico, secundarizando a venerao dos santos, mas essa questo escapa aos objetivos desta dissertao.

  • 23

    o Mal (representado pelo Drago, a antiga serpente, ou seja, Satans [Ap. 20, 2])

    teria iniciado no cu, com uma batalha na qual o Drago teria sido derrotado.

    Aps o relato das origens do homem seguem-se narrativas envolvendo violncia e

    batalhas nas quais os patriarcas tomaram parte. A seguir, Jav, o Deus dos Hebreus,

    ordenou que o seu povo escolhido conduzisse uma guerra de extermnio contra Hititas,

    Amorritas, Cananeus, Ferezeus, Heveus e Jebuseus. O prprio Jav teria endurecido o

    corao desses povos para que fossem destrudos (Jz. 11, 20); por outro lado, permitiu

    que esse processo demorasse para que Israel permanecesse fiel (Jz. 2, 20-23). Jav era

    consultado antes das batalhas (Jz. 1, 1) e teria prescrito frmulas para descartar recrutas

    cobardes ou desmotivados, bem como teria definido as situaes em que os sitiados por

    Israel deveriam ser escravizados ou exterminados (Dt. 20).

    verdade que existe uma perspectiva de que no futuro as naes no mais

    travariam guerras e as espadas seriam transformadas em relhas de arado, e as lanas

    em foices (Is. 2, 4). No entanto, no campo prtico a guerra era considerada parte

    intrnseca da vida terrena, e funcionava como um instrumento divino para punir os

    inquos, quer fossem os mpios Cananeus ou os Hebreus rebeldes. Assim, em resumo,

    na Bblia hebraica (chamada de Antigo Testamento pelos cristos) a guerra era uma

    forma pela qual Jav cumpria os seus propsitos.

    O posicionamento do Novo Testamento em relao guerra e atividade militar

    no muda radicalmente em relao ao Antigo Testamento. Joo Baptista, precursor de

    Cristo, aconselhou aos soldados que no cometessem extorses, que no fizessem

    denncias falsas e que se contentassem com o soldo (Lc. 3, 14). No lhes recomendou a

    desero ou a demisso do servio militar; seu desejo era apenas que no ocorresse

    nenhum abuso de autoridade por parte dos militares. Jesus tambm no condenou a

    carreira militar em si mesma, e exaltou a f do centurio de Cafarnaum (Lc. 7, 9).

    Portanto, para esses dois personagens fundamentais dos Evangelhos (os quatro

    primeiros livros do Novo Testamento), a carreira militar (e, por consequncia, a guerra)

    era se no recomendvel, pelo menos tolerada e reconhecida como uma profisso. Um

    crente sincero poderia engajar-se nela desde que no se corrompesse e oprimisse os

    outros.

  • 24

    Mas, sob outra perspectiva, Jesus e a natureza dos Evangelhos apontam para uma

    direo oposta da guerra. Como se pode notar nas Bem-Aventuranas que constam no

    Evangelho de Mateus (cap. 5), pacincia, mansido, pacifismo e tranquilidade diante da

    perseguio so exaltados. O verso 39 desse mesmo captulo mostra que a autodefesa

    no era aceite. Jesus teria tambm, de alguma forma, condenado os que empunhavam a

    espada: eles morreriam por ela (Mt. 26, 52). No julgamento que acabou por conden-lo

    morte, o lder galileu declarou que seu reino no era do mundo terreno, pelo que seus

    servos no se envolveriam em qualquer mobilizao militar (Jo. 18, 36). Esses e muitos

    outros passos so mais significativos do que os raros nas quais as palavras de Jesus

    podem ter alguma conotao blica (Mt. 10, 34; 11, 12). A confisso de f de Jesus por

    ocasio de seu batismo (cf. Mt. 3, 16 e 17; Mc. 1, 9-11; Lc. 3, 27) at pode conter

    semelhanas com um juramento militar, como defendeu Harnack,59 mas, no geral, os

    passos anti-violncia e anti-belicistas tm um peso mais consistente.

    Por isso a primeira gerao de cristos ops-se a tudo que fosse blico.60

    Aps a morte de Jesus e o incio da evangelizao dos gentios essa determinao

    pacifista cedeu um pouco. O centurio Cornlio, varo temente a Deus, foi convertido

    ao cristianismo (Act. 10). O livro de Hebreus (11, 32-34) no apresenta juzo

    desfavorvel s guerras das quais tomaram parte as doze tribos de Israel. O cristianismo

    herdou do judasmo o elemento blico a partir da sua expectativa messinica e do

    sentido alegrico da linguagem dos profetas e salmistas que floresceram em inmeras

    imagens (batalha espiritual, armamento espiritual, etc.). Esta a origem das

    admoestaes e das ilustraes de teor blico dos escritos de Paulo (Rm. 6, 13, 14 e 23;

    13, 12; 2 Cor. 6, 7; 1 Ts. 5, 8; Ef. 6, 10-18). Alm disso, sua contundente exortao

    59 HARNACK, A. von. Militia Christi: the Christian religion and the military in the first three centuries. Translated by David McInnes Gracie. Philadelphia: Fortress Press, 1981, p. 28. facto que, alm da fundamentao bblica, outros motivos, qui at mais fortes, concorreram para que os primeiros cristos rechaassem a atividade guerreira. Um deles tem a ver com o fundo milenarista do primeiro cristianismo, ou seja, a crena na eminncia da segunda vinda de Cristo. O Apocalipse foi fruto desse esprito. As perseguies aos cristos e, sobretudo, a Queda do Templo de Jerusalm em 70 (episdio simblico gravoso, mesmo para os cristos), se conjugavam num quadro escatolgico. Diante disso, os cristos se questionavam acerca da razo dos esforos humanos, procriao, trabalho, e, acima de tudo, o porqu de combaterem por um mundo condenado que os perseguia. Isso tudo ajuda a explicar a razo de no colaborarem com o sculo.

    60 Idem, p. 27.

  • 25

    sujeio s autoridades constitudas, para muitos significava que ele tolerava o servio

    militar, caso este viesse a ser exigido:

    . , . , . . , . , . , . . , , , , .61

    A escatologia apocalptica apresenta aspetos de elementos blicos messinicos

    transferidos para Jesus e aponta que o fim dos tempos se daria precisamente atravs de

    uma guerra. Embora no seja do derradeiro livro bblico que nasceu a conscincia de ser

    miles Christi, ele contribuiu para que os cristos no se afastassem totalmente da

    guerra.62

    Em suma, embora com papel menos destacado do que no Antigo Testamento, o

    servio militar no explicitamente proibido em nenhuma parte do Novo Testamento.

    O cristianismo fundamentava-se num evangelho, isto , boa nova de paz, que ainda

    assim no descartava a necessidade do exrcito.

    61 Todo homem se submete s autoridades constitudas, pois no h autoridade que no venha de Deus, e as que existem foram estabelecidas por Deus. De modo que aquele que se revolta contra a autoridade ope-se ordem estabelecida por Deus. E os que se opem atrairo sobre si a condenao. Os que governam incutem medo quando se pratica o mal, no quando se faz o bem. Queres ento no ter medo da autoridade? Pratica o bem e dela receber elogios, pois ela instrumento de Deus para te conduzir ao bem. Se, porm, praticares o mal, teme, porque no toa que ela traz a espada; ela instrumento de Deus para fazer justia e punir quem pratica o mal. Por isso necessrio submeter-se no somente por temor do castigo, mas tambm por dever de conscincia. tambm por isso que pagais impostos, pois os que governam so servidores de Deus, que se desimcumbem com zelo do seu ofcio. Da a cada um o que lhe devido; o imposto a quem devido; a taxa a quem devida; a reverncia a quem devida; a honra a quem devida (Rm. 13, 1-7). *** Para uma explicao desse passo a partir do contexto histrico e do pensamento de Paulo, cf. ELLIOT, N. Romanos 13, 1-7 no contexto da propaganda imperial. In: HORSLEY, R. A. (org.). Paulo e o Imprio. So Paulo: Paulus, 2004, pp. 184-202. 62 HARNACK, A. von. Op. cit., pp. 32 e ss.

  • 26

    O cristianismo primitivo, por um lado, condenou perentoriamente o uso no

    justificado da espada, mas, por outro, teve um posicionamento muito mais

    condescendente e tolerante para com os soldados e guerreiros do seu tempo.63 Em

    escritos cristos no-cannicos do sculo I possvel encontrar referncias sobre isso.

    Clemente Romano escreveu uma carta aos Corntios por volta de 96 na qual fez um

    grande louvor disciplina militar (37, 1-3). Considerava anloga a relao entre

    obedincia crist e a militar, pelo que dificilmente poderia se opor ao servio militar.

    Como ele, Incio de Antioquia (c. 35 c. 107) considerou todos os cristos como

    soldados de Deus. Em sua admoestao redigida em grego , ele utilizou vrios

    termos tcnicos militares latinos. Em outro lugar, Incio fez meno ao estandarte que

    Jesus teria erguido aps a sua Ressurreio. A cruz como vexillum Christi tornou-se

    uma imagem muito amada nos anos subsequentes.64

    Mais frente o tom parece ter se alterado ligeiramente. Em meados do sculo II

    Justino (100-165) insistia na no-violncia crist em sua primeira Apologia (1-4). Um

    contemporneo, Irineu de Lio (c. 130-202), defendia que a ao pacificadora de Cristo,

    quer ao nvel pessoal, quer em nvel social, teria o poder de destruir a guerra (Contra os

    hereges, 4.34.4). No mesmo sculo, Atengoras (c. 133-190) dizia que os cristo eram

    educados em um clima de no-violncia (Legt. Chr. 11.2). Portanto, os melhores

    intelectuais cristos do sculo II eram pacifistas, assim como a Igreja antiga.65

    Isso no significa, contudo, que no reflectissem sobre a necessidade de um

    exrcito que levasse a cabo uma guerra, sobretudo se esta fosse defensiva. Clemente de

    Alexandria (c. 150 215) (viveu nessa cidade entre 190 e 202, perodo da perseguio

    de Septmio Severo) considerava o servio militar uma profisso como outras.66 Para ele

    o importante era adequar a profisso aos ensinamentos de Deus. Chegou mesmo a

    63 HERNNDEZ, F. J. C. Aproximacin a las concepciones militarista y antimilitarista del cristianismo primitivo. In: La tradicin en la Antiguedad Tarda, Antig. Crist. (Murcia) XIV, 1997, p. 161-178. Disponvel em: < http://revistas.um.es/ayc/article/view/65311/62931>. Acesso em 02 de junho de 2011, p. 165. 64 HARNACK, A. von. Op. cit., pp. 41-42. 65 BLZQUEZ MARTNEZ, J. M. Los cristianos contra la milicia imperial. La objecin de conciencia en el cristianismo primitivo. Antigua: Historia y Arqueologa de las civilizaciones. Otra edicin en: Historia 16, n 154, 1989, 68-76. Disponvel em . Acesso em 30 de maio de 2011, p. 68. 66 CLEMENTE DE ALEJANDRA. Protrptico. Introduccin, traduccin y notas de M Consolacin Isart Hernndez. Revisin de Helena Ramos. Madrid: Gredos, 1994, 10.100.4.

  • 27

    desenvolver uma imagem de guerra espiritual composta por trombeta, anncio de guerra

    (feito por Cristo), e soldados de paz, os cristos, aos quais era confiado o reino dos

    cus.67 Assim, o tom geral de sua obra de pelo menos aquiescncia com relao

    carreira no exrcito.

    Um dos primeiros autores cristos latinos, Tertuliano (c. 160 c. 220),

    historiador, jurista e autor de obras contra o paganismo e a heterodoxia crist, um caso

    que merece ser estudado mais detidamente. Filho de centurio, ele inicialmente

    reconheceu a necessidade da guerra, e apelou aos cristos para que orassem por

    exrcitos valentes, um senado fiel, pela paz mundial e a segurana do Imprio. Assim,

    alguns dos motivos pelos quais os cristos deveriam orar pelo imperador so os que se

    seguem:

    Scitote ex illis praeceptum esse nobis ad redundantiam benignitatis etiam pro inimicis deum orare et persecutoribus nostris bona precari. Qui magis inimici et persecutores Christianorum quam de quorum maiestate convenimur in crimen? Sed etiam nominatim atque manifeste, Orate, inquit, pro regibus et pro principibus et potestatibus, ut omnia tranquilla sint vobis. Cum enim concutitur imperium concussis etiam ceteris membris eius utique et nos, licet extranei a turbis aestimemur, in aliquo loco casus invenimur.68

    Por mais estranho que pudesse parecer aos coevos, os cristos deviam orar pelos

    inimigos, e o imperador, enquanto perseguidor encaixava-se nessa categoria. Como todo

    Romano, Tertuliano temia a possibilidade de os brbaros se tornarem capazes de invadir

    o Imprio; este foi comparado a um corpo do qual os cristos faziam parte, ainda que

    fossem a parte fraca. Por isso tambm deveriam orar, o que acaba por ser uma

    admisso velada da necessidade da guerra defensiva. A seguir (cap. 32) ele coloca que o

    67 Idem, 11.116.2. 68 Y no slo debemos rogar por ellos a ttulo de enemigos, sino porque expresamente, sealando sus nombres, nos manda nuestra ley rogar a Dios por los prncipes. Rogad, dice, por los reyes, por las potestades, para que viva en tranquilidad la repblica. Y debemos cuidar mucho de este precepto, porque en vuestro provecho tiene fiador nuestra importancia. Si con alguna alteracin sediciosa os inquietis vosotros, que sois seores del mundo, se ha de turbar el imperio; que recibiendo un golpe la cabeza, los miembros se estremecen, y nosotros parte somos, aunque flaca, de este cuerpo, que puede algn vaivn descomponernos; y aunque el vulgo nos mire como a extraos del linaje humano, en algn lugar vivimos, donde si no rogamos por la quietud del imperio nos puede alcanzar alguna parte de la universal tribulacin (TERTULIANO. Apologa contra los gentiles. Traduccin y notas por Fr. Pedro Manero. Buenos Aires: Espasa-Calpe Argentina, 1947, 31. 2-3). Negritos acrescentados.

  • 28

    Anticristo sucederia ao Imprio Romano, e os cristos deveriam orar para que isso se

    retardasse. Por tudo isso fica claro que o grande apologista pode ter lamentado, mas, ao

    menos no incio de seu ministrio, no rejeitou a presena de cristos no exrcito.

    A Grande Igreja passou o sculo II a formular suas doutrinas e instituies

    administrativas. Ao fim desse sculo o nmero de seus membros j havia crescido

    vertiginosamente. Em reao a tudo isso, Montano fundou, por volta de 156, uma seita

    que ficou conhecida como montanismo. Sem atacar qualquer doutrina aceite, eles

    pregavam uma religio mais livre e emocional, ao mesmo tempo que defendiam uma

    Igreja menor, mas com fiis absolutamente dedicados. O montanismo, portanto, no era

    to divergente em sua doutrina, mas era reformista na atitude e na disciplina, alis,

    como foi caracterstico nas heterodoxias originadas no mundo latino. Seu objetivo era

    um padro mais elevado de moralidade e um afastamento completo do mundo. No

    incio do sculo III Tertuliano aderiu aos montanistas.69

    Assim, desde ento Tertuliano passou a manifestar objees participao de

    cristos no servio militar. Seus argumentos partiam, sobretudo, da averso contra as

    observncias religiosas vigentes no exrcito romano. De forma mais especfica suas

    crticas concentravam-se contra os juramentos e estandartes militares e, sobretudo,

    contra o mitrasmo, culto oriental bastante popular no exrcito. O antagonismo com o

    qual ele ops o cristianismo a essa religio foi ao mximo. Desta forma, ele comparou a

    igreja ao acampamento da luz, ao passo em que a religio de Mitra seria o das trevas.

    Seu dio contra essa religio, to enraizada nos meios militares, azedou o tom de

    crticas de Tertuliano contra o servio militar. Desta forma, Tertuliano estava

    convencido de que o cristo no deveria compactuar com o juramento ao imperador, o

    que implicaria em reconhecer outro comandante supremo para o exrcito que no

    Cristo:

    Possit in isto capitulo etiam de militia definitum uideri, quae inter dignitatem et potestatem est. At nunc de isto quaeritur, na fidelis ad militiam conuerti possit et na militia ad fidem admitti, etiam caligata uel inferior quaeque, cui non sit necessitas immolationum uel capitalium iudiciorum.

    69 OGRADY, J. Heresia: o jogo do poder das seitas crists nos primeiros sculos depois de Cristo. Traduo de Jos Antonio Ceschin. So Paulo: Mercuryo, 1994, pp. 73-76.

  • 29

    Non conuenit sacramento diuino et humano, signo Christi et signo diaboli, castris lucis et castris tenebrarum; non potest uma anima duobus deberi, deo et Caesari.

    Et uirgam portauit Moyses, fibulam et Aaron, cingitur loro et Iohannes, agmen agit et Iesus Naue, bellauit et [populus], si placet ludere. Quomodo autem bellabit, immo quomodo etiam in pacemilitabit sine gldio, quem dominus abstulit? Nam etsi adierant milites ad Iohannem et formam obseruationis acceperant, si etiam centurio crediderat, omnem postea militem dominus in Petro exarmando discinxit. Nullus habitus licitus est apud nos illicito actui adscriptus.70

    Assim, a posio de Tertuliano foi marcada de forma intransigente. No haveria

    hiptese de conciliao entre o sacramentum divino (materializado entre os cristos na

    forma do batismo) e o sacramentum humano (que Adolf Harnack, ao traduzir para o

    alemo, tomou a liberdade para traduzir por juramento militar).71 Na citao acima

    ficam claram as posies daqueles cristos que opunham-se viso de Tertuliano: as

    guerras autorizadas por Deus no Antigo Testamento, a posio de Joo Batista, o

    centurio que acreditou. Contra essas proposies ele contraps um argumento

    arrasador: Cristo teria vindo aps, e ele desarmou Pedro, desarmando com ele todos os

    soldados. Ele omitiu talvez intencionalmente o centurio de Cesareia que se

    converteu aps a pregao de Pedro e que, portanto, teria sido pstero de Cristo. No

    importa. Sua posio contrria ao servio militar era inabalvel.

    Mas Tertuliano ainda teria matria para escrever um trabalho inteiro sobre a

    problemtica do servio militar por parte de cristos. A sua obra De corona Militis, de 70 But now inquiry is made about this point, whether a believer may turn himself unto military service and whether the military may be admitted unto the faith, even the rank and file, or each inferior grade, to whom there is no necessity for taking part in sacrifices or capital punishments. There is no agreement between the divine and the human sacrament, the standard of Christ and standard of the devil, the camp of light and the camp of darkness. One soul cannot be due to two masters God and Caesar. And yet Moses carried a rod, and Aaron wore a buckle, and John (Baptist) is girt with leather, and Joshua the son of Nun leads a line of march; and the people warred: if it pleases you to sport with the subject. But how will a Christian man war, nay, how will he serve even in peace, without a sword, which the Lord has taken away? For albeit soldiers had come unto John and had received the formula of their rule; albeit, likewise, a centurion had believed; still the Lord afterward, in disarming Peter, unbelted every soldier. No dress is lawful among us, if assigned to any unlawful action (TERTULLIANUS, De Idolatria, 19, apud HARNACK, A. von. Op. cit., pp. 76-77). Negrito acrescentado.

    71 O conceito cristo de sacramentum teve duas principais origens: (1) o significado latino-romano (juramento militar); um emprstimo do significado do grego mysterium como resultado da traduo e leitura da literatura crist grega (CANCIK, H.; SCHENEIDER, H. [eds.]. Brills Encyclopaedia of the Ancient World. New Pauly, English Edition, managing edition Christine F. Salazar; assistant editors Astrid Moller, Antonia Ruppel and David Warburton. Antiquity volume 12. Leiden; Boston: Brill, 2003, p. 828).

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    entre toda a literatura crist primitiva, o nico exemplo de trabalho dedicado

    exclusivamente s questes militares. Sua inspirao foi o martrio de um cristo

    soldado que se recusou a usar a coroa militar numa celebrao. Defendeu que a coroa

    era idoltrica porque no era tradicional na Igreja e era antinatural; ela sempre estaria

    ligada aos cultos pagos. Em verdade, tudo relacionado vida militar era idlatra, razo

    pela qual o cristo no deveria alistar-se. Para ele o problema dos cristos para com o

    servio militar era a idolatria, no o derramamento de sangue. Mesmo com tamanha

    oposio profisso militar secular, Tertuliano frequentemente lanou mo do conceito

    de guerra espiritual, que parece ser necessrio em seu trabalho.72

    Por fim, Orgenes (c. 185 c. 253). Ele discorreu sobre a guerra espiritual crist,

    concepo derivada de exegese alegrica da Bblia. Para ele os Hebreus representavam

    um exrcito real, enquanto os cristos lutariam contra demnios. Assim, os seguidores

    de Cristo no poderiam conduzir guerras carnais, mas unicamente espirituais. Nesse

    contexto, empregou a designao miles Christi e falou de um juramento militar cristo,

    o sacramentum militiae.73 Assim como Tertuliano, Orgenes baseava suas objees ao

    servio militar real em argumentos religiosos e no ticos ou morais.74

    1.2.2 Mrtires cristos no exrcito romano

    Colocados os posicionamentos dos autores cannicos, de Cristo e dos primeiros

    escritores da literatura crist, cumpre abordar alguns casos de soldados cristos

    objetores de conscincia no exrcito romano pago.

    72 HARNACK, A. von. Op. cit., p. 52. Um conceito semelhante existia na cosmoviso dos essnios, ascetas e pacifistas judeus que existiram de meados do sc. II a.C. revolta judaica de 66-70. Um de seus trabalhos trata de uma futura batalha final que seria travada entre as foras da luz e as das trevas, entre o bem e o mal, no cu e na Terra. Inspirados nos livros bblicos de Josu e Juzes, eles formaram um conceito de guerra santa. Assim, os eventos da batalha escatolgica seriam dirigidos pelos sons das trombetas e buzinas dos sacerdotes e levitas, tal como na conquista de Jeric descrita em Js. 6 (STEGEMANN, H. The Library of Qumram on the essenes, Qumram, John the Baptist, and Jesus. Michigan/Cambridge: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1998, p. 102). 73 HARNACK, A. von. Op. cit., pp. 48-49. 74 HELGELAND, J. Christians and the Roman Army A. D. 173-337. Church History, vol. 43, n 2 (jun. 1974). Disponvel em . Acesso em 05 de maio de 2011, p. 153.

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    Dos centuries mencionados no Novo Testamento at 173, no h referncias

    explcitas de cristos no exrcito romano. No se sabe se as perseguies desencadeadas

    por Nero e Domiciano atingiram cristos no exrcito; caso os tenham alcanado,

    provavelmente foram bem pontuais e no deixaram vestgios. De qualquer forma, o

    nmero de soldados cristos nesse perodo deve ter sido bem pequeno.

    Durante quase todo o sculo II a poltica imperial foi conduzida pela Dinastia dos

    Antoninos. Nesse perodo, no obstante o esforo dos cristos em se apresentarem como

    bons sbditos (do qual Tertuliano deu boa mostra), ainda assim entraram em desajuste

    com relao s prticas religiosas tradicionais. Desde Plnio o jovem (61-113), os

    representantes da administrao romana lhes exigiam sacrifcios e libaes ante as

    esttuas dos imperadores. Em seu conjunto, os cristos se opunham frontalmente as

    essas prticas tpicas da sociedade romana, pelo que inevitavelmente cometiam uma

    falta grave. Ao se proclamarem como nica religio verdadeira da humanidade,

    simultaneamente o cristianismo declarou a falsidade e mesmo a perversidade de todas

    as demais crenas. Nesse aspeto, os cristos foram intolerantes e declararam explcito

    dio s manifestaes dos demais cultos. Por conseguinte, a populao romana no-

    crist captou essa atitude e acusou os cristos de intolerncia, fanatismo e dio ao

    gnero humano.75 Associado a essa impresso da opinio pbica romana em geral, no

    jargo jurdico romano delineavam-se as caractersticas e o significado do crimen

    maiestatis (crime de lesa majestade).76 Portanto, se algum soldado cristo desse perodo

    foi perseguido, provavelmente o foi dentro desse contexto.

    De qualquer forma, aps essa grande lacuna temporal no tocante a referncias

    sobre cristos no exrcito romano, registou-se a presena deles, por volta de 173, na

    Legio XII Fulminata. Esta era uma legio que lutava na Guerra Germnica de Marco

    Aurlio (161-180). Em determinado momento, ela viu-se sem gua. No meio dessa crise

    de abastecimento, soldados cristos oraram por uma soluo. Em resposta, uma

    oportuna tempestade os refrescou. Os relmpagos puseram os inimigos em fuga,

    concedendo-lhes a vitria. Esta histria poderia ser rotulada como fantasiosa. Mas, pelo

    75 MONTSERRAT TORRENTS, J. Op. cit., p. 212. 76 SANTOS YANGUAS, N. Cristianismo y sociedad pagana en el Imperio Romano durante el siglo II. Oviedo: Universidad de Oviedo, s/d, p. 135.

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    menos em suas linhas gerais, foi narrada por fontes no-crists, como Don Cssio,77 e

    pela Coluna de Marco Aurlio, ainda erguida.78

    Em meados do sculo III, Dcio (249-251) governava em plena anarquia militar.

    s voltas em campanhas contra os brbaros germnicos, convenceu-se de que a soluo

    para a crise passava pela retomada da devoo aos deuses. Combater os cristos

    ateus79 acabou por ser um desdobramento natural da sua piedosa poltica de

    restauro dos cultos antigos. Os sculos III, IV, V e VI constituram uma poca

    profundamente religiosa; a crena de que a prosperidade do Estado dependia de uma

    correta relao com Deus ou com os deuses era amplamente compartilhada.80 Por isso

    Dcio desencadeou a primeira perseguio generalizada contra os cristos. At ento

    teriam ocorrido apenas intermitentes perseguies, locais e em pequena escala,

    conduzidas pelas autoridades ou por revoltas populares, ainda que algumas dessas

    perseguies tenham alcanado um considervel significado.81

    Empenhado nessas duas frentes, a propaganda de Dcio o identificava como

    restitutor sacr[o]rum et libe