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ESTUDOS DE

PSICANÁLISEISSN - 0100-3437

Estudos de Psicanálise Belo Horizonte-MG N. 40 P. 15 – 142 Dezembro/2013

Publicação doCírculo Brasileiro de Psicanálise

ESTUDOS DE

PSICANÁLISE

Indexada em:CLASE (UNAM – México)

IndexPsi Periódicos (BVS – PSI) – www.bvs-psi.org.br

CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível SuperiorANPPEP – Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia

Classificação Capes/Anppep–B4

Esta revista é encaminhada como doação para todas as bibliotecasda Rede Brasileira de Bibliotecas da Área de Psicologia – ReBAP

Os artigos são de total responsabilidade dos autores.

Ficha catalo gr áFica

ESTUDOS DE PSICANÁLISE. Belo Horizonte. Círculo Brasileiro de Psicanálise,n. 40, dez. 2013. 142 p.

Semestral. ISSN: 0100-3437 – 28 x 21cm

1. Psicanálise – periódicos

rEViSta

EDITORES DA REVISTAAnchyses Jobim Lopes (CBP-RJ)Cibele Prado Barbieri (CPB)Isabela Santoro Campanário (CPMG)Marcelo Wanderley Bouwman (CPP)Noeli Reck Maggi (CPRS)Ricardo Azevedo Barreto (CPS)

C ONSELHO C ONSULTIVOAna Cristina Teixeira da Costa Salles (CPMG)Carlos Antônio Andrade Mello (CPMG)Carlos Pinto Corrêa (CPB)Déborah Pimentel (CPS)Maria Beatriz Jacques Ramos (CPRS)Marie-Christine Laznik (ALI-França) Paulina Schmidtbauer Rocha (CPP)Stetina Trani de Meneses e Dacorso (CBP-RJ)

C ONSELHO EDITORIALMiriam Gorender (CPB)Juliana Marques Caldeira Borges (CPMG)Rodrigo Cardoso Ventura (CBP-RJ)

FIGUR A DA CAPA“A busca”, quadro de Maria da Conceição A. Barreto(Fotografia de Aragão Studio Produções/Sergipe)

ENDEREÇ O DA REDAÇÃORua Maranhão, 734/3º andar – Santa EfigêniaCEP: 30150-330 – Belo Horizonte/[email protected]

PROJETO GRÁFICO, FORMATAÇÃO E CAPA Valdinei do Carmo

REVISÃODila Bragança de Mendonça – PortuguêsAnchyses Jobim Lopes – Inglês

Revista Estudos de PsicanálisePublicação do

Círculo Brasileiro de Psicanálise

Publicação doCírculo Brasileiro de PsicanáliseCírculo Brasileiro de Psicanálise – CBP

DIRETORIA 2012-2014

presidenteStetina Trani de Meneses e Dacorso (CBP-RJ)

vice-presidente Maria Beatriz Jacques Ramos (CPRS)

1ª secretáriaMaria Helena Correa Araujo Barros (CPP)

2ª secretáriaMaria Melania Wagner Pokorski (CPRS)

1º tesoureiroAnchyses Jobim Lopes (CBP-RJ)

2ª tesoureiraPaola Giacomini Fachini (CPRS)

coordenadora da comissão científicaAna Cristina Teixeira da Costa Salles (CPMG)

editores da revista estudos de psicanáliseAnchyses Jobim Lopes (CBP-RJ)

Cibele Prado Barbieri (CPB)Isabela Santoro Campanário (CPMG)Marcelo Wanderley Bouwman (CPP)

Noeli Reck Maggi (CPRS)Ricardo Azevedo Barreto (CPS)

página eletrônicaNatalia Gonçalves Galucio Sedeu (CBP-RJ)

Publicação doCírculo Brasileiro de Psicanálise

Círculo Brasileiro de Psicanálise – CBPINSTITUIÇÕES FILIADASCírculo Brasileiro de Psicanálise – Seção Rio de Janeiro – CBP/RJAv. Nossa Senhora de Copacabana, 769/504 - CopacabanaCEP: 20050-002 - Rio de Janeiro - RJTel.: (21) 2236-0655 Fax: (21) 2236-0279E-mail: [email protected]: www.cbp-rj.com.br

Círculo Psicanalítico da Bahia – CPBAv. Adhemar de Barros, 1156/101 - Ed. Máster Center - OndinaCEP: 40170-110 - Salvador - BATel./Fax: (71) 3245-6015E-mail: [email protected]: www.circulopsibahia.org.br

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMGR. Maranhão, 734/3º andar - Santa EfigêniaCEP: 30150-330 - Belo Horizonte - MGTel.: (31) 3223-6115 Fax: (31) 3287-1170E-mail: [email protected]: www.cpmg.org.br

Círculo Psicanalítico de Pernambuco – CPPR. Desembargador Martins Pereira, 165 - RosarinhoCEP: 52050-220 - Recife - PETel.: (81) 3242-2352 Fax: (81) 3242-2353E-mail: [email protected]: www.circulopsicanaliticope.com.br

Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul – CPRSR. Senhor dos Passos, 235/1001 - CentroCEP: 90020-180 - Porto Alegre - RSTel./Fax: (51) 3221-3292E-mail: [email protected]: www.cbp.org.br/cprs

Círculo Psicanalítico de Sergipe – CPSPraça Tobias Barreto, 510/1208São José Ed. Centro Médico OdontológicoCEP: 49015-130 - Aracaju - SETel.: (79) 3211-2055E-mail: [email protected]: www.circulopsicanalitico-se.com.br

Editorial

Algumas características dos laços amorosos nos dias atuaisSome caracteristics about love relations in nowdaysAna Cristina Teixeira da Costa SallesNina Rosa Artuzo SanchesRosa Maria Gouvêa Abras

O primata perverso polimorfoThe polymorphous perverse primateAnchyses Jobim Lopes

As per-versões na clínica psicanalíticaThe per-versions in the psychoanalityc clinicCibele Prado Barbieri

Vínculos entre modernidade, ética e subjetivação no pensamento de FreudLinks between modernity, ethics and subjectivity in Freud’s worksEduardo Leal CunhaJoel Birman

O inapanhável objeto do savoir-faire na análiseThe elusory object of know-how in analysisErik PorgeTraduçao: Elisa dos Mares Guia-MenendezMariana Valério Orlandi

Holograma dinâmico recursivo para uma teoria topográfica da relação psicanalíticaDynamic Recursive Hologram for a Typographical Theory of Psychoanalytical RelationshipGabriele LentiTradução: Otavio A. Peixoto, B.A., M.A.

O setting analítico na clínica cotidianaAnalytical setting in everyday clinicGlória Barros

A criança, o artista e o analisando: a psicanálise e a invenção de mundosThe child, the artist and the analyzed: psychoanalysis and worlds creationLuciana Knijnik

Sumário11

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De Simone de Beauvoir aos “Cinquenta tons de cinza”From Simone de Beauvoir to “Fifty shades of gray”Maria Carolina Bellico Fonseca

O contador de histórias: vínculos e identificaçõesThe Storyteller: Identification and BondsMaria Melania Wagner Franckowiak PokorskiLuís Antônio Franckowiak Pokorski

O outro da dorThe partner of the painRicardo Azevedo Barreto

Alguns pensa-res sobre estados subjetivos de desafio ao processo analíticoSome thoughts about subjective states that defy the psychoanalytical processStetina Trani de Meneses e Dacorso

Das relações entre o empobrecimento psíquico e o empobrecimento materialAbout the relations between the psychic impoverishment and material impoverishmentValéria Wanda da Silva Fonsêca

Reflexões sobre a “teoria do pensar”, de Bion Reflection about the “theory of thinking”, by BionWaleska Pessato Farenzena Fochesatto

O acompanhamento de adolescentes em grande sofrimento psíquico: distinguindo dois tipos de violênciaMonitoring of major psychological distress in adolescents: distinguishing two types of violenceWilfried GontranStéphanie MoussetMarília Etienne Arreguy

Normas de publicação

Roteiro de avaliação dos artigos

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Editorial Um jardim de pétalas de lágrimasUma estação de secas lágrimas...Quem é o ser humano contemporâneo? É alguém que se constitui de modo singular?

Como a psicanálise pode contribuir para sua compreensão? Por que a psicanálise é muito an-tagonizada em alguns ambientes? A psicanálise não tem o que dizer sobre a hiperatividade, a dislexia, o autismo, entre tantas e tantas formas de existir das quais, não de modo raro, alguns discursos se arvoram de modo global do saber? A psicanálise pode desabar em desvalia por causa do utilitarismo em prol de uma suposta evolução científico-cultural-social-tecnicista? As explicações genéticas e da estrutura cerebral abarcam quase tudo, e há muito pouco para a psicanálise e seus questionamentos em respeito ao humano? Freud não mais explica? Como os psicanalistas entendem os laços sociais atuais? O mundo se desumanizou?

As pétalas das lágrimas... Por que não falar, chorar, sorrir, reconhecer enigmas e trabalhar conflitos? A psicanálise

desvenda... Não nada conforme a correnteza. Não promete saúde, bem-estar, sucesso, comple-tude, felicidade plena... Para os psicanalistas, nem todas as pessoas são analisáveis... nem tudo é analisável... e acessível. A psicanálise possibilita uma escuta eticamente aprofundada do ser humano nas particularidades de seus desejos, seus limites, suas travessias... e respeita a busca de cada um.

São as indagações que mobilizam a cenografia e a topografia psicanalíticas. Nosso labor é desalienar... Nosso trabalho é com o que não se localiza na consciência, o que está externo ao “saber que se sabe”. E escrevemos sobre o que nos resta... como seres humanos! A linguagem? É nosso “tesouro de significantes”... nas aventuras das modalidades do subjetivar-se nos fios enovelados da comunicação.

Com a graça da Palavra, de suas ruas e avenidas, encorpando o estado da arte psicana-lítica, a revista Estudos de Psicanálise, em seu segundo número de 2013 (n. 40), tem encanto próprio e científico, contando atualmente com seis editores muito dedicados ao compromis-so da psicanálise com o ser humano e a sociedade: Anchyses Jobim Lopes (CBP-RJ), Cibele Prado Barbieri (CPB), Isabela Santoro Campanário (CPMG), Marcelo Wanderley Bouwman (CPP), Noeli Reck Maggi (CPRS) e a minha pessoa, Ricardo Azevedo Barreto (CPS).

Agradecemos à Diretoria 2012-2014 do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP), presi-dido pela estimada e competente Stetina Trani de Meneses e Dacorso (CBP-RJ), aos conselhos consultivo e editorial da revista, aos editores que nos antecederam, por desbravar espaços e construir pontes, a todos os profissionais que trabalharam direta ou indiretamente conosco para o desenvolvimento da qualidade técnico-científica e de linguagem da revista, aos autores deste número de nossa publicação por suas valiosas contribuições e aos nossos leitores a partir dos quais se constrói um campo de interlocução interminável.

Presenteamos a todos com este mais novo acervo de escritos da revista Estudos de Psi-canálise, cuja beleza intrínseca também se expressa na sensível capa que o veste, fotografia de

uma pintura de Maria da Conceição Azevedo Barreto, Ceiça, que desvela a busca do autoco-nhecimento do ser no que redesenha, reconstitui ou reinventa da experiência sentida com seus pincéis e tintas... de vida.

O jardim...Enfim, nosso ofício na psicanálise... na clínica, na escrita, em diferentes contextos... é

com as vivas lágrimas... os afetos. O contato com o humano, ser da linguagem, desnuda os excessos das “folhagens” de modo poético. Surgem transformações, as pétalas das lágrimas, as flores em suas tonalidades e nuanças... As rosas têm espinhos... Como um jardim de pétalas de lágrimas, apresentamos, nesta revista, um pouco do pulsar da existência num tempo em que não é incomum a coisificação do ser. Nossa resistência, em um sentido político de reconfigu-ração de forças, é lutar para a sobrevivência do humano.

Muito obrigado aos que nos acompanham.

Ricardo Azevedo BarretoEditor

Sánd or Ferenczi , 1873–1933

Para Ferenczi seria preciso tornar a técnica mais elástica, de maneira a favorecer a expressão afetiva. O privilégio dado à expressão de afetos na análise provocou, assim, uma ampliação cada vez maior dos limites do permitido na clínica, chegando-se à formulação de um princípio de relaxamento como contraponto ao de abstinência (1927). Ferenczi introduz seu projeto de “soltar as línguas” nas análises, implicando e convocando o analista à adoção de um estilo clínico diferenciado, resgatando a criatividade do analisando, exercitando a sua capacidade de brincar, fantasiar e imaginar. Ele aborda o conceito de contratransferência como algo que não dificultaria a análise, mas que faz parte da própria técnica a ser empregada. O manejo técnico deve dosar bem a empatia e a capacidade de “sentir com”, e o processo é conduzido melhor a partir da análise pessoal do analista, que o capacitará para avaliar a situação analítica a distância. Esse é o entendimento que Ferenczi tem do analista elástico. (BARROS, Glória)

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Algumas características dos laços amorosos nos dias atuais

IntroduçãoA psicanálise tem um discurso próprio, re-sultante de mais de um século de produção teórico-clínica de Freud e seus seguidores. Se, de início, ela causou escândalo, com sua nova visão de homem e suas relações, com o pas-sar do tempo, seu discurso foi sendo maciça-mente assimilado pela cultura, correndo ris-co de perder sua virulência e sua capacidade de inovação. Essa absorção se fez notar de for-ma mais enfática a partir dos anos cinquenta.

Em relação à vida amorosa, em que a sexualidade faz seus laços, vemos com fre-quência a incorporação de conceitos psi-canalíticos ser usada pelo discurso social, com o objetivo de julgar e medir o grau de adaptação e patologia dos relacionamentos. A apropriação da psicanálise por ideologias de cunho moralizante, ao propor um ideal de felicidade amorosa, nada mais faz do que tentar transformá-la em um instrumento de controle social no sentido da higienização e medicalização da vida privada.

Como Freud, pensamos que a felicidade não está na programação do homem (O mal--estar na civilização, Freud, 1974, p. 94), não cabendo ao psicanalista estabelecer modelos para um casal feliz e adaptado.

Algumas características dos laços amorosos nos dias atuais

Some characteristics about love relation nowadays

Ana Cristina Teixeira da Costa SallesNina Rosa Artuzo SanchesRosa Maria Gouvêa Abras

ResumoAtravés de conceitos freudianos e lacanianos e usando de exemplos da clínica, as autoras ana-lisam as mudanças nas relações amorosas nos dias atuais.

Palavras-chave: Relação anaclítica, Relação narcísica, Objeto-fetiche, Objeto-devastação, Ge-ração Y.

Em vez de propormos um discurso fe-chado sobre a sexualidade e a vida amorosa, pensamos ampliar nossa escuta para poder-mos captar o que ocorre hoje, neste início de século, tomando a sexualidade em sentido lato, assim como as variações quanto às for-mas de escolhas próprias do nosso tempo.

As grandes mudanças sociais, políticas, tecnológicas e científicas das últimas déca-das transformaram as sociedades ocidentais em sociedades globalizadas onde quem dita às regras é o mercado.

Baumann define a vida líquida na socie-dade “líquido-moderna” como uma “vida de consumo” que projeta o mundo e todos os seus fragmentos animados e inanimados como objetos de consumo” (BAumAnn, 2007, p. 16).

Segundo Pereira mendes (2013, p. 1)

Se a sociedade freudiana era vitoriana e patriar-cal, favorecendo a histeria e o mascaramento das pulsões e do desejo, a sociedade atual, que teve lugar a partir da década de 60, se nota-biliza pela radicalização das sensações e pelo deslizamento veloz em torno de novos objetos de desejo, proporcionando o aparecimento do gozo, da depressão e das montagens perversas.

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Algumas características dos laços amorosos nos dias atuais

nos dias atuais, ou seja, tempo da hiper-modernidade, verifica-se uma diversidade tanto na composição quanto nas formas de relacionamentos. 

Existe um número considerável de pes-soas adultas que moram sozinhas. Cresce também consideravelmente o número de mulheres que não desejam mais ter filhos (Revista Veja, maio 2013). O casamento tra-dicional homem-mulher, onde o homem é o provedor, e a mulher é principalmente a es-pectadora e suporte da vida do marido e dos filhos, não é mais o único modelo. A entrada da mulher no mercado de trabalho mudou radicalmente as relações familiares.

Ao mesmo tempo, avanços tecnológi-cos transformaram a noção de concepção e paternidade, através de pesquisas e estudos no campo da infertilidade proporcionando o aparecimento de famílias monoparentais, onde a presença do pai não tem mais o mes-mo peso de antigamente. Outra grande mu-dança diz respeito à legalização das relações homoafetivas e a adoção de crianças por ca-sais homossexuais.

O discurso amoroso do século XXI O discurso amoroso do século XXI, decor-rente das mudanças advindas da nova moral cultural e das características das sociedades de consumo apresenta traços particulares: as relações são instáveis e fugazes, o objeto amoroso é descartável como qualquer objeto na lógica do consumo.

As relações têm que ser light no sentido da falta de compromisso, mas ao mesmo tempo têm de ser algo da ordem de um excesso e do espetacular. não há diferença entre o pú-blico e o privado, Encontros e rompimentos são vividos e totalmente compartilhados nas redes sociais.

Como disse Baumann (2007, p. 11),

[...] ligações frouxas e compromissos revogáveis são os preceitos que orientam os laços entre os indivíduos. Ligar-se ligeiramente a qualquer coisa que se apresente e abandoná-la rapida-

mente é o que conta. Viver no presente e pelo presente obtendo o máximo de satisfação pos-sível, evitando as inquietudes e sofrimentos, priorizando os finais rápidos e indolores, pois sem eles seria impossível recomeçar é um im-perativo.

Evitar o luto, atenuar a dor, diminuir a an-gústia e calar o sofrimento frente às perdas e decepções afetivas são as soluções mais bus-cadas atualmente.

Quanto aos namoros, alguns mantêm o padrão tradicional como um treinamento para um futuro compromisso, mas, na maio-ria das vezes, ninguém é responsável por ninguém... Cada um que cuide de si e procu-re se defender dos sofrimentos da separação.

Frente a tantas transformações da era vi-toriana aos dias atuais, gostaríamos de saber o que mudou nos registros simbólico e ima-ginário.

As eleições amorosas ainda seguem os mesmos padrões descritos por Freud e La-can?

Tipos de escolhas de objetos em FreudEm Freud vamos encontrar dois tipos de es-colha de objeto: a escolha de objeto narcísi-ca e a escolha de objeto anaclítica (FREuD, 1974, p. 94). na escolha de objeto narcísica o modelo é a relação do indivíduo consigo mesmo. É uma relação marcada pela onipo-tência, onde as limitações, os enganos e os erros são vividos como ofensa pessoal.

na escolha de objeto anaclítica, a pulsão sexual está apoiada na pulsão de autocon-servação. É uma escolha regressiva e com-plementar — mulher que alimenta e homem que protege. Infantilizante para um, acentua o papel parental do outro.

A escolha narcísica ativa está do lado masculino, e a escolha anaclítica, passiva, está do lado do feminino Em relação à mu-lher, Freud estabeleceu duas condições que determinam a escolha. O objeto deverá ser um substituto paterno: o complexo de cas-tração leva a mulher a se afastar da mãe (a

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Algumas características dos laços amorosos nos dias atuais

quem atribui à falta de um pênis) e a achar no pai uma posição de descanso.

O homem deve redundar num filho: que seu homem seja um pai e que seu homem seja um filho. A síntese deve caminhar para a resolução da maternidade: seu homem é pai de seu filho.

Dentro dessa perspectiva, a escolha con-jugal é correlativa às fixações infantis, mar-cas deixadas pelo encontro com os pais. Se para Freud o encontro com o objeto é sem-pre um reencontro, o laço amoroso teria um valor de um sintoma, tentativa de restituição e montagem de um fantasma. nos interessa saber se encontraremos hoje as mesmas con-dições descritas por Freud, isto é, o peso do operador narcísico e do complexo de Édipo nas eleições do objeto.

Um exemplo da mulher freudiana do século XIXIsabel Orléans de Bragança, Condessa d’Eu, nasceu em 13 jul. 1847. Com 4 anos foi reco-nhecida como herdeira da Coroa brasileira. Cresceu como princesa que teria de forta-lecer o princípio monárquico, apesar de ser mulher... Ser mulher naquela época signifi-cava “o belo defeito da natureza”, “o vaso frá-gil” no qual o homem depositava sua semen-te. A inferioridade feminina era um dado natural, e o marido seu guardião e tutor por excelência.

Isabel era uma criança gorda, dócil, obe-diente e bondosa. Sua mãe era pacata e reli-giosa. Seu pai, o imperador Dom Pedro II, embora a valorizasse como filha, parecia in-capaz de aceitá-la como sua sucessora. Aos 19 anos se casa com Dom Gastão d’Eu, con-de francês, em um casamento arranjado, mas por quem se apaixonou imediatamente. Ele era carinhoso, e ela fazia tudo para agradá--lo. Isabel era o retrato acabado da noiva ro-mântica do século XIX.

Gastão queria participar da política e dos negócios da corte, mas Dom Pedro o impe-dia. Isabel, por seu lado, era totalmente de-sinteressada pelo reino. nada do que dissesse

respeito à vida pública parecia preocupá-la. Isabel confirmava as impressões do pai: lugar da mulher era não na política, mas em casa. Só lhe importava a vida privada, o ninho dos pombos. Quando Gastão parte para a Guerra do Paraguai, ela escreve: “meu querido, meu bem-amado, meu amigo, meu tudo”. Sem ro-deios, dizia-lhe que sentia falta de suas ca-rícias e da cama vazia. Com o nascimento dos filhos, passam a viver cada vez mais uma vida burguesa. Diferentemente dos casamen-tos das elites, eram amigos, companheiros e dormiam juntos. Quando Gastão parte para uma viagem, Isabel lhe escreve: “Vou me dei-tar bem só! Bem triste e bem saudosa!!! Boa noite querido do meu coração!!!”.

Isabel detestava substituir o pai quando ele viajava. nada queria saber sobre a aboli-ção dos escravos e o movimento republicano. A oposição a acusava de pouco inteligente, histérica, fanática religiosa e incompetente. Acusava o casal de fútil e egoísta. Após a Pro-clamação da República, a família parte para o exílio.

As contribuições de Lacan

Lacan, em sua teorização, contribuiu para a compreensão freudiana ao mostrar que o su-jeito pode ficar preso numa captura narcísica, para evitar o encontro angustiante do que ele é como objeto para o Outro. No início, essa cap-tura narcísica inscreve-se no sujeito quando ele reflete a imagem que corresponde ao desejo dos pais ou da família e está articulada à constitui-ção do sujeito como um tempo lógico e estrutu-rante, o Estádio do espelho, em que sua ima-gem refletida é autenticada pelo Outro. Essa ilusão narcísica de completude é a condição necessária do sujeito e sua inscrição no campo do Outro, no simbólico. Corre-se, entretanto, o risco de se ficar preso no imaginário, ao ideal, numa alienação à imagem e, portanto, detido, paralisado. O encontro com o desejo do outro é sempre enigmático e angustiante para o sujeito, pois nunca se sabe o que pode advir. As relações amorosas, que são expressões de laços sociais,

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Algumas características dos laços amorosos nos dias atuais

geralmente refletem essa forma de vínculo alie-nante em que o sujeito evita a renúncia de ser o objeto imaginário que obtura a falta do Ou-tro, renúncia que possibilita o acesso ao desejo (SALLES; CECCArELLi, 2010, p. 22).

Para Lacan, a escolha narcisista é marcada pelo imaginário: elege-se um semelhante. É um tipo de eleição ativa, onde o que importa para o sujeito é amar; não importa se o outro ama ou não. Já na escolha anaclítica, o que importa é ser amado. Faz-se a escolha de um outro que o apoia e quer. É mais uma relação com o grande Outro.

A posição anaclítica é a que melhor con-vém ao homem, pois é ele que tem algo para satisfazer a mulher. A mulher encontra nele o objeto que lhe falta. O que Lacan eviden-cia é o poder feminino que se funda sobre a pobreza, o não ter e, em nome da falta, obter, pedir e perseguir. nessa relação o homem sofre por não poder deixar de dar à mulher o objeto que lhe falta.

A mulher sofre de duas faltas: a falta-a--ser, que constitui todo ser humano e a falta de um significante, que define a feminilida-de. Por isso, ela se aproxima do homem na relação amorosa pedindo que ele a defina. Se uma mulher aspira encontrar seu homem, é precisamente como uma consequência de não “ser toda” e precisar de uma ancoragem para seu ser e para o seu gozo. Para isso, ela aceita ser as diversas mascaradas, inclusive a “masoquista”; “ela é capaz de dar tudo para o homem, seu corpo, sua alma, seus bens” (ZALCBERG, 2007, p. 141). uma mulher faz tudo para ser amada. Ela, na falta de defini-ção, precisa de palavras, palavras de amor, e se elas não vêm, advém uma verdadeira devastação que, ao final das contas, revive o relacionamento mortífero com a figura ma-terna na infância.

A mulher é para o homem um sintoma (objeto a). Por isso, o sintoma do homem (o de que só pode amar uma parte da mulher, nunca ela por inteiro) tem uma profunda repercussão sobre a mulher. Para ela, trata-

-se de uma devastação, nunca ser amada por inteiro. Por isso também, o amor é tão insis-tente e tão importante para a mulher, assim como as palavras de amor, que representam para ela uma restauração narcísica. O senti-mento de perda de amor é muitas vezes vivi-do como uma devastação.

Uma mulher lacaniana - a devastaçãoEles estão por volta dos trinta anos. Ele é profissional liberal bem-sucedido, preocu-pado com a aparência, mora sozinho. Ela é funcionária pública federal com alto salário. muito bonita, mora com os pais. Estão jun-tos há seis anos, mas ele não quer casar. A justificativa dele é “preciso de liberdade”. Ele exige que ela se apresente sempre impecável, que tenha um bom carro, que se exercite, que mantenha o peso. Controla o tempo todo o que ela come. Viajam muito e sempre divi-dem todas as contas. Ela cuida da casa dele, desde a decoração até as contas, lavanderia, supermercado, empresta seu carro quando o dele vai para a oficina. Ele sai semanalmente sozinho para encontrar os amigos e as ami-gas. muitas vezes ela o leva e busca nesses encontros. Quando ele chega em casa e não a encontra, liga reclamando que não tem nada para comer. Certa noite, ao sair da casa dele às duas da madrugada, teve um pneu furado e a roda do carro quebrada, em uma rua es-cura e perigosa. Teve de resolver o problema com o porteiro de um prédio. não pode li-gar para o namorado, porque ele sempre avi-sa quando ela sai da sua casa “não me ligue quando chegar em casa, porque já vou estar dormindo”. Devastada, chega ao analista.

Para finalizar, mais algumas questõesum homem faz da mulher o objeto a como mais-de-gozar em sua fantasia, mas o inverso não é verdadeiro. Os objetos a na fantasia de uma mulher são seus filhos. Como fica essa máxima psicanalítica nos dias atuais? Como dissemos anteriormente, cresce o número de pessoas solteiras que moram sozinhas e de mulheres que não querem mais ser mães.

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Algumas características dos laços amorosos nos dias atuais

E qual é o novo fetiche dessas mulheres? A carreira? O próprio corpo perfeito? A inde-pendência financeira?

uma das afirmações psicanalíticas é que o homem chega ao amor através do sexo, e a mulher chega ao sexo através do amor. Como fica isso hoje? na atualidade, uma das dimensões do masculino está atrofiada: o ca-valheirismo. As mulheres se ressentem, por outro lado, estão bem mais ativas e arrojadas quanto à abordagem sexual dispensando a corte masculina e até a dimensão do amor na relação.

A clínica demonstra que geralmente as re-lações anaclíticas têm mais estabilidade e du-ração, enquanto as relações narcísicas, muito embora mostrem um alto teor de atração se-xual, em geral têm uma durabilidade menor, pois são atravessadas por um alto grau de agressividade e competitividade,

Existe também uma certa incongruên-cia entre o discurso e a prática nas escolhas amorosas atuais. Estamos nos referindo ago-ra aos mais jovens. A escolha é predomi-nantemente narcísica, mas as queixas são de falta de cuidado, atenção, isto é, a demanda é anaclítica. Os relacionamentos são aber-tos, fugazes, mas se invade a privacidade do outro através de telefone, email, GPS, crises de ciúmes por causa de mensagens, telefone-mas não atendidos, porque a pessoa não está onde disseque estaria.

um novo fenômeno que se apresenta é a geração Y. nascida após a década de 1980 e conhecida como geração do milênio ou da internet, usufruiu dos confortos e dos avan-ços tecnológicos desconhecidos pelos pais. Já foi acusada de ser distraída, egoísta, superfi-cial e incapaz de sustentar a longo prazo um compromisso profissional ou amoroso. não é que não tenha valores morais, pois defende intensamente o meio ambiente. Eo calor com que participou dos movimentos políticos que ocorreram em junho deste ano, nos fez ter finalmente mais esperança nessa geração.

Para finalizar, pensamos que houve de fato mudanças radicais da era vitoriana aos

dias atuais, que afetaram principalmente as relações amorosas. Entretanto, permanece o desejo de fazer vínculos, a tentativa de sair da solidão e, cada um, à sua maneira, tenta iludir o desamparo e a incompletude, pois o amor, afinal, é ainda o que consegue fazer laço entre o real e o simbólico.

AbstractThe authors analyze changing in nowadays love relationships, using Freudian and Laca-nian concepts, besides clinical vignettes.

Keywords: Anaclitic relations, Narcissistic re-lations, Fetish-object, Devastation-object , Y Generation

Referências

ABRAS, R. m. G; SAnChES, n. R. A. Abrindo o jogo. In: Revista Vorstellung, Belo horizonte, n. 1. out. 1997. Publicação do Grupo de Estudos Psicanalíticos (GREP).

ALVES nETO, G. F. O amor é dar o que não se tem. In: CESAROTTO, O. ideias de Lacan. São Paulo: Ilu-minuras, 1995.

BAumAn, Z. Vida líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

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FREuD, S. O mal-estar na civilização [1930 (1929)]. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Direção-geral da tradu-ção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v. XXI, p. 81-171.

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RECEBID O Em: 10/09/2013APROVAD O Em: 29/10/2013

S ObR e AS AU TOR AS

Ana Cristina Teixeira da Costa SallesPsicóloga. Especialista em psicologia clínica. Psicanalista. Sócia do CPmG.

Nina Rosa Artuzo SanchesPsicóloga. Especialista em psicologia clínica. Psicanalista. Sócia do CPmG. E-mail: [email protected]

Rosa Maria Gouvêa AbrasPsicóloga. Especialista em psicologia clínica. Psicanalista. Sócia do CPmG.

endereço para correspondência

Ana Cristina T. C. SallesRua Piauí, 778/503 - Santa Efigênia30150-320 - Belo horizonte/mG(31) 3273-4335E-mail: [email protected]

Nina Rosa A. SanchesRua Levindo Lopes, 333/804 - Funcionários30140-911 - Belo horizonte/mG(31) 3281-0699E-mail: [email protected]

Rosa Maria Gouvêa AbrasRua Alagoas, 1270/301 - Savassi30130-160 - Belo horizonte/mGE-mail: [email protected]

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O primata perverso polimorfo

Introdução: Freud e o retorno a DarwinFreud teve grande influência da obra de Charles Darwin. A bibliografia das obras completas de Freud cita todos os livros do pai da ideia de seleção natural, inclusive car-tas e a autobiografia. Utilizada ao longo de toda a sua obra, Freud classifica o darwinis-mo como uma das três feridas narcísicas da humanidade, precedida pela copernicana e sucedida pela da psicanálise. Copérnico, Darwin e Freud, os três estão no mesmo pla-no quanto ao processo de crítica dos pilares judaico-cristãos do ocidente, e é o último da trinca quem mais de uma vez afirma isso. Mais diretamente, a hipótese freudiana do processo de antropogênese, iniciado em To-

O primata perverso polimorfo1 The polymorphous perverse primate

Anchyses Jobim Lopes

Em homenagem aos chipanzés e bonobos que, ao contrário do que acontece em nosso país,

são vítimas de: governos corruptos, multinacionais sem ética e caçadores inescrupulosos;

de modo que serão extintos breve em seu meio natural e só restarão em parques protegidos e zoológicos.

ResumoA influência de Darwin no pensamento freudiano. Conhecimentos atuais sobre a evolução dos grandes primatas. As descobertas feitas nas últimas décadas sobre o comportamento de chipanzés e bonobos. Paralelos entre o comportamento sexual e agressivo dessas espécies com o dos seres humanos. Releitura de algumas teses de Totem e tabu a partir desses novos conhecimentos. Filogênese do complexo de Édipo. A dualidade agressiva e erótica da espé-cie humana.

Palavras-chave: Darwinismo, Grandes primatas, Chipanzés e bonobos, Agressividade e se-xualidade, Totem e tabu, Édipo.

tem e tabu e ainda inconcluso ao tempo de Moisés e monoteísmo, tem sua semente no projeto darwinista.

Além das grandes teses sociais antropoló-gicas, também ocorreu o interesse de Freud por mudanças físicas específicas ocorridas durante a evolução da espécie humana. Me-nos discutidos que os temas da horda prime-va e do assassinato do pai primevo, são suas considerações sobre a importância do surgi-mento do bipedismo para o da repressão. Re-flexões que se iniciam em uma carta a Fliess, de 14 de novembro de1897:

Frequentemente suspeitei de que algo orgânico possuía um papel na repressão [...] a noção es-tava ligada com a mudança da função do olfa-

1. Trabalho parcialmente apresentado no XX Congresso do Círculo Brasileiro de Psicanálise e XXXI Jornada de Psicanálise do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, Belo Horizonte, 26/28 de setembro de 2013.

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O primata perverso polimorfo

to: o andar ereto foi adotado, o nariz levantou-se do chão ao mesmo tempo em que um núme-ro de sensações, que antes eram interessantes, se tornou repulsivas — por um processo ainda desconhecido por mim (FREUD, 1978, p. 268).

Freud cultivava com esmero a lei de Haeckel de que a ontogênese segue a filogê-nese. Considerando que à época de Freud pouquíssimo se sabia sobre as linhagens de homídios pré-humanos e muito pouco so-bre o comportamento dos grandes primatas nossos parentes mais próximos, sendo uma espécie inteira ainda viva na África com-pletamente desconhecida — os bonobos —, é plausível que a obra freudiana não tenha especulado mais nessa vertente, por absoluta incapacidade de se fundamentar em dados objetivos. Desse modo, além dos já mencio-nados temas abordados em Totem e tabu, não foi muito mais do que a relação entre re-pressão2 e bipedismo que pode ser utilizado por Freud para hipóteses sobre o processo de antropogênese. Contudo, tal tema de estudo é pertinente ao projeto freudiano.

Ao contrário do que se possa impensada-mente concluir, estudar o papel de processos físicos implica a defesa não de comporta-mentos instintuais inatos, mas sim da adap-tabilidade a partir do surgimento de socie-dades e formas de agir e sentir muito mais

ricas, recriadas de modo diferente por cada um a cada geração, isto é, na plasticidade da pulsão.

Considerações gerais sobre nossos primosCiência muito mais recente, a primatologia, o estudo dos grandes primatas, seus corpos, mas, acima de tudo sua psicologia e suas so-ciedades, trazem novidades interessantíssi-mas para uma complementação da linhagem psicanalítica acima mencionada. Grandes primatas são nossos primos mais próximos: orangotangos, gorilas, chipanzés e bonobos. Ao contrário da asserção atribuída a Darwin, que tanto ofende os fundamentalistas de vá-rias religiões, não somos parentes próximos, muito menos descendemos dos macacos. Es-tes têm rabo, os grandes primatas não (infe-lizmente não temos em nosso idioma termos separados, como em inglês, em que monkeys designa aqueles com cauda e apes os sem cauda).

Classificada como a superfamília homi-noidea surgiu há cerca de 20 milhões de anos, tendo os orangotangos sido os primeiros a se mudar para mais longe há 14 milhões, os gorilas se separaram depois, há 7,5 milhões e, finalmente, os ancestrais dos chipanzés e bonobos e os ancestrais dos seres humanos pediram as contas e foram morar separados há meros 5,5 milhões de anos. Já chipanzés e bonobos se separaram entre um milhão e meio de anos ou talvez bem menos. Em ter-mos evolutivos e na história dos mamíferos essas distâncias são mínimas. Todos os pri-mos compartilham entre si 97% do DNA, sendo que com os de primeiro grau — chi-panzés e bonobos — temos 98,4% de DNA igual.

Importante que se acentue que os estudos comparados, desde a genética até o compor-tamento e a sociologia dos grandes primatas, nada tiveram em comum com o nascimento de pretensos saberes como a sociobiologia e a psicologia evolutiva. A primeira nasceu do estudo das abelhas. Partindo daí, a segunda pegou alguns dogmas pseudodarwiania-

2. Os temas do olfato, do bipedismo e sua relação com a repressão são retomados várias vezes, até serem extensamente discutidos em O mal-estar na civiliza-ção, publicação de 1930 (FREUD, 1978). Há que to-mar cuidado com a imprecisão dos termos repressão (Unterdrückung) e recalque (Verdrändung), ainda mais nas edições brasileiras, calcadas na inglesa e que traduzem ambos os termos por “repressão”. Em princípio repressão diferiria de recalque por ser este último inconsciente, contudo mencionam Laplanche e Pontalis no Vocabulário de psicanálise que repressão “é um termo cujo uso é mal codificado” (1978, p. 419). Apesar de nos atermos no presente texto ao termo “repressão” quando supomos que difere do recalque no texto freudiano, a descrição de Freud sobre olfato e bipedismo relata uma conduta que é inconsciente-mente determinada.

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O primata perverso polimorfo

nos e com eles construiu extenso castelo de cartas, que nada mais é que uma nova ver-tente do antigo darwinismo social — inclu-sa sua ramificação nazista — e que, usando supostas descobertas ditas da neurociência, racionaliza o neoliberalismo e o patriarcado como consequências necessárias da natureza humana. Os autores mais divulgados da pri-matologia duramente criticam e refutam esta tal psicologia (RYAN; JETHÁ, 2010; WAAL, 2013), cuja base epistemológica, aliás, é nula. Entre a existência de um gene e um compor-tamento específico todas as etapas interme-diárias entre material genético e funciona-mento cerebral são desconhecidas ou hipo-téticas. Fora que todos os fatores ambientais (leia-se aprendizado, sociedade e cultura) teriam de ser rigorosamente afastados por meio de pesquisas com população controle.

Retornando a nossos primos, as diferen-ças anatômicas entre os chipanzés e os bo-nobos são muito pequenas, exceto que os últimos possuem uma cabeleira partida ao meio. Mas as condutas sociais e sexuais são acentuadamente diferentes. Uma mudança geográfica, o aumento de volume do rio Zai-re há um milhão e meio de anos ou menos fez com que um grupo de antepassados de ambas as espécies ficasse ao norte do rio, se-parado de outro ao sul. Os do norte sofreram mudanças climáticas e ambientais mais ri-gorosas, enquanto os do sul tiveram sorte de uma ambiente mais estável. Logo os antepas-sados dos chipanzés modernos evoluíram mais rápido do que os dos atuais bonobos, levando a hipótese de que estes estejam mais próximos do que teriam sido os antepassa-dos tanto de chipanzés quanto dos humanos (KANO, 1992).

Falando sobre os chipanzésOs chipanzés, tendo permanecido ao norte, onde as florestas diminuíram e a savana au-mentou, tiveram de descer bastante das ár-vores para apelar para a caça. Têm uma dieta onívora, mas apreciam mais uma boa carne e caçam em grupos liderados por um macho

alfa, e podem ser muito agressivos. São pa-triarcais, hierarquizados, poligínicos (várias fêmeas para um macho), embora, com fre-quência, fêmeas mais velhas conquistem po-sição de relevo. Apesar de bem menores que os seres humanos, e extremamente fortes, os chipanzés podem ser mortais. Ao contrário do se apregoa, os homens não são os únicos animais que matam os de sua própria espécie por prazer. Chipanzés executam ‘chipanzecí-dios’ em tribos rivais sem benefício aparente.

Apesar dessas características que podem parecer muito humanas e moralmente ne-gativas, têm uma sociedade com qualidades até pouco consideradas restritas aos primos humanos: ajudam velhos e doentes, fêmeas, e até machos adotam filhotes de pais que morrem, utilizam e são capazes de inventar instrumentos simples que transmitem a ge-rações seguintes. Possuem a capacidade de empatizar com os sentimentos de outros do mesmo grupo e mesmo com seres humanos, quando com eles estabelecem bom relacio-namento. Pode-se falar até de luto quando perdem os mais próximos. A empatia, isto é a capacidade de se identificar com sentimen-tos dos outros, também permite que sejam extremamente manipuladores dos sentimen-tos alheios. Logo, os chipanzés são excelen-tes políticos, formando alianças e golpes em uma sociedade muito hierarquizada. Em um ambiente mais hostil que seus primos bo-nobos, os chipanzés tiveram de restringir a sexualidade quase que somente à reprodu-ção. Tanto pelo fato de que durante a cópula qualquer animal se torna vulnerável (para um predador a caça de dois a preço de um), quanto para manter, entre os machos, a orga-nização social necessária à caça com o míni-mo de conflitos.

Entre outras qualidades, os chipanzés também emitem sons com significados ain-da não conhecidos e se reconhecem entre si pelos sons e pela voz. Identificam a própria imagem num espelho e são capazes de reco-nhecer dezenas, até centenas de outros chi-panzés por meio de fotografias. Isto é, têm

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O primata perverso polimorfo

um grau surpreendente de individualidade, mas não um núcleo familiar como o conhe-cemos. Os filhotes são criados apenas com a mãe e os irmãos, frequentemente num grupo isolado do grupo principal.

Mas é relatado que um macho adulto ja-mais copula com sua mãe biológica ou ado-tiva, assim como é descrito que, se criado com uma irmã, biológica ou não, também não terá relações sexuais com ela. A figura de pai é desconhecida. Mas sexo entre os pais e suas filhas biológicas é evitado, porque as chipanzés fêmeas jovens saem em busca de outros grupos de sua espécie. Contudo, a se-xualidade é focada apenas na reprodução e muito limitada se comparada à dos bonobos e humanos. A relação sexual é sempre ma-cho/fêmea e com a penetração por detrás.

Bonobos: uma pouca vergonha!Os bonobos, ao contrário, têm uma dieta pre-dominantemente de frutas, são igualitários, não violentos e matriarcais. Têm as mesmas habilidades sonoras e o reconhecimento da própria imagem no espelho que seus primos chipanzés. Apelidados de anarquistas ou hi-ppies da floresta, não são especialistas em política. Permanecendo em um meio menos hostil que seus primos chipanzés, puderam se dedicar mais ao prazer do que à caça. Mas sua metade ao sul do rio, se por um lado, for-nece grande quantidade de frutos, estes mu-dam sua concentração geográfica com certa rapidez, o que fez com que os bonobos tives-sem de se organizar em grupos maiores que os chipanzés. Grupos capazes de se deslocar inteiros e rapidamente, inclusive com fêmeas e filhotes. Isso justificaria uma organização social completamente diferente dos chipan-zés.

Durante décadas foram escondidos por seus primos humanos nos zoológicos, dada a suposta imoralidade de conduta. Por mais incrível que pareça, exceto para os psicana-listas, que são especialistas em detectar o re-calque sexual, os bonobos como espécie só foram identificados em 1929. O estudo dos

bonobos ficou décadas atrás do dos chipan-zés porque biólogos e estudiosos humanos tinham vergonha de pesquisá-los. Imagine-se relatar suas descobertas em público. Ex-pô-los em zoológicos, nem pensar.

Os bonobos resolvem todos os conflitos através do sexo. São especialistas em beijo de língua (qualidade também dos chipanzés), atingem o orgasmo inúmeras vezes ao dia. As fêmeas são sempre sexualmente receptivas, estejam férteis ou não. Ao contrário de todas as dos demais primatas, exceto na espécie humana, as fêmeas também têm o desenvol-vimento de seios, não muito grandes, que em ambas as espécies não têm nenhuma utilida-de na amamentação; é apenas um atrativo sexual. Um excitante bastante razoável do ponto de vista evolutivo, uma vez que prati-cam o coito frontal, preferência quase exclu-siva, na qual são os únicos primatas além dos humanos (talvez um menos exclusivo nessa escolha). Além do beijo de língua, bonobos são especialistas em: sexo oral, masturbação mútua, vários tipos de frotteurismo, mas não é relatado coito anal.

A principal fama (ou má fama) dos bo-nobos entre os humanos se dá por sua extre-ma frequência de todos os tipos de relações sexuais, independentemente do sexo do(a) parceiro(a). Não se pode falar de homosse-xualidade na acepção de uma opção exclu-siva, porque todos os bonobos são comple-tamente e muito freudianamente bissexuais. Ao contrário dos chipanzés, cujas fêmeas se tornam incapazes de sexo por anos após cada parto, as fêmeas bonobos rapidamente voltam à atividade.

Logo, nos bonobos a sexualidade não somente extrapola completamente a repro-dução ao contrário dos chipanzés, exímios e hierarquicamente fixados políticos, todos os vínculos sociais e todos os conflitos são explicitamente cimentados e resolvidos com sexo. Sendo dominantes, as fêmeas resolvem conflitos de poder e outros com sexo entre elas. O status social dos machos deriva do de sua mãe.

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Se extrapolássemos conceitos humanos como pedofilia, os bonobos seriam acusados de realizá-la, mas sem cópula, começando com a estimulação genital nos bebês. Con-tudo também possuem a restrição absoluta ao sexo adulto genital com penetração entre mãe e filho dos chipanzés.

Nascimento do tabu do incesto?Para os psicanalistas o que mais chama a atenção no comportamento com os primos é a existência do ‘núcleo duro’ do tabu do in-cesto tal como foi descrito por Lévi-Strauss (1982) nos seres humanos. Nenhuma cultu-ra humana conhecida, presente ou passada, admitiu relações sexuais mãe-filho. As rela-ções pai-filha não são proibidas em muitas culturas, tal com não o são no Levítico. O limite entre comportamentos inatos e adqui-ridos atinge aqui seu limite. Em outras tantas culturas como a egípcia, durante milênios o casamento entre irmãos era a regra na famí-lia real e na nobreza, principalmente porque a linhagem real passava por via materna. Os faraós precisavam se casar com suas irmãs porque elas seriam as verdadeiras herdeiras do trono. Esse costume permaneceu até a conquista grega e romana do Egito. A últi-ma rainha, a famosa Cleópatra VII, antes de conhecer César e Marco Antônio, foi casada com dois de seus irmãos.

Apesar de tudo, em muitos aspectos Freud ainda era homem de seu tempo. Bem euro-cêntrico como todo bom europeu, sua obra se fundamenta numa separação rígida entre natureza e cultura. O mito do pai primevo e a origem da proibição do incesto em Totem e Tabu (FREUD, 1978) caracterizariam o mo-mento exclusivamente humano da passagem de natureza a cultura. Foi a ideia que seguiu o pai da antropologia cultural. Mas exclama o primatólogo mais conhecido, Frans de Waal (2013): “quão longe do alvo estava Lévi-S-trauss” (WAAL, 2013, p. 71). Contudo, como escreveu outro dos principais primatólogos, descrito pelo mesmo Waal como o cientista japonês que por mais tempo com bonobos

em seu meu meio ambiente, Takaioshi Kano (1992):

[...] mecanismos psicológicos e sociais para evitar o incesto existem em todos os primatas [...] a sociedade primata evoluiu ao longo de um eixo de “evitação do incesto” [...] longe de ser comportamento avançado único, humana-mente produzido, evitação do incesto é com-portamento que surgiu ao longo da evolução primata (KANO, 1992, p. 2).

O tabu do incesto entre mãe-filho de nos-sos primos pode ser explicado tanto biológi-ca quanto psicologicamente. Possivelmente ambas as explicações se complementam.

Chipanzés não se tornam adultos pelo menos antes dos doze anos. Quase o mes-mo ocorre entre os bonobos, cujas fêmeas se tornam sexualmente maduras por volta dos nove anos e são consideradas adultas entre os treze ou quatorze anos, quando costumam ter sua primeira cria. Em ambas as espécies os filhotes são amamentados por quatro a cinco anos (chipanzés há relatos de até seis anos).

A longa infância está muito próxima da duração entre os humanos, e a amamentação em muito excede nossos costumes atuais. Com uma década de infância, uma depen-dência absoluta da mãe nos primeiros anos e possuidores de um córtex apenas menor que o dos humanos e de alguns mamíferos ma-rinhos, se desenvolve extensa memória do período infantil. Sem se esquecer do vínculo afetivo estabelecido na amamentação com mãe e filho se entreolhando.

A memória infantil se sobreporia sobre o corpo adulto. Isto é, diante de um filhote já adulto, a mãe sempre o reconheceria como filhote e, diante da mãe, o filhote sempre se comportaria como filhote. Como mencionou Freud em Totem e Tabu ao se referir ao que impediria o incesto de filhos com suas mães: uma “imagem inalterada dela preservada em seu inconsciente” (FREUD, [1913] 1978, p. 16). Não sabemos se essa característica sur-

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giu primeiramente no antepassado comum entre chipanzés e bonobos, ou primeiro nos antepassados dos seres humanos. Ou de um antepassado comum a todos. De modo que permanece em aberto o prêmio de quem foi o primeiro neurótico na história da evolução.

Feminismo primata ou primevo?Em uma época que se usa a neurociência para justificar o comportamento humano como inato, a primatologia vai no sentido contrário. A conduta sexual dos bonobos, as estratégias políticas e de caça dos chipanzés, a invenção de instrumentos, a capacidade de aprender símbolos geométricos são algumas das características que embasam a afirmação de que “comportamento inato é coisa rara em nossos parentes mais próximos” (WAAL, 2007, p. 149). A afirmação tão repetida pela psicologia evolutiva de que os homens pre-ferem mulheres jovens porque estão mais aptas a reproduzir bem, e as mulheres prefe-rem homens mais velhos e de status elevado porque serão bons provedores para seus fi-lhos não encontra eco na observação de nos-sos primos. Bonobos e chipanzés preferem companheiras totalmente maduras. No caso dos chipanzés, em que a sexualidade é mui-to mais rarefeita que nos bonobos e apesar da figura do poderoso chefão no macho alfa, as jovens suam um bocado para conseguir sexo até com os betas. Um Berlusconi e suas prostitutas adolescentes são criação exclusi-vamente humana.

Nos dois nossos primos as fêmeas pos-suem francas preferências em relação à busca de parceiros. Mesmo no caso dos chipanzés, patriarcais e submetidos a um macho alfa, frequentemente a astúcia feminina ajuda as fêmeas a eleger um parceiro nada alfa e a en-rolar o chefão. O que caracteriza chipanzés fêmeas, e muito mais suas primas bonobos, é dar mais importância ao seu prazer sexual do que a supostas características genéticas úteis para a prole. Mas os chipanzés machos alfas compartilham a obsessão masculina humana com a fidelidade feminina e, quando tomam

o poder, ficam com as fêmeas e simplesmen-te matam os filhotes do alfa deposto (aqui, sim, há um comportamento inato, uma vez que não é possível nenhuma noção de pater-nidade).

Já os bonobos machos não estão nem aí para política e conquistas violentas de poder. Comunitariamente ajudam filhotes de todos, ainda mais que suas fêmeas frequentemente são poliândricas e o vínculo de relação mais forte é exclusivamente mãe-filho, que, como vimos, é quase tão forte entre os chipanzés. Mas nestes os vínculos entre machos for-mando confrarias masculinas é o que detém o poder.

Se, por um lado, os bonobos fornecem subsídios para a defesa freudiana da bissexua-lidade e da libido como mantenedora de to-dos os vínculos sociais (talvez o que também permita o maior vínculo entre os machos no caso dos chipanzés), por outro, parecem o pe-sadelo do patriarcado humano. Assemelha-se ao que poderia ter sido o matriarcado originá-rio defendido por Bachofen, citado por Freud em Totem e tabu. Período anterior à atual cul-tura patriarcal, à prevalência do monoteísmo, ao maior desenvolvimento da agricultura e ao nascimento da escrita.

Quem possui o sexo rei?Claro que existem imensas diferenças entre os seres humanos, chipanzés e bonobos. Di-ferenças ainda maiores em relação a primos mais afastados como gorilas e orangotangos, e maiores ainda aos mais distantes gibões. Entre o sexo masculino e o sexo feminino, humanos têm um peso médio de 86/74 kg, chipanzés 40/35 kg, bonobos 35/32 kg, go-rilas 160/80 kg, orangotangos 75/37 kg e gibões10/10 kg. Nota-se que a variação de peso entre os sexos em humanos, chipanzés e bonobos é de 20%. Nos gorilas e orangotan-gos de 100%. Gibões machos e fêmeas têm o mesmo peso.

Espécies em que os machos são poligíni-cos e lutam violentamente entre si pelas fê-meas, que passam a ser propriedade exclusiva

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O primata perverso polimorfo

sua e passivamente são submetidas ao coito, os machos têm de ser grandes e fortes para lutar entre si. Donde gorilas e orangotangos machos têm o dobro do peso das fêmeas. Pouco importa que os primeiros tenham um pênis ereto de 3 cm e os segundos de 4 cm. Nos gibões, uma espécie que estabelece uma monogamia absoluta e não há competição entre os machos, os dois sexos são do mesmo peso e tamanho.

Já nós e nossos primos mais próximos te-mos uma variação de peso entre os dois sexos de 20%. Isso indica um grau leve de competi-ção entre os machos e certa tendência à po-liginia e poliandria, se não simultânea, pelo menos ao longo da vida. Para certos autores decididamente a monogamia humana total seria uma imposição antinatural (RYAN; JE-THÁ, 2010).

A obsessão freudiana com o pênis se tor-na digna de nota quando se mede que os homens têm em média 13/18 cm, propor-cionalmente ao peso, o mesmo que bono-bos e chipanzés com 7,5 cm. Só que o ato sexual humano tem uma duração média de 474 segundos, enquanto o de nossos primos mais próximos dura entre 7 e 15 segundos. Orangotangos conseguem atingir 60 segun-dos, mas os campeões são os gorilas com 900 segundos. Do ponto de vista humano masculino os gorilas não parecem muito in-vejáveis já que se acasalam poucas vezes por ano e exclusivamente para reprodução, assim como pelos dados acima sobre as dimensões de seus genitais, sendo que os testículos são internos e do tamanho de um grão de feijão.

Totem e tabu rebobinado (Totem and taboo reloaded)Retornemos à hipótese sobre a relação entre bipedismo e recalque, citada ao início, que demonstra como Freud se interessava tanto pelo darwinismo quanto pelo pelos aspectos físicos da antropogênese, que em Totem e tabu é abordada a partir da origem do com-plexo de Édipo. As descobertas sobre nossos primos chipanzés e bonobos tornam atual

que se repense vários aspectos dessa obra tão questionada de Freud.

Primeiro, se o tabu do incesto já existe sob a forma da proibição de relações sexuais mãe-filho, nuclear segundo Lévi-Strauss, nossos primos não dispõem de uma figura paterna. Segundo, há que pensar que a des-crição da horda primeva e o assassinato do pai primevo, segundo Freud, constitui uma narrativa bem machista, homem que era de seu século. As mulheres não têm nenhuma participação no ato de fundação da passa-gem do natural ao cultural no mito freu-diano. Está implícito que constituem mero objeto do desejo dos machos, sem nenhuma vontade própria. Para Freud mulher e cultu-ra eram antagônicas a partir do próprio ato de fundação da humanidade.

O estudo de chipanzés e bonobos mostra que, ao contrário, a figura materna e seu tabu do incesto são anteriores ao nascimento da figura paterna, mesmo que tenha sido essa a grande criação do processo de antropogê-nese humano. Chipanzés e bonobos fêmeas não são nada passivas, levantando a hipóte-se de que o mito descrito em Totem e tabu tenha de ser atualizado em relação ao papel ativo do feminino: possivelmente instigaram os machos a alianças ou traições entre eles, formaram vínculos eróticos ou tanáticos não só com o outro sexo, mas entre elas mesmas, quem sabe, não deram até mesmo uma mão-zinha no assassinato do pai primevo? Mes-mo considerando-se que Freud não poderia inteiramente deixar de ser um homem for-mado pelo patriarcado de seu tempo, por um momento questionou se “[...] aqui não poderia estar o germe do matriarcado, des-crito por Bachofen que por sua vez foi substi-tuído pela organização patriarcal da família” (FREUD, 1978, p. 144).

Desse modo, o mito de Freud e Lacan de uma lei instituída somente pelo sexo mascu-lino deve ser criticado. Em nossos primos há um esboço de lei que é passado pela mãe: o sentimento de fraternidade e cooperação en-tre os irmãos.

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O primata perverso polimorfo

Também existe a hipótese de que, tendo os chipanzés passado parcialmente à sava-na e necessitando se organizar para a caça, a pressão evolutiva que sofreram foi maior que a dos bonobos. Segundo Kano (1992) tudo in-dica que os bonobos tenham mudado menos que os chipanzés em relação ao antepassado comum de todas as três espécies. Logo, os an-cestrais dos humanos, embora possam não ter tido uma sexualidade tão efusiva quanto a dos bonobos atuais, provavelmente não a tinham restrita à reprodução, nem tão dominada pe-los machos quanto a dos atuais chipanzés.

Freud chegou a indagar se a aliança en-tre os irmãos para o assassinato do pai pri-mevo poderia ter sido ‘baseada em atos ou sentimentos homossexuais, talvez origina-dos durante o período de expulsão da horda’ (FREUD, 1978, p. 144). Tendo por funda-mento a hipótese de que os ancestrais hu-manos teriam características próximas aos atuais bonobos, algo completamente desco-nhecido por Freud, pode-se pensar que não houve um aumento, mas apenas o resultado de uma já existente disposição a bissexuali-dade. E sabemos como o tema da bissexuali-dade era caro a Freud.

Os antepassados dos seres humanos tive-ram de abandonar completamente a vida ar-borícola em favor da savana. A luta pela so-brevivência em um meio mais hostil fez com que sofressem uma pressão evolutiva muito maior que seus primos: donde o bipedismo completo e uma organização social muito mais complexa para a caça. Organização da qual faz parte uma atividade sexual perma-nente, muito mais rica e mais diversificada do que a dos chipanzés. Ao mesmo tempo, o bipedismo, tornando os genitais à mostra, teria sido um dos fundadores da repressão. Defende Freud em O mal-estar na civilização (Civilization and its discontents):

Os genitais também produzem uma forte sen-sação de cheiro que muitos não podem tolerar e que lhes estraga a relação sexual. Assim deve-mos achar a raiz mais profunda da repressão

sexual, que avança junto com a civilização, como sendo a defesa orgânica da nova forma de vida alcançada pela postura ereta do ho-mem, contrária a sua existência animal ante-rior (FREUD, 1978, p. 106).

Além da complexidade das relações afe-tivas e eróticas, a ampliação da teia social só teria sido possível pelo desenvolvimento da laringe humana. Nossos primos nem de longe possuem algo parecido. Por outro lado, tornou o pescoço comprido do ser humano extremamente vulnerável para qualquer ini-migo, humano ou não. Além disso, a larin-ge comprida frequentemente confunde sua função fonadora, com a de respiração e a de alimentação. Antes da era dos antibióticos um engasgo não resolvido possivelmente conduzia a uma pneumonia fatal. Se houve alguma vantagem, foi a criação de um órgão riquíssimo para o que nos torna mais huma-nos: a fala. A incapacidade em produzir sons complexos faz com todas as tentativas de en-sinar linguagem a nossos primos sejam por meio de blocos e símbolos visuais.

Resta a especular, retornando à questão do bipedismo completo, sua relação com a repressão sexual e o recalque, sem o qual não haveria linguagem humana, com sua in-finita combinatória de um número finito de elementos. Sem recalque e recombinação de significantes e significados não haveria in-consciente, logo não existiriam: arte, poesia, o sonho infinito (outros mamíferos sonham, mas enredos fixos, e nossos primos, o que so-nham ainda não se sabe), a infinita gama das emoções e sentimentos humanos, neurose e loucura.

Além do recalque e do complexo de Édi-po, criação freudiana primordial é o conceito de pulsão em oposição ao de instinto. Mas não é um psicanalista, e sim o primatologista mais conhecido, que, falando de nossos pri-mos, descreve:

A beleza de um sistema de respostas emocio-nais sobre um sistema instintual é a de que seu

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O primata perverso polimorfo

resultado não está escrito em uma pedra. O termo ‘instinto’ refere-se a uma programação genética que diz aos animais, ou seres huma-nos, como agir de um modo específico sobre cir-cunstâncias específicas. As emoções, por outro lado produzem mudanças internas, juntamen-te com a avaliação da situação e o julgamento das opções. Não está claro se os seres humanos e outros primatas possuem instintos no sentido específico, mas não há dúvida de que possuem emoções. [...] uma interface inteligente que media entre a entrada (input) e saída (output) tomando por base o que é mais importante para o organismo em determinado momento (WAAL, 2013, p. 152-153).

Conclusão: o schizo humanoAs pesquisas sobre os grandes primatas, posteriores à obra freudiana, podem sub-sidiar hipóteses instigantes do fundador da psicanálise. Não é exclusividade nossa o co-mentário de que, tendo a linhagem humana se separado daquela dos antepassados dos chipanzés e bonobos, que só depois se divi-diram em duas espécies, os seres humanos partilham uma mistura das características dos dois primos. Basta reler os parágrafos acima. Somos tanáticos como os chipanzés e libidinosos como os bonobos.

Ou quase tão libidinosos. Ao contrário dos de nossos primos que agregam deze-nas e pouco mais de uma centena de indi-víduos, os grupamentos passaram da ordem da centena, chegando ao milhar e hoje são da ordem de milhões. Além da linguagem hipercomplexa, a organização social exigiu novas formas de recalque tanto da sexuali-dade quanto da agressividade que, segundo Freud foram utilizadas através dos processos sublimatórios, a favor da cultura.

Mas as formas de repressão sexual extre-ma, tal como a preconizada pelos monoteís-mos, principalmente na doutrina católica, de relações sexuais exclusivas para a repro-dução, e sem concupiscência, só seriam pos-síveis se fôssemos chipanzés. Modo de re-pressão, bem seja lembrado, historicamente

recente (LOPES, 2011). Podemos acrescen-tar que o monoteísmo teria surgido como derradeiro meio de o patriarcado manter seu domínio. Se estudos contemporâneos bus-cam explicar como funcionam, também há que repensá-los em sua gênese. Mais do que a coerência de sua obra, houve uma intuição de Freud nessa direção, que o conduziu a de-dicar seus últimos escritos à crítica radical de ambos. Mesmo assim, a lei paterna tal como apresentada por Freud e Lacan, que muitas vezes descambou em defesa de ideias grotes-cas, necessita de uma revisão crítica ainda mais cuidadosa.

Mesmo que fosse possível uma sexuali-dade restrita à reprodução, como defendem algumas religiões, temos de lembrar que os chipanzés não são monogâmicos. A relação da diferença de tamanho entre os dois sexos nos seres humanos conduz à afirmação te-nazmente defendida por Ryan e Jethá (2010) de que não somos uma espécie exclusiva-mente monogâmica, mas — discretamente ou não tanto — polígama. A empederni-da defesa freudiana da bissexualidade, hoje anátema até para organizações de defesa dos direitos homossexuais, encontra eco na an-cestralidade comum aos bonobos.

Por outro, a passagem à savana, à seme-lhança dos chipanzés, conduziu a um reforço das tendências agressivas, visto que o sucesso demográfico dos seres humanos funcionou, apesar de seu preço altíssimo em termos de guerras e destruição do meio ambiente.

De um lado Maquiavel, Sade, Nietzsche e o Freud mais pessimista; do outro, Freud em sua vertente mais light, Kinsey, Lennon e algumas feministas. Decididamente somos uma espécie que precisa de psicanalistas.

AbstractInfluence of Darwin on Freudian thought. Present knowledge about the evolution of the apes. Discoveries made over last decades about chimpanzees and bonobos behaviour. An appraisal between these species sexual and

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O primata perverso polimorfo

aggressive behavior with human behaviour. A new reading of some Totem and Taboo thesis through that new information. The Oedipus complex phylogenisis. The sexual and aggres-sive duality of human species.

Keywords: Darwinism, Apes, Chimpanzees and bonobos, Aggression and sexuality, Totem and Taboo, Oedipus.

Referências

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KANO, T. Last ape: pigmy chimpanzee behavior and ecology. Stanford University Press, 1992.

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WAAL, F. de. The bonobo and the atheist. New York/London. W. W. Norton & Company, 2013.

RECEBID O EM: 10/09/2013APROVAD O EM: 29/10/2013

S oBR e o Au ToR

Anchyses Jobim LopesMédico e Bacharel em Filosofia pela UFRJ. Mestre em Medicina (Psiquiatria) e em Filosofia pela UFRJ. Doutor em Filosofia pela UFRJ. Psicanalista. Membro Efetivo do Círculo Brasileiro de Psicanálise – Seção Rio de Janeiro (CBP-RJ). Presidente do CBP-RJ nos biênios 2000-2004 e 2008-2012. Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP) 2004-2006. Professor Titular II do curso de Graduação em Psicologia e Especialização em Teoria e Clínica Psicanalítica da Universidade Estácio de Sá (UNESA).

endereço para correspondênciaRua Marechal Mascarenhas de Morais, 132/308Copacabana - 22030-040 - Rio de Janeiro/RJ Página: http://www.anchyses.pro.brE-mail: [email protected]

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As per-versões na clínica psicanalítica

Gostaria de agradecer o convite do Espaço Moebius para participar desta jornada1 já que o tema da perversão tem-me ocupado em muitos momentos, e a interlocução é a me-lhor possibilidade de esclarecimento das am-biguidades e incertezas teóricas que viven-ciamos no exercício da clínica psicanalítica.

Não só a clínica do nosso tempo é marca-da pela incidência de atos cujo cunho, per-verso ou não, deixa dúvidas como também o psicanalista vem sendo convocado a dar parecer na área jurídica a respeito da respon-sabilidade subjetiva do criminoso. Se o su-jeito do ato é um psicótico ou um perverso,

As per-versões na clínica psicanalíticaThe per-versions in the psychoanalityc clinic

Cibele Prado Barbieri

ResumoO artigo tem como objetivo trabalhar a incidência de cenas de cunho perverso no tratamento de sujeitos supostamente neuróticos, permitindo pensar a possibilidade de versões da estru-tura perversa.

Palavras-chave: Perversão, Clínica psicanalítica, Fenômeno elementar.

Enquanto tudo não tiver sido dito, enquanto o objeto como tal (ou seja, o objeto do gozo)

não tiver sido nomeado, catalogado, impresso em letras,

é preciso que ele sobreviva para continuar a ser oferecido

aos golpes do carrasco que busca seu retalhamento simbólico.

andré, 1995, p. 25.

a forma de tratar e julgar esse sujeito deverá obedecer a estratégias diferentes, de forma que discutir e avançar nesses temas se torna fundamental para a elaboração da teoria por suas consequências práticas, não apenas no campo da clínica psicanalítica.

Para pensar a perversão em seu desenvol-vimento histórico e teórico, remeto a textos anteriores, onde foram trabalhados.2 Preten-do aqui focalizar questões que considero im-portantes porque implicam a posição e o ato do analista diante de sujeitos e cenas por eles vividas, que nem sempre se definem classica-mente como perversas, embora se encaixem

1. XXII Jornada do Espaço Moebius, 25 e 26 de outubro, 2013, com o tema Perversão, Salvador, Bahia.2. Cito como exemplo, entre outros, os artigos: BARBIERI, C.. O que é perversão? In: PIMENTEL, D.; Araújo, M. G. (Org.). Interfaces entre a psicanálise e a psiquiatria. Aracaju: Círculo Brasileiro de Psicanálise, 2008. p. 282-299. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/cgi-bin/wxis.exe/iah/>; BARBIERI, C. Os enigmas da criminalidade à luz da psicanálise. Cógito [on line], v. 13, p .8-21, 2012. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?s-cript=sciarttext&pid=S15 19-94792012000100002&lng=pt&nrm=iso>.

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As per-versões na clínica psicanalítica

perfeitamente na sua lógica, exigindo refle-xão e aprofundamento teórico.

Podemos tentar compreender a perversão a partir de algumas definições que nos forne-cem versões e efeitos possíveis da estrutura e de seus traços. Tomarei apenas quatro, que considero fundamentais:

1. Em Freud: A perversão não é uma in-versão; é a expressão direta da pulsão parcial. Nela encontramos o avesso da operação do recalque, de modo que isso não exclui certos efeitos de recalque na subjetividade, como acontece na psicose (FREUD, 1905, 1914, 1923).

2. Em Roudinesco:

A diplopia é uma alteração da visão, uma má convergência, que faz com que vejamos dois objetos em lugar de um. Transformação do bem em mal. A perversão dos costumes. Dis-túrbio, perturbação. Há perversão da visão na diplopia (ROUDINESCO apud LITTRÉ, 2008, p. 9).

Então, a perversão é da ordem da diplo-pia, o que permite dizer: “eu sei, mas... mes-mo assim...”.

3. Em Serge André: A perversão é uma modalidade discursiva, uma impostura:

[...] a perversão é algo totalmente diferente de uma entidade clínica: ela é um certo modo de pensar. Um pensamento cuja essência demons-trativa decorre das relações do perverso com a fantasia e com a Lei (ANDRÉ, 1995, p. 312).

4. Em Mário Fleig: “Propomos, como hi-pótese, que a dessubjetivação do sujeito mo-derno tem incidência no que constitui um dos fenômenos elementares da perversão” (FLEIG, 2008, p. 109).

A primeira dessas questões remete à au-sência de Verdrangung, o recalque. A Ver-leugnung, traduzida por recusa, mas tam-bém renegação ou rejeição — termos que implicam a negativização de uma repre-sentação — nos diz que a ideia é mantida

na consciência, mas ao mesmo tempo sua veracidade é negada, negativizada. Des-mentido — melhor tradução, para Lacan — inclui a primeira mentira, ao des-mentir a castração, anulando a operacionalidade do recalque. De forma que já aí encontramos a propriedade moebiana de passar do aves-so ao direito, do dentro ao fora e vice-versa, sem extrapolar nenhuma borda. O perverso satisfaz o que o neurótico recalca.

Temos, ao mesmo tempo, as duas repre-sentações opostas e conscientes: diplopia. A mulher é castrada; mesmo assim, é fálica... Isso implica a fantasia e a lei; consequente-mente, o posicionamento e a estrutura do sujeito. Serge André, ao definir a perversão enquanto modalidade discursiva, permite pensar em termos de uma torção discursiva, um giro.

Que efeitos subjetivos advêm dessa di-plopia? Ou será que a diplopia é, ao contrá-rio, o efeito de uma des-subjetivação, como propõe Fleig, em que o sujeito surge não di-vidido pelo desejo, livre dos infortúnios da castração, para dar vazão aos movimentos propostos pelas “impulsões” parciais?

A perversão e o desejo perverso estão determi-nados por um modo particular de gozo que diz respeito ao sujeito constituído no contexto da ciência moderna, e por isso concerne a todos nós (FLEIG, 2008, p. 109).

Esses sujeitos não procuram o psicana-lista necessariamente por detectarem sua compulsão como tal, mas terminam trazen-do certos fatos e atos que sugerem algo da ordem lógica da passagem ao ato perverso, na medida em que supostamente realizam uma satisfação direta, desmentindo a castra-ção. Entretanto, nesses atos, fica expressa a ausência da satisfação própria do ato perver-so. Atos cheios de ambiguidade, entre o pra-zer e a dor, nos quais a única coisa que fica evidente é a defasagem em relação ao desejo, à compulsividade e à ausência de sentido, que os distancia da configuração do sinto-

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As per-versões na clínica psicanalítica

ma neurótico, mas também não corresponde exatamente ao que conhecemos como satis-fação do fetichista, por exemplo.

Encontrei em Fleig uma descrição que corresponde a esta cena que tento descrever:

A noção de fenômenos elementares advém da psiquiatria clássica, e Lacan tenta mostrar que não se trata apenas de um fato ou aconteci-mento, mas de um motivo que se repete, muitas vezes de formas disfarçadas, e que se encontra no interior do delírio, na psicose ou no rotei-ro perverso como o modo de relação do sujeito com o objeto. [...] São fenômenos sutis, uma espécie de aura, impressões, um sentimento, uma estranheza que antecede o desencadea-mento do delírio ou das alucinações. [...] essa dessubjetivação no campo da perversão apare-ce na paixão pelo inanimado [...] Aparece tam-bém na crescente disseminação das formas de anonimato na contemporaneidade. O sujeito se coloca em situações em que seu nome não aparece, o que não se restringe apenas à clan-destinidade. São fenômenos aparentemente banais, mas que podem indicar aquilo que diz respeito aos fenômenos elementares da perver-são (FLEIG, 2008, p. 59-60).

E mais adiante ele propõe outras ques-tões que nos conduzem a uma mais ampla dimensão.

Um aspecto interessante é a interrogação que o sujeito perverso introduz no campo das nor-mas sociais: é um sujeito que se situa fora das normas e quer impor suas próprias normas? Seria um sujeito fora-da-lei e que, ao mesmo tempo, impõe uma outra lei? Qual é o estatuto da lei? Não estaria ele mesmo submetido a essa outra lei, ou seja, uma espécie de roteiro pelo qual está tomado e que precisa do outro para ser colocado em cena?

O próprio sujeito perverso está submetido a um roteiro particular, ele segue uma lei muito mais rígida do que as leis que ele contesta [...] (FLEIG, 2008, p. 60).

Como exemplo, poderia mencionar um jovem, filho exemplar, que divide com a mãe as “funções paternas”, “empregado padrão” respeitado e competente, moral inquestioná-vel, que ciclicamente “sai de si mesmo” (sic) e, mesmo não sendo usuário tradicional, se envolve em orgias regadas a drogas diversas, que geralmente terminam sem sexo e, inva-riavelmente, num caos financeiro e moral devastador, mas “só-depois” do ato, quando ele “volta a si”. Posso dizer que o trabalho as-sociativo da análise evolui satisfatoriamente, durante muito tempo, com relação a sua vida amorosa, questões familiares, seus becos sem saída, sua posição subjetiva, ideais, en-fim, como a análise de um “bom neurótico”. Mas a repetição reiterada desse roteiro, que ao longo da análise se reconstitui ciclica-mente, não fornece associações. Parece que ali o simbólico não alcança e tem o aspecto de atuação perversa, como Fleig a descreve e explica.

Mas poderia ser relida como “gozo pa-rasitário”, assim chamado por Isidoro Vegh, no sentido da “tentação pulsional” ou, quem sabe, do “mandato”?

Isidoro Vegh, tratando da questão das in-tervenções do analista, utiliza o modelo da informática para pensar essas questões atra-vés de um “diagrama de fluxo”. Seu diagrama começa por duas entradas: uma no campo da “vida”, no sentido do pulsional, e outra no campo da “linguagem”, no sentido da fala. As duas se encaminham em direção ao “falasser” (parletre). Nas duas vertentes — no campo do real e no campo do simbólico —, para aceder à condição de sujeito, de ser falante, temos de passar pelo que ele chama de “operador lógi-co da castração”, ou então, de “processador do inconsciente”. Aquilo que escapar à cas-tração permanecerá atuante enquanto “gozo parasitário”. Na vertente do Real, ele gera efeitos de “tentação pulsional” e, no campo da linguagem, seus efeitos são “Mandatos” ao estilo superegoico.

A “tentação pulsional” é silenciosa, insis-tente e gera efeitos de ato, enquanto o “Man-

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As per-versões na clínica psicanalítica

dato” em sua articulação entre Ideal e supe-reu, na vertente da linguagem, gera inibição e efeitos depressivos: nos dois casos, sepa-rando o sujeito de seu desejo. Como exem-plo disso, ele cita o usuário de cocaína que, mesmo desejando, não consegue se libertar da compulsão ao gozo da droga.

O fenômeno especial da perversão, como proposto por Fleig, poderia ser entendido como o que do Real emerge, produzindo efei-tos de gozo, na medida em que a castração não se operou segundo a lógica do recalque. Tendo falhado o operador lógico da castra-ção, torna-se possível uma torção discursiva, uma impostura que denota como o sujeito toma a lei pelo viés daquilo que ela interditaria se fosse eficaz, ou seja, a tentação pulsional,

Coloco o acento na “tentação pulsional”, e não no “mandato”, pois, neste caso, que nor-teia minhas formulações, se partirmos da co-locação de Vegh, parece que o sujeito trafega pela via da “vida”, do ser, e não pela via do falante, da “linguagem”.

No que se refere à cena, parece não haver interferência direta do supereu no sentido de um mandato, a não ser que seja enquanto “sentimento inconsciente de culpa” ou “culpa muda”, no sentido que Gerez-Ambertin pos-tula. Para ela, “a culpa deambula pelas fron-teiras do gozo” (GEREZ-AMBERTIN, 1993, p. 214). A culpa muda surge da interseção do Imaginário sobre o Real (I>R), no campo do gozo do Outro J(A), ex-sistente aos efeitos de inconsciente.

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As per-versões na clínica psicanalítica

As intervenções interpretativas, no nível do simbólico, não geram efeitos, e a cena se repete quase sempre idêntica. Depois do ato, quando o sujeito reassume seu lugar e tem de assumir as consequências das ações, surge a angústia, pois se identifica com o objeto, o dejeto; cada vez mais distante e apartado do seu desejo.

O discurso perverso não deixa o sujeito livre da angústia, como muitos imaginam. Tanto André quanto Fleig não se cansam de afirmar que o perverso sofre. O perverso não é necessariamente aquele que se diverte o tempo todo, pois não sente nenhuma culpa; em alguma medida, a pressão da angústia de castração sempre existe e obriga até mesmo o psicopata a arquitetar sua solução.

O que pudemos ver até aqui é o fato de que certas versões da perversão produzem, em sua ambiguidade, grandes dificuldades para o analista na sua tentativa de dar con-ta de um real através de um ato que possa corresponder ao que se espera do ato de um analista. Sublinho o “um” analista, já que, tratando-se de analistas, só se pode falar de um por um, cada um.

O que Vegh propôs em seu seminário — e que gerou muita reflexão, questionamento e até a retomada da reflexão teórica dessa aná-lise em particular — é que, diante da colo-cação em jogo do real, cabe ao analista uma intervenção da ordem do real, no Real. Posi-ção à qual não estamos acostumados. Talvez por isso Lacan tenha falado do horror ao ato como medida do ato do analista, horror pelo que de real ele possa carregar em si.

Para finalizar, diria que não sei ao certo como meu jovem analisante resolveu sua questão, se realmente resolveu. Só posso dizer que, em dado momento, sob a mira e o confronto que as palavras permitiram a respeito de seu gozo, tomou uma decisão, literalmente, um novo rumo, no Real. Desti-tuiu-se de tudo que o mantinha e sustentava. Demitiu-se, zerou suas dívidas, partiu para outro lugar, na intenção — que espero tenha sido bem-sucedida — de começar uma nova

vida, despedindo-se da que havia levado até então.

Teria ele conseguido mudar a direção, dado um giro na estrutura, de objeto de gozo se tornar sujeito de seu desejo? Teria o gozo, finalmente, sucumbido ao “retalhamento simbólico”? Teriam as minhas intervenções sido equivalentes a “golpes do carrasco” como sugere Serge André? Quem sabe, um dia, sa-beremos.

AbstractThe article aims to work the incidence of per-verse nature scenes in the treatment of subjects supposedly neurotic, allowing the possibility of perverse structure versions.

Keywords: Perversion, Psychoanalytic clinic, Elemental phenomenon.

Referências

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FLEIG, M. O desejo perverso. Porto Alegre: CMC, 2008.

FREUD, S. O ego e o id [1923]. In: ______. Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, [n.d.]. (CD--ROM).

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FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualida-de [1905]. In: ______. Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, [n.d.]. (CD-ROM).

GEREZ-AMBERTIN, M. Las voces del superyo. Bue-nos Aires: Manantial, 1993.

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As per-versões na clínica psicanalítica

ROUDINESCO, E. A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

VEGH, I. Conferência proferida no Seminário “Es-trutura e intervenções no sujeito da análise”, promo-vido pelo Espaço Moebius, Salvador, 7 e 8 de junho de 2013. Inédito.

RECEBID O EM: 06/09/2013APROVAD O EM: 24/10/2013

S oBR e a au toR a

Cibele Prado BarbieriPsicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico da Bahia. Editora da Revista Cógito – Publicação Anual do Círculo Psicanalítico da Bahia.

endereço para correspondênciaRua João das Botas, 185 / 310 C. M. João das Botas - Canela41110-160 - Salvador/BAE-mail: [email protected]

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Vínculos entre modernidade, ética e subjetivação no pensamento de Freud

AberturaDizemos hoje com certa tranquilidade que a psicanálise se afirma como ética, seja a partir das formulações de Lacan em torno de uma ética do desejo (LACAN, 1988), seja pela consideração do contraponto entre técnica e ética posto em jogo pela reflexão sobre os modos de atuação do psicanalista em sua clí-nica (BIRMAN, 1994). Não há, portanto, ne-nhuma originalidade em tal afirmação. Pelo contrário, trata-se na atualidade de um lugar comum no campo psicanalítico. Persiste, no entanto, a necessidade de explorar o seu sen-tido, sobretudo em relação ao que se enten-

Vínculos entre modernidade, ética e subjetivação no pensamento de Freud1

Links between modernity, ethics and subjectivity in Freud´s works

Eduardo Leal CunhaJoel Birman

ResumoEste artigo pretende indicar a importância da dimensão ética da experiência psicanalítica a partir do vínculo entre o pensamento de Freud e a modernidade. Para isso, recorremos a for-mulações de Michel Foucault que nos parecem adequadas à descrição do pensamento ético freudiano, sobretudo na medida em que o filósofo francês, no comentário de 1984 sobre o texto de Immanuel Kant em resposta à pergunta “o que é o esclarecimento”, vincula a ética aos processos de subjetivação, por um lado, e, por outro, ao laço entre a experiência moderna e a tarefa crítica do pensamento. Com isso, pretende-se destacar a presença na obra freudiana do vínculo entre os processos de constituição subjetiva e a problematização moral, o que con-tribuiria para uma compreensão da categoria de sujeito relacionada menos a uma dimensão psicológica, marcada por noções como as de vontade, consciência e percepção, e sim mais próxima do que procuramos descrever como sujeito ético, concebido a partir da relação com o outro e da ação sobre o mundo.

Palavras-chave: Ética, Moral, Psicanálise, Sujeito, Freud.

de por Ética, para que possamos aproveitar ao máximo as possibilidades abertas por tal aproximação entre psicanálise e reflexão mo-ral, não apenas quanto ao impacto que possa ter sobre a clínica e em particular no que diz respeito à especificidade do ato analítico face à clínica médica, mas também com relação ao vínculo entre subjetividade e sociabilida-de. Consideramos que a compreensão do lugar da discussão ética na obra freudiana — é o que pretendemos demonstrar — tanto se vincula ao sentido que a ideia de sujeito tem em seu pensamento e que orienta a sua postura na clínica, quanto nos remete aos

1. Este trabalho apresenta parte dos resultados de pesquisa desenvolvida em estágio pós-doutoral junto ao Pro-grama de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ como parte do projeto PROCAD/Novas Fronteiras A dimensão ética do pensamento psicanalítico e seu impacto no estudo de fenômenos socioculturais, o qual reúne as universidades federais de Sergipe, Rio de Janeiro e Pará, com o apoio financeiro da CAPES/Ministério da Edu-cação.

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modos de articulação entre o indivíduo e o espaço social. Ou seja, destacar a dimensão ética do pensamento psicanalítico possibilita reafirmar a implicação recíproca dos regis-tros da cultura e da sociedade na compreen-são freudiana do psiquismo.

Tal precisão no entendimento de uma dimensão ética da psicanálise é importante para demarcar com mais clareza a distinção da clínica freudiana em relação às formas de tratamento moral, localizadas nas origens do saber psiquiátrico (FOUCAULT, 2006b), considerando que tais formas ainda se en-contram presentes mesmo nas leituras con-temporâneas das práticas psicoterapêuticas como práticas de crescimento pessoal e ade-quação da performance individual com base em uma postura pedagógica por parte do te-rapeuta, as quais, reunidas sob a denomina-ção de psicoterapias breves, pretendem mui-tas vezes incorporar a psicanálise ou usá-la como forma de legitimação (COSTA, 1978).

Por outro lado, é preciso considerar que, na atualidade, a psicanálise é demandada a se posicionar diante de uma série de questões que requerem uma posição mais clara sobre a sua concepção de sujeito e como tal con-cepção se aproxima ou se distancia da noção de indivíduo, referido a uma identidade, no sentido de uma narrativa reflexiva do Eu, como propõe o sociólogo britânico Anthony Giddens (2002). Tal definição de indivíduo se associa precisamente às noções de auto-nomia e responsabilidade moral, o que mais uma vez nos requer uma compreensão clara do uso feito por Freud da reflexão moral.

O objetivo deste artigo é, portanto, tomar certas indicações foucaultianas sobre as ar-ticulações entre ética e subjetivação a partir da modernidade para compreender, por um lado, de modo mais preciso a inserção do pensamento de Freud na tradição crítica da modernidade, ao lado de autores como Niet-zsche e Marxe, por outro lado, evidenciar, na obra do criador da psicanálise, os laços entre problematização moral e processos de subjetivação, mostrando como tais laços se

articulam a uma compreensão do sujeito que escapa a qualquer tendência essencializante ou transcendente e, ao mesmo tempo, forne-ce ferramentas teóricas para o enfrentamen-to da questão do reconhecimento no mundo contemporâneo sem se submeter à lógica do indivíduo psicológico autocentrado e sobe-rano.

Nesse sentido, também nos aproximamos das formulações de Renato Mezan, quando afirma que a psicanálise não deve ter a pre-tensão de se constituir em um sistema ético ou filosofia moral, mas destacamos que o im-pacto da problematização moral ao longo da aventura freudiana vai além dos três aspec-tos por ele apontados, a saber:

A incidência dos valores morais sobre a perso-nalidade de cada indivíduo; o vínculo entre es-tes valores e a sociedade na qual surgem, já que fazem parte do processo de socialização pelo qual nos tornamos humanos; e os problemas éticos que a prática clínica pode colocar para o analista (MEZAN, 1998, p. 211).

Para justificar nosso argumento, explora-remos inicialmente o lugar da reflexão mo-ral no texto freudiano, procurando destacar indicações para uma compreensão da cate-goria de sujeito entendido na sua dimensão ética, enquanto reflexão permanente sobre os modos possíveis de ser e de agir. Localiza-remos tal entendimento do sujeito na inter-rogação freudiana sobre as relações entre a construção do aparato psíquico e os dilemas morais que acompanham os indivíduos ao longo de sua vida e que se fazem presentes na clínica, no discurso dos pacientes captu-rados por uma contínua interrogação do seu agir, na qual se revelam, ao mesmo tempo, o significado dos seus atos e a sua implicação subjetiva.

Em seguida, discutiremos a inserção de Freud na experiência moderna a partir de sua reflexão moral enquanto movimento crí-tico do pensamento moderno. Recorreremos a Foucault para explorar uma compreensão

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da ética em que não apenas a determinação do comportamento moral é inseparável de uma problematização da categoria de sujei-to e dos modos de construção de si (RAJ-CHMAN, 1996), mas na qual se coloca em questão a própria racionalidade moderna da qual Freud é, ao mesmo tempo, produto ine-gável e crítico radical (BIRMAN, 2000).

Nesse sentido, procuraremos compreen-der como as formulações de Michel Foucault sobre os vínculos entre a modernidade e a crítica das formas possíveis de existência ao mesmo tempo que lançam uma luz sobre a articulação radical entre ética e formas de subjetivação, nos auxiliam na compreensão do lugar que a reflexão sobre a moral ocu-pa na obra freudiana e como ela está estri-tamente vinculada a uma determinada con-cepção de sujeito, distante tanto da ideia de essência quanto de um indivíduo soberano e senhor de si.

Por fim, indicaremos brevemente em que medida tal compreensão da dimensão éti-ca do pensamento freudiano o afasta tan-to da psicologia da sua época, centrada na consciência e nos processos psíquicos a ela relacionados, quanto da filosofia moral ao mesmo tempo que nos indica elementos para estabelecer uma perspectiva possível de intervenção da psicanálise nos debates con-temporâneos em torno da ética e do reco-nhecimento da alteridade.

Freud, o psiquismo e a moralÉ preciso distinguir na aproximação do pro-blema da moral em Freud dois eixos teóricos. O primeiro, explícito, se refere a seu interesse pela origem dos sistemas morais e religiosos, no qual se vinculam, por um lado, o código moral a um regime de interdições fundado na proibição do incesto e do assassinato a partir de uma história primeva da sociedade tal como exposto em Totem e tabu (FREUD, 1986a) e, por outro lado, relaciona certa per-manência de um modo de funcionamento infantil ancorado na onipotência de pen-samentos e na preservação da figura do pai

todo-poderoso à busca das ilusões religiosas (FREUD, 1986b) ou dos sistemas filosóficos totalizantes (FREUD, 1986c).

O segundo eixo, menos evidente, mas que deve ser privilegiado em nosso argumento, se refere à articulação entre o modo de cons-trução do psiquismo, a partir do recalque, e os valores morais que regulam a sociedade, orientando as forças da resistência e se mate-rializando nos produtos da cultura europeia do final do século XIX. Temos aí em vista a imbricação direta entre a construção do apa-rato psíquico, no nível individual e ontoge-nético, e, no nível social e filogenético, o pro-cesso civilizatório (VAHLE; CUNHA, 2011). Tal eixo aparece desde os primeiros escritos sobre a histeria, quando diz respeito, sobre-tudo, ao conflito entre o desejo sexual, o qual naquele momento teórico representa a ma-terialização psíquica da força das pulsões, e as exigências morais e aspirações éticas do indivíduo, representadas na maioria das vezes pelos sentimentos de asco e vergonha (FREUD; BREUER, 1986). A ação do indiví-duo dar-se-á como resultante desse conflito, o que é demonstrado não apenas pela pro-dução de sintomas, mas por suas escolhas profissionais ou amorosas, o que fica claro, por exemplo, na leitura freudiana da vida de Leonardo da Vinci, no comentário so-bre o romance Gradiva, de Wilhelm Jensen (FREUD, 1986d) ou em sua dita psicologia do amor (FREUD,1986e, 1986f, 4986g).

Quanto ao primeiro eixo, o interesse de Freud nos sistemas morais vincula-se direta-mente ao seu interesse pela religião, já que seriam essas as duas formas através das quais a civilização ocidental busca operar a regu-lação das pulsões. O problema moral se vin-culará, portanto, ao problema da cultura e da existência do indivíduo em sociedade, o que aparecerá formulado no texto O mal-estar na civilização, de 1930, da seguinte forma: como o homem pode sofrer menos ao viver junto com outros homens?

Segundo sua proposição, a vida em socie-dade e a construção dos laços sociais não se-

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riam tributárias de nenhuma espécie de dom natural, sob a forma de um instinto gregá-rio ou do dito sentimento oceânico, vislum-brado por Romain Rolland, interlocutor de Freud no início desse texto (FREUD, 1986h), mas ambos se apresentam como problema, ao mesmo tempo moral e psíquico social e subjetivo. Moral e social, no que se refere à necessidade de produção de regras e disposi-tivos culturais e sociais de regulação da vida em comum. Subjetivo e psíquico, na medida em que implica transformações na economia subjetiva e nos próprios modos de funciona-mento do psiquismo, de modo que a satis-fação das pulsões não venha a comprometer a existência do indivíduo ou a vida em co-mum.

Tal problema de dupla face é ainda toma-do por Freud em seu caráter histórico, isto é, na sua vinculação com as formas de organi-zação social no contexto do seu tempo, o que fica claro tanto na análise que faz do modelo de casamento monogâmico em 1908, quando propõe uma vinculação direta entre o lugar encontrado para a sexualidade feminina e a produção da histeria (FREUD, 1986i), quan-to em sua análise da guerra (FREUD, 1986j) e, principalmente, no próprio texto de 1930, quando o progresso proporcionado pelos avanços da ciência é contraposto ao mal-es-tar produzido pelo sentimento de culpa que regula os impulsos destrutivos presentes no psiquismo.

Por essa via, então, o primeiro eixo de consideração da moral na obra freudiana indicado por nós se articula ao segundo, no qual é importante ressaltar a associação di-reta entre as formulações freudianas sobre o funcionamento do aparelho psíquico, oriun-das do enfrentamento clínico do sofrimento psíquico de seus contemporâneos, e a refle-xão sobre temas morais articulados à regula-ção do viver junto.

Nesse sentido, nos parece evidente o modo como, ao longo de sua obra, Freud vai desenhando paulatinamente uma associa-ção direta entre os processos de constituição

subjetiva, que são derivados teoricamente do enfrentamento clínico das formas de so-frimento psíquico que marcam a sociedade vienense e europeia na passagem entre os séculos XIX e XX, e a experiência ética ou, num sentido mais amplo, o campo dos pro-blemas morais, produzindo inclusive a ar-ticulação entre certas formas específicas de adoecimento — como a neurose obsessiva e histeria — e determinados temas da reflexão moral.

Tal articulação entre clínica e ética (VAH-LE; CUNHA, 2011) se configura na manei-ra como, em face de cada um dos principais quadros psicopatológicos apresentados por seus pacientes — aquilo que Renato Mezan descreve como matrizes clínicas (MEZAN, 1988) —, a reflexão clínica freudiana e os desdobramentos teóricos que a seguem e que procuram dar conta dos processos psíquicos subjacentes, se fazem sempre tendo em vista dois registros. O primeiro desses registros é o propriamente psíquico, referido às formas de articulação entre afetos e representações, como os ditos mecanismos de defesa que serão, por exemplo, diferentes na histeria, com ênfase no recalque e na conversão, e na neurose obsessiva, na qual a formação reati-va e o isolamento ocupam o centro da cena (FREUD, 1986k).

No segundo registro, contudo, o que en-contramos é uma discussão que escapa aos limites estritos do que se poderia descrever como psicologia ou como processos men-tais, a qual diz respeito a temas da reflexão moral e trazem para a investigação sobre os processos de adoecimento a relação do in-divíduo com seus semelhantes, sua inserção em sociedade e o modo como sua ação e seu pensamento são determinados em função dos efeitos que podem produzir sobre a rea-lidade e sobre o outro. Vale ressaltar que tal imbricação entre funcionamento psíquico e valores morais surge desde o momento em que Freud coloca no centro da sua concep-ção de sujeito o conflito psíquico, dividindo o indivíduo e descentrando o sujeito a partir

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do confronto entre as exigências da pulsão e os limites estabelecidos pelo Eu na sua ne-cessidade de autoconservação, sendo o Eu nesse momento da obra o lócus da razão, da consciência e da moralidade.

Desse modo, na discussão sobre a histe-ria, assume lugar fundamental o papel das interdições relativas à vida sexual, em par-ticular das mulheres ou os ideais e modelos de comportamento hegemônicos que esta-riam na base dos sentimentos de nojo, asco e vergonha que orientam a ação das forças do recalque. Assim, Freud é levado a tecer con-siderações sobre o conflito entre sexualidade e moral que marcou a sociedade vitoriana e que resultou em uma moral da renúncia que marcará profundamente sua concepção do recalque e da formação do sintoma histérico (VAHLE; CUNHA, 2011).

Na consideração da sintomatologia ob-sessiva, vão ser os impulsos destrutivos — aqueles que sustentam guerras e destruição — e a ambivalência amor/ódio, em especial na relação com o pai, que serão objeto da ela-boração teórica freudiana e que o levarão a conceber o mecanismo da formação reativa, base tanto da formação do caráter individual quanto da virtude humana da caridade. É ainda a partir da clínica obsessiva que Freud vai propor uma hipótese para a constituição e o funcionamento da consciência moral, para o que contribuirá ainda sua leitura da para-noia, afecção que ele enquadrava não entre as ditas psiconeuroses de defesa, mas sim entre os destinos do narcisismo (VAHLE; CUNHA, 2011). O funcionamento obsessi-vo, com seus rituais e proibições, será ainda referência fundamental para que o inventor da psicanálise se lance à investigação sobre as origens da religião e da moralidade, na-quilo que descrevemos acima como primeiro eixo do interesse freudiano pela moral.

É preciso destacar, agora, que o principal elemento de articulação entre esses dois ei-xos será a formulação do complexo de Édi-po. Será através dessa noção fundamental que são entrelaçados os dois fios condutores

da consideração freudiana da moralidade, que podemos descrever rapidamente como eixos social e clínico, bem como será con-duzida a contínua interrogação freudiana da sociedade moderna, a partir do sofrimento produzido em seu seio e materializado em formações de compromisso ou conciliações entre as ordens da pulsão e da cultura na sin-tomatologia neurótica.

Com essa noção, central ao pensamento psicanalítico e responsável por grande parte do seu impacto sobre o pensamento filosó-fico e a cultura em geral, esses dois eixos ou modos de inserir a problematização moral no campo das discussões sobre os proces-sos de estruturação psíquica são conectados necessariamente, além de indicar a inserção necessária de Freud no seu ambiente cultural e contexto sócio-histórico. Podemos pensar que, com a formulação do Édipo, e o apoio na tragédia grega, marco da cultura ociden-tal, Freud busca em seu ambiente cultural, não apenas, uma interpretação possível e universal (MEZAN, 1985) para o conflito estabelecido entre desejo erótico e vida em sociedade, o qual apareceria no cerne da configuração da subjetividade, mas, sobretu-do, dar conta da exigência característica da modernidade de produção de uma normati-vidade própria.

Na interpretação delineada por Lacan, a morte do pai indicada pelo complexo de Édipo, implicaria a gestão da humilhação do pai produzida como condição de surgi-mento da experiência moderna e se alinha-ria como consequência da morte de Deus anunciada anteriormente por Nietzsche (BIRMAN, 2000). Ou seja, se com a formu-lação da existência de um desejo incons-ciente, Freud retira do homem moderno, enquanto ser racional e autoconsciente, a determinação dos seus próprios atos; com a enunciação do Édipo, ele procura estabe-lecer uma equação através da qual tal sobe-rania é deslocada para a rede de trocas sim-bólicas que ordenariam a vida em sociedade no Ocidente moderno.

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Nesse sentido, Freud se apresenta si-multaneamente como pensador moderno e como crítico radical da modernidade. Com efeito, Freud reconhece o papel central do indivíduo, mas o coloca em questão na me-dida em que retira o caráter soberano do eu, apontando para o inconsciente como verda-deiro campo psíquico, colocando ainda em questão a racionalidade que fundaria tal ex-periência moderna e que se materializaria no discurso objetivante da ciência.

É a partir do lugar de crítico da moder-nidade que Freud costura um laço indis-sociável entre, por um lado, o problema da codificação moral e do sentimento religioso, a regulação dos laços sociais e a determina-ção das condições de possibilidade da vida em sociedade, problemáticas do pensamen-to moderno, e, por outro lado, a construção do aparato psíquico e suas vicissitudes, que incluiria o estabelecimento das formas de sofrimento psíquico e a centralidade do Ou-tro na ativação do desejo inconsciente que governa o nosso agir, para além ou aquém da nossa vontade ou consciência. Com isso, portanto, Freud subverte qualquer fronteira que se pretenda estabelecer entre os registros do indivíduo e da sociedade, consolidando, assim, o descentramento do sujeito da cons-ciência e colocando o registro ético da expe-riência subjetiva no centro da compreensão do funcionamento psíquico.

Foucault: modernidade, ética e subjetivaçãoMas o alcance teórico das formulações freu-dianas, com todos os desdobramentos que acabamos de enumerar, não aparece na su-perfície do seu texto. É, ao contrário, fruto de um trabalho de análise apenas possível pela sua contextualização histórica, ou seja, com a exploração do vínculo, já brevemente apon-tado, de Freud com o pensamento moderno.

Para tanto, nos parece fundamental o recurso à obra de Michel Foucault, basica-mente por duas razões: em primeiro lugar, por conta da inscrição da psicanálise na ge-

nealogia da subjetividade, que caracteriza a modernidade tardia descrita por Foucault em torno da produção de um dispositivo da sexualidade, o qual se vincula a uma forma de subjetivação, de relação consigo, fundada na interiorização reflexiva tal como disposta no modelo confessional e no imperativo de conhecer a si mesmo (FOUCAULT, 1984a); em segundo lugar, pela problematização da ética, em função da leitura da própria expe-riência moderna introduzida por Foucault a partir do final da década de 1970 e do início da década de 1980 e que pode ser delimitada em três movimentos.

No primeiro movimento, se destaca a distinção entre os registros da ética e da mo-ral. No segundo movimento, a afirmação da dimensão crítica presente na reflexão ética, que se enuncia claramente no vínculo es-tabelecido entre ética e problematização, o qual é pensado como marca da experiência moderna. Por fim, o terceiro movimento, que é a articulação proposta entre a proble-matização ética e as formas de subjetivação.

Aqui, é preciso destacar duas formulações centrais que se articulam: por um lado, a dis-tinção delineada entre os registros da ética e da moralidade e, por outro, a ênfase na com-preensão do trabalho ético como uma ope-ração permanente dos sujeitos, na qual a ên-fase é colocada não no código moral, mas na construção de uma relação consigo mesmo e com os outros, marcada pelo cuidado de si e pela interrogação permanente sobre os sentidos e efeitos dos nossos atos e das nos-sas palavras (FOUCAULT, 1984b; 2006a), ou seja, “enquanto forma a ser dada à conduta e à vida” (FOUCAULT, 1994b, p. 674).

É por esse viés que se costura tal perspec-tiva ética ao deslocamento produzido pelo filósofo francês entre a categoria de sujeito e a de formas de subjetivação; e é por conta da formulação desse entendimento da rela-ção do sujeito com os valores morais e ideais que regulam a sociedade moderna que Fou-cault se debruça sobre o mundo helênico e o modo como neste eram reguladas as relações

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do sujeito consigo mesmo e com os outros: “o que Foucault encontra no pensamento antigo é a ideia de inscrever uma ordem na própria vida, mas uma ordem imanente, que não seja sustentada por valores transcenden-tais ou condicionada do exterior por normas sociais” (GROS, 2006, p. 643).

Quanto a isso, vale lembrar ainda que, nas palavras de John Rajchman (1993), o problema ético se apresenta para Foucault como uma dificuldade configurada na busca de uma ética sem articulação com o regis-tro do Bem. Isto é, enquanto o código moral se assentaria na afirmação de um verdadei-ro Bem, no momento em que Foucault põe em questão a própria ideia de verdade e seu vínculo com as relações de poder, o trabalho ético passa a se vincular de modo necessário a esta relação com as verdades produzidas historicamente.

Numa outra leitura da relação entre ética e moral em Foucault, pode-se enunciar que, enquanto a segunda se vincularia diretamen-te ao registro do código de valores e ao juízo sobre o agir, correto ou incorreto, a primei-ra “estaria marcada, em contrapartida, pela maneira pela qual o sujeito constituiria ações e produziria então ativamente práticas de constituição de si” (BIRMAN, 2010, p. 186) de modo que o que “estaria em pauta seria a forma pela qual o sujeito se inscreveria e se posicionaria no campo do código moral” (BIRMAN, 2010, p. 186).

Na mesma direção, ao tratar da famo-sa polêmica estabelecida entre Habermas e Foucault em torno das críticas do primeiro à teoria do poder foucaultiana (HABERMAS, 2000), Richard Bernstein (1994) propõe que encontramos em Foucault, não o fundamen-to normativo que segundo Habermas seria necessário à lógica foucaultiana do poder (mesmo que este não tenha sido em nenhum momento explicitado ou reconhecido), mas sim um horizonte ético-político. Esse hori-zonte pode ser tomado, então, como referên-cia crucial para o trabalho ético permanente, de interrogação do sujeito sobre o agir e seus

efeitos sem, contudo, jamais se converter em Bem, isto é, em ponto possível de ancoragem para o dito código moral.

Aqui, adentramos no segundo movimen-to referido anteriormente, pois dessa forma, ainda segundo Bernstein, a postura ética de Foucault se traduz em uma postura os-tensivamente crítica, a qual o filósofo fran-cês apresenta de modo mais visível no tex-to de 1984, em que comenta o opúsculo de Kant sobre o esclarecimento (FOUCAULT, 1994a).

Nesse texto, Foucault parte da pequena e clássica resposta de Immanuel Kant à per-gunta “O que é o esclarecimento”, e se apoia na ideia kantiana de que o que define a épo-ca das luzes não é propriamente um tempo histórico nem seu encadeamento em uma série de acontecimentos, mas a saída da me-noridade, ou seja, a emancipação do homem racional face à tutela da autoridade, em espe-cial a autoridade religiosa, o que se constitui ao mesmo tempo em programa da moder-nidade e tarefa na qual o sujeito moderno deveria se engajar individualmente, na sua própria relação consigo mesmo a partir do uso crítico da razão (FOUCAULT, 1994a). A partir da ideia de saída da menoridade como atitude crítica do homem moderno e tarefa que tem a si mesmo como objeto, Foucault define, então, essa atitude como aquela que define a modernidade, um permanente tra-balho de interrogação e transformação dos modos possíveis de existência, ou seja, do seu ethos, com base no uso crítico da razão.

Com isso, Foucault pretende responder à acusação de que a crítica à racionalidade mo-derna e às formas de saber e poder que lhes são correlatas o empurraria rumo ao irracio-nalismo. Inversamente, nos diz Foucault, o que define o esclarecimento e a postura es-clarecida do homem moderno é precisamen-te essa atitude de crítica do pensamento que interroga as formas possíveis de existência e permite ao homem executar a tarefa de assu-mir o controle sobre si mesmo, sair da meno-ridade e se transformar.

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A crítica foucaultiana da racionalidade moderna se materializa então como elogio do pensamento marcado pela permanente interrogação de si pelo sujeito. Nesse sen-tido, ainda no mesmo texto de 1984, Fou-cault, recorrendo a Baudelaire, descreve a experiência moderna fundada nessa crítica permanente como trabalho permanente de construção de si. Estamos agora no tercei-ro movimento empreendido por Foucault rumo ao estabelecimento do que ele enten-de como a atitude ética que define o sujeito moderno. Movimento em que, costuram-se, por fim, os laços existentes entre o trabalho crítico da razão, a problematização ética e os modos de subjetivação.

É desse modelo de reflexão ética, defini-da, portanto, como exercício crítico da razão, voltado fundamentalmente para a transfor-mação das formas possíveis de existência, isto é, um modo de reflexão ética na qual a dimensão nuclear estaria nos processos e modos de construção da experiência subje-tiva, e não no código ou no sentimento mo-ral, que podemos aproximar decisivamente o pensamento freudiano.

Considerações finais: ética e subjetivação, clínica e culturaTalvez se possa identificar, no que se refere ao lugar da reflexão moral no pensamento freudiano, deslocamento semelhante ao que se dá quanto à sua posição face ao discurso científico que lhe serve de matriz na medida em que em ambos os deslocamentos trata-se, no fim das contas, da sua relação com a racionalidade moderna, isto é, com o projeto moderno de domínio da natureza pelo ho-mem a partir da afirmação da razão instru-mental. Ou seja, há um primeiro momento, no qual Freud ainda acredita que o conhe-cimento adquirido pela ciência, aí incluída a sua psicanálise, possibilitaria um melhor equacionamento dos impasses entre as de-mandas da pulsão e as exigências da civili-zação, conforme texto de 1908 sobre a moral sexual civilizada. Trata-se de um momento

no qual é possível crer em certo poder pre-ventivo ou pedagógico da psicanálise, no qual a consciência moral ainda é tomada em associação com a razão, o interesse e as pul-sões de autoconservação.

Essa crença, no entanto, se esvai com a formulação das pulsões de morte e com o reconhecimento de uma dimensão mor-tífera e destrutiva do supereu, o próprio agente da consciência moral, que se torna cruel e responsável pelo sentimento de cul-pa que, ao mesmo tempo em que viabiliza a manutenção do laço social, conduz o su-jeito ao mal-estar que marca a sua inserção no meio social, segundo Freud, a princi-pal — e a menos compreensível — fonte do sofrimento dos seus contemporâneos (FREUD, 1986h).

Com efeito, no domínio da ética tal des-locamento pode ser pensado sob a forma de um deslizamento da busca da garantia do bom comportamento moral pelo uso da razão para a permanente tensão do sujeito na impossibilidade de conciliar a busca da satisfação pulsional com a necessidade de se relacionar com o outro, tal como aparece na experiência do mal-estar, a qual levaria o sujeito a um contínuo trabalho de problema-tização ética da sua relação com o próprio desejar, sobretudo quando este se refere às pulsões destrutivas.

Desse modo, o primeiro momento do discurso freudiano estaria bastante pró-ximo do problema enfrentado pelos fun-dadores da filosofia moral, na aurora do pensamento moderno, que procuravam responder por que o sujeito age de manei-ra moralmente correta sem a força ou até mesmo a pressão da sanção e do castigo. Foi esse problema que os levou a interrogar, por um lado, os determinantes subjetivos do comportamento moral, como em Hume, no que constituiria a base de uma possível psicologia moral ou, por outro lado, os mo-dos como o bom uso da razão apresenta-se como condição necessária e suficiente para o agir reto, como em Kant (RAWLS, 2005).

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Enquanto isso, o segundo momento do discurso freudiano, marcado pelos conceitos de pulsão de morte e pelos desdobramentos do conceito de supereu, seria precisamente aquele diante do qual o uso da reflexão fou-caultiana nos parece bastante adequado para compreender a potencialidade presente no pensamento de Freud em relação ao tipo de reflexão moral que tem impacto sobre o nos-so entendimento do sujeito e que pode nos ser útil diante de certos impasses da contem-poraneidade. Nesse momento não apenas temas clássicos da filosofia moral, como a felicidade e o lugar da religião, aparecem em primeiro plano, o que de certo modo começa a acontecer já na década de 1910, em espe-cial com Totem e Tabu (FREUD, 1986a), mas principalmente a discussão de tais temas passa necessariamente pela problematização da experiência subjetiva, de modo que o có-digo moral vem a ocupar o lugar secundário na abordagem freudiana dos temas morais, enquanto a permanente reflexão sobre os modos de agir e sobre a relação do sujeito consigo mesmo assume uma dimensão pro-priamente ética.

Ou seja, quando a equação do sofri-mento humano e a transformação dos seus modos de estabelecer laço e investir libidi-nalmente nos objetos precisa se articular a uma reflexão sobre o seu agir que resulta na enunciação de uma nova história da sua construção subjetiva, na qual se descortinam precisamente a crítica das formas presentes de existência e a abertura para novas existên-cias possíveis. Tudo isso nos parece bastante próximo ao que foi sugerido por Foucault no ensaio sobre o Iluminismo (FOUCAULT, 1994a) como caminho decisivo pelo qual o pensamento moderno afirma a sua potência ao tecer um laço entre pensamento crítico, reflexão sobre a conduta no mundo e proces-sos de subjetivação.

Outro ponto interessante a destacar se refere à própria categoria de formas ou mo-dos de subjetivação (FOUCAULT, 1984a) pela qual o sujeito se afirma como destino e

produção, e não mais como essência e origem (BIRMAN, 2010). Isso pode nos ser bastante útil para ampliar o alcance de certas formu-lações freudianas em torno do modo parti-cular como Freud visualiza a história de vida dos seus pacientes, na medida em que seria sempre a posteriori, ou seja, a partir da ação presente e como resultado de um necessá-rio trabalho de construção/reconstrução (FREUD, 1986l) que o sujeito delinearia as possibilidades de sua existência.

Com isso, acreditamos poder afirmar que a ética não se refere, portanto, em Freud, prioritariamente, ao estabelecimento de uma regulação do comportamento moral, tam-pouco da localização de um Ideal, Bem ou Verdade que possa servir de balizador desse comportamento ou finalmente da identifica-ção de um sentimento moral que funcione como garantia de uma relação harmônica com o outro. Qualquer uma dessas opções aproximaria Freud e a psicanálise do domí-nio das visões de mundo, das quais ele insis-tentemente procurou se afastar. Todas essas inflexões nos permitem afirmar que, no cam-po das reflexões sobre a moral, trata-se em Freud, enfim, não da busca de uma resposta, mas do enfrentamento do problema da mora-lidade, pelo viés do imperativo da eticidade.

Esse problema foi articulado a dois outros temas, aqui apresentados de modo bastan-te breve, mas que consideramos suficiente para demarcar a experiência psicanalítica e a potência do pensamento freudiano a par-tir de sua inscrição no registro de uma ética em contraposição a uma filosofia do sujeito concebido moralmente e garantido pelos atributos da razão. Por um lado, o tema da construção do psiquismo e de sua articula-ção com a experiência subjetiva, ou seja, o fato de que não há de início nem sujeito nem psiquê, sendo ambos, psiquismo e subjetivi-dade, construídos ao longo da vida. Por ou-tro lado, o tema do reconhecimento de que tal construção se dá a partir da relação com o outro, em uma rede complexa de trocas afeti-vas e simbólicas.

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Vínculos entre modernidade, ética e subjetivação no pensamento de Freud

AbstractThis article is intended to indicate the impor-tance of the ethical dimension of the psychoa-nalytic experience based on the link between Freud’s thinking and modernity. For this, we turn to Michel Foucault’s formulations that seem appropriate to a description of the Freu-dian ethical thinking, especially as the French philosopher, in the commentary on the 1984 text of Immanuel Kant in response to the ques-tion “What is enlightenment” binds the ethical processes of subjectivity on the one hand, and secondly, the link between modern experien-ce and the critical task of thought. With this, we intend to highlight the presence in Freud’s works of the link between the processes of sub-jective constitution and the moral problem, which would contribute to an understanding of the subject in which it would not be referred to a psychological dimension, marked by no-tions like the will, consciousness and percep-tion, but closer to what we try to describe as a ethical subject, designed from the relationship with the other and action upon the world.

Keywords: Ethics, Moral, Psychoanalysis, Subject, Freud.

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Vínculos entre modernidade, ética e subjetivação no pensamento de Freud

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RECEBID O EM: 09/08/2013APROVAD O EM: 29/10/2013

S oBR E o S Au toR E S

Eduardo Leal CunhaDoutor em Saúde Coletiva (IMS/UERJ) e Professor do Núcleo de Pós-Graduação em Psicologia Social e do Departamento de Psicologia da UFS.

Joel BirmanDoutor em Filosofia (USP), Professor Titular do Instituto de Psicologia (UFRJ) e Professor Adjunto do Instituto de Medicina Social (UERJ).

Endereço para correspondência

Eduardo Leal CunhaPraça Camerino, 161/601 Edf. Leonardo da Vinci - São José49015-060 - Aracaju/SEE-mail: [email protected]

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O inapanhável objeto do savoir-faire na análise

Naquilo que concerne à psicanálise, o savoir-faire pode ser visto de maneira positiva ou negativa. O lado ruim: no sentido de uma manipulação indevida da transferência. O lado bom: no sentido de uma justa aprecia-ção dos posicionamentos da transferência. Esse aspecto bifacetário do savoir-faire, no fundo, está correlacionado com o da transfe-rência em si, que às vezes é um fator de resis-tência e também motor de um querer dizer. A dupla face da transferência nos mostra que ela nunca é pura nem purificável, pois está intricada com a sugestão. No entanto, é reco-mendável distingui-la. Mas tal distinção não é fácil e demanda a intervenção de outras coordenadas. Freud identificou muito bem tal armadilha em seu artigo A dinâmica da transferência e busca contorná-la: Buscamos

O inapanhável objeto do savoir-faire na análise1

The elusory object of know-how in analysis

Erik PorgeTraduçao: Elisa dos Mares Guia-Menendez

Mariana Valério Orlandi

ResumoAlém das regras técnicas, o savoir-faire (saber-fazer) provém de uma posição ética. O tato, assim como a disponibilidade, o constitui. Ele encontra sua expressão na regra da atenção igualmente em suspenso. Esta visa a impedir a compreensão precipitada e favo-rece a surpresa no discurso, sinais de uma passagem de inconsciente. Ela também indica que o savoir-faire se encontra ligado ao tempo e ao seu manejo, bem como à existência da lalíngua (lalangue). No entanto, o savoir-faire não deve se situar somente do lado do analista, mas também do analisante. A este cabe aprender como lidar com seu fantasma e seu sintoma. Além disso, o savoir-faire se refere sempre a uma subjetividade, seja ela do analista ou do analisante, na medida em que o inconsciente é um savoir-faire com a lalíngua?

Palavras-chave: Saber-fazer, Atenção, Lalangue.

preservar a independência última do pacien-te, utilizando a sugestão somente para fazê--lo realizar o trabalho psíquico, que o condu-zirá necessariamente a melhorar de maneira durável a sua condição psíquica (FREUD, 1975).

A fronteira entre uma sugestão arbitrária, hipnotizante e uma sugestão a serviço do “trabalho psíquico” pode ser porosa, segun-do o dito que os fins justificam os meios. Por isso, é preciso admitir a existência “de uma dimensão de sugestão em toda transferência” (PLON, 1989, p. 91). Nessa ocasião Michel Plon também cita Lacan:

Nas condições centrais, normais de uma análi-se, nas neuroses, a transferência é interpretada com o próprio instrumento da transferência e

1. Título original: L’insaisissable objet du savoir-faire dans l’analyse. In: Essaim. Erès, 2013/1, n. 30, p. 9-23.

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O inapanhável objeto do savoir-faire na análise

com base nela mesma. Portanto, ela poderá ser feita somente a partir de uma posição que lhe é atribuída na transferência, que o analista ana-lise e intervenha na própria transferência. Para ser sincero haverá uma margem irredutível de sugestão, um elemento que será sempre suspei-to, que não se atém ao que se passa por fora — não há como saber — e sim a aquilo que a própria teoria é capaz de produzir2 (LAcAN, 1992, p. 210).

Se, de fato, a transferência pode ser inter-pretada somente com a própria transferên-cia, existe um círculo vicioso da transferên-cia e da sugestão. Daí então a necessidade, para encontrar uma saída, de fazer com que a transferência dependa de outra alavanca teó-rica (o ponto fixo de Arquimedes que Des-cartes relembra em sua segunda Meditação), que foi finalmente nomeado por Lacan, em 1964, o sujeito suposto saber.

É também por essa via que é possível abordar a questão do savoir-faire na análise. Um savoir-faire que não se relanceará nos equivocados sulcos da transferência e da su-gestão e que não tomará a máscara de Janus.

Além e aquém do saber e do fazer associadosA associação destes dois verbos cria uma nova noção, suplementar à adição de cada um destes termos. A ordem não é indiferen-te, porém o savoir-faire (saber-fazer) não é inverso ao faire-savoir (fazer-saber), expres-são que também tem sua pertinência, mas que concerne outro campo como o da psico-se. E o savoir-faire não precisa de faire-savoir. No “savoir-faire ” existe uma determinação do fazer pelo saber, mas ela não se esgota. Longe disso, o sentido do traço da união en-tre ambos é também um traço de separação. Mas se o saber determina o fazer, tal fato não

diz de qual saber nem de qual fazer se trata, nem que o fazer se origina do saber. No que concerne ao resultado dessa associação de dois verbos, ele pode provir seja de um fazer sem muito saber, seja um saber sem muito fazer.

O exercício de um fazer pode produzir um saber, especialmente se o fazer possui valor de ato, levando em consideração que o gesto está associado a uma dimensão sig-nificante — por exemplo, no caso de César atravessando o Rubicão —, mesmo se du-rante o ato o sujeito não perceba o que está fazendo, pois ele está dividido pelo ato, ele o transforma, ele não é mais o mesmo antes e após o ato. A mudança de posição do sujeito modifica a sua relação com o saber. É o para-digma do ato analítico, o qual Lacan definiu como a passagem do analisante a analista. De maneira mais modesta, é também o efeito de qualquer ato falho, de todo engano,3 que pro-duz uma entrepercepção (entr’apercevoir) de uma dimensão significante que até então o sujeito desconhecia.

O fazer pode também encontrar sua ori-gem no saber. É o caso do discurso univer-sitário e de toda formação dita profissional, em que se coloca em prática um saber cons-tituído. A partir desse ponto de vista, o sa-voir-faire analítico é uma deglutição de um saber aprendido em e através de uma análise pessoal. Trata-se, então, de uma concepção livresca do saber, produzindo interpretações prontas para serem usadas (prêtes-à-porter). Ele se opõe a um saber proveniente de um agir.

Mas a dimensão do ato deve ser transmi-tida através de um saber que confere a sua dimensão significante ao fazer e lhe permite ser reconhecido como tal. Não saberíamos, então, estabelecer uma demarcação clara entre essas duas origens possíveis de um sa-voir-faire. É preciso se desvencilhar de uma

2. Em 1 de março de 1961, p. 210. Ele recoloca a ques-tão em seu seminário L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre, em 17 maio 1977 (LACAN, 2004, p. 124).

3. Termo em francês bévue, que significa engano co-metido por ignorância. (N.T.).

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O inapanhável objeto do savoir-faire na análise

posição binária entre saber e fazer, que é de-masiadamente generalizada. É o que fez La-can quando, ao escrever a fórmula do sujeito suposto saber, diferencia e articula o saber textual, lógico e topológico (o oito interior) e um saber referencial, “latente”, saber suposto, assim como o sujeito, nos significantes deste, aonde o “não sabido se ordena como estru-tura do saber” (LACAN, 2003, p. 248-250).

Tal como Freud nos lembra, devemos abordar cada “novo caso como se nada hou-véssemos adquirido de suas primeiras deci-frações” (LACAN, 2003, p. 249). Em outro momento, mas nessa mesma direção, ele anuncia que é “indispensável que o analista seja ao menos dois. O analista, para que os efeitos possam surtir é o analista quem, estes efeitos, os teoriza” (LACAN, 1974).

Permanecendo em uma oposição entre saber e fazer, não saberíamos encontrar a verdade do savoir-faire; ao mesmo tempo a noção contém uma originalidade e um valor que não devem ser perdidos de vista. Possi-velmente o laço entre o saber e o fazer não consiste em um laço de dois termos, e é pre-ciso ao menos poder atá-los com um terceiro termo. Propomos introduzir neste ponto os termos de gozo e lalíngua (lalangue).

No savoir-faire, o saber e o fazer não po-dem ser isolados como duas entidades ou dois elementos conjuntos que, de alguma ma-neira, complementariam um ao outro. Exis-te uma alienação, seja um fazer que, por um lado, exclui o saber e um saber que, por outro lado, exclui o fazer. Uma parcela do fazer ex-cede o saber, ou o antecipa, quando esse fazer produz um saber. Ao mesmo tempo, o fazer pode se mostrar falho com relação ao saber. A transferência ao analista depende do sig-nificante terceiro, mediador, “sujeito suposto saber”, mas isso pode reforçar a repreensão da falta de savoir-faire. Mesmo se um savoir-faire é emprestado ao analista, não é o que encontramos no princípio da transferência. Não saberíamos estender de maneira natural a fórmula do sujeito suposto saber em uma fórmula de um sujeito suposto saber fazer.

O lado do ato e do fracasso (ratage)O fato de evocar um savoir-faire em uma análise — e que ao fazê-lo a noção de ato é convocada — implica um possível fracasso. O possível seria, segundo Lacan, um cessar de se escrever. Sabemos que, desde Aristó-teles e sua contribuição à controvérsia dos futuros contingentes, que o que há de neces-sário é o possível. É possível que seja A ou B que vença a batalha naval amanhã, mas é necessário que seja ou um ou outro. As al-ternâncias ou pontuações, do cessar de se escrever e do não cessar de se escrever (assim como Lacan define o necessário [LACAN, 1982, p. 132) talvez sejam aquilo que separa a ação do sujeito suposto saber, como figura necessária, da do savoir-faire, como figura do possível da transferência.

Contrariamente à definição que busca que o savoir-faire seja identificado como ha-bilidade, a busca de obter sucesso naquilo que fazemos em uma análise, o savoir-faire se aproxima do risco, de uma possível falha, a aproximação e o fracasso, dimensões ligadas ao ato analítico. Nesse sentido, o savoir-faire é exatamente o contrário da aplicação prática de uma regra teórica universal. Ele não enal-tece o saber e não equivale a nenhuma habi-lidade técnica que seja, mesmo se tratando de algo bem-vindo.

É também o caso de outros domínios e não somente da análise, por exemplo, na arte. Fabricar um quadro não é pintar (COL-LINS, 2012).

Em Propos sur la peiture du moine citrou-ille-Amère (Anotações sobre a pintura do monge abóbora-amarga), Shih T’ao exempli-fica aquilo que ele chama de “um traço único do pincel”, familiar à caligrafia e à pintura, que vai bem além de regras técnicas de exe-cução. Ele representa um verdadeiro ascetis-mo:

Aonde se encontra a regra? Ela reside em um só traço do pincel. Em um só traço do pincel en-contra-se o principio de todas as coisas, a raiz

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O inapanhável objeto do savoir-faire na análise

de Dez Mil Fenômenos, isto é revelado aos Es-píritos, mas escondido dos homens, e o século o ignora. [...] A regra do traço único do pincel é a ausência de regra que produz a regra, e assim a regra obtida abrange o universal (T’AO, 1984, cap. I).[...]É na união entre o pincel e a tinta que se pro-duz o ato de pintura: “A tinta deve umedecer o pincel com a alma, o pincel deve utilizar a tinta com o espírito. [...] Realizar a união entre o pincel e a tinta, é resolver a distinção de yin e yun e se comprometer a ordenar o caos” (T’AO, 1984 cap. V, VII).

Em seu livro sobre um dos maiores pinto-res chineses, Chu Ta (1626-1705), amigo de Shih T’ao, Le génie du trait (O gênio do traço), François Cheng escreve:

Que se trate de caligrafia ou de pintura, na china, o gênio criador se resume sempre a este gesto único: traçar o traço. (...) Recordemos que para os chineses o traço não consiste em uma finalidade em si. Da mesma forma com que ele não seria percebido como uma simples linha. Ele é, ao contrário, uma entidade viva, impli-cada em uma estrutura global que pretende tratar do universo em toda sua toda a integra-lidade (chENg, 1986, p. 36-39).

Em função das grandes mudanças polí-ticas e familiares, Shu Ta se fechará em um mutismo absoluto, mas ele mostrará ter uma extraordinária energia criativa. François Cheng percebe que para ele o traço represen-ta a “voz de dentro”, ele “dá a palavra à suas imagens” (ChENg, 1986, p. 39).

Du tait (de taire) au trai il y a l’r. (Do si-lêncio ao traço, existe o r).

Essa experiência é preciosa para abordar-mos aquilo que Lacan chama de “lituraterra”, “a rasura de traço algum que seja anterior” (LACAN, 2003, p. 21), a mesma do traço unário. Ele modifica aquilo que havia apre-sentado em seu seminário A identificação (LACAN, 24 jan. 1962) formulando os três

tempos no advento do significante: o do tra-ço (do não), o da sua desmarcação, e o da anulação da desmarcação. Isso gera o adven-to do significante “não”: não há traço no não. Em Lituraterra, Lacan conta somente dois tempos, mas ele fala de uma rasura de tra-ço algum que seja anterior para apontar esse momento inapanhável “da metade sem par em que o sujeito subsiste”, e é a caligrafia que o presentifica:

O escoamento é o remate do traço primário e daquilo que o apaga. Eu lhe disse: é pela con-junção deles que ele se faz sujeito, mas por aí se marcam dois tempos. É preciso, pois, que se distinga nisso a rasura. Rasura de traço algum que seja anterior, é isso que do litoral faz terra. Litura pura é o litoral. Produzi-la é reproduzir essa metade ímpar com que o sujeito subsiste. Esta é a façanha da caligrafia. Experimentem fazer essa barra horizontal que é traçada da esquerda para a direita, para figurar com um traço o um unário como caractere, e vocês leva-rão muito tempo para descobrir com que apoio ela se empreende, com que suspensão ela se detém. A bem da verdade, é sem chances para um ocidental. É preciso um embalo que só con-segue quem se desliga de seja lá o que for que faça traço (raye).

Entre centro e ausência, entre saber e gozo, há litoral que só vira literal quando, essa virada, vocês podem tomá-la, a mesma, a todo ins-tante. É somente a partir daí que podem to-mar-se pelo agente que a sustenta. (LAcAN, 2003, p. 21)

Vemos que o savoir-faire não se reduz a uma habilidade técnica e que um savoir-faire em diferentes domínios pode produzir efei-tos análogos, e nesse ponto, uma virada entre saber e gozo.

Não é exatamente do que se trata o savoir-faire? Saber fazer uma curva entre saber e gozo? Não seria o gozo o terceiro termo que faria traço entre saber e fazer? O único traço de pincel como o traço unário?

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O inapanhável objeto do savoir-faire na análise

O savoir-faire pode ser ensinado?O savoir-faire é transmissível como na arte ou no artesanato? Mais precisamente, quais seriam os elementos do savoir-faire que po-deriam constituir objeto de uma transmis-são? E como?

Não me parece contestável o fato de que o savoir-faire possa ser ensinado durante uma análise, assim como tudo o que se encontra ao redor dela, supervisões, apresentações de paciente, cartéis, passe... É o que então tor-naria o savoir-faire indispensável, mas limi-tado, pois a transmissão de um savoir-faire analítico não é a transmissão da psicanálise, concebida como um saber sobre a passagem da posição de analisante à posição de analis-ta. É nesse sentido que o savoir-faire pode se converter em uma sugestão e, então, reduzir a psicanálise a uma espécie de psicoterapia.

Ao publicar A interpretação dos sonhos, Freud esperava, entretempos, produzir um “manual” de interpretação, um guia de sa-voir-faire das interpretações dos sonhos, que poderia ser utilizado por qualquer pessoa. É por isso que ele buscará da forma mais abrangente possível contribuições de outros analistas, as quais foram incluídas ou não em sua obra, em uma história complicada (MA-RINELLI; MEyER, 2009). Porém, rapida-mente ele se dará conta de que um manual não poderia substituir uma análise pessoal, com um terceiro. Todavia, foi preciso espe-rar 1918 para que hermann Nunberg reco-mendasse de antemão a análise pessoal para exercer a psicanálise, e 1925 para que a IPA tornasse tal recomendação obrigatória, o que inscreveria o vínculo entre a análise pessoal e a aquisição de um savoir-faire. Ao mesmo tempo que Freud se sentia livre com rela-ção às regras enunciadas, ele declara que a psicanálise não pode ser ensinada em livros (FREUD, 1974). Nos dias de hoje, a necessi-dade de uma análise pessoal para exercer a psicanálise é um consenso, embora as razões não sejam sempre as mesmas.

Não seria questão de reduzir a análise do analista nem suas conexões, supervisões, ao

aprendizado de um savoir-faire. Conceber as coisas dessa forma consistiria em perma-necer em um modelo de análise enquanto formação profissional. Mesmo sendo difícil para cada um poder dizer em que a análise pessoal contribui para o aprendizado do sa-voir-faire, ela será útil ao analisando se ele se tornar analista.

Essa foi uma questão colocada durante um colóquio organizado em novembro de 2011 pela EPFCL4: “Enquanto alguém que pratica a psicanálise, o que você obteve do analista que Lacan foi para você?”5 Tentando responder a essa questão, comecei ressaltan-do a dificuldade:

Quais pontos eu irei distinguir em Lacan, irei ler em sua prática para afirmar que eles tive-ram tal ou tal efeito na minha prática? Seria eu capaz de representar aquilo que opera na mi-nha prática? E simultaneamente relatar algu-ma coisa precisa de minha análise com Lacan? Assim mesmo, quando eu conseguir estabelecer esta relação de elementos, permanece somente o conjunto de traços que “recebi” com outros traços próprios que farão com que tais traços não possuam mais o mesmo valor e não se-rão mais identificáveis enquanto recebidos, ao menos que eu não me dê conta.6 O recebido é um re-sabido daquilo que não me dou conta (PORgE, 2012, p. 41).

Colocados tais limites, retive, entretanto, certos traços que poderiam entrar no quadro daquilo que definiria um savoir-faire. Que fi-que entendido que não é porque retivemos que os dominamos, e existe uma distância entre aquilo que se representa de um savoir-faire e aquele que o opera. Vejamos, resumi-dos, três desses traços.

4. Ecole de Psychanalyse des Foruns du Champ La-canien.5. Publicado em: champ Lacanien, Revue de Psycha-nalyse, Paris, n. 11, maio 2012, École de Psychanalyse des Foruns du Champ Lacanien.6. Termo em francês insu significa “sem se dar conta”. (N.T.).

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O inapanhável objeto do savoir-faire na análise

Um valor do savoir-faire que a análise me ensinou é a do tato. Freud já havia mencio-nado em “A psicanálise dita selvagem”: “Na psicanálise, essas regras estritas viriam subs-tituir uma inapanhável qualidade que exige um dom especial: o “tato médico” (FREUD, 1974, p. 41).

Rudolph Loewenstein é um dos poucos a ter escrito um artigo inteiro consagrado ao tato na análise. Ele nos alerta especialmente contra duas preocupações que, por mais legí-timas que sejam, podem prejudicar o proces-so de análise: uma curiosidade muito grande em conhecer os pequenos detalhes da histó-ria do paciente e um zelo terapêutico que o torna impaciente. Ele também teve o mérito de acrescentar:

Uma grande parte das intervenções dos ana-listas, entre elas, as que pecam contra o tato psicológico, possuem uma base em comum. É a transgressão da terapêutica analítica a um estado da psicoterapia mais primitiva, aquela que age sobre os pacientes através de bons con-selhos, pelo chamado à vontade e pela persua-são (LOEwENSTEIN, 1930-1931).

Lacan, que fora analisante de Loewens-tein, reconhecia também o valor dessa qua-lidade, atribuindo-lhe a seguinte definição: não se apoiar muito nos significantes que fa-zem mal, manejá-los com discernimento em sua literalidade.

A análise também me ensinou o valor de um savoir-faire com as relações interior--exterior, sem abolir a distinção entre pri-vado-público, mas introduzindo nessa rela-ção uma terceira dimensão, uma dimensão analisante passando ao público. Com Lacan, uma exterioridade se mostrava convidativa no próprio consultório do analista. Ela po-deria ocorrer mesmo sem ele, mas ele pode-ria também — com seu estilo inimitável, mas que ensinava através das surpresas que ele provocava — modelá-la, ou seja, demons-trar um savoir-faire avec (saber-fazer com): isso acontecia no encontro com outros ana-

lisantes no consultório do analista, por um trabalho comum com eles nas instituições, pela participação nos seminários e, sobretu-do, nas apresentações de paciente de Lacan e de outros analistas. Poderíamos dizer que isso introduzia uma dimensão de passe na própria análise e instaurava, assim, o analista como passador de um discurso, o que é uma maneira de conceber que o analista seja ao menos dois.

Finalmente, mas a lista não é exaustiva, se existe uma coisa que a análise pode ensinar e que alimenta um savoir-faire, é a disponibili-dade do analista, disponibilidade à demanda de escutar e à própria escuta, que ao encon-tro do valor da paciência, frequentemente subestimado.

Essa disponibilidade não é um dom, ela é uma disposição, ou seja, uma posição do analista, que separa, diferencia, discerne (o dizer).7 A dis-posição do analista responde a uma su-posição em que o objeto é o objeto que prepara a sua de-su-posição do saber no final da análise. Por vezes, ela permite pro--posições que são atos.

A disponibilidade do analista encontra sua expressão na regra fundamental enun-ciada por Freud, a da atenção igualmente em suspenso, a gleichschwebende Aufmerksam-keit.8 Nessa expressão, o gleich implica uma continuidade (a atenção) enquanto o schwe-bend se aproxima mais de uma descontinui-dade (o suspenso). É na verdade uma regra de in-atenção, tal como entendeu Theodor Reik em Le psychologue surpris. Relaxando a sua atenção, desviando-a de um ponto fixo, esperado, voluntário, colocando-se em esta-do de inatenção, o analista se torna recepti-vo ao Einfall, à ideia súbita, à surpresa que é característica do inconsciente. “Este proces-so de relaxamento momentâneo da atenção e do desvio de interesse em outras direções

7. Em francês dis. (N.T.).8. Para esta tradução e seu comentário, cf. PORgE, E. Des fondements de la clinique psychanalytique. Tou-louse: Erès, 2008, chap. V.

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com o retorno consecutivo do objeto prepa-ra a surpresa” (REIk, 1976, p. 75-78). A re-gra visa impedir que possamos compreender muito rápido os dizeres do analisante e co-locá-los em pequenas caixas interpretativas já prontas; a regra favorece a receptividade da surpresa do discurso, inclusive as que vêm do analista, como em caso de lapso auditivo (Verhören) que revela o dizer no que foi ou-vido (CLAVURIER, 2003).

Muito mais que uma regra técnica, trata-se, podemos ver, de uma posição ética fun-dada no aparecimento repentino descontí-nuo, ao imprevisto, sem que esperemos, das formações do inconsciente. Elas aparecem repentinamente e desaparecem logo que aparecem, na estrutura temporal da escan-são, da batida de uma abertura (LACAN, 1979, p. 33).

A regra da atenção igualmente em sus-penso se aproxima da regra à qual Descar-tes se submeteu, de colocar em suspenso os saberes constituídos e de onde surgiu o co-gito enquanto uma espécie de Einfall, muito mais como um julgamento dedutivo; é o que o torna vizinho do sujeito do inconsciente, permitindo ser retomado por Lacan.

A atenção igualmente em suspenso dos saberes constituídos é, então, um fundamen-to do savoir-faire. Neste sentido o savoir-fai-re não se trata de uma soma de saberes de experiência. Ele visa o contrário, ir contra as armadilhas da compreensão ligada à ex-periência. O savoir-faire se revela nessa dire-ção tal como um savoir-ne-pas-faire (saber--não-fazer), uma suspensão do savoir-faire. A atenção igualmente em suspenso tem uma função de corte, logo, de pontuação, que dará sentido ao discurso. Ela é a colocação em ato do silêncio, e ela é da mesma ordem da pontuação na sessão.

Ressaltamos que François Jullien aproxi-mou a disponibilidade freudiana àquela que constitui a base da sabedoria chinesa, para quem a disponibilidade é “uma disposição sem posição adotada”, que leva a um des-prendimento progressivo. O “conhecimento”

chinês é não tanto buscar ter uma ideia do que se torna disponível à “(cf. Xunzi, chap. “Jiebi”)” (JULLIEN, 2012, p. 36-42). A dis-tância entre a psicanálise e a sabedoria, chi-nesa ou não, continua preservada, mas a reconciliação com esse ponto merece nossa atenção... suspensa.

A referência à atenção igualmente sus-pensa nos permite afirmar que o savoir-faire se apoia essencialmente no manejo do tempo assim como no manejo do dizer. Os dois es-tão relacionados (LACAN, 1977).9 Não basta que uma intervenção na análise seja exata, justa. Ela deve ocorrer no bom momento e ser colocada de uma boa maneira. Sabemos que Freud nos lembra o provérbio dizendo que o leão salta somente uma vez (FREUD, 1975, p. 234); todavia, não se trata de todas as interpretações, trata-se daquelas que são “violentas” na questão da fixação de um ter-mo na análise (o que Freud fizera com o ho-mem dos lobos).

Mesmo sem se tomar por um leão, o ana-lista sabe que o efeito de uma intervenção de sua parte depende de sua posição na trans-ferência e do tempo lógico em que ele se si-tua. O termo suspenso nos leva diretamente ao tempo lógico, pois é após duas escansões suspensivas que a asserção de uma certeza pode ser enunciada. Ela é então antecipada na pressa, no momento de concluir que está articulado ao instante de ver e ao tempo por compreender (ao qual podemos assimilar a perlaboração freudiana).

Se a compreensão daquilo que é dito em análise deve ser colocada em suspenso, é porque, assim como no tempo lógico, ela se funda em uma não compreensão, que encon-trará o seu término somente na antecipação, na pressa do momento de concluir. Ela acon-tece no après-coup do momento de concluir.

Não basta pronunciar a palavra kairos para saber captar o bom momento da interpreta-ção. Existem vários kairos no tempo lógico.

9. Le moment de conclure, 15 nov. 1977. Inédito: Le dire a affaire avec le temps.

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O leão salta várias vezes, de maneira diferen-te, segundo os tempos lógicos e a topologia que correspondem a ele, o que Lacan identi-ficou à garrafa de klein (LACAN, 1965). Na relação do sujeito ao Outro, em que a gar-rafa de klein oferece uma costura possível, o espaço se encontra em duas dimensões, e o tempo, em três. A sincronia do momen-to de ver é a da linguagem como sistema; a diacronia do tempo para compreender é a da progressão circular da demanda em tor-no daquilo que produz um furo, progressão onde o sentido se inverte em um momento; enfim, o momento de concluir em torno do furo é aquele de uma identificação que não se encontra fundada numa identidade em si, mas o contrário, numa incomensurabilidade ao um.

O suspenso que determina o tempo da interversão da análise opera também, neces-sariamente, em sua maneira de dizer. Ele não deve dizer muito, nem de uma maneira qual-quer; a interpretação deve ser ágil.

Em nenhum caso uma intervenção analítica deve ser teórica, sugestiva, ou seja, imperativa, ele deve ser equivocada. A interpretação ana-lítica não é feita para ser compreendida; ela é feita para produzir ondas. Então devemos bus-car ser discretos e nos lembrar que é melhor ca-lar-se; basta somente escolher (LAcAN, 1976, p. 35).

Além do senso, a interpretação nos re-mete à distinção do dito e do dizer. “Eu não te faço dizê-lo. Não reside aí um mínimo de intervenção interpretativa?” (LACAN, 2003, p. 492).

Após a introdução do termo lalíngua em novembro de 1971,10 Lacan cerne ainda mais

a maneira pela qual os analistas podem inter-vir. Lalíngua tece as palavras e os sintomas, ela é composta do “integral dos equívocos que uma história deixa persistir” de uma lín-gua entre outras assim que de uma parte de gozo fálico (LACAN, 11 jun. 1974). Lalíngua inclui a dita língua materna com uma parcela estritamente individual. É por essa razão que “a interpretação deve sempre — da parte do analista — levar em conta que naquilo que é dito, existe o sonoro, e que este sonoro deve consonar com aquilo que dele é de incons-ciente” (LACAN, 1976, p. 50).

De outra maneira, é em função da la-língua que em Les non-dupes errent Lacan situa novamente a atenção igualmente em suspenso:

[…] colocarmo-nos neste estado dito pudica-mente de atenção flutuante que faz com que justamente quando o parceiro, lá, o analisante, ele mesmo emite um pensamento, nós podemos ter um outro, o que é um feliz azar de onde se produz um flash; é justamente lá onde a inter-pretação pode se produzir; quer dizer que, de-vido ao fato de termos uma atenção flutuante, nós escutamos o que ele diz muitas vezes do fato de uma espécie de equívoco, quer dizer, de uma equivalência material. Nós percebemos o que ele disse — percebemos, pois somos subme-tidos a isso — que isto que ele disse poderia ser

10. LACAN, J. Séminaire Le savoir du psychanalyste (O saber do psicanalista). Esse seminário foi feito na capela de Sainte-Anne, no mesmo ano mas em alter-nância com o Seminário …Ou pire, que aconteceu na Faculdade de Direito do Panthéon. Jacques-Alain Miller achou melhor publicar, no Seuil, em 2011, uma

parte do Savoir du psychanalyste, à parte, sob o título Je parle aux murs (Eu falo aos muros) e de incluir o outro no Seminário …Ou pire, o que mistura as pis-tas de leitura para os dois seminários. C.f; editorial no site de Essaim. Por um estudo das questões levantadas sobre o termo “lalangue”, cf. Dominique Simonney, “Lalangue en questions”, Essaim, n. 29, outono 2012. Esse número se intitula precisamente ce qu’on doit à lalangue (O que devemos à lalingua) e contém vá-rios outros artigos sobre o tema, de Jean-Pierre Cléro, Frédéric Pellion, Simone Wiener, Mary McLoughlin, Paul henry, Paul Alérini.

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escutado de forma completamente atravessa-da. E é justamente o escutando de forma com-pletamente atravessada que permitimos que ele perceba de onde vêm seus pensamentos, sua semiótica, de onde ela emerge: ela emerge de nada além do que a ex-istência (ek-sistence) da lalíngua. Lalingua ex-iste, ex-iste em ou-tros lugares além dos quais ele acredita ser seu mundo (LAcAN, 11 jun. 1974)

Savoir-faire do analisante, savoir-faire com a lalínguaChegando neste ponto, devemos nos per-guntar se não deformamos nossa aproxima-ção do savoir-faire privilegiando a parte do analista e desse fato favorecendo uma linha muito próxima de uma habilidade deste úl-timo em passar sua “direção” da cura para o progresso da análise, a fim de obter aquilo que Freud chama de “a convicção certa da existência do inconsciente” (FREUD, 1975, p. 264) e para “realizar o trabalho psíquico que irá conduzir [o paciente] necessaria-mente a melhorar de maneira durável sua condição psíquica” (FREUD, 1975, p. 58).

O savoir-faire também não deve se situar do lado do analisante ? E, além disso, não se-ria de situá-lo do lado de uma subjetividade, seja ela do analisante ou seja ela do analista?

O que temos que aprender com o anali-sante de seu próprio savoir-faire é, na verda-de, o que Lacan evoca inúmeras vezes. Por exemplo, em suas conferências nos Estados Unidos:

[...] é com meus analisantes que aprendo tudo, que aprendo o que é a psicanálise. Eu empresto a eles minhas intervenções, e não meus ensina-mentos, exceto se eu sei que eles sabem perfei-tamente o que isto quer dizer (LAcAN, 1976, p. 34).

Em seu seminário sobre os problemas cruciais da psicanálise, ele é ainda mais pre-ciso:

Trazer o paciente a seu fantasma original, não

é fazê-lo aprender: é aprender dele como fazer. O objeto a e sua relação, em um caso determi-nado, à divisão do sujeito é o paciente que sabe fazer e nós estamos no lugar dos resultados na medida em que os favorecemos (LAcAN, 19 maio 1965).

Se existe um savoir-faire do analista, ele consiste em favorecer o resultado, que é o analista, resultado do savoir-faire do anali-sando.

Passando do fantasma ao sintoma, Lacan considera em seguida o fim da análise como um savoir-faire do analisante, um “saber fa-zer com o seu sintoma”, um “saber lidar com ele, saber manipulá-lo”, “algo que correspon-de ao que o homem faz com a sua imagem” (LACAN, 2004, p. 49-50). “Manipulá-lo”: ainda é preciso tato.

É um savoir-faire com o seu sintoma que encontra o limite de uma identificação ao sintoma, que se pode definir como o limite que encontra a análise do sintoma, seja ele um limite às substituições que dão suporte ao sintoma como metáfora. É um limite aos confins do simbólico e do real; ele chega até a análise do sintoma e faz borda no real do traço unário, quer dizer, no “mesmo”, nisso que ocupa o mesmo lugar, que se sobrepõe, segundo o fecho duplo (la double boucle) deste. Lá se efetua, entre gozo e saber, uma transformação de litoral a litoral com um de-pósito, uma precipitação da letra do sintoma (PORgE, 2010, p. 118-119, 128-129, 133, 154).

A virada nesse passe é o próprio lugar do savoir-faire. E lá ele tem algo a fazer com a lalíngua:

Lalíngua é o que permite o querer (anseio), consideramos que não é por acaso que assim seja o quer de querer, terceira pessoa do indica-tivo, que o não (non) negativo e o nome (nom) nominativo também não são por acaso; nem que deles (d’eux) (d apostrofo antes deste eles [eux] que designa aqueles dos quais se fala) seja feito da mesma maneira que o numero

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dois (deux), também não é por acaso e mui-to menos arbitrário, como diz Saussure. O que se deve conceber aí é o depósito, o aluvião, a petrificação que se marca a partir do manejo por um grupo de sua experiência inconsciente (LAcAN, 1974, p. 189).

Existe uma questão importante, que curiosamente não perguntamos nunca, que é esta do significado deste “não é por acaso”, que Lacan repete também em um outro tex-to.11 Ele não volta a uma etimologia comum. Então o quê? Se não é por acaso, é porque há uma razão. Qual razão? A réson, esta que res-soa, segundo as palavras de Francis Ponge, revisitado por Lacan que vai até questionar: “Isto que ressoa é a origem da re (res) com a qual fazemos a realidade?” (LACAN, 2011, p. 93). Um eco, uma ressonância primitiva, uma unidade que seria fixada e multiplica-da em várias palavras. Um eco12 teria envia-do uma ressonância comum (comme une) a várias palavras, a vários sons. Trata-se de um processo que nos faz pensar naquele de Jean-Pierre Brisset (que inspira Marcel Du-champ). Em A ciência de Deus ou a criação do homem, ele escreve que “a origem de cada língua está nesta língua mesma e define as-sim “a grande Lei ou chave do discurso”:

Existem no discurso inúmeras Leis, desconhe-cidas até agora, entre as quais a mais impor-tante é a que um som ou uma cadeia de sons idêntica, inteligível e clara, possa exprimir coi-sas diferentes, por uma modificação na manei-

ra de escrever ou de compreender esses nomes ou palavras. Todas as ideias enunciadas com sons semelhantes têm uma mesma origem e se relacionam todas, dentro de seu princípio, a um mesmo objeto. São eles os seguintes sons:Les dents, la bouche (os dentes, a boca)Les dents la bouchent. (os dentes a entopem)L’aidant la bouche. (ajudando a boca)L’aide en la bouche. (a ajuda na boca)Laides en la bouche. (feios na boca)Laid dans la bouche. (feio na boca)Lait dans la bouche. (leite na boca)L’est dam le à bouche. (é a barragem à boca)Les dents-là bouche (os dentes la na boca)13

(BRISSET, 2001, p. 702)

A mudança para a ciência-ficção aparece quando Brisset afirma que a origem do dis-curso é feita apenas da criação do homem e que “pela análise das palavras iremos então escutar falar dos ancestrais que vivem em nós e por quem vivemos”, estes ancestrais sendo os sapos e as rãs que coaxam, o coá, coá transformando-se no quoi? quoi? (o quê? O quê?) humano.

Como nota Michel Foucault, “estamos no oposto do processo que consiste em procurar uma mesma raiz para várias palavras: trata-se, por uma unidade atual, de ver proliferar os estados anteriores que vieram cristalizar-se nela”. “A pesquisa de sua origem, segundo Brisset, não cinge a língua: ela a decompõe e a multiplica por ela mesma”. É um princípio de proliferação.

Uma palavra é o paradoxo, o milagre, o ma-ravilhoso azar de um mesmo som que, por ra-zões diferentes, por pessoas diferentes, vivendo coisas diferentes, é retido ao longo de uma his-tória. É a série improvável do dado que, sete

11. LACAN, J. Conférence à genève sur le symptôme (Conferência à genebra sobre o sintoma), Le bloc-no-tes de la psychanalyse, n. 5, genève, 1985, p. 12: “Ce n’est pas du tout au hasard que dans lalangue quelle qu’elle soit dont quelqu’un a reçu la première empre-inte, un mot est équivoque. Ce n’est certainement pas par hasard qu’en français le mot ne se prononce d’une façon équivoque avec le mot nœud. Ce n’est pas du tout par hasard que le mot pas, qui en français redou-ble la négation contrairement à bien d’autres langues désigne aussi un pas”. 12. Cf. PORgE, E. Voix de l’écho. Toulouse: Erès, 2012.

13. BRISSET, J.-P. La science de Dieu ou la création de l’homme (1900), dans Œuvres complètes, sous la direc-tion de M. Décimo, Dijon, Les Presses du Réel, 2001, p. 702. Repris dans Les origines humaines (1913), dans Œuvres complètes, op. cit., p. 1130.

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vezes seguidas, cai do mesmo lado. Pouco im-porta quem fala, e, quando fala, por que fala, e utilizando qual vocabulário: os mesmos ba-rulhos, invariavelmente, retidos (FOUcAULT, 2001, p. 604-606).

A ex-istência (ek-sistence) dessa lalíngua faz borda com o delírio. Este pode encontrar seu suporte mas também uma forma de limi-te se nos referimos a Schreber, que quer tor-nar as vozes dos pássaros milagrosos como um sentimento autêntico fazendo-os entrar no painel da homofonia, ou ainda a Louis Wolfson, que se serve também da lalíngua (o entrelínguas) para tentar, e conseguir relati-vamente, fazer barragem às suas vozes.

Essa função de limite ou de borda da la-língua não é sem relação com a função da le-tra como Lacan a faz evoluir, especialmente no que faz mudança no litoral, entre saber e gozo, literalmente (LACAN, 2003, p. 16). Precisamente, na passagem citada acima, La-can fala de “depósito” e de “petrificação” em relação à lalíngua.

O termo “depósito” já aparecia no L’étour-dit (LACAN, 2003, p. 490). Ele se relaciona com a “precipitação” da letra, que também aparece na La troisième: “Não há letra sem a lalíngua [...]. Como é que a lalíngua pode se precipitar na letra? Isto continua como ques-tão” (LACAN, 1974, p. 194).

Talvez a resposta se encontre na confe-rência de genebra sobre o sintoma: Lacan re-corre à metáfora do coador (já presente em kant) que peneira o escoamento da água da lalíngua, depositando os detritos, os peda-ços de significantes aos quais a linguagem se amarra, o coador causando as precipita-ções de letras, de traços unários na lalíngua. A passagem de uma língua a outra, o passe, seria variações do coador da letra, que por seus buracos deixa passar o Um, o S1, o traço unário incarnado na lalíngua e que continua indeciso entre fonema, palavra, frase ou em todo o pensamento, este Um que o pedaço de barbante de um nó borromeu suporta (LA-CAN, 1982, p. 131).

No final de seu Seminário Mais, ainda, Lacan já avançava que:

A linguagem sem duvida é feita da lalíngua. É uma elocubração de saber sobre a lalíngua. Mas o inconsciente é um saber, um savoir-faire com a lalíngua. E isto que sabemos fazer com a lalíngua ultrapassa de muito o que podemos nos dar conta a título de linguagem (LAcAN, 1982, p. 127).

Desse ponto de vista, podemos dizer que Louis Wolfson procede a uma tentativa de domar a lalíngua e que ele tem sucesso ao identificá-la a seu sintoma (WOLFSON, 1970).

“Isto que sabemos fazer com a lalíngua” pertence tanto ao analisante quanto ao ana-lista, e mesmo mais ao analisante que ao analista, pois é ele quem fala. O analista pode querer se dar conta a título da lingua-gem, mas ele será sempre ultrapassado pela lalíngua do analisante. E se ele mesmo fala, ele torna-se novamente analisante. Um ana-lisante que pode eventualmente produzir do analista... para o analisante.

O savoir-faire é atado ao parlêtre, esse que fala sem ser, pois seu ser só se retém à pala-vra. A análise permite ao analista aprender algo de um savoir-faire do analisando, do sa-voir-faire com a lalíngua que ele (o analista) escuta e age (o analisante).

O savoir-faire é possível, mas esse possí-vel se mostra necessário; seu objeto é esqui-vo, ele é um fio com o qual se delimita o objeto.

Longe de ser herdeiro da experiência, o savoir-faire vai contra a experiência, ele é an-tes de qualquer coisa um saber-não-fazer e um não saber fazer ligado à experiência. Ele é uma suspensão do saber e do fazer, mo-mento de sua escansão. Ele é um saber des-fazer (o que é chamado de análise). Desfa-zer a submissão ao sentido. Ele é o que de mais íntimo da prática toca ao mais real do inconsciente como o impossível a dizer nos dizeres que falam dele.

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AbstractOver and above technical rules, know-how derives from an ethical position. Tact and re-ceptiveness are its constituent parts. It finds expression in the rule of equally suspended attention which guards against a hasty un-derstanding of what is said, preferring sur-prises as signs of the unconscious. The rule indicates also that know-how is linked to the notion of time and its handling as well as to the existence of lalangue. Know-how howe-ver is not only in the realm of the analyst. The analysand too must find how to do with his fantasies and symptom. Finally, is know--how always to be attributed to a subjectivity, be it that of the analyst’s or the analysand’s, insofar as the unconscious is know-how with lalangue?

Keywords: Know-how, Attention, Lalange.

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RECEBID O EM: 12/09/2013APROVAD O EM: 20/09/2013

s ObR E O Au tOR

Erik PorgePsicanalista em Paris. Foi membro da EFP (Ecole Freudienne de Psychanalyse) até a sua dissolução. Membro da Associação de Psicanálise Encore. Foi responsável por um CMP (Centro Médico Psicológico) para crianças e adolescentes. Autor de vários livros, traduzidos em outros países, dirige a revista Essaim.

Endereço para correspondência1, Rue Mizon75015 - Paris/França Tel. (33)1 43 22 14 44E-mail: [email protected]

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O inapanhável objeto do savoir-faire na análise

Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 63–70 | Dezembro/2013 63

Holograma dinâmico recursivo para uma teoria topográfica da relação psicanalítica

Uma narrativa complexa

Qualquer pessoa que se dedique ao desenvol-vimento científico de hipóteses começa a con-siderar as suas próprias teorias de forma séria apenas quando estas podem ser inseridas no conhecimento a partir de mais de um ponto de vista.

sigmund freud

Este trabalho é uma “representação dinâmi-ca e virtual” do campo analítico intersub-jetivo. No momento presente, os conceitos energéticos, econômicos e espaciais da psi-canálise clássica abrem espaço para o “mo-delo virtual do holograma recursivo, o qual requer — apenas no início — o estudo da relação analítica a partir do vértice narra-tológico”. Assim sendo, o modelo virtual direciona a psicanálise relacional para um

Holograma dinâmico recursivo para uma teoria topográfica da relação psicanalítica

Dynamic Recursive Hologram for a Typographical Theory of Psychoanalytical Relationship

Gabriele LentiTradução: Otavio A. Peixoto, B.A., M.A.

ResumoA função narrativa do inconsciente com o intuito de unir a angústia da incerteza e do caos. A narrativa psicanalítica como uma intertextualidade em que tanto paciente quanto analista são coautores, emissor e receptor que mutuamente criam um texto aberto, mas não anárquico. Texto produzido à semelhança da criação poética e a da arte moderna. O trabalho artístico e da relação analítica assumem uma natureza holográfica em que o todo e as partes se encon-tram em uma relação em que cada ponto do objeto repete o todo. Cada vez que o emissor, seja paciente, seja analista, oferece seu material de uma forma ligeiramente diferente do que o receptor tinha em mente, se estabelece uma incerteza que desorienta e conduz que se recon-sidere a mensagem.

Palavras-chave: Narrativa psicanalítica, Emissor e receptor, Obra aberta, Relação paciente/analista

novo contexto epistemológico. A chave para a leitura do meu trabalho é o modelo “pós-bioniano”, e os critérios descritivos são de natureza teórica e clínica. De acordo com Grotstein,

[...] o inconsciente mostra uma função narra-tiva; ou seja, uma tendência ou inclinação à narrativa e à pesquisa relativa à narrativa que descreve [...] eventos vindouros e experiências pessoais, bem como buscas por [...] histórias, mitos e romances com o intuito de unir a an-gústia da incerteza e do caos (GRoTsTein, 2010, p. 64).

Investigada à luz dessa ótica, a mente se revela tanto como um sistema quanto como um evento. Trata-se de um sistema na medi-da em que é constituída por uma rede de ele-mentos fortemente interconectados, os quais são propostos como repetitivos e regulares;

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mas ela é também um evento, na medida em que é um fenômeno acidental e singular que evolui ao longo do tempo. Lucio Russo (2009) nos lembra que Freud já havia reco-nhecido essa característica dupla da natureza da mente. Freud afirmou que

[...] nós esquecemos com muita facilidade que tudo em nossas vidas ocorre por acaso [...] o acaso que, no entanto, tem o seu papel no con-junto das leis e das necessidades da natureza e que não tem relação apenas com os nossos desejos e nossas ilusões (FReUD, 1974, p. 276).

Uma vez dito isto, podemos afirmar que o estudo da narrativa analítica pode ser feito a partir de um vértice semiótico complexo; o que nos leva a questionar-nos acerca da in-terpretação do sistema-texto dos dois prota-gonistas da análise em termos da cooperação entre a explicitação (emissão) e a compreen-são (recepção).

O modelo comunicativo do consultório desenvolve-se a partir da primeira comuni-cação entre a mãe e o recém-nascido, a qual é eficaz na medida em que a criança nasce equipada com o “equivalente homólogo ou emocional da sintaxe gerativo-transforma-cional de Chomsky. Em outras palavras, a criança nasce como uma entidade semióti-ca real e é capaz de comunicar-se por inter-médio de impulsos e sinais” (GROTsTEIN, 2010, p. 300). O que se revela na análise é um “texto-dueto” que conta; ou seja, ele torna possível a comunicação de uma mensagem articulada, em uma tarefa orientada de for-ma inequívoca à transmissão de conheci-mento. Nessa conversa, a voz da narrativa é primordialmente a voz do paciente, ainda que ela seja construída “tanto pelo paciente quanto pelo analista, através do jogo de re-flexões mútuas de ambos, bem como de su-posições e de disfarces” (ARRIGONI; BAR-BIERI, 1998, p. 5); e também porque “o ‘ana-lista’ está armado com um corpo de teorias que constituem o andaime para a atividade do pensamento” (GROTsTEIN, 2010, p. 58).

Neste ponto, Wilfred Bion sugere que deve-ríamos não apenas escutar as manifestações do hemisfério direito apropriado ao desen-volvimento de emoções, mas também seguir as informações do hemisfério esquerdo, que fornece a disciplina e o rigor que são neces-sários à compreensão (BION, 1973).

Assim sendo, o código de interpretação é absolutamente fundamental ao conhecimen-to, ainda que a sua utilização tenha que ser inserida em um procedimento sensível à “ca-pacidade negativa”; ou seja, à exposição à in-certeza. A narrativa analítica apresenta não somente essas afinidades com a narrativa literária; na verdade, tanto para a criativida-de artística quanto para a análise, é essencial que se mostre alguma regressão das funções do ego. “Na fantasia e no sonho, em estados de intoxicação e fadiga, a regressão funcio-nal reveste-se de uma importância singular; em particular, ela caracteriza o processo da inspiração” (KRIs, 1967, p. 252.). Outro ele-mento que é comum às narrativas artística e analítica é a recuperação da linguagem in-fantil que se encontra dentro de nós.

Contudo, um elemento de diferença se relaciona ao fato de que a comunicação psi-canalítica é realizada de forma “presencial”, ao passo que a comunicação literária se de-senvolve de modo “ausente”. Entretanto, é realmente necessário extrair da cooperação aquilo que o texto não diz com clareza, mas deixa de maneira implícita, a fim de que as suas lacunas sejam preenchidas. Essencial-mente, é possível estudar a maneira e as con-dições nas quais a “intertextualidade” é rea-lizada. Isso acontece porque o discurso ana-lítico em ambas as direções (“analista versus paciente” e “paciente versus analista”) utiliza o leitor como coautor do arcabouço gerativo do texto.

Dessa forma, por analogia com a tese nar-ratológica contemporânea, pode-se dizer que temos um trabalho aberto, que deve levar em consideração as necessidades semânticas e pragmáticas do trabalho propriamente dito. Não há análise dos traços significativos en-

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volvidos que já não implique um significado daquilo que é expresso. Basicamente é neces-sário que se insira o leitor no texto, qualquer que seja o vértice de análise do qual se deseje observá-lo.

O estudo do texto compartilhado na aná-lise detecta uma operação que sempre ocorre quando os falantes interagem: eles inserem significados intertextuais que permitem ao receptor tomar uma decisão interpretativa. Isso ocorre na medida em que a fala possui um significado virtual que nos permite vis-lumbrar o contexto de referência do ato co-municativo. Portanto, podemos concordar com Umberto Eco (1979) quando ele afirma que o texto é intercalado com aquilo que não é dito; ou seja, com conteúdos que não são óbvios na superfície do texto, mas que estão presentes na compreensão e na interpreta-ção. Isso não significa, todavia, como Peir-ce talvez tivesse dito, que o leitor (receptor) esteja livre para atribuir qualquer conteúdo ao texto expresso. Muito pelo contrário, um nível de significado está inscrito no texto, o qual é restrito pela estrutura do texto pro-priamente dito. Assim sendo, o leitor deve atualizar o conteúdo por meio de uma sé-rie indefinida de movimentos cooperativos. O texto precisa ser interpretado, até certo ponto, de forma unívoca, para o benefício dos leitores, os quais, dessa maneira, não se sentem como se estivessem à deriva em uma torrente de significados.

Não deveríamos nos esquecer, contudo, de que os códigos linguísticos jamais são os mesmos entre o receptor e o emissor, de onde surge a necessidade de cooperação por intermédio de um sistema de operações hi-potéticas que percorram ambas as direções da comunicação. A fim de decodificar um texto, portanto, é essencial que se disponha de uma habilidade “circunstancial” que esti-mule suposições interpretativas, bem como implicações e jogos linguísticos que sejam úteis à compreensão.

De acordo com Umberto Eco (1979), é necessário que o resultado da interpretação

faça parte da bagagem cognitiva do trans-missor, o qual seleciona aquilo que o leitor necessita saber com o intuito de alcançar o nível da compreensão. É importante que o emissor possa fornecer um “leitor modelo”, capaz de permitir a compreensão do texto. Um leitor modelo é identificado porque se espera que o receptor da mensagem (texto) possua uma língua útil, além de habilidades circunstanciais. O leitor modelo não estará presente se não for ativamente planejado em função dos conhecimentos do emissor; ou seja, o texto deve ser capaz de construir o seu próprio interlocutor, do contrário não have-rá compreensão. Portanto, se faz necessário na psicanálise que os dois protagonistas do texto preliminar tenham a mesma aparência, isto é, que eles compartilhem a mesma “en-ciclopédia”. Isso significa que os modelos do mundo do paciente devem coincidir — ao menos em parte — com os modelos analíti-cos teóricos utilizados pelo terapeuta.

Os mundos possíveis — tal como a lógica modal nos lembra — são, na análise, as di-versas características da cooperação, as quais se tornam efetivas, empíricas. O texto — o mais aberto possível a diferentes interpreta-ções — conduz o seu leitor, contudo, a uma análise canalizada e não inteiramente anár-quica; nesse caso, o autor constrói o consu-midor. Afinal, interpretar um texto significa “reconhecer uma enciclopédia da emissão que é mais estreita e genérica do que aquela do destino” (ECO, 1979, p. 63).

Por conseguinte, podemos definir o tex-to como “um artefato de natureza sintática, semântica e pragmática cuja interpretação esperada faz parte do seu projeto gerativo” (ECO, 1979, p. 63). E devemos lembrar que, de acordo com uma abordagem construtivis-ta de mundos possíveis até mesmo o mun-do real, não é nada além de uma construção cultural. O discurso analítico é semelhante àquilo que ocorre no trabalho da arte mo-derna, no qual a pesquisa e a possibilidade de mundos possíveis são expressas no nível mais elevado. Por exemplo, os trabalhos de

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Berio ou de stockhausen são muito mais abertos do que os trabalhos clássicos. Em outras palavras, na arte moderna a abertura do trabalho se encontra no apogeu de suas potencialidades, os códigos são difusos, e as mensagens são apenas parcialmente decifrá-veis através do vértice do receptor. De acordo com a teoria da informação, a arte contem-porânea utiliza o “barulho” para abrir o tra-balho às possibilidades de interpretação por parte do interlocutor. Ao contrário, a ordem tradicional perdeu completamente a sua dig-nidade de força duradoura para a ciência, e a arte seguiu o mesmo exemplo, articulando-se em direção à incerteza e à dúvida.

É verdade que a leitura de um trabalho a qualquer momento já foi identificada com a ambiguidade do texto, mas a abertura nunca é mostrada como acontece na arte contem-porânea. O texto é o portador de uma “for-ma” tanto para aquele que formula o signifi-cado quanto para o consumidor (receptor); uma forma que fornece ao consumidor uma autonomia ampla.

Consequentemente, os trabalhos não são concluídos em um sentido hipotético oferecido pelo emissor, mas produzem, em vez disso, um novo significado para cada utilização posterior. Cada consumidor co-loca as suas preferências, a sua bagagem cultural e a sua “enciclopédia” no signifi-cado. Os trabalhos preparados dessa ma-neira são “trabalhos inacabados”, sempre à procura daquilo que está faltando para a sua finalização.

De modo análogo, o analista participa com as suas teorias clínicas de referência, a fim de delimitar o caos da interpretação; e não apenas modelos, mas obviamente tam-bém a “poesia” do ato criativo influencia a reação do consumidor.

É o trabalho que sugere e se realiza a si próprio, impregnado a cada momento com as contri-buições emocionais e imaginativas do intérpre-te. se é verdade que, a cada leitura de poesia, temos um mundo pessoal que tenta ajustar-se

a um espírito de lealdade ao mundo do texto, nos trabalhos poéticos — baseados deliberada-mente na sugestão — o texto tem por objetivo estimular exatamente o mundo pessoal do in-térprete de modo a que este possa obter uma resposta profunda a partir da sua interioridade (grifo meu) (eco, 1962, p. 41).

O significado poderia ser facilmente mal-compreendido e nos levaria a crer que se trata da expressão de uma crise alarmante, que envolve todos os aspectos da cultura contemporânea, mas isso não ocorre de fato. Na verdade, a incerteza da interpretação, a abundância de fenômenos complexos e im-previsíveis e um universo que se apresenta como múltiplo tornam o horizonte do co-nhecimento ainda mais pungente.

Quando o analista profere uma inter-pretação, ele a formula de acordo com suas teorias e modelos de referência; ou seja, de acordo com sua própria reação de contra-transferência, a qual também é condicionada pelas experiências que teve até aquele mo-mento. Contudo, permitem-se certos graus de liberdade no tocante ao que é aceito nesse conteúdo. O paciente, por sua vez, interpreta a interpretação. A seguir essa interpretação se vê afetada por diferentes vértices, o que permite à interpretação propriamente dita chegar à sua forma final.

Essencialmente, toda interpretação é re-formulada a cada revezamento entre emis-sor e receptor; como foi dito anteriormen-te, ela volta para influenciar o emissor que está produzindo novas informações naquele momento. Pode-se assim dizer, à luz de uma perspectiva complexa, que o emissor e o re-ceptor formam um anel recursivo, de ma-neira que os efeitos do processo interativo afetam as causas que os geraram. Aqui está a natureza profunda da interação interpre-tativa. Ela segue um processo recursivo que aproxima a cada troca o conhecimento ili-mitado que se pode ter de um fato emotivo, assegurando, dessa forma, uma cooperação construtiva.

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De modo instintivo, temos tendência a formular teorias simplificadas da realida-de; mas quando o modelo pretende descre-ver a interação analítica, ele não pode fazer concessões à complexidade dos fenômenos sem criar o risco de que sua natureza seja dissolvida. A interação analítica consiste da interpretação e da resposta de contratrans-ferência, que são os dois aspectos do anel recursivo e discursivo. O discurso analítico, portanto, expande a questão e a articula em ambas as direções, de modo que a relação não é linear.

Hologramas e mais...

Para ver um mundo em um grão de areiae um céu em uma flor selvagem,segure o infinito na palma da mãoe a eternidade em uma hora.william bl ake

O processo analítico e a arte têm algo a mais em comum, que está relacionado ao potencial do conhecimento da realidade, a saber:

[...] a representação da arte abrangeria o todo e refletiria o cosmos em si próprio, na medida em que o individual vive no todo, e o todo está na vida do indivíduo, e toda representação artísti-ca genuína é ela mesma e também o universo, assim como o universo naquela forma indivi-dual e a forma individual como o universo. em cada expressão do poeta e em cada criatura da sua imaginação estão todos os destinos huma-nos, todas as esperanças, todas as ilusões, dores e alegrias, bem como a grandeza e a miséria humanas (eco, 1962, p. 66).

Esse é outro fenômeno que afeta a com-plexidade: as realidades do trabalho artístico e da relação analítica assumem uma natureza holográfica; assim sendo, o todo e as partes se encontram em uma relação muito especial de envolvimento e, como diz Pinson (1985), cada ponto do objeto repete o todo, o campo

analítico é memorizado pelo holograma e é incluído no detalhe.

Isso é o que Edgar Morin (1986) chama de organização hologramática dos sistemas não lineares, e é o que os psicanalistas clássi-cos como Kernberg encontram na referência cruzada da fantasia do indivíduo que surge novamente naquela do grupo institucional. O que acontece em um nível local surge novamente em termos gerais com a mesma forma; por exemplo, uma clivagem intrapsí-quica do paciente individual pode gerar uma clivagem no campo analítico, a qual por sua vez reagirá de maneira retroativa na divisão do indivíduo.

O holograma revela um tipo específico de organização, “no qual o todo está na parte que está no todo, e no qual a parte pode ser mais ou menos capaz de regenerar o todo” (MORIN, 1986, p. 111).

Assim sendo, a complexidade organizacional do todo requer a complexidade organizacional das partes; ou seja, os conteúdos analíticos in-dividuais, tais como sintomas, sonhos e mé-todos relacionais, requerem a complexidade do todo organizacional de forma recursiva. As partes possuem a sua própria singularida-de, mas elas não são meros elementos ou frag-mentos de todos; elas são, isso sim e ao mesmo tempo, um ‘microtodo’ virtual (os itálicos e a adaptação do original são meus) (MoRin, 1986, p. 112).

Nós acreditamos que essa constelação não é meramente uma questão de forma imaginativa, mas sugere uma metáfora es-pacializada da organização da vida psíqui-ca no campo analítico. Os discursos local e global — na condição de realidades cons-cientes e inconscientes — se referem uns aos outros numa consubstancialidade em que o momento inicial de sua influência mútua não pode ser decidido. Na verdade, o campo analítico é capaz de gerar novos produtos da interação, realidades essas que não perten-cem de fato a apenas um dos atores, mas re-

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presentam uma coevolução; ou seja, o terço analítico intersubjetivo é gerado como uma fantasia compartilhada tanto pelo paciente quanto pelo analista (OGDEN, 1997); além disso, ele pode ser demonstrado em um de-vaneio, em uma fantasia, em um sonho, ou em uma narrativa (PANIzzA, 2008).

O que estou dizendo exprime diretamen-te uma homologia; ou seja, revela a estru-tura fractal do discurso analítico, no qual a relação entre a parte e o todo é capaz de regenerar cada configuração de significado. É possível imaginar que um estudo mais intensivo — compartilhado e influenciado pela teoria da complexidade — possa nos auxiliar a compreender melhor os fenôme-nos interativos do campo analítico como um todo sem sacrificar uma parte em prol de uma simplificação, seja reducionista, seja holística. Podemos também pensar que a mesma estrutura da memória individual é organizada como uma condensação holo-gráfica dos significados, para a qual tanto a livre associação do analisando quanto a atenção livremente flutuante do analista em atividade entrariam em declínio no trans-curso desse holograma.

IncertezasNesse caso, a modalidade da arte lida com a estrutura profunda do conhecimento, por-tanto podemos criar hipóteses acerca de uma relação específica entre complexidade e esté-tica, que a física relativista já indicou no estu-do da realidade material e energética. Assim sendo, a estética é a dimensão profunda, a linguagem do inefável e do real. A revolução do significado transcende o imperativo posi-tivista na direção de uma abertura. Por con-seguinte, a decomposição cubista e a expan-são dinâmica das formas futurísticas deram à arte a possibilidade de uma descrição ou interpretação da realidade como um “traba-lho vivo”. Até mesmo no campo da escultura, as formas plásticas de Gabo ou de Lippold convidam o interlocutor a uma participação ativa na estrutura do trabalho.

De modo semelhante, a arte informal desconecta as relações causais, bem como os princípios da lógica Aristotélica; ela é apre-sentada como uma expressão daquelas refle-xões que ocorreram no campo da ciência e de suas metodologias. Entretanto, é natural que a arte continue sendo caracterizada como trabalho — ou seja, que gere significado — já que consegue expressar a aleatoriedade, aquilo que é desprovido de forma, o incerto, até mesmo nas manifestações mais extremas. Portanto, uma certa direção nas escolhas in-terpretativas há de seguir o seu rumo. Não há morte da forma, mas sim uma abertura para o reino das possibilidades; e isso é o que tal-vez encontremos ao olhar para uma pintura de Pollock:

[...] a desordem dos sinais, a desintegração dos contornos e a explosão das configurações nos convidam ao jogo pessoal das relações que podem ser estabelecidas; mas o gesto original, fixado na marca, nos indica direções que são fornecidas e nos levam de volta ao autor (eco, 1962d).

Na relação analítica, cada participante transfere o seu “idioleto” (isto é, o seu có-digo particular e individual através do qual ele/a observa o mundo, especialmente aque-la fatia do mundo que é a mensagem do seu interlocutor) apenas para manter o receptor, a fonte e a verificação de sua congruência cognitiva. O fenômeno da desorientação que ocorre cada vez que o autor (seja o analis-ta, seja o analisando) oferece o seu próprio material em uma forma que é ligeiramente diferente daquilo que o falante tem em men-te é, portanto, fundamental na análise tanto quanto na arte. Nesse caso se introduz a in-certeza que chega mais cedo ou mais tarde — como na arte informal — a uma versão original do material inconsciente. Wilfred Bion (1973) falaria de uma mudança de vér-tice, o que representa uma maneira única de enriquecer-se o conhecimento. Na verdade, a desorientação liberta a linguagem e recon-

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sidera a mensagem “que nos leva a olhar de modo diferente para a coisa representada, mas ao mesmo tempo — como é natural — até mesmo para o meio de representação e o código aos quais nos referíamos”, porque “a arte aumenta a dificuldade e a duração da percepção, uma vez que ela descreve o objeto como se o mesmo estivesse sendo visto pela primeira vez” (ECO, 1968a).

Na psicanálise assim como na arte, já é hora de implementar uma revolução na for-ma “e em tal violação imprevisível; se essa violação se tornar um cânone, ela perderá sua força como método cognitivo” (ECO, 1968b). Desse modo, se faz necessário re-conhecer que, se o analista e o analisando trabalharem, eles aparecerão na conjuntura clínica como portadores da

[...] ideologia do outro; isto é, do universo de conhecimento do receptor e do grupo ao qual ele/a pertence, bem como de seus sistemas de expectativas psicológicas, suas atitudes men-tais, suas experiências e seus princípios morais (eco, 1968c) [ênfase do texto original].

Obviamente, não devemos confundir ideologia com significado. A ideologia não é nada além do precipitado de códigos e sinais que povoam o texto que têm por objetivo ex-plorar aquilo que pode ser conhecido. Por-tanto, a ideologia — ou modelo analítico — contribui para a construção de informações que possam influenciar de modo recursivo esses próprios códigos e a ideologia.

Assim sendo, o intérprete em atividade precisa encontrar o universo retórico e ideo-lógico do receptor, a fim de não permitir que suas próprias intenções sejam perdidas de maneira permanente.

A leitura do trabalho ocorre em uma oscilação contínua, através da qual começamos pelo tra-balho onde pretendemos descobrir o código ori-ginal que é sugerido; a seguir, tentamos fazer uma leitura fidedigna do trabalho, e a partir daí voltamos uma vez mais aos códigos e voca-

bulários [...] a fim de experimentá-los na men-sagem (eco, 1968d) (grifo do texto original).

Com a constante confrontação entre co-dificações em oscilação, determina-se um campo de possibilidades de significado que aumenta a cada intercâmbio comunicativo entre o paciente e o analista. Isso gera um dispositivo que expressa os significados de maneira contínua, ativando-os em função de uma lógica que é criativa e decodificadora e que está, ao mesmo tempo, firmemente an-corada no sentido do texto. Essa comparação nos faz lembrar mais uma vez da arte infor-mal e da música atonal, para a qual parece não existir um código compartilhado.

Por conseguinte, assim como nos óculos de Arman, nas garrafas de Rauschenberg ou numa bandeira de Johns, tanto na arte de vanguarda quanto no consultório, os signi-ficados transmitidos são muito mais precisos e circunscritos do que aqueles considerados plausíveis.

AbstractHow the narrative function of the uncons-cious, whose purpose is to bond anxiety of un-certainness and of chaos, works. The psychoa-nalytical narrative as an intertextuality that both patient and analyst act as coauthors, as sender and receiver both creating an open text, but an anarchical one. A text production that’s similar to poetical creation and modern art. Artwork and analytical relationship ac-quire a holographic nature as the whole and its parts exist in a relationship where each part of an object reflects its whole. each time that the sender, patient or analyst, offers its stuff in a slightly different way from that the receiver had in mind, comes a uncertainty which be-wilders and leads that the message be recon-sidered.

Keywords: Psychoanalytic narrative, sen-der and receiver, open work of art, Patient/analyst relationship.

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Referências

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MORIN, E. il metodo. La conoscenza della conoscenza. Milano: Raffaello Cortina Editore, 2007.

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RECEBID O EM: 10/09/2013APROVAD O EM: 11/11/2013

S OBR e O AU TOR

Gabriele Lenti Psicologo. Laureato in Psicologia presso l’Università degli studi di Padova. specialista in Psicologia Clinica presso la Facoltà di Medicina e Chirurgia dell’Università di Genova. Psicoanalista sIPRe - società Italiana Psicoanalisi della Relazione - Centro di Genova, parte dell’IFPs (International Federation of Psychoanalytic societies).

endereço para correspondênciaVia XX settembre n 21/7 Genova, Liguria, ItáliaVia Chiaramone n 12/1Genova-Voltri, Liguria, Italia.E-mail: [email protected]

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O setting analítico na clínica cotidiana

IntroduçãoO setting analítico tem a ver com os dois in-tegrantes do processo analítico: analista e pa-ciente. A sensibilidade do analista é funda-mental, e isso tem que levar em consideração tanto as características do paciente quanto as do analista, que se derivam de seu próprio percurso.

Temos nos deparado no exercício da clí-nica psicanalítica com as múltiplas faces do sofrimento humano. Situações inusita-das nos colocam frente a desafios que mui-tas vezes põem em xeque o arsenal teórico que nos embasa. Diante desse panorama nos sentimos instigados a fazer uma refle-xão teórico-clínica sobre o setting analítico e seu manejo clínico. No presente estudo tentaremos tecer considerações sobre algu-mas situações clínicas especiais que exigiram mudanças no setting terapêutico. Essas con-

O setting analítico na clínica cotidianaAnalytical setting in everyday clinic

Glória Barros

ResumoRefletimos sobre o setting analítico e o manejo clínico de nossa prática cotidiana, à luz da teoria psicanalítica. Inicialmente nos referimos à visão freudiana e posteriormente nos detemos em Ferenczi e Winnicott, dois clássicos nas teorizações sobre o setting/ma-nejo de pacientes com maior comprometimento psíquico ou mesmo resistentes ao pro-cesso terapêutico, para facilitar mudanças psíquicas no processo psicanalítico. Alguns fragmentos de uma análise, de nossa clínica ilustram uma experiência bem-sucedida e reforçam nosso convencimento de que o movimento do analista é fundamental para o estabelecimento da comunicação no setting terapêutico. Sua adaptação às necessidades do paciente constitui fator primordial para o manejo clínico, sendo o manuseio do set-ting o principal recurso no tratamento de pacientes muito regredidos. O recebimento inicial mais caloroso, a flexibilização da duração das sessões para ouvi-la e acolhê-la, e a disponibilidade para atender algumas necessidades manifestadas pela paciente se mostraram de suma importância. Acredito que a criação de um setting adaptado às necessidades de Marina durante uma etapa do seu processo analítico, propiciou seu fortalecimento e seu crescimento.

Palavras-chave: Setting analítico, Psicanálise, Manejo clínico.

siderações serviram de base ao trabalho que apresentamos no V Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental (BARROS, 2012) e posteriormente retrabalhado, no Círculo Psicanalítico de Pernambuco, por ocasião de nossa passagem para analista, em março de 2013. Com várias modificações e correções, apresentamos agora o texto aos leitores.

Sobre a técnica psicanalítica: o setting e o manejoNo campo psicanalítico, o setting é um es-paço que se oferece para propiciar a estru-turação simbólica dos processos subjetivos inconscientes, reunindo as condições técni-cas básicas para a intervenção psicanalítica. Nesse campo são englobados todos os ele-mentos organizadores do setting: o espaço físico de atuação, o contrato estabelecido

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O setting analítico na clínica cotidiana

para seu desenvolvimento, assim como os princípios da própria relação, transferencial e contratransferencial, estabelecida entre analisando e analista.

No seu texto Recordar, repetir e elaborar (1914) Freud faz um histórico do desenvol-vimento da técnica psicanalítica, sublinhan-do “as alterações de grandes consequências que a técnica psicanalítica sofreu desde os primórdios” (FREUD, 1969, p. 193). Ele concebia o setting analítico, como um lugar específico para que a relação terapêutica se desenvolvesse; é composto por um conjunto de elementos que podem ser compreendidos como variáveis independentes, que devem permanecer sob controle, para assegurar o êxito do tratamento: o analista; o paciente; o cerimonial; o tempo; o dinheiro; a regra fun-damental; a atenção flutuante.

Nos textos Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise (1912) e Sobre o início do tratamento (1913), Freud ressalta que o que garante efetivamente a situação analítica é não tanto os dispositivos propor-cionados pelo setting, mas a posição simbó-lica assumida pelo analista no percurso de uma análise. Para ele o conjunto de deriva-ções dessa posição interna do analista é que dá consistência ao tratamento.

No V Congresso Psicanalítico Internacio-nal (1918) Freud recomenda uma mudança de atitude do analista nos casos em que a aná-lise da transferência não se apresenta como recurso suficiente para vencer as resistências e desentravar o processo, e ao analista cabe adotar uma postura mais ativa. Ele transfe-re a incumbência de prolongar a duração do tratamento e de encontrar técnicas capazes de atestar o sucesso do método analítico para seus discípulos. E foi Ferenczi quem mais se destacou nessa tarefa.

A percepção da dificuldade apresenta-da pelos pacientes bastante regredidos que frequentavam a clínica de Ferenczi o levou à formulação de que a técnica e o enquadre utilizados eram responsáveis pela produção de “resistências objetivas” à experiência ana-

lítica (FERENCZI, 1921a e 1921b). Ele esta-belece a técnica ativa como medida a ser uti-lizada com pacientes resistentes ao método interpretativo.

O percurso clínico de Ferenczi é todo pautado no desafio de acolher o sofrimento dos pacientes chamados “difíceis” (1926). Ele conclui que as dificuldades enfrentadas nes-ses processos eram decorrentes da “insen-sibilidade” dos analistas, que não queriam se deixar afetar pelo encontro analítico, se pronunciando por introduzir a faculdade de “sentir com”, pelo projeto de “soltar a língua” (1927).

Para o autor seria preciso tornar a téc-nica mais elástica, de maneira a favorecer a expressão afetiva. O privilégio dado à expressão de afetos na análise provocou, assim, uma ampliação cada vez maior dos limites do permitido na clínica, chegando-se à formulação de um princípio de relaxa-mento como contraponto ao de abstinência (1927).

Ferenczi introduz seu projeto de “soltar as línguas” nas análises, implicando e con-vocando o analista à adoção de um estilo clí-nico diferenciado, resgatando a criatividade do analisando, exercitando a sua capacidade de brincar, fantasiar e imaginar. Ele aborda o conceito de contratransferência como algo que não dificultaria a análise, mas que faz parte da própria técnica a ser empregada. O manejo técnico deve dosar bem a empatia e a capacidade de “sentir com”, e o processo é conduzido melhor a partir da análise pes-soal do analista, que o capacitará para ava-liar a situação analítica a distância. Esse é o entendimento que Ferenczi tem do analista elástico.

Seguindo a mesma linha de pensamento de Ferenczi, Winnicott sentiu que era vital reexaminar sua técnica, pois suas observa-ções clínicas apontavam para a necessidade de uma adaptação do setting para promover uma evolução favorável do paciente e ajudá--lo no fortalecimento e na evolução de sua personalidade.

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O trabalho psicanalítico winnicottiano busca promover o desenvolvimento de as-pectos da vida psíquica que não puderam evoluir em função de falhas no processo ini-cial, além de valorizar o meio ambiente na estruturação do self. A adaptação no setting, na sua visão, auxiliaria os pacientes na bus-ca e no encontro de suas necessidades, fa-vorecendo o estabelecimento de um campo transferencial propiciador de mudanças.

O manuseio do setting é para Winnicott (1993) o principal recurso no tratamento de pacientes muito regredidos. Nas suas teo-rizações ele “apresenta o manejo como um elemento importante, facilitador de mudan-ças psíquicas no paciente”. Um setting dife-renciado é utilizado quando estamos diante de alguns quadros clínicos que apresentam maior fragilidade psíquica ou quando exis-tem necessidades especiais do ambiente exi-gindo cuidados mais específicos.

Winnicott nos alerta para não trabalhar-mos de forma rígida utilizando uma aplica-ção cega a uma técnica, pois o paciente que procura análise precisa ser acolhido na sua dor e, isso ocorre à medida que ele se sente compreendido no seu sofrimento. Nem to-dos os pacientes que chegam à clínica bus-cando ajuda podem ser submetidos a uma análise. O método que iremos utilizar nesse processo dependerá das condições psíquicas e clínicas em que ele se encontra.

A clínica winnicottiana está baseada numa teoria dos distúrbios psíquicos que tem como fundamento a teoria do processo de amadurecimento pessoal do indivíduo. Winnicott pontua:

Precisamos chegar a uma teoria do amadure-cimento normal para podermos ser capazes de compreender as doenças e as várias imaturida-des, uma vez que não nos damos por satisfeitos a menos que possamos preveni-las e curá-las (WINNICOTT, 1983, p. 65).

Winnicott (1983) enfatiza a importância do diagnóstico focando o grau de maturida-

de em que o paciente se encontra para guiar a ação terapêutica. Para ele é fundamental basear seu trabalho terapêutico de acordo com o diagnóstico, permanecendo na elabo-ração de um diagnóstico, individual e social, ao longo de todo o processo de tratamento, pois, assim procedendo, poderemos fazer uma adaptação no setting se a situação emo-cional do paciente naquele momento assim requerer.

Nesse sentido ele afirma:

[...] faço psicanálise quando o diagnóstico é de que este indivíduo, em seu ambiente, quer psicanálise [tradicional]. Posso até tentar es-tabelecer uma cooperação inconsciente, ainda quando o desejo consciente pela psicanálise está ausente. Mas, em geral, a psicanálise [cujo método por excelência é a interpretação do conflito reprimido inconsciente] é para aqueles que a querem, necessitam e podem tolerá-la. (WINNICOTT, 1983, p. 154).

Na visão winnicottiana, para que ocorra o acolhimento de forma irrestrita, não pode-mos nos colocar de forma a manter a análise protegida por um setting rigoroso, pois, des-sa forma, correremos no risco de reforçar as nossas defesas como analista e as defesas do paciente, impossibilitando o acolhimento ra-dical da loucura. Assim, perderemos de vista elementos fundamentais que mostrarão todo o arsenal do sofrimento e da psicopatologia manifestada pelo paciente.

O analista, na visão de Winnicott, deve se abster do autoritarismo e da doutrinação, permitindo uma fruição mesmo desorgani-zada ao longo das sessões. É fundamental que o analista vivencie um estado de rela-xamento e espontaneidade, acolhendo de forma ativamente passiva e ativamente ex-pectante os conteúdos emergentes, a fim de estabelecer uma base de confiança para que o processo caminhe.

O manuseio do setting é para Winnicott (1993) o principal recurso no tratamento de pacientes muito regredidos. Nas suas teori-

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O setting analítico na clínica cotidiana

zações ele “apresenta o manejo como um ele-mento importante, facilitador de mudanças psíquicas no paciente”.

Da teoria psicanalítica à pratica clínicaNesse contexto, quero apresentar Marina, paciente que bem se adéqua às nossas refle-xões do tema que escolhemos para discutir neste momento. Minha supervisora havia me indicado para que Marina continuasse seu processo terapêutico comigo e, apesar de saber que iria encurtar duas horas para chegar ao local de seu tratamento, ela não se sentia tranquila para fazer essa passagem. Coincidentemente eu a encontrei na saída de sua sessão, e esse encontro foi decisivo para que ela me procurasse depois do parto, já que estava no final de sua terceira e última gestação.

Ao chegar para a primeira sessão, Marina diz “O seu olhar, sorriso e o aperto de mão no nosso primeiro contato abriram caminho para que eu decidisse vir até aqui”. Após qua-tro meses do parto, ela me procura. Vinha sempre acompanhada de seu bebê e do ma-rido.

Traremos alguns fragmentos da análise de Marina, que durou cerca de doze anos e, até hoje, através dos contatos telefônicos manti-dos nos seus momentos de alegria e aflição, constatamos a importância do acolhimento sustentado ao longo de todo o seu processo para a manutenção de um campo de con-fiança e um vínculo transferencial. Marina, 32 anos, odontóloga, era casada, tinha três filhas, mas não exercia a profissão naquele momento.

Quando iniciou sua análise comigo, ainda era grande a sua fragilidade. Depois de al-guns anos, conseguiu falar sobre o abuso se-xual que havia sofrido na infância e, a partir daí, esse tema ia e vinha ao longo de muitos anos de seu processo psicoterapêutico, sen-do trabalhado intensamente. Depois de um tempo de calmaria, esse tema voltava a bailar novamente com toda a força.

Tempo, paciência e tolerância eram vitais nesse processo, tanto para ela quanto para mim. Marina caminhava muito lentamente nas suas elaborações. Nós não poderíamos ter pressa. Juntas, passamos a viver em mui-tos momentos uma experiência de mutuali-dade.

Winnicott (1993) afirma que o paciente busca no terapeuta as funções de que neces-sita. Se o terapeuta compreende a situação, temos um momento mutativo. E nos fala ain-da em formas especiais de conduzir o setting como uma metáfora dos cuidados maternos. Observa-se que ele privilegia o modelo de cuidado materno, transportando-o para o setting, incluindo o analista como parte do setting, que é visto como o lugar que pro-porciona o desenvolvimento. Nas situações vividas neste caso, a analista privilegiou esse modelo de cuidado a partir da compreensão do processo de Marina.

Marina havia iniciado sua primeira análi-se por causa de um quadro depressivo grave. Com esse acompanhamento, pôde elaborar e enfrentar o seu medo de engravidar, rela-cionando seu quadro ao abuso sexual sofrido aos 5 anos, pelo marido de uma tia. Ela fazia referência ao fato como “o estrago que esse fato provocara na sua vida”.

A mãe dizia para Marina esquecer o ocorrido e, em determinada ocasião, ela foi obrigada a fazer um tratamento dentário no tio, como forma de agradecimento e paga-mento, pois ele havia transportado no seu caminhão os móveis de consultório dela. Marina se sentia desamparada e incom-preendida pela família, não acreditava que sua depressão tivesse relação com o abuso sofrido, afirmavam que aquilo tudo era “coi-sa do diabo”. Eles eram evangélicos e diziam para ela rezar, ter mais fé e que se ela fosse à igreja não precisaria fazer terapia nem to-mar remédios.

Diante de tal situação, como enquadrar o caso que eu tinha na minha frente me de-safiando e me fazendo ver que algumas mu-danças no manejo deveriam ser adotadas?

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O setting analítico na clínica cotidiana

A teoria do setting de Winnicott (1993) estuda a estruturação, a significação, a fun-ção e seu manejo pelo analista, inclusive a possibilidade de sua ruptura parcial ou de transgressão. Ele também estuda o problema das falhas do analista e a possibilidade de seu uso por parte do paciente. A experiência clí-nica levou Winnicott a reexaminar sua técni-ca no tratamento de pacientes muito regredi-dos. Ele pontua:

As necessidades do paciente só podem ser defi-nidas a partir de um diagnóstico psicodinâmi-co considerando três grupos de pacientes. No primeiro grupo temos pacientes que operam como pessoas totais e cujas dificuldades estão nas relações interpessoais. Estes pacientes po-dem ser submetidos à análise clássica. Num se-gundo grupo temos os pacientes depressivos no qual a totalidade da personalidade está apenas se esboçando. Em relação ao manejo, devido à função do amor e ódio, a ideia da sobrevivên-cia do analista aos ataques do paciente é um fator importante. Num terceiro grupo estão os pacientes cuja estrutura pessoal ainda não está fundada de forma segura, e o tratamento deve lidar com os estágios mais primitivos do desenvolvimento emocional. A ênfase está no manejo, funcionando como holding e estes pa-cientes necessitam de um setting mais regressi-vo (WINNICOTT, 1993, p. 460).

A cada sessão ia reforçando o diagnóstico de que Marina se encontrava no terceiro gru-po, funcionando de forma primitiva e preci-sava de um setting mais acolhedor. Dentro da visão winnicottiana, o setting analítico deve comportar os aspectos relacionados à mãe--ambiente, em que o analista oferece cons-tância, previsibilidade e confiabilidade, tanto pelo ambiente físico quanto pela qualidade do cuidado pessoal, procurando se ajustar às expectativas do paciente, para possibilitar o estabelecimento de comunicações mais pro-fundas.

A adaptação do terapeuta às necessidades do paciente será fator primordial para o ma-

nejo da clínica winnicottiana. No processo deve ser oferecido um lugar, um momento e uma abertura para que possa vir à tona a problemática do paciente, que emergirá na dependência de muitos elementos, em espe-cial, do movimento do analista para o esta-belecimento da comunicação no setting tera-pêutico.

Desde o início, percebíamos a fragilidade e o desamparo de Marina e que seu trata-mento, além de requerer muito cuidado no manejo, necessitava de muita disponibilida-de nossa na condução do processo.

Suas sessões não poderiam ter o tempo normal (cinquenta minutos), e assim, suas sessões duravam em média de uma hora e meia a duas horas. Desde as primeiras ses-sões, a paciente trazia uma enxurrada de sintomas com suas longas histórias e, se não fosse possível trabalhar grande parte das questões levantadas, a angústia era tão inten-sa que requeria depois muitos contatos tele-fônicos até ela conseguir se acalmar.

As sessões tinham, desde o início, um ri-tual. Ela sempre trazia um caderno com seus escritos da semana. Falava sem parar, levan-tava inicialmente as dificuldades, depois seus ganhos, seus sonhos e, assim, se sentia mais calma no final da sessão. Se não fosse assim, ela saía péssima, não suportando ficar na-quele estado por toda a semana, o que muito lhe pesava e torturava.

Observava que seu nível de tolerância era baixíssimo e sua mobilidade psíquica muito pequena. Qualquer tensão não era suportada por ela, e sua tendência era descarregar no corpo somatizando. Ela vivia em muitos mo-mentos a possibilidade de entrar em colapso.

Acredito que a criação de um setting adaptado às necessidades de Marina du-rante uma etapa do seu processo analítico, propiciou fortalecimento e crescimento. Numa sessão, ao chegar com dor de cabeça por fome, Marina solicitou algo para comer. Percebi que a fome de Marina era de outra ordem, mas o seu desconforto físico não per-mitia que ela conseguisse usufruir da sessão.

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O setting analítico na clínica cotidiana

Por essa razão, lhe ofereci o alimento. A par-tir desse momento ela começou a restaurar de forma visível uma subjetividade tão frag-mentada, que se fazia presente no corpo.

Essa experiência não só mudou a visão que a paciente tinha do mundo, das relações objetais, e de si mesma, mas também rein-tegrou no seu psiquismo aspectos que até então se encontravam dissociados. A partir daí ela aprendeu também a se cuidar e a se alimentar com mais carinho e cuidado quan-do se encontrava mais fragilizada. O alimen-to oferecido resgatava, assim, cuidados bem primitivos que lhe faltaram na vida.

O analista se encontra no papel de ob-jeto subjetivo, e este é necessário para que a transferência e contratransferência acon-teçam. O vínculo precisa ser estabelecido para gerar confiabilidade nessa relação e, dessa forma, o paciente se sentirá “cuida-do” como fora (ou não) por sua mãe (ou outro cuidador) ao longo de sua vida. A transferência é uma ferramenta que favo-rece o paciente na construção de uma ex-periência completa para encontrar o seu eu individualizado. 

Marina apresentava um quadro clínico que tinha uma variedade de sintomas somá-ticos e/ou psíquicos, em várias ocasiões com forte intensidade, bem como a necessidade de uma elaboração para uma transcrição dos seus sintomas e uma ressignificação no seu modo de ver a vida. O corpo continuamen-te se manifestava, para seu desespero. Ora queimava, ora explodia de angústia, ora fica-va num vazio ou outras vezes sufocava, e em muitas ocasiões era despertado “um desejo enorme de arrancar a dor das entranhas”, re-latava ela.

Em relação a essa questão, Winnicott, analisando ainda a relação psique-soma, diz que:

O colapso das defesas leva ao surgimento da ansiedade manifesta em diversos comporta-mentos. A doença psicossomática se manifesta em decorrência de uma fragilidade ou mesmo

de um rompimento da relação psique-soma sendo caracterizada por múltiplos splittings, múltiplas rupturas, encerrando, contudo, na sintomatologia, uma insistência na integra-ção da psique com o soma, sendo isso manti-do como defesa contra a ameaça da perda da união psicossomática ou contra alguma forma de despersonalização (WINNICOTT, 1993, p. 424).

Constantemente Marina apresentava sin-tomas manifestando dores por todo o corpo. Eram verdadeiros espasmos que denuncia-vam o contínuo estado de tensão em que se encontrava. Junto com as dores surgiam ímpetos de destruir, arrancar a parte afetada, como se pudesse lhe trazer algum alívio.

Cada emoção vivida tinha uma expres-são no seu corpo. O medo, a insegurança, a excitação, o ódio se localizavam com exces-siva facilidade em um órgão do corpo que entrava em espasmos. Não suportava muita tensão. O medo do amanhã vivia sempre a rondá-la, percebia que não tinha um lugar para abrigá-la, se sentia desalojada. A cabeça a esquentar, o peito a explodir os excessos, as pernas a fraquejar e os pés a querer cami-nhar, procurando uma saída.

A baixa capacidade de simbolização da paciente associada à paralisia estagnadora e ao excesso de excitações — decorrentes tanto das vivências traumáticas quanto das fanta-sias da paciente — exigiam continuamente uma sucessão de tradução do seu sentir. Sem essa tradução, era impossível dar um passo para sair da paralisia e do impasse, conse-guindo posteriormente fazer novas transcri-ções no seu modo de viver.

Ao longo do processo desse acompanha-mento vivemos momentos mutativos, vitais para que o processo caminhasse mesmo a pequenos passos: durante um bom tempo não era possível para ela se defrontar com todas as suas experiências emocionais, sob o risco de ser aniquilada. As emoções surgiam em muitos momentos, de forma avassala-dora, tomando-a por completo. O medo da

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loucura e o medo de ser aniquilada sempre pairavam no ar.

O setting, cultivando uma qualidade de holding, para um cuidar das feridas de Marina e um aconchego para seu fortaleci-mento possibilitaram à paciente a constru-ção de vínculos novos com o mundo, com as pessoas, com o trabalho, vitais para seu cres-cimento e sua transformação.

ConclusãoSão muitos os aspectos importantes que pu-deram ser trabalhados com Marina no seu processo psicoterapêutico. Foi necessário que a analista exercesse a função de espe-lho olhando para Marina e refletindo para ela uma imagem com mais nitidez e amo-rosidade, ajudando-a a olhar o mundo com um novo olhar e cores mais vivas. Somente quando a criança olha o espelho-rosto da mãe e se descobre a si própria nesse espe-lho, ela poderá se permitir ver o novo e olhar criativamente o seu mundo.

Inicialmente acreditávamos que Marina apresentava um quadro depressivo. Pos-teriormente constatamos que seu quadro era bem mais complexo e que ela apresentava uma estrutura borderline requerendo cuida-dos mais refinados e um manuseio do setting se adequando às necessidades mais premen-tes dela. O olhar para a estrutura psíquica da paciente segundo as ideias winnicottianas fa-voreceu a instalação de uma relação transfe-rencial propiciando uma boa evolução clíni-ca com seu crescimento e desenvolvimento emocional.

À medida que o processo analítico evo-luía com suas elaborações, o ego de Marina se fortalecia e, como resultado, passamos a observar uma mudança clínica. Houve uma modificação nas suas defesas, que passaram a funcionar de forma menos primitiva; a pa-ciente não ficou se sentindo mais aprisiona-da e paralisada nos seus sintomas. O proces-so analítico forneceu à paciente elementos que não foram vividos anteriormente: uma maternagem suficientemente boa, um hol-

ding propiciador do descongelamento das situações traumáticas iniciais, saindo assim da paralisia vivida até então. O manejo no setting possibilitou o resgate da confiança, passando a dispor de mais recursos internos para o enfrentamento do mundo.

Marina se sentia sufocada pelas contin-gências da vida; era difícil dar conta das exi-gências tanto internas quanto externas, au-mentando ainda mais os seus conflitos. Ela pôde construir na sua análise um caminho num terreno mais confiável. O vínculo esta-belecido abriu espaço para novas relações no seu cotidiano. O setting analítico teve a fun-ção de transformação das suas dores, onde ela despejava as angústias de seu corpo travado e dilacerado. Ela foi, aos poucos, no seu pro-cesso, construindo novas imagens, refinando seus valores. A sua mente precisou formular novos caminhos e formas para fazer frente às adversidades que a vida lhe impõe.

Na situação analítica vivida, o setting foi facilitador de mudanças, e o processo analíti-co pôde ajudar a paciente a funcionar de for-ma integrada, permitindo que ela entendesse a sua organização e funcionamento somáti-co e psíquico. Ocorreram muitas mudanças após um longo tempo de análise, relativas à sua sexualidade e à forma de enfrentar a profissão. Era tempo de calmaria, há quatro anos não retornava ao tema do abuso se-xual. Todo o ódio vivido e elaborado no seu processo analítico foi apaziguado, deixando marcas profundas.

Entendemos que a transferência estabe-lecida no setting analítico está intimamente vinculada à qualidade da experiência afetiva estabelecida no curso da análise apontando para a qualidade do encontro afetivo.

A reflexão sobre a função do setting e do enquadre se mostram, assim, adequada e im-portante para que se avance pensando sobre esse importante dispositivo de tratamento no curso de uma análise. Concluímos, na práti-ca, que precisamos estar atentos, em algumas situações clínicas, para a necessidade de pro-mover mudanças no manuseio do setting a

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O setting analítico na clínica cotidiana

fim de obtermos uma resposta clínica mais favorável para uma boa evolução do proces-so psicanalítico.

AbstractWe pondered about the analytical setting and the clinical handling of our everyday prac-tice under the light of the psychoanalytical theory. We first referred to the Freudian vision and, later on, we approached Ferenczi and Winnicott, two classic authors in the theori-zing of setting/handling of patients with lar-ger psychic endangerment or even resistant against the therapeutic process, so as to faci-litate psychic changes in the psychoanalytical process. Some fragments of an analysis in our clinic show a well-succeeded experience and reinforce our certainty that the analyst’s move is fundamental to establish communication in the therapeutic setting. His adaptation to the patient’s needs constitutes the primordial factor for the clinical handling, with the set-ting handling being the main resource in the treatment of   much-regressed patients. The warmest initial reception, the flexibility of the sessions duration to listen to her, to welcome her and the availability to assist on some of the patient’s manifested needs showed to be of great importance. I believe that the creation of a setting adapted to Marina’s needs during a stage in her analytical process provided her with strengthening and growth.

Keywords: Analytical setting, Psychoanalysis, Clinical handling.

Referências

BARROS, G. O Setting Analítico: Situações Clínicas Especiais. Disponível em: <www.fundamentalpsycho-pathology.org/uploads/files/v_congresso/mr_58_-_gloria_barros.pdf>. Acesso em: 21 mar. 2013.

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FERENCZI, S. Elasticidade da técnica psicanalítica (1927). São Paulo: Escuta, 1987.

FERENCZI, S. Escritos sobre técnica (1921a). São Paulo: Escuta, 1987.

FERENCZI, S. Prolongamentos da técnica ativa em Psicanálise (1921b). São Paulo: Escuta, 1987.

FREUD, S. Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise (1912). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v. XII.

FREUD, S. Recordar, repetir e elaborar (1914). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas com-pletas de Sigmund Freud. Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v. XII.

FREUD, S. Sobre o início do tratamento (1913). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas com-pletas de Sigmund Freud. Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v. XII.

WINNICOTT, D. W. O ambiente e os processos de paturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.

WINNICOTT, D. W. Textos selecionados da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1993.

WINNICOTT, D. W. Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

RECEBID O EM: 11/09/2013APROVAD O EM: 29/10/2013

S obR e a au toR a

Glória barrosPsiquiatra. Psicanalista. Especializações em psiquiatria, psicologia clínica/psicanálise, medicina psicossomática, homeopatia e psicoterapia somática/biossíntese. Membro do Círculo Psicanalítico de Pernambuco e do Espaço Psicanalítico da Paraíba (EPSI-PB).

endereço para correspondênciaEPSI - Espaço PsicanalíticoRua Nevinha Cavalcanti, 46 - Miramar58043-000 - João Pessoa/PBE-mail: [email protected]

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A criança, o artista e o analisando: a psicanálise e a invenção de mundos

Os que estudam psicanálise hoje precisam viajar no tempo para imaginar um período em que o mundo era visto como ordenado, previsível e passível de controle, pois foi pre-cisamente esse o caldo cultural de Sigmund Freud. Seguramente o engendramento da psicanálise promoveu muitas rupturas com os ideais de seu tempo, mas ninguém está alheio às demandas de seu momento histó-rico (FigueiredO, 2001). A localização de Freud na modernidade, ápice da raciona-lidade científica, nos ajuda a compreender muitos dos diálogos por ele empreendidos. em A questão da análise leiga, ele põe a pró-pria obra em análise:

Nem, naturalmente, posso garantir-lhe que a forma como é expressa hoje continue a ser definitiva. A ciência, como se sabe, não é uma revelação; muito depois dos seus primórdios ainda lhe faltam os atributos de determina-

A criança, o artista e o analisando: a psicanálise e a invenção de mundos

The child, the artist and the analyzed: psychoanalysis and worlds creation

Luciana Knijnik

Vou meio dementado e enxada às costas a cavar no meu quintal

vestígios dos meninos que fomos.manoel de barros

ResumoNas linhas redigidas a seguir, o leitor encontrará um exercício reflexivo sobre alguns aspectos da construção do arcabouço psicanalítico. O arranjo conceitual e prático é apresentado tanto como decorrência de seu tempo, quanto como produtor de efeitos nos modos de ser, agir e pensar dos homens e seus mundos. As figuras da criança, do artista e do analisando são to-madas como personagens que emprestam seu corpo à personificação de conceitos e práticas caras à psicanálise.

Palavras-chave: Psicanálise, Criança, devir.

ção, imutabilidade e infalibilidade pelos quais o pensamento humano profundamente anseia. Mas tal como ela é, é tudo que podemos ter (FREUD, 1997, p. 218).

estamos de acordo: os saberes não são um dado natural, verdade universal, mas uma produção histórica. Assim, olhar a própria psicanálise sob essa perspectiva permite que vislumbremos os compromissos que preci-samos manter e as nuances que atualmente podem ser abandonadas.

Se na época de Freud as mencionadas tempestades enfrentadas pela psicanálise envolviam a luta para garantir legitimidade e espaço, hoje outros céus relampejam. Mui-tas leituras reduzem a psicanálise ora a pas-sagens historicamente determinadas, ora a preocupação com o universalismo dos con-ceitos.

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A criança, o artista e o analisando: a psicanálise e a invenção de mundos

Adotar uma visão reducionista da teoria psicanalítica é a opção de muitos que bus-cam a confirmação de ideias previamente concebidas ou mesmo o prazer das críticas vazias. Outra possibilidade é potencializar os conceitos que no contemporâneo operam, acessando as diversas formas de sofrimento e abrindo caminhos para a transformação de cada um e da sociedade em que vivemos. Ou seja, é colocar as mãos a obrar.

Para tal empreitada não precisamos ir longe. O próprio Freud em muitas passagens fornece importantes indicativos dos compro-missos fundamentais de sua teoria. Nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, uma nota de rodapé acrescentada posteriormen-te, em 1915, merece destaque. discorrendo sobre os conceitos de masculino e feminino, ele diz:

A masculinidade ou a feminilidade puras não são encontradas nem no sentido psicológico nem no biológico. Cada pessoa exibe, ao con-trário, uma mescla de seus caracteres sexuais biológicos com os traços biológicos do sexo oposto, e ainda uma conjugação de ativida-de e passividade, tanto no caso de esses traços psíquicos de caráter dependerem dos bioló-gicos, quanto no caso de independerem deles (FREUD, 1996, p. 97).

Nesse trecho podemos ver um Freud avesso a determinismos biológicos associan-do masculinidade e feminilidade não aos ór-gãos e suas funções, mas a posições ativas e passivas respectivamente. enfatiza ainda que masculinidade e feminilidade não existem em estado puro, mas enquanto composição. enquanto afirma que masculino e feminino não são determinados exclusivamente pela anatomia, diz também que há algo da histó-ria, da cultura e da dobra que cada um faz de si em cada composição.

evidentemente, do final do século XiX até os dias atuais, muito aconteceu. Hoje pode-mos olhar para algumas passagens no texto freudiano e avaliar que estão de acordo com

o período em que a teoria foi concebida. de fato nosso campo é necessariamente aberto às mudanças na esfera da produção de sub-jetividade. Abertura que também se verifica nas reflexões críticas bem fundamentadas que forçam o pensamento a produzir novos desenhos e até mesmo novas leituras dos mesmos escritos de fins de 1800 e início de 1900.

Nesse sentido perguntamos: seria o tão interrogado complexo de Édipo efetivamen-te universal, parcial ou mesmo efeito da pró-pria produção psicanalítica? em O mal-estar na civilização, o autor dirá:

Não é decisivo, realmente, haver matado o pai ou deixado de fazê-lo; em ambos os casos te-mos de nos sentir culpados, pois o sentimento de culpa é expressão do conflito de ambivalên-cia, da eterna luta entre Eros e o instinto de destruição ou de morte. Esse conflito é atiçado quando os seres humanos defrontam a tarefa de viver juntos; enquanto essa comunidade assume apenas a forma da família, ele tem de se manifestar no complexo de Édipo, instituir a consciência, criar o primeiro sentimento de culpa [grifo meu] (FREUD, 2010, p. 104).

Na passagem acima, é novamente Freud quem deixa o caminho livre para o mo-vimento do mundo sem determinações a priori. Para ele, enquanto a convivência co-munitária seguir adotando o formato da fa-mília, o complexo de Édipo será necessário. resta-nos acrescentar algumas reflexões: po-demos inventar outros formatos familiares? Que modos de convivência em comunidade estariam por vir? Como manter viva aque-la criança aberta à experimentação, vivendo em comunhão com outros seres? Que crian-ças a psicanálise também está produzindo?

Devir criançaÉ tarefa do psicanalista promover um reen-contro com a criança que habita em todos? evidentemente não estamos a falar de qual-quer criança, e sim daquela plena de poten-

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cialidades que, pela porosidade à ortopedia das escolas, ao terrorismo de certas igrejas, à velocidade das grandes cidades, às deman-das familiares conflituosas e aos sofrimentos do mundo, se torna um adulto que não sabe brincar. Vejamos a demonstração de Manoel de Barros:

Estranhei muito quando, mais tarde, precisei de morar na cidade. Na cidade, um dia, contei para minha mãe que vira na Praça um homem montado no cavalo de pedra a mostrar uma faca comprida para o alto. Minha mãe corrigiu que não era uma faca, era uma espada. E que o homem era um herói da nossa história. Cla-ro que eu não tinha educação de cidade para saber que herói era um homem sentado num cavalo de pedra. Eles eram pessoas antigas da história que algum dia defenderam a nossa Pátria. Para mim aqueles homens em cima da pedra eram sucata. Seriam sucata da história (BARROS, 2003, p. XV).

No seu artigo Crianceria, Chaim Samuel Katz (1996) coloca em questão o hábito de olharmos a criança apenas de um ponto de vista. Para ele presumir a emergência da fi-gura “a” criança exclusivamente de papai e mamãe “é supor que as energias-afetos que constituem ‘psiquismo’ se dirijam desde sempre, enquanto destinação através destas imagens capturadoras” (KATZ, 1996, p. 90). A criança é encharcada de mundo, da cidade em que vive, do seu momento histórico, da natureza. Suas experiências estão inseridas em uma paisagem que extrapola as figuras de pai e mãe, englobando uma atmosfera mais ampla que também produz efeitos. Não cabe negar a importância das figuras de referência, porém ampliar as coordenadas de investi-mento pulsional. “Qual ser amado não envol-ve paisagens, continentes e populações mais ou menos conhecidos, mais ou menos ima-ginários?”, pergunta deleuze (2001, p. 84).

Como diz Katz (1996, p. 90), “criança não é apenas obedecer aos poderes, mas exer-cício imanente de potências”. essa posição

implica um estado de permanente abertura para o novo rompendo, e não apenas adotan-do mandatos previamente estabelecidos. Se-gundo Bergson (2006, p. 96), “a criança é um pesquisador e um inventor, sempre à esprei-ta de novidade, impaciente pela regra, enfim, mais próxima da natureza que o homem feito”. Nessa perspectiva não há clausura em um vir a ser previamente estabelecido, mas habitar a posição de devir. esclarece Saidón:

Quando dizemos devir, não nos referimos à evolução das ideias ou das transformações dos corpos ou de suas representações ao longo do tempo. Falamos em devir para nos referirmos à transmutação radical de valores que inaugu-ra um pensamento e que se traduz na criação de territórios existenciais inéditos (SAIDÓN, 2008, p. 91).

Se nessa perspectiva a criança é vista não como uma esponja inerte que absorve a reali-dade, mas como produtora de mundos, uma concepção de inconsciente necessariamente derivará. Sabemos que Freud não se dedicou ao trabalho com crianças em sua clínica, o que não significa dizer que tenha negligen-ciado esse período da vida. em suas próprias palavras:

Sublinhar a importância das primeiras vivên-cias não implica subestimar o peso das vivên-cias posteriores; mas essas posteriores impres-sões da vida falam com clareza pela boca do pa-ciente, enquanto o médico tem de erguer a voz em favor da infância (FREUD, 2010, p. 300).

Vale lembrar que o estatuto conferido à sexualidade infantil, pedra fundamental da psicanálise, causou frisson na época por diversas razões. diana Corso (2012) afirma que

[...] a descoberta da importância da infância decorre da existência não só de uma sexualida-de infantil, mas de um sujeito sexualmente de-sejante na infância. Assim, a psicanálise passa

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a se conectar com a história do sujeito, de um ser que desde muito cedo escreve suas páginas com seus desejos, proibidos e realizados, admi-tidos e recalcados. A infância recebe em seus braços tudo aquilo de que se lhe considerava ainda imune, acrescido do problema de que es-tas vivências são compreendidas como forma-doras, constituintes.1

ressaltamos aqui esse sujeito desejante apontado pela autora como aquele que in-veste nos objetos de seu mundo e os significa em uma operação paralela e simultânea a sua própria significação. Assim, a psicanálise nos fala de um mecanismo inconsciente de cons-tituição de sujeitos, tempos e universos não somente particulares.

desse modo, nos debruçamos sobre um tempo da criança não como aquilo que fo-mos um dia, um passado perdido, mas como esse movimento criador do sujeito em sua esfera relacional potencialmente presen-te. Tornar-se adulto não suprime a criança, viva naqueles que exploram ambientes por meio de trajetos plásticos e desenham seus próprios mapas. Como diz Manoel de Bar-ros (1999, s/p), “com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças”.

Mil e um dias e noitesA magia do texto freudiano está em sua abertura para inúmeras leituras. Assim como em certos momentos a balança pende para a necessidade de legitimação da psicanálise no campo da ciência, atendendo às deman-das de seu tempo, em tantas outras passagens podemos encontrar uma concepção de in-consciente como usina de produção de mun-dos. Sim, “a psicanálise já enfrentou muitas tempestades” (Freud, 1996, p. 50).

Cabe a nós, produto e produtores da psi-canálise, garantir seu lugar no campo das

ciências do devir (SAidÓN, 2008), para que possamos estar aliados ao caos e à incerteza, sem negligenciar a estrutura e o instituído, tomando-os como trampolins para o engen-dramento da vida, e não como âncoras que estancam o movimento.

As crianças, os artistas e os pacientes em análise bem sabem, pela própria experiência, o que significa habitar um devir. Nas pala-vras do psicanalista,

[...] é instalar-se em uma zona de copresença; é trabalhar em um entorno; é evocar o estranho em nós com os outros; é a troca que acontece a uma partícula ao entrar em uma zona de indeterminabilidade e de potenciais processos criacionistas (SAIDÓN, 2008, p. 95).

Winnicott concordaria que há algo em comum entre esses três personagens, quais sejam a criança, o artista e o analisando, já que para ele “é no brincar, e talvez apenas no brincar, que a criança ou o adulto fruem sua liberdade de criação” (WiNNiCOTT, 1975, p. 79). Criação de si e do próprio mundo tal qual o processo de análise em que, de lam-parina em punho, exploramos nossos sótãos empoeirados, conhecendo e reinventando nossa própria história. É como diz Bergson (2006, p. 98): “só se conhece, só se com-preende aquilo que se pode, em alguma me-dida, reinventar”. O divã, tal qual um tapete mágico, nos leva à exploração de territórios conhecidos e inusitados. Nesses voos revisi-tamos o passado com seus personagens, co-res e sabores e, por meio da magia do tapete, vivemos os mil e um futuros por vir. e para nossa surpresa retornamos com o corpo in-teiro, revitalizados pela possibilidade de re-fazer a nós mesmos a cada dia que o tapete novamente alça voo.

AbstractIn the forthcoming lines the reader will be presented to a reflexive exercise about some aspects of the psychoanalytical dungeon cons-

1. <http://www.marioedianacorso.com/a-invencao-da-crianca-da-psicanalise-de-sigmund-freud-a-melanie-klein>.

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truction. The practical and conceptual frame-work is disclosed both as a derivative of its time and as an effects producer in the ways of being, acting and thinking of men and its worlds. The figures of the child, the artist and the analy-zed are presented as characters that lend their bodies to the personification of psychoanalysis precious concepts and practices.

Keywords: Psychoanalysis, Child, Becoming.

Referências

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reCeBid O eM: 01/09/2013APrOVAd O eM: 29/10/2013

S obR e a au toR a

Luciana KnijnikPsicóloga. doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e institucional da universidade Federal do rio grande do Sul. em formação no Círculo Psicanalítico do rio grande do Sul.

endereço para correspondênciarua Tomaz Flores, 192/20190035-200 - Porto Alegre/rSe-mail: [email protected]

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De Simone de Beauvoir aos “Cinquenta tons de cinza”

No final de 2012, o romance em série Cin-quenta tons de cinza foi um grande sucesso editorial; por todo lado, via-se mulheres ou lendo um dos volumes, ou pegando um para ler. Mas o que levou um livro tido como li-teratura menor, romance erótico “fast-food”, como tem sido chamado por alguns, a um grande sucesso de vendas?

O movimento feminista eclodido no sé-culo passado trouxe frutos que as mulheres colhem até os nossos dias, como emancipa-ção, sucesso profissional em qualquer tipo de carreira, destaque em atividades intelec-tuais, direito a voto, etc. O que leva, então, ao sucesso um livro que, em pleno século 21, aborda um romance no qual a heroína precisa se colocar como “submissa” sexual-mente em relação a um “dominador”? Essas e outras aparentes contradições me levaram à reflexão que se segue.

Através de estudos psicanalíticos sabe-mos que ao neurótico falta certa concessão ao gozo, e ao perverso falta a concessão ao amor, e que numa saída ideal de análise é a isso que assistimos. Em outras palavras, ve-mos que a pulsão de morte veiculada pelo

De Simone de Beauvoir aos “Cinquenta tons de cinza”

From Simone de Beauvoir to the “Fifty Shades of Gray”

Maria Carolina Bellico Fonseca

ResumoCom base análise do fenômeno editorial Cinquenta tons de cinza, a autora busca compreender a excitação causada entre as mulheres pelo livro e seus personagens. Ela inicia com o questio-namento da possível estrutura do personagem principal, tema de debate constante em várias rodas femininas. Em seguida, usando os conceitos de fantasia e gozo, busca compreender o interesse suscitado pela trama que envolve uma relação sadomasoquista e as posições de do-minador e submissa chegando, por fim, a discutir o que isso poderia dizer dos encontros sexuais na contemporaneidade.

Palavras-chave: Perversão, Fantasia, Sexualidade, Gozo.

gozo perverso é enlaçada novamente pela libido e, dessa forma, nem o neurótico ne-cessita tanto do recalque e nem o perverso do desmentido já que, pela via do amor enla-çado a um pouco de gozo, ambos conseguem um amansamento da pulsão, um apazigua-mento do real do sexo, o que tem estreita relação com o aforismo de Lacan, citado no Seminário 20: “Só o amor permite ao gozo condescender ao desejo” (LACAN, 2004, p. 197). Lembrando Marco Antônio Coutinho Jorge em um de seus seminários no CPMG sobre a fantasia, o neurótico, na direção da cura, se encaminha em direção à perversão, e o perverso, no sentido oposto.

Amor GozoNeurótico Perverso

A oposição entre neurose e perversão pode ser indicada pela ênfase posta em um dos dois termos da fantasia: neurose (S) e perversão (a)

S a

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De Simone de Beauvoir aos “Cinquenta tons de cinza”

• O polo do amor S — polo paterno da fantasia

• O polo do gozo a — polo materno da fantasia

Christian Grey, rapaz que por suas prá-ticas sadomasoquistas em tudo lembra um perverso, era uma pessoa que cresceu com “uma autoimagem negativa, pensando que era algum tipo de rejeitado, um selvagem in-capaz de ser amado” (James, 2012, livro 3, p. 479). Filho de uma prostituta viciada e ví-tima de seu cafetão sádico, foi torturado du-rante seus quatro primeiros anos até a morte de sua mãe biológica e posterior adoção por uma família abastada. Cresce uma criança arredia, que após anos de silêncio consegue, através da música, sair da mudez que o aco-metia desde que foi achado ao lado de sua mãe morta, com cujo cadáver ficou tranca-do num apartamento sem comida, por três dias. suas vivências com essa mãe submeti-da a seu cafetão que costumava queimar a criança com cigarro aceso, trouxe como se-quela um pavor de ser tocado, mesmo após a adoção. Torna-se um adolescente rebelde, prensado entre a forte demanda pulsional e o horror ao toque e ao envolvimento afetivo. Vai de uma passagem ao ato a outra, descon-trolado num percurso mortífero até encon-trar uma mulher que o introduz no universo sadomasoquista lhe oferecendo, assim, uma oportunidade viável “de lidar com a dor do lado de fora” (James, livro 3, p. 479), uma proposta sedutora para quem cresceu achan-do “que merecia apanhar” (James, livro 3, p. 479). ao lhe dar uma forma de lidar com o gozo mortífero, ela o auxilia a “canalizar sua raiva” e se torna o “centro de seu mun-do”. mas nessa primeira relação Christian era submisso àquela que era sua dominadora, e é nessa submissão que ele se “reencontra” e “descobre a força de que precisava para to-mar as rédeas” de sua vida, “ter o controle e tomar suas próprias decisões”, enfim, se tor-nar um dominador também. Por outro lado, foi criada uma situação de assepsia afetiva, na qual o rapaz evitava se relacionar de ver-

dade com quem quer que fosse. seus casos eram puramente sexuais e balizados por um contrato no qual as duas partes, submissa e dominador, estabeleciam regras, limites, e a dor e o sexo substituíam o sexo com amor. Isso lhe dava uma falsa sensação de liberdade e controle já que ele só podia transitar dentro de tais limites.

Tudo correu muito bem até que apareceu alguém, uma jovem mulher, anastasia stee-le, que fez seu mundo, antes calmo e organi-zado, virar de cabeça para baixo ao introdu-zir paulatinamente um novo ingrediente em sua vida — o amor. maníaco por controle, mas seduzido pela situação de embate, ele se propõe a entrar nessa relação, certo de que era o senhor da situação; todavia encontra alguém rebelde, insubmissa e desafiado-ra, que aos poucos lhe tira o chão. ela, por sua vez, é uma moça com autoestima baixa, inexperiente em relações afetivas, mas que se sente fortemente atraída pela beleza e pelo poder representados pelo rapaz e, ao se per-ceber escolhida por ele (mesmo se sentindo não merecedora de sua atenção) cede, paga o preço se submetendo a uma certa dor, a que lhe era suportável na relação, para ela, eró-tica.

Como nos mostra Lacan no Seminário 10, há uma “função — não mediadora, mas me-diana — da angústia entre o gozo e o desejo” (LaCan, 2005, p. 192), e é exatamente o que ocorre com esses personagens quando, antes de conseguirem estabelecer os limites baliza-dos em seu desejo, mas já apaixonados, o ca-sal se separa. Gray, antes dominador e senhor de si e do Outro, apaixonado, se torna cativo, castrado; na angústia da perda se torna um sujeito “premido, afetado, implicado no mais íntimo de si mesmo” (LaCan, 2005, p. 191), no mais íntimo de seu desejo. então ele cede em seu gozo e ascende ao desejo.

Os limites entre dor e prazer são tênues, e estabelecê-los se torna um desafio que é en-frentado pelos dois. a diferença entre anas-tasia e as outras submissas é que esta não abre mão totalmente de seu jeito de ser, de

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De Simone de Beauvoir aos “Cinquenta tons de cinza”

sua espontaneidade e, algumas vezes, apesar de tentar se controlar, faz o que lhe dá von-tade e acaba sendo fortemente castigada por isso. Castigo que aos poucos, vai sendo dese-jado e provocado por ela, uma vez que acaba se tornando um ingrediente fortemente eró-tico na relação dos dois, ou seja, o que antes era uma forma de gozo do Outro se torna, ao ser enlaçado pelo amor e pelo desejo, um tempero desejável na relação a dois.

Afora os ingredientes fortemente roma-nescos, a trama nos ilustra um pouco o tra-tamento do gozo da dor pelo amor e a busca de equilíbrio entre os dois. Sabemos que a se-xualidade é perverso-polimorfa na infância e que a sexualidade adulta tem aí suas raí-zes que lhe trazem a seiva, a vida. A irriga-ção da vida sexual de cada um vai depender do quanto é possível conceder com o gozo libertando-se das amarras da repressão, cuja raiz é o recalque. Talvez aqui esteja um dos interesses do livro: a heroína vive situações e práticas sexuais que grande parte das mu-lheres só o faz em fantasias e, de certa forma, traz para elas uma autorização para a vivên-cia dessas fantasias sem se sentirem doentes ou culpadas. Alguém já fez, mesmo que num livro, então também posso, quero ou no ínti-mo, desejo.

Contudo, não posso deixar de sublinhar que no livro, mesmo com amor, a mulher precisou ceder ao controle do homem para tê-lo, e ele precisou respeitar limite dela para a dor. Ambos cederam. No entanto, é curiosa essa cessão de controle e a entrega à submis-são, em pleno século 21, quase um século de-pois de as mulheres terem se rebelado contra esse papel de submissas e lutado bravamente por um lugar respeitável ao lado do homem, lugar de igualdade tanto de direitos quanto de acesso ao prazer.

Podemos dizer que aqui se trata da sub-missão como ingrediente erótico, numa re-vivência do erotismo da fantasia do artigo de Freud — Uma criança é espancada –— na qual o dominador substitui o pai desejado do Édipo, e as surras têm a equivalência simbóli-

ca das relações sexuais. Freud se refere a esse artigo como um ensaio sobre o masoquis-mo. Para ele a perversão na infância pode ser a base para a construção de uma perversão posterior que pode ser interrompida e per-manecer no fundo de um desenvolvimento sexual normal. A fantasia de espancamento e “outras fixações perversas análogas” são resíduos do complexo de Édipo, “cicatrizes” deixadas por esse processo.

Para Marco Antônio Coutinho Jorge, de-tecta-se no cerne desse texto de Freud uma articulação entre amor e gozo (“inerente a toda fantasia de desejo”), representando a estrutura interna da fantasia. Segundo ele, trata-se de:

• Fantasia de completude amorosa na neurose;

• Fantasia de completude de gozo na per-versão.

Para Freud, mais tarde, quando a crian-ça é maior, a leitura substitui o papel de es-pancamento das crianças — o conteúdo dos livros traz um novo estímulo às fantasias de espancamento. Ora, não seria esse um dos motivos do sucesso dos Cinquenta tons entre as mulheres de hoje? Não teria o livro para essas mulheres adultas o mesmo o papel que um dia teve a fantasia para as crianças? Atra-ção e amor pelo dominador, erotização da dor, desejo por surras. Freud adoraria isso...

A sexualidade em nosso tempo tem certa coloração perversa e tem na atração pelo fe-tiche um ingrediente saboroso como o com-prova o sucesso das sex shops. Nossas mães e avós não queimaram seus sutiãs em vão. Hoje as mulheres se permitem o exercício de sua sexualidade e fantasias de forma mais livre, aberta e, em alguns casos, até banali-zada. Para algumas, o sexo casual, sem com-promisso, oferece mais interesse que as tra-dicionais relações entre homens e mulheres como namoro e casamento, o que não deixa de ser uma ilusão de estar no controle da re-lação, da vida; já não são mais abandonadas e enfraquecidas pelo amor, e o homem român-tico é tratado por elas como “chiclete que não

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De Simone de Beauvoir aos “Cinquenta tons de cinza”

sai do pé” e acaba levando um “end”. Outras preferem a exposição na Internet ou as rela-ções virtuais e ainda vemos também aquelas que, almejando ou não uma vida profissional independente, desejam também um com-panheiro, um lar e filhos. Mas todas que-rem ser gostosas, poderosas e, algumas ve-zes, destruidoras de homens. Não seria essa uma forma de dominação sádica? Christians Grays de saias e peitos? Alguns homens con-cordariam comigo, e tem sido comum ouvir deles seja em rodas sociais, seja em nossos consultórios, que hoje é difícil encontrar mulheres para namorar, casar.

Nesse contexto podemos dizer que, em al-guns casos, o amor tem sido prova de fraque-za, quase como o foi outrora para as mulhe-res guerrilheiras e, até mesmo, para algumas feministas. Teriam sido as correntes do amor trocadas por correntes na cama usadas por mestres mulheres para submeter os homens? As revistas femininas trazem cada vez mais receitas e regras para a conquista e submis-são do companheiro sexual. É interessante se compararmos com as revistas femininas da década de 1950, que davam como receita para manter um casamento saudável, a quase total submissão ao homem e a preocupação com o prazer dele.

Tudo isso é muito contraditório, pois, apesar de o sexo andar meio banalizado, um livro como esse romance picante, com fortes doses de erotismo sadomasoquista, faz um grande sucesso entre as mulheres, como eu disse no início deste texto, e se multiplica nas prateleiras sob títulos diferentes. Faria sen-tido a parte da relação sádica se o livro não fosse, no final das contas, uma grande água com açúcar com um final feliz, dominador e submissa numa linda relação de amor, com direito a casamento e filhos. Será que por trás da tão almejada aparência de poderosa a mu-lher contemporânea traz em si uma Julieta em busca de um Romeu com chicote e vara? Será que algumas mulheres não estariam se identificando com o homem dos sonhos clichê, rico, lindo e poderoso (até parece os

três desejos realizados pelas fadas dos contos infantis) e bom de cama? (afinal, mocinha é levada às nuvens em suas relações sexuais...). Outro fator que pode ser atraente é o poder demonstrado pela heroína já que, no final, ela, de certa forma, submete o sádico para transformá-lo num amante sensacional e marido ideal...

São muitas as razões desse sucesso de ven-das, e não tenho a pretensão de esgotá-las, porém não deixo de notar uma proximidade com as fotonovelas de antigamente e mesmo com as novelas globais em seus ingredientes romanescos, picantes e na apologia do amor conquistado após muito sofrimento e bata-lha da heroína.

Muda a cultura, mudam os costumes, diminuem as repressões, mas a sexualidade continua mais perverso-polimorfa do que nunca e tem encontrado em diferentes graus de sadismo um ingrediente poderoso.

AbstractWith the analysis of the topped best-seller Fifty Shades of Gray, the author tries to understand the excitement caused among women for the book and its characters. She starts questio-ning the possible psychic structure of the main character, subject of constant debate in some feminine circles. Then, using the concept of fantasy and enjoyment, she discusses the in-terest shown by the plot involving a sadistic and masochistic relation, and the positions of dominator/submitted, to finally speak about nowadays sexual meetings.

Keywords: Perversion, Fantasy, Sexuality, Enjoyment.

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Referências

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JORGE, M. A. C. Fundamentos da psicanálise - de Freud a Lacan. Rio de Janeiro: Zahar.

LACAN, J. O seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

RECEbID O EM: 09/09/2013APROVAD O EM: 29/10/2013

S oBR e A Au toR A

Maria Carolina Bellico FonsecaPsicóloga. Psicanalista. Mestre em Psicanálise pela UFMG. Membro do CPMG.

endereço para correspondênciaRua Santa Rita Durão, 321/511 - Funcionários 30140-110 - belo Horizonte/MGE-mail: [email protected]

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De Simone de Beauvoir aos “Cinquenta tons de cinza”

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O contador de histórias: vínculos e identificações

IntroduçãoNosso texto examina a importância dos vín-culos e das identificações na infância e na adolescência, partindo do filme brasileiro O contador de histórias. Dirigido por Luiz Vil-laça (2009), o filme retrata a vida de Rober-to Carlos Ramos, que em 1978 passa a fre-quentar a FEBEM (Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor), em Belo Horizon-te. O personagem Roberto é o décimo filho de uma senhora que sustentava sua família trabalhando como lavadeira, em seu case-bre. Diante da vida difícil, interna o filho na FEBEM, onde poderia ter uma vida melhor e até se tornar doutor, uma vez que a campa-nha institucional veiculada na televisão, em cada letra de seu nome, trazia um significa-do promissor: F de Fé; E de Educação; B de Bons modos; E de Esperança; M de Moral. Uma cena muito significativa é quando, de madrugada, a mãe veste seu pequeno com carinho e o leva à instituição. Após a assina-

O contador de histórias: vínculos e identificações

The Storyteller: Identification and Bonds

Maria Melania Wagner Franckowiak PokorskiLuís Antônio Franckowiak Pokorski

ResumoO presente ensaio pretende examinar os conceitos do vínculo e das identificações presentes na constituição psíquica do ser humano. Para ilustrar essa constituição psíquica, utilizaremos al-guns fragmentos da vida de um menino que, com seis anos de idade, é deixado por sua mãe na FEBEM, em 1978. Trata-se de uma situação real, que é retratada no filme brasileiro O contador de histórias, de 2009. Além da história de vida do menino, analisaremos o papel da pedagoga pesquisadora que exerce as funções materna e paterna, sendo continente aos momentos de ódio expressos pelo menino e que chega a adotá-lo. Dos autores da psicanálise utilizaremos Freud, Winnicott e Bion, bem como os que fazem uma releitura deles, por exemplo, Gutfreind, Nasio e Zimerman.

Palavras-chave:Vínculo, Identificações, Constituição psíquica, Psicanálise.

tura digital, por ser analfabeta, a despedida lhe é negada pela diretora da instituição. Ro-berto, vendo-a pelo vidro da janela, suplica que não o deixe ali.

A escolha do filme para o presente texto se deve a vários motivos. Um deles é o fato de a obra contar a história de um menino bra-sileiro, que representa a realidade de várias crianças que sofrem com as adversidades da vida desde muito cedo. Igualmente, cabe ana-lisar o papel dos profissionais da instituição, que, muitas vezes, se mostravam insensíveis aos sentimentos dos menininhos. O filme aponta, por outro lado, o papel fundamental da pedagoga francesa Marguerit, realizando pesquisas no Brasil, quando encontra Ro-berto após o resgate em uma de suas muitas fugas. Ela o fita nos olhos, dirigindo-se a ele com gentileza e não desiste dele em nenhum momento.

O filme apresenta Marguerit no exercício das funções materna e paterna, continente ao

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desespero e ao desamparo de Roberto. Aos poucos, a confiança começa a se estabele-cer, além do respeito às escolhas do menino. Diante do anúncio do retorno de Marguerit à França, Roberto inunda a casa inteira de água; contudo, percebe que os limites e o castigo de secar toda a casa foram mereci-dos. A atitude de Roberto de ter provocado o ódio de Marguerit naquela ocasião foi mais por temer um abandono, o que não se con-firmou. Essa atitude de provocar o abandono é frequente em toda criança já abandonada. Marguerit o adota e o leva ao seu país, onde ele estuda e volta formado professor de His-tória, com o endereço de residência de sua mãe biológica.

Portanto, na primeira parte, pretendemos descrever a chegada do menino, aos seis anos de idade, à instiuição FEBEM, o seu período de adaptação, o significado da separação, o estabelecimento de escassos vínculos e, logo em seguida, sua experiência de uma segun-da adaptação por pertencer ao grupo de sete a catorze anos de idade, quando as fugas da FEBEM passaram a se intensificar, ocasiões em que os meninos roubavam, cheiravam cola e usavam outras drogas. Roberto passa por avaliações psicológicas, recebendo diag-nóstico de dislalia, dislexia, discalculia. Em cada resposta errada, as psicólogas davam uma bolachinha recheada, o que estimulava Roberto a não se preocupar com a resposta. Além disso, com as muitas fugas, recebeu o diagnóstico de “caso irrecuperável”. As fu-gas o inspiraram a querer pertencer a um grupo de meninos de rua mais experientes, por admirá-los. E como exigência de per-tencimento ao grupo, teve que passar pela prova de ser abusado sexualmente. O sofri-mento foi muito intenso, levando-o a tentar o suicídio, deitando-se nos trilhos de trem. Após essa vivência amarga, procura a casa de Marguerit.

Na segunda parte, analisaremos o víncu-lo com a pesquisadora Marguerit, que, após um período de provações e silêncios, teve um comportamento continente, respeitando

o seu jeito de ser. Roberto lhe conta a sua his-tória, que fica registrada nas fitas do grava-dor. Nesse laço transferencial, ele conquista aos poucos, a aprendizagem da leitura e da escrita, a partir do contato com a história do personagem Capitão Nemo, por quem demonstra admiração, encantamento, o que desperta a sua imaginação sobre as profun-dezas do mar, que desconhecia.

O filme O contador de histórias nos opor-tuniza operar com os referenciais da psica-nálise. A obra nos possibilita transitar pela teoria da psicanálise, pelas situações clínicas, nos ajuda a entender os casos clínicos, nossas experiências analíticas e as demais situações da realidade.

Vínculos e identificaçõesParece-nos que as situações dos vínculos, das identificações e das separações podem expressar e representar um pouco do que Roberto, do filme O contador de histórias, vi-venciou em sua primeira etapa na FEBEM, em 1978, na cidade de Belo Horizonte, onde ingressou com seis anos de idade, precisando aderir às regras da instituição, uma vez que sua mãe acreditava ser aquela a forma de seu décimo filho se tornar doutor. Nessa institui-ção, Roberto não teve sequer espaço e tempo para poder chorar a saudade sentida.

Vínculo é a capacidade de estabelecer la-ços, a ligação com o outro, que é imprescin-dível à constituição psíquica. A psicanálise consagrou que os primeiros vínculos mãe--bebê são a matriz estrutural das relações afetivas futuras. Para Zimerman (2001), vín-culo, do latim vinculum, significa união, li-gadura, atadura, ligação entre as partes que estão unidas e delimitadas entre si. Quais os principais autores da psicanálise no estudo dos vínculos?

Em Freud encontramos apenas as ex-pressões “vínculos emocionais em grupo” e “vinculação psíquica”. Da vinculação psíqui-ca, em suas Novas conferências introdutórias sobre a psicanálise (1996), ao descrever A dissecção da personalidade psíquica, ansieda-

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de e vida pulsional, Freud menciona que, nas fobias, há um deslocamento, que é expresso temendo-se uma situação externa. A criança, nessas situações, busca se proteger utilizando a fuga como forma de proteção, uma vez que “fugir de um perigo interno é um empreen-dimento difícil” (FREUD, 1996, p. 88). A an-siedade é retomada por Freud, pela terceira vez, em 1932. Por volta de 1905, no artigo Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud entende a ansiedade como uma con-sequência do recalque. Porém, em 1926, em Inibições, sintomas e ansiedades, Freud apre-senta o recalque não mais como origem, mas como consequência da ansiedade. Em 1932, define a ansiedade como um estado afetivo de uma ameaça de perigo, que serve como forma de autopreservação. A sede da ansie-dade é o eu (ego), porque somente o eu (ego) produz e sente ansiedade, e não as instâncias do id e do superego:

[...] as três principais espécies de ansiedade, a realística, a neurótica e a moral, podem com tanta facilidade ser correlacionadas com as três relações dependentes que o ego mantém — com o mundo externo, com o id e com o superego (FREUD, 1996, p. 89).

O vínculo mãe-bebê é a base para o de-senvolvimento da personalidade da criança; sem o outro, é impossível alguém se cons-tituir como humano/sujeito. Revisando os referenciais da psicanálise sobre o vínculo, além de Freud, encontramos várias deno-minações. Melanie Klein (apud HINSHEL-WOOD, 1992) qualifica o vínculo como “elos de ligação” entre mãe-bebê. Bowlby (2006) enfatiza o vínculo como teoria do apego, salientando o vínculo afetivo mãe--bebê e os efeitos prejudiciais da privação da mãe. Winnicott situa a necessidade do olhar da mãe para que o bebê se veja refletido nes-se olhar. “O precursor do espelho é o rosto da mãe” (WINNICOTT, 1975, p. 153). Pichon--Rivière (2000) descreve a teoria do vínculo, pontuando as relações patológicas e sadias,

os vínculos e os papéis no grupo, os três D (depositário, depositante e depositado). Bion (apud ZIMERMAN, 2010) descreve três vín-culos como fundamentais: o do amor, o do ódio e o do conhecimento.

Em relação à origem da formação conhe-cimento, segundo Bion (apud ZIMERMAN, 1995), ela se organiza dissociada da forma-ção do pensamento, porém ambas são

[...] uma reação à experiência emocional pri-mitiva decorrente da ausência do objeto. [...] O Conhecimento progride em função do Pen-samento, portanto, para Bion, ‘a incógnita é desconhecida e, como tal, faz pensar e criar’ (ZIMERMAN, 1995, p. 111).

Aos três vínculos fundamentais de Bion, Zimerman (2010) acrescenta um quarto vínculo, o do reconhecimento. Defende que os quatro vínculos — amor, ódio, conheci-mento e reconhecimento — estão sempre in-teragindo entre si, qualificando-os como sa-dios ou como patológicos. Zimerman (2010) desdobra o vínculo do Reconhecimento em reconhecimento de si mesmo, reconheci-mento do outro, ser reconhecido ao outro e ser reconhecido pelos outros. Em relação ao reconhecimento de si mesmo, este ocorre no início da vida, quando o bebê começa a fazer a diferenciação entre eu e não-eu, na etapa narcísica. Pode deixar marcas para a vida adulta, em que a pessoa não consegue dis-tinguir o outro diferente de si mesma ou esse reconhecimento do outro pode ficar com dis-torções que são observadas na identificação projetiva, em que são projetadas dentro do outro as imagos parentais que habitam o psi-quismo de quem projeta.

[...] o reconhecimento de si mesmo, acresci-do do reconhecimento do outro, também se constituem como importantes fatores para a formação do sentimento de identidade, desde o seu nascimento até fases evolutivas poste-riores. Isso se processa através de uma sadia, ou de uma prejudicada, evolução de sua ca-

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pacidade para pensar e, consequentemente, de conhecer e reconhecer (ZIMERMAN, 2010, p. 210).

Ser reconhecido aos outros Zimerman (2010) justifica como a capacidade da pessoa de ter vencido a etapa mais primitiva que, segundo o referencial de Melanie Klein, sig-nifica ter feito a passagem da posição esqui-zoparanoide à posição depressiva, ou seja, tendo vencido o mundo mágico, da onipo-tência, aceitado as frustrações, ter adquirido a percepção total do objeto, e não apenas parcial, tendo assumido as responsabilida-des e os compromissos da vida, sendo grata ao outro, e, com isso, podendo desenvolver a capacidade de pensar, aprender e simbolizar as experiências vividas.

O quarto e último vínculo descrito por Zimerman (2010) é ser reconhecido pelos ou-tros, quer dizer, ser visto, nomeado, amado, diferenciado pelos outros; assim, como para a estrela existir ela precisa ser vista, nós huma-nos também precisamos desse investimento do outro. Muitas vezes, em nossos seminá-rios de formação psicanalítica, Natal Fachini mencionava que o que adoece a pessoa não é o amor, mas a falta ou a falha no reconheci-mento. Zimerman reafirma essa constatação de Fachini, pontuando que as configurações psicopatológicas, que abarcam as questões de “autoestima, de sentimento de identidade e o da relação com a realidade exterior” se originam dessa “falência desse tipo de neces-sidade do sujeito em ser reconhecido” (ZI-MERMAN, 2010, p. 212).

Após essa explanação sobre a importância dos vínculos iniciais da criança com o meio e vice-versa, ficamos a questionar o estado do pequeno Roberto, do filme de pano de fun-do de nosso texto, sobre a sua “capacidade de estar só” e a sua “continuidade de ser”. Neste momento, consideramos importante exami-nar esses dois conceitos descritos por Winni-cott (1990). Na etapa inicial, o bebê é de uma dependência absoluta e, para evoluir dessa etapa, precisa de uma mãe “suficientemen-

te boa”. Hipoteticamente, poderíamos dizer que uma mãe de dez filhos preencheria esse quesito, até pela repetição das experiências, não fossem as adversidades da vida, de muita pobreza, fome e da figura paterna totalmente ausente, conforme mostra o filme. Para ad-quirir a “capacidade de estar só”, a criança precisa ter introjetado o ego auxiliar (a mãe); com isso, a mãe está presente no psiquismo da criança, mesmo que ausente no espaço. O cuidado materno possibilita à criança a ca-pacidade

[...] de ter uma existência pessoal, e assim co-meça a construir o que pode ser chamado de continuidade de ser. Na base dessa continui-dade de ser, o potencial herdado se desenvolve gradualmente no indivíduo lactente (WINNI-COTT, 1990, p. 53).

Winnicott (1990) acrescenta que, quando ocorrem falhas no cuidado materno, abrem-se possibilidades de esse bebê “não vir a existir” ou a organização do seu ego ser con-siderada fraca. É importante ressaltar a im-portância de a mãe poder contar com o pai da criança nesses momentos iniciais. Cabe lembrar que as funções do ego são: perceber, pensar, planejar, lembrar, prestar atenção, ou seja, todas elas envolvem as questões da aprendizagem. Em relação à aprendizagem, nosso personagem fora diagnosticado com dislexia (mesmo não sabendo ler e escrever), dislalia, discalculia e, em relação ao compor-tamento na adolescência, um “caso irrecupe-rável”. Mas qual o papel das identificações na constituição psíquica?

O processo identificatório na psicanálise foi criado por Freud (apud ROUDINESCO; PLON, 1998) para designar

[...] o processo central pelo qual o sujeito se constitui e se transforma, assimilando ou se apropriando, em momentos-chave, de uma evolução, dos aspectos, atributos ou traços dos seres humanos que o cercam (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 363).

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As pulsões autoeróticas são básicas, estão lá desde o início, mas algo deve ser acrescido a esse autoerotismo, e o que se acrescenta é o “eu”. Assim, o narcisismo equivale ao nasci-mento do “eu”. Segundo Garcia-Roza (1995), a partir de 1920, Freud denomina o autoe-rotismo de narcisismo primário; nele ainda não há um eu diferenciado do não eu, mas há a pulsão sexual satisfazendo-se autoerotica-mente no próprio corpo. São ainda caracte-rísticas do narcisismo primário a onipotên-cia, a imagem corporal, o eu ideal, o plano imaginário, as idealizações. No narcisismo secundário, por sua vez, há uma relação de objeto, uma identificação com o outro, um ideal do eu, marcado pelo simbólico. Mas como se dá a identificação no conceito freu-diano?

Para Nasio (1997), a identificação, a par-tir das categorias freudianas, acontece entre duas instâncias inconscientes: o eu e o objeto, podendo ser total ou parcial. Freud denomi-na de identificação primária a identificação total do eu com o objeto total. Retoma a pré-condição mítica, transmitida de geração a geração, em que o objeto total é o Pai mítico da horda primeva. Os filhos devoram o pai, incorporando-o pela boca, para que tenham a força paterna inteira dentro de si. Nas iden-tificações parciais, o objeto tem um signifi-cado de representação inconsciente. Nasio (1997) assinala o aspecto ou a forma que a representação assume, podendo ser por um traço distinto, uma imagem (global ou local) ou uma emoção.

Na identificação parcial com o traço do objeto, o eu se identifica com um traço de um objeto amado, desejado e perdido, ou até com vários objetos que têm o traço da sonoridade vocal, do sorriso, do olhar, da vestimenta, do cabelo, etc. Nasio mostra que Freud a qualifica

[...] de ‘identificação regressiva’: o eu estabe-lece, primeiro, um vínculo com o objeto, de-pois desliga-se dele, volta-se sobre si mesmo, regride e se decompõe nos traços simbólicos

daquilo que não existe mais (NASIO, 1997, p. 107).

Na identificação parcial com a imagem global do objeto, a “representação incons-ciente do objeto amado, desejado e perdido é uma imagem” (NASIO, 1997, p. 107). Em relação a essa identificação, Nasio (1997) dá um exemplo do menino que tem um forte apego com seu gato, ilustrando a identifica-ção patológica na melancolia. Certo dia se deparou com o gato morto. Passados alguns dias, o menino começa a apresentar condu-tas bizarras, adotando atitudes felinas: bebia, miava e caminhava como gato. O menino reproduzia a conduta daquele que o deixou, tornando-se idêntico à sua imagem, vestiu-se com a “pele do outro”, uma conduta narcí-sica. Assim, no exemplo do menino e o gato:

O eu não encontra outra pele senão a anterior-mente amada, porque, ao amá-la, refletia-se nela e amava a si mesmo. Se hoje o menino melancólico banca o gato, é justamente porque a imagem de seu gato vivo já era sua própria imagem (NASIO, 1997, p. 108).

A identificação parcial com a imagem lo-cal do objeto e a identificação com o obje-to, enquanto emoção, se relacionam ao tipo de investimento dos histéricos. No primeiro se destaca a identificação com a imagem da parte sexual do outro; no segundo o eu iden-tificado com o outro, enquanto emoção, sig-nifica que:

Todo sonho, sintoma ou fantasia histéricos condensa e atualiza uma identificação tríplice: identificação com o objeto desejado, com o ob-jeto desejante e, por fim, com o objeto de gozo dos dois amantes (NASIO, 1997, p. 110).

Sabemos que muitas vezes as adversida-des da vida da criança interferem em sua constituição psíquica. McDougall (2001) utiliza de Christopher Bollas os conceitos de fado e pulsão de destino. Em relação ao

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“fado”, a pessoa não tem controle direto, é uma situação acidental, externa ao sujeito, ou seja, é da realidade, são as situações inevi-táveis e fatídicas com as quais se depara. Já a “pulsão de destino” engloba a participação e a responsabilidade da pessoa para reagir aos golpes do fado.

McDougall (1996) relata vários casos de pessoas que, em sua etapa inicial de desen-volvimento, sofreram severos prejuízos em relação aos cuidados essenciais à constitui-ção psíquica, em que mãe e pai falharam, afetando sua capacidade para o sonho, a fantasia, o nomear as emoções ou as dores físicas ou psíquicas, sofrendo de insônia e utilizando um pensamento concreto em seus discursos. No capítulo intitulado Sobre a pri-vação psíquica, McDougall (1996) descreve que, para poder sonhar, é necessário que o bebê tenha introjetado uma “tela do seio ma-terno” de confiança e de segurança. Quando não há essa tela, não há onde e o que proje-tar. A mãe (ou a pessoa que cuida e acolhe) representa uma proteção contra os estímulos transbordantes, especialmente na época da representação de coisa, isto é, as representa-ções anteriores à palavra.

Portanto, parece-nos importante essa análise das condições de nosso personagem do filme O contador de histórias, o Roberto, que, desde muito cedo, teve que lidar com situações de desamparo, separações e aban-donos em seus vínculos, o que, consequente-mente, afetou seu processo de identificações. Os vínculos, por anos seguidos, se mostra-vam escassos, inconstantes, violentos e com pouco investimento do outro. Os profissio-nais da instituição tratavam cada criança como uma a mais, e não como ser humano. Ainda seria possível confiar em outra pes-soa? Apesar de todas essas situações, algo em seu mundo imaginativo e criativo estava indicando para algumas possibilidades, mes-mo que as potencialidades de aprendizagem estivessem rotuladas como sem alternativa alguma. Qual a importância da atitude e do papel da pesquisadora na vida de Roberto?

A relação de Marguerit com Roberto pode ser comparada com a função psicanalítica de continência, usando a capacidade reverie, as funções materna e paterna, a confiança e o respeito?

A pesquisadora continenteA relação de Marguerit e Roberto, após

o tempo do estabelecimento da confiança, vai modificando a tomada de consciência de cada um. Descobrem-se gostos, interesses e limites de cada um, embora, no início, o medo recíproco ficasse manifesto, mas não nomeado. A possibilidade de Roberto con-tar a sua história e escutar parte da história da pesquisadora fez com que as duas reali-dades se aproximassem cada vez mais. A leitura da história do personagem Capitão Nemo, de Júlio Verne, escrita no século XIX, foi outro momento marcante nessa relação de estabelecimento do vínculo e nas iden-tificações. Roberto escuta falar de um mar profundo e desconhecido, dominado pelo Capitão Nemo, que vence todos os obstá-culos possíveis desse mar. Aliás, a contação de histórias é um recurso terapêutico mile-nar. A psicanálise se utiliza há muito desse recurso, principalmente quando se trata da análise com crianças. “Narrar é antitraumáti-co, porque cria vínculos e abre espaço para o inédito” (GOLSE apud GUTFREIND, 2010, p. 21). Em seu livro, Gutfreind (2010) defen-de que contar histórias, que podem ser pes-soais ou contos infantis, de ficção, possibilita o exercício da parentalidade, que está ligada à transmissão de narrativas, a um projeto de vida e a um sentido da existência.

Possivelmente os vínculos de Marguerit e Roberto aos poucos foram se intensificando com o convívio, com a gravação da contação de histórias, com a aprendizagem da leitura e da escrita. Os dois idiomas igualmente mar-caram a relação: Roberto ensinando algumas palavras e gírias brasileiras, e Marguerit ensi-nando francês. Com o passar do tempo, esses dois personagens foram nascendo para um novo mundo:

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O verdadeiro nascimento não é o biológico. Ele é afetivo, no desejo maternal, primário e doido de construir o vínculo. E, depois, com os afe-tos nas ventas, é que vem a tentativa cultural de acolher esta sandice maravilhosa (GUT-FREIND, 2010, p. 64, grifo nosso).

Parece-nos que, assim como Roberto foi tomando consciência da vida e da nature-za humana, a humanidade teve o seu mo-mento, em que o homem tomou consciência de si mesmo. Considerando a consciência mítica uma consciência comunitária, há uma relação entre o individual e o coleti-vo. Para Bion (apud ZIMERMAN, 1995), a produção imaginária coletiva contida no mito equivale à fantasia inconsciente indi-vidual. Em seus estudos, utilizou os mitos de Édipo, do Éden, da Torre de Babel, dos Funerais do Rei Ur, da Morte de Palinuro e os vinculou ao conhecimento, ao amor e ao ódio (K-L-H). O vínculo emocional entre mãe e bebê não poderia ser só de amor (L) e de ódio (H), faltava o desejo da mãe em compreender/conhecer (K) as necessidades do bebê, bem como o que Bion denomina de capacidade de reverie.

O personagem Roberto, mesmo com o diagnóstico de “caso irrecuperável”, apren-deu a ler e a escrever. Isso sugere que teve uma mãe (a pesquisadora) que soube dar as respostas nos momentos adequados. As angústias do encontro inicial foram supor-tadas, desintoxicadas e canalizadas, como uma “mãe suficientemente boa” sabe fazer. A capacidade reverie da mãe é básica para a estruturação do psiquismo e para as futuras aprendizagens da criança. Se essa capacidade

[...] for adequada e suficiente, a criança terá condições de fazer uma aprendizagem com as experiências das realizações positivas e nega-tivas impostas pelas privações e frustrações e, nesse caso, ela desenvolve uma função K, que possibilita enfrentar novos desafios em um círculo benéfico de aprender com as ex-periências, à medida que introjeta a função

K da mãe (BION, apud ZIMERMAN, 1995, p. 112).

Quando a capacidade reverie da mãe de acolher, receber, conter, significar, decodi-ficar e nomear for insuficiente, as angústias que a criança projeta na mãe voltam a ela como um terror sem nome, o que aumenta as angústias e impede a introjeção de uma função K (conhecer/saber). O aprender e o conhecer necessitam da formação de sím-bolos, que, por sua vez, permitem à criança conceituar, generalizar, expandindo, assim, seu pensamento e conhecimento. Para Bion, a capacidade de formar símbolos depende

[...] da capacidade do ego em suportar perdas e substituí-las por símbolos. A capacidade da criança em suportar perdas, por sua vez, de-pende do fato de ter havido a passagem da posição esquizoparanoide para a posição de-pressiva (BION apud ZIMERMAN, 1995, p. 114).

Bion introduz em seus estudos a noção da capacidade de reverie a partir de uma mãe real, uma mãe para conter o bombardeio de identificações projetivas da criança. A capacidade de tolerância da criança em re-lação às frustrações depende de suas “inatas demandas pulsionais excessivas”, bem como da “mãe real externa”. Salienta que “esses dois fatores são indissociados e constituem o modelo de Bion de ‘continente-contido’, re-presentado pelos símbolos e ” (ZIMER-MAN, 1995, p. 91).

A função de conhecer/saber significa to-mar consciência da realidade sobre si mes-mo, da natureza, do mundo e, em cada expe-riência emocional, chegar a uma aprendiza-gem e a um novo conceito. A esse processo Bion (apud ZIMERMAN, 1995) chama de “pulsão epistemofílica ao conhecimento das verdades”, que pode se dar em diferentes pla-nos, por exemplo, conhecimento pessoal, dos outros, diferentes vínculos dos grupos entre si, etc. Em O contador de histórias, Ro-

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berto teve a sua segunda chance de (re)cons-truir, em seus vínculos, esses três conceitos fundamentais descritos por Bion: do amor, do ódio e do conhecimento, dando um novo sentido e significado a sua vida, uma vez que a pesquisadora Marguerit pôde ser continen-te às angústias e ao ódio expressos em dife-rentes momentos. Marguerit soube dosar su-ficientemente as funções materna e paterna. Ou seja, a função materna com a acolhida, a proteção, a confiança; a função paterna no estabelecimento e no cumprimento de regras e limites.

Considerações finaisO ser humano precisa, com frequência, bus-car conhecer a sua história, encontrar algum argumento, alguma palavra que explique o porquê do fenômeno que o assusta e o que lhe parece desconhecido. Nesse sentido, a humanidade tem criado mitos, histórias e contos de fadas. Bettelheim (1980) diz que os mitos são respostas taxativas, enquanto os contos de fadas são respostas sugestivas. O mito explica a realidade que ainda não foi justificada pela razão. O mito, mais do que explicar a realidade, tem a função de tran-quilizar e acomodar o homem em um mun-do desconhecido e assustador.

As histórias infantis e os contos de fa-das deixam à fantasia da criança um espa-ço para encontrar soluções e para aplicar a si o que a história tem com a sua vida. En-fim, as soluções são dadas, mas não soletra-das. Gillig (1999) refere que, nos contos de fadas, os monstros e as bruxas representam personagens temíveis que são as projeções imaginárias dos fantasmas que a criança traz consigo: medo de ser devorado, medo de ser abandonado por seus pais, medo da rivalida-de fraterna. Os contos de fadas são impor-tantes para a criança lidar melhor com suas angústias, projetando-as nessas histórias, podendo se identificar com os heróis. Além disso, oportunizam à criança um material imaginativo, onde buscará imagens e ideias para lidar com seus conflitos internos, po-

dendo traçar as fronteiras entre a fantasia e a realidade.

Como bem o salienta Gutfreind (2010), que realizou suas pesquisas de mestrado, doutorado e pós-doutorado na França, com crianças de abrigo e com crianças que ti-nham família, destacamos a importância da contação de histórias infantis e das narrati-vas na constituição da subjetividade. Gut-freind (2010) destaca autores da psicanálise que percebem no conto um potencial para o contato com os mais profundos afetos, vín-culos e identificações, apontando que Freud e psicanalistas contemporâneos atribuem ao conto uma função organizadora do psiquis-mo. Ou seja, nós nos constituímos de nossas histórias, de nossas narrativas.

Nosso protagonista Roberto, ao contar a sua história, em suas narrativas, bem como em seu apaixonamento pelas profundezas oceânicas, a partir da história do persona-gem Capitão Nemo, se tornou um contador de histórias. E essa possibilidade narrativa nos remete ao outro, o da escuta; contam-se histórias para alguém que nos reconhece, al-guém que não só ouve, mas alguém que es-cuta. A experiência analítica em sua essência é o poder se fazer narrativa, se tecer, se fazer texto, se fazer sentido, se contar, fazer e se fa-zer história.

AbstractThis essay intends to examine the concepts of identification and bonds included in the hu-man psychic constitution. To illustrate this psychic constitution, we are going to use some life fragments of a six years old boy, who was left behind by his mother at FEBEM (State Foundation for Children Welfare), in 1978. A real situation reproduced by the 2009’s Brazi-lian film ‘O contador de histórias’ (The Story-teller). Besides the history of the boy, we are going to analyze the researcher pedagogue’s role, performing the functions of mother and father, which is continent in the moments of hatred expressed by the boy and adopts him.

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We are going to use psychoanalysis authors such as Freud, Winnicott and Bion, and the ones that make a rereading of them, as, for example, Gutfreind, Nasio and Zimerman.

Keywords: Bonds, Identification, Psychic constitution, Psychoanalyzes.

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RECEBID O EM: 10/09/2013APROVAD O EM: 04/11/2013

Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 91–100 | Dezembro/2013100

O contador de histórias: vínculos e identificações

S obR e o S Au toR e S

Luís Antônio Franckowiak PokorskiGraduado em Filosofia. Professor de História e Filosofia no Ensino Médio. Formação no Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul. Doutorando em Psicologia Social (Universidad Argentina J. Kennedy).

Maria Melania Wagner Franckowiak PokorskiPsicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul. Psicopedagoga. Mestre em Educação pela PUCRS. Doutoranda em Psicologia Social (Universidad Argentina J. Kennedy). Professora Adjunta de Graduação e Pós-Graduação da Faculdade Porto-Alegrense.

endereço para correspondênciaAv. Assis Brasil, 3532/101291010-003 - Porto Alegre/RSE-mail: [email protected] [email protected]

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O outro da dor

Os fenômenos dolorosos não se restringem aos seres humanos. Os enigmas da dor são muitos, assim como se constituem inúmeras as expressões da experiência dolorosa. Por exemplo, há quem fale da satisfação com a dor em si ou o sofrimento próprio, uma es-pécie de enamoramento. Existem ritos em diversas culturas humanas que envolvem si-tuações dolorosas. Ocorrem diferentes trans-tornos psíquicos ou experiências subjetivas relacionadas à dor. Sinal vital, a dor tem fun-ção para a sobrevivência e a adaptação, assim como pode ser reconhecida em pinturas do ato de morrer.

Existem muitas formas de a experiência dolorosa se delinear: dor do parto, cefaleia, fibromialgia, dor do membro fantasma. A dor tem inúmeras classificações (central, periférica, aguda, crônica), pode ter relação com várias dimensões da existência, como a alimentação e o estresse, e ser compreendi-da por múltiplos enfoques. Ainda hoje é co-mum falar de “dor física” por meio de uma visão organicista, o que é distinto de uma compreensão biopsicossocial da dor. Nas re-conhecidas modalidades físicas dos fenôme-nos dolorosos de um ser humano, a psique está presente, e seus efeitos inconscientes podem, nos casos indicados, ser acompa-

O outro da dorThe partner of the pain

Ricardo Azevedo Barreto

ResumoCom o objetivo de humanização da assistência, o autor debate sobre algumas concepções da abordagem psicanalítica acerca da denominada “dor física” do ser humano, sua diferença da “dor mental” e enfatiza que é questionável falar da dicotomia entre as dimensões física e psico-lógica da dor. Compreende que a dimensão psíquica está presente na “dor física” do paciente, e os efeitos do inconsciente podem ser analisados por um psicanalista na equipe de saúde, quando houver indicação.

Palavras-chave: Psicanálise, Dor, Inconsciente, Humanização, Saúde.

nhados e trabalhados pela escuta de um psi-canalista na equipe de saúde com o intuito de humanizar a assistência.

Nas publicações especializadas em saúde, predominam as concepções médicas da dor. Para a Associação Internacional para o Estu-do da Dor, a dor é “uma experiência sensorial e emocional desagradável, que é decorrente ou descrita em termos de lesões teciduais” (TEIXEIRA, 2001, p. 329). Contudo, a cul-pa e as diferentes expressões de sofrimento psicológico ou da “alma” não se excluem do campo das dores humanas, quando os nor-teadores são as concepções da psicanálise, da filosofia, da teologia, etc. De acordo com Dallenbach apud Andrade (1998), Aristóte-les concebe a dor, ao lado do prazer, como uma paixão da alma; além disso, a dor pode ser considerada um castigo ou uma redenção no catolicismo.

Freud não tece sistematicamente uma dis-cussão sobre a dor física. Sobre tal temática, ele fala em Projeto para uma psicologia cien-tífica. Aborda a noção de barreira protetora e menciona a penetração dessa barreira por sensações físicas, ocorrendo a experiência de desprazer, relacionando a sensação a traços de memória (GRZESIAK; URY; DWORKIN, 1996). No mesmo texto, ao se referir à dor,

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O outro da dor

Freud (1990) fala da irrupção de grandes quantidades no sistema neuronal. Comenta também a relação entre dor e interrupção de continuidade, assim como a tendência con-tra a elevação da tensão e a fuga do sistema nervoso da dor, entre outros aspectos.

No Rascunho I, Freud (1990, p. 300) faz uma referência à enxaqueca, vista economi-camente por meio da perspectiva da sexua-lidade: “efeito tóxico produzido pela subs-tância estimulante sexual quando esta não consegue encontrar descarga suficiente”. No Rascunho G, Freud (1990) aborda a melan-colia e fala de “uma retração para dentro”, que atua de modo inibidor, estabelecendo uma analogia com a dor.

Destaque-se que o conceito de barreira protetora não se mantém fundamental na psicanálise, mas é importante ao reconhe-cer o papel da memória da dor do passado (GRZESIAK; URY; DWORKIN, 1996). Em Inibições, sintomas e ansiedade, Freud (1990) aprofunda sua visão. Ao abordar “ansiedade, dor e luto” nos adendos desse texto, Freud se refere à “dor interna mental” e à “dor física”. É significativo o assunto: dor da perda do ob-jeto, dor com estimulação periférica na pele, dor proveniente de um órgão interno. Freud acentua a diferença do “sentimento de per-da de objeto” das dores oriundas da pele e de um órgão interno. Arremata, em seguida, que não é por acaso que se tenha construído a ideia de “dor interna mental” e tratado de modo equivalente “o sentimento de perda de objeto” e a “dor física”, explicando a última com base na noção de “catexia narcísica do ponto doloroso.” Comenta que se sabe muito pouco da dor e afirma:

O único fato do qual temos certeza é que a dor ocorre em primeiro lugar e como uma coisa regular sempre que um estímulo que incide na periferia irrompe através dos dispositivos do escudo protetor contra estímulos e passa a atuar como um estímulo instintual [pulsional] contínuo, contra o qual a ação muscular, que é em geral efetiva porque afasta do estímulo o

ponto que está sendo estimulado, é impotente [...] (FREUD, 1990, p. 196).

Cabral e Nick (1997) explicam que, para a psicanálise, a dor resulta do excesso de “acu-mulação de afeto”. Comentam ainda que a “dor psíquica” é funcional e sem a presença do estímulo físico. Dantas (2013) reflete so-bre a primeira grande dor, bem como a úl-tima dor, tomando como representações a vida e a morte. Aborda também que o feto tem aptidões para, de modo precoce, sen-tir dor física. Anna Freud (1968) pronuncia que o ego não se defende apenas em relação à “dor” proveniente de dentro, mas experi-menta do mesmo modo a “dor” com origem no mundo externo.

Para a medicina, a dor tem indiscutível importância e deve ser avaliada e monito-rada nas instituições de saúde. Contudo, a perspectiva do psicanalista, quando ocorre indicação de seu atendimento, é a da escu-ta de quem sente a dor: suas verbalizações e lamúrias, seus afetos, seus gestos, seus atos, seu silêncio... o inconsciente. No discurso médico, os estímulos nociceptivos, os moti-vos biológicos da dor e a “dor física” são ex-pressões comuns. No discurso psicanalítico, a dor humana é igualada, às vezes, ao sofri-mento, assim como o corpo pode ser com-preendido em suas relações com a lingua-gem; o “sujeito” se depara com os estímulos externos, contudo também com as ameaças pulsionais, a conjunção de ambos.

Para o psicanalista, mesmo quando ocor-re dano orgânico no ser humano, a carne lesada tem uma “alma”, o que se percebe sob diferentes manifestações da psique, por exemplo, por meio do sentimento de culpa: “O que eu fiz para merecer isso?” Nas expe-riências da denominada “dor física”, a pessoa tem seus investimentos objetais empobreci-dos. O mundo externo pode lhe fugir porque está mergulhada em seu sofrimento, que a endereça ao inconsciente, ao infantil e à se-xualidade, entre outras nuanças. Para a psi-canálise, o trabalho não é com a dor, alerta e

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O outro da dor

proteção do organismo, que o médico avalia e monitora com muito cuidado, mas é com os desfiladeiros da subjetividade, a pulsão, a castração, a vida e a morte.

Em Além do princípio do prazer (FREUD, 1990), a ideia de escudo protetor atravessa-do por excitações de fora reaparece ligada ao trauma e ao sofrimento físico. O conceito de catexia é central. Além disso, nessa obra, há a concepção de pulsão de morte, o que am-plia a visão do funcionamento psíquico para Freud.

[...] em Além do princípio do prazer (1920), Freud destaca que existem tensões agradáveis. Ele faz então intervir um fator temporal, ou seja, que não se deve apenas considerar o nível de investimento energético, mas também as va-riações desse investimento, seu ritmo, seu gra-diente [...] (BOULANGER, 2006, p. 63).

Existem várias dimensões implicadas no denominado “sofrimento somático”. A pes-soa com “dor física”, bem como com “dor psíquica”, se apresenta em estado de desam-paro psicológico, que é importante que seja reconhecido e trabalhado pelo psicanalista.

[...] o fato da causação periférica da dor física pode ser deixado de lado. A transição da dor fí-sica para a mental corresponde a uma mudan-ça de catexia narcísica para a catexia de objeto. Uma representação de objeto que esteja alta-mente catexizada pela necessidade instintual [pulsional] desempenha o mesmo papel que parte do corpo catexizada por um aumento de estímulo. A natureza contínua do processo catexial e a impossibilidade de inibi-lo produ-zem o mesmo estado de desamparo mental [...] (FREUD, 1990, p. 197).

Parece, por conseguinte, que os conceitos de desamparo, catexia/investimento e narci-sismo são algumas das pistas para os com-plicados enigmas da dor e seus desdobra-mentos por meio da escuta de um psicana-lista. Fica mais complexo o assunto quando

se pensa nas diferenças entre dores aguda e crônica, na causação periférica ou central da dor, nas síndromes dolorosas e suas relações com a história de vida das pessoas por elas acometidas, na vivência do membro fantas-ma, entre outros temas relevantes ao estudo dos fenômenos dolorosos pela psicanálise.

Existem diversos assuntos entrelaçados ao se referir à dor. Em Luto e melancolia, Freud (1990) aproxima luto de melancolia, ressal-tando que, na primeira situação, está ausente a perturbação da autoestima. Menciona que a disposição para o luto é “dolorosa”. Por ou-tro lado, comenta-se aqui: algumas pessoas que se queixam de dor parecem enlutadas ou até desenvolvem um quadro melancólico.

Não se pode falar de uma dicotomia en-tre soma e psique. A dor que o psicanalista escuta fala de um ser humano que tem carne e “alma”. Quem sou eu, dor? Essa é a traves-sia enigmática da perspectiva psicanalítica, que considera os fantasmas mentais, “o in-consciente estruturado como linguagem”, o desamparo, o investimento pulsional, a se-xualidade, o narcisismo, a destrutividade, a castração, o luto e a morte. Por outro lado, enfatizar a particularidade de cada experiên-cia de dor é reconhecer, por exemplo, que os estímulos externos ou internos podem ter uma importância maior ou menor em algu-mas situações, o que apresenta implicações clínicas diversas, por exemplo, em relação à indicação dos profissionais que irão compor a equipe no atendimento ao paciente.

Na abordagem da histeria, Freud e Breuer evidenciam que pode haver a apropriação da dor somática pela neurose (GRZESIAK; URY; DWORKIN, 1996). Seja ampliada tal visão para a psicose e a perversão, o que será posteriormente aprofundado neste texto. Melhor, então, seria dizer: o fenômeno do-loroso desenhado cientificamente como or-gânico toma os caminhos da subjetividade e a denominada “dor física”, porque assim foi concebida por uma esfera do saber, borra-se com o “sofrimento da alma” à escuta psica-nalítica. Em tal perspectiva, a dor é única:

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O outro da dor

de cada “sujeito” singular com sua história. No recorte teórico delineado, não se conce-be uma “dor física” de um ser humano sem ser reconhecido o sujeito da dor, sujeito esse que desconhece em demasia de si e do outro/Outro, sujeito, em parte, alienado pelo assu-jeitamento que o marca, às vezes, um “não-sujeito”.

Andrade (1998, p. 117) comenta:

[...] quando a dor evolui de um sistema de proteção para o de um mecanismo defensivo, sua finalidade passa a ser de auxiliar a evi-tar ou afastar sentimentos ou experiências mais desagradáveis, como: culpa, sofrimentos frequentes, impulsos agressivos, perda real ou imaginária.

Como se depreende, o corpo é habitado pela psique. A dor da carne também apre-senta uma ferida anímica ou “dor da alma”. Para além da temática da dor, Freud (1990) menciona, inclusive, que alguns analistas comunicam que a análise para a situação de doenças orgânicas não é inauspiciosa, já que, não de modo infrequente, uma dimensão mental contribui tanto para a origem quanto para a continuidade de tais doenças.

Roudinesco (2000, p. 9) afirma:

A psicanálise atesta um avanço da civilização sobre a barbárie. Ela restaura a ideia de que o homem é livre por sua fala e de que seu destino não se restringe a seu ser biológico […].

Com base na psicanálise, abordar a te-mática da dor é complexo. Se Freud não faz uma apreciação sistemática do que configura como “dor física”, pensa sobre o infortúnio das pessoas de modo muito consistente. A partir do que ensina Freud em O mal-estar na civilização (1990), indaga-se: não foi ta-manho o sofrimento humano decorrente da restrição das pulsões, dos desejos, que per-mitiu a construção da civilização? Por outro lado, percebe-se que hoje algumas pessoas “necessitam” (os desejos são sentidos como

necessidades) da felicidade plena, o que constitui uma problemática para os seres hu-manos e seus laços sociais.

Aprofundando a reflexão, o romance fa-miliar é fundamental numa perspectiva psi-canalítica. Pode-se citar, entre outros pon-tos, a importância da travessia, ou não, do complexo de Édipo, na abordagem do tema. Com base em Quinet (2002), destaque-se que, na psicanálise, o diagnóstico estrutu-ral pode ser formulado pelos três modos de negação do Édipo, que distinguem três estruturas clínicas: no recalque, nega-se o elemento, mas o conserva no inconsciente (neurose); no desmentido, nega-se o ele-mento, todavia o conserva no fetiche (per-versão), e a foraclusão, que é um tipo de negação que não conserva, inexistindo ves-tígio ou traço (psicose). Afirma o autor: “Os dois modos de negação que conservam im-plicam a admissão do Édipo no simbólico, o que não acontece na foraclusão” (QUINET, 2002, p. 19).

Henriques (2012, p. 66) comenta:

Neurose, perversão e psicose, ao invés de repre-sentarem doenças, representam modos de ser, portanto, esse diagnóstico não implica uma patologização, antes denota uma possibilidade existencial. Essas três estruturas clínicas defi-niriam modos de subjetivação, em função do mecanismo psicológico predominante que as caracterizaria: o “recalque” ou “recalcamento” (Verdrängung) na neurose; a “recusa”, “rene-gação”, ou “desmentido” (Verleugnung) na per-versão; a “rejeição” ou “foraclusão” (Verwer-fung) na psicose [...]

Reconhecendo essas três estruturas clíni-cas, não se pode deixar de considerar que o modo de lidar com o que se concebe como “dor física” pela medicina vai variar confor-me a modalidade clínico-estutural da subje-tividade do ponto de vista psicanalítico. A investigação da estrutura clínica e seu mane-jo no ofício dos psicanalistas são, portanto, de indiscutível importância.

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O outro da dor

Para a psicanálise, conhecer a dor de alguém é um percurso a partir da escuta e da sensibilidade da comunicação profunda com aquele que se propõe ao autoconheci-mento. O profissional não sabe a priori da dor do outro, mas o escuta e possibilita que o analisando se escute e se depare com os efeitos do inconsciente. Desse modo, o psi-canalista pode contribuir para a humaniza-ção da assistência em saúde. “A análise, sem que seja um dispositivo de mera adaptação social, trabalha potencializando os proces-sos de subjetivação [...]” (BARRETO, 2013, p. 110).

A análise não tem término em sua acep-ção mais ampla. Expressa Roudinesco (2000, p. 150): “[...] Como revolução do sentido ín-timo, a psicanálise tinha [tem] como voca-ção primária, por fim, modificar o homem mostrando que “O eu é outro” [...]”.

Transmutação

A carne sangrao verbo faz-se carnea metamorfosear...

O verbo sangra a carne torna-se palavraa deslizar...

Carne e verbo sangramunem-sedesataram-se algum dia?!

Bebe-se da uvao melhoro sucoo vinho...

Doce banquetedas metamorfosesdo cotidiano...

R icard o Azeved o Barreto

AbstractWith the goal of humanization of care, the author discusses some conceptions of the psychoanalytic approach about the so-called “physical pain” of the human being, its dif-ference from “mental pain”, and he empha-sizes that it is questionable to talk about the dichotomy between the physical and psycho-logical aspects of the pain. The author un-derstands that the psychic aspect is present in the “physical pain” of the patient, and the unconscious effects should be analyzed by a psychoanalyst in the health team, when the-re is indication.

Keywords: Psychoanalysis, Pain, Unconsciou-sness, Humanization, Health.

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Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 101–106 | Dezembro/2013106

O outro da dor

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*Uma parte dessas ideias foi apresentada pelo autor anos atrás em Jornada Interna do Círculo Psicanalítico de Sergipe (CPS).

RECEBID O EM: 10/09/2013APROVAD O EM: 16/09/2013

SOBRE O AU TOR

Ricardo Azevedo Barreto Membro do Círculo Psicanalítico de Sergipe, instituição filiada ao Círculo Brasileiro de Psicanálise. Psicólogo pela USP. Mestre e doutor (Área: Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano) pela USP. Especialista em Psicologia Hospitalar pelo CEPSIC da Divisão de Psicologia do Instituto Central do Hospital das Clínicas da FMUSP. Teve experiência de treinamento no Butler Hospital (RI-USA). Editor da revista Estudos de Psicanálise do Círculo Brasileiro de Psicanálise no biênio 2008-2010 e no biênio atual. Coordenador do Programa de Humanização do Hospital São Lucas em Sergipe. Professor titular da Universidade Tiradentes (UNIT), onde ensina nos cursos de Psicologia e Medicina.

Endereço para correspondência Avenida Gonçalo Prado Rollemberg, 211/606 - São JoséCentro de Saúde Prof. José Augusto Barreto 49010-410 - Aracaju/SEE-mail: [email protected]

Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 107–112 | Dezembro/2013 107

Alguns pensa-res sobre estados subjetivos de desafio ao processo analítico

IntroduçãoO título do presente trabalho se refere a uma situação que tem ocorrido com certa fre-quência na clínica. Não são situações que podem ser analisadas como transferenciais nem se referem a pessoas que foram em bus-

Alguns pensa-res sobre estados subjetivos de desafio ao processo analítico

Some thoughts about subjective states that defy the psychoanalytical process

Stetina Trani de Meneses e Dacorso

A pesquisa cientifica representa a forma mais elevada de adaptação

ao princípio da realidade atingida até o presente.

Ela [pesquisa científica] mostra, como todo o resto, traços de desejos e de angústias inconscientes

na forma de cegueira para fatos importunos ou de sua distorção pelo desejo de fazê-los coincidir

com o que se gostaria que fossem. As forças do superego, a tradição, a autoridade do mestre,

o respeito a uma religião, estão tampouco do lado da simples verdade.

Toda ciência conserva a marca de sua origem, da influência pessoal dos mestres

pelos quais ela foi criada e desenvolvida, da obediência cega ou da revolta das gerações recentes

perante seus predecessores.SACHS, H. In: SAFOWAN, 1995, p. 102)

ResumoO presente artigo trabalha com análise da difusão de terapêuticas e exigências do cuidar de si, que produz consequências na clínica psicanalítica. A difusão da psicanálise produziu uma cultura psicanalítica, que mesmo para aqueles que a contestam, é utilizada como um senso comum. Através da observação de atendimentos clínicos e supervisão acadêmica, levantamos hipótese sobre a forma de estar no mundo e no processo analítico com uma postura de desafio. Nossa hipótese é que essa atitude é recusa em abrir mão de algo que sentem corresponder à sua singularidade num mundo massificador de identidades.

Palavras-chave: Cultura psicanalítica, Desafio terapêutico, Cuidar de si, Sintoma, Identificação.

ca de tratamento contra a sua vontade. São pessoas que vão em busca de alívio para um sofrer. Sofrimento que reconhecem ser inter-no. Percebem seus conflitos psíquicos e suas consequências em seu cotidiano. Já recorre-ram a vários especialistas, psiquiatras e psi-

Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 107–112 | Dezembro/2013108

Alguns pensa-res sobre estados subjetivos de desafio ao processo analítico

cólogos, além de aconselhamentos; receitas caseiras e rezas. Têm conhecimento vincu-lado ao Dr. Google; amigos/parentes psicó-logos e/ou psiquiatras; livros de autoajuda; artigos com “diagnósticos, prognósticos e terapêuticas”. São antenados nas mudanças tecnológicas e seu efeito na vida das pessoas. Têm conhecimento das “descobertas cien-tificas”; novas patologias e seus respectivos fármacos. Sem referência a um discurso com vários termos técnicos, inclusive e principal-mente, da psicanálise.

O que acabamos de expor é uma reunião do discurso de várias pessoas, na faixa etá-ria de 23 a 35 anos. Alguns já passaram em sua infância por processo terapêutico; outros têm uma história de frequência a vários con-sultórios, onde não ficam mais do que um ano e meio.

Para começar a pensar alguma coisa, acreditamos ser necessário fazer uma leitura abrangente da consequência social — e, na-turalmente, pessoal também — da difusão de um saber sobre o sujeito. Vamos iniciar com uma pequena exposição das diversas análises sobre um lugar de hegemonia e/ou suprema-cia da psicanálise na contemporaneidade.

Cultura e difusão da psicanáliseFigueira (1981) analisa o contexto social da psicanálise. O autor definiu uma cultura da psicanálise, um fato social que ocorreu como o pós-boom da psicanálise, sendo definido por ele como uma difusão da psicanálise até o limite da saturação. A psicanálise passou a ser partilhada por um grande número de pessoas de segmentos culturalmente do-minantes. Essa Weltanschauung (FrEuD, 1932) psicanalítica circula através de um dialeto de psicologismo, caracterizando-se por um alto consumo de terapias e funda-se na importância que as ideias e os termos psicanalíticos assumiram enquanto mapa de orientação para a vida cotidiana e familiar.

Paralelamente à psicanálise surgiram ou-tras linhas terapêuticas. Na sociedade brasi-leira a teoria freudiana se tornou natural no

cotidiano das pessoas: sua raiva, violência, ciúmes e idiossincrasias são entendidos e ex-plicados sob essa ótica.

Podemos fazer uma breve análise dos an-tecedentes e propulsores dessa situação. A sociedade brasileira que cresceu e se desen-volveu sob a visão positivista de A. Comte se desorganiza quando a psicanálise começa a ser divulgada em nosso meio. uma desorga-nização aliada à angústia social, que crescia em decorrência das mudanças de valores so-ciais, culturais e em relação ao pessoal.

A partir da década de 1970 essa moderni-dade sociocultural trouxe consigo liberdade de opção e projetos pessoais. Se a mudança de objetos de consumo pode ser feita pra-zerosamente, o mesmo não acontece com modelos e ideais de família e identidade. A consequência é o aumento da angústia que dispara um processo de demanda para que se resolva algo que é da ordem do invisível, do individual e do subjetivo. Agora o impor-tante é o desejo individual como algo subjeti-vo e definidor da identidade e singularidade. Estava instalada a cultura psicanalítica (FI-GuEIrA, 1981).

Em 2001 Santos publica Quem precisa de análise hoje?, onde aborda as mudanças ocorridas nas subjetividades com o processo acelerado da modernidade. Anteriormente o trabalho não atropelava a vida pessoal com suas funções. O trabalho fazia parte da vida. Os valores que vigoravam eram os tradicio-nais com ideias conservadoras nas relações homem/mulher. Os sentimentos eram vistos como algo próprio, privado e inacessível ao olhar do outro. Os sentimentos eram con-siderados individuais e, ao mesmo tempo, típicos e universais. Os indivíduos deviam se harmonizar com aquilo que se esperava deles. Aptidões, vocações e desempenho no mundo externo eram apresentados de ma-neira a excluir a elaboração de um desejo singular. A modernidade trouxe consigo a liberdade de opção e projetos pessoais.

Sobre os questionamentos teórico-prá-ticos dirigidos à psicanálise, inclusive no

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interior das universidades, onde ocorre sua transmissão acadêmica, Santos (2001) cons-tata que não impedem a sua difusão; pelo contrário, a mantêm nos meios de comuni-cação. Existe uma fala psicanalítica cotidiana que serve como suporte explicativo para vida amorosa e sexual, conflitos e rupturas no casa-mento, questões com filhos, amigos e patrões.

um ano antes, em 2000, Fridman escre-veu que a pós-modernidade não se limita a uma atmosfera cultural. Trata-se de um con-junto de mudanças nas configurações insti-tucionais contemporâneas que se estendem ao trabalho, às narrativas, à produção estéti-ca, à subjetividade e à política. Essas mudan-ças foram acentuadas pelas transformações ocorridas na tecnologia, durante as últimas décadas. Fridman aborda as subjetividades sob a ótica de elementos que contribuem para com o sentimento de identidade. Tra-dicionalmente a família, a religião e a raça é que forneciam ao sujeito o sentimento de “ser completo”. Hoje cada pessoa tem a ta-refa de autoconstituição, e a identidade traz a marca da transitoriedade. A vida se torna errática pela multiplicidade e pela fluidez de valores, projetos, desejos e renúncias. A autenticidade e o senso de interioridade se partem em vivências desagregadas. As pes-soas se veem impelidas a fazer escolhas en-tre as novidades ininterruptas do consumo. A plasticidade do eu é passaporte para viver êxtases de experiências e sensações que nun-ca são as últimas.

A disseminação da psicanálise na forma de uma cultura levou as pessoas a acreditar que o enfrentamento e o sofrimento decor-rentes do aprofundamento interno as leva-riam a uma situação de bem-estar, harmonia e liberdade. O não comprimento desse ima-ginário falsificado provocou a descrença na psicanálise.

Na clínica...

Não tenho vontade de fazer nada, só dormir, nem ir para as aulas... Já fiz terapia muito tem-

po, quando criança. Estou indo no psiquiatra tem uns 3 anos, minha mãe fica muito ner-vosa, manda eu rezar... Mas eu tenho muita preguiça, nada é interessante. Sou bipolar, você precisa resolver isto, será que você consegue? Já estou assim tem tanto tempo! (Sorri de lado quase irônico, se anima e curva para frente na cadeira) Rapaz de 22 anos cursando Comuni-cação.

Fazendo parte de todo esse contexto con-temporâneo exposto de forma tão sintética, estamos nós... Exercendo nosso oficio, rece-bendo demandas nem sempre claras. Mais do que nunca se torna necessário ampliar nossa escuta e nosso olhar para o que emer-ge e, se possível, com a mesma interrogação e curiosidade de nossos antecessores.

Colegas têm produzido, e nós também, sobre o novo sujeito, os novos sintomas e as novas demandas. Todos somos convocados a pensar sobre aqueles que nos chegam à clí-nica. Muitas vezes, o longo tempo no exer-cício desse ofício provoca intervenções sem que paremos para teorizar sobre o nosso ato analítico.

Mas a clinica e, para muitos de nós, tam-bém o mundo acadêmico nos impulsiona constantemente a construir hipóteses sobre nosso obrar. Mesmo estando cercados de diagnósticos do DSM-V, exigências de lau-dos e discursos medicalizadores do humano, vamos nos ater neste artigo ao que nos chega à clínica, aos discursos daqueles que sofrem e solicitam uma solução “rápida!”.

Voltemos agora nosso olhar interrogati-vo para a clínica. Para as dinâmicas psíqui-cas que demandam uma “solução” para suas questões. Pessoas na faixa de 20 a 35 anos usam as pesquisas virtuais, redes sociais, chats e todas as possibilidades de informa-ção virtual para pesquisar sobre seu sofrer psíquico. Seus sintomas, com diagnósticos e medicalização, são somados às possíveis explicações da razão desse sofrer. Percor-reram consultórios de psiquiatras e experi-mentaram drogas com variadas dosagens.

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Também recorreram a colegas terapeutas das mais diversas abordagens. Chegam e nos relatam sua via crucis, nos olham de-sesperados e dizem “Você tem de resolver isso”, citam o tempo que têm sofrido, os tratamentos que não funcionaram e às ve-zes complementam com a palavra mágica e imperativa: rápido!

um sofrer que abarca tédio, angústia, de-sânimo, às vezes mesclado com uma culpa e às vezes com uma frieza/isolamento afetivo “não tenho tesão para nada, nem para tran-sar”. Alguns tiveram episódios de ataques de pânico, e todos frequentam ou frequentaram consultórios médicos em busca daquele re-médio que resolveria esse sofrer. Dosagens são aumentadas, fármacos mudados, mas os quadros permanecem com ligeiras mu-danças. Assim, depois de uma longa estrada, resolvem procurar um psicanalista, “quem sabe, este tratamento resolve, já fui a tan-tos...” (ar de duvida e desafio).

Neste ponto, começamos nós a pesqui-sar, conversar com colegas, revendo antigos escritos e primeiros mestres. E reencontrei Medard Boss (1977), em Angústia, culpa e libertação, quando descreve o quadro psí-quico que analisa como “a forma da neu-rose do futuro imediato”: número crescente de pessoas que se queixam da insensatez vazia e tediosa de sua existência, pacientes com uma fachada fria e lisa de um tédio va-zio. Por trás dessa muralha gélida de sen-timentos desolados de completa insensatez da vida, está uma grande dose de angústia. um sofrer do tempo vagaroso. A análise de Boss é que a raiz desse sofrer está ligada à prepotência atual da tecnologia, pois leva o ser humano a compreender e se conside-rar como uma rodinha no aparelho de uma gigantesca organização social. Todo tédio inclui um sofrer do tempo vagaroso, uma secreta saudade de um enraizamento per-dido. Frequentemente encobre seu próprio sentido, utilizando-se do medo dominante das atividades ininterruptas, diurnas, no-turnas ou do embotamento das mais diver-

sas drogas e tranquilizantes. Porém, o au-tor pontua a singularidade de cada sujeito. Cada angústia humana tem um “de que”, do qual tem “medo” e um “pelo que”, pelo qual ela teme.

Já fui a vários consultórios de terapia. Fiz mui-tas. O tempo de duração era de 6 meses a 1 ano. Nunca deu resultado nenhum... acho tudo muito chato, não tenho vontade de fazer nada, trabalho (empresa familiar) ganho bem, moro com meus pais porque é mais confortável. Te-nho um namorado de 2 anos, mas não estou apaixonada. O sexo é mais ou menos, mas se não tiver tá bom também, não tenho muita vontade. Tenho a sensação de um paredão que fico atrás, só olhando sem participar de nada. Não aguento ficar repetindo a mesma coisa o tempo todo, me cansa! Eu vim para ver se con-sigo ficar mais tempo em terapia, mas canso logo... vamos ver. Este tédio é ruim, nada me anima... (Maria, 30 anos, fisioterapeuta, 1,6 ano em análise).

Discussões não conclusivasSigmund Freud escreve em 1909: “A psica-nálise não é uma investigação cientifica im-parcial, mas uma medida terapêutica. Sua essência não é provar nada, mas simples-mente alterar alguma coisa” (FrEuD, 1979, p. 112).

As pessoas, filhas de seu tempo, que nos procuram exigem o “rápido”, o que neces-sariamente não significa que estejam dispo-níveis ao trabalho árduo da análise, mesmo porque o “rápido” não combina com a psi-canálise!

Acompanhando o pensamento de Boss, faz-se necessário que cada sujeito possa ser analisado no seu tédio e na sua culpa. A in-tervenção que possibilita que alguém saia da posição de lamento não é a mesma que servirá a outra pessoa. É uma demanda de pessoas desanimadas, descrentes de que algo possa ser feito. É esse olhar de solicitação acompanhado de um desafio que tem me provocado questões.

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O desafio surge de tal forma que me pa-rece totalmente “cego” a seu detentor, quan-do descreve sua peregrinação terapêutica, seu sofrer e o tempo que padece desse mal. Há um olhar e um meio sorriso como quem dissesse: “quero ver você dar solução a isso”. Não me parece o desafio de alguém que diz: “vou te provar que sei mais” ou “quando você achar que sabe, lhe destituo...”. É como se diante de tanta dor, intervenções e expli-cações sobre seu sofrer, a tábua de salvação é esse estado psíquico.

Assim, não sei se a questão é ficar discu-tindo se devemos ou não fazer um diagnós-tico, “enquadrando”. Ou ficar no embate de nos considerarmos como aqueles que pos-suem uma terapêutica mais eficaz. Ou, en-tão, pensar de forma mais ampla: que nosso obrar tem um lugar no mundo atual, e aque-les que nos demandam, o fazem a partir de seu lugar neste mundo, com seus diagnós-ticos, suas falas definitivas, seus protocolos, seus resultados imediatos.

Quando recebo essas pessoas, tenho pensado cada vez mais em Michel Foucault (1985) e sua definição de biopoder. Foucault analisou sob vários prismas o poder, a crimi-nalidade, a sexualidade, as ciências-humanas inclusive a psicanálise. E em todas as análises a preocupação não era apenas acadêmica; era daquilo que se apresentava com força na atualidade (BIrMAN, 2000). Intervenções em todos os setores da vida para enquadrar, diagnosticar e controlar. As singularidades se perdem em prol de uma massificação dis-farçada de pseudoliberdade e pseudopoder decisório. um saber sobre si e sobre o outro, que recai naquilo que Freud já contestou: “Psicanálise não é uma intervenção científica imparcial” (FrEuD, 1979, p. 112).

Questão que me ocorre: Será que esse es-tar no mundo, ao qual as pessoas se agarram com ares de desafio, não seria a única coisa que lhes resta num mundo tão intervencio-nista? Medicalizado e diagnosticado? um “saber” que não tem produzido como conse-quência um estar no mundo melhor consigo

mesmo. Frente à rapidez de nosso mundo, com

exigências quase impossíveis de ser cumpri-das e com intervenções em todos os setores da vida humana, esse “adoecer” é sinônimo de identidade! Essas pessoas percorrem to-das as sugestões atuais de tratamento, se re-cusam a ceder um milímetro que seja de seu sofrer! A doença é uma forma de resistência.

No lugar de um “saber de si” articulado ao biopoder e a práticas intervencionistas, a hipótese é trabalhar com um “cuidar de si” (BIrMAN, 2000), onde essas formas de tédio, cansaço e desânimo possam se apre-sentar e dizer algo, se assim o desejarem. Sem se sentir ameaçadas de que o “saber de si” lhes retire o que sentem ser sua marca identitária.

E para que alguém possa talvez querer sair desse lugar, é preciso suportar um tempo para ocorrer outra ordem psíquica, se pode-mos assim dizer. A psicanálise, à qual essas pessoas acabam recorrendo, me parece, é um lugar onde sentem que, apesar de tudo, não vai lhes tirar, não vai pressionar, enquadrar naquilo que tanto prezam. Impasses e para-doxos em nossa clínica!!!

AbstractThis article deals with the analysis and disse-mination of therapeutic self-care demands that produces consequences in clinical psychoa-nalytic. The diffusion of psychoanalysis produ-ced a Psychoanalytic Culture, even for those who challenge it, which is used as a common sense. Through observation of clinical cases and academic supervision, we hypothesized about the way of being in the world and at the analytical process with an attitude of defiance. The hypothesis is: the refusal to give up some-thing they feel to match their uniqueness in a world full of identity mass leveling.

Keywords: Culture psychoanalytic, Thera-peutic challenge, Self-care, Symptom, Identi-fication.

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Referências

BIrMAN, J. Entre o cuidado e o saber de si. Sobre Fou-cault e a psicanálise. rio de Janeiro: relume-Dumará, 2000.

BOSS, M. Angústia, culpa e libertação. São Paulo: Duas Cidades, 1977.

FIGuEIrA, S. A. Cultura da psicanálise. São Paulo: Brasiliense, 1985.

FOuCAuLT, M. A vontade de saber. In: A história da sexualidade, v. 1. 6. ed. rio de Janeiro: Graal, 1981.

FrEuD, S. A questão de uma Weltanschauung (1932). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas com-pletas de Sigmund Freud. Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. rio de Janeiro: Imago, 1979, v. XXII.

FrEuD, S. Análise de uma fobia em um menino de cinco anos (1909). In: Edicão standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Dire-ção-geral da tradução de Jayme Salomão. rio de Ja-neiro: Imago, 1979, v. X.

FrIDMAN, L. C. Vertigens pós-modernas. Configu-rações institucionais contemporâneas. rio de Janeiro: relume-Dumará, 2000.

SANTOS, T. C. Quem precisa de análise hoje. rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

rECEBID O EM: 10/09/2013APrOVAD O EM: 29/10/2013

S obR e a au ToR a

Stetina Trani de Meneses e DacorsoProfessora Titular do curso de Psicologia CES-JF/PuC Minas. Membro Efetivo e Psicanalista do Círculo Brasileiro de Psicanálise – Seção rJ. Mestre em Letras -Literatura Brasileira CES-JF. Mestre em Psicologia-Psicanálise AWu-uSA. Membro efetivo do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos (EBP-rJ). Coordenadora da Formação em Psicanálise SOBrAP-JF. Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise 2012-2014.

endereço para correspondênciarua rei Alberto, 108/901 - Centro 36016-000 - Juiz de Fora/MGE-mail: [email protected]

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Das relações entre o empobrecimento psíquico e o empobrecimento material

A psicanálise: a responsabilidade social Na pesquisa de doutorado (FONSÊCA, 2013) sobre os efeitos subjetivos da pobreza material e consequências materiais do em-pobrecimento psíquico, uma proposta de teorização em psicanálise sobre os comple-xos fenômenos que se entrelaçam: o empo-brecimento psiquico e o material. Hoje tes-temunho à experiência de ter desenvolvido um projeto de tese em teoria psicanalítica. E isso só se fez possível porque o saber expos-to traduziu uma experiência de articulação subjetiva do desejo de saber sobre a castra-ção, explicitado através da temática sobre os efeitos subjetivos da pobreza.

A nossa responsabilidade clínica nos per-mitiu pesquisar e avançar no propósito de delimitar quais as especificações teóricas da psicanálise que precisariam ser analisadas para aplicação nessa temática. Não somos todos iguais. E a abordagem clínica dessa população exigiu reflexões sobre estrátegias

Das relações entre o empobrecimento psíquico e o empobrecimento material

About the relations between the psychic impoverishment and material impoverishment

Valéria Wanda da Silva Fonsêca

ResumoEste artigo apresenta a pesquisa sobre as contribuições da psicanálise junto aos brasileiros oriundos da população de baixa renda, pouco escolarizada e não familiarizada com o discurso psicanalítico. Atualiza os questionamentos a respeito da prática da psicanálise: quais as contri-buições da psicanálise nessa investigação? O tratamento dessas relações exige um analista avi-sado, sabedor do seu ofício. Não é uma prática para iniciantes. Nessa clínica as preocupações freudianas são com a formação dos psicanalistas e com o tratamento, que precisa ser oferecido nas instituições de analistas e ou financiadas pelo Estado, tal como um projeto público para combater a tuberculose.

Palavras-chave: Psicanálise aplicada e pobreza; Pobreza; Pobreza e psicanálise, Brasil e psica-nalise; Melancolia e pobreza.

de superação no que se refere a um modelo funcionalista que reduz a complexidade e a multidimensionalidade de tal fenômeno.

O olhar não pode ser ingênuo, o ideal de verdade do conhecimento cientifíco não coube nesse trabalho, e optamos por investi-gar e reunir os estudos da antropologia, das ciências sociais, da filosofia, da literatura e da Biblia sobre a realidade da pobreza brasileira. São diversas as definições de pobreza. Todos os pobres são iguais? Todos são deprimidos e melancólicos? Não. Não é disso que falamos.

O objetivo da pesquisa foi delimitar a aplicabilidade da psicanálise com brasilei-ros oriundos da população de baixa renda, pouco escolarizada e não familiarizada com o discurso psicanalítico. O acesso dessa po-pulação ao tratamento psicanalítico ainda é restrito. Investigar a constituição do eu e as consequências para os sujeitos no laço social exigiu suspender a condição de generaliza-ções das ciências sociais sobre a constatação

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de que a pobreza material está presente des-de sempre na sociedade. Assim, foi possível analisar e diagnosticar quem são os sujeitos que experimentam os diversos estágios da pobreza, inclusive os pobres que vivem entre os ricos. Todos, que definimos como aque-les sujeitos que precisam ser protegidos pelas benesses do Estado e ou das famílias abasta-das, caso contrário padecerão de uma total incompetência para gerir a própria vida.

A pobreza material e o empobrecimento psíquicoA concepção de que a pobreza material tem como um dos efeitos uma precariedade da subjetividade, foi tratada nesta pesquisa com muito cuidado e muitas restrições. Há um fato sociológico que indica a desigualdade social e econômica como fator embaraçador e ou até impedidor de muitos brasileiros no que diz respeito ao acesso a determinados bens de consumo, inclusive saúde e educa-ção. A psicanálise, ao pensar os efeitos sub-jetivos do laço social, afirma a importância de tal relação, porém toma para si analisar as especificidades de como cada sujeito se constitui independentemente da classe social a que pertence.

Questiona-se a possibilidade de a psica-nálise afirmar sua hipótese sobre o conceito de inconsciente e seus efeitos na subjetivida-de dos sujeitos que sofrem com a precarie-dade social e econômica. Cabe à psicanálise demonstrar que o homem, ser de linguagem, só pode ter acesso ao que é da ordem da ne-cessidade, do Real, pelo viés do simbólico e do imaginário. A oferta de cuidado propor-cionada, em geral, pelas figuras parentais à constituição dos meios para formulação de demanda dirigida ao outro, outro do laço so-cial atualiza o que é da ordem pulsional — todos através da ação de cuidar, alimentar e transmitir as regras do pacto civilizatório, ou seja, exercitar a capacidade de amar. Desde sempre, há que aprender a contornar os im-passes mediante a experiência da castração e da partilha dos sexos.

Porém, em alguns sujeitos, a pobreza de recursos sociais e econômicos para gerir a própria vida em seu grupo social está asso-ciada à precariedade subjetiva e é o indício de uma posição do sujeito com o seu desejo. Ao atualizar a condição ser da falta, eles des-mascaram também a precariedade do outro social, que, por ser marcado pela castração, geralmente vacila na transmissão simbólica do saber o que fazer com a falta, que é cons-titucional.

Teorizando sobre o mal-estar da civiliza-ção, Freud reconheceu a gravidade da epi-demia que se espalha: a miséria neurótica e o empobrecimento material decorrentes da dificuldade de muitos de aderir ao modelo capitalista, à ciência e ao processo de indivi-dualismo que se desenvolviam. Freud decla-rou a contribuição que a clínica psicanalítica poderia proporcionar a esses sujeitos da mo-dernidade. Simultaneamente, registrou suas preocupações com a formação dos analistas para tal prática da psicanálise. Para ele, não era uma prática para iniciantes, e sim, para analistas experientes que, com o domínio da teoria, poderiam se adequar ao necessário ao tratamento que deveria ser oferecido nas instituições de psicanálise e financiado pelo Estado, tal como um projeto público para combater a tuberculose. A descrença nos ideais de mestria, encarnados em Deus e nas figuras de autoridades da sociedade, signifi-cou para muitos o desamparo, o abandono e, consequentemente, a ausência de proteção.

Freud demostrou que, desde as sagradas escrituras até literatura em geral, o homem vem se servindo das metáforas para testemu-nhar e narrar o valor do processo civilizató-rio no que diz respeito à estruturação e ao funcionamento do aparelho psíquico. A ex-pressão dos conteúdos conscientes e incons-cientes só é possível a partir da instalação de uma ordem simbólica, que se engendra no campo da linguagem. Lacan verticaliza o es-tudo sobre as relações e as fronteiras entre a psicanálise e a ciência. Apropria-se do mode-lo da banda de Moebius, a partir da ideia de

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um dentro e de um fora que se confundem, para demonstrar a hipótese freudiana so-bre o funcionamento do aparelho psíquico, elaborando conceitos tais como conscien-tee inconsciente; enunciado e enunciação, e o pressuposto teórico de que a consciência moral é o cerne da realidade psíquica.

A satisfação pulsional não se submete à lei e ao desejo. Faz-se necessária a instituição de uma realidade moral, de crença em ideais para que se controle a força pulsional que age sobre o eu como um imperativo categórico e que medie as experiências de privação e so-frimento desencadeadas mediante a realida-de da castração.

O dinheiro, enquanto objeto fálico, pas-sou a representar o poder que uns têm sobre os outros, bem como representa o que há de pior e ou de melhor no caráter das pessoas. Ter ou não ter dinheiro, mais que o necessá-rio, sempre foi sinônimo de prestígio e inteli-gência. Ser pobre era uma punição, que só foi redimida, a partir da história de Jesus Cristo, que era pobre e o filho de Deus.

Fora desse fato, ao longo da história, as ri-validades, os ódios e até os processos de des-truição em muitas sociedades foram associa-dos ao prestígio que o dinheiro daria, inclu-sive para corromper famílias e indivíduos na sociedade. Mata-se por dinheiro, para ter o que é do outro ou por se sentir menospreza-do pelo fato de ter mais ou menos posses que o outro no grupo social.

A psicanálise surge com a ciência e a mo-dernidade. Do modelo patriarcal ao modelo individualista temos no Brasil ainda uma lon-ga caminhada, mesmo que as leis já tenham sido alteradas. Alguns grupos instituem as mudanças sociais, por conta das mudanças de mentalidade. Mas não há milagres, todos não mudam simultaneamente ou, melhor dizendo, alguns nem percebem que o mun-do está em movimento. E isso provoca um descompasso entre os modelos familiares de resolver os problemas e os orientados pelas leis. Muitos grupos romperam com padrões tradicionais de família, de trabalho, da rela-

ção com capital e com a diferença sexual, e se perderam no âmbito subjetivo, no que diz respeito à constituição de uma realida-de psíquica orientada por uma consciência moral. São muitos que testemunham a dor de existir. Os graus diferenciados de pobre-za material anunciam que milhões de bra-sileiros se sentem desadaptados e incapazes de garantir a própria existência. Muitos não reagem por se sentirem miseráveis e injusti-çados no laço social e precisarão para sem-pre do amparo do Estado. Alguns outros, tendo o apoio adequado, poderão se desen-volver e ter uma vida digna. E há ainda pou-cos que definitivamente sairão da pobreza, pois através de outros fatores sociais conse-guiram restabelecer vínculos amorosos que recuperam a tessitura do eu, e sendo orien-tados para demonstrar sua competência pessoal.

Reconstruímos a rota insistentemente descrita nos últimos textos de Freud no que diz respeito à constituição do Eu, indicação que ressalta a hipótese de que ele tomou o Eu como conceito central na sua obra.

Temos uma equação lógica: o quanto de pressão das exigências pulsionais associadas à precariedade dos recursos externos da civi-lização, que tem como consequência os dife-rentes graus de “debilidade” do eu.

Campo da ética: satisfação das necessidades — rede da linguagem — discursoPara relacionar o empobrecimento do Eu e o empobrecimento econômico e social, parti-mos do pressuposto de que toda ação huma-na, particularmente a satisfação das necessi-dades, se desenrola na rede da linguagem, em discurso, e no campo da ética. O universo simbólico é transmitido por meio dos enun-ciados primordiais, dos códigos e das leis. As necessidades nunca se apresentam em estado puro, uma vez que não se tem acesso à or-dem natural. Elas precisam ser faladas e sem-pre perpassadas pelo desejo e pela demanda. Para Lacan, o que tem status de necessidade

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e torna possível a existência do homem é a diferença sexual: masculino e feminino.

A subjetivação da diferença sexual é de-corrente dos (diferentes) diversos graus de investimento libidinal nos objetos e do po-sicionamento do sujeito (mediante a referi-da diferença). O complexo de castração é o motor da renegação, que institui o conflito constitucional do Eu. Quanto maiores as exigências pulsionais associadas à precarie-dade dos recursos externos provindos da ci-vilização, maiores as dificuldades na eficácia da renúncia pulsional e, consequentemente, maior ‘debilidade’ do Eu. Essa precariedade seria fator de adoecimento psíquico, presen-te nas neuroses, nas psicoses e na melancolia, que tomamos nesta tese, tal como fez Freud com os estudos sobre o sentimento de culpa e o criminoso. A melancolia foi abordada de-talhadamente na tese, pelo status que Freud lhe conferiu — revelar a constituição do Eu humano — o que lhe possibilitou definir os limites entre o normal e o patológico no que diz respeito ao investimento libidinal e à escolha de objetos, e que a melancolia teria como uma característica peculiar o medo do empobrecimento. O desenvolvimento de tal patologia foi associada ao descrédito na mo-ral social, e a pobreza se alastra nas cidades, tal como uma epidemia social.

Tais conclusões são resultantes de uma pesquisa detalhada no texto freudiano. Res-gatamos suas recomendações sobre a prática da psicanálise junto aos pobres. Freud acre-ditava que a teoria psicanalítica, ao lado de sua significação científica, apresentava seu valor como procedimento terapêutico, e de-monstrou as possibilidades de ajuda àqueles que sofrem em sua luta para atender às exi-gências da civilização. Somos cientes da per-tinência da psicanálise em auxiliar a grande multidão, particularmente aquelas demasia-damente pobres para reembolsar um analis-ta por seu trabalho. Trata-se de uma decisão politica, particularmente em nossos tempos, quando os estratos intelectuais da população, sobremodo inclinados à doença mental, em

geral, e estão mergulhando irresistivelmente na pobreza.

Acrescentamos a leitura lacaniana do contemporâneo, estudo que nos permitiu re-fletir que cuidados temos de ter na clínica, na direção do tratamento. O limite da psica-nálise reside no tratar do que está submeti-do à linguagem e, parafraseando Lacan, ter o cuidado de não encher de sentidos e fazer ideologias tal como as do mercado e ou da religião, o que por muitas vezes é melhor ca-lar. Saber que a estratégia do sujeito, que faz do “seu corpo” um lugar do engano, da pos-sibilidade de unidade ao atender a demanda do Outro, inclusive do Outro do laço social indica uma desconsideração, e até uma nega-ção da castração. Que sujeitos são esses que se encharcam de sentidos e fazem sintomas que apontam um corpo mortificado pelo significante, que mesmo que também atrela-do ao simbólico, se orienta prioritariamente pela via do imaginário, por um gozo fantas-mático, um gozo com os objetos parciais.

São muitos excessos que os sujeitos ex-põem em seu corpo: pobreza, obesidade, al-coolismo, as drogadicções em geral, e uma série de adoecimentos que exacerbam desa-fio entre a vida e a morte — campo de con-flito da sexuação e da castração. Testam os limites do “corpo vivo”, mesmo que o sujeito afirme seu horror à morte. São milhares de coisas que se passam num corpo e que não se traduzem em sensações psíquicas. Para Lacan, o humano não goza do seu corpo; ele é uma representação imaginária, mesmo que essa imagem dependa de uma amarra-ção simbólica. Antecipadamente propomos um resumo: a pulsão é a letra incorporada ao soma, mas é através do sintoma que temos acesso à sexuação. A pulsão como demanda do impossível, só ao encontrar a castração, é que pela via do desejo pode ser resgatada.

A disposição política dos analistasEncerramos este artigo falando da proposta inicial: quem é o analista que se preocupa com as questões da constituição do laço so-

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cial? Problematizar a posição do psicanalista — que transpõe os muros de seu consultório e oferece sua escuta na cidade e nas institui-ções de saúde, escolares e jurídicas para es-tender os benefícios da experiência analítica à população de baixa renda — é reconhecer que há o risco de que tais práticas se colo-quem a serviço de ideais opositores à civi-lização. Acreditamos, porém, que o investi-mento na formação e na análise sejam deci-sivos à abertura de espaços para a prática do psicanalista com outros profissionais e, além de possibilitar a verificação dos efeitos tera-pêuticos positivos, mesmo que o ato do ana-lista não tenha, a priori, nenhuma garantia.

O eixo central da pesquisa está na forma-ção do analista. Preocupações permanentes relatadas nas obras de Freud e de Lacan. Chamou-nos atenção a exigência que Freud fez ao se referir ao tratamento da população pobre, que fosse feito por analistas experien-tes. Declarou seu projeto de que se construís-sem clínicas de psicanálise para atendimento dessa população e que nessas instituições se primasse pela formação dos analistas. Tal exigência de formação foi considerada como fundamental, pois seria a única proteção possível contra o dano causado aos pacien-tes por pessoas ignorantes e não qualificadas, sejam leigos, sejam médicos.

AbstractThe objective of this paper is to present resear-ch about the role of psychoanalysis with the Brazilian population that has arisen from po-verty, with low educational levels and which is not familiar to the psychoanalytic discour-se. We updated questions about the practice of psychoanalysis: what are the contributions of psychoanalysis to this investigation? The treatment of this relationship requires an ex-perienced analyst, knower of its craft. It’s not a practice for beginners. At that clinical setting the freudian concerns are with the academic formation of psychoanalysts and the treat-ment itself. Those conditions need to be offered at psychoanalytical institutions and or state financed as it would be at a public project to combat tuberculosis.

Keywords: Aplied psychonalysis, psychoa-nalysis and poverty, psychoanalysis in Brazil.

Referências

FONSECA, V. W. S. Os efeitos subjetivos da pobreza material e consequências materiais do empobrecimen-to psíquico. Tese de doutorado, Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ. Rio de Janeiro: UFRJ, 2013. 182 f. Disponível em: <www.psi-cologia.ufrj.br/teoriapsicanalitica>.

RECEBID O EM: 10/09/2013APROVAD O EM: 18/09/2013

SOBRE A AU TOR A

Valeria Wanda da Silva FonsêcaDoutora em Teoria Psicanalítica pela UFRJ. Mestre em Letras UFJF. Especialista em psicanálise Teoria e Clínica e em Psicologia Escolar e Infantil CES-JF. Graduada em Psicologia UNICAP. Representante do Conselho Regional de Psicologia no Conselho Municipal de Assistencia Social de Juiz de Fora/MG.

Endereço para correspondênciaAv. Rio Branco 2721/1209 - Centro36010-012 - Juiz de Fora/MGE-mail: [email protected]

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Das relações entre o empobrecimento psíquico e o empobrecimento material

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Reflexões sobre a “teoria do pensar”, de Bion

Ao longo da formação psicanalítica entramos em contato com a obra de alguns importan-tes psicanalistas que no decorrer do último século vêm dando continuidade à obra de Freud. Melanie Klein aprofundou o concei-to de fantasia, deu ênfase ao mundo inter-no, introduziu a ideia de posição. Winnicott descreveu fenômenos como a regressão à de-pendência, elaborou o conceito de mãe sufi-cientemente boa, abriu caminho para a aná-lise de pacientes difíceis. Em relação a Bion, antes de iniciar as leituras sobre sua obra, já conhecia sua importante contribuição acerca dos fenômenos grupais. Mas, mesmo assim, me questionava: Qual a originalidade de suas contribuições? E foi dessa forma que pensei em escrever sobre a teoria do pensar, elabo-rada por ele em 1962.

Segundo Zimerman (1995), no curso das análises de psicóticos, Bion ficou fortemen-te tentado a se aprofundar nos problemas de linguagem e nos problemas da origem e fun-ção dos pensamentos. Para tanto, se inspirou nos postulados de Freud sobre o princípio do prazer e da realidade, além de ter sido influen-ciado pelas ideias de Melanie Klein e Ferenczi.

Reflexões sobre a “teoria do pensar”, de Bion

Reflection about the “theory of thinking”, by Bion

Waleska Pessato Farenzena Fochesatto

ResumoO artigo surge em decorrência de uma reflexão sobre a teoria do pensar de Bion. A teoria do pensar não se refere a uma função meramente cognitiva, mas fala da inauguração de um espaço de autoria. Segundo Bion, a experiência de frustração vivida a partir de um aparelho psíquico capaz de suportá-la origina um protopensamento, desenvolvendo então um aparelho psíquico para pensá-lo. Em outras palavras, o pensar surge como uma solução para se lidar com a frustração. A teoria do pensar possibilita um conhecimento sobre a formação do psi-quismo, afinando a escuta para a aquisição da capacidade simbólica.

Palavras-chave: Teoria do pensar, Bion, Psicanálise.

Partindo de Freud, sabemos que o proces-so primário está ligado à satisfação imediata das necessidades básicas portanto ligado ao princípio do prazer, ao passo que o proces-so secundário está relacionado ao princípio da realidade, o qual vai se impondo sobre o princípio do prazer, gerando a capacidade de adiar a descarga pulsional e abrindo espaço para a capacidade simbólica.

Segundo Bion, a experiência de frustração oriunda desse processo — também chamada de experiência do não seio, vivida a partir de um aparelho psíquico capaz de suportá-la — origina um protopensamento desenvolven-do, então, um aparelho psíquico para pensá--lo. Em outras palavras, o pensar surge como uma saída, uma espécie de solução para se lidar com a frustração. Mas, se ao contrário disso, a capacidade de tolerar frustração for precária, o não seio ou o seio mau deve ser expulso através do uso maciço de identifica-ções projetivas.

Dessa forma, Zimerman (1995), ao expli-car a teoria do pensar de Bion, coloca que, se o ódio resultante da frustração não exceder a capacidade do ego do lactante de suportá-

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Reflexões sobre a “teoria do pensar”, de Bion

-lo, o resultado será uma sadia formação do pensamento através do que Bion denominou de função alfa, a qual integra as sensações provindas dos órgãos dos sentidos com as respectivas emoções. No entanto, se o ódio for excessivo, protopensamentos denomina-dos por Bion de elementos beta — experiên-cias sensoriais primitivas e caóticas que não puderam ser pensadas — encontram saída através do alívio imediato de descarga, o que é feito por meio de agitação motora, atuações ou somatizações, mas que sempre utiliza a identificação projetiva como mecanismo.

Assim, de acordo com essa teoria, a cons-ciência de si depende da função alfa. Clara-mente influenciado por Melanie Klein, Bion coloca que é o êxito da posição depressi-va que permite a formação de símbolos, os quais substituem e representam todas as per-das inevitáveis do curso do desenvolvimen-to. Consequentemente, a formação de sím-bolos possibilita a capacidade de abstração e criatividade, inscrevendo o sujeito no campo do simbólico.

Bion extraiu o termo função do campo da matemática e, segundo Zimerman, a equi-valência entre ambos é que na matemática função alude a um elemento variável que sa-tisfaz os termos de uma equação, e do mes-mo modo a função alfa representaria uma incógnita à espera de uma realização para sa-tisfazer-se. Assim, a função alfa, na teoria de Bion, é a primeira que predominantemente existe no aparelho psíquico. Ou seja, se o in-divíduo tiver capacidade de tolerar frustra-ção, é a função alfa que vai transformar as primeiras impressões emocionais (prazer e dor) em elementos alfa. Estes últimos, sendo processados pela função alfa, abrirão passa-gem para os pensamentos oníricos, produção de sonhos, memória e funções do intelecto. Os elementos alfa é que darão origem ao que Bion chamou de barreira de contato, tendo a função de separar interno e externo, incons-ciente e consciente, estabelecendo uma espé-cie de contorno e de alguma forma fornecen-do ao sujeito uma sensação de integração.

Os elementos alfa não são a experiência da coisa em si, mas uma abstração e uma repre-sentação dessa, que enquanto se faz simulta-neamente representada em ambas as formas consciente e inconsciente, fornece à persona-lidade uma “visão binocular” da experiência, de onde deriva o “sentimento de confiança” na sua realidade (MELTZER, 1998, p. 73).

Os elementos beta, ao contrário, se proli-feram de forma caótica e constituem o que Bion chamou de pantalha beta, não possibi-litando uma diferenciação entre consciente e inconsciente, entre fantasia e realidade, não permitindo a elaboração dos sonhos. Bion (1994) mostra que nos pacientes psicóticos prevalece a formação da pantalha beta, bem como há uma prevalência da posição esqui-zoparanoide sobre a posição depressiva. Des-sa forma, o pensamento adquire uma con-cretude, uma dureza, capaz de causar danos reais e precisam ser expulsos imediatamente. Não há possibilidade de simbolização. Re-ferindo-se aos pensamentos que ainda não adquiriram um sentido tampouco um nome, Bion coloca que nos psicóticos predomina o pensamento vazio, por isso nas situações de angústia ele vem acompanhado de um estado psíquico que ele chamou de terror sem nome.

Além das duas formações citadas — alfa e beta, Bion coloca uma terceira forma pos-sível de subjetivação que veio a denominar reversão da função alfa. Trata-se de casos em que a função alfa já opera no psiquismo, mas, por alguma dor vivida em excesso, ela recua e produz elementos beta, já diferentes dos originais. Nesses casos ocorre uma re-gressão rumo a um pensamento concreto, o que, segundo Bion, pode regredir ao ponto de chegar ao nível da linguagem das sensa-ções psíquicas corporais, como ocorre nos distúrbios psicossomáticos.

Ao propor sua teoria, Bion entende o pensar como um processo que depende de dois desenvolvimentos básicos: o primeiro é o dos pensamentos que requerem um apare-lho mental que deles se encarregue, e o se-

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Reflexões sobre a “teoria do pensar”, de Bion

gundo é o desenvolvimento do aparelho que inicialmente chamou de faculdade de pensar. “O pensar passa a existir para dar conta dos pensamentos” (BION, 1994, p. 128).

Isso significa que para Bion existe um pensamento que é anterior à capacidade de pensar e que denominou pensamento sem pensador. O próprio autor diz que sua teoria difere de qualquer teoria do pensamento na medida em que considera o pensar um de-senvolvimento imposto à psique pela pressão dos pensamentos, e não o contrário.

Através do texto Uma teoria sobre o pen-sar, Bion classifica os pensamentos conforme sua natureza evolutiva: pré-concepções, con-cepções e conceitos. Coloca que a concepção inicia através da conjunção de uma pré-con-cepção com uma realização. Por exemplo, quando o bebê é colocado em contato com o seio real, a pré-concepção, que nada mais é do que a expectativa inata por um seio — conhecimento a priori de um seio, se une à realização, dando origem a uma concepção. Assim, as concepções estão associadas a uma experiência emocional de satisfação. O ter-mo pensamento é empregado por Bion para se referir ao resultado de uma pré-concepção com uma frustração. Seguindo essa lógica, o pensamento vazio equivale a uma pré-con-cepção à espera de uma realização. Nas pa-lavras de Bion:

O modelo que proponho é o de um bebê cuja expectativa de um seio se una a uma “realiza-ção” de um não-seio disponível para satisfação. Essa união é vivida como um não seio, ou seio “ausente”, dentro dele. O passo seguinte depen-de da capacidade de o bebê tolerar frustração. Depende de que a decisão seja fugir da frustra-ção ou modificá-la (BION, 1994, p. 129).

E modificá-la nesse contexto é abrir ca-minho para o universo simbólico e, conse-quentemente, para a capacidade de pensar. O pensar ao qual Bion se refere não fala de uma função meramente cognitiva, mas da inau-guração de um espaço de autoria que acon-

tece desde muito cedo. Realizações na teoria bioniana, segundo Zimerman, consistem em experiências emocionais resultantes de frus-trações da onipotência do lactente e, por isso, ele precisa se voltar para o mundo real (real--ização). Essa realização pode se desenrolar de forma positiva ou negativa. Na realização positiva há uma confirmação de que o objeto necessitado está realmente presente e atende às suas necessidades. Na realização negativa o lactante não encontra um seio disponível para a satisfação, e essa ausência é vivencia-da com a presença de um seio ausente mau dentro dele.

De acordo com a teoria de Bion, o surgi-mento da capacidade de pensar depende do quanto de frustração o bebê tem condições de suportar, e isso também tem relação com suas inatas demandas pulsionais. Mas, além disso, Bion afirma que a capacidade de tole-rância do bebê em relação às frustrações de-pende também fundamentalmente da forma pela qual o cuidador recebe suas identifica-ções projetivas. É aí que introduz a noção de capacidade de reverie. Reverie vem do francês, significa ‘sonho’ e, segundo Zimer-man (1995), designa uma condição pela qual a mãe é capaz de captar o que se passa com seu filho muito mais através de um estado de sonho e intuição do que propriamente atra-vés dos órgãos do sentido. A mãe-reverie é aquela que consegue acolher, conter e fazer ressonância com o que é projetado dentro dela, dando sentido aos elementos beta ma-ciçamente projetados e devolvendo elemen-tos alfa nomeados e significados. Bion parte da noção de que todos nós temos a priori recursos para desenvolver o pensar, por isso diz que há um pensamento em busca de um pensador. Entretanto, essa capacidade pode ser desenvolvida ou não, dependendo tam-bém da capacidade de reverie do cuidador.

Considerações finaisA produção deste artigo foi uma tentativa de responder à pergunta introduzida no início, e ao término é possível constatar a impor-

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Reflexões sobre a “teoria do pensar”, de Bion

tância desse autor no campo psicanalítico. O estudo da teoria do pensar possibilita um co-nhecimento sobre a formação do psiquismo a partir dos postulados de Bion, afinando a escuta para a aquisição da capacidade sim-bólica. Além disso, através dela, é possível conhecer um pouco do Bion teórico. O Bion psicanalista aparece claramente no texto So-bre uma experiência pessoal com W. R. Bion, de Luiz Alberto Py, onde conta pormeno-res do seu processo analítico realizado com Bion. Nesse artigo vemos um Bion bem-hu-morado, perspicaz e sensível na relação com seu paciente.

A capacidade de pensar depende de uma dose de frustração e aponta, mais uma vez, como o nascer, o crescer e o viver são ex-periências dolorosas na sua essência. Assim também é o processo analítico: doloroso, na medida em que nos coloca exatamente numa posição de consciência de nós mesmos. Por outro lado, o processo de saber sobre nós mes-mos nos permite maior flexibilidade diante da vida, no sentido de desfazer nós e angús-tias que nos paralisam e nos aprisionam.

Por fim, também nós enquanto analistas precisamos dispor da capacidade de reverie conceituada por Bion, na medida em que nos cabe conter a angústia e devolvê-la aos pa-cientes de forma que ela possa ser transfor-mada e nomeada.

AbstractThis paper comes from reflection on the Theory of Thinking by Bion. A Theory of Thinking does not simply refer to a cognitive function, but speaks the opening of a space of author-ship. According to Bion, the frustration expe-rienced by a psychic apparatus able to bear it originates a proto-mental system which deve-lops a psychic apparatus capable for thinking it. In other words, the thinking comes as a so-lution to cope with frustration. The Theory of Thinking enables an understanding of the for-mation of the psyche, tapering listening to the acquisition of symbolic capacity.

Keywords: Theory of Thinking, Bion, Psycoa-nalysis.

Referências

BION, W. R. Estudos psicanalíticos revisados. Tradu-ção: Wellington M. de Melo Dantas. 3. ed. Rio de Ja-neiro: Imago, 1994.

MELTZER, D. O desenvolvimento kleiniano III. O sig-nificado clínico da obra de Bion. São Paulo: Escuta, 1998.

ZIMERMAN, D. Bion, da teoria a prática. Uma leitu-ra didática. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.

RECEBID O EM: 08/10/2013APROvAD O EM: 29/10/2013

S obR e a au toR a

Waleska Pessato Farenzena FochesattoPsicóloga. Mestre em Ciências da Saúde pela PUCRS. Candidata a psicanalista pelo Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul.

endereço para correspondência]Rua Dr. José Montaury, 325/107 - Centro95330-000 - veranópolis/RSE-mail: [email protected]

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O acompanhamento de adolescentes em grande sofrimento psíquico: distinguindo dois tipos de violência

O presente trabalho resulta da constatação de que os sistemas de acompanhamento na França, hoje, sejam educativos, sejam so-ciais, sejam psiquiátricos, não estão adapta-dos a um tipo de adolescente, ou melhor, a um número crescente de jovens em conflito com a Lei (ECA, 1990), que seguidamente re-correm ao ato (BALIER, 1988) de delinquir.

Sua problemática psíquica difere forte-mente de outros jovens, também em profun-do sofrimento. Entretanto, os dispositivos que lhe são propostos são os mesmos: não se pensa (ainda verdadeiramente) nas especifi-cidades desses adolescentes, pois não se leva em conta sua diferença modificando (oficial-mente) o sistema de acompanhamento.

Este trabalho se caracteriza como uma pesquisa que abrange estudos, debates e per-

O acompanhamento de adolescentes em grande sofrimento psíquico:

distinguindo dois tipos de violência1

Monitoring of major psychological distress in adolescents: distinguishing two types of violence.

Wilfried GontranStéphanie Mousset

Marília Etienne Arreguy

Resumo O texto discute a adequação dos sistemas de acompanhamento de adolescentes na França, hoje, apontando sua desadaptação a um grupo de adolescentes caracterizado como “jovens em conflito com a Lei”. Demonstra também, do ponto de vista metapsicológico, a existência de duas formas de violência apresentadas pelos jovens, relacionando-as a dificuldades em di-ferentes etapas da estruturação psíquica.

Palavras-chave: Violência, Adolescência, Lei, Metapsicologia, Sistemas de acompanhamento.

cepções que enfocam realidades tanto próxi-mas quanto dissonantes entre a França e o Brasil no que concerne à tentativa de com-preensão do sofrimento de adolescentes ins-titucionalizados. Esperamos que possa trazer esclarecimentos e mesmo demonstrações, a fim de contribuir para as mudanças neces-sárias nas políticas de acompanhamento de adolescentes.

Essa abordagem responde a uma exigên-cia ética: manter as capacidades de acolhi-mento desses jovens que, se não se explica melhor o que os anima, corre-se o risco de consentir com as políticas que os rejeitam.

Exporemos, então, algumas reflexões que são apenas premissas de um trabalho a apro-fundar. Para isso, começaremos expondo dois casos clínicos, redigidos pela colega Sté-

1. Trabalho apresentado e debatido na IV Jornada Subjetividade e Educação: conflitos com a lei e com a sociedade - experiências políticas e clínicas, realizado em 17 de julho de 2013, na Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense.

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O acompanhamento de adolescentes em grande sofrimento psíquico: distinguindo dois tipos de violência

phanie Mousset, psicóloga em duas casas de acolhimento do Ministério da Justiça france-sa, de uma equipe supervisionada por Wil-fried Gontran há alguns anos. O primeiro caso ilustra um primeiro tipo de ato violento que desejamos explicitar, e o segundo, uma segunda forma de violência, qualitativamen-te distinta da primeira.

Caso SamirSamir, 15 anos, é a segunda criança de uma fratria de três: tem um irmão mais velho e uma irmãzinha. Ele tem outros meio-irmãos e meio-irmãs mais velhos, saídos de um casa-mento anterior de seu pai. Seu pai e sua mãe nasceram na Tunísia e têm 20 anos de dife-rença de idade. A mãe de Samir veio para a França em seguida ao seu casamento. Samir é um rapaz mais reservado, em que a atitude em relação ao adulto marca uma contenção e um respeito notórios, sem por isso impedir sua autoafirmação. Ele não remete de modo algum à imagem “adolescente”, provocativa ou opositora de um jovem de 15 anos. Foi interpelado por forças policiais por lhes ter atirado projéteis e, em seguida, ter respondi-do verbalmente e fisicamente a sua interven-ção. Esses fatos aconteceram durante mani-festações estudantis. Ele reconhece os fatos que lhe são atribuídos e não parece buscar se livrar de sua responsabilidade. Pelo con-trário, ele quase não chega a explicar como pôde chegar a produzir tais gestos contra a polícia. Samir reconhece sua desconfiança geral contra as forças de ordem quando elas patrulham seu quarteirão; uma desconfiança que justifica pelo fato de já ter sido interpe-lado pela polícia quando não fazia nada de errado.

Ele lembra também de casos de jovens que teriam sido maltratados e insultados por policiais embora eles não tivessem feito nada de mal. Apesar de tudo, não é sob um tom de ódio ou de um sentimento de injustiça que Samir descreve seu ressentimento em relação às forças de ordem, ou seja, aos aspectos nor-mativos da sociedade. A palavra mais apro-

priada, segundo ele, é desconfiança. Ele diz não saber qual trabalho deseja exercer, e não estar particularmente entusiasmado por ne-nhuma formação. No entanto, após o último ano do ensino fundamental [14 anos], con-sidera a possibilidade de entrar no primeiro ano de uma formação profissional em eletrô-nica. De modo geral, ele não revela nenhum centro específico de interesse em seu lazer nem um campo importante em sua vida ou em seus valores. Samir diz reconhecer que é um pouco preguiçoso, identificando o traba-lho que poderia fazer em casa ou para ele, mas frequentemente não tem bastante ensejo nem energia para se propor objetivos e a eles se prender.

Pode-se notar, no momento de uma entre-vista feita na presença de seu pai, que Samir não adotava, nessa circunstância, nenhuma atitude de oposição nem de confronto face ao discurso que seu pai lhe endereçava, mes-mo diante das críticas, às vezes muito duras, de seu pai (que exprimia toda sua cólera, sua vergonha e sua incompreensão diante dos atos praticados por seu filho), Samir não res-pondeu nem tentou se defender, nem iniciou uma discussão com seu pai. Entretanto, sua mãe assegura que dos seus dois filhos, Samir é o que mais afirma sua personalidade, pois seu irmão mais novo ousa menos ainda ex-primir suas demandas ou aquilo que não lhe agrada. Samir fez assim a escolha de seguir os estudos em sua vida profissional, ao con-trário de seu irmão mais novo e ao contrário das expectativas de seu pai.

A mãe de Samir insiste muito sobre os va-lores da honestidade e da humildade, que ela tenta inculcar em suas crianças. Ela coloca, com efeito, como questão de honra, ganhar a vida através do trabalho, desprezando aque-les que, segundo ela, “aproveitam das bolsas sociais”. Ela sempre faz referência à injusti-ça social e à discriminação pelo emprego e pela habitação, dos quais se sente vitimizada enquanto mulher magrebina. Para os pais de Samir, o confronto com a autoridade judicial é particularmente doloroso e vergonhoso.

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O acompanhamento de adolescentes em grande sofrimento psíquico: distinguindo dois tipos de violência

Descrevem, com efeito, sua vida como sendo guiada pelo trabalho, pela correção, pelo respeito às leis e à nação (o pai serviu ao exército sob a bandeira francesa na Indo-china). Eles exprimem também uma certa dor por não poderem usufruir de um reco-nhecimento social à altura dos esforços que despendem principalmente devido às suas condições de habitação.

Esperam também uma melhor posição socioeconômica para seus filhos, graças aos estudos. Ora, sobre esse ponto, o pai de Sa-mir lhe diz que ele decepcionou suas espe-ranças e que o filho não é digno da chance que lhe foi dada: poder ir à escola e aprender. Observando os fatos que lhe são censuráveis, os pais de Samir sustentam discursos diver-gentes sobre seu filho. Tanto sua mãe insiste sobre seu caráter razoável e sério, quanto seu pai o rebaixa em relação às expectativas es-colares e pessoais que ele não preenche, re-preendendo com agressividade sua imaturi-dade, sua negligência no trabalho e sua falta de responsabilidade. O pai declara que sua conduta em relação às forças de ordem mos-tram uma total idiotice, enquanto sua mãe dá prioridade à injustiça social para explicar o ato de seu filho.

O pai de Samir sublinha, por outro lado, que nem sempre concorda com as decisões educativas de sua esposa. Ele mesmo estaria inclinado a dar menos autorizações para o filho sair, tenderia a subordinar mais forte-mente as compras que ele lhes pede para fazer, exigir mais rigor nos trabalhos escolares, etc. O pai tem a tendência nesse nível a repassar para seus filhos as exigências de vida que ele mesmo passou sendo jovem, depois adulto.

Após receber sanções socioeducativas por seu ato transgressivo, Samir se beneficiou de um prosseguimento educativo em meio aberto (fora de uma instituição), antes de passar pelo julgamento do caso. Nós não ti-vemos, subsequentemente, conhecimento de novos delitos concernentes a ele.

Samir ilustra o primeiro tipo de ato de de-linquência, o mais clássico poder-se-ia dizer,

no qual diríamos, antes de mais nada, ter a significação de uma transgressão à lei. Pode-ríamos pensar numa passagem ao ato com sentido de autoafirmação e de rebeldia por justiça. Também tratar-se-ia de uma dificul-dade particular no processo de inscrição no laço social, dadas as dificuldades familiares de inserção socioeconômica em outra cultu-ra. Essa situação, do ponto de vista coletivo, poderia por sua vez representar certa forma de privação no nível familiar, que reverbe-raria numa resposta subjetiva de Samir aos moldes de uma tendência antissocial, diría-mos “normal”, tal como descrita por Winni-cott (2000), ou seja, como reação a um am-biente parcialmente hostil, por ser filho de estrangeiros vivendo de forma relativamente precária na França.

Mas como considerar essa dificuldade? No nível do desafio e da contraposição à autori-dade. Para que se dê uma inscrição simbólica das marcas singulares do sujeito na cultura, seria necessária uma ultrapassagem da figura paterna, que corresponde ao prolongamento, à transição necessária da autoridade do pai em direção à autoridade presente no laço so-cial. Com o fato de transgredir a lei (social) visando a questionar declaradamente sua autoridade, tratar-se-ia, para o adolescente desafiar a legitimidade autoproclamada pelo pai, ou seja, uma autoridade à qual o adoles-cente não pretende mais continuar a se do-brar sem algumas explicações paternas. Em suma, se para a criança trata-se do fato de que o pai saiba pôr à prova sua autoridade, para o adolescente tratar-se-á, no presente, de que se dê conta de sua legitimidade para exercê-la. Ora, de onde vem a autoridade do pai? O que funda a lei? Aí está uma questão que se impõe para os jovens, com qual os pais em algum momento têm de se haver.

Inscrever-se no laço social, a título de um indivíduo dito autônomo, quer dizer, res-ponsável por seus atos, necessitaria então de recolocar a questão da figura paterna tal qual a criança a apreende, ou seja: é necessário um pai falicamente potente, notadamente

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capaz de satisfazer a mãe; um pai com o qual qual a criança poderá se identificar para que venha a adquirir sua própria potência fálica. As lutas entre os pares, oriundas do ciúme, significam nesse contexto, nem mais nem menos que uma luta fraterna para vir a ocu-par fantasmaticamente (FREUD, 1901) ou, na falta de uma fantasia, de diferentes formas na realidade (FREUD, 1996; LACAN, 1966) — o lugar do pai (FREUD, 1996; LACAN, 1997, 1975).

O momento de o adolescente significar que essa identificação não é suficiente (pois o pai é carente para responder sobre o que cada um deles tem de fazer de sua vida) é realmente um momento de carência estrutu-ral: o sujeito é só, vive sempre “abandonado” pelo pai no que diz respeito ao que ele tem a fazer de seu desejo; essa solitude incontorná-vel é a base da crise adolescente.

Os atos de violência desse primeiro tipo, que melhor chamaríamos de passagens ao ato do adolescente, assinalariam que ainda há de se fazer uma batalha contra o pai, às vezes, sob o fundo de uma raiva contra ele. Essa raiva se funda não tanto nas privações de liberdade (de agir, de pensar, etc.) que o pai exerce, mas no fato, bem oposto, de que este fracasse a vir a apoiar, e quem sabe, a di-rigir o adolescente até o fim, até seu acesso à idade adulta. No entanto, espera-se do pai que não nos acompanhe na idade adulta da mesma maneira como quando éramos crian-ças, numa plena segurança confortadora. É preciso confiar para permitir o amadureci-mento do filho, deixando-o errar por si mes-mo. Se essa confiança não é explícita, o filho pode retaliar com seu ato transgressivo, de modo a tirar do mundo (ou a jogar no mun-do, pensando nos projéteis jogados por Sa-mir) aquilo que supostamente marcaria sua passagem ao status adulto, embora essa ten-tativa possa ser feita de maneira desastrada, através de uma passagem ao ato no embate com a Lei.

Nesse primeiro registro, o da transgres-são à Lei, os atos de delinquentes represen-

tariam, em definitivo, um trabalho de luto do lugar da instância paterna, realizando-se sob a cena de um social que deve doravante assumir o controle da autoridade. E, no con-texto dos atos de delinquência, o trabalho de luto não se pôde efetuar de outro modo, por razões próprias do sujeito em questão, a não ser no registro do agir.

Aqui, em contraposição à noção psiquiá-trica clássica de “passagem ao ato”, também representativa do que Lacan (1966; 1963a) definiu como um curto-circuito pulsional, deve-se precisar aquilo que, em psicanálise, se chama acting out (LAPLANCHE; PON-TALIS, 1995; MIJOLLA et al., 2002), a sa-ber: a colocação em ato de uma verdade que não se pode dizer, que não se pode formular no discurso, mas que insiste continuamen-te. Apesar de não dita, a passagem ao ato enquanto acting out aporta um endereça-mento ao outro; não é gratuita e tem um sentido, embora sua forma possa ser vista a priori como equivocada no plano social. Numa visada mais compreensiva e menos interpretativa em psicanálise, o agir violen-to do adolescente tratar-se-ia de um resgate da função positiva do trauma. Esse resgate está ligado à passagem da passividade para a atividade, incluindo os efeitos paradoxais nas origens da identificação com o agressor (FERENCZI, 2011).

O ato de delinquência é então pleno de significação. E é nesse primeiro caso que o trabalho educacional vai encontrar sua “acla-mação”: naquilo que cederá lugar na Fran-ça a um trabalho educativo fundado numa grande instituição como a Proteção Judiciá-ria da Juventude.2 Essas instituições seriam

2. É curioso citar que, desde 1945, o aprisionamento em balneários para adolescentes ainda existe em um país como a Rússia. Na França e no Brasil, tenta-se avançar, mas ainda há muitos problemas quanto ao reconhecimento versus o aprisionamento de jovens. Há questões contraditórias para o exercício da clínica psicanalítica nesse contexto, embora acreditemos que isso não seja completamente impeditivo.

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similares às instituições socioeducativas no Brasil, portando a contradição de serem ao mesmo tempo um lugar de aprisionamen-to, portanto forçado e um lugar de cuidados com a saúde psíquica e coletiva, cujo convite ao laço com psicólogos, por exemplo, pro-moveria um vínculo com o social.

O trabalho analítico consiste, assim, em extrair do ato de delinquência a verdade de uma questão colocada ao pai, permitindo ao adolescente elaborar sua questão em um ou-tro registro que não seja aquele registro radi-cal do agir. De modo que esse ato de endere-çamento possa fazer um enlace simbólico na relação com o outro, de início, o terapeuta.

Nesse primeiro caso, o ato de delinquên-cia corresponde especificamente a um mo-mento adolescente e, a esse título, só poderia ser transitório, por pouco que o trabalho de acompanhamento, tal como nós viemos a descrever, traga seus frutos. Sem isso o su-jeito pode confirmar sua inscrição em um funcionamento delinquente, com a conso-lidação de uma defesa antissocial (WINNI-COTT, 1956) como resposta figurativa de uma postura de adulto que decide e faz, en-tretanto, cujas escolhas podem ser destruti-vas em relação ao socius. Toda estratégia de prevenção clínica reside na visada de desviar o adolescente desta alternativa.

Assim, Samir talvez ilustre com o ato iso-lado de atirar o projétil contra um policial, essa tentativa de entrar com força na socieda-de, evidentemente uma entrada simbolizada pelo fato de ser no belo meio dos estudantes, ou seja, em uma sociedade aqui represen-tada pelos agentes de força de ordem. Essa sociedade é aquela que seus pais desejariam tão ardentemente que ele integrasse para além do que eles mesmos puderam realizar na sua vida de imigrantes, vida com a qual permanecem insatisfeitos. Samir, sem dese-jar, para se orientar em seu seio — e talvez tomado por essa forma depressiva própria da passagem pela adolescência — não chega a afrontar suficientemente o pai, pois se apa-ga diante dele no lugar de chegar a lhe opor

um desejo que certamente não é o que o pai idealizou para ele.

Esse caminho, do pai em direção ao so-cial, é fonte de uma profunda angústia que tenta ser resolvida com a passagem ao ato, nesse movimento de extração do objeto (o projétil). A partir dessa extração, o social o interpela e pode ajudá-lo a puxar o fio das determinações de seu ato lhe permitindo elaborar através da palavra sua verdade in-consciente. Isso fará de seu agir um ato que poderá assumir. Parece-me que o trabalho de acompanhamento dos adolescentes em con-flito com a lei, seja ele assegurado no qua-dro da Proteção Judiciária da Juventude, seja em outro lugar, há que pensar, formalizar, de agora em diante, também às vistas de um se-gundo tipo usual de violência. O caso Tom ilustra talvez algumas dessas características.

Caso TomTom tinha 15 anos e meio quando foi insti-tucionalizado. Ele nasceu e viveu, até alguns meses antes, sob outros trópicos. Órfão de mãe desde 5 anos, cresceu na rua desde o 9 anos com alguns de seus irmãos mais ve-lhos. Seu pai tinha então tomado a decisão de deixar a região em que viviam e deixou às crianças a escolha de segui-lo ou ficar. Pro-curado por diferentes ocorrências de roubo e de violência, ele foi encarcerado aos 14 anos. Membros de uma gangue rival sendo encarcerados na mesma prisão, ele decidiu proceder em sua transferência para uma re-gião parisiense de modo a se proteger da vio-lência por um acerto de contas. Efetuou uma primeira passagem pelo bloco dos menores antes de ser finalmente transferido para um estabelecimento penitenciário para menores. Uma atenuação de pena foi, em seguida, co-locada em andamento, através de uma colo-cação em família de acolhimento que durou três meses. Nós o encontramos pela primeira vez na detenção, justamente para levantar a possibilidade dessa transferência.

Tom exprimiu que seu lugar não era ali e que ele retornaria para a rua atrás da gangue,

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pois não poderia proceder de outra forma. Mas tendo sido encarcerado a milhares de quilômetros da sua casa, quis assim mesmo tentar a experiência de uma colocação numa família de acolhimento. Tom pode dizer que sua família era sobretudo a gangue, já que conhece o grupo desde pequeno. Seu irmão mais velho também faz parte da gangue. Tom chega a anunciar que investir nas atividades e projetos que lhe propomos seria uma for-ma de renegar seu pertencimento à gangue, com quem permanece todo tempo ligado via internet.

Durante sua colocação, soube que dois de seus “irmãos” (de gangue) foram assassina-dos. Tom vive de modo muito violento o fato de estar separado do grupo e de não poder se associar a seus outros irmãos para vingar sua morte. Observamos também que ele fixa cada vez mais seu pertencimento em sua in-dumentária, pintando algumas de suas rou-pas com as cores associadas à gangue. Tom porta também sobre seu corpo outras mar-cas de pertencimento através de múltiplas ta-tuagens. Durante os dois primeiros meses de sua colocação, ainda que permanentemente tensionado entre sua lealdade à gangue e à família de acolhimento, demonstra um in-vestimento positivo nas abordagens educati-vas empreendidas, assim como nas relações com os adultos que dele se ocupavam.

Não cometeu nenhuma falta em relação ao regulamento. Na família de acolhimento, participa de certos trabalhos com boa vonta-de, chegando mesmo a gravar seu nome so-bre a chapa de concreto de um atelier então em construção. Às vezes, ele se permite dizer que poderia muito bem permanecer lá por dois anos, o tempo de aprender um trabalho.

Na casa, Tom investe particularmente na atividade de música, na qual ele escreve canções em memória de seus próximos que estão mortos (sua mãe e seus irmãos da gan-gue). Chega a chorar enquanto nos faz es-cutá-las. Com a educadora encarregada da inserção, ele evoca sistematicamente a morte de sua mãe e lhe pergunta se ela crê em Deus.

Ele diz que não acredita mais porque pas-sou por muitas coisas. Quando fala da de-tenção, descreve modalidades de relação aos outros e às leis que se opõem ao que é espe-rado dele lá fora, pelos educadores. Ele diz: “É preciso que você seja o mais forte. Você não tem escolha, você se deixa bater quando chega, depois é preciso que você bata para se fazer respeitar. Você deve ser superior (sic)”.

Para ele, de um certo ponto de vista, é mais fácil viver a prisão, o cárcere do que a liberdade: “Te pedem menos coisas. Se qui-ser, pode ficar fechado em sua cela, você é livre. Fora, é preciso sempre fazer escolhas, e há mais exigências. Você deve prestar aten-ção em como se comporta, em como fala. Na prisão, há menos histórias; fora, é preciso sempre se explicar, te pedem sempre mais, dominam sua cabeça. Na prisão, há os vigias, se você for pego, vai para o bloco disciplinar, e depois, acabou. Fora, há os educadores, a casa de acolhimento, as regras, etc.”.

Tom então afirma estar mais adaptado a um funcionamento fora das convenções da relação social. Modalidades binárias e abrup-tas balizando os limites do permitido e do interditado são suficientes para ele. As rela-ções são reguladas no fundo pela relação de força e pela violência. Ele especifica então: “A gente sabe que você é grande quando está na prisão. Fora, muitos se fazem de bons, mas na prisão somente os durões são respeitados. Você deve sempre dar o primeiro golpe para mostrar que é o mais forte”.

Para tanto, ele também sabe usar com fineza da sedução para orientar a relação e dela tirar benefícios. Ele diz: “A vida é como uma partida de pôquer. É preciso que os outros acreditem que você é o mais forte para que eles te respeitem e algumas vezes é preciso saber dizer o que eles querem ouvir para ter o que você quer”. Quando se lem-bra de sua vida na rua, diz que fez “coisas graves”, que não quer nomear nem especifi-car, e explica que ninguém o interrompeu. Com ele, não aconteceu como com seu ir-mão mais novo, que seu pai e seus irmãos

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mais velhos tentaram parar. Para ele “isso não para nunca”.

Tom permite assim compreender que ele poderia ter sido retido antes de sua integra-ção na gangue e antes da espiral de acerto de contas na violência. Ele faz referência a uma vivência de abandono, no decorrer da qual ele foi largado, e em que terminou também por largar aqueles que poderiam lhe dar confor-to e limites estruturantes, preservando para ele seu lugar de criança. Suas falas, seus com-portamentos e suas posturas demonstraram uma tensão entre duas modalidades de estar no mundo com os outros: tanto a pessoa fria, sem consideração e outros princípios, a não ser aqueles referidos a sua gangue, quanto o rapaz sensível à atenção que lhe era dada, buscando a troca e o compartilhamento na relação individual. Além da violência dos propósitos, os atos do rapaz reivindicando sua gangue se revelam, às vezes, como uma expressão da criança mortificada incrustada em sua personalidade.

A esse respeito, o roubo de uma bijuteria na família de acolhimento pôs em ato de ma-neira muito aguda uma ferida, marcando sua ligação amorosa ao objeto materno. A mu-lher da família de acolhimento veio a perder sua própria mãe. Ela se deu conta, ao arrumar suas coisas, que um de seus pendentes tinha desaparecido. Tratava-se de um coração que sua mãe tinha lhe dado. Ela tinha mostrado essa bijuteria para Tom. Procurou por todos os lugares, muito afetada com o desapareci-mento, e perguntou também a Tom se ele a havia visto,e ele negou. Acontece que, alguns dias depois, o pendente apareceu nas coisas dele. Porém, Tom negou tê-lo furtado.

No decorrer do terceiro mês de sua esta-dia, os contatos via internet com os membros da gangue se intensificaram. Tom chegou mesmo a dizer que alguns deles poderiam encontrá-lo na região. Seu comportamento mudou. Ele mostrou cada vez mais oposi-ção face aos educadores, levando-os a des-confiar dele, pois não sabiam mais quem era “o verdadeiro Tom”. Durante uma sessão do

ateliê de música, Tom deixou a interventora entrever que ele tinha vindo com uma arma, deixando-a ostensivamente aparecer para fora da calça. Em seguida, sussurrou para a interventora que precisava de dinheiro, que cometeria um roubo e partiu. Interpelado mais tarde pela polícia, desmentiu tudo o que a interventora tinha relatado sobre o que ele havia dito e mostrado.

Tom também negou diante da família de acolhimento ter portado uma arma naque-le dia. O senhor da família de acolhimento decidiu inspecionar seu quarto e encontrou uma pistola de balas de festim. Tom ficou “baqueado” quando foi confrontado com o fato de que a família de acolhimento tinha descoberto a arma. Ele não conseguiu sus-tentar uma discussão com eles e se afundou em justificações pouco convincentes, dei-xando o lugar. Disse em seguida ao educador que não queria mais continuar sua progres-são de pena e que desejava ir novamente para a prisão.

Sem dirigir mais a palavra à família de acolhimento e recusando qualquer aborda-gem, ele foi acolhido na casa da Proteção Judiciária da Juventude, onde o encontra-mos. Essa mudança de enquadre suscitou num primeiro momento uma renovação do interesse quanto ao fato de novamente ten-tar projetos a partir da casa. De todo modo, em seguida, Tom se encontrou tomado por tensões internas, afirmando tanto que só buscava ser novamente encarcerado e refa-zer o caminho dos centros de detenção para retornar a sua região de origem, quanto que queria permanecer ali e trabalhar.

Nessa tensão se lia dramaticamente a an-gústia de não ter finalmente outro lugar a não ser a prisão ou a gangue. Por outro lado, pediu a alguns de nós, mais ou menos de canto, se não poderíamos adotá-lo. Final-mente, sobre o plano da resistência passiva, manifestou o impasse no qual estava preso: Tom permanecia o dia todo deitado na sua cama, os olhos fixos no teto, transgredia cada vez mais fumando cannabis, fugia à noite e

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voltava de madrugada. Ao lado de outros jo-vens, tentava provocar o terror e submetê-los aos seus mandos. Nesse contexto, por uma briga com um outro jovem, foi finalmente transferido para outra casa.

Nesse segundo tipo de ato de delinquên-cia, a questão não era verdadeiramente de transgredir visando a potência e a autori-dade do pai. Esses atos de delinquência, in-flacionados na nossa sociedade contempo-rânea, devem ser mais considerados como consequência do que muito se chama hoje de “declínio da função paterna” (LACAN, 1997), no que isso logicamente deixa a crian-ça num face a face talvez mortal com a mãe. Pari e passu o sujeito se vê confrontado com o Outro primordial, um outro sem filtro, sem paragem, intrusivo e excessivo (KAUF-FMANN, 1996).

Os atos de delinquência resultariam de uma forte proximidade com a mãe, com sua figura ou, num plano mais amplo, com a cul-tura midiática, cuja precariedade na media-ção simbólica, para além de oferecer amarras de ancoragem ultraidealizadas para o sujei-to, excede numa demanda feroz inatingível (ŽIŽEK, 2006). Os atos violentos aí consti-tuiriam então uma tentativa de saída radical da angústia que suscita naturalmente a proxi-midade com a mãe como instância, revelan-do a angústia em face ao espectro de um gozo incestuoso. Trata-se também da angústia de não poder usufruir de nada que represente os ideais culturais contemporâneos. A única forma encontrada de se sobressair é auto e heterodestrutiva (FREUD, 1996). Ora, todo o trabalho de estruturação psíquica de um indivíduo consiste em erigir barreiras contra o retorno dos efeitos destrutivos da angús-tia (KLEIN, 1992, 1982). No entanto, existe um gozo destrutivo do qual adolescentes em grande dificuldade, diríamos, em estado de deprivação, vão fruir de modo a forjar essa destruição no social (WINNICOTT, 2000).

Mas, em que, mais precisamente, os atos de delinquência desse segundo tipo teriam a reportar à relação arcaica com a mãe? Deve-

se a Serge Lesourd, inspirado por Denise La-chaud e retomado por Yves Morhain, por ter formalizado tão magistralmente as questões e os fundamentos desse segundo tipo de ato de delinquência.

Lesourd (2001) mostra o quanto esses atos não constituem tentativas de se inscre-ver num laço social, realizando, assim, seu dever de habitar o mundo como adulto; ao contrário, sinalizam mais radicalmente uma posição de impotência vivida como impos-sibilidade de ali se inscrever. Não é o tanto que seria árduo recuperar seu lugar na so-ciedade, mas o fato de isso, segundo eles, ser impossível. A gramática inconsciente dessa segunda forma de apresentação da violência nesses jovens seria: “Não há realmente lugar para mim”.

Como um indivíduo pode chegar a con-siderações tão radicais que vão tornar sua vida tão sufocante? Para compreender o que funda esse vício, o impasse que o social re-presenta para esses indivíduos, examinemos mais de perto os joguetes da relação com a mãe, dita aqui arcaica, por ser considerada em sua versão não castrada, quer dizer, ain-da numa versão todo-poderosa aos olhos da criança.

Notemos a esse respeito que Tom viveu aos 5 anos um acontecimento notavelmente traumático na relação à sua mãe: ela morreu. Pode-se pensar que, para ele, de maneira traumática, alguma coisa caiu tão brutalmen-te da potência materna, o que em psicanálise se chama a castração materna, que então se revela subitamente à luz do dia: a mãe indu-bitavelmente também falha. O traumatismo consiste no fato de que o sujeito, então crian-ça, não teve tempo de metabolizar, simboli-zar essa queda da potência materna, o que pode acarretar uma fixação, ou melhor, uma espécie de alienação à figura todo-poderosa da mãe; alienação que se traduz por uma nos-talgia do tempo em que ainda sonhava com a completude que poderia constituir com ela. Sua relação com a mãe seria ainda a promes-sa de um gozo absoluto, índice de uma eco-

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nomia a dois que o pai tinha apenas começa-do a pôr em questão. Essa alienação arrisca desorganizar a vida do adolescente, que vai ter dificuldade para encontrar seu lugar no laço social, ou seja, para se integrar à socie-dade. Na continuidade de uma falha absoluta da mãe, terá antes a tendência a se desinte-grar. Pois, se inscrever no laço social implica adotar outro modo de relação com o gozo. Ora, é preciso dividir os bens entre todos, pois de todo modo, o gozo em si, ninguém pode ter todo (FREUD, 1996). Há uma fal-ta fundamental, e é pelo fato de se apropriar e de pôr em ação essa falta como estrutural que se considera e se constrói uma relação à coisa social. Na cultura tradicional, em que ainda vivemos em grande parte, é assim que a pertinência ao laço social vai poder vir a se impor para um sujeito, estabelecendo uma relação com a autoridade. Por outro lado, os vínculos de Tom eram essencialmente ho-rizontais, privilegiando uma fratria caótica, portanto, estigmatizados diante da socieda-de oficial a qual, muitas vezes, é necessário se dobrar (FREUD, 1996).

No lugar disso, o adolescente, envolvido por essa injunção ao gozo absoluto, se lança em uma luta até a morte com o outro — de-pendendo da ocasião, ele poderá também ser seduzido pelas promessas de gozo absoluto que as drogas e outras substâncias oferecem — uma economia que rege a luta das gan-gues. Trata-se de uma luta até a morte, pois não haveria, realmente, para o sujeito, lugar para todos no mundo. É um pouco a mesma coisa quando se diz: “os estrangeiros devem permanecer em suas casas, pois não há tra-balho suficiente para todo mundo”, suben-tendendo-se que se eles não estivessem ali o problema do trabalho poderia vir a se solu-cionar. Assim, atribui-se ao outro a causa de sua própria falta.

É exatamente nessa lógica que o adoles-cente, funcionando nesse segundo tipo de violência, será efetivamente barrado: “a au-sência tão prejudicial para mim deste gozo, essa que me metem todos os dias diante do

nariz, da qual me dizem que é sinal de re-conhecimento, de conquista social, etc., esta pela qual então eu sofro tão cruelmente, por não ter aceso suficientemente, eu imputo a responsabilidade ao outro, pelo fato de que ele a possuiria e, por isso mesmo, dela me privaria”.

O mecanismo é simples de compreender: está no fundamento do discurso racista. Mais difícil é se dar conta do que vai explicar um tal fechamento do indivíduo nessa lógica, ao ponto que estará prestes a sacrificar sua vida. Temos também o exemplo paradigmático das gangues para as quais o laço social foi re-descoberto pela via dos territórios. Marchar sobre o território do outro é dele roubar um gozo. “Se o outro me coloca em risco, eu o elimino.”

Para compreender essa posição psíquica tão particular, Lesourd valoriza a noção de inveja distinguindo-a da do ciúme. O fecha-mento na economia da inveja é o que barra a passagem da luta fraterna em relação ao ultrapassamento do gozo do pai. Evidente-mente, essa questão já havia sido posta por Melanie Klein (1957/1991), na sua obra magistral Inveja e gratidão (cf. ARREGUY, 2001). Apenas na passagem de uma posição dual, narcísica, invejosa, persecutória e des-trutiva, para uma posição triádica, ciumenta, depressiva e reparatória, seria possível ter as bases para o declínio da posição edipiana. Aí o sujeito estaria numa cena a três, que pode vir a ser posteriormente elaborada. Diferen-temente, aquele que funciona segundo a in-veja, permanece talvez fixado demais à etapa da criança que vê seu irmão mais novo no seio da mãe, num quadro de completude en-tre a mãe e a criança do qual se vê radical-mente excluído.

É clássica a cena citada por Santo Agosti-nho no livro I das Confissões, também referi-da por Lacan (1997):

Certa vez, vi e observei um menino invejoso. Ainda não falava, e já olhava pálido e com rosto amargurado para o irmãozinho colaço.

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Quem não terá testemunhado isso? Dizem que as mães e as amas tentam esconjurar este de-feito com não sei que práticas. Mas se poderá considerar inocência o não suportar que se partilhe a fonte do leite, que mana copiosa e abundante, com quem está tão necessitado do mesmo socorro, e que sustenta a vida apenas com esse alimento? Mas costuma-se tolerar indulgentemente essas faltas, não porque se-jam insignificantes, mas porque espera-se que desapareçam com os anos. Por isso, sendo tais coisas perdoáveis em um menino, quando se acham em um adulto, mal as podemos supor-tar (AGOSTINHO, 2007, p. 5).

Vejamos o comentário de Lacan, feito na lição do dia 14 de março de 1964, no semi-nário sobre Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise:

Inveja vem de videre. A invídia mais exemplar, para nós analistas, é aquela que há muito tem-po destaquei em Agostinho, para lhe dar todo o seu desenvolvimento, isto é, a da criancinha olhando seu irmão pendurado ao seio de sua mãe, olhando-o amare conspectu com um olhar amargo, que o decompõe e faz nele mes-mo o efeito de um veneno. Para compreender o que é a invídia em sua função de olhar, não é preciso confundi-la com o ciúme. O que a criancinha, ou qualquer pessoa, inveja, não é de modo algum, necessariamente, algo que ela poderia ter vontade, como impropriamente se exprime. A criança que olha seu irmãozinho, quer dizer que ela ainda precisa da teta? Todo mundo sabe que a inveja é comumente provo-cada pela possessão de bens que não seriam, para aquele que inveja, de nenhum uso, e dos quais ele nem mesmo suspeita da verdadeira natureza. Esta é a verdadeira inveja. Ela faz empalidecer o sujeito diante do quê? Diante da imagem de uma completude que se refecha [...] (LACAN, p. 115-116).

Estar a três não é considerável nessa cena. A criança não tem lugar ali, não tem existên-cia possível. Ela se aniquila reduzindo-se ao

olhar dessa cena de completude entre a mãe e seu irmão mais novo, um olhar que vai re-tornar de maneira radical na clínica com os adolescentes.

E para lidar com a falta materna, a crian-ça não tem então outra solução a não ser a destruição do recém-chegado, o que será formulado da seguinte forma: “ou ele ou eu”. Se não há lugar para os dois, o que prosse-gue será: “não há lugar para todos na socie-dade”. Atenção para não deixar as crianças a sós com seus irmãozinhos e irmãzinhas! Evidente que esse processo pode se passar todo no plano da fantasia, como mostra a bela fábula, O pequeno Nicolau, filmada por Laurent Tirard (2010). Ocorre que os jovens em conflito com a lei que transigem para atos extremamente violentos e autodestrutivos passaram não só por uma perda real nos pri-mórdios de sua estruturação psíquica, mas permanecem em situação de perdas severas e contínuas ao longo da vida, numa relação sem mediação com o Outro.

O adolescente do segundo tipo, em todo caso, é um sujeito fechado em uma etapa pri-mitiva de sua constituição psíquica, em uma etapa que se chama narcisismo primário, aquela dos primórdios da constituição do Eu (FREUD, 2004). Essa definição tem impor-tância, pois o momento inaugural em que o Eu se constrói também corresponde à etapa do “estágio do espelho”, formalizada por La-can (1998). A criança tem de se reconhecer no espelho para poder chegar a um senti-mento de integridade de seu Eu.

O que nos coloca na via de um momento de construção psíquica relativo ao estádio do espelho é a importância do olhar nos adoles-centes. Lesourd destaca sua propensão a ser agredido pelo olhar, sempre um olhar mal-doso: “ele me tirou” [gíria usada pelos ado-lescentes significando “ele me zoou” (estig-matizou)], no sentidode “ele me olhou mal, atravessado”.

O olhar do outro é persecutório, o que faz talvez pensar em uma tendência paranoide (MIJOLLA-MELLOR, 2011) desses adoles-

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centes. Esse olhar coincide com o retorno de seu próprio olhar projetado no outro. É sua própria inveja ao encontro do outro que retorna de maneira ameaçadora, algo tanto maior quanto mais o indivíduo for pego nes-sa economia pulsional invejosa. Essa luta até a morte, saída de um exercício de violência às vezes dos mais radicais, nas quais o outro po-derá ser agredido fisicamente, consiste então num exercício de sobrevivência narcísica, de preservação da integridade do Eu ainda tão frágil. É preciso salvar o Eu, mesmo às custas da morte. Nesse caso não se está absoluta-mente ainda na etapa da transgressão à Lei, já que esta necessita da entrada em cena do pai que virá a inscrever a falta para todos. A figura paterna, ou o que quer que represente um interdito ao desejo ilimitado da mãe, as-segurará que todos passem pela falta. É por isso que o gozo que falta a um, para se com-pletar, não se pode buscar no outro, pois o outro não é completo. Essa incompletude é, entretanto, justamente o contrário do que a criança considera quando observa, despeita-da, seu irmão recém-nascido no seio de sua mãe.

Morhain nos ensina a reconhecer o valor do ódio em face ao drama do gozo do outro que nos aniquila:

Na medida em que é ainda uma defesa, um último baluarte antes do colapso psíquico (HASSOUN, 1999), o ódio pode ser reparador e constitui para alguns jovens uma expressão positiva da violência e da negatividade, no mo-mento em que a pulsão de destruição é tem-perada com o ódio pelo objeto, assegurando de algum modo sua consistência (MORHAIN, 2008, p. 135, tradução livre).

A raiva pode então se revelar salvadora pela distância que ela mantém com seu ob-jeto, objeto que é, por isso, preservado. Essa função estruturante da agressividade fora também abordada por Winnicott (2000) em A agressividade em relação ao desenvol-vimento emocional, um texto seminal que

atesta a função vital e positiva da agressivi-dade como forma de se diferenciar do outro e como força motriz da apreensão do mundo e da criatividade. Por outro lado, a derivação numa raiva destrutiva, com vistas ao desapa-recimento do objeto, em vez de se constituir numa tentativa terapêutica, faria retornar à inveja ameaçando o sujeito... Resta aprimo-rar essa função: de que modo integrar a raiva na contratransferência? Questão que apenas sinalizamos como fonte de trabalho por se fazer.

Assim, Tom nos mostra sua aflição diante de sua dificuldade de considerar a possibili-dade de se inscrever no laço social, pois toda a sua vida, desde os 9 anos, quando ele re-nunciou ao apoio do pai, se construiu sobre o postulado de que a sociedade não podia lhe dar um lugar, daí seu nível extremo de investimento na gangue, na qual ele põe a in-tegralidade de suas identificações, logo, sua identidade toda.

Embora ele pareça fazer aliança com os educadores, termina por vir com uma pistola à casa, depois acaba por roubar uma bijuteria na família de acolhimento — objeto substi-tuto da figura materna arcaica representada aqui pela mulher da família de acolhimento — essa bijuteria, em forma de coração, lhe teria sido fantasmaticamente oferecida por sua própria mãe.

Como não pensar que Tom se agarrou a esse episódio para colocar na ordem do dia a questão do amor através do presente, a eco-nomia do dom que talvez tanto lhe faltou com o desaparecimento prematuro de sua própria mãe? Não haveria outra alternativa a não ser marcar essa falta subtraindo do outro (da mulher da família de acolhimen-to) seu objeto de amor? Até que ponto essa “subtração” não representaria sua antípoda, uma “soma” a si, na tentativa de se vincular ao outro “pegando” algo dele?

Mais do que uma traição em relação às pessoas que ele aprecia, seu verdadeiro pro-blema seria uma forma de transferência diante das pessoas que aprendeu a apreciar:

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“O amor me falta”. E assim, para que a vida não se reduza a uma luta até a morte pelo gozo: “Como vocês podem me ajudar a me tirar disso?”. Afinal, os erros que comete são explícitos, apesar de não diretamente ende-reçados numa reivindicação transgressiva como a de Samir, já que deixam entrever seu fracasso na forma destrutiva de violência que apresenta. Ele se faz denunciar, ao deixar a arma aparecer, ao não esconder direito ou se livrar do objeto roubado...

Parece fundamental distinguir dois me-canismos muito diferentes — passagem ao ato como transgressão à Lei e passagem ao ato como recurso narcísico de sustentação do Eu — nos atos violentos que a socieda-de francesa apenas chama de delinquência, os quais às vezes parecem idênticos em sua manifestação. O acompanhamento desses adolescentes estará certamente mais adapta-do a partir disso: para aqueles que se referem a uma transgressão à Lei, tratar-se-á de nor-tear o trabalho sobre a elaboração do luto do pai; para o segundo tipo, que concerne aos mecanismos narcísicos, o trabalho se nortea-rá sobre a falha narcísica e o trabalho sobre o objeto. Nesse contexto, as atividades de me-diação terão um lugar privilegiado.

AbstractThe text works the adequacy of adolescents fol-low-up systems in France today, pointing out it is inappropriate to a group of adolescents characterized as “young people in conflict with the law”. It also shows a metapsycholo-gical point of view: the existence of two forms of violence presented by young people, relating them to some difficulties at different stages of psychic structure.

Keywords: Violence, Adolescence, Law, Me-tapsychology, Monitoring systems.

Referências

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O acompanhamento de adolescentes em grande sofrimento psíquico: distinguindo dois tipos de violência

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FREUD, S. À guisa de introdução ao narcisismo (1914). In: ______. Escritos sobre a psicologia do in-consciente. Coordenação-geral da tradução Luiz Al-berto Hanns. Rio de Janeiro: Imago, 2004. p. 97-119. (Obras psicológicas de Sigmund Freud, v. 1).

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RECEBID O EM: 12/09/2013APROVAD O EM: 12/11/2013

SOBRE OS AU TORES

Wilfried GontranPsicólogo, formador de equipes de saúde, professor no Master PRO Enfance Et Adolescence da Université de Toulouse II - Le Mirail. E-mail: [email protected]

Stéphanie MoussetDoutora em Psicologia e Membro do Laboratoire Cliniques Psychopathologique et Interculturelle na Université Toulouse II - Le Mirail, psicóloga na Protection Judiciaire de la Jeunesse (Toulouse - France).E-mail: [email protected]

Marília Etienne ArreguyTradução e coautoria. Psicanalista associada ao Fórum do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro; Professora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da Universidade Federal Fluminense.E-mail: [email protected]

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Normas de publicação

Normas de Publicação1

1. Serão publicados apenas trabalhos inéditos de Psicanálise e textos de colaboradores convidados pela Comissão Editorial. Entendem-se como inéditos os que não foram publicados, nem no todo nem em parte, em periódicos, capítulos de livros nem em anais de eventos.

2. Os trabalhos serão publicados em língua portuguesa ou em língua estrangeira. Ficará a cargo do autor a tradução para o português do resumo dos trabalhos enviados em outro idioma.

3. Poderão também ser publicados:

3.1 Reflexões sobre a psicanálise, articulando-a com outras áreas do conhecimento; 3.2 Casos clínicos;

3.3 Entrevistas;

3.4 Resenhas;

3.5 Ensaios.

4. A estrutura dos trabalhos deverá estar de acordo com as normas abaixo:

4.1 Todo trabalho deverá ser obrigatoriamente acompanhado de:

4.1.1 Folha de rosto com o título do trabalho, nome dos autores e titulação. No corpo dotrabalho não deverá constar o nome dos autores, com o objetivo de manter o anonimato na avaliação feita pelo corpo editorial.

4.1.2 Título em português e em inglês no corpo do trabalho.

4.1.3 Resumo expressando o conteúdo, salientando os elementos novos e indicando sua importância. Deverá ser colocado antes do texto e não deve exceder a duzentas e cinquenta palavras.

4.1.4 Palavras-chave, de três a cinco, que identifiquem o conteúdo, para a completa descrição do assunto e, quanto à localização, após o Resumo.

4.1.5 Keywords deverá vir após o Abstract.

4.1.6 Referências. Citadas como no exemplo a seguir:

4.1.6.1 Registrar as referências em ordem alfabética conforme os exemplos, observando os detalhes de dois pontos, abreviaturas e vírgulas, bem como qualquer outro assinalado

abaixo:

1. Normas atualizadas para as próximas edições.

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Normas de publicação

a) De livro

AUTOR. Título em itálico: subtítulo. Edição. Local (cidade) de publicação: Editora, ano de publicação. Exemplos: CERVO, A. L. Metodologia Científica: para uso dos estudantes universitários. 2. ed. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1978. PIMENTEL, D. O sonho do jaleco branco: saúde mental dos profissionais de saúde. Aracaju: Universidade Federal de Sergipe, 2005.

b) de capítulo de livro AUTOR DO CAPÍTULO. Título do capítulo. In Autor do livro. Título em itálico: subtítulo. Edição. Local (cidade) de publicação: Editora, ano de publicação. Número do volume (se houver). Intervalo das páginas.

Exemplos:

FREUD, S. Sobre a psicoterapia [1905]. In FREUD, S. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas. Trad. de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1989, v. VII, p. 239-251.

LAMBOTE, M. C. O tempo anunciador. In LAMBOTE, M. C. Estética da melancolia. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2000, p. 103-109.

PIMENTEL, D. Interfaces entre a Psicanálise e Psiquiatria. In PIMENTEL, D.; ARAUJO, M.G. (Orgs.). Interfaces entre a Psicanálise e Psiquiatria. Aracaju: Círculo Brasileiro de Psicanálise, 2008, p. 9-13.

c) de artigo de revista

AUTOR. Título do artigo. Título do periódico em itálico, local de publicação (cidade), número do volume, número do fascículo, páginas inicial e final, mês e ano. Exemplos:

PIMENTEL, D; VIEIRA, M.J. Perfil e saúde mental dos psicanalistas. Psychê, São Paulo, n. 15, p. 155-165, jun. 2005.

BERNARDES, W.S. Condenação, desmentido, divisão. Reverso, Belo Horizonte, v. 26, n. 51, p. 115-122, set. 2004.

d) Outros modelos de referência, consulte os editores ou o site do Círculo Brasileiro de Psicanálise.

5. Tabelas e gráficos deverão ser enviados em separado, numerados, com as respectivas legendas e indicação da localização no texto entre dois traços horizontais.

6. As citações deverão estar acompanhadas de suas fontes, com as respectivas páginas.

6.1. Direta: Quando é extraído um trecho literal, copiado fielmente do original. Neste caso é obrigatório colocar sobrenome e ano da obra, além da página.

As citações diretas podem ser de dois tipos, conforme o número de linhas.

6.1.1. Até três linhas

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Normas de publicação

Aparece incorporada ao texto, entre aspas.

Ex. a) Como diz Pontalis (1998, p. 274): “Nossas memórias para serem vivas, nossa psique, para ser animada, devem se encarnar”.

Ex. b) “O objetivo da análise é preparar o paciente para a autoanálise” (GREEN, 1988, p. 302).

6.1.2 Mais de 3 linhas

Devem ser destacadas com recuo de 4 cm da margem esquerda, com letra menor (tamanho 10) e espaçamento simples. Não há necessidade de colocar entre aspas.

Ex.: Conforme Freud (1919): Recusamo-nos decididamente a transformar em propriedade nossa o paciente que se entrega a nossas mãos em busca de auxílio, a conformar o seu destino, impor-lhe nossos ideais e, com a soberba de um Criador, modelá-lo à nossa imagem, nisso encontrando prazer (FREUD, 1999, p. 424).

6.2 Indireta: texto baseado na obra do autor consultado.

Ex. a) Diversos autores citam a importância do estudo das perversões para entender as psicopatias da vida cotidiana (CLAUVREUL, 1990; DOR, 1991; ANDRÉ, 2003; CORRÊA, 2006).

Ex. b) A concepção médica de oposição entre o normal e o perverso se desfaz, segundo Corrêa (2006), à medida que o inconsciente vai sendo revelado.

Ex. c) Para a psicanálise, o Sujeito não seria natural como queria Sade, seria um Sujeito irremediavelmente dividido, como demonstrou Freud, ao que Lacan acrescenta que isso aconteceria pela relação dele, Sujeito, com a linguagem (LACAN apud LEITE, 2000).

7. Usar o mínimo de notas de rodapé, porque as referências do texto devem vir no corpo do texto.

8. Cabe ao Conselho Consultivo de cada sociedade participante do CBP o exame e aprovação dos trabalhos, em primeira instância, de seus respectivos sócios, e o encaminhamento à Comissão Editorial, já dentro das normas de publicação da revista, que decidirá sobre a sua publicação de acordo com a programação da revista.

9. A Comissão Editorial reserva-se o direito de recusar os trabalhos que não se enquadrem nas normas citadas ou não tenham qualidade editorial.

10. Os originais deverão ser enviados em duas vias, devidamente numeradas e rubricadas, com espaço simples, fonte Times New Roman tamanho 12, não excedendo 8 laudas. O título do trabalho deve conter no máximo dez palavras e o tamanho da fonte 14, em negrito.

10.1 Os originais deverão ser encaminhados também em mídia eletrônica no Word 1997-2003.

10.2 Os autores deverão enviar os originais para a sede do Círculo Brasileiro de Psicanálise, com carta dirigida aos editores, autorizando a publicação e ratificando ser um trabalho inédito.

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Normas de publicação

A carta deve conter o título do trabalho, nome do(s) autor(es) com sua titulação acadêmica e institucional, e o endereço físico e eletrônico do autor principal.

10.3 Os trabalhos deverão ser enviados para:

Revista Estudos de Psicanálise Rua Maranhão, 734/3º andar – Santa Efigênia CEP: 30150-330 – Belo Horizonte/MG Tel.: (31)3223-6115 – Fax: (31)3287-1170 E-mail: [email protected] – Site: www.cpmg.org.br

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Normas de publicação

Roteiro de avaliação dos artigos

1. Título claro e preciso sobre o conteúdo do artigo.

2. Resumo claro e preciso sobre o conteúdo do artigo, contendo no máximo 250 palavras.

3. Palavras-chave adequadas ao conteúdo, em número máximo de cinco.

4. Abstract e Keywords conforme instruções.

5. Normas para citações e referências conforme instruções.

6. Relevância do tema.

7. Clareza de pensamento.

8. Consistência e coerência na fundamentação teórico-metodológica do trabalho.

9. Linguagem, considerando objetividade, estilo e correção.

10. Aspectos éticos de acordo com a Resolução CNS 196/96 sobre privacidade e anonimato das pessoas envolvidas, e declaração de conflitos de interesses.

11. O artigo deverá conter conclusão ou considerações finais.

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Normas de publicação

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