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1 Anorexia: desafio à clínica psicanalítica Betty Bernardo Fuks “Oi. Quero começar mandando algumas pessoas para puta que pariu. Eu não preciso de vocês para que me vejam e julguem: “VOCÊ ESTÁ MAGRA”, “VOCÊ ESTÁ GORDA”. Primeiro que se eu me importasse com a opinião dos outros eu continuaria com meu corpo normal que é o aceito por 95% do resto do mundo. Eu sou egoísta e estou moldando um corpo perfeito que eu escolhi para mim e fodam-se vocês que se sentem incomodados com a minha decisão. Vão cuidar de suas vidas, continuem comendo e mantendo o corpo que vocês querem ter agora, mas no futuro quem vai rir da cara de quem vai ser eu, rindo de vocês com quarenta anos, tudo acima do peso e não conseguindo emagrecer porque não conseguem largar os vícios engordativos que adquiriram durante metade de suas vidas (...). É o seguinte: semana passada eu, Netotchka Malu e Mia que não tem blog nem nada combinamos de ontem, na sexta, tomarmos Benflogim, 20 comprimidos. Marcamos hora e tudo mais.” (Registro disponível em: http://www.anorexianervosa.weblogger.terra.com.br ; acessado em: set.2008). Nestes termos uma jovem anorética dá mostras, num dos muitos espaços virtuais pró- anorexia e pró-bulimia criado e visitados por um número crescente de adeptas do que chamam de “Anamia lifestyle, de sua obstinação em manter um corpo esquálido e cadavérico, mesmo que isto seja às custas da própria morte. Que paradoxo: Anamia lifestle! Ana de anorexia e Mia de bulimia, um estilo de vida lifestyle? Parece que sim. Trata-se de um estilo de discursividade que tem como uma das referencias maior o corpo e o cuidado de si (Jurandir). Mais um desses ideais tirânicos que são produzidos pela cultura, independentemente do tempo em que se desenrola. Só que, nos dias atuais, o projeto de domínio corporal está convertendo, cada vez mais, os indivíduos em escravos da beleza baseada em diferentes ideais: magreza, músculos bem sarados e longevidade. É proibido engordar, se deixar tomar pela flacidez, pelas marcas do tempo no rosto e envelhecer! Tudo muito politicamente correto e recomendado pela indústria da saúde. Afora a exigência do corpo magro na anorexia que, cada vez mais assume dimensões catastróficas, dando mostra que o comer pode não ser apenas uma manifestação da libido oral, mas também da

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Anorexia: desafio à clínica psicanalítica

Betty Bernardo Fuks

“Oi. Quero começar mandando algumas pessoas para puta que pariu. Eu não preciso de vocês

para que me vejam e julguem: “VOCÊ ESTÁ MAGRA”, “VOCÊ ESTÁ GORDA”. Primeiro

que se eu me importasse com a opinião dos outros eu continuaria com meu corpo normal que

é o aceito por 95% do resto do mundo. Eu sou egoísta e estou moldando um corpo perfeito

que eu escolhi para mim e fodam-se vocês que se sentem incomodados com a minha decisão.

Vão cuidar de suas vidas, continuem comendo e mantendo o corpo que vocês querem ter

agora, mas no futuro quem vai rir da cara de quem vai ser eu, rindo de vocês com quarenta

anos, tudo acima do peso e não conseguindo emagrecer porque não conseguem largar os

vícios engordativos que adquiriram durante metade de suas vidas (...). É o seguinte: semana

passada eu, Netotchka Malu e Mia que não tem blog nem nada combinamos de ontem, na

sexta, tomarmos Benflogim, 20 comprimidos. Marcamos hora e tudo mais.” (Registro

disponível em: http://www.anorexianervosa.weblogger.terra.com.br; acessado em: set.–2008).

Nestes termos uma jovem anorética dá mostras, num dos muitos espaços virtuais pró-

anorexia e pró-bulimia criado e visitados por um número crescente de adeptas do que

chamam de “Anamia lifestyle”, de sua obstinação em manter um corpo esquálido e

cadavérico, mesmo que isto seja às custas da própria morte. Que paradoxo: “Anamia

lifestle”! Ana de anorexia e Mia de bulimia, um estilo de vida – lifestyle? Parece que sim.

Trata-se de um estilo de discursividade que tem como uma das referencias maior o corpo e

o cuidado de si (Jurandir). Mais um desses ideais tirânicos que são produzidos pela

cultura, independentemente do tempo em que se desenrola. Só que, nos dias atuais, o projeto

de domínio corporal está convertendo, cada vez mais, os indivíduos em escravos da beleza

baseada em diferentes ideais: magreza, músculos bem sarados e longevidade. É proibido

engordar, se deixar tomar pela flacidez, pelas marcas do tempo no rosto e envelhecer! Tudo

muito politicamente correto e recomendado pela indústria da saúde. Afora a exigência do

corpo magro na anorexia que, cada vez mais assume dimensões catastróficas, dando mostra

que o comer pode não ser apenas uma manifestação da libido oral, mas também da

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pulsão de morte. Neste sentido, me ocorre cunhar um mote oposto ao

“AnaMialifestyle”, qual seja: AnaMia deathstyle!

Num outro blog, cujo nome é bastante sugestivo - “Doce Ilusão” - encontrei

um testemunho da conhecida relação conturbada da anoréxica com a imagem do

espelho quando submissa às ordens de um supereu mortífero e cruel.

“Ele tenta desviar o olhar, mas não pode/ Então, reclama do meu desleixo,/ critica

minha postura, /diz que meu cabelo está desarrumado.../ Além disso, minha barriga está

enorme, e a bunda desproporcional./ Ele me conta que sou um pouco estrábica,/ os dentes são

tortos, o pescoço comprido demais..../Sugere também que a pele oleosa faz meu nariz parecer

ainda maior, /e a roupa é cafona.../ As coxas são grossas demais,/ As sobrancelhas são

esquisitas, o rosto muito redondo,/ seios pequenos e murchos,/ e um calo no pé..../ Daí, ele me

conta onde eu posso comprar uns frasquinhos/ E diz que a felicidade estará lá dentro./ Eu sei

que ele está mentindo,/ mentindo desavergonhadamente como sempre faz. Mesmo assim, eu

vou comprar...”. (Weblog: Doce ilusão, disponível em:

http://www.doceilusao.weblogger.terra.com.br; acessado em: set.-2008).

Comprar! Esta é a ordem que, lado a lado da exigência do corpo magro, permite

antecipar que, se a cultura contemporânea contribui para a incidência da anorexia,

esta não constitui, a rigor, nenhuma nova patologia, conforme acreditam alguns

analistas baseados na minuciosa descrição psiquiátrica de quadros sintomáticos há

séculos conhecidos. O que há de novo, que seguramente contribui para o aumento de

manifestações mórbidas na atualidade, está diretamente ligado ao desenvolvimento

maciço do capitalismo na sociedade de consumo. Esta, pari passu com a ciência

positivista moderna, promete a recuperação do gozo perdido (Sauret, 2005) ao impor

a ilusão de satisfação total. A lei do mercado, consumir a qualquer preço, está

levando, cada vez mais, à supressão do sujeito (Recalcati 2004): Eu sei que ele está

mentindo,/ mentindo desavergonhadamente como sempre faz. Mesmo assim, eu vou

comprar...” E todo excesso pulsional é vivido pelo sujeito como angústia, a

testemunha de que a imagem identificatória deixou de sustentar o corpo: “Ele

tenta desviar o olhar, mas não pode/ Então, reclama do meu desleixo,/ critica minha postura,

/diz que meu cabelo está desarrumado.../”.

Diferentemente de outras abordagens clínicas, a psicanálise reconhece que a

Anorexia não deixa de ser uma posição subjetiva de protesto aos ditames de nosso

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tempo. Desde Os Estudos sobre Histeria, Freud inferiu uma política do sintoma.

Todas as metáforas bélicas e disciplinares construídas para esclarecer o mecanismo da

neurose – defesa, resistência, freio, repressão, censura etc. – revelam a tensão entre o

sujeito e a cultura. Ataques histéricos – ações de protestos – figuram neste texto –

como objeções ao controle excessivo do Outro. Ora, o mesmo se pode dizer do

corpo anorético em seu papel de sustentar uma oposição à lógica de mercado,

recusando os objetos que o Outro lhe empurra goela abaixo, na tentativa de manter o

desejo embora, por outro lado, tanto a anoréxica quanto a bulímica se identifiquem

com o lugar de objeto para esse Outro com a magreza cadavérica

Mas a lição freudiana sobre a formação de um sintoma obriga o analista a

estudar caso a caso. E esta exigência significa que a verdade a que visa a teorização

da psicanálise não é de modo algum uma verdade empírica, mas a verdade

“histórica”, quer dizer esta que detém o segredo da história de um sujeito ou de uma

comunidade. A recusa ao alimento pode também não ser o simples compartilhar de

um ideal social de beleza feminina que subentende o corpo magro. Este pode ser

apenas um elemento de sobredeterminação ou mesmo estar ausente. No melhor dos

casos, é recusa neurótica à castração do Outro, no pior é recusa à vida, por

identificação com o lugar de dejeto.

Nem antiga nem moderna: a anorexia é o pathos da recusa de se alimentar como

tentativa de sustentação do desejo próprio (Manoni, ). Desde que foi pela primeira vez

descrita, até onde se tem notícias em pleno século 16, o que chamou atenção dos

médicos na anorexia, sempre foi a obstinação com que a anorética leva adiante sua

causa. Uma resistência obstinada já dizia Charles Lasegue. Embora tenha vivido fora

do tempo do “é proibido reprimir” e do empuxo ao gozo em 1873 este grande clínico

indicou alguns pontos da clínica da anorexia bastante conhecidos por profissionais de

saúde em nossa contemporaneidade, São eles: a) a anoréxica aceita todas as restrições

que a doença lhe suscita e não apresenta um desejo de cura; b) mostra-se, sempre,

obstinada e determinada a não comer, e apresenta um otimismo inexpugnável contra o

qual vêm se quebrar súplicas e ameaças ; c) a anorética demonstra um prazer extremado

pelo exercício do autocontrole, prazer em controlar o terapeuta, e prazer ligado a uma

forma de auto-erotismo que se mantém na fome aguçada que se permite sentir.

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Como pensar, em termos metapsicológicos, esta obstinação irredutível em manter o

corpo no limiar da vida e a relação que a anorética estabelece com o terapeuta? Pois, se

é verdade que o analista não pode desconhecer que o sujeito é marcado de forma

indelével por representações sociais e políticas de seu tempo, também é certo de que a

pulsão vive no entre-dois, isto é, entre o corpo e a linguagem, o que obriga o analista a

pensar, também, as exigências próprias da dimensão psíquica na cultura.

O que ganha relevo na obra de Lacan é a associação entre a anorexia e o horror que

todo sujeito experimenta diante do saber inconsciente, sempre movido por um ponto de

ignorância. De acordo com o que este analista pode extrair da clínica, em geral, as

crianças e adultos anoréxicos sofrem de um aprisionamento à demanda do Outro materno

e recusam-se obstinadamente a descobrir o que pode significar o ato de comer. Assim, o

não querer pensar o que quer dizer o ato de comer termina por conduzir o sujeito para o

que Lacan define como “comer nada”. Este ato, que faz presente a necessidade de que

haja uma falta, à diferença do puro negativismo, demonstra, no limite, uma disjunção

entre saber e gozo. Por mais que os significantes sejam também veículos de gozo, a

construção de um saber, isto é, de um encadeamento de significantes, produz a redução

de um gozo opaco originário.

São bem conhecidos os comentários de Lacan (1998) sobre “o homem dos

miolos frescos”, que, visando libertar-se de uma inibição intelectual e da idéia

fantasmática de que era um plagiário, procura Ernst Kris na condição de segundo

analista. Enquanto Kris interpretou que o paciente apenas se defendia de um impulso a

plagiar, acreditando-se um plagiário por antecipação e, desse modo, analisou a defesa

antes da pulsão, a interpretação de Lacan seguiu outra linha. Para ele, este homem, que

saía de suas sessões de análise em busca dos restaurantes que oferecessem miolos frescos

em seu cardápio, mas que os comia tão-somente com os olhos, sofria de uma “anorexia

mental”, quer dizer, de uma debilidade quanto ao desejo que faz a idéia vigorar. Seu pai

não fora um homem de desejo, ou de idéias, e o avô, embora ilustrado, certamente não

lhe transmitira o apreço pelas mesmas. Portanto, o paciente roubava sim, posto que o

dizia, porém o problema é que ele tanto comia quanto “roubava nada”.

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A anorexia, para Lacan, é a conseqüência da relação do sujeito com o Outro,

precisamente, com o Outro do saber. A criança que se recusa a satisfazer a demanda da

mãe, demanda-lhe que tenha um desejo fora dela, que se mostre em falta, que a

decepcione enfim, porque, em algum nível, ela sabe que o objeto da satisfação não é da

mesma ordem do que seria um dom de amor. A ação que enuncia: “eu como nada” seria,

então, a prova máxima de que a atribuição ao Outro de um desejo de saber se faz

necessariamente acompanhar por um “eu estou fora dessa”.

Por meio da anorexia, a criança, o jovem ou o adulto afastam-se com ódio do

Outro da demanda, que acredita saber tudo sobre cuidados de saúde e alimentação. Na

qualidade de sujeitos, podemos dizer que eles entram numa modalidade de laço social em

que o gozo se deixa ver como algo da ordem de uma privação, assim como o desejo se

sustenta na margem estreita que o separa de necessidade, porquanto é, sobretudo, desejo

de não-desejar. Porém, desejo ainda. Massimo Recalcati (2003), insiste em que a eleição

anoréxica do comer nada consegue tornar este nada o objeto separador do Outro. Em

minha experiência, é também o que encontro com freqüência: Glória, mãe de Alice, uma

jovem de 15 anos internada numa clínica psiquiátrica, conta que ao perguntar a filha

sobre o que gostaria de comer, ouviu uma resposta aterradora: “Quero nada”. Uma

afirmativa que disse a mãe ter sido pior que uma bofetada. Vera, mãe de outra jovem,

revela que a doença de sua filha trouxe um sentimento de perda indescritível. “Sempre

imaginei meu mundo perfeito”, enuncia, “mas, desde que minha filha começou com essa

estória de não querer comer, ele caiu. Sinto-me agora sem chão.”

Quando insaciável e devorador, se assim pudermos nos expressar, o Outro

materno, em geral, tem a tendência a reduzir o sujeito a objeto real do próprio corpo. A

anoréxica come o nada e se oferece, pela via da identificação, a ser, ela própria, o vazio.

Deixa-se consumir para abrir neste Outro materno uma falta. Corpo transformado em um

semi-cadáver. O “dizer não” ao imperativo de comer, institui uma diferença entre a

demanda do alimento, o que o outro tem, objeto da necessidade, e a demanda de amor,

orientada em direção à falta que há no Outro. A anorética inverte uma oposição ao

domínio do outro alimentando-se do nada e nutrindo a fantasia de estar unicamente a

mercê dela própria.

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Mas há um outro “nada” anoréxico, caracterizado pela gravidade do sintoma,

embora não se trate, necessariamente, de estrutura psicótica (Recalcati, 2004, 169). Fala-

se, então, na existência de uma “dimensão psicótica”, por estar em jogo um “nada” que

diz respeito ao gozo mortífero, diferentemente do primeiro que está em relação com o

Outro do desejo. Paula desenvolveu um quadro de anorexia com 22 anos, quando

começou a trabalhar na profissão escolhida por seu pai. Ao longo de seu tratamento

analítico, interrompido abruptamente por terceiros, dizia sempre: “Optei pela anorexia

porque se trata de uma morte lenta, indolor, até mesmo agradável”. A cada corrida e/ou

jejum, sentia-se vitoriosa e em êxtase, pois indicavam um empuxo do corpo à própria

destruição. Com a interrupção da análise, Paula passa a ser assistida apenas pela

psiquiatra e sua equipe cognitivo-comportamental. Após ter engordado o suficiente para

sair da zona de perigo, o que levou mais ou menos uns 6 meses, retornam os sintomas

restritivos da anorexia e há uma tentativa de coibi-los por parte da equipe que redobra a

vigilância alimentar. Numa manhã, em que as coisas pareciam mais calmas, Paula dribla

os profissionais que cuidavam dela e faz uma séria tentativa de suicídio. Ao sair da

clínica em que esteve internada, procura a ex-analista. Na entrevista, relata o que a levou

à passagem ao ato nos seguintes termos: “Não tive opção, depois que me forçaram a

voltar ao trabalho que eu odiava e à situação de ser cuidado por enfermeiros que

passaram a impedir minha morte lenta, o que foi para mim insuportável.” A anorexia

ainda era uma possibilidade de Paula jogar com a recusa de se alimentar como um desejo

(morte lenta não tem data, pode durar uma vida.... diferentemente do suicídio).

A clínica da anorética torna, cada vez mais, evidente este limite entre o

funcionamento homeostático prazer/desprazer – no qual se pode tolerar determinado

acúmulo de tensão - e uma modalidade de gozo, que pode ser letal. O ideal da anorética é

tirânico, seu corpo acusa excesso de gozo. Gozo que pode desembocar numa espécie

de guerra neurótica do sujeito com o significante através do corpo ou à recusa de falar

porque o peso das palavras lhe é insuportável.

Do ponto de vista da estrutura edípica, as jovens anoréticas não estão, segundo

Assoum, totalmente submergidas numa relação dual, nem mesmo quando fazem uma

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aliança de domínio especular com suas mães. Há sempre uma apelo a “um pai” , isto é

alguém que lhe devolva sua imagem – como promessa de mulher – pelo olhar do pai. A

função do pai na anorexia é a de, justamente, fazer com que o sujeito possa mover-se da

demanda do Outro ao reconhecimento do desejo do Outro como distinto do seu próprio.

Na anorexia o corpo deixa ver seu estatuto de objeto feito para gozar. Goza-se de um

corpo na medida que dele se fala, e poucos corpos são tão falados quanto os corpos dos

sujeitos anoréticos.

Podemos ainda compreender, com Isabel Fortes, que a negação de comer tem

duas vias: como sustentação do desejo próprio ou como um modo de aniquilação do

desejo. Estamos, portanto, diante de uma aporia: o desejo e a negação não são

excludentes, podem coexistir numa espécie de tensão vital - a partir da qual deve-se

pensar em estratégias para o manejo transferencial de pacientes que, em geral, chegam

ao tratamento à revelia dizendo não ter desejo de cura. Ou mesmo, quando vêm por

conta própria ao tratamento, não têm certeza de que querem abrir mão da anorexia como

resposta subjetiva desejante. Este é o material transferencial que temos ao início do

atendimento daqueles que desenvolveram a teimosia como recurso para estabelecer sua

decisão de se opor ao outro invasivo. Portanto a transferência para com o analista é

frágil e este, por sua vez, deve apostar em manter esta tensão vital entre o desejo e a

negação para que o paciente entre em análise. Um primeiro erro médico, já dizia

Lasegue, jamais é reparável. “Neste período inicial, a única conduta sensata é observar e

calar-se”.

Tais impasses clínicos requerem do analista o extremo cuidado de não repetir o

Outro materno típico da anorexia-bulimia: um Outro que responde exclusivamente às

necessidades de uma criança, sem deixar margem para o desejo. Criar uma indagação

sobre tal expectativa pode propiciar uma abertura. A apresentação do analista como

alguém que se dispõe a escutar o inconsciente, e não a retificar uma função orgânica, faz

parte da função ao qual é convocado pela anorética. Ocupar este lugar significa aceitar

que a obstinação da anorética em “comer nada” deve ser apreendida como a via pela qual

o sujeito não sucumbe ao outro e, ao mesmo tempo, ter consciência de que isto também

pode levar à sua morte. Dito de outro modo, ao tomarmos as entrevistas preliminares

como uma possibilidade do sujeito entrar em análise, o primeiro passo seria o de colocar

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o sujeito para trabalhar na intenção de que se dê o esvaziamento do Outro do saber. Isto

significa tomar a posição de não permitir que o saber seja tratado como comida.

Empanturrar o sujeito com respostas, soluções objetivas, não produz nada além do

reforço da própria anorexia-bulimia como resposta frente a um Outro que tem tudo. Por

outro lado, sustentar o lugar da castração e reconhecer que a negativa em comer ou

melhor o “comer nada” do anorético indica uma sustentação do desejo, é a via pela qual

o analista poderá promover um giro e desfazer a obstinação de perseguir um ideal que

pode levar à morte. Esta seria uma possibilidade da psicanálise abordar um corpo

anorético, o corpo obstinado em demonstrar ao outro que dele não depende. (Biudaud

1998: 25 )

BIBLIOGRAFIA

ASSOUM, P-L. Freud e a mulher. Rio de Janeiro. JZE, 1993

BIDAUD, E. (1998). Anorexia mental, ascese mística. Rio de Janeiro: Cia. de Feud

FORTES, I. (2011). “Anorecia: o traço da obstinação na clínica psicanalítica”. In

Revista Latino Americana de Psicopatologia Fundamental. V. 14 |n.1| Marco de 2011 -

RECALCATI, M. (2003). Clínica del vacio, anorexias, dependências, psicoses. Buenos

Aires: Manancial.______. (2004) La ultima cena: anorexia y bulimia, Buenos Aires: Ed.

del Cifrado.

Sauret, M-J. (2005). Psychanalyse et politique: huit questions de la psychanalyse au

politique. Toulouse: Presses Universitaires du Mirail.