(1) abel salazar, «ensaio de psicologia filosó · do absoluto científico — constância, regu...

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do Absoluto científico — constância, regu- laridade de relações—estabelece uma diferença capital, porque suprime a irreduc- tibilidade entre o Absoluto e o Relativo, retirando-lhe o carácter de Entidade iso- lada e livre, incondicionada e independente que tem em Metafísica. O Absoluto cien- tífico ó uma Relação, definida pela cons- tância ; o Absoluto ó esta constância. O Absoluto participa assim das características da Relação. Esta é, como relação em si, ao mesmo tempo dependente e independente dos correlatos; não pode existir sem os termos, é deles portanto dependente; mas como Relação formal, é dos termos inde- pendente. A mesma Relação pode existir entre termos muito diferentes; um coefi- ciente diferencial pode ser constante no fluxo infindo da função. Entre os termos e a Relação há uma conexão íntima, em que todos estão integrados, sem perderem a sua individualidade. A Relação com seus correlatos forma um sistema coerente, uma espécie de constelação que se move segundo leis definidas. Estas leis, são as das mate- máticas e as da lógica: por isso mesmo a evolução da lógica passou da forma do pre- dicado à forma das relações. Por isso ainda os problemas mais perturbadores da mate- mática são aqueles em que uma relação tem um carácter irracional (número irracio- nal) como ó a do raio e circunferência, ou a diagonal de um quadrado e um lado desse quadrado. Esta última relação é o número irracional \J%\ e este simples facto precipi- ta-nos em relações misteriosas entre o geo- métrico e o numérico; e logo a seguir con- duz-nos à noção do contínuo matemático, que se deduz da noção geral do número irracional, contínuo que nos conduz, por seu turno, a alguns dos mais complexos problemas da filosofia matemática. A constância da relação define assim o absoluto científico. Vimos já acima como primeiro a mecânica clássica, depois a física' einsteiniana, por fim a relatividade geral einsteiniana é um caminho constante no sentido deste Absoluto por meio da relati- vação integral. Pouco a pouco todas as leis se tornam independentes d'eixos de referência e passam a ser definidas por constâncias de relações intrínsecas. Todo o esforço d'Einstein se polariza nesta defi- nição de correlações intrínsecas, na liber- tação de sistemas de referência^: e ó este facto que à física einsteiniana a sua simplicidade, harmonia, coerência e gran- deza. Notemos que, como diziamos em 1915 (1) «a proposição — o objecto A ó duplo do objacto B — não ó uma proposição analí- tica, pois o facto de A ser duplo de B não é um atributo que se possa considerar per- tença do sujeito, e que a proposição desar- ticulasse ; mas a proposição não ó também sintética, pois que não adicionamos por ela nenhum atributo ao sujeito, visto que o facto de A ser duplo de B não ó um atri- buto de A, e não pode existir sem a pre- sença de B; e ainda que «uma relação pos- sui dois sentidos pois é estabelecida entre dois correlativos». A matemática e a lógica reduzem-se em parte às leis e propriedades das relações. Ora entre estas propriedades devemos pôr em foco a que resulta da relação ser a um tempo dependente e independente dos cor- relatos. O lógico formal ó a relação pen- sada sem os correlatos; isto ó, abstraindo do correlatos, tal como [ = ] , [ > ] > [fun- ção] , etc. Mas tal abstracção não pode cortar radicalmente a ligação com os ter- mos que ficam sendo implicitamente pen- sados na relação formal. Não há possibi- lidade de um formalismo lógico absoluto, porque não há relação em absoluto inde- pendente ; qualquer relação por mais for- mal que seja, tem implícitos no pensamento os correlatos, embora reduzidos a símbolos mentais não figurados. Quando pensamos a relação [^>] por exemplo, aos lados do sinal os espaços vasios são ocupados por símbolos mentais não figurados que representam correlatos generalizados, neste caso, de um lado [qual- quer coisa maior], do outro [qualquer coisa menor]. Quer dizer; mesmo na sua forma mais abstractamente figurada, ó a relação em realidade pensada com os seus correlatos. Isto deriva da natureza própria da relação que é impossível sem correlatos. Numa re- lação lógica formal tal como [=, ]>, etc] os correlatos estão por assim dizer em es- tado potencial sob o ponto de vista da forma por que são pensados. Os símbolos mentais não figurados mas no entanto pen- sados, são impossíveis de supressão radical. E' isso que faz com que as matemáticas não possam libertar-se em absoluto por uma (1) Abel Salazar, «Ensaio de psicologia filosó- fica », Porto, 1915.

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Page 1: (1) Abel Salazar, «Ensaio de psicologia filosó · do Absoluto científico — constância, regu laridade de relações—estabelece já uma diferença capital, porque suprime a

do Abso lu to científico — cons tânc ia , regu­la r idade de r e l a ç õ e s — e s t a b e l e c e j á u m a diferença capi ta l , po rque supr ime a i r reduc-t ib i l idade en t re o Abso lu to e o Re la t ivo , re t i rando- lhe o ca rác te r de E n t i d a d e iso­l ada e l iv re , incondic ionada e i n d e p e n d e n t e que t e m em Metafísica. O Abso lu to cien­tífico ó u m a Relação, definida pe la cons­t ânc i a ; o Abso lu to ó es ta cons tânc ia . O Abso lu to par t i c ipa ass im das carac te r í s t icas da Relação. E s t a é, como re lação em si, ao mesmo t e m p o dependen te e i ndependen t e dos c o r r e l a t o s ; não pode exis t i r sem os t e rmos , é deles p o r t an to d e p e n d e n t e ; m a s como Relação formal, é dos t e rmos inde­p e n d e n t e . A mesma Relação pode exist ir en t re t e rmos mui to d i fe ren tes ; u m coefi­c iente diferencial pode ser cons tan te no fluxo infindo da função. E n t r e os t e rmos e a Relação há u m a conexão ín t ima , em que t o d o s es tão i n t eg rados , sem pe rde rem a sua ind iv idua l idade . A Relação com seus corre la tos forma u m s i s tema coeren te , u m a espécie de constelação que se move segundo leis definidas. E s t a s leis, são as das mate­m á t i c a s e as da lóg ica : por isso mesmo a evolução da lógica pa s sou da forma do pre­dicado à forma das re lações . P o r isso a inda os p rob lemas mais p e r t u r b a d o r e s da mate ­má t i ca são aqueles em que u m a relação t em u m carác ter i r rac ional (número irracio­nal) como ó a do raio e circunferência, ou a d iagona l de u m quad rado e um lado desse q u a d r a d o . E s t a ú l t ima relação é o n ú m e r o i r rac ional \J%\ e es te simples facto precipi-t a -nos em relações mis ter iosas en t re o geo­mét r i co e o n u m é r i c o ; e logo a seguir con-duz-nos à noção do cont ínuo ma temá t i co , que se deduz da noção gera l do n ú m e r o i r rac iona l , cont ínuo que nos conduz , po r seu t u r n o , a a lguns dos mais complexos p rob l emas da filosofia matemát ica .

A cons tânc ia da relação define ass im o absolu to científico. Vimos j á acima como pr imeiro a mecânica clássica, depois a física' e ins te in iana , p o r fim a re la t iv idade geral e ins te in iana é um caminho c o n s t a n t e n o sent ido des te A b s o l u t o por meio da relat i-vação in t eg ra l . Pouco a pouco todas as leis se t o r n a m independen tes d 'eixos de referência e p a s s a m a ser definidas por cons tânc ias de relações in t r ínsecas . T o d o o esforço d 'E ins t e in se po la r iza nes ta defi­nição de correlações in t r ínsecas , na liber­t ação de s i s temas de referência^: e ó este facto que dá à física e ins te in iana a sua

s implicidade, ha rmonia , coerência e g r an ­deza .

No temos que , como d iz iamos em 1915 (1) «a propos ição — o objecto A ó duplo do objacto B — n ã o ó u m a propos ição analí­t ica, po is o facto de A ser duplo de B não é um a t r i bu to que se possa cons idera r per­tença do sujei to , e que a p ropos ição desar­t iculasse ; m a s a propos ição não ó t a m b é m s in té t ica , pois que não ad ic ionamos por ela n e n h u m a t r i bu to ao sujei to, v i s to que o facto de A ser duplo de B não ó u m atr i ­b u t o de A , e não pode exis t i r sem a pre­sença de B ; e a inda que «uma re lação pos­sui dois sen t idos pois é es tabe lec ida en t r e dois cor re la t ivos» .

A m a t e m á t i c a e a lógica reduzem-se em pa r t e às leis e p ropr i edades das re lações . Ora en t re es tas p rop r i edades devemos pôr em foco a que r e su l t a da relação ser a um tempo dependen te e i n d e p e n d e n t e dos cor­re la tos . O lógico formal ó a re lação pen­sada sem os c o r r e l a t o s ; i s to ó, a b s t r a i n d o do cor re la tos , ta l como [ = ] , [ > ] > [fun­ção] , e tc . Mas ta l abs t r acção n ã o pode cor ta r r ad ica lmente a l igação com os ter­mos que ficam sendo impl ic i t amente pen­sados n a re lação formal. Não h á poss ibi ­l idade de u m formalismo lógico abso lu to , p o r q u e não h á relação em absolu to inde­p e n d e n t e ; qua lque r relação po r mais for­mal que seja, t em implíci tos no p e n s a m e n t o os corre la tos , embora reduzidos a s ímbolos menta i s não figurados.

Quando pensamos a relação [^>] por exemplo, aos l ados do s inal os espaços vas ios são ocupados por s ímbolos m e n t a i s não figurados que r ep re sen t am corre la tos genera l i zados , ne s t e caso, de um lado [qual­quer coisa ma io r ] , do ou t ro [qua lquer coisa menor ] . Quer d ize r ; mesmo n a sua forma mais abs t r ac t amen te figurada, ó a re lação em rea l idade p e n s a d a com os seus cor re la tos . I s t o der iva da n a t u r e z a p rópr ia da re lação que é impossível sem corre la tos . N u m a re­lação lógica formal ta l como [ = , ] > , e t c ] os corre la tos es tão por assim dizer em es­t a d o po tenc ia l sob o pon to de v i s ta da forma por que são p e n s a d o s . Os s ímbolos menta i s não figurados m a s no en t an to pen­sados , são imposs íve is de supressão radica l .

E ' isso que faz com que as m a t e m á t i c a s não pos sam l iber tar -se em absolu to por u m a

(1) Abel Salazar, «Ensaio de psicologia filosó­fica », Porto, 1915.