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1 A sustentabilidade da Região da Campanha-RS : Práticas e teorias a respeito das relações entre ambiente, sociedade, cultura e políticas públicas.

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A sustentabilidade da Região da Campanha-RS :

Práticas e teorias a respeito das relações entre ambiente, sociedade, cultura e políticas públicas.

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S964 A sustentabilidade da Região da Campanha-RS :

práticas e teorias a respeito das relações entre ambiente,

sociedade, cultura e políticas públicas / Benhur Pinós da

Costa, João Henrique Quoos, Mara Eliana Graeff Dickel

(orgs.). – Santa Maria : Universidade Federal de Santa

Maria, Programa de Pós-Graduação em Geografia e

Geociências, Departamento de Geociências, 2010.

226 p. : il. ; 29 cm

1. Ecologia 2. Meio ambiente 3. Sustentabilidade

4. Sociedade 5. Políticas públicas I. Costa, Benhur

Pinós da II.Quoos, João Henrique III. Dickel, Mara

Eliana Graeff

CDU 504.062

Ficha catalográfica elaborada por Maristela Eckhardt - CRB-10/737

Biblioteca Central da UFSM

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ........................................................................................................................................................................ 5

DESENVOLVIMENTO RURAL, QUESTÃO AGRÁRIA E SUSTENTABILIDADE DA CAMPANHA GAÚCHA

Benedito Silva Neto .................................................................................................................................................................... 12

O PAMPA E A APA DO IBIRAPUITÃ: ESTRATÉGIAS E AÇÕES PARA A SUSTENTABILIDADE

Eridiane Lopes da Silva .............................................................................................................................................................. 32

DOMESTICAÇÃO, TÉCNICA E PAISAGEM AGRÁRIA NA PECUÁRIA TRADICIONAL DA CAMPANHA RIO-GRANDENSE

(SÉCULO XIX)

Luís Augusto Ebling Farinatti ...................................................................................................................................................... 62

A EXPANSÃO DA SILVICULTURA SOBRE O BIOMA PAMPA: IMPACTOS ALÉM DOS CAMPOS

Frank Gonçalves Pereira ............................................................................................................................................................ 88

CAMPANHA GAÚCHA E MONOCULTURA: UMA LEITURA SOBRE O IMPERIALISMO “FLORESTAL” EM PIRATINI, RS

Adriano Severo Figueiró, Jaciele Carine Sell ........................................................................................................................... 105

TRABALHO E MEMÓRIA NA CAMPANHA GAÚCHA.

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Letícia de Faria Ferreira, Jussemar Weiss Gonçalves ............................................................................................................. 129

A RESISTÊNCIA DOS AGRICULTORES FAMILIARES CAMPONESES DO TERRITÓRIO DO ALTO CAMACUÃ, RS

Marilse Beatriz Losekann, Carmen Rejane Flores Wizniewsky................................................................................................ 139

UMA PEQUENA HISTÓRIA AMBIENTAL DO PAMPA: PROPOSTA DE UMA ABORDAGEM BASEADA NA RELAÇÃO

ENTRE PERTURBAÇÃO E MUDANÇA

Rafael Cabral Cruz, Demétrio Luis Guadagnin. ....................................................................................................................... 154

ZONEAMENTOS GEOAMBIENTAIS NO OESTE DO RIO GRANDE DO SUL: FERRAMENTAS PARA PLANEJAMENTO E

GESTÃO

Luis Eduardo de Souza Robaina .............................................................................................................................................. 179

CENÁRIOS EPISTÊMICOS DA SUSTENTABILIDADE ........................................................................................................... 193

Sergio Roberto Martins ............................................................................................................................................................ 193

QUESTÕES AMBIENTAIS DA ATUALIDADE: A PROBLEMÁTICA DO LIXO EM SÃO GABRIEL/ RS

Gabriela Dambros, José Antônio Louzada, Liliane Costa de Barros ........................................................................................ 208

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APRESENTAÇÃO

Atualmente, vivemos nesse turbilhão de propostas, projetos e ações em educação e em planejamento/gestão pública e

privada em relação ao ambiente. Muitas propostas/ações ainda encontram-se próximas às concepções racionais

fragmentárias, outras procuram discutir a multiplicidade de manifestações elementares no ambiente, suas integrações e as

repercussões entre elas. A busca de um ensino e/ou uma gestão ética e comprometida com a qualidade de vida em ambiente

degradados é o que se objetiva, porém em que caminhos andar? A que concepções se agarrar? Como proceder? Que ações

possíveis tomar? Como criticar? O que criticar? O que perguntar? O que avaliar? Como avaliar? Sabemos que as noções

sobre sustentabilidade e complexidade ambiental não nos apresentam respostas prontas a questões levantadas, mas nos

permitem pensar e repensar teorias e práticas para discutirmos problemáticas ambientais locais, regionais e globais.

A proposta desta publicação, dessa forma, implica colocar em debate crítico teorias e ações a respeito do ambiente da

campanha no Estado do Rio Grande do Sul. O propósito é tornar complexo o pensar sobre tal ambiente, fazendo emergir a

critica das ações e das reflexões sobre ele, assim como a critica pelo confronto de saberes que determinadas ações e teorias

se apóiam.

O debate sobre a apropriação da natureza passa a integrar, também, o debate sobre o meio técnico-científico-

informacional (SANTOS, 1997). A evolução histórica da técnica possibilitou a apropriação da natureza pelos propósitos do

pensamento humano a partir da ciência e de suas imbricações com a ideologia, com a política e com o desenvolvimento do

mercado e do modo de produção capitalista. Num primeiro apontamento crítico, a natureza se transforma em mercadoria,

apropriada conforme um conjunto de racionalidades discordantes e incoerentes a complexidade da constituição de seus

elementos e de suas conexões, conflitos e integrações. Por outro lado, o próprio debate sobre a ciência e sobre a técnica

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aponta para a crítica de suas intenções e teores ideológicos de suas concepções. O meio técnico-científico-informacional, por

outro lado, possibilitou o alargamento de tais críticas, pois fez interagir no debate setores sociais e culturais diretamente

afetados pelas ações de degradação da natureza, que alteram seus vínculos de paisagem, seus meios de trabalho e

sobrevivência e suas condições de interação local. Juntamente a emergência dos movimentos locais envolvidos com as

questões ambientais, setores da intelectualidade comprometidos com as questões sociais se vinculam ao debate para

complexificar ainda mais as concepções de ciência e de técnica.

Nesse sentido, o território, o lugar e a região são referências das atividades sociais, onde se verificam as contradições

entre as formas de apropriação da natureza e a produção social determinada pela força de trabalho e pelo meio de produção,

e onde a natureza é vista como mercadoria a serviço de um produto social.

A região da Campanha Gaúcha, a maior extensão de campos do Rio Grande do Sul, está localizada sobre a porção

sudoeste da cobertura arenito-basáltica da bacia sedimentar do Paraná na sua parte mais meridional constituindo um bioma

transfronteiriço, com territórios no Uruguai e Argentina. Nas áreas de contato com os Arenitos das Formações Guará, Sanga

do Cabral e Botucatu, ocorrem solos podzólicos vermelho-escuros, principalmente a sudoeste de Quaraí e a sul e sudeste de

Alegrete, onde se constata extensos fenômenos de arenização. São solos, em geral, são de baixa fertilidade natural e

bastante suscetíveis à erosão.

Os campos naturais da Campanha são historicamente explorados sob pastoreio contínuo e extensivo. As técnicas de

manejo adotadas, porém, não são adequadas para as condições desses campos, e a prática artesanal do fogo ainda não é

bem conhecida em todas as suas conseqüências. As pastagens são, em sua maioria, utilizadas sem grandes preocupações

com a recuperação e a manutenção da vegetação.

Em substituição à pecuária tradicional, as últimas décadas têm acompanhado um aumento expressivo nas culturas de

arroz, milho, trigo e soja, muitas vezes praticadas em associação com a criação de gado bovino e ovino. No alto Uruguai e no

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planalto médio a expansão da soja e também do trigo levou ao desaparecimento dos campos e à derrubada das matas.

Atualmente, essas duas culturas ocupam praticamente toda a área, provocando gradativa diminuição da fertilidade dos solos.

Disso também resultam a erosão, a compactação e a perda de matéria orgânica.

A Campanha inclui outros ecossistemas, além do campo propriamente dito. Os Banhados, áreas alagadas, protegidas

por lei porque são fundamentais para a reprodução da vida e para a regulagem dos sistemas hidrológicos. As Matas Ciliares

ou de Galeria, que acompanham o curso dos rios e servem de refúgio para a fauna. Além disso, mesmo com uma fisionomia

aparentemente homogênea, o bioma caracteriza-se pela grande riqueza de espécies herbáceas e várias tipologias

campestres.

Os Campos Sulinos, mesmo sendo menos conhecidos do ponto de vista de sua diversidade biológica, apresentam

também fauna variada, onde várias espécies são compartilhadas com a Mata Atlântica. Suas formações abrigam pelo menos

102 espécies de mamíferos (cinco delas endêmicas), 476 espécies de aves (duas endêmicas, a saber, Scytalopus iraiensis e

Cinclodes pabsti - pedreiro) e 50 espécies de peixes (12 endêmicas).

Por todos estes motivos a região foi considerada como uma das áreas de máxima importância dentre as prioridades

para a conservação e o uso sustentável da biodiversidade do MMA/Pronabio, elaborado pelo Instituto Sócio-Ambiental, WWF

e IBAMA.

Todavia, diante do quadro de estagnação sócio-econômica que a região têm apresentado nos últimos anos (embora

tenha 25% da população do Estado, responde por apenas 15% do PIB), uma nova e controvertida proposta de

desenvolvimento ganha espaço, através da compra de grandes áreas de terra por empresas multinacionais, visando o plantio

de espécies florestais exóticas, fornecedoras de matéria-prima para as indústrias de papel e celulose. As maiores áreas são

as da Aracruz (70 mil hectares), Votorantim (68 mil hectares) e da corporação sueco-finlandesa Stora Enso (65 mil hectares).

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O plantio de árvores com finalidade comercial já ocupa 1,42% do território gaúcho, e as empresas do setor de papel e

celulose pretendem elevar este percentual a 3%.

Parte significativa da sociedade civil organizada, diretamente afetada por esta política de desenvolvimento baseada na

monocultura florestal (ONG‟s, ambientalistas, pequenos produtores, etc.), tem se pronunciado contrariamente a este projeto,

em vista da ameaça que o mesmo representa à preservação da biodiversidade local (o pampa gaúcho possui 26 espécies

animais sob risco eminente de extinção) ou à dinâmica hidrológicas em uma região que já sofre graves problemas de

abastecimento, devido a expansão de culturas irrigadas.

Ao combater o projeto de florestamento atualmente em curso, estes agentes têm defendido que o investimento em

fruticultura, turismo rural e fortalecimento da pecuária poderiam prover um desenvolvimento mais harmônico para o pampa.

Frente a este quadro, a realização de um seminário para discutir a problemática da sustentabilidade da Região da

Campanha a partir dos diferentes pontos de vista em debate, se coloca como um compromisso social e acadêmico.

Verificamos a importância de se aprofundar a discussão sobre os trabalhos de gestão e educação na

perspectiva sustentabilidade ambiental. Tal abordagem deve ser difundida como possibilidade metodológica de

pesquisa/ação ambiental, nos trabalhos acadêmicos, na gestão e na educação pública e privada. Ela deve ser tratada em

seus conceitos operacionais, em suas ações práticas e na importância da transversalidade dos temas.

A região da campanha gaúcha apresenta-se como uma especificidade ambiental que deve ser tratada envolvendo a

perspectiva da sustentabilidade ambiental. Os campos sulinos apresentam uma riqueza ecológica e uma fragilidade quanto

ao aproveitamento econômico que se transforma desde as ultimas décadas do século XX. A complexidade ambiental da

Campanha apresenta-se no histórico das atividades econômicas que vem sendo desenvolvidas na região, na cultura local e

nos interesses políticos em jogo. Nesse sentido, torna-se necessário debater a educação e a gestão ambiental na região da

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campanha, assim como o ensejo a complexificação das temáticas que permeiam o ambiente nas pesquisas e nas ações que

estão sendo produzidas nessa região.

É em virtude destes aspectos que o Departamento de Geociências e o Programa de Pós-Graduação em Geografia e

Geociências organizou o “II Seminário sobre a sustentabilidade da região da campanha-RS”. Este evento apresentou as

seguintes finalidades:

a) Promover um debate a respeito do ambiente da região da Campanha do RS, envolvendo a perspectiva da

sustentabilidade ambiental, a partir de três eixos de debate: impactos ambientais, cultura e sociedade e políticas

públicas;

b) Entender as características singulares da Região da Campanha no Estado do Rio Grande do Sul: a ocupação do

solo e a produção do espaço, as especificidades dos processos naturais e os impactos ambientais, as interações e

conflitos entre sociedade e natureza, os fundamentos econômicos, culturais e políticos desses conflitos;

c) Estabelecer um debate crítico dos saberes inseridos nas propostas de ação em gestão e educação ambiental e na

teorização das problemáticas ambientais existentes na região da campanha gaúcha.

O primeiro seminário sobre sustentabilidade da região da campanha-RS, ocorreu em agosto de 2006, no

Departamento de Geociência da UFSM, envolveu gestores públicos, educadores e pesquisadores de diferentes instituições

públicas e privadas no debate sobre os problemas ambientais dessa região. Participaram do Seminário aproximadamente

200 pessoas entre eles discentes de graduação e pós-graduação e profissionais de diversas áreas do conhecimento. O

segundo seminário ocorreu em novembro de 2010 e contou com a participação de professores e profissionais que se

dedicam as questões ambientais, sócias, históricas e geográficas da região da Campanha gaúcha, assim como diversas

entidades representadas: UFSM, FURG, UFFS, IBAMA, ICMBio, EMBRAPA, UNIPAMPA, UFPEL, UFRGS, MMA, etc. O

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seminário foi organizado em mesas de debates dispostos nos seguintes eixos de discussão: “impactos Ambientais”,

“sociedade e cultura e políticas públicas”.

Como resultado das discussões estabelecidas no Seminário, apresentamos esta obra que está subdividida de acordo

com os eixos de discussão anteriormente propostos no II Seminário de Sustentabilidade da Campanha-RS. O livro abre com

o texto do conferencista do Seminário, Prof. Sergio Martins, que discute os cenários epistêmicos das discussões sobre

sustentabilidade.

A primeira parte do livro apresenta as discussões referentes aos estudos sobre os “impactos ambientais” existentes na

região. Nele apresentamos o texto do professor Luiz Eduardo Souza Robaina (UFSM) que discute as metodologias de

zoneamento geoambiental e apresenta a pesquisa desenvolvida nos Município de Manuel Viana e São Francisco de Assis.

Adriano Severo Figueiró e Jaciele Carine Sell apresentam um estudo sobre a lógica produtiva da monocultura da acácia,

introduzida na metade sul do estado, em específico município de Piratini, descrevendo e analisando os impactos negativos da

sua presença sobre as condições naturais e de vida da população local. Frank Gonçalves Pereira discorre sobre a

problemática que envolve a degradação e descaracterização das áreas campestres no Rio Grande do Sul, mais

especificamente na área compreendida pelo bioma Pampa.

Na segunda parte o livro apresenta o artigo da Engenheira Eridiane Lopes da Silva, compondo a sessão sobre

“políticas públicas”. Neste texto a autora discute a política nacional sobre as Áreas de Proteção Ambiental e os trabalhos

desenvolvidos na APA Ibirapuitã, na região do pampa Gaúcho nas proximidades do Município de Livramento.

Na terceira parte do livro apresentamos discussões sobre a “sociedade e a cultura” na região da campanha gaúcha.

Nele estão apresentados os textos de Benedito da Silva, que procura mostrar a importância das especificidades históricas e

ambientais da Campanha Gaúcha para a reflexão sobre o desenvolvimento rural e a sustentabilidade dessa região; de Luís

Augusto Ebling Farinatti, que discute a formação histórica da economia e da sociedade agropastoril da região em questão; de

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Letícia Faria Ferreira e de Jussemar Weiss Gonçalves que trabalha narrativas sobre aspectos culturais do trabalho do gaúcho

no sul do Rio Grande do Sul; e, finalmente, de Marilse Beatriz Losekann e Carmen Rejane Flores Wizniewsky, que discutem

a resistência a resistência dos agricultores familiares camponeses na região do Alto Camaquã-RS.

Esperamos um ótima leitura e que este livro contribua com as pesquisas que estão sendo desenvolvidas sobre os

impactos ambientais, as políticas públicas e as questões relacionadas a cultura e a sociedade da região da campanha do

Estado do Rio Grande do Sul.

Os organizadores.

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DESENVOLVIMENTO RURAL, QUESTÃO AGRÁRIA E SUSTENTABILIDADE DA CAMPANHA GAÚCHA 12

DESENVOLVIMENTO RURAL, QUESTÃO AGRÁRIA E SUSTENTABILIDADE DA CAMPANHA GAÚCHA

Benedito Silva Neto Universidade Federal da Fronteira Sul

[email protected]

Resumo

No texto procurou-se mostrar a importância das especificidades históricas e ambientais da Campanha Gaúcha para a

reflexão sobre o desenvolvimento rural e a sustentabilidade dessa região. Tal reflexão evidencia a atualidade da questão

agrária, dificilmente contornável para a solução desses problemas. Por outro lado, discute-se que a promoção do

desenvolvimento rural e da sustentabilidade na Campanha Gaúcha subordina-se às disputas entre diferentes projetos

político- ideológicos que regem a determinação das políticas públicas relacionadas à agropecuária brasileira. Uma análise de

tais projetos indica a adequação da proposta baseada na promoção de uma “agricultura familiar, com eqüidade e

sustentabilidade global”, em detrimento da proposta baseada na projeção do Brasil como “a grande potência do agronegócio

do século XXI”.

Palavras-chave: reforma agrária, história agrária, desenvolvimento regional, sistemas de produção.

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DESENVOLVIMENTO RURAL, QUESTÃO AGRÁRIA E SUSTENTABILIDADE DA CAMPANHA GAÚCHA 13

Introdução

Com seus vastos campos (pampas) consagrados à pecuária extensiva em grandes propriedades, entremeados por

lavouras de arroz nas terras mais baixas, a Campanha Gaúcha, situada no sudoeste do Rio Grande do Sul, é, talvez, a

região que melhor corresponde à imagem que o grande público possui do “sul” desse Estado. Além disso, as características

sócio-econômicas dessa região freqüentemente são as que servem para demonstrar o contraste muitas vezes evocado entre

o “sul” do Rio Grande do Sul, descrito como estagnado e pobre, em relação ao “norte” desse Estado, considerado mais

dinâmico social e economicamente.

É importante, porém, destacar desde já que tal imagem está longe de ser exata. A Campanha Gaúcha apresenta uma

notável heterogeneidade, principalmente no que diz respeito às condições para o desenvolvimento do seu setor

primário. Além disso, estudos recentes indicam que os contrastes entre o desenvolvimento do “leste” do Rio Grande

do Sul e o “oeste” (especialmente a região Noroeste) são, pelo menos, tão importantes quanto os que se observa entre o

desenvolvimento do sul e do norte do Estado (Paiva, 2008).

Porém, de qualquer forma, é inegável que a forte presença da grande propriedade de pecuária extensiva e as baixas

produtividades à ela associada fazem da Campanha Gaúcha uma região interessante para a análise das relações entre,

por um lado, a concentração fundiária e, por outro lado, o uso da terra e os seus níveis de produtividade. Em outras

palavras, as características da Campanha Gaúcha suscitam com freqüência o debate sobre a “questão agrária” do Rio

Grande do Sul, à encontra-se associado também o debate sobre o seu desenvolvimento rural (Silva Neto; Basso, 2005).

Enfim, é importante salientar que, qualquer discussão relacionada a uma reconversão dos sistemas de produção praticados

na região não pode ser realizada sem que seja levada em consideração a fragilidade dos ecossistemas do pampa, a qual

se constitui em uma especificidade incontornável da questão da sustentabilidade da produção agropecuária da Campanha

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DESENVOLVIMENTO RURAL, QUESTÃO AGRÁRIA E SUSTENTABILIDADE DA CAMPANHA GAÚCHA 14

Gaúcha.

Nesse texto pretende-se realizar uma síntese de alguns trabalhos recentes com o objetivo de discutir os temas

evocados acima. Após uma breve discussão, realizada na primeira seção, da formação histórica da Campanha Gaúcha, a

qual consideramos imprescindível para a compreensão da suas especificidades, realizamos, na segunda seção, uma

discussão dos principais obstáculos ao desenvolvimento rural dessa região. Tais obstáculos nos conduzem a discutir, na

terceira seção, a questão agrária dessa região, especialmente no que diz respeito aos sistemas de produção que podem

servir para a promoção da agricultura familiar na região. Na quarta e última seção do texto discutimos alguns aspectos da

sustentabilidade da produção agropecuária da Campanha a partir do que nos parece serem as duas grandes propostas de

promoção da sustentabilidade da agropecuária no Brasil. Trata-se, de um lado, da projeção do Brasil como a grande potência

do agronegócio do século XXI, cuja proposta de sustentabilidade está baseada em um exacerbado produtivismo e, por lado,

a proposta de privilegiar a promoção da agricultura familiar como forma de assegurar o desenvolvimento sustentável do setor

primário brasileiro.

Alguns aspectos da formação histórica da Campanha Gaúcha1

Os precursores da produção pastoril no Rio Grande do Sul foram os jesuítas e seus índios aldeados nas reduções

missioneiras. Foram eles que introduziram o gado a partir de Assunción em 1628.

1 Esta seção representa uma síntese da revisão apresentada por Silva e Basso (2005).

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Com a pecuária praticada pelos jesuítas as pastagens naturais do Rio Grande do Sul foram modificadas nas suas

características florísticas. A seleção e o corte sistemático de algumas gramíneas por parte dos animais, bem como a

adubação orgânica daí resultante, somada à ação dos índios pastoris sobre o espaço, alteraram as características originais

dos campos. Os estancieiros luso-brasileiros que mais tarde irão aí instalar as suas estâncias o farão sobre campos que já

sofreram longo processo de trato cultural.

Foi a multiplicação do gado deixado pelos jesuítas em sua primeira tentativa de catequese que tornou o território do

atual Rio Grande do Sul um espaço de interesse econômico. Até então, este espaço era um vazio que não atraíra atenção

maior dos portugueses, a não ser enquanto referência administrativa ou como espaço a ser contornado para chegar à

Colônia do Sacramento. Esta, fundada em

1680, tinha objetivos de ordem militar e de controle sobre o comércio ou contrabando de metais vindos das minas de

Potosi. Foi, no entanto, esta presença que permitiu aos portugueses perceber a presença de milhares de cabeças de gado

xucro no imenso território de campo que corresponde aos atuais territórios do Uruguai e Rio Grande do Sul. O sentido

econômico desses animais é assegurado pela descoberta das minas (gerais) e que permitiu uma renovação da economia

colonial em crise pela decadência da produção de açúcar. Inicia-se então a prea sistemática e desordenada de animais,

atividade exercida pelos tropeiros que passam a se movimentar em todas as direções do território. Na medida em que o

negócio de fornecer animais em pé e couros para o centro do país se expandiu, o rebanho xucro foi sendo devastado,

tornando-se necessárias atividades que repusessem os animais de forma controlada. Tropeiros bem sucedidos viram

perspectivas de melhorar seus negócios através da criação de gado. Enquanto isso, precárias vias de transporte de gado em

pé foram abertas, assegurando a comunicação com as áreas mineiras, demandantes dos animais. Para a Coroa Portuguesa,

esse novo cenário de inserção econômica da região apontava para a viabilidade de sua ocupação efetiva. Decorre daí a

política de distribuição de sesmarias (em torno de 13 mil hectares) a partir de 1732, como forma de assegurar a ocupação

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DESENVOLVIMENTO RURAL, QUESTÃO AGRÁRIA E SUSTENTABILIDADE DA CAMPANHA GAÚCHA 16

efetiva do território. Esta decisão, que assegurou a posse da terra e do gado, está na origem das estâncias.

A concessão de sesmarias dá-se ao longo do século XVIII num contexto de constantes conflitos militares na região.

Os estancieiros também eram soldados e na qualidade de chefes militares é que recebiam sesmarias em recompensa por

sua ação na conquista territorial. O sistema de produção, ao longo deste período, continuou sendo o da incorporação de

animais xucros que se encontravam nas áreas novas obtidas pela ação militar. As estâncias mais antigas, originárias das

primeiras concessões de sesmarias, consolidavam-se pouco a pouco. Nelas, o manejo dos animais torna-se mais

sistemático, o que assegurava a reprodução do rebanho. É neste momento que surge a figura do peão, trabalhador

encarregado dos trabalhos ordinários da estância e soldado quando para tanto convocado pelo seu patrão.

O desenvolvimento das charqueadas no Rio Grande do Sul tornou-se viável em vista dos conflitos resultantes dos

movimentos de independência dos países do Prata, de um lado, e em decorrência da conquista da Província Cisplatina

(Uruguai) por D. João VI, de outro. Cria-se, assim, um espaço econômico unificado, onde as charqueadas platinas

(saladeros) deixam de levar vantagem na medida os conflitos levaram a certa desorganização da sua produção.

Mesmo após a independência do Uruguai, quando os “saladeros” daquele país puderam recuperar-se

temporariamente, as charqueadas gaúchas mantiveram- se em atividade ascendente. Afora o interregno da Guerra dos

Farrapos, que desorganizou temporariamente a produção, foi somente a partir de 1860 que as charqueadas riograndenses

entraram em crise. O final do tráfico negreiro, associado à expansão da atividade cafeeira que passou a demandar os braços

escravos existentes no país com a conseqüente elevação de seu preço, afetaram as charqueadas gaúchas com a chamada

“crise de braços”. Enquanto isso os saladeros platinos modernizaram-se pela introdução da máquina a vapor e o uso de

trabalho assalariado, mais flexível às demandas sazonais da produção.

O desenvolvimento das charqueadas refletiu-se na criação do gado gaúcho, provocando o cercamento parcial dos

campos e algumas melhorias na qualidade genética dos rebanhos e não muito mais. Os estancieiros desenvolviam suas

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DESENVOLVIMENTO RURAL, QUESTÃO AGRÁRIA E SUSTENTABILIDADE DA CAMPANHA GAÚCHA 17

atividades numa relação de dependência dos charqueadores, os quais, por sua vez, inseriam-se de forma a subsidiar a

economia do centro do país. Esta situação, altamente desfavorável ao estancieiro, manteve-se até a primeira grande guerra,

consolidando um sistema de produção pouco inovador na pecuária gaúcha. Foi essa situação de dificuldades constantes que

levou os pecuaristas gaúchos à organização da União dos Criadores, em 1912. A entidade passou a empenhar-se na

melhoria do gado, difundindo novas técnicas e realizando encontros e congressos. Foi no bojo deste movimento que nasceu

a idéia de instalar um frigorífico no Estado com o apoio do governo. Respondendo a incentivos governamentais, capitais

estrangeiros vieram ao Estado viabilizando não só investimentos em frigoríficos (Swift, Armour e Wilson), mas também

contribuiriam para promover a renovação tecnológica do rebanho. Este novo cenário, somado à expansão do mercado

internacional de carnes no pós- guerra, promoveu a consolidação da pecuária bovina de corte, cujos sistemas de produção,

salvo aperfeiçoamentos que não alteram a sua dinâmica básica, mantêm até nossos dias.

A diminuição da rentabilidade da fabricação de charque, descrita no parágrafo anterior, repercutiu sobre outras

categorias sociais além dos estancieiros, dentre as quais profissionais liberais e comerciantes. Neste contexto os preços do

arroz, em constante elevação, atraem capitais das classes dominantes do Rio Grande do Sul. Esta produção, baseada sobre

o arrendamento e efetuada com mão-de-obra assalariada, concentra-se no início no litoral ocidental da Lagoa dos Patos e

nos municípios da Depressão Central, ao longo dos vales dos rios Jacuí e do Guaíba, cobrindo às vezes superfícies

consideráveis. Por exemplo, um dos maiores industriais do charque de Pelotas, Pedro Osório, instalou 1200 hectares de

arroz irrigado em 1914, nos quais foram produzidas 3 mil toneladas de arroz. A superfície da cultura de arroz na maioria

das unidades de produção orizícola, no entanto, assim como aquela dos agricultores familiares, não ultrapassava 100

hectares.

A mão-de-obra empregada pela cultura do arroz irrigado era proveniente principalmente da liberação de um grande

número de trabalhadores das estâncias com a introdução das cercas de arame. Esta mão-de-obra, concentrada sobretudo

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DESENVOLVIMENTO RURAL, QUESTÃO AGRÁRIA E SUSTENTABILIDADE DA CAMPANHA GAÚCHA 18

nas zonas periféricas das vilas, era recrutada pelos cultivadores de arroz segundo o calendário de trabalho desta cultura.

A exigência de mão-de-obra era maior na época da colheita (abril-maio), quando as atividades de corte, amontoa, trilha,

secagem, ensacamento e transporte demandavam bastante trabalho. As fases de implantação e de irrigação da cultura

(setembro a fevereiro), por sua vez, demandavam muito menos horas de trabalho. Assim, a grande maioria dos

trabalhadores era constituída de assalariados temporários.

A partir de 1926, após uma expansão extraordinária (até em torno de 100 mil hectares cultivados), a orizicultura do Rio

Grande do Sul conhece um período de estagnação. Os preços do arroz caem no mercado interno. À retomada da produção

italiana, que reconquista os mercados uruguaios e argentinos, soma-se uma colheita excepcional de arroz no Maranhão, cujo

produto é de qualidade inferior, mas muito mais barato. A diminuição do consumo provocada pela crise econômica mundial

de 1929 agrava ainda mais a situação. Como resultado, a superfície cultivada e a produção permanecem praticamente

estagnadas até 1937.

Se as conseqüências imediatas da crise mundial de 1929 foram desfavoráveis ao consumo de arroz, a política

econômica então adotada pelo governo foi, alguns anos mais tarde, muito benéfica. Esta política consistiu na proteção do

mercado interno de bens de consumo e, ao mesmo tempo, a sustentação da renda dos produtores de café graças à compra

deste produto pelo governo. Diante das dificuldades do mercado internacional em absorver a sua produção, grandes

produtores de café de São Paulo voltam-se para a industrialização de produtos destinados ao mercado interno. Esta

industrialização é acompanhada por uma rápida urbanização que provoca uma expansão do consumo interno de alimentos.

Estas novas orientações da economia engendram mudanças sensíveis na agricultura brasileira. Assim, a participação

das exportações na formação da renda dos agricultores brasileiros cai de 70% para 57% entre 1929 e 1937, enquanto que o

valor total da produção agropecuária aumenta 4%.

Nas regiões não produtoras de café, desprovidas dos recursos assegurados pelo Estado, a descapitalização dos

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DESENVOLVIMENTO RURAL, QUESTÃO AGRÁRIA E SUSTENTABILIDADE DA CAMPANHA GAÚCHA 19

agricultores, devido aos efeitos da crise de1929, representava um potente obstáculo ao crescimento das suas atividades.

Assim, o desenvolvimento da produção de arroz no Rio Grande do Sul só se restabeleceu a partir de 1937, com a criação

do crédito agrícola pelo Banco do Brasil, que começa então a financiar todas as compras necessárias para a

operacionalização da cultura do arroz, exceto a terra. A partir de então a cultura do arroz consolida-se no Rio Grande do Sul

e, apesar de alguns períodos de relativa estagnação, principalmente entre 1955 e 1967, se expande rumo ao Oeste, subindo

os rios da Depressão Central, e ao Sul, até as fontes dos rios Santa Maria e Ibicuí, atingindo assim a Campanha Gaúcha.

As trajetórias das suas principais categorias sociais, estancieiros e arrozeiros, descritas nos parágrafos anteriores,

foram as que tiveram maior influência na formação da agropecuária da Campanha Gaúcha. São as atividades relacionadas à

essas categorias sociais que dão forma à paisagem típica da região, sendo responsáveis pelos principais processos

determinantes da sua dinâmica sócio- econômica. É evidente, porém, que isto não significa que tais categorias sociais, assim

como os sistemas de produção a elas associados, sejam os únicos existentes na região. Vários outros tipos de pecuaristas e

agricultores, muitos deles familiares (sobre os quais algumas considerações serão realizadas adiante), tiveram um papel

importante, tanto na formação histórica da região como nas suas características atuais, e só não foram discutidos aqui em

função dos objetivos limitados desse texto.

O desenvolvimento rural na Campanha Gaúcha

Estudos recentes sobre a agricultura do Rio Grande do Sul indicam que o tipo de agricultura prevalecente em uma

dada região, pelo seu efeito sobre a dinâmica demográfica e a distribuição da renda, condiciona fortemente o surgimento e a

sustentação de atividades não-agrícolas e, conseqüentemente, o desenvolvimento rural (Silva Neto; Figueiredo, 2009). Na

medida em que as atividades não-agrícolas no meio rural estão na origem dos processos de urbanização, a formação dos

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DESENVOLVIMENTO RURAL, QUESTÃO AGRÁRIA E SUSTENTABILIDADE DA CAMPANHA GAÚCHA 20

municípios do interior do Estado reflete, em boa medida, o seu processo de desenvolvimento rural. O exame da dinâmica

histórica e espacial do parcelamento territorial do Estado, decorrente das emancipações municipais, permite assim

visualizar as distintas dinâmicas de geração de renda que ocorreram nas regiões de predomínio da pecuária extensiva, da

agricultura patronal e da agricultura familiar. A presença de um maior número de famílias dos colonos, resultante de um

acesso mais democrático à terra, também produziu uma dinâmica desconcentrada na distribuição da renda agrícola gerada,

promovendo, em conseqüência, um processo mais intenso de urbanização e um maior parcelamento territorial para fins de

delimitação da área municipal. Por outro lado, nas regiões de predomínio da pecuária extensiva, especialmente na

Campanha Gaúcha, a baixa densidade demográfica e a maior concentração da renda suscitaram um processo muito mais

lento de criação de núcleos secundários de povoamento, resultando na formação de municípios de maior extensão territorial

e em número muito menor (Silva Neto; Oliveira, 2008). Pode-se observar, assim, uma estreita correlação entre, por um lado,

a concentração espacial dos municípios (mapa do anexo 1) e, por outro lado, a concentração da renda e a densidade

demográfica (mapas dos anexos 2 e 3, respectivamente), especialmente no que diz respeito às regiões de predominância

de agricultura familiar (Colônias Novas e Velhas, indicadas no mapa do anexo 1) em relação à Campanha Gaúcha (mapa do

anexo 1, região 1).

A Questão Agrária na Campanha Gaúcha

Os estudos discutidos acima corroboram a noção, há muito tempo difundida, do menor dinamismo econômico da

região da Campanha em relação às regiões com predomínio da agricultura familiar no Rio Grande do Sul. No entanto, ao

analisar os efeitos da presença da agricultura familiar não apenas sobre a produção agropecuária, mas também sobre o

desenvolvimento rural e os processos de urbanização à ele relacionados, tais estudos fornecem argumentos importantes

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DESENVOLVIMENTO RURAL, QUESTÃO AGRÁRIA E SUSTENTABILIDADE DA CAMPANHA GAÚCHA 21

para a discussão da questão agrária na Campanha Gaúcha. Por outro lado, as especificidades históricas e ecológicas,

inviabilizam qualquer alteração da sua estrutura fundiária realizada com o objetivo de reproduzir a agricultura familiar das

regiões setentrionais do Estado. Sendo assim, é aconselhável que, par a promoção de uma agricultura familiar sustentável

da Campanha, sejam considerados, pelo menos como um ponto de partida, os sistemas de produção já existentes

nessa região.

No gráfico mostrado no anexo 1 são apresentados os resultados econômicos em relação à escala de produção

proporcionados pelos sistemas de produção praticados pelos tipos de produtores patronais do município de Alegrete. Nesse

gráfico pode-se observar que os sistemas de produção dos tipos patronais de Alegrete exigem escalas elevadas para que a

renda por unidade de trabalho familiar atinja o patamar de um salário mínimo. Sendo assim, tais sistemas são inadequados

para a promoção de uma distribuição fundiária significativa na região.

No gráfico mostrado no anexo 2 são apresentados os resultados econômicos em relação à escala de produção

proporcionados pelos sistemas de produção praticados pelos tipos familiares de produtores rurais de Alegrete. Pode-se

observar que, nesse caso, as escalas exigidas para que a renda mínima por pessoa necessária à reprodução social desses

tipos é muito menor do que as dos tipos patronais, com o sistema familiar especializado em leite requerendo apenas cerca

de 17 hectares/unidade de trabalho familiar (UTf) para a sua viabilidade. Além disso, é importante ressaltar que a renda por

unidade de superfície proporcionada por esse sistema é bastante elevada, se comparada com a renda por UTf

proporcionada pelos sistemas de pecuária extensiva, tanto patronais quanto familiares. Esses mesmos resultados se

observam, embora em um grau bem menor, também em relação aos sistemas familiares baseados na pecuária mista (leite e

carne).

Resultados semelhantes aos discutidos acima foram obtidos pela análise da agropecuária de Santana do Livramento

(Silva Neto, 1994). Tais resultados indicam que uma distribuição fundiária que favorecesse a implantação de sistemas de

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DESENVOLVIMENTO RURAL, QUESTÃO AGRÁRIA E SUSTENTABILIDADE DA CAMPANHA GAÚCHA 22

produção familiares, como os baseados na produção de leite ou na pecuária mista, poderia proporcionar um aumento

significativo na produção de riquezas da região, exigindo superfícies bastante limitadas por unidade de produção para a sua

viabilidade.

A questão da sustentabilidade

A proposição da reconversão dos sistemas de produção de uma região, e da Campanha em particular, deve ser

analisada sob o ponto de vista da sua sustentabilidade, em suas dimensões sociais, econômicas e ecológicas. Os sistemas

de produção familiares baseados na pecuária de leite ou mista, discutidos no item anterior parecem, nesse sentido, bastante

adequados. As superfícies relativamente baixas exigidas para a sua viabilidade econômica favorecem a reprodução social

dos agricultores familiares sendo que, ao se basear principalmente em campos nativos “melhorados” (isto é, com sobre-

semeadura de pastagens de inverno e alguma fertilização), tais sistemas podem ser considerados interessantes também de

um ponto de vista ambiental.

No entanto, é forçoso reconhecer que, tanto a questão agrária, como a da sustentabilidade, não podem ser discutidas

sem que se leve em consideração as grandes diretrizes ideológicas que hoje disputam a hegemonia na definição das

políticas públicas. No Brasil, atualmente, tais “projetos” se polarizam em torno de duas propostas básicas.

O primeiro desses “projetos político-ideológicos”, largamente difundido e com uma forte tendência à hegemonia,

inclusive entre os quadros da administração pública, corresponde à projeção do Brasil como a grande potência do

agronegócio do século XXI. Talvez a característica mais marcante desse projeto é o seu otimismo tecnológico que o leva a

defender que os problemas relacionados à sustentabilidade da agropecuária brasileira podem ser resolvidos por meio de

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DESENVOLVIMENTO RURAL, QUESTÃO AGRÁRIA E SUSTENTABILIDADE DA CAMPANHA GAÚCHA 23

inovações tecnológicas, sem que a necessidade de mudanças sociais, especialmente aquelas que ameacem o status das

classes dominantes. Segundo esse projeto, será o aprofundamento da modernização do campo, por meio de uma Revolução

Duplamente Verde, que permitirá ao Brasil não apenas assegurar a sustentabilidade da sua produção agropecuária, mas

também torná-lo o maior exportador mundial desses produtos. É interessante salientar que, na perspectiva desse projeto, a

sustentabilidade se restringe à sua dimensão puramente ambiental, sendo as dimensões sociais e econômicas consideradas

como problemas de outra ordem. Sendo assim, especificamente em relação à pecuária bovina, a promoção da sua

sustentabilidade passaria por propostas como um uso intensivo de concentrados na alimentação dos animais, para evitar a

emissão de CH4, e um maior uso de insumos químicos para o aumento da produção forrageira, evitando-se assim o

desmatamento para o aumento das áreas de pasto e promovendo uma maior fixação de CO2 (Zen et al.,2008). O caráter

produtivista desse projeto é tal, que alguns dos seus defensores chega mesmo a propor a adotação o modelo norte-

americano de grandes confinamentos de bovinos de corte. Evidentemente, tal “hiperprodutivismo sustentável”, mesmo sem

considerar os efeitos sócio-econômicos perversos que certamente sua implantação acarretaria (como a concentração da

terra e da renda, exclusão social e êxodo rural) apresenta sérias contradições ao não considerar, por exemplo, a

escassez crescente de matérias primas para a confecção de certos adubos químicos.

O segundo projeto, que vem sendo discutido especialmente pelos movimentos sociais do campo (Carvalho, 2005),

pode ser sintetizado como uma promoção da agricultura familiar, com eqüidade social e sustentabilidade (global),

entendendo-se esse último termo em seu sentido mais amplo. De acordo com esse projeto, o aumento da produção, que

certamente ocorreria com a agricultura familiar, dada a sua tendência a privilegiar a agregação de valor em detrimento da

taxa lucro, não pode ser dissociada da manutenção do emprego no campo, como forma de assegurar uma adequada

distribuição de renda. Mudanças na matriz produtiva, especialmente as que evitam o uso de insumos químicos, são

consideradas imprescindíveis, na medida em que amenizam, também, os impactos da produção agropecuária sobre o

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ambiente. Uma conseqüência importante de tais mudanças é que elas se baseiam em sistemas de produção cujo

funcionamento está estreitamente relacionado às características dos ecossistemas, o que impede produções em escalas

muito elevadas, assim como uma extrema especialização. Sendo assim, enquanto a proposta do agronegócio prega a

perseguição da liderança pelo Brasil no mercado mundial de produtos agropecuários, é a promoção da soberania alimentar e

nutricional, a nível regional, nacional, e “internacional” (isto é, em cada país e região do mundo) que é privilegiada nesse

segundo projeto.

Qual seria o impacto sobre a Campanha da hegemonia de cada um desses projetos?

Em relação ao primeiro projeto é interessante lembrarmos do insucesso das políticas que procuraram promover, em

nível regional, a intensificação da pecuária de corte na Campanha. Um exemplo dessas dificuldades foram os programas

governamentais dos anos 1970 (especialmente o ProPec - Programa Nacional de Desenvolvimento da Pecuária e o

ProNAp – Programa Nacional de Apoio à Pecuária), cujos créditos altamente subsidiados tiveram efeitos pouco significativos

na produção mas, por outro lado, aprofundaram os processos de diferenciação social e concentração da renda e da

produção ligados à pecuária extensiva. Tais efeitos explicam-se pelo fato dos pecuaristas terem aplicado a maior parte dos

recursos ofertados por esses programas na fase de terminação, com poucas conseqüências sobre a intensificação dos

sistemas de produção (Silva Neto, 1994).

No que diz respeito à proposta de promoção do desenvolvimento da agropecuária brasileira por meio da agricultura

familiar, com eqüidade social e sustentabilidade (global), é preciso salientar que o reconhecimento das especificidades

históricas e ambientais é um elemento de crucial importância para a promoção da agricultura familiar na Campanha. Nesse

sentido, é importante destacar que qualquer tentativa de reproduzir, na Campanha Gaúcha, uma agricultura familiar com as

mesmas características técnicas e econômicas da agricultura familiar das regiões do Norte do Estado correrá um sério risco

de fracasso. Por outro lado, vale lembrar que uma das características principais dessa proposta é justamente a promoção de

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DESENVOLVIMENTO RURAL, QUESTÃO AGRÁRIA E SUSTENTABILIDADE DA CAMPANHA GAÚCHA 25

sistemas com baixos níveis de insumos, o que requer uma análise minuciosa das especificidades ecológicas da região.

Considerações finais

Nesse texto procurou-se mostrar a importância das especificidades da Campanha Gaúcha decorrentes da sua

formação histórica e das suas características ambientais para a reflexão sobre o desenvolvimento rural e a sustentabilidade

dessa região. Tal reflexão evidencia a atualidade da questão agrária, dificilmente contornável para a solução desses

problemas. Por outro lado, como procurou-se salientar no texto, há que se considerar também que a promoção do

desenvolvimento rural e da sustentabilidade na Campanha Gaúcha subordina-se às disputas entre diferentes projetos

político-ideológicos que regem a definição das políticas públicas relacionadas à agropecuária brasileira. Uma rápida análise

de tais projetos indica a adequação da proposta baseada na promoção de uma “agricultura familiar, com eqüidade e

sustentabilidade global”, em relação à proposta baseada na projeção do Brasil como “a grande potência do agronegócio do

século XXI”. A promoção de um produtivismo exacerbado, assim como uma interpretação do conceito de sustentabilidade

limitada aos seus aspectos ambientais, foram detectados como as principais fontes das contradições apresentadas por esta

última proposta.

A guisa de conclusão, os resultados discutidos nesse texto indicam que a promoção da produção familiar na

Campanha Gaúcha, para a qual é imprescindível a implantação de uma sólida política de redistribuição fundiária, assim

como um conhecimento aprofundado dos sistemas de produção já desenvolvidos pelos produtores familiares, poderia se

constituir em um poderoso instrumento para a promoção do desenvolvimento rural sustentável da região, respeitando-se

as suas especificidades históricas e ambientais.

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DESENVOLVIMENTO RURAL, QUESTÃO AGRÁRIA E SUSTENTABILIDADE DA CAMPANHA GAÚCHA 26

Referências

Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil. PNUD/IPEA/Fundação João Pinheiro, 2002.

CARVALHO, H. M. de; O campesinato no século XXI: possibilidades e condicionantes do desenvolvimento do campesinato no Brasil. Rio de Janeiro, Ed. Vozes, 2005.

PAIVA, C.; (Org.). Evolução das desiguladades territoriais no Rio Grande do Sul. Santa Cruz do Sul. EDUNISC, 2008.

SILVA NETO, B. Les potentialités de l‟agriculture familiale dans une région de grands domaines d‟élevage extensif. Contribuition à la reflexion sur la réforme agraire dans l‟Etat du Rio Grand do Sul (Brésil). Tese apresentada ao Institut National Agronomique Paris-Grignon (atual AgroParisTech) para a obtenção do título de doutor, Paris, 1994 (documento não publicado).

SILVA NETO, B. & BASSO, D.; (Org). Sistemas Agrários do Rio Grande do Sul: análise e recomendações de políticas. Ijuí/RS: Editora UNIJUÍ, 2005.

SILVA NETO, B. & FIGUEIREDO, J. W. Agricultura, população e dinâmica macroeconômica de municípios rurais: um estudo em Lagoa dos Três Cantos (RS). Rev. Econ. Sociol. Rural, vol.47 no.4, pág. 857-882, Out./Dez. 2009.

SILVA NETO, B. & OLIVEIRA, A. de. Agricultura familiar, desenvolvimento rural e formação dos municípios do Estado do Rio Grande do Sul. Estudos Sociedade e Agricultura (UFRJ), v. 16, p. 83-108, 2008.

ZEN, S. De et al., Pecuária de corte brasileira : impactos ambientais e emissão de gases de efeito estufa. CEPEA/ESALQ/USP, 2008 (disponível em http://cepea.esalq.usp.br/pdf/Cepea_Carbono_pecuaria_SumExec.pdf, acessado em novembro de 2010).

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DESENVOLVIMENTO RURAL, QUESTÃO AGRÁRIA E SUSTENTABILIDADE DA CAMPANHA GAÚCHA 27

Anexos

Regiões: 1 – Campanha 2 – Serra do Sudeste 3 – Depressão Central 4 – Litoral Norte 5 – Litoral Sul 6 – Colônias Velhas 7 – Campos de Cima da Serra 8 – Colônias Novas 9 – Planalto

Anexo 1 – Mapa dos Sistemas Agrários e da densidade da malha municipal do Rio Grande do Sul

Fonte: Silva Neto; Basso (2005)

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DESENVOLVIMENTO RURAL, QUESTÃO AGRÁRIA E SUSTENTABILIDADE DA CAMPANHA GAÚCHA 28

Anexo 2 – Mapa da concentração da renda nos municípios do Rio Grande do Sul

Fonte: Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil. PNUD/IPEA/Fundação João Pinheiro, 2002

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DESENVOLVIMENTO RURAL, QUESTÃO AGRÁRIA E SUSTENTABILIDADE DA CAMPANHA GAÚCHA 29

Anexo 3 – Mapa da densidade demográfica dos municípios do Rio Grande do Sul Fonte: Atlas do Desenvolvimento

Humano no Brasil. PNUD/IPEA/Fundação João Pinheiro, 2002

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DESENVOLVIMENTO RURAL, QUESTÃO AGRÁRIA E SUSTENTABILIDADE DA CAMPANHA GAÚCHA 30

Anexo 2 – Resultados econômicos em relação à escala dos tipos familiares de Alegrete Fonte: Silva Neto;

Basso (2005).

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DESENVOLVIMENTO RURAL, QUESTÃO AGRÁRIA E SUSTENTABILIDADE DA CAMPANHA GAÚCHA 31

Anexo 3 – Gráfico dos resultados econômicos em relação à escala dos tipos patronais de Alegrete

Fonte: Silva Neto; Basso, (2005).

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O PAMPA E A APA DO IBIRAPUITÃ: ESTRATÉGIAS E AÇÕES PARA A SUSTENTABILIDADE 32

O PAMPA E A APA DO IBIRAPUITÃ: ESTRATÉGIAS E AÇÕES PARA A SUSTENTABILIDADE

Eng ª Agrª Eridiane Lopes da Silva, Analista Ambiental Área de Proteção Ambiental do Ibirapuitã/ICMBio/MMA

[email protected]

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

Contextualizando a Legislação

As leis, decretos e demais diplomas legais devem ser estudados dentro do contexto histórico e socioeconômico em

que se encontrava a sociedade no momento em que foram elaborados e promulgados, pois refletem os anseios e

necessidades da sociedade – ou de grupos com maior influência política – em um determinado período de tempo e

encontram-se embasadas nos conhecimentos teóricos e tecnológicos disponíveis à época de sua elaboração.

Todo diploma legal é precedido de um processo (projeto de lei ou outro instrumento administrativo) onde se encontram

registradas as considerações e justificativas técnicas para as decisões e determinações que ele contém. São estas

justificativas técnicas (ambientais, sociais, econômicas, administrativas e jurídicas) que embasam a tomada de decisão sobre

o conteúdo de cada diploma legal promulgado no Brasil. Em tese, isto significa que para sugerir a alteração ou a revogação

de um diploma legal (seja uma lei, decreto, portaria, instrução normativa, ou mesmo uma resolução CONAMA),

primeiramente deveriam ser analisados e refutados (ou aprimorados) os embasamentos técnicos que anteriormente

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O PAMPA E A APA DO IBIRAPUITÃ: ESTRATÉGIAS E AÇÕES PARA A SUSTENTABILIDADE 33

justificaram a tomada de decisão pela publicação de tal norma. Infelizmente nem sempre ocorre desta forma. Podemos citar

diversos casos de proposições de alteração da legislação onde as justificativas e considerações técnicas sequer são lidas,

quiçá analisadas com seriedade.

Um (mau) exemplo recente: atendendo a pressões políticas e econômicas, em 14 de fevereiro de 2008 a ex-

governadora do Rio Grande do Sul assinou o Decreto Estadual nº 45.480, o qual suspendia os efeitos do Decreto Estadual nº

41.672/2002 (Lista de Espécies Ameaçadas de Extinção no Estado do Rio Grande do Sul) e liberava a pesca de dourados e

surubins no estado, bem como determinava a realização de novos estudos técnicos para comprovar se estas espécies

seguem ameaçadas de extinção ou não. No caso específico deste decreto, por não haverem sido primeiro realizados os

estudos e comprovada a inexistência do risco de extinção, para só então liberar a pesca destas espécies, houve intervenção

judicial e o mesmo foi revogado.

Outro fator a ser considerado é a existência de hierarquia entre os diplomas legais. Esta hierarquia respeita:

a abrangência territorial das normas: uma norma federal vale em todo o território nacional, exceto quando em seu

corpo especifique sua validade para apenas uma determinada parte do país; uma norma estadual vale para o território

abrangido pelo estado que a editou; uma norma municipal vale para o território do município.

O tipo de diploma legal: uma lei é superior a um decreto; um decreto é superior a uma portaria, a uma instrução

normativa e a uma resolução.

O grau de permissividade do diploma legal: uma norma estadual pode ser mais restritiva que uma norma federal,

nunca mais permissiva; uma norma municipal pode ser mais restritiva que as normas federais e estaduais, nunca mais

permissiva que estas; diplomas legais inferiores (instruções normativas, portarias e resoluções) jamais podem ser mais

permissivos que diplomas superiores (leis e decretos).

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O PAMPA E A APA DO IBIRAPUITÃ: ESTRATÉGIAS E AÇÕES PARA A SUSTENTABILIDADE 34

Devem ser reforçadas a ilegalidade e a não-validade jurídica de Resoluções CONAMA, Portarias, Instruções

Normativas ou outros diplomas legais inferiores que revoguem, contrariem e ou flexibilizem determinações mais restritivas

presentes em leis e decretos federais, estaduais ou municipais. A aplicação destes diplomas irregulares desencadeia

consequências ambientais, sociais e econômicas, cuja responsabilidade jurídica recai sobre os servidores públicos que os

tenham publicado e ou aplicado e, com isso, induzido a população ao erro.

A Constituição Federal e a Gestão da Biodiversidade Brasileira

Ao analisarem questões relacionadas à proteção ambiental no país, especialmente dentro das APAs, grande parte dos

técnicos, seja da área ambiental, seja da área jurídica, costumam ficar restritos ao texto do „caput‟ do artigo 225 da

Constituição Federal:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à

sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes

e futuras gerações.

Em muitos casos, não são observadas as diretrizes gerais para a gestão da biodiversidade nacional, determinadas

pelos seis parágrafos que compõem o Artigo 225, em especial o § 1º, o qual especifica quais são as incumbências do Poder

Público quanto à defesa e preservação do meio ambiente.

Entre outras coisas, a Constituição Federal de 1988 obriga o Poder Público a:

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O PAMPA E A APA DO IBIRAPUITÃ: ESTRATÉGIAS E AÇÕES PARA A SUSTENTABILIDADE 35

Preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e

ecossistemas; (grifo nosso)

Preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à

pesquisa e manipulação de material genético; (grifo nosso)

Definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente

protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa

a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; (grifo nosso)

Exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa

degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade;

Controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco

para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; (grifo nosso)

Promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação

do meio ambiente;

Proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica,

provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade; (grifo nosso)

Obrigar àquele que explorar recursos minerais a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução

técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei; (grifo nosso)

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O PAMPA E A APA DO IBIRAPUITÃ: ESTRATÉGIAS E AÇÕES PARA A SUSTENTABILIDADE 36

Promover sanções penais e administrativas contra os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, responsáveis por

condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente, independentemente da obrigação de reparar os danos

causados. (grifo nosso)

É imprescindível que estas determinações presentes na Constituição Federal balisem todas as ações do Poder Público

quanto aos licenciamentos ambientais e à proteção da biodiversidade brasileiras, abrangendo inclusive as Áreas de Proteção

Ambientais (APAs).

Os Acordos Internacionais e a Gestão da Biodiversidade Brasileira

O Brasil é signatário de diversos Acordos Internacionais, passando a submeter a gestão do território nacional às metas

e determinações presentes nestes acordos. O uso dos recursos naturais, principalmente daqueles presentes no interior e no

entorno de áreas protegidas, deve obrigatoriamente observar estes Acordos.

Citaremos abaixo apenas alguns dos principais Acordos Internacionais que devem ser observados nos processos de

licenciamento ambiental e na gestão dos territórios protegidos de nosso país:

Convenção sobre Diversidade Biológica ou CDB – Formulada em junho de 1992 durante a Conferência das

Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (Rio-92 ou ECO-92), foi assinada pelo Brasil e mais 159 países.

A CDB tem como objetivos gerais:

(a) a conservação da diversidade biológica,

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(b) a utilização sustentável dos recursos naturais e

(c) a repartição justa e eqüitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos, com o acesso a

esses recursos, a transferência de tecnologia pertinente e financiamento apropriado.

Grupo dos Países Megadiversos Afins – constituído em 2001, em Cancun/México, é formado por 12 países

que, juntos, reúnem cerca de 75% da diversidade biológica mundial e 45% da população do planeta. Este grupo é formado

por Brasil, México, China, Índia, Colômbia, Costa Rica, Equador, Indonésia, Quênia, Peru, África do Sul e Venezuela. Tem

como objetivos compartilhar experiências e firmar posições conjuntas sobre:

(a) o acesso aos recursos genéticos,

(b) a distribuição eqüitativa de benefícios do uso sustentável dos recursos naturais e

(c) a proteção do conhecimento tradicional associado.

CITES – Convenção sobre Comércio Internacional das Espécies da Fauna e Flora Selvagem em Perigo

de Extinção

Convenção para Proteção de Espécies Migratórias de Animais Selvagens

Convenção para a Proteção da Flora, da Fauna e das Belezas Cênicas Naturais dos Países da América

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Biomas Brasileiros e Legislação

Conforme definição dada pelo IBGE, Bioma é “um conjunto de vida (vegetal e animal) constituído pelo agrupamento

de tipos de vegetação próximos e identificáveis em escala regional, com condições de solo e clima similares e história

compartilhada de mudanças, o que resulta em uma diversidade biológica própria daquela região”.

O Brasil, hoje, reconhece oficialmente a ocorrência de sete grandes Biomas (Figura 01).

(a) Caatinga

(b) Pantanal

(c) Pampa

(d) Cerrado

(e) Marinho-

Costeiro

(f) Mata Atlântica

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(g) Amazônia Figura 01 – Biomas brasileiros

O Pampa passou a ser reconhecido pelo Brasil oficialmente como Bioma em 2007. Até então era tratado como um

„anexo‟ da Mata Atlântica, o que explica:

(a) a quase inexistência de diplomas legais federais a respeito do Pampa (onde predomina a vegetação campestre); e

(b) a legislação ambiental estadual do Rio Grande do Sul, atualmente vigente, ter sido formulada pensando em garantir

a gestão, uso e conservação ambiental de áreas localizadas em Mata Atlântica (onde predomina a vegetação arbórea).

Ao replicar para o Pampa regras que foram formuladas para ambientes de Mata Atlântica, a atual legislação ambiental

em muitas situações torna obrigatória a adoção de práticas que, ao invés de conservar a biodiversidade do Pampa,

colaboram para degradá-la ainda mais. Como exemplo podemos citar a obrigatoriedade legal de plantar árvores em áreas de

campo nativo, visando “compensar ambientalmente” o corte (supressão vegetal) de espécies arbóreo-arbustivas pioneiras

(Acacia caven, etc) que estavam avançando sobre estas áreas de campo nativo.

Faz-se urgente a revisão (séria e pautada em critérios técnicos) da legislação ambiental estadual, de forma a

contemplar as especificidades quanto ao manejo, uso e proteção da biodiversidade pampeana.

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ÁREAS PROTEGIDAS PELA LEGISLAÇÃO, FUNÇÕES E USOS POSSÍVEIS

A legislação federal brasileira estabelece algumas áreas especiais para a conservação da biodiversidade, bem como

determina regras para garantir que o uso destas áreas seja compatível com suas funções. Estas áreas especiais são as

Áreas de Preservação Permanente (APPs), as Áreas de Reserva Legal (ARL) e as Unidades de Conservação (UC).

APPs

As Áreas de Preservação Permanente (APPs) possuem as seguintes funções: (a) preservar ecossistemas frágeis,

bem como a biodiversidade a eles associados; (b) garantir a qualidade dos recursos hídricos; (c) evitar erosões,

desmoronamentos e assoreamentos; e (d) prevenir acidentes e perdas econômicas. Em geral, as APPs definidas na

legislação federal vigente no Brasil até janeiro/2011 coincidem com as áreas de risco ambiental: encostas suscetíveis a

desmoronamentos, áreas suscetíveis a alagamentos, áreas suscetíveis a soterramento por dunas, áreas suscetíveis a

destruição por vendavais (topos de morros). Os usos permitidos para as APPs estão restritos a estruturas e instalações de

interesse público (pontes, estradas, estruturas para abastecimento público, etc), os quais devem ser planejados, instalados e

operados obedecendo a parâmetros técnicos que visem reduzir ao máximo o impacto ambiental sobre estas áreas. Se

analisarmos as causas de tragédias e perdas econômicas desencadeadas por desastres naturais e ou por eventos climáticos

recentemente no país, veremos que as áreas atingidas por estes eventos coincidem com os locais onde houve a ocupação e

a consequente descaracterização ambiental das Áreas de Preservação Permanente. Para citar alguns eventos recentes:

alagamentos e desmoronamentos de encostas em Santa Catarina (novembro/2008), desmoronamento de encostas no litoral

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do Rio de Janeiro (janeiro/2010), desmoronamento de encostas na área serrana do Rio de Janeiro (janeiro/2011),

alagamentos em São Paulo (repetem-se anualmente durante o verão). A falta de orientação à população, somada às

pressões econômicas e políticas pelo uso das APPs e à omissão do poder público quanto à proteção destas áreas

representam riscos elevados para a economia nacional e para a segurança da população em geral.

Reserva Legal

As Áreas de Reserva Legal (ARLs) tem como funções: (a) preservar, in situ e in vivo, material genético das espécies

animais, vegetais e microbianas nativas que apresentam-se adaptadas às condições de clima, solo e demais interações

bióticas e abióticas presentes na região; e (b) permitir a reversão das propriedades às suas condições de biodiversidade

iniciais, possibilitando a recuperação ambiental da área para novos usos. Entre os produtores rurais brasileiros existe uma

confusão, muitas vezes fomentada por interesses políticos, entre Área de Reserva Legal e Área de Preservação Permanente.

Enquanto as APPs podem ser consideradas áreas de “proteção integral”, as Áreas de Reserva Legal são áreas destinadas ao

Uso Sustentável de parte dos recursos naturais nelas contidos. Os usos das Áreas de Reserva Legal devem ser compatíveis

com suas funções, ou seja, pode ser usada economicamente, desde que o tipo de atividade adotada não promova a perda da

biodiversidade nestas áreas. Para o Bioma Pampa alguns dos usos possíveis seriam: apicultura, turismo de observação de

aves silvestres („birdwatching‟), pecuária extensiva sobre campo nativo (com a adoção de algumas medidas de manejo, como

o ajuste de carga animal em função da variação da oferta de forragem, o manejo para evitar introdução de exóticas invasoras,

entre outros), turismo científico, turismo ecológico, turismo de observação de fauna silvestre.

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No Rio Grande do Sul, a averbação das Áreas de Reserva Legal e a aprovação dos planos de uso destas áreas são

atribuições do Departamento de Florestas e Áreas Protegidas da Secretaria Estadual de Meio Ambiente - SEMA/RS. A matriz

lógica usualmente utilizada pelos técnicos do DEFAP/SEMA/RS na averbação e uso de Reservas Legais no estado do Rio

Grande do Sul é adequada para propriedades localizadas no Bioma Mata Atlântica, onde a vegetação nativa predominante é

florestal, porém apresenta conflitos quando aplicada às propriedades localizadas no Bioma Pampa, pois replica para uma

região onde a vegetação nativa predominante é de origem campestre os pré-requisitos elaborados para regiões de vegetação

predominantemente arbórea.

Durante 2009 o Grupo de Trabalho para o Bioma Pampa do IBAMA/RS, juntamente com especialistas de instituições

de ensino e pesquisa das áreas da Agronomia, da Botânica e da Ecologia, discutiu e elaborou uma minuta contendo quais

seriam os critérios técnicos para a escolha das áreas para averbação da Reserva Legal em propriedades localizadas no

Pampa, bem como quais seriam os critérios para o uso sustentável destas reservas legais. Esta minuta foi encaminhada pelo

Superintendente do IBAMA/RS à Diretoria de Biodiversidade e Florestas/IBAMA/DF em 15/06/2009. Porém, com a discussão

do Projeto de Lei de autoria do Deputado Federal Aldo Rebelo (PcdoB/SP), o qual sugere a alteração do Código Florestal

Brasileiro (lei nº 4.771/1965) e altera as regras paras as APPs e Reserva Legal, o documento técnico encaminhado à

DBFLO/IBAMA e as discussões sobre a regulamentação dos critérios técnicos para as Áreas de Reserva Legal no Pampa

foram temporariamente suspensas.

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Unidades de Conservação

As Unidades de Conservação (UCs) podem ser classificadas em duas categorias, conforme seu uso e função

definidos pela lei federal nº 9.985/2000 (que cria o Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC) e

regulamentados pelo Decreto nº 4.340/2002: UC‟s de Proteção Integral e UC‟s de Uso Sustentável.

Unidades de Conservação de Proteção Integral:

Estações Ecológicas, as quais tem como objetivo a preservação da natureza e a realização de pesquisas

científicas;

Reservas Biológicas, as quais tem como objetivo a preservação integral da biota e demais atributos naturais

existentes em seus limites, sem interferência humana direta ou modificações ambientais, excetuando-se as medidas

de recuperação de seus ecossistemas alterados e as ações de manejo necessárias para recuperar e preservar o

equilíbrio natural, a diversidade biológica e os processos ecológicos naturais;

Parques Nacionais, os quais tem como objetivo básico a preservação de ecossistemas naturais de grande

relevância ecológica e beleza cênica, possibilitando a realização de pesquisas científicas e o desenvolvimento de

atividades de educação e interpretação ambiental, de recreação em contato com a natureza e de turismo ecológico;

Monumentos Nacionais os quais tem como objetivo básico preservar sítios naturais raros, singulares ou de

grande beleza cênica; e

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Refúgios da Vida Silvestre, os quais tem como objetivo proteger ambientes naturais onde se asseguram

condições para a existência ou reprodução de espécies ou comunidades da flora local e da fauna residente ou

migratória.

Unidades de Conservação de Uso Sustentável:

Áreas de Proteção Ambiental (APAs), as quais são áreas em geral extensas, com um certo grau de ocupação

humana, dotadas de atributos abióticos, bióticos, estéticos ou culturais especialmente importantes para a qualidade de

vida e o bem-estar das populações humanas, e tem como objetivos básicos proteger a diversidade biológica,

disciplinar o processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade do uso dos recursos naturais;

Áreas de Relevante Interesse Ecológico, as quais são áreas em geral de pequena extensão, com pouca ou

nenhuma ocupação humana, com características naturais extraordinárias ou que abrigam exemplares raros da biota

regional, e tem como objetivo manter os ecossistemas naturais de importância regional ou local e regular o uso

admissível dessas áreas, de modo a compatibilizá-lo com os objetivos de conservação da natureza;

Florestas Nacionais, as quais são áreas com cobertura florestal de espécies predominantemente nativas e

tem como objetivo básico o uso múltiplo sustentável dos recursos florestais e a pesquisa científica, com ênfase em

métodos para exploração sustentável de florestas nativas;

Reservas Extrativistas, as quais são áreas utilizadas por populações extrativistas tradicionais, cuja

subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de animais

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de pequeno porte, e tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações, e assegurar

o uso sustentável dos recursos naturais da unidade;

Reservas de Fauna, as quais são áreas naturais com populações animais de espécies nativas, terrestres ou

aquáticas, residentes ou migratórias, adequadas para estudos técnico-científicos sobre o manejo econômico

sustentável de recursos faunísticos;

Reservas de Desenvolvimento Sustentável, as quais são áreas naturais que abrigam populações

tradicionais, cuja existência baseia-se em sistemas sustentáveis de exploração dos recursos naturais, desenvolvidos

ao longo de gerações e adaptados às condições ecológicas locais e que desempenham um papel fundamental na

proteção da natureza e na manutenção da diversidade biológica. Tem como objetivo básico preservar a natureza e, ao

mesmo tempo, assegurar as condições e os meios necessários para a reprodução e a melhoria dos modos e da

qualidade de vida e exploração dos recursos naturais das populações tradicionais, bem como valorizar, conservar e

aperfeiçoar o conhecimento e as técnicas de manejo do ambiente, desenvolvido por estas populações; e

Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs), as quais são áreas privadas, gravadas com

perpetuidade, com o objetivo de conservar a diversidade biológica.

As Unidades de Conservação podem possuir caráter federal, estadual ou municipal, de acordo com o instrumento legal

(lei ou decreto) através do qual forem criadas. A responsabilidade pela gestão e proteção das UCs municipais é da prefeitura

do município onde ela esteja localizada. No Rio Grande do Sul, a gestão das UCs estaduais cabe à Divisão de Unidades de

Conservação (DUC) do Departamento de Florestas e Áreas Protegidas (DEFAP), da Secretaria Estadual de Meio Ambiente

(SEMA/RS). Já as UCs federais brasileiras são geridas pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade –

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ICMBio, autarquia federal ligada ao Ministério do Meio Ambiente – MMA. Atualmente o ICMBio é responsável pela gestão de

310 áreas protegidas federais (Tabela 1) e de 11 centros de pesquisa especializada (Tabela 2), bem como pela execução de

políticas de proteção às espécies silvestres ameaçadas de extinção.

Tabela 1 – Unidades de Conservação Federais do Brasil

UNIDADES DE CONSERVAÇÃO FEDERAIS DO BRASIL

Caráter Categoria – Quantidade no País Total em hectares

Proteção Integral:

137 UCs

ESEC – Estação Ecológica: 31 6.706.735,15

MN – Monumento Natural: 3 44.264,45

PARNA – Parque Nacional: 67 23.834.532,20

REBIO – Reserva Biológica: 29 3.959.691,65

REVIS – Refúgio de Vida Silvestre: 7 202.318,00

Território Total de UCs de Proteção Integral: 34.747.541,45

Uso

Sustentável:173 UCs

APA – Área de Proteção Ambiental: 32 10.010.765,16

ARIE – Área de Relevante Interesse Ecológico: 16 45.176,58

FLONA – Floresta Nacional: 65 18.350.256,69

RDS – Reserva de Desenvolvimento Sustentável: 1 64.735,00

RESEX – Reserva Extrativista: 59 12.249.340,83

Território Total de UCs de Uso Sustentável: 40.720.274,26

Total de UCs Federais: 310

Território total do Brasil formado por UCs federais: 75.467.815,71

Fonte: ICMBio/MMA. “Coleção Biodiversidade Brasileira”, Capítulo 01, 25 p. il.

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Tabela 2 – Centros Especializados de Pesquisa vinculados ao ICMBio/MMA

CENTROS ESPECIALIZADOS DO ICMBIO

Sigla Nome Sede UF

CECAV Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Cavernas Brasília DF

CEMAVE Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Aves Silvestres Cabedelo PB

CENAP Centro Nac. de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros Atibaia SP

CEPAM Centro Nacional de Conservação da Biodiversidade Amazônica Manaus AM

CEPTA Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Peixes Continentais Pirassununga

SP

CMA Centro Nac. de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Aquáticos Ilha de Itamaracá

PE

CNPT Centro Nacional de Pesquisa e Conservação da Sociobiodiversidade Associada às Populações Tradicionais

São Luiz MA

CECAT Centro Nacional de Pesquisa e Conservação da Biodiversidade do Cerrado e da Caatinga Brasília DF

CPB Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Primatas Brasileiros João Pessoa PB

RAN Centro de Pesquisa de Répteis e Anfíbios Goiânia GO

TAMAR Centro Nac. de Pesquisa e Conservação de Tartarugas Marinhas Arembepe BA

Fonte: ICMBio/MMA. “Coleção Biodiversidade Brasileira”, Capítulo 01, 25 p. il.

A Tabela 3 apresenta a listagem das Unidades de Conservação Federais e Estaduais localizadas no estado do Rio Grande do

Sul.

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Tabela 3 – UCs Federais e Estaduais no Rio Grande do Sul

BIOMA GESTÃO UNIDADE DE CONSERVAÇÃO ÁREA (Ha) LOCALIZAÇÃO

PAMPA

Federal APA do Ibirapuitã 316.882,75 Alegrete, Rosário do Sul, Sant’Ana do Livramento e Quaraí

Estadual

Reserva Biológica do Ibirapuitã 351,42 Alegrete

Parque Estadual do Espinilho 1.617,14 Barra do Quaraí

Reserva Biológica Ibicuí Mirim 598,48 Itaara e São Martinho da Serra

APA Delta do Jacuí 22.826,39 Porto Alegre, Canoas, Eldorado do Sul, Nova Santa Rita, Triunfo e Charqueadas

Parque Estadual Delta do Jacuí 14.242 Porto Alegre, Canoas, Eldorado do Sul, Nova Santa Rita, Triunfo e Charqueadas

Reserva Biológica de São Donato 4.392 Itaqui e Maçambará

Parque Estadual de Itapuã 5.566,50 Viamão

Parque Estadual do Camaquã 7.992,50 Camaquã e São Lourenço do Sul

APA Banhado Grande 136.935 Glorinha, Gravataí, Viamão e Santo

Antônio da Patrulha

Reserva de Vida Silvestre

Banhado dos Pachecos 2.560 Viamão

Parque Estadual do Podocarpus 3.645 Encruzilhada do Sul

MARINHO-COSTEIRO

Federal

Refúgio de Vida Silvestre Ilha dos Lobos

142 Torres

Estação Ecológica do Taim 33,40 Rio Grande, Santa Vitória do Palmar

Parque Nacional da Lagoa do Peixe

34.400 Mostardas, Tavares

Estadual Parque Estadual Guarita 28,23 Torres

Parque Estadual de Itapeva 1.000 Torres

MATA ATLÂNTICA

Federal

Estação Ecológica de Aracuri-Esmeralda

272,63 Muitos Capões

Floresta Nacional de Passo Fundo 1328 Mato Castelhano

Floresta Nacional de Canela 557,64 Canela

Floresta Nacional de São 1.138,64 São Francisco de Paula

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Francisco de Paula

Parque Nacional de Aparados da Serra

10.250 Cambará do Sul

Parque Nacional da Serra Geral 17.300 Cambará do Sul, São Francisco de Paula

Estadual

Estação Ecológica Aratinga 5.882 São Francisco de Paula e Itati

Reserva Biológica Mato Grande 5.161 Arroio Grande

Reserva Biológica Mata Paludosa 113 Itati

Parque Estadual do Turvo 17.491,40 Derrubadas

Parque Estadual Espigão Alto 1.331,9 Barracão

Parque Estadual de Rondinha 1.000 Rondinha e Sarandi

Parque Estadual Ibitiriá 415 Vacaria e Bom Jesus

Parque Estadual Tainhas 6.654,70 Jaquirana, São Francisco de Paula e

Cambará do Sul

Parque Estadual da Quarta

Colônia 1.847,90 Agudo e Ibarama

Parque estadual do Papagaio Charão

1.000 Sarandi

Reserva Biológica Serra Geral 4.845,76 Maquiné, Terra de Areia e Itati

APA Rota do Sol 54.670 Cambará do Sul, Itati, Três Forquilhas e São Francisco de Paula

Parque Estadual de Itapeva 1.000 Torres

Fonte: ICMBio, SEMA/RS e Projeto Biodiversidade RS

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O PAMPA E A APA DO IBIRAPUITÃ: ESTRATÉGIAS E AÇÕES PARA A SUSTENTABILIDADE 50

O PAMPA E A APA DO IBIRAPUITÃ

Diversidade Socioambiental e importância da Conservação do Pampa

Existe uma tendência brasileira a certa „miopia‟ em relação ao Pampa: é comum ouvirmos – inclusive de técnicos da

área ambiental – que este bioma „não é tão importante‟, com justificativas como “ele tem pouca biodiversidade, pois quase

não tem árvores” ou “ele é pequeno e só existe em um estado”.

Primeiramente é imprescindível que analisemos o Pampa como um todo, incluindo o território que cobre praticamente

todo o Uruguai e o território que cobre parte da Argentina (FIGURA 02). Este aspecto de „trinacionalidade‟ do Pampa torna-o

ainda mais importante nacionalmente, visto que as estratégias para a conservação de sua diversidade socioambiental

dependem do trabalho conjunto com os países vizinhos.

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O PAMPA E A APA DO IBIRAPUITÃ: ESTRATÉGIAS E AÇÕES PARA A SUSTENTABILIDADE 51

FIGURA 02 - MAPA do Bioma Pampa - Fonte: Retirado do livro "O Pampa em disputa: A biodiversidade ameaçada pela

expansão das monoculturas de árvores" - Autor: Núcleo Amigos da Terra Brasil - NAT BRASIL

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O PAMPA E A APA DO IBIRAPUITÃ: ESTRATÉGIAS E AÇÕES PARA A SUSTENTABILIDADE 52

Concomitante à análise „trinacional’, deve ser considerado que, por ocupar uma área menor do território brasileiro, o

Pampa merece uma maior prioridade quanto às ações que promovam a conservação de sua biodiversidade, uma vez que

esta encontra-se „concentrada‟ neste „pequeno‟ território, fazendo com que o impacto ambiental das atividades desenvolvidas

nesta região tenham alta probabilidade de interferir significativa e irreversivelmente sobre o equilíbrio deste bioma como um

todo. Some-se a isto o fato do Pampa estar localizado em uma região brasileira com alta densidade de ocupação humana

(seja com cidades, estradas, barragens, lavouras, etc) em relação a outros biomas tidos como nacionalmente mais

importantes, como a Amazônia, por exemplo. Regiões com maior ocupação humana apresentam maior potencial de

conversão de habitats, reconhecida como a principal causa de perda da biodiversidade mundial. Isto nos permite afirmar que

a fragilidade ambiental e a suscetibilidade a riscos ambientais do bioma Pampa são infinitamente superiores aos que está

exposto o bioma Amazônia (com menor densidade de ocupação humana), justificando a necessidade e a urgência da União,

do Estado do Rio Grande do Sul e das instituições de pesquisa empreenderem maiores esforços para a conservação da

diversidade socioambiental pampeana.

Não menos importante é a singularidade socioambiental do Pampa. Este bioma é formado por um mosaico de áreas

campestres, matas de galeria, areais, banhados (alagadiços), capões de mata nativa, cerros-testemunhos, serras, áreas de

recarga e ou de descarga de aquíferos subterrâneos, matas aluviais, rios e sangas, afloramentos rochosos, entre outras

particularidades resultantes da combinação geológica, climática e vegetal presente neste bioma. Deste mosaico resulta a

ocorrência de uma diversidade de espécies microbianas, vegetais e animais associadas ao Pampa, bem como de uma

diversidade de tipos humanos. O gaúcho ou „gaucho‟ associado à região da fronteira Brasil-Uruguai é um tipo humano

diferente do gaúcho associado à região da Lagoa dos Patos, assim como ambos se diferenciam do tipo humano associado à

região montanhosa da Serra do Sudeste, entre outros. Estes tipos humanos são o resultado de diferentes culturas formadas a

partir da relação homem-ambiente, desenvolvida ao longo dos séculos nas diversas partes do grande mosaico que forma o

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O PAMPA E A APA DO IBIRAPUITÃ: ESTRATÉGIAS E AÇÕES PARA A SUSTENTABILIDADE 53

Pampa. Os hábitos, habilidades, formas de vida, a gastronomia, a fala e as crenças destes tipos humanos trazem embutidos

os componentes ambientais da região pampeana onde cada um destes tipos humanos se estabeleceu, interagiu e se

desenvolveu. É inevitável citarmos a importância das questões históricas (disputas por território entre Espanha e Portugal,

ciclos econômicos, Revolução Farroupilha, etc) e da colonização por imigrantes de diferentes etnias (açoriana, espanhola,

ucraniana, polonesa, alemã, italiana, etc), como fatores que também definiram a diferenciação dos tipos humanos presentes

no Pampa. É por esta razão que ao tratarmos da conservação da diversidade pampeana devemos tomar o cuidado de incluir,

além da diversidade ambiental, a diversidade sociocultural presente neste Bioma.

A APA do Ibirapuitã

A Área de Proteção Ambiental do Ibirapuitã (APA do Ibirapuitã) é uma Unidade de Conservação de Uso Sustentável

com 316.882,75 hectares. Criada em maio de 1992 através do decreto federal nº 529, atendendo a demanda de

ambientalistas da região que pediam o reconhecimento e a proteção da biodiversidade e da beleza paisagística da bacia

hidrográfica do rio Ibirapuitã.

Localizada junto à fronteira internacional entre o Brasil e o Uruguai, a APA do Ibirapuitã tem seu limite sul coincidindo

com a linha de divisa internacional. A fauna silvestre transita livremente entre o território da APA e o território uruguaio, pois

não existem barreiras físicas nesta fronteira, separada em alguns pontos por uma estrada de terra e em outros apenas por

uma linha imaginária que liga marcos de concreto isolados.

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O PAMPA E A APA DO IBIRAPUITÃ: ESTRATÉGIAS E AÇÕES PARA A SUSTENTABILIDADE 54

Figura 03

Figura 04

Seu território abrange a porção superior da Bacia Hidrográfica do Rio Ibirapuitã e está distribuído nos municípios de

Alegrete/RS, Rosário do Sul/RS, Quaraí/RS e Sant‟Ana do Livramento/RS (FIGURAS 03 e 04). É formada por propriedades

rurais privadas, escolas municipais rurais, Piquetes de Tradição Gaúcha, pequenos estabelecimentos comerciais (“bolichos”),

uma propriedade de pesquisa agropecuária (Fundação Maronna) e uma propriedade rural de treinamentos da Brigada Militar

(Estância Lolita).

Até o momento, é a única Unidade de Conservação federal representativa do Bioma Pampa.

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O PAMPA E A APA DO IBIRAPUITÃ: ESTRATÉGIAS E AÇÕES PARA A SUSTENTABILIDADE 55

O Mito de que „Em APA pode tudo‟ e a Gestão da APA do Ibirapuitã

O mito de que, por ser uma área de uso sustentável, „em APA pode tudo‟ demonstra o grande desconhecimento da

legislação a respeito deste tema, inclusive por parte de técnicos ligados à área ambiental. O conjunto de normas legais a

respeito das APAs e o decreto federal nº 529/1992 determinam 12 funções ou diretrizes de gestão para a APA do Ibirapuitã:

1. Garantir a conservação de uma porção significativa do Bioma Pampa; 2. Proteger a diversidade biológica; 3. Disciplinar o

processo de ocupação territorial; 4. Assegurar a sustentabilidade do uso dos recursos naturais; 5. Fomentar o turismo

sustentável; 6. Garantir a conservação de expressivos remanescentes de mata aluvial existentes na APA; 7. Garantir a

conservação dos recursos hídricos; 8. Fomentar a Educação Ambiental; 9. Melhorar a qualidade de vida das populações

residentes através da orientação e disciplina das atividades econômicas locais; 10. Fomentar a pesquisa científica; 11.

Preservar a cultura e a tradição do gaúcho fronteiriço; e 12. Proteger as espécies ameaçadas de extinção em nível regional.

São estas diretrizes que regram os usos possíveis das propriedades presentes no território da APA do Ibirapuitã. Qualquer

tipo de uso dos recursos naturais que contrarie uma destas diretrizes de gestão deve ser vetado pelos órgãos ambientais, sob

risco de responsabilização civil e penal por omissão ou conivência.

Desafios e Estratégias para a Gestão do Pampa e da APA do Ibirapuitã

Co uma extensão de quase 317.000 hectares, a escassez de recursos humanos é o principal desafio para a gestão da

APA. Hoje estão lotados nesta área protegida apenas 02 analistas ambientais, responsáveis por todas as atividades de

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O PAMPA E A APA DO IBIRAPUITÃ: ESTRATÉGIAS E AÇÕES PARA A SUSTENTABILIDADE 56

proteção, fiscalização, licenciamento, educação ambiental, funcionamento do conselho gestor, demandas administrativas e

resposta a demandas legais.

Buscando garantir a sustentabilidade socioambiental e econômica das propriedades localizadas no Pampa e em

especial no interior da APA, adotamos metodologia de gestão embasada na análise ambiental integrada (ambiente natural,

social e econômico) voltada à identificação dos possíveis “problemas” (desafios) e à construção participativa de soluções

(definição de metas e ações).

Analisaremos a seguir os principais desafios identificados pelos técnicos da APA e as estratégias que estão sendo

adotadas para vencê-los.

Desafio 0 – Como é possível promover a gestão da APA e do Pampa apenas com 02 servidores?

Estratégias e Ações Adotadas: Prospecção de parceiros em potencial e articulação de parcerias formais e informais

com instituições, grupos de pessoas e pessoas físicas com a finalidade de realizar diferentes ações necessárias para

conciliar produção econômica, desenvolvimento social, respeito à cultura local e conservação da biodiversidade.

Desafio 1 – Assim como os gatos-do-mato, o gaúcho também é uma espécie em extinção. Como proteger e

conservar a diversidade dos tipos humanos presentes no Pampa?

Estratégias e Ações Adotadas: (a) Promoção da convergência entre meio rural e meio ambiente, refletindo esta

convergência nas políticas públicas para o Pampa. (b) Valorização e divulgação dos diferentes tipos humanos associados ao

Pampa. (c) Sensibilização das instituições de pesquisa e ensino (Ciências Humanas) para que realizem pesquisas sobre este

tema.

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O PAMPA E A APA DO IBIRAPUITÃ: ESTRATÉGIAS E AÇÕES PARA A SUSTENTABILIDADE 57

Desafio 2 – Como evitar que as “soluções” sejam “construídas de fora para dentro”, sem conhecer e respeitar

especificidades da região e da cultura local?

Estratégias e Ações Adotadas: (a) Adoção de Metodologias Participativas que estimulem os grupos e instituições ao

trabalho conjunto, à discussão, elaboração e execução de soluções conjuntas para os problemas locais e regionais. (b)

Adoção de metodologias que garantam o respeito “aos diferentes tempos” e formas de organização de cada instituição ou

grupo.

Desafio 3 – Como garantir que moradores e produtores participem das discussões se eles não conseguem

entender o que está sendo dito?

Estratégias e Ações Adotadas: (a) Promoção contínua da “tradução” de conceitos ambientais, econômicos e da

legislação, do „tecnocratês‟ para uma linguagem de fácil compreensão para a sociedade em geral, permitindo uma real

compreensão pelos grupos que vivem e atuam na região e permitindo que eles possam PARTICIPAR das decisões e

políticas públicas que os afetam. (b) Promoção contínua da “tradução” da linguagem simples dos moradores e produtores

para o „tecnocratês‟, permitindo incorporar as contribuições da população à formulação das Políticas Públicas, bem como às

ações desenvolvidas na região pela academia e demais instituições. (c) Utilização dos espaços naturais de encontro de

moradores e produtores (feiras, exposições, festas, rodeios, reuniões de associações...) para conversas informais com estes

grupos, promovendo a transmissão de informações „traduzidas do tecnocratês‟, a coleta de informações e anseios destes

grupos, a posterior „tradução para o tecnocratês‟ e a incorporação nas ações a serem desenvolvidas na região. (d) Utilização

de simplicidade na fala e no comportamento dos técnicos da APA, estimulando a aproximação e a interação dos produtores e

moradores com estes técnicos.

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O PAMPA E A APA DO IBIRAPUITÃ: ESTRATÉGIAS E AÇÕES PARA A SUSTENTABILIDADE 58

Desafio 4 – Como garantir que moradores e produtores participem das decisões, se até eles entenderem a

complexidade envolvida e conseguirem formar sua opinião, o fato já estará consumado?

Estratégias e Ações Adotadas: (a) Adoção de metodologias que garantam o respeito “aos diferentes tempos” e

formas de organização de cada instituição ou grupo. (b) Entendimento de que cabe ao gestor da APA (e aos demais gestores

públicos) frear os processos decisórios para garantir que haja um sincronismo entre os tempos de “tomada de decisão da

comunidade afetada” e de “instalação/execução dos projetos públicos e privados e das políticas públicas” na região.

Desafio 5 – Como definir de que forma deve ser o uso sustentável dos recursos naturais da APA, se não

conhecemos o que existe no seu território?

Estratégias e Ações Adotadas: (a) Promover o aumento do grau de conhecimento sobre a biodiversidade da APA e

do Pampa e sobre as interações desta biodiversidade com o meio abiótico, biótico e socioeconômico. (b) Fomento à Pesquisa

Científica direcionada à geração de dados estratégicos para ajustar as atividades produtivas locais, visando suprimir

atividades e modos de produção insustentáveis e fortalecer atividades e modos de produção de baixo impacto ambiental.

Desafio 6 – Como fazer com que os produtores rurais efetivamente protejam o meio ambiente?

Estratégias e Ações: (a) Estímulo à adequação ambiental GRADUAL das propriedades, incorporando VALOR aos

produtos que efetivamente protegerem o ambiente. (b) Criação e adoção da Certificação Ambiental de propriedades e de

atividades localizadas dentro da APA, de acordo com o grau de proteção efetiva adotada em cada propriedade/atividade (selo

prata, bronze, ouro, diamante...). (b) Criação de mecanismos de promoção comercial dos produtos e serviços que contribuem

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O PAMPA E A APA DO IBIRAPUITÃ: ESTRATÉGIAS E AÇÕES PARA A SUSTENTABILIDADE 59

para a conservação da biodiversidade e para a sustentabilidade socioeconômica e cultural da população local, junto a

diferentes mercados consumidores, fazendo com que o produtor enxergue VANTAGEM ECONÔMICA na proteção ambiental.

Desafio 7 – Como financiar a implementação de atividades e ações voltadas à sustentabilidade na região?

Estratégias e Ações: (a) Formação de parcerias com as instituições e grupos locais para a captação de recursos. (b)

Capacitação de instituições e grupos locais para a elaboração de projetos e para a captação de recursos.

Desafio 8 – A APA do Ibirapuitã não é uma ilha. Como garantir a conservação da biodiversidade da APA no

longo prazo?

Estratégias e Ações: (a) Gestão da APA integrada com a gestão do Pampa no Brasil, Uruguai e Argentina. (b)

Interação com os técnicos do Sistema Nacional de Áreas Protegidas (SNAP) do Uruguai. (c) Adoção de medidas que evitem

a fragmentação de ecossistemas. (d) Adoção de medidas que reduzam a conversão de habitats. (e) Busca de alternativas

que garantam a conectividade entre ecossistemas. (f) Proteção à diversidade genética e manutenção do fluxo gênico entre

populações presentes dentro e fora da APA, inclusive buscando estratégias para que seja mantido o fluxo gênico das

espécies pampeanas entre Brasil, Uruguai e Argentina. (g) Adoção de medidas que promovam a proteção à diversidade de

espécies silvestres nativas do Pampa, à diversidade de ecossistemas, à diversidade de paisagens e à diversidade de tipos

humanos presentes na APA e no Pampa.

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O PAMPA E A APA DO IBIRAPUITÃ: ESTRATÉGIAS E AÇÕES PARA A SUSTENTABILIDADE 60

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O PAMPA E A APA DO IBIRAPUITÃ: ESTRATÉGIAS E AÇÕES PARA A SUSTENTABILIDADE 61

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DOMESTICAÇÃO, TÉCNICA E PAISAGEM AGRÁRIA NA PECUÁRIA TRADICIONAL DA CAMPANHA RIO-GRANDENSE (SÉCULO XIX) 62

DOMESTICAÇÃO, TÉCNICA E PAISAGEM AGRÁRIA NA PECUÁRIA TRADICIONAL DA CAMPANHA RIO-

GRANDENSE (SÉCULO XIX)

Luís Augusto Ebling Farinatti Prof. Departamento de História da UFSM

Doutor em História Social pela UFRJ [email protected]

Introdução

A paisagem agrária da Campanha rio-grandense exibe as marcas de importantes transformações ocorridas,

principalmente, a partir das décadas finais do século XIX.2 Foi somente depois daquela época que se agregaram elementos

2 No tocante às obras de pesquisa histórica, o termo “Campanha”, para designar uma área específica do território sul-riograndense, vem sendo

empregado de forma variada. Dependendo do autor, esse termo pode abarcar grande parte da fronteira-oeste, desde São Borja até Jaguarão, ou

mesmo indicar toda a parcela meridional do Rio Grande do Sul, englobando as áreas ao sul dos rios Ibicuí (a oeste) e Jacuí (a leste). O mais comum,

porém, tem sido designar por “Campanha” as regiões próximas à fronteira do Brasil com o Uruguai, em uma faixa que, partindo da linha de fronteira,

alarga-se para o interior do Rio Grande do Sul. É assim que o utilizamos aqui. Uma síntese das diversas configurações da área da Campanha,

segundo critérios diferenciados, encontra-se em Costa (1988).

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como as cercas de arame, o verde-claro dos arrozais, os bosques de árvores exógenas (como o onipresente eucalipto),

açudes, banheiros sanitários, pastagens artificiais, refinamento de raças animais e melhoramento genético.

A importância dessas transformações tendem a dar a impressão de que os períodos anteriores foram de estagnação e

de uma economia quase natural, que pouco ou nada teria produzido do ponto de vista técnico e que também não haveria

interferido de modo significativo no ambiente. Contudo, trabalhos recentes tem demonstrado uma realidade muito diversa.

Neste artigo, pretendemos investigar o mundo da pecuária tradicional praticada na Campanha Riograndense durante a maior

parte do século XIX, com ênfase em seu repertório técnico e em sua lógica produtiva. Realizamos, também, reflexões

introdutórias sobre as relações entre aquela economia e o ambiente. Temos consciência de que estudos que trilhem

especificamente a seara da história ambiental exigiriam muito mais pesquisa e seguem sendo uma necessidade para a região

analisada aqui. Iniciaremos por uma rápida retomada do sistema agrário que lhe precedeu a criação de gado luso-brasileira

tradicional: a pecuária praticada pelos guaranis dos povos missioneiros, durante o século XVIII.

O contexto pastoril-missioneiro

No século XVIII, a área que, na centúria seguinte, viria a ser a Campanha Rio-grandense, estava incluída em uma

vasta região que pertencia à jurisdição reivindicada pelos 30 Povos das missões jesuítico-guaranis. Esses 30 povos

estendiam-se pelas margens dos rios Paraguai, Paraná e Uruguai. Nas áreas a leste deste último rio ficavam, ao norte do rio

Ibicuí, os Sete Povos Orientais e, ao sul, onde hoje se localiza a Campanha Rio-grandense, estavam situadas as estâncias

pecuárias pertencentes aos Povos. Além de abrigar essas estâncias, aquela região continuava a ser palmilhada por grupos

indígenas charruas e minuanos, refratários à cristianização e que sobreviviam hora fazendo aliança, hora entrando em

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DOMESTICAÇÃO, TÉCNICA E PAISAGEM AGRÁRIA NA PECUÁRIA TRADICIONAL DA CAMPANHA RIO-GRANDENSE (SÉCULO XIX) 64

conflito com as diferentes frentes coloniais. Por fim, consistia em uma imensa zona de fronteira, que sofria pressões de

frentes colonizadoras que vinham do leste (portuguesa) e sul (espanhola).

Em um texto recente e bastante sugestivo, a historiadora uruguaia María Inés Moraes (2006 e 2008) propôs uma

releitura da ocupação e da construção de paisagens agrárias, nos séculos XVII e XVIII, na região localizada entre as áreas de

colonização portuguesa (a leste) e os rios Ibicuí (ao norte), Uruguai (a oeste) e Negro (ao sul). Moraes problematiza a

corrente majoritária na historiografia uruguaia, que tende a ver a ocupação colonial ao norte dos rios Negro e Yí como tardia.

Ao contrário, a autora propõe um redimensionamento da importância das atividades tanto dos guaranis missioneiros, quanto

dos demais indígenas e dos diversos súditos das coroas ibéricas que exerciam papéis sociais e econômicos diversificados

naquela área. Eles levavam adiante formas de produção pecuária diversas das desenvolvidas nas zonas “atlânticas”, como

as do entorno de Montevidéu, por exemplo.3

Segundo Moraes (2008), a “paisagem pastoril-missioneira” era parte de uma economia missioneira formada por um

conjunto que englobava a exploração de recursos florestais, agrícolas e pecuários. Desenvolveu-se para resolver os

problemas de abastecimento de uma população missioneira em expansão. Para tanto, os missioneiros empregaram técnicas

diversas. As “vacarias” eram expedições que podiam ter objetivos variados. Algumas delas destinavam-se a arrear gado e

colocá-lo em áreas onde estivessem menos sujeitas à exploração de agentes concorrentes. Outras, tinham por objetivo a

faina do couro, tendo ocorrido principalmente após a expulsão dos jesuítas (1768), quando os Povos estavam sob

3 Outras obras tem apresentado esse cuidado metodológico existente na obra de Moraes, procurando estudar as Missões respeitando sua

historicidade e fora de marcos anacrônicos dos Estados Nacionais que só viriam a surgir depois. Entre outros: MAEDER e BOLSI (1982), WILDE

(2001), PANIÁGUA (2003), NEUMANN (2004), MORAES (2006 E 2008), GARCIA (2007).

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administração civil e os mercados atlânticos de couro haviam se expandido fortemente. Por fim e talvez mais importante aqui:

havia vacarias que serviam especificamente para arrebanhar animais bravios e levá-los para serem costeado nas estâncias

dos Povos, a fim de que pudessem abastecer de carne a população missioneira (MORAES, 2008, p. 32).

Este último tipo de vacarias ligava-se diretamente à constituição de estâncias pelos Povos Missioneiros. Essas

estâncias consistiam em imensas áreas que eram colocadas sob o controle de um povo específico, destacando-se as

estâncias dos Povos de Japejú e São Miguel. Localizavam-se ao sul do rio Ibicuí, na região que, no século seguinte,

conformaria a Campanha do Rio Grande do Sul. Dentro delas, organizavam-se unidades menores de exploração,

normalmente aproveitando a confluência de rios a arroios. Esses postos consistiam em locais dotados de currais, praça,

capela e moradia para os trabalhadores. Entre eles, uma rede de caminhos terrestres e portos fluviais procurava ensejar a

integração do espaço missioneiro. Como bem destacou Moraes (2008), essa pecuária missioneira consistiu em um sistema

pastoril diferente daquele que era levado a cabo nas regiões coloniais hispânicas e lusitanas. Entre outros aspectos, essa

especificidade residia no fato de produzirem voltadas para um mercado interno de abastecimento de carne dos Povos

missioneiros, cuja demografia esteve em expansão ao longo dos dois primeiros terços do século XVIII (a orientação externa e

atlântica do mercado, principalmente destinado à comercialização de couros, somente teria preeminência após 1770). Além

disso, a apropriação dos recursos, a organização do trabalho e a distribuição dos produtos se fazia em marcos comunais,

dentro do tupambaé missioneiro. Nesse sentido, longe de ser uma atividade “natural”, a pecuária missioneira consistiu em um

ativo emprego de técnicas e trabalho para disponibilizar à população das Missões um aporte de energia extremamente

significativo. Nas palavras de Moraes (2008, p. 23):

El mundo rural mas allá del Yí o del Negro no era un patio trasero del agro de las jurisdicciones de Montevideo y

Buenos Aires, es decir no era una versión más débil, más atrasada, más despoblada, del mismo paisaje agrario del sur

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rioplatense. Era otro mundo rural, más antiguo, con raíces demográficas, económicas, institucionales y culturales

distintas.(grifo da autora)

Assim, a paisagem pastoril-missioneira foi um sistema de criação de gado com especificidades marcantes e que não

pode ser considerada apenas uma versão anômala dos padrões criatórios de outras regiões coloniais. Respeitado esse

caráter específico, é preciso notar, porém, que alguns traços gerais eram análogos em todos esses casos. Um dos pontos

que merece destaque é o caráter variado dos rebanhos que eram criados nas estâncias missioneiras. Assim como nas

estâncias platinas e rio-grandenses, o gado bovino era o principal, mas também havia produção de mulas visando os

mercados de Potosi e das Minas Gerais. Por sua vez, os cavalares estavam presentes tanto para servir de montaria no

sistema de pastoreio a cavalo empregado pelos missioneiros, quando para serem utilizados como matrizes na produção de

muares. Um traço um pouco mais específico era o alto número de ovinos presentes nas estâncias missioneiras, destinados,

principalmente, à produção de lã para as atividades de fiação e tecelagem desenvolvidos nos próprios Povos.

Um outro ponto, bastante genérico, mas nem por isso menos importante, que pode ser considerado semelhante entre

os diversos sistemas pecuários praticados na região platina e no Rio Grande do Sul é seu caráter extensivo, e o fato de que

seu conjunto de técnicas orientava-se para promover e controlar diferentes níveis de domesticação dos animais. Voltaremos

a esse tema, adiante.

O período que começa com a expulsão dos jesuítas e a passagem dos Povos para administração laica (1767),

especialmente após 1780, estendendo-se até os conturbados anos iniciais do século XIX, foi uma época de erosão desse

sistema pastoril construído nas décadas anteriores. Isso se deu, entre outros fatores, em razão da má administração dos

Povos, combinada com o recrudescimento da pressão das frentes coloniais hispano-platina e luso-brasileira sobre o território

missioneiro, especialmente e antes de tudo, sobre suas estâncias. A dispersão dos guaranis para fora do complexo

missioneiro avultou-se e esteve acompanhada por um declínio da produção pecuária. Nesse período, ficaram cada vez mais

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comuns as vacarias para a retirada do couro, promovidas por bandos de arreadores de origens diversas e, por vezes, por

guaranis contratados a particulares. Essa atividade era verdadeiramente predatória e tinha alto potencial destrutivo para os

rebanhos.

Moraes (2008) apontou que a paisagem pastoril-missioneira modificou sensivelmente a organização ecológica e

territorial de uma região que ainda havia sido pouco tocada pelas forças da colonização. O período final de sua

desarticulação ocorreu nas primeiras décadas do século XIX. Em 1801, os Sete Povos da margem oriental do rio Uruguai

foram conquistados pelos luso-brasileiros. O território que havia pertencido às estâncias missioneiras, localizadas ao sul do

Ibicuí, também saiu do domínio dos Povos e foi repartido como espólio da conquista.

A pecuária tradicional rio-grandense no século XIX

A conquista luso-brasileira dos territórios missioneiros, localizados no lado oriental do Rio Uruguai, foi caracterizada

por um avanço de povoadores e guerreiros que promoviam contínuas atividades de arreadas de gado e apossamento de

terras. Quando findaram as guerras cisplatinas e o Estado Oriental do Uruguai emergiu definitivamente como nação soberana

(1828), a questão da fronteira daquele país com o Império do Brasil ainda não estava totalmente resolvida (GOLIN, 2004).

Mesmo que não fosse ponto pacífico, ficou estabelecido que o limite nacional no sudoeste ficaria marcado pelo rio Quarai e

daí em uma fronteira seca que passaria pela paróquia de Santana do Livramento.

Contudo, não obstante o estabelecimento desses limites, a ampla região formada pelas pastagens que iam desde a

Campanha Rio-Grandense até as margens dos rios Yí e Negro, no centro da República do Uruguai, formavam uma paisagem

agrária contínua, onde havia permamente fluxo de pessoas, gado, mercadorias e informações (SOUZA e PRADO, 2004).

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DOMESTICAÇÃO, TÉCNICA E PAISAGEM AGRÁRIA NA PECUÁRIA TRADICIONAL DA CAMPANHA RIO-GRANDENSE (SÉCULO XIX) 68

Naturalmente, o fato de que se buscavam instituir diferentes soberanias nacionais de cada lado da linha divisória, não podia

ser negligenciado. Os sujeitos históricos elaboravam continuamente, e de modo diverso de acordo com sua posição social, as

estratégias para lidar com essa a existência desse limite nacional de permeio àquela grande zona fronteiriça (THOMPSON

FLORES e FARINATTI, 2009).

Por outro lado, como apontou Moraes (2008), ainda que a paisagem pastoril-missioneira, tal como existira no século

XVIII, tenha se desagregado, muitos de seus traços econômicos, demográficos e culturais seguiram presentes na região por

todo o século XIX. De fato, os registros de batismo das recém-criadas paróquias luso-brasileiras da Campanha indicam uma

presença demográfica expressiva de egressos das Missões. Os guaranis formavam 55% das mães e 44% dos pais que

levaram seus filhos a batizar na Capela de Alegrete, entre 1821 e 1828 (FARINATTI e RIBEIRO, 2010, p. 8). Essa população

e seus descendentes foram essenciais como povoadores, trabalhadores e soldados na constituição da sociedade que se

erigiu na Campanha, na primeira metade do Oitocentos. Mas quais eram as características do mundo agrário no renovado

contexto de dominação luso-brasileira na região?

Por muito tempo, as descrições do mundo agrário rio-grandense do século XIX evocavam uma região dominada quase

que exclusivamente por enormes latifúndios pecuários. A sociedade ali existente seria formada por uma dicotomia entre os

grandes senhores e os peões que trabalhavam em suas estâncias. Estes formariam um estrato impreciso de homens livres

pobres, que viveriam entre o trabalho assalariado nos estabelecimentos pecuários e atividades ilícitas, como o contrabando e

o roubo de gado.

Contudo, nos últimos anos, vem crescendo o número de novas pesquisas que colocam em questão esse quadro

demasiadamente simplificador. No que se refere à Campanha, especificamente, os trabalhos apontaram que, em relação às

demais regiões da província, no século XIX, a presença de grandes estabelecimentos pecuários, bem como a especialização

na criação de gado bovino, eram, de fato, mais marcantes. Entretanto, sua estrutura social estava longe das formas pelas

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DOMESTICAÇÃO, TÉCNICA E PAISAGEM AGRÁRIA NA PECUÁRIA TRADICIONAL DA CAMPANHA RIO-GRANDENSE (SÉCULO XIX) 69

quais vinha tradicionalmente sendo descrita. Uma pequena elite de grandes estancieiros ocupava, sim, as posições cimeiras

da hierarquia sócio-econômica. Porém, ao lado deles, havia uma miríade de médios e pequenos criadores de gado e, em

menor escala, também lavradores. Eles produziam a partir de variadas formas de acesso à terra (posse, propriedade,

arrendamento, produção “a favor” nos campos onde estavam agregados) e, muitas vezes, era das famílias desses pequenos

produtores que saíam os peões para o trabalho nas estâncias. Esses peões, porém, não estavam sozinhos. Ao lado deles, os

escravos tinham grande importância no costeio do gado, principalmente nas grandes estâncias, além de trabalharem em

diversas outras atividades (BELL, 1998; ZARTH, 2002; GARCIA, 2005; FARINATTI, 2010; LEIPNITZ, 2010).

No que se refere às unidades produtivas de maior envergadura econômica, a produção estava francamente orientada

para a criação de novilhos para serem encaminhados, em pé, às charqueadas, especialmente as do leste da província do Rio

Grande do Sul. A história da instalação das grandes estâncias, na primeira metade do século XIX, é a história da instituição

de uma ordem assentada na propriedade privada da terra e do gado sobre um espaço onde antes havia a propriedade

comunal missioneira ou das tribos nômades charruas e minuanos, e também a atividade difusa das arreadas e retirada do

couro por bandos de changadores. Não houve nada de automático e mecânico nesse processo. A reivindicação de soberania

do Império sobre aqueles territórios e a vigência de uma ordem legal assente na propriedade privada não tinham como

garantir, de per se, sua própria aplicação. Outras lógicas de acesso a recursos que não a puramente mercantil, como a

recompensa e redistribuição por atividades guerreiras, e também o acesso costumeiro e comunal seguiam presentes, ainda

que, provavelmente, estivessem enfraquecendo ao longo do século. Além disso, aquele estava longe de ser um Estado

pelnamente burocratizado e a garantia dos direitos formais e costumeiros passavam pelo estabelecimento de vínculos

pessoais com vizinhos e membros mais poderosos da hierarquia social. Este é, porém, todo um tema de pesquisa que recém

começa a ser levantado pelos historiadores.

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Essa pecuária tradicional, realizada em campos não-cercados, teve seus traços principais reiterados ao longo da maior

parte do Oitocentos. Foi somente a partir da década de 1870, e mais fortemente no final do século, que fatores como o final

da escravidão, a difusão do cercamento dos campos, a introdução de novas raças animais e a expansão das ferrovias para a

Campanha modificaram de modo mais sensível aquele contexto, ainda que muito de suas características não tenham

desaparecido senão muito tempo depois. Porém, essa situação não deve incentivar a retomada da velha ideia segundo a

qual a pecuária tradicional consistiu em um sistema de produção quase natural, que pouco ou nada modificou o meio

ambiente ou os âmbitos social, econômico e institucional da região da Campanha. Como deve ter ficado claro, isso não foi o

caso da pecuária missioneira do século XVIII e também não se aplica ao sistema de criação de gado luso-brasileiro

tradicional do século seguinte. Vamos nos deter um pouco mais, agora, nas características próprias deste último.

Domesticação e técnica pecuária

Como já foi dito, o agro da Campanha Rio-grandense era muito mais complexo do que um punhado de enormes

estabelecimentos pecuários e, ao longo do século XIX, muitos dos subalternos tinham acesso a alguns meios de produção.

Todavia, a importância econômica das grandes estâncias, pertencentes a uma pequena elite de famílias abastadas, é

inegável. Em Alegrete, o maior município da Campanha, em uma amostra de 206 inventários post mortem abertos entre 1831

e 1865, os 16 mais abastados senhores eram cerca de 8% dos titulares dos inventários, porém concentravam cerca de 60%

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da fortuna e 53% de todo o gado relacionado naqueles processos.4 Considerando que os inventários post mortem são uma

fonte histórica que tende a sobre-representar as camadas mais abastadas da população, essa disparidade devia ser mesmo

maior. Ainda que pudessem desempenhar também outras atividades, como o comércio de tropas ou de mercadorias, todos

os titulares daquelas fortunas eram abastados estancieiros, possuindo pelo menos uma grande estância (com mais de 2.000

reses e mais de 6.000 ha.), sendo que alguns deles possuíam, também, terras na República do Uruguai (FARINATTI, 2010,

p. 56).

Tomando as grandes estâncias como unidades produtivas, a regra geral é a da predominância da atividade pecuária.

Uma agricultura subsidiária, para sustento próprio ou para venda em mercados locais e regionais também era praticada.

Como já foi dito, a predominância clara era do gado vacum, destinado à criação para venda às charqueadas. A criação de

muares, destinados à feira de Sorocaba, esteve presente, declinando ao longo do século. O contrário se deu com os ovinos,

que tenderam a estar mais presentes após 1860, quando os mercados para a lã começavam a encorpar-se. Assim como no

caso da pecuária missioneira, e também no caso da pecuária platina, os cavalares marcavam presença principalmente para a

montaria, para o pastoreio das reses bovinas, e para a produção de mulas. Além disso, alguns estancieiros vendiam para o

exército, naquele século onde o estado de guerra era crônico (FARINATTI, 2010).

Assim, o estímulo do mercado de gado em pé para as charqueadas e, de modo indireto, o impulso da demanda de

charque nos portos do Rio de Janeiro, Salvador e Recife, tinham uma força bastante efetiva na moldagem da organização

das estâncias, do ponto de vista de sua racionalidade produtiva. Tratava-se de organizar estabelecimentos adequados,

4 Os inventários post mortem tem sido largamente utilizado pela história social e econômica. Entre muitos outros aspectos, sua importância

reside no fato de que contém uma descrição e avaliação dos bens do falecido, permitindo realizar estudos sobre a economia, a cultura material e

reconstruir hierarquias de fortunas.

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principalmente, a esse fim. Essa organização refletiu a experiência acumulada tanto pela produção pastoril luso-brasileira no

leste do Rio Grande de São Pedro, quando pela própria pecuária missioneira. A chave unificadora das técnicas empregadas

no pastoreio parece ter sido o controle e a regulagem de diferentes níveis de domesticação dos animais.

Como apontou Jacques Barrau (1989), a domesticação pode ser entendida como um processo de intervenção humana

nos aspectos fundamentais da vida animal e vegetal: proteção, nutrição e reprodução. Na visão do autor, a domesticação não

é considerada uma linha precisa entre o mundo natural e a cultura, mas sim é vista como um continuum, como um gradiente.

É justamente o grau de intervenção humana em cada um daqueles processos que determina o grau da domesticação. O

objetivo costuma ser a modificação das espécies de modo a potencializar características úteis aos seres humanos e a

eliminar as que lhes são um entrave. Ao mesmo tempo, essa intervenção vai tornando as espécies atingidas cada vez mais

dependentes dos seres humanos, chegando ao ponto de que a população domesticada não consiga mais realizar, sozinha,

uma daquelas três funções indispensáveis à sua sobrevivência (BARRAU, 1989).

Para o caso dos animais vacuns e cavalares existentes na região, nos séculos XVII e XVIII, Moraes (2008, p. 30)

apontou que se dividiam em três grupos. Os silvestres eram aqueles que, tendo escapado ao controle do homem, produziram

descendência que não conheceu esse controle.5 Os alçados eram os animais domesticados que se evadiam por alguma

razão, como secas e guerras. Por fim, a autora nomeia como plenamente domesticados aqueles animais que permaneciam

sob o controle humano, ficando “sujeitos a rodeio”. Uma divisão semelhante parece ter estado presente, também, nas áreas

controladas pelos luso-brasileiros e pelos colonos hispano-platinos, naquele mesmo período.

5 No caso dos vacuns eram chamados “cimarrones”, ou, no vocábulo aportuguesado, “gado chimarrão”. No caso dos cavalares, eram os

“baguais” (MORAES, 2008, p. 30)

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No mundo agrário da Campanha no século XIX a tônica geral era semelhante, porém, houve um refinamento no modo

como os próprios contemporâneos categorizaram essa divisão. Com o processo de conquista e colonização luso-brasileira ao

sul do Ibicuí, nas primeiras décadas do século XIX, foram realizadas grandes arreadas de gado e fundação de

estabelecimentos de envergaduras econômicas diversas. Ao longo do século, diminuiu muito o número de animais vacuns

totalmente selvagens. Não há como fazer uma estimativa segura, mas é provável que já não fossem significativos na década

de 1830. Como veremos adiante, o mesmo não ocorreu com os cavalares, cujas manadas selvagens continuavam a cruzar a

Campanha em meados do Oitocentos. O gado alçado, por sua vez, seguiu a existir em todo o período, em virtude dos efeitos

nocivos das guerras ou de fenômenos naturais.

Contudo, os habitantes da Campanha construíram categorias também para designar diferentes graus de domesticação

dentro do conjunto de animais domesticados. Trata-se de dividir vacuns, cavalares e muares em animais “mansos” e “xucros”.

No caso dos vacuns existentes na amostra de inventários de Alegrete, já referida, essa divisão entre reses de criar “xucras” e

“mansas” está explícita na quase totalidade dos rebanhos inventariados (cerca de 94%), repetindo um padrão já encontrado

nos tempos coloniais tanto no Rio Grande de São Pedro quanto nas áreas vizinhas, de colonização espanhola. Esses

estudos encontram o vocábulo “xucro” como sinônimo, ora de gado selvagem, ora de gado “alçado” (GELMAN, 1998;

OSÓRIO, 2007). Esse, porém, não parece ter sido o caso do gado descrito nos inventários da amostra pesquisada. O

significado que a expressão “xucro” assumia no contexto em análise, pode ser melhor compreendido a partir do único

inventário da amostra em que foram descritas reses “alçadas”. Trata-se do inventário de dona Maria Mância Ribeiro, esposa

do General Bento Manoel Ribeiro, aberto em 1854.

No processo constava a presença de 200 reses mansas, 340 reses de gado xucro “costeado” e aproximadamente 700

reses de gado alçado. As primeiras valiam 9$000 e as segundas 7$000, dentro da média de preços correntes para reses

mansas e xucras nos inventários cujas avaliações de bens ocorreram naquele ano. As reses alçadas, porém, apresentam

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uma avaliação de 5$000, portanto inferior e não compatível com nenhum preço de reses xucras dos outros processos.6 Ali

está presente uma clara graduação em termos de domesticação que aparece como critério para a categorização dos animais

criados. Ela também se reflete no preço, demonstrando a incorporação de trabalho ao valor do animal como mercadoria. O

que variava era o nível de domesticação dos animais. Com gado manso se faziam com mais facilidade todos os

procedimentos atinentes à criação, denotando a aplicação de um grau mais intenso de trabalho. O gado xucro “costeado” era

aquele que se procurava, na medida do possível, manter dentro dos limites dos campos de seus proprietários, e sobre os

quais certamente se efetuava a castração e a marcação. Em 1832, o futuro Conde de Piratini recomendava que o gado

manso fosse marcado na perna, do lado esquerdo, e o gado xucro na anca, do mesmo lado (CESAR, 1978, p. 38). Essa

distinção parece ter perdurado, pois consta nas memórias que o médico Severino de Sá Brito escreveu sobre o mundo da

Campanha durante sua infância, na década de 1870 (SÁ BRITO, s/d, p. 64).7

Ao gado xucro era aplicada uma intensidade menor de manejo, sem garantir um nível mais forte de controle. Contudo,

havia um limite para essa diminuição da intensidade do costeio. Além desse limite, poderia haver o extravio desse gado ou o

fato de que, mesmo que permanecesse dentro das terras de seu dono, ele voltasse a se tornar bravio e os animais jovens

que ali nascessem não fossem marcados e castrados. O gado estaria se tornando alçado. Assim, a palavra “xucro” não pode

ser tomada aqui como sinônimo exato de gado não-domesticado. A designação de “reses xucras” até podia incluir dentro

desse rebanho reses realmente alçadas, mas, em maioria, designava reses com um certo grau de domesticação, localizado

entre os extremos ocupados pelo que se considerava gado manso, de um lado, e alçado, de outro.

6 “Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes: M. 11, N. 152, A. 1854. APRS”.

7 CESAR, Guilhermino. O Conde de Piratini e a Estância da Música..., 1978, p. 38. BRITO, Severino de Sá. Trabalhos e costumes dos

gauchos, s/d , 2.ed., p. 64.

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De fato, era corrente a prática de deixar uma grande parte do rebanho como xucro, exigindo uma aplicação de trabalho

menor, como uma forma dos criadores conseguirem economizar mão-de-obra, em um contexto onde ela não era abundante

(BELL, 1998). Essa era uma prática adequada, sobretudo, aos criadores que detinham maiores rebanhos, onde a aplicação

de trabalho exigida era muito maior. Estima-se que um ou dois trabalhadores pudessem costear algo entre 400 e 600 reses, o

que podia ser resolvido com trabalho familiar, exceção feita aos intensos períodos de marcação e castração. Estas

atividades, porém, não ocupavam mais do que algumas semanas no ano. De fato, os dados da amostra de inventários

estudada década à década, apontam que a proporção de reses mansas variava de acordo com a dimensão do rebanho. Nos

estoques vacuns de até 100 reses, esse número chegou a 100% na década de 1850. Já nos que tinham até 500 reses,

encontramos uma média de 35% de reses mansas naquela mesma década. Por sua vez, nas grandes estâncias, com

rebanhos que superavam as 2.000 reses, a média de animais mansos foi de apenas 10%.8

O universo das técnicas agrárias reflete essa busca por controlar os graus de domesticação. As tarefas atinentes ao

manejo do gado estavam, naquele sistema extensivo e dependente das boas condições das pastagens naturais, fortemente

ligadas ao ciclo das estações. As grandes atividades das estâncias eram os rodeios. Essa palavra assumia um duplo

significado. Por um lado, designava os locais específicos, dentro das estâncias, onde eram reunidos os gados que estavam

aquerenciados em suas redondezas. Ao mesmo tempo, fazer ou parar “rodeio” queria dizer partir com um número suficiente

8 Inventários post mortem. Cartórios de Órfãos e Ausentes, do Cível e Crime e da Provedoria, 1831-1865. Alegrete. Arquivo Público do Estado

do Rio Grande do Sul (APERS).

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de trabalhadores e reunir, no lugar de mesmo nome, todo o gado que pastava nos arredores daquele local. Nessas ocasiões,

o gado era reconhecido, contado e podiam-se realizar curas em feridas e bicheiras.9

Há informações conflitantes quanto à periodicidade em que se realizava essa tarefa. Em 1832, o futuro Conde de

Piratini recomendou a seu capataz que se fizessem rodeios o mais amiúde possível sem que se possa compreender

exatamente ao que essa expressão se refere. Para o historiador Guilhermino César, trata-se de uma advertência que denota

um estancieiro excepcionalmente zeloso porque não era prática corrente parar mais de dois rodeios por ano.10 Contra todas

as outras referências e, ao que parece, com muito exagero, o Visconde de São Leopoldo sugeriu que eles eram feitos todas

as semanas.11 Severino de Sá Brito referiu que se paravam rodeios em pelo menos três épocas por ano, nas oportunidades

da marcação, da castração e da formação de tropas para as charqueadas (SÁ BRITO, s/d). Creio que se essa informação

ajuda a compor uma freqüência mínima de três ou até duas oportunidades por ano (caso a marcação e a castração fossem

realizadas na mesma época) para a realização dos rodeios, afinal, marcar, castrar e vender os animais eram procedimentos

obrigatórios para qualquer estabelecimento de criação em um ano de condições normais de produção. Além delas, variando

de acordo com a disponibilidade de trabalhadores, as dimensões do rebanho e os cálculos dos criadores, podia-se reunir o

gado um maior número de vezes ao longo do ano.

9 Stephen Bell elaborou uma ótima descrição dessas atividades, baseado principalmente em um informe sobre a criação de gado elaborado

pelo Visconde de São Leopoldo, que fora Presidente da Província do Rio Grande do Sul: “Informe do Visconde de São Leopoldo, sem indicação de

destinatário, sobre a criação de gado na Província do Rio Grande do Sul, 1842)”. Manuscritos, II-36, I, 18. BN (de agora em diante o título do

documento será grafado apenas “Informe...”) (BELL, 1998)

10 César baseia-se em Nicolau Dreys para afirmar a periodicidade de duas épocas por ano em que se fazia rodeios (CESAR, 1978, p.38).

11 “Informe...” Manuscritos, II-36, I, 18, Art. 4. BN.

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A marcação e a castração eram realizadas no outono, no inverno ou no início da primavera, o que dava tempo para as

feridas geradas por essas atividades cicatrizarem e evitava que os insetos, comuns no verão, depositassem ali suas larvas

gerando bicheiras.12 Ambas as atividades eram as que exigiam um incremento mais significativo de trabalhadores,

representando os picos estacionais de demanda de mão-de-obra nos estabelecimentos pecuários. Por sua vez, as tropas que

partiam das estâncias rumo às charqueadas eram formadas em uma longa temporada, que ia de novembro até inícios de

maio do ano seguinte, quando o bom pasto começava a escassear de novo e se principiava a preparação para as atividades

de marcação e castração.

Por fim, naquele mundo onde não existiam cercas artificiais nas divisas dos estabelecimentos de criação, o problema

da evasão de gado era uma constante. Em tempos de seca, os rios e arroios tornavam-se rasos ou mesmo vazios, sendo

facilmente vadeados pelas reses que partiam em busca de água e pasto. Ainda, os períodos de guerra, tão freqüentes na

região e época tratada, traziam problemas adicionais. A prática voraz de recrutamentos arrancava seguidamente

trabalhadores às lides produtivas. Sem trabalhos de marcação e castração, perdia-se o controle da produção anual. Sem

operações de manejo regular, o gado ia-se desacostumando ao costeio e tornando-se mais bravio. Da mesma forma, o

problema da dispersão do gado pela falta de água e alimento propiciada por uma seca, por exemplo, era catalisado se a

unidade produtiva não pudesse contar com trabalhadores para evitar sua dispersão. Além de tudo, nas épocas de guerra, a

passagem dos exércitos e a existência de bandos de desertores podiam desfalcar verdadeiramente os rebanhos. Por todos

12 Em 1832, o futuro Conde de Piratini ordenava que a marcação fosse feita “o mais cedo que for possível a fim de não encontrar este trabalho

com outros que se acumulam para o tempo de inverno...” (CESAR, 1978, p. 38). Dez anos depois, o Visconde de São Leopoldo afirmou que a

marcação era praticada uma vez por ano, na estação fresca do outono. “Informe...”. Manuscritos, II-36, I, 18, art. “4”, BN. Severino de Sá Brito lembra

que, na estância onde cresceu durante segunda metade do século XIX, a marcação era realizada no inverno e que, durante esses afazeres, se

passavam alguns dias e eram feitos diversos rodeios BRITO, s/d ).

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esses motivos, era preciso fazer repontes, pastoreando o gado o mais amiúde possível e também efetuar recrutas ou

reculutas, ou seja, partir à procura do gado já evadido, em campos vizinhos e além.13

Esses trabalhos envolviam montaria. Os cavalos eram indispensáveis para a viabilidade da criação bovina. Todo o

trabalho de manejo do gado era feito a cavalo, de modo que os equinos ocupavam um lugar obrigatório dentro das estâncias.

Os cavalos eram, também, o grande meio de transporte para vencer as lonjuras do pampa. Para as cargas e viagem com

mais bagagem, empregavam-se carretas, com juntas de bois mansos. Para o transporte individual, sempre cavalos. Saint-

Hilaire observou que “toda a gente, mesmo pobre, inclusive os escravos, não dão um passo sem ser a cavalo” (SAINT-

HILAIRE, 1997, p.52). Além disso, podiam-se criar cavalos com fins comerciais, ainda que este ficasse sempre abaixo do

gado bovino. Podia-se vender o couro dos eqüinos ou comercializar os animais em pé. A demanda tendia a aumentar,

principalmente, nos períodos de guerra, pois os cavalos eram essenciais nos tipos de combates travados na região. Como a

guerra no sul era crônica, abastecer os exércitos de cavalos tornava-se um bom negócio. Por outro lado, isso também

ampliava os roubos e as requisições (dificilmente ressarcidas) por parte de exércitos e bandos armados.

Nos inventários, aparecem, de um lado, os “cavalos mansos”, em geral cavalos de serviço, empregados no costeio do

gado vacum. De outro, uma designação genérica de “éguas xucras” ou “animais cavalares”. Esta consistia em uma manada

de éguas, potros e alguns reprodutores, todos ainda não domados, que os criadores buscavam aquerenciar e manter dentro

dos limites de sua propriedade. Esse era o reservatório de animais de onde sairiam, depois de domados, os cavalos de

serviço. Nessa manada, também estavam os ventres para a produção de mulas ou para a produção comercial de potros.

13 O futuro Conde de Piratini dispôs que seu capataz não negasse rodeios a quem os pedisse, havendo gente para os parar. Guilhermino

César explica que os donos de reses evadidas, ao providenciarem recrutas, podiam “pedir rodeio” ao dono do campo onde supunha encontrá-las.

“Reunido o gado, com o concurso das duas partes, procede-se à busca.” Negar rodeio era sinônimo de má fé e era condenado por códigos de

posturas de vários municípios riograndenses (CESAR, Guilhermino.1978).

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A doma dos cavalos era uma atividade assaz valorizada. Enquanto a diferença de preços, presentes na amostra de

inventários trabalhada, entre os bovinos xucros e os mansos oscila entre 10 e 20%, a doma poderia elevar em até 300% o

preço dos animais cavalares.14 A verdade é que, até meados do século XIX, por suas poucas possibilidades comerciais, as

éguas e cavalos xucros tinham valor reduzido. Por outro lado, cavalos bem domados podiam valer mesmo mais do que uma

rês mansa em ponto de abate. Os peões domadores eram melhor remunerados e os escravos que exerciam essa função

eram mais valorizados. A doma era uma atividade que envolvia sério risco, implicava em grande agregação de valor ao

animal e beneficiava-se do grande prestígio que a destreza nas lides campeiras gozava no contexto daquela cultura.

A domesticação era, portanto, a clivagem essencial que instaurava a classificação dos animais cuja criação era o

objetivo das estâncias. Do ponto de vista técnico, o controle dos graus de domesticação dos rebanhos parece mesmo ter sido

a chave para a administração das grandes estâncias da pecuária tradicional sulina.

As estâncias oitocentistas como centros de domesticação

Se tomarmos o controle dos níveis de domesticação como orientação técnica geral, podemos perceber uma lógica que

organiza a estância como um centro de domesticação. Essa lógica era evidente no caso dos principais animais de criação,

mas acabava por transbordar esses limites e instaurava-se nas relações dos homens com outros animais e plantas na

Campanha.

14 Inventários post mortem. Cartórios de Órfãos e Ausentes, do Cível e Crime e da Provedoria, 1831-1865. Alegrete. Arquivo Público do Estado

do Rio Grande do Sul (APERS).

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Observando a descrição contida nos inventários post mortem estudados, é possível perceber que as grandes

estâncias costumavam obedecer um padrão de organização espacial.15 Um conjunto variável de construções formava um

domus, nos vários sentidos da palavra: o lar doméstico da família proprietária; o local de residência dos donos daquele

domínio, de onde vinha um impulso de dominação e direção; o núcleo do centro de domesticação que era a estância, sob o

aspecto da técnica pecuária. Ali estava a casa principal que, no Oitocentos, era quase sempre feita de pedras e coberta de

telhas e, com o correr do século, assoalhada e, nos casos mais afortunados, também forrada. Por vezes, a cozinha se

localizava em construção separada, em virtude do risco de incêndio e, talvez, também para evitar a presença de fumaça e

fuligem dentro da casa principal. Por sua vez, as senzalas podiam tomar a forma de construções anexas à casa principal ou

mesmo separadas e próximas a ela. Ao invés de senzala, podia haver a presença de pequenos ranchos cobertos de capim,

também próximos a esse complexo principal, que abrigavam os escravos.

Em geral, próximas à casa principal e feitas de pau-à-pique barreado ficavam construções que abrigavam atafonas

para o fabrico de farinha de trigo ou mandioca, galpões e paióis, sendo, estes últimos, mais raros na Campanha do que no

centro-norte do Rio Grande do Sul (FARINATTI, 2010). Nas proximidades, currais e mangueiras, feitos de pedras, madeira ou

barro eram o espaço por excelência da reunião e manejo do gado, passo decisivo na intensificação do grau de domesticação

desses animais. As maiores estâncias costumavam, também, contar com pomares que envolviam dezenas e até centenas de

árvores frutíferas. Todas as árvores relacionadas, que receberam atribuição de valor monetário no inventário, tinham chegado

à América com a colonização, sendo as principais as laranjeiras, as limeiras e os pessegueiros. Um outro espaço presente

eram lavouras de dimensão variada, descritas nos inventários normalmente como “plantações”. Sempre cercadas (em grande

15 Todas as informações referentes ao espaço das estâncias, contidas neste item, estão baseadas na análise da amostra de inventários post

mortem de Alegrete (1831-1865), tantas vezes já referidas ao longo deste trabalho.

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DOMESTICAÇÃO, TÉCNICA E PAISAGEM AGRÁRIA NA PECUÁRIA TRADICIONAL DA CAMPANHA RIO-GRANDENSE (SÉCULO XIX) 81

parte com tramados de plantas de espinho) para evitar a entrada do gado, ali se produzia trigo, feijão, milho, por vezes

mandioca, abóboras, favas e outras culturas. Por fim, pequenos potreiros e piquetes cercados destinados aos animais de

tração (“bois mansos”), às vacas de leite e aos cavalos em serviço, compunha o complemento desse conjunto de construções

principais das grandes estâncias. O “gado menor”, como aves de criação e porcos nunca aparece nos inventários, mas, ao

menos no caso das aves, é possível ter uma ideia de sua existência por outros documentos, como as instruções que o Conde

de Piratini enviou a seu capataz da Estância da Música, em 1832 (CESAR, 1978).

Além desse complexo do domus, que aglutinava domicílio e núcleo da domesticação, as maiores estâncias, ou

aquelas onde havia extremidades onde não existiam limites naturais como rios e arroios, também contavam com a presença

de outros agrupamentos satélites, como estâncias menores (que podiam ser moradias de filhos casados) ou, mais

comumente, postos (onde vivia o peão posteiro e, se fosse o caso, também sua família). Além da casa e plantações, também

podia haver currais e mangueiras nesses postos, reproduzindo, de modo bem mais modesto, parte da estrutura do domus

principal.

Se relacionarmos essa estrutura às diferenças de grau de domesticação entre o gado vacum, encontraremos o gado

presente no domus e manejado quase que diariamente, como animais de tração (“bois mansos”), vacas leiteiras e cavalos de

serviço. Depois, as “reses de criar mansas” consistindo em um conjunto de animais vacuns manejados frequentemente nos

currais e pontos de rodeio. Finalmente, um grupo de “reses de criar xucras”, tanto maior quanto maior eram os rebanhos

daquele estabelecimento. Estas, como já dissemos, estavam aquerenciadas nas terras da estância, eram marcadas e os

machos eram castrados, mas seu manejo era muito mais eventual. Estas reses eram as que corriam mais risco de alçar-se

em casos de secas ou falta de trabalhadores ocasionada, por exemplo, pelos recrutamentos executados nos freqüentes

tempos de guerra.

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DOMESTICAÇÃO, TÉCNICA E PAISAGEM AGRÁRIA NA PECUÁRIA TRADICIONAL DA CAMPANHA RIO-GRANDENSE (SÉCULO XIX) 82

Esse verdadeiro continuum de variados graus de domesticação com o qual operava a grande estância oitocentista

encontrava seu limite exterior nos animais alçados e, principalmente, nos animais selvagens que cruzavam a Campanha.

Parte importante de relação para com eles tinha como referência, novamente, a lógica pecuária que orientava os

estabelecimentos de criação. Se a domesticação implica na interferência humana na proteção dos animais envolvidos, isso

tinha diretamente a ver com, pelo menos, dois tipos de animais selvagens que, em suas formas domesticadas eram parte

constituinte das estâncias: os cavalos e os cães.

Ao que tudo indica, no entanto, as manadas de cavalos selvagens perduraram por mais tempo do que as manadas

bovinas. Essas “eguadas” ou “bagualadas” bravias eram um transtorno para os estancieiros, pois ao cruzarem por seus

campos misturavam-se aos cavalos da estância e podiam levá-los à fuga. Além disso, suas correrias dispersavam o gado

bovino podendo também levá-los à evasão. Ainda, ao se misturarem aos cavalos mansos, montados por homens, podiam

fazê-los sair em disparada pondo risco a própria vida dos cavaleiros. Uma das formas empregadas para enfrentar esse

problema, choca nossa sensibilidade atual. Eram feitas reuniões de gente para a matança desses animais. O objetivo dos

homens era matar o maior número possível de éguas e cavalos. Os que desejassem poderiam laçar animais e ficar com eles

vivos, ou então ficar com o couro dos que fossem abatidos, mas o objetivo primordial da atividade era a pura eliminação física

e não o “aproveitamento econômico” da manada. Essa prática foi rememorada literariamente no conto “Correr Eguada”, de

Simões Lopes Neto (LOPES NETO, 1987). As observações de Saint-Hilaire sobre os perigos trazidos pelas “bagualadas” e

sobre as formas de caçá-los demonstram que a descrição contida no conto assentava-se sobre uma prática real (SAINT-

HILAIRE, 1997, p.123).

Por outro lado, é impossível falar-se em estâncias, na relação entre humanos e animais, sem mencionar os cães.

Mesmo porque, matilhas de cães selvagens cruzavam a Campanha e o norte da Banda Oriental desde muito tempo antes da

chegada dos luso-brasileiros. Tinham a mesma origem das vacas e cavalos “cimarrones” ou “chimarrões”, aliás, ganharam o

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mesmo nome desses. Atacavam os rebanhos bovinos e foram considerados uma verdadeira praga pelos estancieiros, que os

caçaram sem trégua. Seu extermínio foi obra das primeiras décadas do século XIX, quando a produção regular de gado

expandia-se pela Campanha. Saint-Hilaire os avistou, em 1821, quando cruzava a fronteira do Rio Grande com a Cisplatina:

“Esses animais, originalmente evadidos das habitações, nada possuem que os distinga de modo particular (...) começam a

rarear entre o Rio Grande e Santa Teresa, porque os fazendeiros, cujos rebanhos eles devoram, os exterminam”.16

De outra parte, os cães domésticos acompanharam a expansão da estância. Reparavam a casa e participavam das

lides pecuárias, fossem bovinas ou ovinas. Quanto às primeiras, esse fato não surpreende a qualquer um que já tenha tido a

oportunidade de participar de uma atividade pecuária em muitos dos campos gaúchos, ainda hoje. Os cães pastoreiam,

ajudam a conduzir o gado para o local desejado pelos homens e evitam que se evada. Em 1842, o Visconde de São

Leopoldo descreve a participação dos cães nas lides campeiras, ao lado dos peões.17 Além disso, os cães parecem ter sido

essenciais na criação de ovelhas. O Conde de Piratini recomenda a seu capataz que “quando houverem ovelhas na estância,

devem ser acompanhadas de cães próprios para isso (...)” (CESAR, 1978, p. 42).

Cabe deixar claro que tratamos, aqui, de uma lógica importante na estruturação das estâncias, mas que essa

racionalidade não era a única que compunha a modelagem daqueles estabelecimentos. Ela existiu muito mais como

referência técnica do que como realidade completa no espaço agrário. Em algumas estâncias e em algumas épocas mais do

que em outras, como dissemos, os muares e ovinos ganharam maior protagonismo, impondo exigências um tanto diferentes

para seu manejo. Além disso, as grandes estâncias costumavam abrigar estabelecimentos agrários e casas de moradia

16 SAINT-HILAIRE, August. Op. cit., 1997, p. 121.

17 VISCONDE DE SÃO LEOPOLDO apud BELL, Stephen. Op. cit., 1998, p. 42.

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DOMESTICAÇÃO, TÉCNICA E PAISAGEM AGRÁRIA NA PECUÁRIA TRADICIONAL DA CAMPANHA RIO-GRANDENSE (SÉCULO XIX) 84

pertencentes a uma série de outros sujeitos: filhos do proprietário, que já haviam constituído seus próprios núcleos familiares;

escravos que ganhavam direito à manter produção própria; agregados que mantinham pequenas produções com mão-de-

obra familiar. Todos esses agentes tinham também suas plantações e rebanhos, ainda que, comumente, eles fossem muito

mais modestos do que o do proprietário. Os rebanhos xucros de todos eles misturavam-se, podendo também juntar-se aos

dos vizinhos, naquele agro sem cercas e sem divisórias precisas a marcar os limites de cada estância. Todo esse contexto,

permeado de conflitos latentes e efetivos, foi o ambiente em que se instalaram, na Campanha, os direitos de propriedade

privada sobre terras e gado, em meio a um universo complexo de relações sociais e a uma hierarquização social desigual

(GARCIA, 2005, FARINATTI, 2010, LEIPNITZ, 2010).

A produção do espaço agrário se fazia na confluência desse conjunto heterogêneo de atores e das diversificadas

relações sociais que eles tramavam, combinado àquelas diversas racionalidades apontadas acima, da qual a lógica do

controle sobre os graus de domesticação de vacuns e cavalares era das mais importantes.

Considerações Finais

Parece óbvio que a intensidade da domesticação e seu impacto no ambiente da Campanha foi muito mais evidente a

partir das transformações modernizantes de fins do século XIX, e cada vez mais ao longo do século XX, até os dias atuais.

Porém, a reorganização a criação de um espaço propriamente agrário, a criação de um ager em meio a um pagus no

território que viria a ser a Campanha rio-grandense foi forte e efetiva já nos séculos XVII e, principalmente, XVIII com a

propagação das estâncias missioneiras. Depois, a criação de estabelecimentos pecuários sob a conquista luso-brasileiras, no

Oitocentos, redefiniu esse processo.

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Estabelecendo-se como um centro de domesticação, a grande estância também funcionava como um pólo difusor de

uma cultura material colonial e de animais e plantas de origem extra-americana (na maior parte das vezes européia, mas

também africana e asiática). Ao arrebanhar o gado que estivera sob controle missioneiro ou ao trazer animais do Rio Grande

de São Pedro e, ao submetê-los ao manejo pecuário, os criadores luso-brasileiros promoveram sua reprodução e

protegeram-nos dos ataques de predadores. Ao mesmo tempo, através de atividades como a castração e o pastoreio regular

modificaram a estrutura das populações animais e estimularam características úteis aos propósitos humanos, como a

propensão ao manejo, traduzida nos vocábulos “manso” e “xucro”. De todos os aspectos da domesticação, possivelmente a

influência na nutrição dos animais tenha sido a realizada com menor intensidade, porém isso estava dentro de um sistema de

organização dos recursos produtivos e do trabalho que seguia uma racionalidade própria, estando vinculada à reprodução de

uma ordem social extremamente desigual.

Esperamos haver ficado claro que a construção do complexo pastoril oitocentista redefiniu e remodelou muitas bases

do ambiente na Campanha. Nesse sentido, as relações entre homens, animais e plantas, naquele contexto, não parecem

itens que possam ser negligenciados pelos historiadores. Parece-nos claro que uma atenção dirigida a esses aspectos pode

estimular reflexões importantes no que se refere à cultura, à sociedade e à economia construídas naquele contexto.

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A EXPANSÃO DA SILVICULTURA SOBRE O BIOMA PAMPA: IMPACTOS ALÉM DOS CAMPOS 88

A EXPANSÃO DA SILVICULTURA SOBRE O BIOMA PAMPA: IMPACTOS ALÉM DOS CAMPOS

Frank Gonçalves Pereira Universidade Federal do Rio Grande

[email protected]

Introdução

O presente trabalho representa uma reflexão sobre o tema de pesquisa de dissertação de mestrado, cujo estudo

encontra-se ainda em fase inicial. O tema abordado neste artigo refere-se à problemática que envolve a degradação e

descaracterização das áreas campestres no Rio Grande do Sul, mais especificamente na área compreendida pelo bioma

Pampa. Como principais causadores desse problema temos os monocultivos de soja, de arroz, o plantio de pastos exóticos e

a silvicultura. Esta última é a que mais tem suscitado debates, devido os grandes investimentos que as empresas

florestadoras fizeram e vem fazendo no estado e devido os impactos sobre a paisagem do pampa. A expansão da silvicultura

sobre este bioma se mostra como uma resultante de forças exógenas e de uma política de estado. O apelo do

desenvolvimento econômico que os investimentos nesta atividade poderiam gerar para a região do Pampa gaúcho foi o carro

chefe para os esforços governamentais do estado em atrair grandes empresas da área de papel e celulose. Soma-se a isso a

fragilidade sócio-econômica da dita “metade sul” do Rio Grande do Sul, tão atrelada ao latifúndio e às atividades tradicionais

do campo, e ao mesmo tempo a ânsia por novos investimentos nesta região.

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A EXPANSÃO DA SILVICULTURA SOBRE O BIOMA PAMPA: IMPACTOS ALÉM DOS CAMPOS 89

Os reflexos dos processos derivados dos novos usos e ocupações dados sobre o bioma Pampa, especificamente

neste caso no âmbito da silvicultura, serão considerados sobre a dimensão da paisagem visual pampeana. Paisagem esta

vista como patrimônio cultural, dotada de valores materiais e imateriais, atrelada ao imaginário social construído

historicamente que culminou na identidade regional do gaúcho. As ponderações sobre essa atmosfera gerada pela silvicultura

no bioma Pampa devem examinar as justificativas econômicas de desenvolvimento e as prerrogativas que a paisagem

pampeana possui.

O tema será analisado em seus fatos sob o enfoque dos teóricos que discutem a técnica. Há aqueles que defendem

que as novas técnicas ou vetores técno-produtivos numa determinada aplicabilidade são profícuas e há aqueles que

abominam a técnica, considerando-a causadora da deterioração dos valores sócio-ambientais. Estes estudiosos nos ajudarão

a nortear a análise e pontuar os pontos positivos e negativos, objetivando uma consideração a respeito da problemática.

Silvicultura

A silvicultura é a ciência destinada ao estudo dos métodos naturais e artificiais de regenerar e melhorar os

povoamentos florestais, visando às necessidades do mercado e à manutenção, ao aproveitamento e ao uso racional das

florestas (nativas ou comerciais). Este tipo de uso no estado do Rio Grande do Sul teve seu começo pautado no provimento

de lenha, naquelas áreas com escassez de madeira, e também como edificação de abrigo para o gado nas propriedades dos

estancieiros, visando a proteção das intempéries do tempo, são os chamados capões.

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A EXPANSÃO DA SILVICULTURA SOBRE O BIOMA PAMPA: IMPACTOS ALÉM DOS CAMPOS 90

A principal espécie cultivada é o eucalipto que é nativo da Austrália, do Timor e da Indonésia. Apresenta mais de 600

espécies que se adaptam facilmente a diversas condições de solo e clima (CIB, 2008 apud BINKOWSKI, 2009, p. 28). Sua

madeira é utilizada principalmente para produção de lâminas, compensados, aglomerados, carvão vegetal, madeira serrada,

celulose e móveis, além de outros produtos extraídos como óleos essenciais e para a produção de mel. Os primeiros plantios

dessa espécie foram realizados no início do século XVIII na Europa, Ásia e África. A partir do século XIX começou a ser

cultivado também nos países da América do Sul (PRYOR, 1976).

No Brasil, os primeiros plantios comerciais da espécie, para fins comerciais foram a partir do início do século XX,

direcionados mais especificamente à construção de ferrovias. Em 1903, o Engenheiro Agrônomo Edmundo Navarro de

Andrade inicia pesquisas com o eucalipto para a Companhia Paulista de Estradas de Ferro. No Rio Grande do Sul as

primeiras mudas de eucalipto cultivadas datam do final do século XIX (BINKOWSKI, 2009). A atividade pouco se despontou

nestes tempos, sem grandes pretensões numa realidade econômica que tinha sua estabilidade na pecuária.

Nosso foco é o impacto sobre as áreas campestres do bioma Pampa, oriundo dos danos causados sobre as

características fitogeográficas e geomorfológicas das pradarias. Claro que a silvicultura não é a única atividade que

compromete este sistema, no entanto é aquela que mais impacta por substituir a vegetação natural herbácea por outra do

tipo florestal. Somam-se a isso as ampliações das áreas de plantio e os incentivos para novos adeptos dos florestamentos.

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A EXPANSÃO DA SILVICULTURA SOBRE O BIOMA PAMPA: IMPACTOS ALÉM DOS CAMPOS 91

O Pampa

Antes de contarmos como a silvicultura surge como ameaçadora dos campos pampeanos, há necessidade de uma

breve exposição sobre a realidade dos Campos Sulinos (Pampa). O Pampa gaúcho está situado na metade sul do Rio

Grande do Sul, e é reconhecido pela atividade pecuária realizada de forma extensiva sobre estruturas latifundiárias e com

custos muito baixos. A formação do estado e sua identidade regional estão associados à pecuária produzida sobre a

paisagem campestre. O gado fora introduzido no território gaúcho primeiramente nas Missões jesuíticas espanholas,

destruídas por disputas territoriais entre Portugal e Espanha desde o século XVII. As grandes estâncias têm sua gênese na

distribuição de terras feita pela coroa portuguesa às famílias abastadas e de militares. Estes foram os primeiros latifúndios e

as primeiras cercas que aprisionaram o gado que antes gozava “liberdade”. Os rebanhos e a agricultura atraíram outros

grupos étnicos, de espanhóis, portugueses e outros europeus, além de indígenas e negros descendentes de escravos. Esta

salada étnica e cultural, sobre esse espaço singular, dá forma ao que conhecemos como gaúcho.

“A paisagem cultural que resulta disso é fruto da relação entre esta forma de viver do gaúcho, quer seja ele platino ou

brasileiro, “ladrão de gado”, nômade, guerreiro ou peão “domado” de estância. Estas e várias outras podem ser

interpretações da figura do gaúcho. De qualquer forma, o pano de fundo deste personagem é sempre a paisagem campestre”

(CRAWSHAW et al, p. 244, 2007).

Apesar do gado e dos campos vastos e propícios a esse tipo de economia, a pecuária foi perdendo sua força ao

passar dos anos. Segundo Fontoura (2000), um dos fatores é a incapacidade dos atores sociais na adoção de uma nova

racionalidade para a pecuária, o que culminou na falência de muitos pecuaristas por um lado, e na diversificação das

atividades por outro. Outros acontecimentos, como o início da atividade charqueadora e frigorífica que marcam o inicio da

industrialização e a formação de centros financeiros no estado, e o fato dos filhos de estancieiros irem á cidade em busca de

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A EXPANSÃO DA SILVICULTURA SOBRE O BIOMA PAMPA: IMPACTOS ALÉM DOS CAMPOS 92

estudos, mostram as mudanças que plasmam a passagem de um atividade tradicional para uma do tipo empresarial e

moderna. A modernização das atividades, seja da própria pecuária ou na agricultura, reflete uma relação com o campo onde

o epicentro das decisões está na cidade

O que observamos é que a atividade que deu origem a paisagem cultural, predominantemente baseado num sistema

extensivo de pastagens, vem perdendo espaço para as áreas de agricultura. Conforme observamos na tabela do anexo 1

retirada de Crawshaw, et al (2007, p. 245) :

A tabela do anexo 1 nos revela uma diminuição das áreas de pastagens naturais e um considerável aumento nos

cultivos. Nos últimos anos essa tendência se repete. Recentemente a silvicultura tem se mostrado a mais ameaçadora às

áreas campestres, muito disso se deve aos incentivos governamentais na forma de programas de fomento.

A partir dos anos 2000, o Governo Federal iniciou uma política de incentivos aos florestamentos, via programas e

crédito. Em 2000 lançou o Programa Nacional de Florestas (PNF), em 2002 o Programa de Plantio Comercial e Recuperação

de Florestas (PROFLORA) e o Programa Nacional de Agricultura Familiar - PRONAF Florestal, todos com a finalidade de

oportunizar linhas de crédito e custeio para os plantios florestais. Na mesma linha existe o Financiamento Direto a

Empreendimentos (FINEM), onde a instituição financiadora é o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social

(BNDES), que entre 1991 e 2001 investiu cerca de US$ 435 milhões na silvicultura (BINKOWSKI, 2009).

Na origem das políticas públicas estaduais de incentivo às atividades florestais no RS está o “Programa Floresta-

Indústria”, subsidiado por profissionais da área de Engenharia Florestal da Universidade Federal de Santa Maria. Nesse

contexto, o governo estadual criou também programas de incentivo financeiro, voltados para o cultivo de eucalipto,

principalmente, voltados para os produtores da “Metade Sul” do estado. O Programa de Plantio Comercial e Recuperação de

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A EXPANSÃO DA SILVICULTURA SOBRE O BIOMA PAMPA: IMPACTOS ALÉM DOS CAMPOS 93

Florestas (PROFLORA), através da Caixa RS é um dos exemplos de fomento à produção de eucalipto por parte do Governo

Estadual da época (BINKOWSKI, 2009). As empresas florestadoras foram atraídas pelos incentivos fiscais generosos e pelas

condições edafo-climáticas da região. Nesse contexto, três grandes empresas florestadoras passaram a investir diretamente

na “Metade Sul” do RS: a Votorantin Celulose e Papel (VCP), a Stora Enso e a Aracruz Celulose S.A.

Comparando os mapas do anexo 1 e do anexo 2, constatamos facilmente que praticamente todas as áreas de cultivos

comerciais de eucalipto se dão sobre o bioma Pampa. A respeito do conceito de bioma, esse termo é usado para indicar cada

uma das unidades fundamentais que compõem os sistemas ecológicos maiores (HEINRICH, 1986). Conforme o IBGE (2006),

um bioma é um conjunto de vida (vegetal e animal) constituído pelo agrupamento de tipos de vegetação contíguos e

identificáveis em escala regional, com condições geoclimáticas similares e história compartilhada de mudanças, o que resulta

em uma diversidade biológica própria.

O nome dado a um bioma depende do tipo de vegetação predominante ou ao relevo. No caso, o bioma Pampa,

conhecido também como Campos Sulinos, é definido por sua vegetação de campo e relevo de planície, caracterizado por

planícies vastas e abertas, vegetação densa, arbustiva e arbórea, nas encostas e ao longo dos cursos de água, além de

haver a ocorrência de banhados (CHOMENKO, 2008). São áreas amplas que oferecem pastagens naturais para animais de

pastoreio, onde as principais espécies agrícolas alimentares foram obtidas das gramíneas naturais através da seleção natural

(ODUM, 2004).

Os avanços da silvicultura sobre o Pampa, fazem da região um pólo florestal, causou diferentes percepções sobre o

tema. De um lado, se considerou os investimentos das empresas, a geração de empregos e a incorporação de pequenos,

médios e grandes produtores no plantio de florestas. O governo, como provedor de financiamentos, através da política de

governo, atuou nos meios de comunicação para defender o desenvolvimento econômico que os investimentos trouxeram

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A EXPANSÃO DA SILVICULTURA SOBRE O BIOMA PAMPA: IMPACTOS ALÉM DOS CAMPOS 94

para a região. Por outro lado, temos as opiniões de ambientalistas, organizações não-governamentais (ONG‟s) e movimentos

sociais, preocupados com a perda da biodiversidade que o plantio de eucalipto em grande escala poderia acarretar ao bioma

Pampa.

O debate a luz dos autores que discutem a técnica

No conflito ambiental gerado pela expansão da silvicultura no bioma Pampa existem duas vertentes de opinião. Um

vertente se mostra a favor da silvicultura, pautada no desenvolvimento econômico da região e a vertente oposta com uma

opinião contrária sustentada na conservação do bioma Pampa, na sua dimensão ambiental e cultural. A partir desse debate,

iremos relacionar essas visões divergentes com o debate sobre a técnica, pois a mudança de uma base pecuarista extensiva,

feita sob pastagens naturais, para uma base florestal em grande escala sob a batuta de atores globais é também uma

mudança que tem a gênese na técnica de apropriação do espaço. Numa dimensão maior, consideremos essa relação como

aquela entre homem e natureza, sob a forma como lidamos e transformamos a matéria dada, nos apropriando e

transformando-a através da técnica.

Segundo Santos (2008), a técnica refere-se ao conjunto de meios instrumentais e sociais, com os quais o homem

realiza sua vida, produz e, ao mesmo tempo, cria espaço. A concepção da filosofia tradicional a respeito da técnica reproduz

aquela noção de desprezo a técnica, valorizando o saber oriundo da contemplação, ou seja, a teorização é valorizada em

detrimento da atividade prática e técnica. As idéias platônicas de separação entre mundo sensível e mundo das idéias

(SARDI, 1995), subsidiam as noções que separam ciência e técnica. Apenas após o movimento das luzes que ocorre a

ruptura desse dogma e a técnica é então vista como ciência aplicada (HOTTOIS, 2002).

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A EXPANSÃO DA SILVICULTURA SOBRE O BIOMA PAMPA: IMPACTOS ALÉM DOS CAMPOS 95

As divergências sobre os empreendimentos de silvicultura no Rio Grande do Sul serão comparadas as divergências

decorrentes da técnica. Aqueles que abominam a técnica são os adeptos da tecnofobia (medo da técnica), e se fundamentam

na concepção platônica metafísica. No cenário gaúcho de discussão aqueles que mais se aproximam dessa corrente são os

contrários a silvicultura, partidários da conservação do meio ambiente, relacionando-a diretamente ao bioma Pampa. Não

podemos dizer que há uma tecnofobia por parte destes porque eles não condenam a técnica em si, mas sim como ela é

empregada. O discurso tecnófobo é mais filosófico e atrelado a metafísica. “A humanidade deve, fundamentalmente, aceitar a

condição biofísica que a natureza (ou deus) lhe atribui” (HOTTOIS, 2002 p. 482). Entretanto podemos afirmar que há sim uma

tecnofobia aplicada a silvicultura.

“A substância tradicional da História vai sendo destruída pela forma tecnológica de viver, que se expande pelo mundo

todo. O meio ambiente se degrada e se torna máquina. A idade da tecnologia faz surgirem condições sob as quais nada do

passado pode subsistir” (JASPERS, 1993 p. 30).

Chamo atenção para essa citação de Karl Jaspers, pois apesar de seu contexto histórico, nos parece muito atual, pois

cada vez mais subjugados à técnica, todos nós travamos uma relação de dependência e parasitismo sobre a natureza. A

natureza se torna matéria prima ou detrito, e mesmo quando não manipulada em sua essência também se torna mercadoria

pela mão do homem. “A fé que se aninha no coração não mais encontra linguagem eficaz para expressar-se. Tornam-se

vazias as dimensões da alma e o mundo se faz um deserto ou um triste teatro de prazeres” (JASPERS, 1993, p. 30).

A preservação da identidade regional construída sobre os campos nativos e as atividades agropastoris tradicionais

depende da preservação e permanência dessa paisagem. No entanto mudanças no uso e ocupação, devido ao

empobrecimento do campo, modernização agrícola, silvicultura e arenização põem em risco essa paisagem e sua qualidade

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A EXPANSÃO DA SILVICULTURA SOBRE O BIOMA PAMPA: IMPACTOS ALÉM DOS CAMPOS 96

visual tão representativa da identidade gaúcha. É nessa prerrogativa cultural da paisagem e na dimensão ambiental

conservacionista que os “tecnófobos da silvicultura” atuam.

Do outro lado temos os que defendem o pólo florestal gaúcho sobre o bioma Pampa. Estes podemos chamar de

tecnófilos, ou seja, consideram a técnica positivamente. O governo gaúcho, os representantes das empresas florestadoras e

a mídia de grande circulação têm se mostrado “tecnófilos da silvicultura”. A tecnofilia se baseia na melhoria das técnicas

objetivando a melhor eficácia. O desenvolvimento econômico da região é considerado um problema técnico, havendo a

necessidade de uma nova técnica de uso da terra, que por sua vez criaria uma melhor eficácia.

Existem dois tipos de tecnofilia; a humanista e a evolucionista. No humanismo tecnófilo se considera os problemas

sociais derivados de problemas técnicos. O espaço é formado por objetos técnicos, que por sua vez distribuem-se de forma

heterogênea. Quem determina estes objetos é o espaço, segundo uma lógica que se confunde com a lógica da história.

Milton Santos (2008) cita Gilbert Simondon, um humanista tecnófilo, que afirma que quanto mais um objeto é tecnicizado,

mais perfeito ele é, permitindo maior sucesso ao comando do homem. Simondon em Hottois (2002), defende que técnica,

natureza e cultura devem se comunicar e ser valorizadas no que chama de cultura tecnocientífica. No, anexo 4 está

representado um esquema da tecnofilia humanista, que parte da antropologia para conhecer a verdadeira natureza humana e

pela técnica se chegar ao florescimento humano ou a cultura tecnocientífica universal. Sob o ponto de vista destes, o grande

desafio está na universalização do acesso a todas as técnicas.

A tecnofilia evolucionista trabalha numa perspectiva da evolução da espécie humana, onde o futuro depende da

capacidade e vontade de intervenção no universo (no nosso caso entendemos no universo como espaço). Dessa forma as

sociedades estão evoluídas diferentemente quanto a técnica. Podemos afirmar que o grupo defensor da silvicultura considera

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A EXPANSÃO DA SILVICULTURA SOBRE O BIOMA PAMPA: IMPACTOS ALÉM DOS CAMPOS 97

que as atividades empregadas historicamente são as responsáveis pela fragilidade econômica, portanto faz-se necessário

mudar as técnicas e o tipo de atividade.

Considerações finais

A formação do pólo florestal gaúcho se dá graças às condições criadas pelo estado que garantiu incentivos fiscais e

autorizações emitidas dos órgãos ambientais, como a FEPAM. Esse discurso que se aproxima de uma tecnofilia, se distancia

quando esse desenvolvimento ocorre de forma exógena, pois não há uma diferenciação, não desta ordem, que ocorra pela

evolução dos saberes e técnicas da sociedade gaúcha. As comparações de opiniões a favor da silvicultura aos tecnófilos e

dos contrários a esse tipo de atividade aos tecnófobos é mais uma forma de tentar entender a dimensão e a importância

dessa discussão que traz a tona as raízes da formação da identidade regional gaúcha, ao mesmo tempo que ameaça a

permanência dos referenciais que lhe deram origem.

Segundo Crawshaw et al (2007): “A paisagem que deu origem ao gaúcho só existe sobre a paisagem natural

campestre”. Nesse sentido tanto a paisagem quanto o próprio gaúcho tendem a perder espaço frente às transformações

decorrentes da modernização e urbanização do campo. O mesmo autor chama atenção para a necessidade de se angariar

esforços para conservação da paisagem dos campos e pradarias sul-riograndenses, como forma de preservação da

identidade regional e da dessa paisagem.

A falta de identificação de quais paisagens mais representam sua cultura e identidade é um ponto negativo e uma falta

de argumento no que tange a preservação dessas paisagens naturais e culturais. Dessa forma há a necessidade de se

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A EXPANSÃO DA SILVICULTURA SOBRE O BIOMA PAMPA: IMPACTOS ALÉM DOS CAMPOS 98

identificá-las e conhecer seu nível de relevância enquanto representação da região sul bem como discutir formas de uso e

ocupação que priorizem a preservação, entre outras, da qualidade visual dessa paisagem. “Hoje busca-se um conceito de

paisagem mais holístico compondo-se os mais diferentes olhares sobre a paisagem, de forma a compreende-la desde

diversos pontos de vista, complementares e indispensáveis” (DEL RIO, 1996, p. 22 ).

A necessidade de um enfoque mais abrangente também se torna necessária, pois num mesmo espaço coexistem

elementos técnicos provenientes de épocas diversas. O entendimento da técnica, como um todo, passa pelo conhecimento

da história da produção, embutida naquela, revelando no lugar as condições históricas. Sobre tal questão disse Milton Santos

(1997, p. 46): “O trabalho realizado em cada época supõe um conjunto historicamente determinado de técnicas”. A respeito

da idade dos lugares, o autor diz que as técnicas são fenômenos históricos, portanto passíveis de se identificar o momento de

sua origem. No entanto, no lugar, as idades se inter-relacionam devido a heterogeneidade de técnicas no espaço e no tempo.

De um modo geral, podemos afirmar que quando a técnica se incorpora a uma sociedade, deixa de ser ciência e vira técnica.

Acreditamos que se deve conciliar desenvolvimento e qualidade de vida, tradição e modernidade. De modo que se

possa também explorar as potencialidades suscetíveis a silvicultura, desde que traga benefícios para a população local e que

coexista com os campos nativos que caracterizam a paisagem pampeana, sem sobreposições. O chamado humanismo

tecnófilo e as idéias pregadas por aqueles que pertencem a essa corrente são as que mais se aproximam dessa intenção,

onde primeiro são consideradas as humanidades, dependentes da técnica como meio e não como fim.

“... no caso particular da terra gaúcha, não se trata apenas de valorizar os exíguos ecossistemas naturais primários

remanescentes (...). Existe algo mais relacionado com as raízes do povoamento – áreas culturais fortemente imbricadas – e

com a dinâmica dos agroecossistemas...” (AB‟ SABER 2003, p. 112).

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A EXPANSÃO DA SILVICULTURA SOBRE O BIOMA PAMPA: IMPACTOS ALÉM DOS CAMPOS 101

ANEXOS

Anexo 1: Comparação entre os dados dos censos de um período de 26 anos quanto à evolução das áreas de

pastagens no RS (IBGE, 2004).

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Anexo 2 - Mapa de localização dos cultivos comerciais de eucalipto no Rio Grande do Sul. Fonte: Fundação de

Economia e Estatística – FEE (2007).

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Anexo 3 - Localização do bioma Pampa no estado do Rio Grande do Sul. Fonte: Adaptado de Mapa de Biomas do

Brasil – IBGE (2004).

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A EXPANSÃO DA SILVICULTURA SOBRE O BIOMA PAMPA: IMPACTOS ALÉM DOS CAMPOS 104

Anexo 4: Esquema representativo do humanismo tecnófilo.

Técnica

Verdadeira

natureza humana

Antropologia

Florescimento

do ser humano

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CAMPANHA GAÚCHA E MONOCULTURA: UMA LEITURA SOBRE O IMPERIALISMO “FLORESTAL” EM PIRATINI, RS 105

CAMPANHA GAÚCHA E MONOCULTURA: UMA LEITURA SOBRE O IMPERIALISMO “FLORESTAL” EM

PIRATINI, RS

Adriano Severo Figueiró Universidade Federal de Santa Maria

[email protected]

Jaciele Carine Sell Universidade Federal de Santa Maria

[email protected]

Introdução

Este artigo aborda questões relativas à singularidade da Campanha Gaúcha, assim como o processo de construção de

seu território, historicamente subordinado à dinâmica capitalista, e que hoje se traduz nos nomes das grandes empresas de

celulose e seus latifúndios de plantações de espécies exóticas. Objetiva-se questionar a lógica produtiva da monocultura da

acácia, introduzida na metade sul do estado - ressaltando-se aqui o município de Piratini- descrevendo e analisando os

impactos negativos da sua presença sobre as condições naturais e de vida da população local. Tal atividade é hoje usada

para inserir os municípios da região no modelo desenvolvimentista dependente. A abordagem adotada sugere a quebra

desse pensamento único, dando ênfase ao debate em torno de uma mudança de concepção e de racionalidade com relação

à qualidade de vida, qualidade ambiental e ao próprio desenvolvimento. Nota-se desse modo, que para tornar-se uma

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CAMPANHA GAÚCHA E MONOCULTURA: UMA LEITURA SOBRE O IMPERIALISMO “FLORESTAL” EM PIRATINI, RS 106

sociedade sustentável, é preciso que se respeite o potencial endógeno de cada lugar, que se valorize os saberes locais, a

cultura tradicional, as características naturais e a bio-sociodiversidade a ele associados.

Desenvolver-se: o melhor caminho?

A paisagem extremamente singular da metade sul do Rio Grande do Sul tem sido alvo de acalorados debates com

relação a seu futuro. Já há algum tempo, indicadores de desenvolvimento ligados ao modelo hegemônico vêm sendo

adotados para caracterizar os municípios localizados nessa porção do estado do Rio Grande do Sul, denominando-a, na

maioria das vezes, como sendo a “metade pobre” do estado. Tal afirmação, já bastante comum inclusive em alguns

segmentos da comunidade acadêmica, reflete a maneira como se incorporou uma única maneira ou possibilidade de

desenvolver-se, evoluir: através do acúmulo de capital.

Diante de tal situação, diferentes modelos de desenvolvimento vêm sendo propostos pelo poder público, pela iniciativa

privada e pela sociedade organizada, dentre os quais, destaca-se neste trabalho o modelo agro-exportador baseado no

latifúndio monocultor, através da implantação da silvicultura (espécies exóticas). A situação torna-se ainda mais preocupante

pelo fato de que aquele estereótipo de “metade pobre” está sendo usado na administração e gestão das políticas públicas

estaduais, haja vista as facilidades e atrativos disponibilizados pelos governos às empresas multinacionais (que deixam muito

pouco retorno para o município) para essa região, em nome do tão prometido e desejado (des)envolvimento18.

18 Utiliza-se o termo (des)envolvimento em função do significado etimológico do termo desenvolvimento, que segundo Sato (2001) apresenta-

se com o significado de “tirar a cápsula”, o envoltório – uma espécie de rompimento com o entorno, se des-envolver. Assim como uma semente que

„livra-se‟ de sua casca, o homem/sociedade para evoluir precisa livrar-se da sua. A casca cultural e de saberes que envolve o homem, são

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CAMPANHA GAÚCHA E MONOCULTURA: UMA LEITURA SOBRE O IMPERIALISMO “FLORESTAL” EM PIRATINI, RS 107

Esta é, no entanto, a transformação que vem passando dois terços do território do Rio Grande do Sul, que pode

também ser definido como o pampa gaúcho. Com o objetivo de alimentar a indústria mundial de celulose, estão se

implantando vastos monocultivos de pinus, eucalipto e acácia, principalmente em países do hemisfério sul, onde o rápido

crescimento das árvores, o baixo preço da terra e da mão-de-obra, somados aos abundantes subsídios, se combinam para

que a madeira resulte barata.

À medida que os campos, as matas nativas e os solos agrícolas são invadidos por plantações de espécies exóticas, os

resultados se traduzem - independente de estado ou país - em empobrecimento, degradação ambiental e conflitos no meio

rural e urbano.

É com vistas a esse momento, em que essa região experimenta a entrada no rápido processo de globalização, que se

resolveu conhecer de perto as transformações que vem ocorrendo nesses lugares. Impossibilitados, portanto, de um trabalho

in loco em toda a região da Campanha, definiu-se como área de estudo, o município de Piratini (Mapa 01). Em que pese o

seu processo histórico-cultural ligado à pecuária extensiva19, Piratini tem sido palco de profundas transformações na base

produtiva atual, buscando alternativas à estagnação econômica promovida por aquela atividade.

considerados os impedimentos para a evolução e os quais devem ser rompidos em favor de processos de capitalização dos lugares, aceleração dos

processos, produtivismo, tecnologização da vida e consumo massificado.

19 Piratini destacou-se como capital da República Riograndense, em fins do século XIX, durante a Revolução Farroupilha, assumindo uma

grande importância política na convergência dos interesses de grandes pecuaristas ligados à economia do charque.

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CAMPANHA GAÚCHA E MONOCULTURA: UMA LEITURA SOBRE O IMPERIALISMO “FLORESTAL” EM PIRATINI, RS 108

Mapa 01: Mapa de localização da área de estudo.

Fonte: IBGE, adaptado por SELL, J. (2010)

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CAMPANHA GAÚCHA E MONOCULTURA: UMA LEITURA SOBRE O IMPERIALISMO “FLORESTAL” EM PIRATINI, RS 109

No quadro destas transformações, percebe-se claramente a emergência de um modelo de (des)envolvimento

representando tipicamente um processo de “modernização conservadora”, buscando uma dinamização econômica do

município sem alteração da base fundiária, com intensificação tecnológica e ampliação dos impactos socioambientais

resultantes.

Desse modo, torna-se claro o objetivo do presente trabalho, que procura além de demonstrar a visão hegemônica e

homogênea do processo de desenvolvimento no estado, pretende também descrever e analisar os impactos negativos da

presença do atual modelo sobre as condições naturais e de vida da população local.

Metade sul, metade pobre?

É impossível falar em “metade sul” sem lembrar-se das grandes extensões de terras que ali se concentram. Tão

necessário quanto remeter-se aos latifúndios e às marcas que estes deixaram (e ainda deixam) na sociedade, faz-se

necessário também resgatar alguns fatos mais relevantes na formação histórica do território sul-riograndense, para que se

possa efetivamente compreender como se constitui esta divisão entre o norte e o sul do estado.

Inicialmente, cabe lembrar que a economia do RS sempre se baseou na criação de gado e, para fomentar a produção

de carne e também propiciar a ocupação do território, a Coroa efetivou a distribuição de Sesmarias20. Primeiramente, para os

20 As sesmarias eram vastas extensões de terras, algumas com milhares de hectares, concedidas pelo governo português, mediante

solicitação dos interessados, geralmente a os nobres ou oficiais, desde que comprovassem ter condições de explorá-las. Elas são a origem dos

latifúndios pecuaristas ainda hoje existentes.

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CAMPANHA GAÚCHA E MONOCULTURA: UMA LEITURA SOBRE O IMPERIALISMO “FLORESTAL” EM PIRATINI, RS 110

tropeiros e militares, consolidando assim a criação extensiva de gado nos latifúndios (Pesavento, 1997), não sendo

necessário o seu pagamento, pois as mesmas eram doadas geralmente em troca de favores.

De acordo com Brum Neto (2007), a elevada concentração fundiária impedia o crescimento demográfico e era um

obstáculo ao desenvolvimento da agricultura de subsistência. Os primeiros sinais de mudança desse quadro começam a

ocorrer com a chegada dos imigrantes que pouco a pouco introduziram a agricultura no estado e iniciaram um tímido

processo de mudança da estrutura fundiária.

Para Zarth (2002), a imigração que ocorre no norte do estado, nas áreas de florestas no planalto, só ocorre ali para

não mexer no latifúndio, o qual já havia se estabelecido anteriormente na parte sul do Rio Grande, ele afirma que:

(...) se o governo era adepto da colonização, os latifundiários tinham algumas restrições: colonização sim, mas sem

mexer nas estâncias pastoris... dividir as matas sem mexer nos campos nativos foi a saída encontrada para resolver os

problemas levantados e atribuídos aos latifúndios pastoris... Em 1921, a superfície colonizada, transformada em pequenas

propriedades, era de 34.800 km², conforme informa o Anuário Estatístico do RS daquele ano. E os campos nativos para

criação de gado, segundo informa essa mesma fonte, ocupavam 180.000 km².(ZARTH, 2002, p.72- p.73)

Além disso, para garantir a posse da maioria da terra sob o domínio dos grandes latifundiários e impedir que os

lavradores nacionais, ex-escravos e imigrantes tivessem acesso a terra, instituiu-se no Brasil a Lei de Terras, a qual só

permitia adquirir terra através da compra. Dessa maneira, a Lei de Terras foi fundamental para garantir a existência e o

domínio do latifúndio na paisagem do Rio Grande do Sul. Criaram-se assim restrições legais ao desenvolvimento da

agricultura familiar no país. Para Martins (2004, p. 137), este fato impôs sérios entraves ao desenvolvimento de um mercado

interno mais robusto e manteve o direcionamento da produção das grandes propriedades (e de boa parte da economia

brasileira, até os dias de hoje) voltada ao mercado externo.

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CAMPANHA GAÚCHA E MONOCULTURA: UMA LEITURA SOBRE O IMPERIALISMO “FLORESTAL” EM PIRATINI, RS 111

Desse modo, pode-se notar que o processo de concentração fundiária não é algo recente, mas que decorre do

processo histórico de ocupação do território do Rio Grande do Sul. Todo esse engessamento em torno da grande propriedade

e da pecuária acabou deixando a região da Campanha à margem do processo de industrialização no estado, que iniciou no

final do século XIX, concentrando esse processo especialmente para as regiões de colonização alemã e italiana. Tal

processo, somado às diferenças de produtividade do solo, às diferenças culturais e aos diferentes modos de produção

contribuíram significativamente para a concretização do cenário atual do estado. Cabe lembrar, portanto, que o cenário hoje

apresentado, é o descrito sob o ponto de vista dos números, da economia, não significando necessariamente qualidade

ambiental e de vida.

Todos esses breves apontamentos históricos servem para, antes de tudo, esclarecer que o estado é heterogêneo, que

passou por processos distintos de ocupação e que jamais se tornará idêntico. Sendo assim, de nada adianta a insistência do

poder público e/ou privado em transformar a Campanha idealizando nela um fim comum, acreditando que um dia ela se torne

tão (des)envolvida quanto o planalto norte. A região pode sim se desenvolver, transformar-se em uma referência de qualidade

de vida, ambiental e também de crescimento econômico, porém valorizando suas próprias características, as potencialidades

do seu meio natural e do seu povo. Porém para isso, precisa deixar de ser vista apenas sob o olhar único do capital, de

exploração e de geração de lucro.

O sufocamento da bio-sociodiversidade local: “mais do mesmo”.

Todo esse discurso de “pobreza” que é vendido à população, portanto, é conseqüência do modo único de percepção,

da constatação de um fato ou fenômeno de apenas um único ponto de vista, numa espécie de monocultura racional. Shiva

(2003) corrobora com tal constatação quando afirma que antes de se inserir no solo, uma monocultura domina o pensamento

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CAMPANHA GAÚCHA E MONOCULTURA: UMA LEITURA SOBRE O IMPERIALISMO “FLORESTAL” EM PIRATINI, RS 112

das pessoas, em uma forma de monocultura da mente. Salvo raras exceções, é assim que podemos classificar a sociedade

no geral, numa espécie de monocultura. Uma monocultura, pois todos recebem a mesma semente, devem cultivá-la da

mesma maneira até oferecer os frutos desejados, que também devem ser idênticos uns aos outros, caso contrário, serão

descartados imediatamente. A semente, neste caso, é o pacote de desenvolvimento, fechado, sem qualquer possibilidade de

uma cidade ou região evoluir de uma maneira diferente, a seu modo e de acordo com suas necessidades e capacidades.

Para a semente do desenvolvimento crescer, é preciso „cultivá-la‟ com muito concreto, buzinas, cores, sons, anúncios, luzes,

caso contrário, os frutos esperados não virão, e esta cidade será também descartada, ou classificada como inferior, pobre,

subdesenvolvida, etc.

Essa monocultura mental faz com que todo o potencial de bio-sociodiversidade existente na porção sul do território

gaúcho seja esquecida, negligenciada, pois afinal, ela não gera lucro às empresas, ela não injeta capital no mercado, ela

funciona sob outra lógica, sob outro tempo.

A metade sul do estado, e logo o município de Piratini, coincide com a área de abrangência do bioma pampa. Este

bioma (IBGE apud Suertegaray e Pires da Silva, 2009), é a reunião de “formações ecológicas que se inter-cruzam em uma

formação ecopaisagística única, com intenso tráfego de matéria, energia e vida entre os campos, matas ciliares (de galeria),

capões de mato e matas de encostas”.

Estimativas recentes indicam que esta região é composta de pelo menos 3.000 plantas vasculares, com 450

espécies de gramíneas e 150 de leguminosas, além de 385 aves e 90 mamíferos, sendo parte destas espécies chamadas

endêmicas, pois só ocorrem neste ecossistema. É por isto que os campos pampeanos, na sua composição de flora e fauna,

podem ser considerados tão importantes quanto uma floresta tropical, para a conservação da biodiversidade planetária.

(Picolli e Schnadelbach, 2007)

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No entanto, da sua vegetação campestre e dos seus banhados característicos, restam apenas 39% (Picolli e

Schnadelbach, 2007). Entre os anos de 1970 e 2005, segundo as autoras (op. cit.), estima-se que 4,7 milhões de hectares de

pastagens nativas foram convertidos em outros usos agrícolas, como lavouras e plantações de árvores exóticas. Esta violenta

supressão da vegetação campestre natural do Pampa gaúcho torna-se ambientalmente ainda mais grave diante da imensa

riqueza da biodiversidade nela existente.

É essa diversidade, suas paisagens e a sua cultura que se encontram ameaçadas. A proposta da silvicultura como

alternativa desenvolvimentista contrária as propostas de manutenção da diversidade através do uso diversificado e da

manutenção desse mosaico de paisagens, saberes e fazeres vem revelando o embate. (Suertegaray e Pires da Silva, 2009).

Shiva (2003), conforme já citado anteriormente, não erra no seu propósito, pois inicialmente convenceram as

pessoas/mentes de que eram pobres, subdesenvolvidas, atrasadas e que para serem felizes, para obterem qualidade de

vida, precisariam seguir o padrão da cultura global, dos países e das cidades desenvolvidas. Posteriormente, a monocultura

se instalou no solo, na forma de lavouras de espécies exóticas e passou a ser um sopro de esperança para as mentes

dominadas, afinal, ela iria supostamente transformar a região, (des)envolvendo-a.

No entanto, nestas monoculturas, “não há possibilidade alguma de existir vida diversificada, intercâmbio biológico,

cadeia alimentar e condições naturais que permitam a sobrevivência, até mesmo, do mais rasteiro dos insetos”. (PEREIRA,

2006)

...embora seja um dos pilares de sustentação da moderna agricultura capitalista a monocultura revela, desde o início, que é uma prática que não visa satisfazer as necessidades das regiões e

dos povos que produzem. A monocultura é uma técnica que em si mesma traz uma dimensão política, na medida em que só tem sentido se é uma produção que não é feita para satisfazer quem produz. Só um raciocínio logicamente absurdo de um ponto de vista ambiental, mas que se tornou natural, admite fazer a cultura de uma só coisa. (Porto-Gonçalves, p. 28,2006).

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CAMPANHA GAÚCHA E MONOCULTURA: UMA LEITURA SOBRE O IMPERIALISMO “FLORESTAL” EM PIRATINI, RS 114

Chomenko (2007) contribui salientando que, ao mesmo tempo em que o Brasil depende diretamente do uso de bens

da biodiversidade, também é o país campeão mundial de perda de biodiversidade. Para ilustrar a situação, a pesquisadora

alerta trazendo o exemplo do Rio Grande do Sul que, em função de sua diversidade de clima, solos, relevos, possui

diferentes ecossistemas que, além do processo histórico de ocupação, possibilitam distintos usos antrópicos. Na distinção

clássica entre norte-sul, a primeira caracteriza-se pela alta concentração antrópica, pelo seu elevado grau de

(des)envolvimento e pela utilização intensa do solo com agricultura o que acaba resultando na descaracterização do Bioma

Mata Atlântica. Do outro lado, a vegetação e animais presentes na metade sul do estado, também vem sendo identificada

uma “matriz altamente preocupante, que se caracteriza em termos de cenários e tendências futuras a expansão da

degradação”.

Esses processos de desenvolvimento que vem sendo implantados na região, buscando benefícios imediatos, podem

levar a conclusão de que o Bioma Pampa sofrerá as mesmas conseqüências que o Bioma Mata Atlântica na metade norte do

estado, tendo em vista as ações não sustentáveis que vem sendo efetuadas na região, tanto sob aspectos socioeconômicos,

quanto ambientais e culturais. Além disso, a implantação de um modelo totalmente dependente de fatores externos, desde

aquisição de mudas, insumos agrícolas, comercialização até variações em bolsas de valores, não traz garantia nenhuma de

melhoria de vida para a população local. Ao contrário, o cultivo de monoculturas de espécies exóticas em grandes extensões

de terra, mantém a estrutura fundiária (baseada no latifúndio, na desigualdade e na concentração) e conduz a graves

conflitos, que tenderão a ser cada vez mais acentuados, seja pelo uso de recursos escassos, seja pela posse da terra ou

ainda pela própria perda da identidade cultural regional, como discutiremos a seguir.

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CAMPANHA GAÚCHA E MONOCULTURA: UMA LEITURA SOBRE O IMPERIALISMO “FLORESTAL” EM PIRATINI, RS 115

Trabalhadores, empresas e meio ambiente em uma região de plantações de acácia

Para tentar obter algumas respostas e informações mais concretas sobre as questões levantadas até aqui, realizou-se

um trabalho de campo ao município de Piratini. Esse trabalho permitiu que se percebessem quais as alterações que a

inserção do modelo econômico agroexportador realiza sobre o espaço, contrapondo-se ao perfil do discurso oficial dominante

e permitindo entendê-lo como palco de uma disputa entre modos de usar e viver a terra, que se opuseram e que ainda se

opõe.

A partir das observações e dos relatos dos moradores e demais sujeitos envolvidos na pesquisa, essa região pode ser

descrita sumariamente como sendo um lugar ocupado em sua maior parte por descendentes indígenas e que se manteve a

margem do modelo de desenvolvimento constituído há mais de 50 anos. Sendo assim, conserva uma série de características

e elementos, como a paisagem, os recursos naturais, a cultura, algumas formas de produção “pré-modernas” (justamente por

não ter incorporado os padrões da modernização da agricultura) e que no seu conjunto constituiu um potencial enorme para

estratégias de desenvolvimento realmente sustentável.

O esgotamento das possibilidades de extração mineral de cassiterita na comunidade, atividade principal dos

moradores até a década de 1980-1990, coincidiu com a entrada das primeiras lavouras de acácia na região. Em um primeiro

momento, a chegada das empresas parecia ser a solução dos problemas da comunidade, visto que esta se localiza em uma

área de terrenos muito íngremes e de baixa fertilidade para produção agrícola. Porém, segundo relatos dos próprios

moradores, foi apenas na primeira plantação e (após sete anos) na primeira colheita que a empresa fez uso de mão-de-obra

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local. A falta de oportunidade e de incentivo para permanência no campo acabou por estimular os moradores a migrarem

para cidade, vendendo suas terras a um preço irrisório às empresas de “florestamento21”.

Compreendido o processo de inserção das lavouras nas comunidades, buscamos esclarecer o processo produtivo

através de três eixos: impactos ambientais, impactos na sociedade e na cultura e políticas públicas. Para isso, ouviram-se

quatro diferentes segmentos da sociedade envolvidos no processo: 1 - produtor de acácia, 2 - empresa(s), 3 - produtor de

carvão e 4 – informantes qualificados da comunidade.

Antes de aprofundar as discussões acerca das conseqüências causadas pelo modelo em estudo, é importante

contextualizar e descrever brevemente cada um dos informantes. No primeiro caso, trata-se de um produtor, advindo de outra

cidade, já aposentado, cuja renda para sobrevivência (sua e de sua família) não depende do meio rural, tornando as

atividades ali desenvolvidas em hobbie, como ele mesmo afirma. O tamanho total da propriedade é de 4500 hectares, porém

destes apenas 1500 hectares são destinados a produção de acácia, os demais abrigam criação de gado zebu, búfalos e

eqüinos de raça. Não fugindo à realidade local, o proprietário adquiriu vários lotes de terra, de diferentes famílias que

abandonaram o campo, pagando de R$10,00 a R$40,00 por hectare.

O segundo caso remete-se à empresa que atua especificamente na região sudeste do estado. Ela atua na área

florestal, especificamente no plantio de acácia e exporta em média, 750 mil toneladas de cavaco de madeira para o mercado

asiático por ano. Sua sede fica no município de Montenegro (RS) com escritórios em 20 outros municípios, incluindo Piratini,

21 O termo florestamento é reproduzido no texto por ser o modo como tais empresas se identificam, porém entre aspas pelo fato de não

acreditar-se que tais lavouras de árvores constituam uma floresta. “Una floresta es un sistema complejo, que se autoregenera y que incluye suelo,

agua, microclima, energía y una amplia variedad de plantas y animales en mutua relación. Una plantación comercial, por el contrario, es un área

cultivada, cuyas especies y estructura han sido dramáticamente simplificadas para producir sólo unos pocos productos, ya sea madera, leña, resina,

aceite o frutas.” (Carrere e Lohmann, 2006).

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CAMPANHA GAÚCHA E MONOCULTURA: UMA LEITURA SOBRE O IMPERIALISMO “FLORESTAL” EM PIRATINI, RS 117

e totaliza uma área plantada de 57 mil ha no estado. É importante ressaltar que esta empresa é responsável direta apenas

pela etapa de controle das pragas (exige pessoal capacitado) e pela colheita, em função do uso de uma máquina de alto valor

e manutenção. As demais etapas, como cultivo das mudas, preparo do solo, plantio, corte, baldeio (empilhamento) e

transporte é realizado por empresas terceirizadas. Quando da realização do trabalho de campo, as áreas da empresa na

região estavam passando pelo processo de baldeio, e encontravam-se no local várias empresas menores, todas de outros

municípios, inclusive de outro estado.

Quanto ao produtor de carvão, salienta-se que este é morador nascido na comunidade e que trocou o cultivo de feijão

pelos fornos de carvão. Não possuindo plantação própria, apenas compra a madeira descartada pela empresa, galhos e

troncos que estão fora do padrão de exigência (metrinho) e as queima em 5 fornos próprios. Segundo o produtor, “cerca de

5% da madeira colhida em cada propriedade vai para o metrinho”.

Com relação à comunidade, visitou-se o terceiro subdistrito Capela, dentro do qual a localidade de “Paredão” divide-se

em pequenas comunidades, Costa do Bica, Rincão do Laço e Minas do “Paredão”. Essas comunidades encontram-se a cerca

de 100 km de distância da sede do município, o que culminou em um relativo distanciamento das ações do poder público.

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CAMPANHA GAÚCHA E MONOCULTURA: UMA LEITURA SOBRE O IMPERIALISMO “FLORESTAL” EM PIRATINI, RS 118

Figura 01: Casa comumente encontrada na comunidade do “Paredão”. Ao lado, seu morador, descendente de indígenas escravizados.

Fonte: Sell, J.C., Trabalho de Campo.

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CAMPANHA GAÚCHA E MONOCULTURA: UMA LEITURA SOBRE O IMPERIALISMO “FLORESTAL” EM PIRATINI, RS 119

Os sujeitos em questão, conforme já salientado anteriormente, são resultado da miscigenação entre índios

guaranis/charruas e descendentes de portugueses, africanos e espanhóis. Estes se dedicam às atividades agrárias, onde

merece destaque sua organização produtiva que é baseada na pecuária familiar, na tradicional criação de ovinos e bovinos e,

uma agricultura de subsistência com destaque para a produção de milho e feijão, que representam a principal rede comercial

e social desses agricultores em escala regional. Cabe salientar que grande parte dos moradores das comunidades dali não

possui documento oficial de propriedade da terra, podendo ser identificados como posseiros.

A partir dos relatos dos segmentos acima citados, foi possível descrever um panorama geral da situação que se

encontra essa região do município de Piratini. Ousa-se aqui afirmar que esta caracterização não foge da realidade

encontrada no restante da Campanha Gaúcha.

Primeiramente, abordar-se-ão questões relativas às interferências que tais lavouras de acácia trazem para o meio

natural local. Mesmo não sendo tão „vilã‟ como o eucalipto, a acácia também é uma espécie exótica, e em função

principalmente do modelo como vem sem implantada, acaba por trazer as mesmas conseqüências e impactos que as

lavouras de eucalipto ou pinus.

A primeira característica, que burla não só a legislação ambiental, mas as leis da própria natureza é o modo de plantio.

Por ser uma área de declividade acentuada, seria necessário o plantio em curvas de nível, o que certamente diminuiria a

perda de solo por erosão e/ou lixiviação. Na figura 2D o sentido dos tocos que restaram após a colheita demonstram

claramente o sentido da plantação. Além disso, o sub-bosque destas áreas com densa invasão é ralo, aumentando a

suscetibilidade para erosão e, passado o corte/colheita, as grandes áreas ficam expostas às ações da água e do vento,

aumentando ainda mais o processo erosivo. Mochiutti (2007) alerta também para o fato de que são estas áreas de plantio

que apresentam maiores requerimentos por água em relação à vegetação nativa, o que acaba reduzindo o fluxo das águas e

a vazão dos rios.

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CAMPANHA GAÚCHA E MONOCULTURA: UMA LEITURA SOBRE O IMPERIALISMO “FLORESTAL” EM PIRATINI, RS 120

As lavouras ocupam topos de morro (Fig. 2B), encostas dos arroios e rios (Fig. 2A) e até mesmo as estradas,

causando graves conseqüências nas instalações da rede de energia elétrica e na circulação de pessoas. Se não bastasse,

em alguns trechos, a empresa construiu portões/porteiras interditando a estrada, dando a entender que ao ultrapassar a

barreira, adentrava-se em uma área particular.

Figura 2: Impactos visíveis das lavouras de acácia no ambiente natural.

Fonte: Sell, J.C. – Trabalho de Campo

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Como pode ser observada na figura 2C, também não há zona de amortecimento entre uma área plantada e uma área

de mata nativa. Elas estão se sobrepondo sem nenhuma preocupação com a conservação de corredores ecológicos, com o

habitat natural da fauna e da flora local ou ainda com a própria dinâmica dos ecossistemas. Outro exemplo que pode ser

vislumbrado é a invasão das caturritas (consideradas uma praga pelos moradores), que são atraídas pelas lavouras de

acácia e ao entrarem na mata nativa, alteram a dinâmica natural das espécies que ali habitam. Essas interferências fazem

com que muitos animais deixem a mata nativa, acuados, e acabam invadindo as propriedades da região. Portanto, essa é a

compreensão apenas da população local: “Os bicho tão tudo assustado, já não tem mais pra onde ir, tão acabando com os

mato, aí aparecem aí no pátio das casa”. Já os técnicos da empresa, fotografam pacas, veados-virá, gatos-maracajá, lontras,

quatis, e se orgulham afirmando: “Nunca tinha desses bichos por essas áreas, são animais que estão em risco de extinção e

que nós cuidamos aí nas propriedades”. Obviamente tais espécies nunca eram vistas tão comumente pela região, pois

estavam abrigadas em seu habitat natural, não necessitando buscar alimento ou refúgio em áreas habitadas.

Além da fauna, algumas espécies da flora que se encontram nas áreas de plantio de acácia estão ameaçadas de

extinção, tais como aroeirão, pinheiro-brasileiro, butiá, canela amarela, etc. Segundo Mochiutti (2007) a acácia-negra é

considerada uma invasora de ambientes naturais, sendo classificada entre as 100 espécies exóticas com maior potencial

invasor do mundo. Segundo o autor, diversas características biológicas a capacitam como invasora, dentre os quais se

destacam: grande produção de sementes que podem ser dispersas pela água e outras formas não intencionais; sementes

apresentam dormência, permanecendo viáveis por longos períodos; queima e distúrbios no solo induzem germinação e o

estabelecimento de plantas, além do seu rápido crescimento.

Sendo assim, uma das maiores preocupações com as plantações florestais é a capacidade destas em causar impactos

pela alteração de habitat naturais, redução da biodiversidade e alteração fisionômica da paisagem.

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Figura 03: A - Forno usado para produção de carvão e B – Material excedente na lavoura gera impacto na paisagem.

Fonte: Sell, J.C. Trabalho de Campo

Outra característica que não pode deixar de ser lembrada, e que inclusive está muito presente nas reclamações da

comunidade local, é a fumaça, tanto a oriunda da queima da madeira para produção do carvão (Fig. 3A) quanto a da queima

dos galhos e restos das árvores que não tem aproveitamento comercial (Fig. 3B). As próprias empresas assumem a queima

ilegal deste material, mesmo quando a Secretaria de Estado de Agricultura e Abastecimento institui através da resolução 026

de 2002 que “É expressamente proibida a queima de qualquer material vegetal à guisa de limpeza de área, e de material

lenhoso quando seu aproveitamento é economicamente inviável.”

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CAMPANHA GAÚCHA E MONOCULTURA: UMA LEITURA SOBRE O IMPERIALISMO “FLORESTAL” EM PIRATINI, RS 123

Já se tratando de questões ligadas ao eixo sociedade e cultura, torna-se primordial ressaltar a expulsão da população

rural e a especulação do mercado imobiliário. Se antes as populações abandonavam o campo em função do esgotamento do

solo, da falta de recursos, assistência e incentivos para produção agrícola e pelo fim da exploração mineral local, hoje elas

são “tentadas” a vender suas propriedades para as grandes empresas que pagam valores altíssimos. Propriedades que antes

eram comercializadas a R$10,00 o hectare, hoje são compradas por até R$300,00.

Considerando o fato de que as propriedades familiares das comunidades não passam dos 50 ha, as áreas da empresa

e até mesmo do proprietário poderiam ser ocupadas por dezenas de famílias. De acordo com o relato do produtor local, o

plantio das mudas foi realizado com mão-de-obra local, cerca de 8 pessoas, e com auxílio de 4 tratores, por um período de

aproximadamente 2 meses. Ao considerar-se o tamanho médio da família brasileira, em torno de 3,3 pessoas (IBGE, 2000), a

mesma área (1500ha) que empregou 8 pessoas, por um breve espaço de tempo, poderia ocupar mais de 100 pessoas,

durante todo o ano produtivo, gerando emprego, renda e alimentos.

Isso demonstra o quão ínfimo é o retorno desse modelo para a comunidade local. Avançando nos exemplos, pode-se

citar o fato de que na primeira colheita, a empresa (para cumprir com seu discurso desenvolvimentista) levou para a região

400 trabalhadores para atuarem no corte das árvores. Hoje, independente do tamanho da área cultivada, essa função é

realizada apenas por uma máquina e um funcionário por turno de trabalho. O processo de terceirização também contribuiu

muito para a não inserção da comunidade local no processo produtivo, pois as empresas vêm de outros municípios, já com

suas equipes de trabalho montadas. Essa diminuição do compromisso com as comunidades locais e com a geração de

empregos propriamente dita pode ser contemplada na tabela que segue (Fig. 04). Nota-se uma significativa diminuição do

número de colaboradores da empresa, tanto diretos quanto indiretos, demonstrando que não é o processo de terceirização o

único responsável pela diminuição da oferta de emprego pelas empresas. Além disso, o aumento das despesas com

atendimentos médicos e/ou odontológicos per capita, ou seja, por colaborador direto ou indiretamente (R$214,00 por pessoa

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em 2006 e R$312,00 em 2009), além de representar um aumento nos custos destes serviços, pode representar um aumento

de exposição aos riscos por parte dos trabalhadores. Isso pode justificar-se em partes pela intensificação do contato desses

trabalhadores com máquinas, em decorrência de todo processo de tecnologização do processo produtivo e também pelo

contato com agrotóxicos, cada vez usado em maior quantidade nas lavouras.

Figura 04: Investimento em recursos humanos da empresa

Fonte: Resumo Público do Monitoramento

Portanto, os únicos moradores da comunidade que se envolvem de alguma maneira com o processo de produção de

árvores, são as cinco pessoas que trabalham na queima do carvão e que são contratadas, sem nenhum registro oficial, pelo

próprio morador da comunidade.

Essa indiferença com relação à comunidade local é reforçada ainda mais pelo fato de que a empresa não compra a

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produção de áreas menores que 30 ha. Sendo assim, os pequenos agricultores que resistiram a onda de abandono do campo

e que acreditaram no desenvolvimento através das lavouras de árvores, acabam frustrados por não terem, depois de sete

anos de espera, mercado para vender sua produção.

Por esse e por outros motivos - como o sucateamento das estradas pelo excessivo peso das máquinas e carretas

carregadas que circulam na região e pela degradação da rede de energia elétrica, ocasionada pela queda de árvores - que

atualmente a população local se posiciona extremamente contra tais lavouras. Em seus relatos, questionam-se

principalmente com relação a não geração de renda e a falta de alimentos (produção) na região. Nota-se que toda a

expectativa que fora criada quando da inserção das lavouras na comunidade, hoje já não se faz mais presente. Inicialmente

acreditava-se que haveria uma melhoria nos padrões de vida dos moradores, que estas lavouras trariam realmente o

desenvolvimento para a região, porém, com o passar dos anos, a própria população vem se questionando sobre quais as

vantagens dessa mudança. Percebem, portanto, que nenhuma mudança efetivamente se concretizou; que sua situação é de

total dependência de programas sociais do governo e muito pouco tem sido feito por parte do poder público para melhoria das

condições locais.

Assim, é possível adentrar no debate em torno das políticas públicas que vêm gerindo o modelo atual de

(des)envolvimento em implantação na metade sul do estado. A falta de programas que incentivem a organização da

comunidade em torno de seus próprios objetivos, necessidades e potencialidades, acaba por não melhorar as condições de

vida daquelas populações, intensificando sua saída do campo. Por outro lado, o conformismo com a situação de pobreza, de

subdesenvolvido, que lhes foi plantado em suas mentes, acaba por impedir um processo de mobilização e de luta coletiva

para reivindicar mudanças/melhorias.

Acomodado diante dessa desorganização de energia, de força e de potencial social, o poder público acaba cedendo,

aliviado, às grandes empresas - que com auxílio pesado da mídia - pressionam a todo o momento, clamando por incentivo e

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CAMPANHA GAÚCHA E MONOCULTURA: UMA LEITURA SOBRE O IMPERIALISMO “FLORESTAL” EM PIRATINI, RS 126

afirmando-se como sendo as portadoras da chave da evolução, do (des)envolvimento.

Considerações finais

O modelo de desenvolvimento adotado para a metade sul é reflexo de um processo infindável de busca que já

acontece há mais de meio século e que somente agregou problemas para a maioria das sociedades que o adotou. É chegada

a hora da superação desse “paradigma” da modernidade, pois para que uma sociedade sustentável realmente exista, são

necessários muito mais do que a acumulação de bens e serviços; é preciso pensar de uma maneira qualitativa na qualidade

de vida e na felicidade das pessoas. Vai muito além das relações materiais de mercado estabelecidas pelas nações a nível

global; é necessário voltar-se para uma escala mais local, visando a subsistência da população através do que lhes é tido

como importante, como essencial. Para que uma real sustentabilidade exista, é preciso que o sistema econômico esteja

subordinado às leis naturais e aos critérios de respeito e dignidade humana.

A subordinação histórica do território sulriograndense à lógica capitalista tem mostrado as inúmeras tentativas

frustradas e conseqüências negativas que a adoção de pacotes externos representa. Sejam no norte ou no sul do estado,

pacotes desenvolvimentistas, totalmente dependentes e prontos, muito pouco contribuem para a melhoria de vida da

população local. Podem até possibilitar o acesso de determinados grupos sociais a „regalias‟ materiais, a uma pseudo

qualidade de vida, porém já é possível observar fragilidades nesse processo, sejam elas a curto, médio ou longo prazo, nas

questões sociais ou ambientais (se é que são diferentes). Mesmo assim, com índices de violência, criminalidade, suicídio e

doenças psicológicas aumentando nessas áreas ditas (des)envolvidas, ainda insistem [poder público e/ou privado] na

implantação do mesmo modelo na porção sul do estado. Uma região que possui outro processo de ocupação histórica, outras

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CAMPANHA GAÚCHA E MONOCULTURA: UMA LEITURA SOBRE O IMPERIALISMO “FLORESTAL” EM PIRATINI, RS 127

características naturais, outro povo, outra cultura, e que está sendo obrigada a engolir um programa de (des)envolvimento, e

aceitar que outras pessoas digam como e quando elas devem sentirem-se felizes.

Assim, é necessário reafirmar que a transformação em sua totalidade depende de alternativas que contestem os

impactos e as limitações advindas com os modelos de desenvolvimento e modernização impostos. Para a sustentabilidade, o

que efetivamente se requer, são ações que dialoguem com o lugar e com os do lugar, e não que se imponham do alto, de

fora.

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TRABALHO E MEMÓRIA NA CAMPANHA GAÚCHA 129

TRABALHO E MEMÓRIA NA CAMPANHA GAÚCHA.

Letícia de Faria Ferreira Universidade Federal da Fronteira Sul

Jussemar Weiss Gonçalves Universidade Federal do Rio Grande

Introdução

O presente artigo trata de descrições das atividades que exercem trabalhadores rurais do pampa, espaço cultural que

atravessa as fronteiras do Uruguay, Brasil e Argentina e caracteriza-se por um certo modo de vida e ofício dos gaúchos.

Apresentamos relatos que nos conduziram a esse modo peculiar - e quase extinto - de conciliar o trabalho, a lida do campo, o

convívio com os animais, com a vida, os hábitos e os gostos. Assim, o recorte advém a partir da memória de um cantareiro –

trabalhador que reconstrói cercas de pedra nos campos da região da campanha. O nosso projeto de estudos vai traçando

paralelos com o documentário etnográfico que filmamos sobre sua vida e trabalho, onde poderemos observar como, em seu

oficio, algumas linhas transversais entre a técnica do passado e os artefatos do presente se hibridam. Mesmo que na fronteira

de se extinguir, o ofício do cantareiro como de tantos outros – domadores, alambradores, esquiladores – são formas de

trabalho que constituem certas identidades na região do pampa e dão sentido a vida de muitos desses trabalhadores.

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TRABALHO E MEMÓRIA NA CAMPANHA GAÚCHA 130

Anotações sobre a memória.

Diferentemente de outras fontes históricas, a memória é uma fonte carregada de contingências, podendo, no decorrer

do tempo, ser atravessada por inúmeras variáveis. O conhecimento, como artefato da memória, é capaz de transportar em si

diferentes momentos, circunstancias e eventos e colocá-los frente à luz de interpretação sempre renovadas. O relato de uma

profissão, seus percursos e contextos talvez seja um campo interessante para se perceber as transversais que o decorrer de

uma vida coloca para a história. Algo como uma espiral compõe o trabalho de um artesão na medida em que envolve vida,

labor, tempo e gosto.

No caso dos trabalhadores do pampa – peões, campeiros, domadores ou simplesmente gaúchos – essa transcorrência

do tempo histórico foi bem observada por Bioy Casares quando diz “El tema abunda en dificuldades. Las generalizaciones,

las afirmaciones mismas, resultan problemáticas. Ante todo, El gaucho há tenido uma vida prolongada y, como todo longevo,

ha cambiado mucho.[...]cuando no lo encontramos,¿ no estaremos buscando al de nuestra infancia, o al de la tradición de

nuestra casa y de nuestro libros?” (Casares, 1999, p.37).

Observar as narrativas dos atuais gaúchos pode parecer a princípio um labirinto onde certas trilhas já foram fechadas

tornando-se um beco sem saída enquanto outras reinventam novas modalidades de trabalho, reapropriando-se de saberes

do passado para compor outras modalidades de vida e trabalho, com técnicas e arranjos do presente. Assim, ao

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TRABALHO E MEMÓRIA NA CAMPANHA GAÚCHA 131

percorrermos esses labirintos vamos encontrando explicações singulares para as escolhas de vida dos trabalhadores da

campanha gaucha22.

A proposta deste artigo é apresentar a descrição do trabalho de um domador tradicional de cavalos que ainda persiste

enquanto ofício, apesar das adversidades das novas técnica (diferente da modalidade atual chamada de doma racional) .

O DOMADOR

“Recorremos a testemunhos para reforçar ou enfraquecer e também para completar o que sabemos de um

evento sobre o qual já temos alguma informação, embora muitas circunstâncias a ele relativas permaneçam obscuras

para nós”.(Halbwachs, 2006, p.29).

Morando em uma pequena casa dentro dos campos23 que compõem a Fazenda Bela Vista onde trabalha, Basílio

divide seu tempo entre os afazeres típicos de um campeiro – sejam eles: tirar leite, cuidar das criações domésticas,

camperiar, carnear ovelhas para o seu consumo e também da casa do patrão, cortar lenha, entre outros – e a doma de

22 Estou chamando aqui de trabalhadores da campanha gaúcha aqueles peões que residem nas fazendas ou possuem pequenas

propriedades e que intitulam sua profissão como de campeiros.

23 Campos: os campos são potreiros extensos que ocupam parte da propriedade agrária. A expressão campo advem do período anterior aos

cercamentos do pampa. Neste momento o campo era a parte do pampa, da qual alguém se adonava. Usamos a expressão pampa para a região que

abrange todo o pais Uruguai, as regiões da Argentinade Entre-Rios, Corrientes, Buenos Aires, Cordoba e Santa fé e La Pampa. No Brasil a região que

compreende a fronteira do Estado do Rio Grande do Sul com o Estado do Uruguai, e com a Argentina até a região conhecida como missioneira.

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TRABALHO E MEMÓRIA NA CAMPANHA GAÚCHA 132

cavalos ainda xucros. Cada desses seus afazeres mereceria uma descrição mais densa, mas neste texto optamos por

descrever a doma, deixando para outro momento os relatos de suas outras tarefas.

Enquanto o dia ainda mal e mal desponta é hora de levantar, o horário da natureza é incorporado, visto como o mais

apropriado para as lides campeiras – começando pela atividade de tirar leite. Em seguida tocar os cavalos, encilhar e sair

para o campo para cuidar de afazeres relacionados com o gado e as ovelhas. A manha transcorre geralmente a trote de

cavalo, no abrir porteiras e fechar porteiras, entrar em potreiro, laçar e curar algum animal eventualmente “abichado”

(doente). Antecipa-se a todos esses momentos, a hora do mate. Movimento inicial, fazer o fogo no pequeno fogão à lenha e

dependendo do tempo disponível esperar que a água aqueça para mate junto a chapa de ferro, porém, caso esteja com

pressa, Basílio não hesita em acionar o fogão a gás para antecipar o horário do mate.

Durante o ano, normalmente no período de verão Basílio recebe alguns cavalos para domar. Alguns são provenientes

da própria fazenda onde trabalha, outros são trazidos vizinhos ou outros que reconhecem seu trabalho de domador. Domar

um cavalo que ainda não teve nenhuma ou pouca domesticação, requer cerca de um ano de trabalho. Sendo normalmente

iniciada no verão para que o animal resista mais, – considerando que quando o potro (cavalo em fase de doma), não é

racionado com alimentação especial e ficando apenas “ a campo” como dizem ( ou seja, em sua maioria os potros ficam

soltos no campo nativo, alimentando-se apenas do pasto) – pois sofre um processo de degradação física intenso pelo esforço

e pelo frio e, muitas vezes, a atividade precisa de um intervalo nos meses mais rigorosos do inverno.

Em janeiro iniciou a doma da égua Geada. Pouca domesticada, apenas algumas vezes foi trazida a mangueira onde

recebia alguma atenção. As primeiras ações de Basílio com a potra é amarrá-la a um forte poste que fica estrategicamente

situado na saída da mangueira. Por cerca de dois ou três essa é a prática, deixá-la ali várias horas, como se estivesse se

curtindo, o que segundo Basílio tem o efeito de deixá-la menos resistente por que ao forçar contra o poste com a cabeça

presa a um buçal acaba ficando mais sensível por “estar já sentida de se golpear solita”, explica nosso domador. O segundo

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TRABALHO E MEMÓRIA NA CAMPANHA GAÚCHA 133

passo do que Basílio chama de “doma rústica” é envolver quase todo o corpo da égua Geada com tiras de couro conhecidas

como maneador. Esse passo tem como finalidade não só de ir acostumando-a com os arreios como também tirar as cócegas

e deixá-la mansa para ser tocada em qualquer parte, das patas as orelhas. Uma espécie de litania – “ quieta”, “calma, calma”,

“psit”, “não te judia” etc – vai sendo proferida pelo domador enquanto agilmente envolve o animal com o maneador. Para um

observador que não está acostumado com as lidas, o conjunto de ações que compõe o processo de doma, aparece como

exercício da violência, mas é preciso notar que está prática se insere em um estilo de vida na qual a rusticidade é um

elemento cotidiano.Neste sentido a aproximação do domador do cavalo,é também uma aproximação com sentido humano,

isto é, procura conhecer, julgar o outro, para saber com quem se está lidando.

O Gado, O Cavalo e o Homem na formação da Cultura do Pampa

Com a chegada do cavalo e do gado vacum a partir dos séculos XVI e XVII começou um processo de constituição do

que chamamos de cultura do pampa. Esta cultura esteve centrada na estância, na pecuária e na utilização do cavalo. O tipo

humano que vai caracterizar essa cultura é o gaucho, gaúcho24. Este sujeito é resultado de um conjunto de variáveis sócio-

culturais e psicológicas que vão moldar sua forma de ser e de viver. Vivendo longe das cidades em meio ao pampa tocando o

gado e montando os cavalos que encontrava disperso em manadas o gaucho vai construir um estilo de vida que trás a marca

da relação que ele mantem com um tipo especifico de ecosistema, isto é, o pampa. É inegável que sem a presença das

imensas pradarias que se tornaram próprias a cultura da pecuária, ou seja, a criação de bovinos , ovelhas e cavalos, o

gaucho enquanto uma construção particular e singular da prática da cultura do vaqueiro, não teria existido. Como sabemos

houveram outras formas de vaquejar, as quais não seria correto nomear o sujeito que a faz como gaucho, gaúcho.

24 Usaremos ora gaúcho, ora gaucho, entendemos que englobam a mesma prática.

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TRABALHO E MEMÓRIA NA CAMPANHA GAÚCHA 134

Esta cultura se desenvolve em meio, então, a uma constante disputa com a natureza, no sentido em que, o gaucho

tem que cotidiamente arrancar o seu sustento. O seu sustento, isto é,sua alimentação, vestimenta, e meio de locomoção,

como também a moradia,ele fazia a partir de um conjunto de habilidades que se constituíram a partir mesmo da vivencia

naquelas paragens. O gaucho surge como resultado da penetração do gado no pampa, surge como um sujeito que dispõe de

si,sem precisar empregar-se para sobreviver, o que na época, em outras partes do mundo seria impossível, na Europa, por

exemplo, começava o longo processo de constituição do trabalho assalariado, que é total submissão do sujeito trabalhador as

demandas da produção. Esta possibilidade de viver sem ser condicionado por algum tipo de relação oficial se dá partir da

presença de grandes rebanhos nas regiões do pampa. Com alimento farto a sua volta com os meios de locomoção também a

disposição, o sujeito que se constituirá em gaucho, precisa apreender as formas de interagir com a natureza. Dessa interação

entre o humano e o pampa, habitado pelos rebanhos de gado e cavalo, brotará esse tipo humano: O gaucho, gaúcho. As “

Vaquerias” que nada mais eram que caça ao gado cimarron, são momento do desenvolvimento do aprendizado da prática

guachesca na visão de Coni25. Nestas caçadas ao gado os gauchos foram desenvolvendo as habilidades necessárias ao tipo

de vida que se inaugurava naqueles momentos

Esta interação é o desenvolvimento de habilidades necessárias a reprodução da existências nestas áreas de

pradarias: saber montar é uma prática muito importante, pois com se venceria enormes distancias em busca do gado, ou

mesmo, para simples locomoção de um lugar a outro,por isto a equitação pampeana se torna uma arte no que ao conjunto de

saberes e habilidade que ela envolve. Depois desse saber ligado a montaria, o conhecimento do terreno, da natureza. Em

meio a um mar verde, como orientar-se, a não ser a partir de uma habilidade de marcação visual de pontos de apoio que

servem de balizas nas travessias desses campos. O vaqueano, nome dado aquele sujeito que sabe locomover-se com

25 Coni,Emilio. História de las Vaquerias de Rio de La Plata: 1555-1750. Buenos Aires, Devenir,1956

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TRABALHO E MEMÓRIA NA CAMPANHA GAÚCHA 135

segurança no imenso território do pampa. Mas não basta saber atravessá-lo, é preciso conhecê-lo, se assim posso dizer por

dentro, isto é, conhecer os arroios, as passagens naturais entre as coxilhas, os lugares nos quais os rios dão vão, enfim este

conhecimento se constitui em um processo de experimentação concreta e cotidiana na qual o sujeito se faz ao apreender

esse saberes e modifica o seu entorno ao saber. Em um mundo ainda sem cercas artificiais, o conhecimento de possíveis

limites naturais é vital na formação do rodeio.

As habilidades acima formam um conjunto de saberes que permitem a vida nesta região, mas é preciso ressaltar que

este conjunto se realiza a partir de uma mediação violenta, pela violência. A violência era a forma, o jeito da realização

dessas práticas, poderia se dizer a violência no meio do pampa instaura uma forma de vida. Notamos o choque que causa

aos viajantes que passaram pelo pampa em várias épocas essa vida violenta. Violência na condução dos animais, violência

na forma do abate, violência no estilo da doma, e por fim a presença da violência no convívio humano. De todas as formas de

violência comuns a vida do gaucho no pampa a que mais longeva tenha sido a doma. As formas de abate se modificaram,

ninguém mais usa desgarrodear, ou degolar em meio ao campo,como também ao se tocar o gado de campo a campo ou

para potreiros os rebenques e relhos perderam seu lugar para uma conduta mais calma e que protege o animal,isto é, o

investimento do dono, do estresse.

A Doma

Mas a doma persiste, não, apenas, por que as formas de doma racional aparecem ao redor da segunda metade do

século XX, mas em função da forma como o gaucho constitui sua humanidade. Escrevemos mais acima que a vida do

gaucho se constitui pela violência, isto é, é ela que articula as práticas e os sentidos da vida. Ela a violência, está presente

em todos os momentos: na lida, nos conflitos entre os sujeitos, na relação direta dos humanos com a natureza, em suma a

violência ou uma versão bruta da convivência tornam possível a existência no pampa. Mas esta violência não é uma guerra

constante, não estamos nos referindo a isso, mas um estilo áspero, agressivo mesmo de convívio, no cotidiano.

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TRABALHO E MEMÓRIA NA CAMPANHA GAÚCHA 136

A doma é um conjunto de habilidades que se constituíram ao longo de uma prática de mais de dois séculos de convívio

com as manadas de cavalos selvagens no pampa. O processo de domesticação envolve mais do que habilidades,digamos

práticas, apenas, mas um tipo de tato,de sensibilidade que faz com que o domador seja uma artesão especial, dono de um

saber particular, embora circule entre todos. O que queremos dizer é que todo o gaucho pode domar,o que é lógico em meio

ao pampa não poderia esperar por alguém que só realizasse este serviço, mas logo o processo da doma tornou-se um tipo

de especialização no universo da gauchesca. Existem certos domadores que são requisitados pelas suas habilidades em

preparar o cavalo, deixa-lo pronto, ou de uma forma rápida reconhecer aquele animal no qual a doma não terá o resultado

desejado.

Esses domadores,são portadores de um saber no qual mesclam a violência com uma serena capacidade de escutar e

perceber as fases da doma na qual o cavalo está passando. O domador percebe a partir de suas habilidades para o cavalo

está indo na doma, todos os seus gestos, que vistos de fora parecem ou descabidos ou mera violência gratuita,seguem um

método concreto no qual a experiência acumulada durante anos se reverte em saber que mostra segurança no que faz.

Mas a doma não é apenas uma realização de um saber geracional, passado de pai para filho, é como todo trabalho do

artesão uma relação. Relação no sentido em que,que não se restringe a aplicação de técnicas das quais resulta o cavalo

domado, é antes de tudo um convívio com o cavalo a ser transformado.

Este convívio espelha a luta do humano na construção de sua humanidade, de seu lugar no imenso outro que

chamamos de natureza. Esta luta, de combates agressivos e de afagos demorados, de quebra de queixo e de terno contato,

revela uma luta silenciosa na qual o humano tranformando o cavalo-fera, em cavalo-homem, isto é apto as lidas, também

passa por um processo de modificação encontrando seu lugar particular no mundo. Podemos dizer como faz Clastres ao

estudar os Guaxaki em relação a caça” a caça é o momento da revelação do talento do caçador,ele vai a caça pois

precisa,não apenas pela questão nutricional, mas fundamentalmente por que não pode deixar de ir,já que ela instaura o seu

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TRABALHO E MEMÓRIA NA CAMPANHA GAÚCHA 137

mundo. O mundo humano, da habilidade,singular diante do imenso outro, natureza, estranho que lhe faz eco em todos os

momentos26. Assim o gaucho ao domar penetra no imenso outro e sai diferente, singular, dono de si, sabedor de seu lugar no

cosmos.Dessa forma domar é conquistar sua humanidade ameaçada, ela animalidade do cavalo,que sintetiza todo o perigo

que ronda a vida humana singularno interior desse ser desconhecido:a natureza.

Basilio é isto um domador instaurador de humanidade, seu saber prepara o cavalo-fera para penetrar no mundo da

lida, isto é, mundo humanizado, e ao mesmo tempo, revela o humano em sua diferença, na sua singularidade. Embora

possamos notar as várias modificações pelas quais passou e passa o processo de doma, ele sempre é um processo que

instaura no que realiza, o ato de domar, uma diferença. É esta diferença que precisa ser mantida, pela doma, para que o

humano não pereça enquanto particularidade. Basilio nos mostra outras formas de construção do humano,marcadas pela

vivencia em mundo no qual a habilidade prática, particular e não articulada por nenhum livro, define a própria existência.

Referências

Casares, Adolfo Bioy. Memoria Sobre La Pampa Y los Gauchos. Buenos Aires, Emecé,1999.

Clastres, Pierre. Crônica dos Índios Guaxaki. Rio de janeiro, Ed. 34, 1995

Coni, Emilio. Historia de las Vaquerias de Rio de La Plata. Buenos Aires, Devenir, 1956.

Eiade, Mircea. O Sagrado e o Profano. Lisboa, Ed.Lisboa, 1988

26 Clastres, Pierre. Crônica dos Índios Guaxaki.Rio de Janeiro, Ed. 34. 1995, p. 21

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TRABALHO E MEMÓRIA NA CAMPANHA GAÚCHA 138

Halbwachs, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo, Centauro,2006.

LÉVI- STRAUSS, Claude. A lição de sabedoria das vacas loucas. Estudos Avançados 23 (67), 2009.

Pinto, Anibal. De las Vaquerias ALAlambrados. Montevideo, Ediciones Del Nuevo Mundo,1967.

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A RESISTÊNCIA DOS AGRICULTORES FAMILIARES CAMPONESES DO TERRITÓRIO DO ALTO CAMACUÃ, RS 139

A RESISTÊNCIA DOS AGRICULTORES FAMILIARES CAMPONESES DO TERRITÓRIO DO ALTO CAMACUÃ, RS

Marilse Beatriz Losekann Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Geografia – UFSM

[email protected]

Prof. Drª.Carmen Rejane Flores Wizniewsky Prof. Dr. Do Programa de Pós-Graduação em Geografia – UFSM

[email protected]

Introdução

O presente capítulo, discorre sobre a realidade de agricultores familiares camponeses, que resistem no Território do

Alto Camacuã”, no Sul do Estado do Rio Grande do Sul, como pode ser observado na Figura 1. O trabalho busca

compreender como esses sujeitos , permanecem no campo apesar das dificuldades pela pouca terra e políticas responsáveis

pelo progressivo esvaziamento da população nos últimos trinta anos, responsável pela atual predominância de um importante

índice de idosos. Para tanto, o presente trabalho focou-se na essência do ser, na experiência de vida dos “camponeses”

(WANDERLEY,1996), e de como estes percebem o seu lugar a partir da interação com o local e o global. Para apreender

como estes sujeitos experenciam esta realidade, optou-se pela pesquisa qualitativa e o estudo de caso. É importante

ressaltar que as contribuições do método fenomenológico de Maurice Merleau-Ponty (1975) marcam o desenho da presente

investigação.

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A RESISTÊNCIA DOS AGRICULTORES FAMILIARES CAMPONESES DO TERRITÓRIO DO ALTO CAMACUÃ, RS 140

Figura 01 – Mapa de localização dos municípios que compõem o Alto Camaquã/RS.

Fonte: Projeto Alto Camaquã/Emprapa Pecuária Sul, 2008.

e

Paredão

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A RESISTÊNCIA DOS AGRICULTORES FAMILIARES CAMPONESES DO TERRITÓRIO DO ALTO CAMACUÃ, RS 141

O local de estudo abrange os municípios que compõem o território do Alto Camaquã27, o qual compreende o terço

superior da bacia do Rio Camaquã, situado na Serra do Sudeste do Rio Grande do Sul. Esta porção do território gaúcho

engloba os municípios de Caçapava do Sul, Santana da Boa Vista, Piratini, Lavras do Sul, Bagé, Pinheiro Machado e, em

menores proporções, os municípios de Dom Pedrito e Hulha Negra (figura 01), compondo uma área total de 8.300 km², uma

população principalmente rural de aproximadamente 35 mil hab (FEPAM, 2007) tendo como base de sua economia, a

agricultura e a pecuária, que resultam das formas e processos da construção histórica do território rio-grandense que ainda

hoje imprimem suas marcas nesta paisagem.

A metodologia adotada para a presente pesquisa, está centrada, desde o ponto de vista teórico, no contexto histórico

que originou o referido território de estudo e sobre as categorias que norteiam o estudo: território e do lugar, a reprodução

social e econômica, e a relação dos sujeitos com a natureza. A história de vida foi utilizada com o propósito de compreender

o seu modo de organização e reprodução sob o prisma dos seus saberes tradicionais, a referida técnica foi aplicada com

informantes qualificados. A técnica de observação da paisagem junto aos sujeitos da pesquisa a medida em que permite ao

pesquisador o contato e a proximidade com o objeto/fenômeno de estudo. No entanto, para Matos e Pessôa (2009) observar

não significa simplesmente olhar, é preciso que o pesquisador consiga absorver o que está além da aparência, ou seja,

buscar a essência.

27A denominação “Alto Camaquã” refere-se a um projeto de maior amplitude, coordenado pela EMBRAPA - Pecuária Sul de Bagé e

instituições parceiras do projeto como as prefeituras, as universidades, incluindo a UFSM (Grupo de Pesquisas em Educação e Território) e sindicatos

de produtores rurais. Este projeto visa fomentar o desenvolvimento do território conhecido como Alto Camaquã a partir das especificidades e

potencialidades locais, visando formas alternativas de desenvolvimento endógeno para a região.

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A RESISTÊNCIA DOS AGRICULTORES FAMILIARES CAMPONESES DO TERRITÓRIO DO ALTO CAMACUÃ, RS 142

A agricultura familiar camponesa

Com o fim da escravidão indígena, no século XVII, o índio e o mestiço entraram para o rol dos agregados das

fazendas, excluídos do direito de propriedade, obrigados ao pagamento de tributos variados. Estes desempenhavam funções

ao mesmo tempo complementares e essenciais numa economia baseada no trabalho escravo. No Rio Grande do Sul a

grande propriedade deu origem a algumas situações curiosas. Numa região de baixíssima densidade demográfica como a do

RS do século XIX, existiam homens com dificuldades para se estabelecerem como agricultores livres. Em geral esses

homens são mestiços de origem indígena, portuguesa e africana, originando o lavrador do sul do Brasil.

A modernização das estâncias que se iniciava em começo do século XX, provoca uma transformação na estrutura

social, em função da grande capitalização de alguns estancieiros que buscavam as cidades para se estabelecer. Neste

sentido, para Chonchol (1996) aumenta a distância social entre o estancieiro e seus peões, visto que, o primeiro já não

compartilha nem o estilo de vida nem os trabalhos dos segundos. Também os investimentos em tecnologia teriam que ser

compensados por certas economias. Grande parte da mão-de-obra já se tornava excedente, sendo descartada, eliminando

os moradores juntamente com a abolição dos cultivos alimentícios.

Os moradores expulsos das estâncias e os antigos “gauchos” se instalaram em pequenos lugares baldios entre as

estâncias, construindo pequenas casas. Como afirma Chonchol (1996, p.153)

All ídesarrollaron una pequeña agricultura de subsistencia. Los que tenían algún oficio (domadores de caballos,

esquiladores de ovejas, troperos, etc.) eran contratados periódicamente por las estancias vecinas. Muy probablemente estos

(agregados de lãs estancias) dieron origen a parte de la agricultura familiar presente em la región do Alto Camaquã (cuya

ocupación ocurre a comienzos del XIX). Outro posible origen estaria vinculado a la división entre miembros de lãs familias de

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A RESISTÊNCIA DOS AGRICULTORES FAMILIARES CAMPONESES DO TERRITÓRIO DO ALTO CAMACUÃ, RS 143

los primeiros estancieros com consecuente venta por parte de algunos herederos o incluso pérdida por deudas. Hay que

considerar que en tal región lãs estancias no serían tan grandes, pues ya no tendrían sus Orígenes em la concesión de

sesmarías y sí em la adquisición em el mercado corriente de tierras.

O local onde desenvolve-se a presente pesquisa apresenta uma cultura diferenciada, marcada pelo reduzido tamanho

das propriedades, por uma topografia desfavorável e pela influencia da colonização portuguesa em meio a uma cultura de

latifúndio e criação extensiva de gado. Os referidos sujeitos resultam, em grande medida, da miscigenação entre indígenas

(tupis-guaranis e tapes), açorianos, africanos (ex-escravos), sobre uma área que secularmente foi uma zona fronteiriça em

litígio e um território onde predomina o poder do latifúndio pastoril em confronto com a agricultura camponesa. A agricultura

familiar está presente na disputa por este território que abrange o Bioma Pampa e reproduz práticas que permitem a

coexistência do homem com a natureza.

As características culturais e socioeconômicas, extremamente particulares do território do Alto Camaquã, tornaram a

modernização tecnológico-produtiva não expressiva em comparação a outras regiões do estado. O contexto local,

incompatível com as estratégias de modernização e “desenvolvimento” advindas com a Revolução Verde, a partir dos anos

sessenta, demonstrou a impossibilidade de adotar modelos produtivos modernizados nesta região. Este fato, tem

historicamente marginalizado esta porção do território gaúcho, comumente designada como tecnologicamente atrasada e

socioeconomicamente subdesenvolvida, levando a uma estigmatização que reflete sobre a auto-estima das populações

locais.

Essa realidade social e ecológica complexa é resultado de uma “modernização incompleta”. Em decorrência disso, de

acordo com EMBRAPA (2008/09) é possível caracterizar formas de produção presentes no Alto Camaquã,

predominantemente pecuária e de escala familiar, como produção camponesa, dada a predominância do uso de elementos

que entram no processo produtivo como "não-mercadoria". Uma condição que determina que a produção pecuária do Alto

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A RESISTÊNCIA DOS AGRICULTORES FAMILIARES CAMPONESES DO TERRITÓRIO DO ALTO CAMACUÃ, RS 144

Camaquã mantenha relações mais intensas com a natureza que com o mercado, proporcionando uma interdependência de

tal ordem entre produção e recursos naturais, que propiciou um baixo nível de degradação ambiental.

No entanto, neste território uma nova transformação espacial está em curso com a implantação da silvicultura, que

vem transformando a paisagem rural com predomínio da pecuária familiar em extensas lavouras de monocultura de árvores

exóticas.

O agricultor familiar camponês no contexto do lugar

O lugar é a categoria geográfica elegida para dar base a analise geográfica no presente trabalho, já que concordamos

com Souza (2009, p.61) quando este afirma que ao se tratar de “lugar” não é a dimensão do poder que se apresenta em

primeiro plano, e sim “a das identidades, das intersubjetividades e das trocas simbólicas, por trás da construção de imagens e

sentidos de “lugar” enquanto espacialidade vivida e percebida, dotada de significados, marcada por “topofilias” (e

“topofobias”), o que vem ao encontro dos objetivos da presente pesquisa.

A paisagem se constitui como fundamental para gerar topofilias e topofobias, as quais representam os significados do lugar para

os agricultores camponeses, como percebemos na origem do nome da localidade do Paredão que é a formação geomorfológica em que

o rio Camaquã cavou seu curso em meio a um morro originando um paredão de cerca de 100 metros de altura do pico do morro até o

leito do rio. Cabe esclarecer que a localidade hoje conhecida como Paredão foi designada há alguns anos de Minas do Paredão, por ter

sido essa uma região mineradora muito explorada esse grupo social ficou conhecido como os moradores da mina do Paredão. O nome

da localidade Costa do Bica também se originou do arroio do Bica que é um afluente do rio Camaquã. É perceptível que a paisagem

natural é a que comanda o cotidiano destes camponeses, seja como formadora de simbologias ou como determinante para suas

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atividades produtivas (terreno declivoso) e de sociabilidade (o distanciamento entre unidades e as dificuldades de locomoção pelo

terreno).

Embora as famílias sejam numerosas, a comunidade é formada basicamente por idosos, uma vez que os jovens

migraram para a cidade, sendo a maior parte para a região metropolitana de Porto Alegre, na cidade de Alvorada. Os que

permanecem, realizam trabalhos temporários como a colheita de pêssego próximo a Pelotas, secagem de arroz em Santa

Vitória do Palmar, colheita de maçã em Vacaria, sendo esta a principal renda. A falta de mão-de-obra, o envelhecimento da

população, e a não regularização das terras, que provoca a falta de acesso a previdência social, financiamentos e outras

políticas públicas, têm levado, ao longo dos últimos 20 anos, famílias inteiras a abandonarem estas localidades. Nesse

sentido, pode-se observar importantes rugosidades que comprovam a ocupação do território no passado, prova disso, são as

“taperas” (unidades produtivas abandonadas).

Em relação às “imagens territoriais” (PAULINO, 2008) que em geral caracterizam uma comunidade camponesa,

observa-se que a religiosidade não representa uma prática expressiva, embora alguns se declarem católicos não existe

capela, eventualmente a cada 30 ou 40 dias uma missa é realizada em um salão próximo a venda, que é o local onde se

comercializam os produtos mais diversos. Tao pouco há cemitério comunitário, à medida que cada família enterra os seus

mortos em sua unidade de exploração.

As casas são pequenas, com poucas peças, e a pouca luminosidade se deve às portas e janelas serem reduzidas

tanto em tamanho como em quantidade. Geralmente, as casas são de barro ou pedra, com cobertura de capim Santa Fé

(figura 02), outras são de alvenaria e madeira. É relevante destacar que a energia elétrica é recente, sendo que em algumas

casas ela ainda não chegou. No que se refere à presença de jardins e pomares, importantes símbolos territoriais

camponeses, estes não são significativos, sendo praticamente inexistentes, contrastando com os territórios dos colonos

descendentes de alemães e italianos do norte do estado.

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Figura 02: Foto casa de pedra, a mais antiga da comunidade e casa coberta

comcapim-santa-fé.

Fonte: LOSEKANN, M.B. Trabalho de campo. Setembro de 2010.

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A RESISTÊNCIA DOS AGRICULTORES FAMILIARES CAMPONESES DO TERRITÓRIO DO ALTO CAMACUÃ, RS 147

O principal ponto de encontro, é a venda, onde se pode observar a alteração dos hábitos alimentares dos

camponeses, visto que, a compra de produtos como pão, carne, massa, ovos e outros produtos industrializados, é constante

e demonstra que muitos alimentos antes produzidos e cultivados pelos camponeses, deram espaço a outros de origem

urbana. Ambas as comunidades se caracterizam pelo baixo nível de integração e cooperação, já que os sujeitos em questão

não apreciam reuniões e festas, tornando os encontros da comunidade muito raros. A exceção ocorre durante a Semana

Farroupilha, quando a grande maioria participa das festividades locais, que destacam a cultura gaúcha.

O saber camponês é aquele cujas práticas dialogam com o lugar e respeitam o tempo da natureza, utilizando o

máximo de subprodutos de cada atividade, garantindo uma baixa dependência externa e a manutenção da biodiversidade

socioambiental. Na concepção de Damasceno (1993) o conhecimento dos camponeses se gesta sob duas fontes básicas: a

prática produtiva e a prática social. Na prática produtiva está o saber decorrente da forma como o camponês realiza suas

atividades agropastoris, das ferramentas utilizadas, o conhecimento das condições naturais do local onde vive. Neste aspecto

a família do camponês se torna muito importante uma vez que é dentro da estrutura familiar que se dão as relações de

produção e de reprodução do saber, sendo que todos os membros participam das atividades de produção. O fruto deste

saber é prático e empírico, que se transfere de forma horizontal através de sua ação, criando formas próprias de

compreender e explicar os acontecimentos naturais e sociais.

Dentre essas práticas, que podem ser percebidas na relação dos agricultores familiares camponeses com a natureza

do lugar, merecem destaque a manutenção da vegetação nativa, preservação das fontes de água (cacimbas), utilização do

capim Santa Fé, assim como o amplo conhecimento das espécies e formas de utilização das plantas fitoterápicas. Esses

saberes, que se unem às práticas produtivas, não estão se reproduzindo, ou seja, não estão sendo repassados para as

gerações. Sem embargo, muitos cultivos não estão mais presentes nestas terras, e muito desses saberes ficaram no

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A RESISTÊNCIA DOS AGRICULTORES FAMILIARES CAMPONESES DO TERRITÓRIO DO ALTO CAMACUÃ, RS 148

passado, porém se preservam de forma latente, na memória, uma vez que sua ligação com a terra tem uma força e

expressão de sentimento e apego.

Tuan (1980) considera que o apego à terra do agricultor familiar camponês é profundo, pois eles tem intimidade com a

natureza, ganham a vida com ela. A intimidade física do contato é registrada nos músculos e nas cicatrizes do seu corpo. A

topofilia do agricultor está formada por esta intimidade, da dependência material e do fato que a terra é um repositório de

lembranças e mantém a esperança. A apreciação estética está presente, mas raramente é expressa.

Esta localidade, marcada tradicionalmente por práticas produtivas como a pecuária familiar, vem sofrendo forte

transformação, gerada provavelmente pela modernização agrícola que exerce pressão sobre as formas tradicionais de

produção. Essa pressão pode ser percebida na redução dos rebanhos ovinos e caprinos, e da agricultura, que vem perdendo

importância inclusive para o autoconsumo, tornando esses camponeses menos autônomos e mais dependentes de políticas

públicas como a bolsa família, além da inserção, mesmo que parcial em atividades pluriativas como trabalhos temporários.

No entanto, mesmo sob estas fortes pressões muitas das práticas tradicionais desses camponeses se mantêm como o

preparo da terra com o uso de força animal.

Concordamos com Tedesco (1999) em relação a sua concepção de que se por um lado a estrutura fundiária pode

representar um fator restritivo na relação terra-trabalho-produçao, por outro, os elementos de ordem cultural redimensionam a

lógica capitalista e dão ao modo de vida camponesa a importância para demonstrar uma ressignificação na valorização da

terra, do trabalho e da família. Cabe ressaltar ainda que as características topográficas do lugar se imponham como outro

fator que dificulta a utilização de grande porcentagem das propriedades. Visto que, se localizam em áreas de grande

declividade – geralmente superior a 45 graus – se apresentando como obstáculo a produção.

Este cenário de abandono por parte do Estado, sem acesso as políticas públicas de financiamento, assessoramento

técnico, falta de mão-de-obra é propício para a inserção de novas formas e funções neste território, como vem ocorrendo com

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A RESISTÊNCIA DOS AGRICULTORES FAMILIARES CAMPONESES DO TERRITÓRIO DO ALTO CAMACUÃ, RS 149

a implantação da Silvicultura (figura 03), criando uma nova territorialidade. Este novo cenário é de um rural sem agricultores,

substituição da produção de alimentos por produtos do agronegócio, onde a gentes externos comandam o lugar

homogenizando a paisagem, desestruturando as comunidades locais; perda da memória coletiva e individual, aumentos dos

impactos ambientais e perda da biodiversidade.

Figura 03: atividade silvícola alterando a paisagem do Bioma pampa

Fonte: LOSEKANN, M.B.Trabalho de campo. Setembro de 2010.

Entre os anos de 1970 e 2005, segundo Picolli e Schnadelbach (2007), estima-se que 4,7 milhões de hectares de

pastagens nativas do bioma Pampa foram convertidos em outros usos agrícolas, como lavouras e plantações de árvores

exóticas. Da sua vegetação campestre e dos seus banhados característicos, restam 39% apenas. Esta interferência antrópica

ocorre através da proposta do poder público como modelo de desenvolvimento para o Pampa, que significa uma mudança

radical de sua matriz produtiva, passando da atividade pecuária nos campos a uma intensa exploração silvícola.

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A RESISTÊNCIA DOS AGRICULTORES FAMILIARES CAMPONESES DO TERRITÓRIO DO ALTO CAMACUÃ, RS 150

Ambientalistas e pesquisadores das Instituições Federais de Ensino Superior do Rio Grande do Sul vêm alertando sobre os

prejuízos que essas lavouras de eucalipto podem gerar para a área. Em primeiro lugar, está o fato de um bioma de campo,

como é o Bioma Pampa, possuir solo, clima e características socioambientais impróprias para florestamento com espécies

exóticas, como o eucalipto e o pinus. A partir disso, desencadeiam-se inúmeras outras questões ambientais, como a

impossibilidade de associação de culturas, “ressecamento” de reservatórios hídricos, destruição de habitats das espécies

locais, perda da biodiversidade, desestruturação de comunidades rurais, êxodo rural e crescimento da pobreza urbana,

concentração de terra e capital, diminuição de postos de trabalho, geração de vazios demográficos.

Por este ser, historicamente, um território marcado pela presença do latifúndio e do minifúndio, uma parte dos

latifúndios sempre foi arrendada para os camponeses que dispõem de pouca terra, no entanto, com a valorização destas

terras pela silvicultura a quantidade disponível para o arrendamento está diminuindo, alterando a dinâmica produtiva.

Também a alteração da paisagem pela introdução de árvores de grande porte (se comparadas com a vegetação original),

está alterando o significado do lugar para os camponeses que ali vivem, uma vez que, seu lugar é alterado com fortes marcas

na paisagem e consequentemente seu sentimento de pertencimento, que constitui sua identidade, está sendo transformado.

Esse sentimento pode ser percebido na fala de uma das moradoras do Paredão quando esta diz que

gosto mais quando eles colhem as árvores, aí da para ver os campos, longe... como dava há uns anos atrás; e

também diminui um pouco as caturritas...não dá pra plantar nada, são uma praga. Parece que volta tudo a ser como antes

(AF 01).

A construção da identidade desses camponeses tradicionais das comunidades da área em estudo, outros camponeses

vizinhos, e por diversos órgãos de gestão publica, com destaque na saúde, educação e extensão rural. Desse modo, são

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A RESISTÊNCIA DOS AGRICULTORES FAMILIARES CAMPONESES DO TERRITÓRIO DO ALTO CAMACUÃ, RS 151

estigmatizados por diferentes segmentos sociais e em distintas situações, não por suas qualidades individuais como pessoas,

mas por serem considerados carentes de certas virtudes. Não raras às vezes, essa qualificação se manifesta através da

categoria de atribuição externa expressada na denominação por “índios” (atrasados, analfabetos, não sabem nem querem

trabalhar) a qual acaba por ser internalizada nas representações do grupo. Muitos camponeses acabam negando seus

saberes e práticas, como o uso de ervas medicinais para fazer remédios caseiros para a família e amimais, a utilização do

fogo no preparo da terra, a preservação de sementes crioulas, formas de cultivo e cuidados com o rebanho, heranças

culturais registradas no artesanato, nas histórias (causos), lendas, cantigas, danças, que, no entanto vem perdendo sua

expressão, principalmente pelo preconceito e imposição de uma cultura hegemônica.

São várias as lógicas e os processos através dos quais a razão dominante produz a não-existência do que não

cabe na sua totalidade e em seu tempo linear (SANTOS, 2004), assim, gera-se uma visão dualista da sociedade que

contrapõe o moderno e o tradicional, a cidade e o campo. Dessa forma, aqueles que compõem o “tradicional”, como os

camponeses em questão, acabam por ser estigmatizados e consequentemente internalizam o processo de invisibilidade ao

qual são submetidos.

Considerações Finais

Este capítulo buscou trazer algumas reflexões sobre a resistência dos agricultores familiares camponeses, e como

estes continuam e se reproduzindo social e economicamente. Estas reflexões apresentadas permitem afirmar que os

camponeses que vivem no Território do Alto Camacuã, possuem uma lógica e uma racionalidade própria que prima

primeiramente pelo bem estar da família e pela mínima degradação dos bens naturais.

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A RESISTÊNCIA DOS AGRICULTORES FAMILIARES CAMPONESES DO TERRITÓRIO DO ALTO CAMACUÃ, RS 152

A maneira como estes camponeses preservam os saberes tradicionais e constroem seu próprio conhecimento sobre a

natureza, é norteadora de sua sociabilidade, em meio a um quadro de fortes influências externas. Este conflito entre a

tradição e a pressão da tecnologia e do capital, que na realidade do lugar se concretiza com a atividade silvícola em

detrimento da agricultura familiar, promovendo ameaças sócioambientais materializadas através da pobreza, potencial de

escravidão, expropriação e abandono do campo.

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UMA PEQUENA HISTÓRIA AMBIENTAL DO PAMPA: PROPOSTA DE UMA ABORDAGEM BASEADA NA RELAÇÃO ENTRE PERTURBAÇÃO E MUDANÇA 154

UMA PEQUENA HISTÓRIA AMBIENTAL DO PAMPA: PROPOSTA DE UMA ABORDAGEM BASEADA NA

RELAÇÃO ENTRE PERTURBAÇÃO E MUDANÇA

Rafael Cabral Cruz Campus de São Gabriel, Universidade Federal do Pampa, São Gabriel, RS

[email protected]

Demétrio Luis Guadagnin Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental, Centro de Tecnologia, Universidade Federal de Santa Maria

[email protected].

Introdução

O problema da conservação do Bioma Pampa como uma construção social é embrionário no Brasil. Nos setores

acadêmicos e ambientalistas este bioma foi considerado negligenciado pelas politicas públicas de conservação da

biodiversidade (OVERBERCK et al.,2009). Tratando-se de um problema novo, persistem importantes lacunas na construção

das alegações para a conservação do Bioma Pampa. Neste artigo propomos uma sistematização da história ambiental do

bioma, baseada nas informações disponíveis, com o objetivo de apresentar uma síntese abrangente das transformações

ocorridas e das forças que as determinaram. Nossa abordagem se situa num campo da ciência relativamente novo, ainda

pouco definido, que se constrói na interface entre a História Ambiental e a Ecologia Histórica (GRAGSON, 2005; BALLÉ &

ERICKSON, 2006; SOLÓRZANO et al., 2009).

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UMA PEQUENA HISTÓRIA AMBIENTAL DO PAMPA: PROPOSTA DE UMA ABORDAGEM BASEADA NA RELAÇÃO ENTRE PERTURBAÇÃO E MUDANÇA 155

A História Ambiental foca “os acontecimentos históricos que modificaram e, ao mesmo tempo, foram modificados pelo

ambiente” (SOLÓRZANO et al., op. cit.). Este enfoque permitiria construir uma investigação sobre como o ser humano alterou

o funcionamento dos ecossistemas onde estava inserido e como estes ecossistemas em transformação condicionaram a vida

destes seres humanos. Por outro lado, a Ecologia Histórica “procura compreender os fenômenos e componentes ecológicos,

como a funcionalidade de ecossistemas, a composição e a estrutura de comunidades, etc., à luz dos processos históricos de

transformação da paisagem” (SOLÓRZANO et al., op. cit.). Ou seja, embora ambas as abordagens envolvam a relação entre

ser humano e natureza, o foco da História Ambiental está voltado para o ser humano, enquanto da Ecologia Histórica mais

voltado para a natureza. Neste trabalho, adota-se a abordagem da História Ambiental, pois os questionamentos envolvem

forte conteúdo cultural. No entanto, não se trabalha com a dicotomia ser humano x natureza.

Neste artigo procuramos sistematizar os grandes ciclos de transformações ambientais provocadas pelo ser humano na

região hoje coberta pelo Bioma Pampa no estado do Rio Grande do Sul, sob o enfoque da compreensão da evolução do

Ecossistema Humano Total – ETH (NAVEH et al., 2001). Segundo este conceito, que não opõe ser humano e natureza, os

elementos da paisagem transformados pelo ser humano interagem com os demais elementos através de fluxos de massa,

energia e informação, constituindo uma entidade hierarquicamente superior que funciona como um todo (hólon). A

estabilidade de sistemas auto-organizativos é dependente da sua interação com o regime de perturbações e com a

capacidade de não se alterar perante uma perturbação (resistência) ou de retornar para condições próximas das iniciais após

a perturbação (resiliência) (MARGALEF, 1977; NAVEH et al., 2001). Deste modo, pode-se considerar que a estabilidade de

um sistema dependerá da relação que existe entre auto-organização e adaptação, onde o regime de perturbações estabelece

as condições de contorno para que o processo de adaptação ocorra e, através de mecanismos de resistência e resiliência,

persistir em um ambiente em constante mudança. Quando há uma mudança brusca no regime de perturbações o sistema

deriva para um novo estado de estabilidade.

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UMA PEQUENA HISTÓRIA AMBIENTAL DO PAMPA: PROPOSTA DE UMA ABORDAGEM BASEADA NA RELAÇÃO ENTRE PERTURBAÇÃO E MUDANÇA 156

Como era o Pampa quando o ser humano aqui chegou?

A presença humana no Pampa provavelmente teve início no Pleistoceno, a cerca de 13.000 anos antes do presente

(AP) (KERN, apud BELLANCA & SUERTEGARAY, 2003; CONSENS, 2009), No período compreendido entre cerca de 18.000

e 12.000 anos AP imperava um clima mais seco e frio e nível do mar abaixo do atual (CARVALHO, 2003). De acordo com

Villwock (1989), o máximo da regressão marinha se deu a 14.000 anos AP, no terceiro ciclo regressão-transgressão do

Pleistoceno, atingindo a isóbata de 100m, praticamente expondo toda a plataforma continental. Mahiques et al. (2010)

revisaram dados sobre as últimas regressões, identificando evidências de que em cerca de 18.000 anos AP o nível do mar

determinava uma linha de costa que acompanhava a isóbata de 130m em relação ao nível do mar atual. No final do

Pleistoceno houve uma lenta transição climática com pelo menos três períodos de estabilização do nível médio do mar,

correspondendo, em relação ao nível atual, a terraços situados em profundidades entre 60 e 70m (cerca de 11.000 anos AP),

entre 32 e 45m (cerca de 9.000 anos AP) e entre 20 e 25m (cerca de 8.000 anos AP).

A combinação das informações disponíveis indica que no final do Pleistoceno predominava uma paisagem campestre

com rios em geral sem matas ciliares, povoada por uma fauna de vertebrados de grande porte (megafauna). Scherer & da

Rosa (2003) interpretando fósseis de mamíferos encontrados em sedimentos datados entre 11.740 e 14.830 anos AP,

descrevem o paleoambiente do final do Pleistoceno como aberto, úmido e frio. De acordo com Behling et al. (2005), com base

em análise do diagrama de pólen de amostra em São Francisco de Assis, a vegetação era predominantemente de campos,

dominados por Poaceae, com baixas percentagens de Cyperaceae, Asteraceae e outras ervas. Representantes de mata ciliar

e de vegetação aquática eram raros. A baixa representação de partículas carbonizadas demonstra que incêndios

espontâneos ocorriam raramente.

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UMA PEQUENA HISTÓRIA AMBIENTAL DO PAMPA: PROPOSTA DE UMA ABORDAGEM BASEADA NA RELAÇÃO ENTRE PERTURBAÇÃO E MUDANÇA 157

Segundo Kerber & Oliveira (2008), os registros fósseis do Pleistoceno Superior da formação Touro Passo indicam uma

fauna de vertebrados que continha Propraopus sp. (um tatu gigante), Pampatherium typum (tatu gigante), Holmesina

paulacoutoi (tatu gigante), Glyptodontidae indet., Glyptodon sp., Glyptodon cf. G. reticulatus (os gliptodontes eram próximos

dos tatus, e chegavam a 3 metros pesando até duas toneladas), Panochthus sp. (gliptodonte de até 3 metros),

Neothoracophorus aff. N. elevatus (gliptodonte), Mylodontidae indet. (tipo de preguiça gigante), Canidae indet. (cão),

Hydrochoerus cf. H. hydrochaeris (capivara), Caviidae indet.(roedor), Toxodon sp. (notoungulado terrestre similar em

tamanho ao rinoceronte), Equidae indet. (cavalos e similares), Equus (A.) neogeus (similar ao cavalo atual), Hippidion sp.

(similar a um cavalo com tamanho de pônei), Morenelaphus sp. (cervo maior que os atuais), Antifer sp., Cervidae indet.

(cervo), Camelidae indet. (camelídeo, similar a lhama, guanaco), Hemiauchenia paradoxa (camelídeo de cerca de 1,80

metros de altura), Lama sp. (camelídeo, similar a lhama, guanaco) e uma forma indeterminada de Testudines (grupo das

tartarugas e similares). No Uruguai, estudos demonstram a ocorrência de mastodonte (Stegomastodon waringi; ALBERDI et

al., 2007; ALBERDI & PRADO, 2008). A megafauna de pastadores possuía a capacidade de controlar a sucessão vegetal e a

probabilidade de incêndios espontâneos através da redução da biomassa e do pisoteio, criando heterogeneidade de estádios

sucessionais na matriz campestre, transformando-a em um mosaico de manchas com intensidades de pisoteio/pastoreio

diferentes. Este efeito tem sido documentado e testado experimentalmente em parques africanos (WALDRAM et al., 2007).

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UMA PEQUENA HISTÓRIA AMBIENTAL DO PAMPA: PROPOSTA DE UMA ABORDAGEM BASEADA NA RELAÇÃO ENTRE PERTURBAÇÃO E MUDANÇA 158

Primeiro Ciclo de Transformações Ambientais: Chegada do Ser Humano

Embora exista certa incerteza referente ao período da chegada do ser humano no Pampa riograndense28, pode-se

considerar que esta chegada torna-se significativa por volta de 12.000 anos AP. Sustentamos a hipótese de que a chegada

de seres humanos induziu nesta época à extinção da megafauna e à manutenção das paisagens abertas, porém com um

novo padrão de vegetação, estabilidade e perturbações. Os campos baixos dominados por geófitas adaptadas ao pastoreio

deram lugar para uma paisagem de campos altos dominados por hemicriptófitas adaptadas ao fogo. O novo regime de

perturbações se estendeu por um período de 4.000 anos (fase de mudanças), quando ocorreu a extinção da megafauna, e

estabilizou a nova fisionomia dos campos por um período de cerca de 7.600 anos (fase de estabilização), até a chegada do

gado europeu.

Os primeiros povos que chegaram Pampa, na região do rio Uruguai Médio, eram caçadores-coletores. Dadas as

características dos instrumentos líticos utilizados, incluindo pontas de projéteis e também pela presença de bolas de

boleadeiras, estes indígenas pré-colombianos foram classificados como da Tradição Umbu (BELLANCA & SUERTEGARAY,

2003). Os membros da Tradição Umbu ocupavam ambientes abertos, onde podiam caçar. Carvalho (2003) descreve que as

comunidades da Tradição Umbu enterravam seus mortos sobre cinzas, mesmo na presença de brasas. Eles não dominavam

o polimento de rochas. A presença de ossos de exemplares da megafauna em vários sítios de ocorrência de vestígios da

Tradição Umbu demonstra que estes caçadores predavam sobre a megafauna que povoava os campos (SUERTEGARAY &

28 De acordo com Behling et al. (2005) foram localizados artefatos líticos junto com ossos de megafauna em um sítio junto ao rio Ibicuí,

datado de 15.400 anos AP. Outros sítios foram datados em 13.470 e 9.550 anos A.P. No entanto, Kern (1998, apud BELLANCA & SUERTEGARAY,

2003; DIAS, 2004) apresenta esta entrada do ser humano em 12.770 ± 220 anos A.P.

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UMA PEQUENA HISTÓRIA AMBIENTAL DO PAMPA: PROPOSTA DE UMA ABORDAGEM BASEADA NA RELAÇÃO ENTRE PERTURBAÇÃO E MUDANÇA 159

PIRES DA SILVA, 2009). No noroeste do Uruguai foram encontrados vários sítios arqueológicos em que se encontram

evidências da exploração da paleofauna pelos primeiros habitantes da região (CONSENS, 2009). Aspecto importante é que

eles dominavam o fogo. De acordo com Kern (1994) e Schmitz (1996), citados em Overbeck et al. (2009), e Leonel (2000),

citado em Behling et al. (2009), provavelmente estes caçadores utilizavam o fogo para caçar. O fogo, nas caçadas, é utilizado

para conduzir a fauna em direção aos caçadores, reduzindo o gasto energético para a perseguição da caça e aumentando a

eficiência da mesma. Dias (2004), revisando os sítios do rio Uruguai Médio, cita que não foram encontrados ossos de

megafauna nos locais que ela considerou válidos, pois foram encontrados ossos de uma preguiça gigante (Glossotherium

robustus) no sítio datado em 12.770 anos AP, o qual não é totalmente aceito como sítio válido, uma vez que os artefatos

líticos encontrados podem ser de origem não humana. No entanto, realçou que os locais não foram investigados

intensivamente, pois as escavações foram efetuadas unicamente para obtenção de amostras para datação. Apesar desta

ausência de confirmação de caça de megafauna nos sítios citados em Dias (2004), existem descobertas na margem

esquerda do rio Quaraí, no Uruguai, que demonstram a caça de animais da megafauna pelos primeiros moradores do Pampa

uruguaio (17 espécies identificadas29), na fronteira com o Brasil (SUÁREZ, 2003; SUÁREZ & LÓPEZ, 2003; CONSENS,

2009).

Evidências, obtidas a partir de registros obtidos em testemunhos de sedimentos de turfeiras, permitem reconstruir a

história da composição da vegetação e da freqüência de incêndios e queimadas. O estudo de Behling et al. (2005), efetuado

em São Francisco de Assis, apresentado na Figura 1, nos permite fazer algumas observações. As datas da chegada dos

29 Glyptodon sp.; Stegomastodon sp.; Hemihauchenia paradoxa; Scelidoterium leptocephalum; Glossotherium robustus; Pampatherium

humboldti; Toxodon platensis; Glyptodon clavipes; Hippidion principale; Equus neogeus; Megatherium americanum; Smilodon populator; Macrauchenia

patachonica; Morenelaphus brachyceros; Morenelaphus lujanensis; Paraceros fragilis; Antifer ultra.

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primeiros habitantes (por volta de 12.000 anos AP) e da extinção provável da megafauna30 (por volta de 8.000 anos AP)

foram realçadas. Observa-se que a dominância dos campos ocorre em todo o perfil, mas diminui aproximadamente a partir de

5.000 anos AP, quando aumenta gradualmente a participação da vegetação de matas ciliares, indicada pela redução da

participação do pólen de espécies de campo. De acordo com Pillar (2003), o clima, em comparação com o presente, era mais

seco e frio até 10.000 anos AP, mais quente e estacional entre 10.000 e 4.000 anos AP passando, então, a mais frio e úmido,

aproximando-se do clima atual. Segundo Marchiori (2004), este aquecimento em relação ao Pleistoceno e umidecimento

ocorrido neste último período permitiram que a vegetação silvática penetrasse no Rio Grande do Sul, a partir de centros de

dispersão situados ao norte, através de duas rotas migratórias: uma litorânea e outra pelo interior do continente, ao longo dos

rios Paraná e Uruguai. O clima mais úmido e com baixa estacionalidade permitiu a implantação de vegetação florestal

primeiro ao longo da rede de drenagem e, a partir daí, nas vertentes, para então dominar sobre os campos.

Esta dinâmica é uma evidência contrária à hipótese climática para a extinção da megafauna (ver BURNEY &

FLANNERY, 2005). A teoria climática previa que a mudança climática mudaria a vegetação, tornando-a inadequada para a

megafauna. No entanto, observa-se que a penetração da vegetação silvática somente ocorreu de forma significativa a partir

de 4.000 a 5.000 anos AP, ou seja, pelo menos 3.000 anos depois da extinção da megafauna.

O mesmo palinograma nos traz informações sobre concentração e taxa de acumulação de partículas carbonizadas, que

nos conta a história da presença do fogo na região de São Francisco de Assis. Os dados nos mostram que a presença de

partículas carbonizadas era pequena mas constante até cerca de 12.000 anos AP, quando aumenta drasticamente e de

forma contínua até atingir um máximo por volta de 9.000 anos AP. A partir de então o carvão desaparece dos registros até

30 Segundo Kern (1997, apud PILLAR, 2003) a megafauna tornou-se extinta há 8.000 anos AP.

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UMA PEQUENA HISTÓRIA AMBIENTAL DO PAMPA: PROPOSTA DE UMA ABORDAGEM BASEADA NA RELAÇÃO ENTRE PERTURBAÇÃO E MUDANÇA 161

cerca de 6.000 anos AP, quando retorna em taxas comparáveis às máximas anteriores e crescentes, com vários picos nos

últimos 1.000 anos AP. Quando comparam-se estes dados com a chegada dos primeiros seres humanos, a cerca de 12.000

anos AP, observa-se que existe uma sincronia entre o aumento da presença de partículas carbonizadas no período em que a

megafauna se extinguiu. Neste período também houve o predomínio de um clima mais quente e sazonal que deve ter atuado

sinergicamente com a redução rápida das populações de grandes herbívoros para facilitar a propagação do fogo e provocar

uma mudança na heterogeneidade da quantidade de biomassa inflamável.

O papel da megafauna na manutenção de vegetação herbácea rasteira de gramíneas, predominantemente geófitas

adaptadas ao pastoreio e pisoteio, e no controle das espécies cespitosas hemicriptófitas mais adaptadas ao fogo, já foi

experimentalmente demonstrado na savana (WALDRAM et al., 2007). Neste estudo a exclusão de rinocerontes tornou a

paisagem mais homogênea e mais sujeita à propagação de incêndios em grandes extensões. É provável que a redução das

populações da megafauna no Pampa tenham causado efeitos similares. Quando há uma mudança brusca no regime de

perturbações do sistema, como a ocorrida com a introdução do manejo humano do fogo para caça, de forma crônica e com

intensidade crescente, o sistema deriva para um novo estado de estabilidade, com ajustes que levaram à extinção da

megafauna e mudanças da fisionomia dos campos.

Após a extinção da megafauna, o fogo continuou a ser utilizado pelos indígenas da Tradição Umbu e por seus

descendentes, como os Charruas e Minuanos, para caça de animais de menor porte, como demonstrado na continuidade dos

registros de partículas carbonizadas do testemunho de São Francisco de Assis. É provável que em ambientes relictuais

abrigados dos incêndios as espécies adaptadas ao pastoreio e pisoteio tenham permanecido como uma reserva de

informação, de modo que tornou possível a adaptação dos campos ao novo ciclo de perturbações que se inicia com a

chegada dos europeus e sua biota acompanhante.

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UMA PEQUENA HISTÓRIA AMBIENTAL DO PAMPA: PROPOSTA DE UMA ABORDAGEM BASEADA NA RELAÇÃO ENTRE PERTURBAÇÃO E MUDANÇA 162

Figura1. Palinograma de São Francisco de Assis. Destacadas as prováveis datas de chegada dos primeiros indígenas da

Tradição Umbu e da extinção da megafauna. Adaptado de Behling et al. (2005).

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UMA PEQUENA HISTÓRIA AMBIENTAL DO PAMPA: PROPOSTA DE UMA ABORDAGEM BASEADA NA RELAÇÃO ENTRE PERTURBAÇÃO E MUDANÇA 163

Segundo Ciclo: Chegada do Europeu

A paisagem dominada por campos altos de hemicriptóficas adaptadas ao fogo iniciou um novo ciclo de transformações

com a chegada de europeus e a introdução do gado. Missões Jesuíticas foram estabelecidas a partir de 1605, estancieiros

Lagunenses a partir de 1719 (ASSUNÇÃO, 2007). Em 1737 é fundada a primeira povoação oficial. Assim, cerca de 7.600

anos após a extinção da megafauna, os novos colonizadores trouxeram novos grandes herbívoros para o bioma Pampa,

principalmente bovinos e eqüinos.

Crosby (1993), revisando as conseqüências ecológicas da introdução de espécies exóticas na região pampeana,

registrou que em 1638, os jesuítas abandonaram uma estância com 5.000 cabeças de gado. De acordo com o mesmo autor,

o grande naturalista espanhol Félix de Azara estimou que no ano de 1700 haviam 48 milhões de cabeças de gado bovino no

Pampa. O jesuíta Thomas Falkner (apud CROSBY, 1993) descreveu que no ano de 1744 ele e quatro indígenas

permaneceram por quinze dias completamente cercados por cavalos asselvajados, de tão numerosos. O relato cita ainda que

em ocasiões as manadas eram tão grandes que passavam a pleno galope por três horas seguidas. Felix de Azara também

descreveu que a prática da queima anual dos campos, pastoreio e pisoteio estavam eliminando os capins mais altos e

abrindo espaço para invasoras como o cardo (Cynara cardunculus), malvas (Malva spp.) e outras invasoras. O naturalista

Charles Darwin descreveu centenas de quilômetros quadrados de áreas dominadas por cardos no Uruguai, impenetráveis

para cavaleiros (DARWIN, 2010). Na mesma obra, Darwin descreve os efeitos de uma grande seca ocorrida entre 1827 e

1830 em que, somente na Província de Buenos Aires, foram perdidas, no mínimo, um milhão de cabeças de gado, e que, na

ocasião, o país inteiro se aparentava a uma estrada poeirenta.

Esses quadros relatados por diferentes naturalistas, em diferentes épocas, permitem a construção de uma hipótese

sobre a dinâmica do sistema em resposta ao novo regime de perturbações. A descrição de Félix de Azara permite interpretar

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UMA PEQUENA HISTÓRIA AMBIENTAL DO PAMPA: PROPOSTA DE UMA ABORDAGEM BASEADA NA RELAÇÃO ENTRE PERTURBAÇÃO E MUDANÇA 164

como se deu o ajuste da vegetação com a reintrodução de uma fauna herbívora de grande porte sobre campos que estavam

a 7.600 anos sem pressão de seleção pelo pisoteio e pastoreio. Pode-se imaginar que, logo após a disseminação do gado

bovino e eqüino sobre os campos, sem que houvessem predadores especializados e com ampla abundância de alimentos,

houvesse um crescimento exponencial das populações, as quais rapidamente, sobre um período de 42 anos, passaram de

5.000 cabeças para 48 milhões de cabeças (taxa anual de crescimento exponencial de 17,8%).

O crescimento populacional acelerado das populações asselvajadas de gado bovino e equino, associado ao fogo

utilizado pelos índios para caça e estancieiros para renovar a pastagem, deve ter causado uma grande pressão sobre as

espécies de hemicriptófitas que dominavam os campos. É provável que tenha ocorrido uma grande perda de cobertura

vegetal. A redução cobertura vegetal pode ter criado as condições para a expansão de espécies oportunistas, incluindo os

cardos exóticos. Da introdução do gado no Pampa em 1638 até a viagem de Darwin, passaram-se 194 anos. Neste período,

ainda havia sinais de que os campos não haviam conseguido ajustar sua composição para o novo regime de perturbações

estabelecido, como pode ser deduzido da baixa cobertura vegetal em alguns lugares e de grandes extensões de terras

cobertas por cobertura homogênea de oportunistas exóticas. No entanto, gradualmente as espécies geófitas, que dominavam

os campos no final do Pleistoceno, foram se disseminando e permitindo a existência de uma cobertura vegetal contínua e

resistente a seca, ao pisoteio e pastoreio. O fogo foi utilizado pelos estancieiros para controlar o processo de sucessão.

É provável que o processo de ajuste tenha sido alcançado em algumas regiões do Pampa, estabelecendo uma nova

fase de estabilidade. No entanto, também é provável que a maior parte do Pampa não tenha tido tempo suficiente para que

esta fase de estabilidade se implantasse plenamente. Isto porque o regime de perturbações não permaneceu relativamente

constante por período suficiente. As mudanças econômicas e o crescimento populacional humano tiveram um papel

coadjuvante neste processo.

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UMA PEQUENA HISTÓRIA AMBIENTAL DO PAMPA: PROPOSTA DE UMA ABORDAGEM BASEADA NA RELAÇÃO ENTRE PERTURBAÇÃO E MUDANÇA 165

Durante este período, diversas fases foram regulando o manejo dos campos. Na primeira fase, manadas de

gado asselvajado (reiúno), eram caçados (preia) pelos changadores (gaudérios) e indígenas remanescentes das missões

jesuíticas, que se utilizavam do gado para alimento, obtenção do couro para vestuário e construção dos toldos, assim como

por estancieiros para a indústria do charque, exportado para a região sudeste do Brasil (ASSUNÇÃO, 2009).

Em uma segunda fase os indígenas já haviam sido aniquilados e os sobreviventes incorporados nas estâncias e

ocorreram mudanças na legislação de terras (Lei de Terras de 1859, citada em CHELOTTI, 2010; SUERTEGARAY & PIRES

DA SILVA, 2009), que obrigaram ao cercamento das propriedades. Tornou-se então possível um manejo de lotação que,

associado com o fogo, permitiu uma maior estabilização do regime de perturbações e favoreceu o estabelecimento de uma

nova fase de estabilidade na composição dos campos com dominância de uma cobertura de geófitas com hábito rasteiro.

Quando em lotação adequada estes campos permitem a persistência de uma grande biodiversidade.

Uma terceira fase pode ser identificada a partir da segunda metade do século XX, por necessidades econômicas ou

por pressão da política fundiária. Nesta fase a estabilidade é rompida por excesso de lotação, gerando uma redução da

cobertura vegetal e resultando em campos degradados, com perda elevada de biodiversidade. Estes campos degradados

tem sua produtividade em carne reduzida e oferece a oportunidade para que o terceiro ciclo de transformações ambientais

avance sobre o Pampa: as atividades agrícolas industriais.

Cabe realçar a escala temporal das mudanças decorrentes do novo regime de perturbações. As duas fases, de ajuste

e estabilização, ocorreram em um período de cerca de 400 anos, possivelmente com cerca de 200 anos para cada uma

(escala de centenas de anos). Ou seja, em uma velocidade muito maior do que aquela que decorreu do primeiro ciclo de

transformações, que ocorreu em escala de milhares de anos.

Este segundo ciclo de transformações ambientais tem importância cultural para o Rio Grande do Sul. Foi em torno das

duas primeiras fases, que duraram praticamente 350 anos, que foi forjado o tipo humano do Gaúcho, através da atividade das

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UMA PEQUENA HISTÓRIA AMBIENTAL DO PAMPA: PROPOSTA DE UMA ABORDAGEM BASEADA NA RELAÇÃO ENTRE PERTURBAÇÃO E MUDANÇA 166

estâncias, da miscigenação entre brancos, índios e negros e através da incorporação de elementos culturais destes três na

cultura gaúcha. A cultura do gaúcho é de ambientes abertos. A palavra Pampa, de origem na língua trazida dos Andes pelos

primeiros povoadores da Tradição Umbu, o quéchua, significa ambiente plano e aberto (SUERTEGARAY & PIRES DA

SILVA, 2009).

A paisagem aberta é herança do clima e do ser humano, que maneja estes campos a 12.000 anos. O clima atual é

florestal (BURIOL et al., 2007), ou seja, se não houvesse manejo humano, uma grande proporção do Pampa seria coberta

por florestas. A dominância da vegetação campestre é mantida por um processo de manejo que implica em um sistema de

perturbações que provoca regressão no processo de sucessão que, se não houvesse manejo, levaria a uma substituição do

bioma Pampa pelo bioma Mata Atlântica, com ritmos diferenciados, dada a heterogeneidade de solos que ocorre na região.

Pode-se assim dizer que o Pampa que existe hoje, e que deve ser preservado, gerou e foi gerado pelo gaúcho. Pode-se

afirmar que houve uma co-evolução entre a cultura do gaúcho e o sistema de campos atual do bioma Pampa.

Terceiro Ciclo: Agricultura industrial

O terceiro ciclo, envolve um processo perda e fragmentação dos campos naturais do bioma Pampa e sua substituição

por uma matriz de agroecossistemas. De acordo com MMA (2007), a velocidade de substituição de ecossistemas de campo

por agroecossistemas é de 60% da área original em 60 anos. Restam somente 40% da área original, sendo que destas

somente 22% são campos nativos, 5% são florestas, 13% mosaicos de campos e florestas. Entre 11 a 13% destes

remanescentes encontram-se em bom estado de conservação. O ritmo das mudanças está, portanto, na escala de décadas.

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UMA PEQUENA HISTÓRIA AMBIENTAL DO PAMPA: PROPOSTA DE UMA ABORDAGEM BASEADA NA RELAÇÃO ENTRE PERTURBAÇÃO E MUDANÇA 167

Diferentemente dos ciclos anteriores, que tenderam a novos padrões de estabilidade ajustados a diferentes regimes de

perturbações, este novo ciclo envolve a substituição do ecossistema de campo por outro ecossistema: o agroecossistema. É

um regime de perturbação tão intenso que descaracteriza completamente o sistema de campo.

De acordo com Overbeck et al. (2009), a cultura do milho cresceu sobre os campos do sul do Brasil de 1,4 para 11,8

milhões de toneladas entre 1940 e 1996. No mesmo período, o soja aumentou de 1.530 toneladas para 10,7 milhões de

toneladas. O trigo, de 95 mil para 1,4 milhão de toneladas. Segundo os autores, este aumento de produção se deu,

principalmente em cima de áreas de campo. Nas várzeas, o grande avanço da orizicultura provocou quase a extinção dos

ecossistemas de banhados, sendo que os remanescentes, na sua maior parte, estão muito fragmentados e alterados

(CARVALHO & OZORIO, 2007). Este avanço da agricultura sobre os campos se dá em resposta à revolução verde, a

implantação do capitalismo no campo e a integração entre a indústria mecânica e química com a agricultura. Com taxas de

retorno por unidade de área maiores que a pecuária tradicional em campos degradados pelo mau manejo de lotação,

rapidamente os campos passaram a ser utilizados, geralmente através de arrendamento, para a agricultura empresarial.

Enquanto que o efetivo pecuário de bovinos na região da Campanha, no Rio Grande do Sul (IBGE, 2011a), estabilizou-

se entre 4 e 5 milhões de cabeças entre 1990 e 2006, a produção de grãos se expandiu de 300.000 para 500.000 hectares

de área colhida (IBGE, 2011b). Estes dados sugerem um aumento de lotação de gado nos remanescentes de campo nativo

(BENCKE, 2009; CARVALHO et al., 2009). Segundo Overbeck et al. (2009), para manter esta maior lotação, há um aumento

das pastagens cultivadas e da introdução de espécies exóticas em plantio direto sobre campo nativo (“melhoramento de

campo”). Uma das espécies introduzidas na década de 1950 foi o capim-anonni (Eragostis plana), que tem mostrado grande

potencial invasor sobre campos nativos pastejados (pelo menos 400.000 hectares invadidos), com perda de qualidade

forrageira e de biodiversidade (OVERBECK et al.; op.cit.).

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Ainda neste ciclo pode ser caracterizada uma nova fase, marcada pelo esgotamento do modelo tradicional de pecuária

extensiva e progressiva degradação e desvalorização das as áreas de campos, tornando-as atrativas para empresas de

silvicultura. Entre 2002 e 2008, a área de silvicultura aumentou em 30% no Rio Grande do Sul, a maior parte sobre campos

(BENCKE, 2009). Na região sudoeste do RS, apenas uma empresa, a Stora Enso adquiriu 50.000 hectares para plantio de

eucalipto (SUERTEGARAY & PIRES DA SILVA, 2009). A silvicultura é menos susceptível às secas e apresenta portanto

menos pressões de controle do que os cultivos anuais. A expansão da silvicultura produz uma radical transformação da

paisagem pela introdução de um elemento novo na matriz – a presença de maciços florestais em substituição aos

ecossistemas abertos que caracterizam a região a pelo menos 15.000 anos.

Estas transformações foram ainda acompanhadas pelo estabelecimento de espécies exóticas invasoras, A primeira

revisão sobre a presença de espécies vegetais exóticas no Bioma Pampa na Argentina, Brasil e Uruguai registrou a presença

de 356 que conseguiram estabelecer populações espontâneas em campos naturais, a maioria delas introduzidas de forma

intencional (GUADAGNIN et al. 2009).

O efeito da perda e fragmentação dos hábitats e invasão por espécies exóticas é a perda da biodiversidade. Boldrini

(2009) cita que 213 espécies da flora de campos nativos estão ameaçadas de extinção. Destas, 146 são exclusivas do bioma

Pampa e 28 ocorrem tanto neste como nos campos do bioma Mata Atlântica. Bencke (2009) elenca 21 espécies da fauna

ameaçada de extinção do Rio Grande do Sul como habitantes obrigatórias de campos nativos e outras 11 espécies são semi-

dependentes, utilizando outros hábitats. Considerando outras espécies que usam ecossistemas associados ao campo nativo,

chega-se a 49 espécies ameaçadas.

Uma das conseqüências culturais destas transformações ambientais é o processo de desterritorialização (CHELOTTI,

2010) do Gaúcho, acompanhado de uma territorialização de um empresariado rural. A base objetiva sobre a qual se construiu

a co-evolução do gaúcho e do Pampa se rompe com a substituição da estância pela granja. Existe o risco de erosão do

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UMA PEQUENA HISTÓRIA AMBIENTAL DO PAMPA: PROPOSTA DE UMA ABORDAGEM BASEADA NA RELAÇÃO ENTRE PERTURBAÇÃO E MUDANÇA 169

patrimônio cultural, que somente não é maior porque ainda existem fortes movimentos culturais (tradicionalismo) e ainda

sobrevivem práticas tradicionais em algumas propriedades.

Quarto Ciclo: Mudança Climática Induzida pelo Ser Humano

O clima global apresenta uma tendência de aquecimento, com importantes conseqüências para a sociedade e a

biodiversidade. A Figura 2 apresenta um conjunto de estimativas relativas à temperatura média mundial para os últimos 2.000

anos. Observa-se que a temperatura em 2004 ultrapassa a média verificada no período mais quente da Idade Média. A

maioria dos cenários resultantes de inúmeros modelos rodados de forma independente e relatados pelo IPCC (IPCC, 2007;

SOLOMON, 2007) demonstram tendências de aquecimento global, ainda que persistam algumas incertezas. O clima é

resultante de complexas relações entre a quantidade de radiação recebida do sol, sua absorção heterogênea na superfície do

planeta e a movimentação do envoltório fluído, que transporta energia do Equador para os pólos. Modificações no uso da

terra, com correspondente mudança no albedo, associadas ao acúmulo de gases do efeito estufa, resultantes do

desmatamento, da queima de combustíveis fósseis, podem sinergicamente modificar as relações complexas que existem

entre os oceanos e as massas de ar e mudar o clima da Terra.

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UMA PEQUENA HISTÓRIA AMBIENTAL DO PAMPA: PROPOSTA DE UMA ABORDAGEM BASEADA NA RELAÇÃO ENTRE PERTURBAÇÃO E MUDANÇA 170

Figura 2. Temperatura média medida (linha preta) e dez séries reconstruídas (estimadas de temperatura média global. Fonte:

Rhode (2005).

O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – INPE (MARENGO, 2007) tem apresentado estudos que detalham para a

realidade brasileira os cenários produzidos pelo Painel Intergovernamental para Mundaça Climática – IPCC. Dependendo do

cenário de emissões de gases de efeito estufa até 2100, a temperatura global média à superfície pode subir de 1,5 ºC até 5,5

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ºC. Avaliações subjetivas, que são tomadas como referência, estimam que aumentos da temperatura média global acima de

3 ºC teriam grande potencial para causar severos danos na economia.

Na Bacia do Prata, onde se encontra o Pampa, o cenário A2, de alta emissão de gases do efeito estufa, sugere que

poderiam haver aumentos na precipitação da ordem de 1 a 5 mm por mês, e aumento de temperatura média de cerca de

cerca de 3 a 5 ºC. No entanto, o aumento da precipitação causaria um forte aumento na evapotranspiração durante os meses

de maior déficit hídrico, tornando o clima mais sazonal que o atual, com possíveis impactos negativos sobre a agricultura e

geração de energia. O aumento da temperatura também pode transferir os limites geográficos de distribuição de espécies

praga e de vetores de doenças tropicais mais ao sul, exigindo adaptação das culturas (MARENGO, 2007).

Embora exista muita incerteza quanto ao futuro, a aplicação deste cenário sobre o Pampa remete a uma savanização do

clima – tendência de um clima mais quente, com chuvas sazonais. O balanço entre espécies C3 e C4 seria alterado e haveria

uma grande extinção de espécies, talvez em parte substituídas por outras em dispersão desde regiões tropicais. A Figura 3

apresenta uma simulação sobre diagrama climático da que seria a trajetória do clima considerando este cenário. O ponto de

partida seriam campos temperados. Na representação, a localização do mesmo é aproximada.

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Figura 3. Trajetória do clima, de acordo com o cenário IPCC A2 (alta emissão) para a cidade de São Gabriel, situada no

Pampa Gaúcho, estado do Rio Grande do Sul, Brasil. Fonte: adaptado de Ricklefs (1996).

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Comentários finais

Neste estudo apresentamos uma proposta de sistematização da história ambiental do Bioma Pampa no Rio Grande do

Sul, enfatizando os diferentes regimes de perturbações resultantes da interação entre o clima, os campos naturais e sua biota

e o ser humano. Foram propostos 4 ciclos de transformações ambientais:

• Ciclo 1: Entrada do ser humano. Escala temporal: milhares de anos. Resposta adaptativa da biota.

• Ciclo 2: Chegada do europeu. Escala temporal: centenas de anos. Restauração e co-evolução – criação do Pampa e

do Gaúcho.

• Ciclo 3: Agricultura industrial. Escala temporal: dezenas de anos. Perda e fragmentação de hábitats naturais e

introdução de espécies exóticas. Substituição de ecossistemas nativos por agroecossistemas. Escala temporal:

dezenas de anos.

• Ciclo 4: Savanização do clima pela mudança climática e desaparecimento dos campos como são hoje conhecidos.

Escala temporal: dezenas de anos.

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UMA PEQUENA HISTÓRIA AMBIENTAL DO PAMPA: PROPOSTA DE UMA ABORDAGEM BASEADA NA RELAÇÃO ENTRE PERTURBAÇÃO E MUDANÇA 174

Todo esforço de síntese ajuda nas tarefas de gerar novas perguntas e alimentar as discussões, bem como facilitar a

transmissão do conhecimento para a população em geral. Por outro lado, toda síntese envolve generalização e esta, uma

certa subjetividade dos autores para selecionar os aspectos sistêmicos mais relevantes para a construção do modelo

conceitual. Deste modo, este modelo pode ser reconstruído por autores com outro ponto de vista.

Referências

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ZONEAMENTOS GEOAMBIENTAIS NO OESTE DO RIO GRANDE DO SUL: FERRAMENTAS PARA PLANEJAMENTO E GESTÃO 179

ZONEAMENTOS GEOAMBIENTAIS NO OESTE DO RIO GRANDE DO SUL: FERRAMENTAS PARA

PLANEJAMENTO E GESTÃO

Luis Eduardo de Souza Robaina Universidade Federal de Santa Maria/LAGEOLAM

[email protected]

Introdução

O ordenamento do território e a planificação ambiental requerem o conhecimento detalhado de todos os aspectos e

pormenores da superfície terrestre que influenciem as atividades humanas ou que possam ser afetados ou alterados por

estas.

Os trabalhos de zoneamentos geoambientais pressupõem a integração dos elementos da natureza e as relações

envolvidas com o uso e ocupação. Dessa forma, tem sido utilizado em estudos de impactos ambientais em diferentes

empreendimentos, com importantes resultados, o que leva necessariamente ao reconhecimento da vulnerabilidade e

potencialidade da natureza.

Em muitos aspectos segue a teoria dos sistemas que, conforme Christofoletti (1982), serve como instrumento

conceitual que facilita tratar dos conjuntos complexos, como os da organização espacial. Na mesma direção Tricart (1977)

afirma que o conceito de sistema é o melhor instrumento lógico para estudar os problemas do meio ambiente, pois ele

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ZONEAMENTOS GEOAMBIENTAIS NO OESTE DO RIO GRANDE DO SUL: FERRAMENTAS PARA PLANEJAMENTO E GESTÃO 180

permite adotar uma atitude dialética entre a necessidade da análise e a necessidade contrária de uma visão de conjunto,

capaz de ensejar uma atuação eficaz sobre esse meio ambiente.

Para compreender os processos de dinâmica superficial é preciso ter uma visão dinâmica das relações entre os

diversos elementos do meio e analisar com uma visão de totalidade. Seguindo esta linha de raciocínio Vicente e Perez Filho

(2003) destacam que a abordagem sistêmica na Geografia insere-se na própria necessidade de reflexão sobre a apreensão

analítica do complexo ambiental, através da evolução e interação de seus componentes.

Na determinação das diferentes unidades geoambientais, integrando os elementos da sociedade e natureza,

utiliza-se como base a proposição, apresentada por Verdum (1997), para trabalhar a paisagem, que define quatro critérios: a

forma, a função, a estrutura e a dinâmica.

A forma corresponde ao aspecto visível, compreendendo os elementos que podem ser facilmente reconhecidos em campo,

bem como através de fotos aéreas e imagens de satélite;

A função pode ser compreendida pelas atividades que foram ou estão sendo desenvolvidas e que estão materializadas nas

formas criadas socialmente, por meio do espaço construído, das atividades agrícolas, mineradoras, entre outras, as quais também são

reconhecidas em campo e pelos produtos do sensoriamento remoto, através das diferenciações que apresentam em relação aos aspectos das

unidades de paisagem onde não ocorrem as diversas formas criadas socialmente;

A estrutura, que não pode ser dissociado da forma e da função, sendo reconhecida como a que revela os valores e as funções

dos diversos objetos que foram concebidos em determinado momento histórico. Desse modo, a estrutura revela a natureza social e econômica

dos espaços construídos e que, de certa maneira, interfere na dinâmica da paisagem anterior às intervenções sociais;

A dinâmica é a ação contínua que se desenvolve, ao longo do tempo, gerando diferenças entre as Unidades, na sua

continuidade e na sua mudança.

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ZONEAMENTOS GEOAMBIENTAIS NO OESTE DO RIO GRANDE DO SUL: FERRAMENTAS PARA PLANEJAMENTO E GESTÃO 181

Zoneamento Geoambiental

O zoneamento se caracteriza pela divisão da área analisada em unidades de acordo com as características de

seus atributos. As unidades representam áreas com heterogeneidade mínima quanto aos atributos e, em compartimentos,

com respostas semelhantes frente aos processos de dinâmica superficial.

As características geoambientais representam os elementos naturais que compõem o meio físico, como a

geologia, geomorfologia, pedologia, os aspectos climáticos, relevo, os quais são a base para o entendimento da estruturação

e organização do espaço físico, integrada as questões sociais, por isso, a elaboração de um estudo voltado ao planejamento

ambiental vem a contribuir na seleção de áreas para determinados fins de acordo com suas potencialidades e fragilidades.

Conforme Vedovello (2004), a Cartografia Geoambiental pode ser entendida, de forma ampla, como todo o

processo envolvido na obtenção, análise, representação, comunicação e aplicação de dados e informações do meio físico,

considerando-se as potencialidades e fragilidades naturais do terreno, bem como os perigos, riscos, impactos e conflitos

decorrentes da interação entre a ação humana e o meio ambiente fisiográfico. Pode, por isso, incorporar elementos bióticos,

antrópicos e sócio-culturais em sua análise e representação.

Procedimentos técnicos-metodológicos

A presente proposta está fundamentada em uma análise integrada dos componentes antrópicos e naturais com a

caracterização dos elementos básicos que formam estes componentes e da interpretação analítico integrativa para construir

aos documentos síntese (documentos finais).

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ZONEAMENTOS GEOAMBIENTAIS NO OESTE DO RIO GRANDE DO SUL: FERRAMENTAS PARA PLANEJAMENTO E GESTÃO 182

Conforme Cendrero (2004), as metodologias utilizadas para desenvolvimento dos mapas geoambientais podem

levar em consideração o enfoque analítico, que se utiliza da cartografia temática, ou o enfoque sintético, que segundo o autor,

apresenta a superfície como um mosaico de unidades homogêneas definidas por diferentes propósitos.

A figura 01 apresenta um fluxograma com os níveis dos documentos utilizados e elaborados na definição do mapa

Geoambiental. As categorias de informação analisadas e levantadas são as classes de documentos Básicos, Derivados e

Interpretativos e Finais, que em termos cartográficos representam a cartografia analítica e de síntese.

Na definição de uma unidade ambiental homogênea pode-se utilizar um único atributo ou um grupo deles para

formar uma unidade, que é a base para a análise de uma área. Define-se como atributo o elemento base que será inserido e

manuseado sobre um documento cartográfico, como informação que representa parte dos componentes do ambiente.

Os principais problemas para a elaboração do mapeamento incluem: selecionar, isolar, identificar e caracterizar os

atributos necessários para a correta delimitação das unidades. Os atributos analisados podem ser constantes ou variáveis no

espaço e/ou tempo. Portanto, para a elaboração do mapeamento, é necessário ter clareza dos parâmetros utilizados, bem

como o cuidado com a repetição no uso destes. O ponto fundamental é definir as unidades pertinentes que realmente

representem um determinado comportamento frente aos processos geomorfológicos.

A elaboração de Zoneamentos possui, na atualidade, o apoio indispensável de técnicas de sensoriamento remoto

e geoprocessamento, com software que permitem a visualização de vários temas em uma única visualização, sendo possível

a sua integração. Destaca-se o trabalho de Florenzano (2008) que apontam o crescente uso de Sistemas de Informações

Geográficas (SIGs) nas questões ambientais.

Os estudos para elaboração do mapa Geoambiental iniciam com um grupo de documentos básicos. Nesta etapa

são obtidos os mapas topográficos, carta imagem e demais mapas pré-existentes. As informações climáticas e de uso e

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ZONEAMENTOS GEOAMBIENTAIS NO OESTE DO RIO GRANDE DO SUL: FERRAMENTAS PARA PLANEJAMENTO E GESTÃO 183

ocupação são obtidas através de pesquisa em estações meteorológicas (na área de trabalho e no seu entorno) e órgãos

públicos e privados. Nesta etapa os trabalhos de campo são de reconhecimento da área.

Figura 1 – Esquema apresentando os diversos dados e mapas utilizados e construídos no desenvolvimento dos trabalhos de zoneamento.

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ZONEAMENTOS GEOAMBIENTAIS NO OESTE DO RIO GRANDE DO SUL: FERRAMENTAS PARA PLANEJAMENTO E GESTÃO 184

Os documentos derivados são produtos da integração de dados e da compilação de mapas básicos. A rede

hidrográfica é estudada através do fator forma da bacia, hierarquia e magnitude fluvial, que indicam energia da drenagem,

sua capacidade de transporte, erosão e deposição. O padrão e densidade da drenagem apresentam uma forte relação com a

tectônica e a capacidade de infiltração das rochas e solos.

Na etapa de desenvolvimento dos documentos derivados, é elaborado o mapa de uso da terra, com base na carta

imagem, que reflete áreas distintas da paisagem em um determinado momento.

Os documentos interpretativos são realizados a partir das informações e dos levantamentos, contidos nos

documentos básicos e derivados, apoiados por trabalhos de campo.

Os trabalhos de campo são realizados de forma investigativa, através de perfis, com apoio das imagens e cartas

topográficas. Os pontos coletados e inseridos em uma base georreferenciada, possibilitam a geração de planos de

informação temáticos (PIs), onde são construídos os mapas.

O mapeamento litológico apresenta através de uma análise integrada, a identificação e definição de diferentes

tipos de rochas que compõem o substrato do meio físico e os principais lineamentos estruturais.

O mapa de unidades de relevo identifica as principais características das vertentes e apresenta a distribuição das

formas de relevo. A delimitação de unidades de relevo parte da definição dos parâmetros de vertente e de sua influência nos

processos de dinâmica superficial

Os solos são descritos por seus aspectos físicos, como textura, estrutura e espessura. A variedade de tipos de

solo e sua distribuição espacial influenciam a eficiência dos usos e ocupações e a intensidade dos processos superficiais.

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ZONEAMENTOS GEOAMBIENTAIS NO OESTE DO RIO GRANDE DO SUL: FERRAMENTAS PARA PLANEJAMENTO E GESTÃO 185

As feições superficiais identificadas são representadas na forma de polígonos, linhas ou pontos. Caracterizam-se

como naturais e/ou antrópicas e englobam registros de processos erosivos acelerados, depósitos de encosta e fluviais,

barragens, pedreiras, saibreiras, entre outras.

A vegetação é determinada a partir da definição do grau de cobertura do solo. Diferencia-se a cobertura vegetal

pelo aspecto fisionômico predominante em campestre, arbustiva ou florestal e ocorrência de vegetação original ou exótica.

Os documentos finais são caracterizados pelas modificações antrópicas e por feições que representam a dinâmica

envolvida na interação entre a natureza e o homem. Os produtos cartográficos gerados são os mapas geomorfológicos, uso e

ocupação da terra e, finalmente, o mapa síntese definido como mapa geoambiental.

O mapa geomorfológico aparece como elemento chave para realização das interpretações geoambientais.

Constitui o produto integrador das formas e dos processos morfogenéticos. Registra o relevo, as litologias, solos e as feições

resultantes dos processos geodinâmicos e antrópicos que atuaram e que ainda atuam sobre os componentes do meio físico.

Dentro desse contexto, a geomorfologia nos fornece uma visão integrada do meio físico, pois considera as variáveis

responsáveis pela estrutura resultante da paisagem “visando à organização de um esboço geomorfológico e estabelecendo

uma síntese da compartimentação e seus reflexos na ocupação do solo” (CASSETI, 1981).

As informações e o mapeamento do uso e ocupação da terra constituem elementos essenciais de análise para o

zoneamento geoambiental, representando a integração dos diferentes usos com a dinâmica da ocupação.

Finalmente, o zoneamento ambiental fornece a organização de determinada área em unidades com características

ambientais semelhantes quanto às potencialidades de uso e ocupação devido às condições atuais da área, referentes tanto

as características físicas quanto as características de ação antrópica que constituirão sua dinâmica atual.

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ZONEAMENTOS GEOAMBIENTAIS NO OESTE DO RIO GRANDE DO SUL: FERRAMENTAS PARA PLANEJAMENTO E GESTÃO 186

Exemplo de trabalho desenvolvido

O exemplo se refere ao zoneamento e mapeamento Geoambiental desenvolvido no trabalho de Dissertação de

Mestrado de Dionara De Nardin (2009), realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

A área compreende os limites físicos das bacias hidrográficas existentes entre os municípios de São Francisco de

Assis e Manoel Viana, REGIÃO OESTE DO Rio Grande do Sul.

Figura 2 – Figura indicando a localização da área de pesquisa.

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ZONEAMENTOS GEOAMBIENTAIS NO OESTE DO RIO GRANDE DO SUL: FERRAMENTAS PARA PLANEJAMENTO E GESTÃO 187

Através de uma representação de síntese, foram definidos seis Sistemas e nove Unidades definidos por um ou mais

atributos da paisagem (Figura 3).

O mapa geoambiental, mostra a espacialização hierárquica distribuída em Sistema e Unidades, com suas principais

características, a fim de definir as condições de fragilidade, limitações de uso e as conseqüentes potencialidades de cada

porção. Dessa forma, alguns usos são definidores de unidade de zoneamento, como a ocupação urbana, pelas mudanças

que provocam no meio. Outras vezes, usos que modificam as características históricas da área, como no caso as plantações

de florestas exóticas, também, definem unidade e; outras vezes questões associadas a estrutura fundiária constituem

unidade, não somente por diferentes relações de uso que se estabelece com entre grandes e pequenas propriedades, mas

também pelas relações sociais e políticas envolvidas.

Com relação as características naturais são separadas unidades em áreas que mantém um grau de preservação das

condições naturais como é o caso da unidade denominada butiá anão e dos morrotes isolados de arenitos com aspectos

ruiniformes e vegetação preservada nas encostas (cerro chato). O zoneamento também é estabelecido por diferenças

lito/pedológicas, relevo e suas respostas frentes aos processos superficiais.

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ZONEAMENTOS GEOAMBIENTAIS NO OESTE DO RIO GRANDE DO SUL: FERRAMENTAS PARA PLANEJAMENTO E GESTÃO 188

Figura 3 – Zoneamento e mapeamento geoambiental desenvolvimento das bacias hidrográficas existentes entre os municípios de São Francisco de Assis e Manoel Viana.

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ZONEAMENTOS GEOAMBIENTAIS NO OESTE DO RIO GRANDE DO SUL: FERRAMENTAS PARA PLANEJAMENTO E GESTÃO 189

A relação entre o relevo, o substrato e o uso está apresentado, de forma esquemática, na figura 4, onde observa-

se para cada unidade características de fragilidade e de potencialidade ao uso, como também potencialidades naturais que

precisam ser preservadas para identificação do Bioma Pampa.

Figura 4 – Croqui esquemático apresentando a relação do relevo e o uso para cada compartimento definido no zoneamento.

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ZONEAMENTOS GEOAMBIENTAIS NO OESTE DO RIO GRANDE DO SUL: FERRAMENTAS PARA PLANEJAMENTO E GESTÃO 190

Considerações finais

Os mapas de zoneamento ambiental e de risco são muito efetivos como fontes de informações, principalmente em

pequenos municípios, pois possuem um grande papel para gestão e planejamento.

Estabelecer os diferentes cenário existentes é um importante instrumento para auxiliar no desenvolvimento de políticas

públicas, na medida em que permite hierarquizar os problemas, avaliar a necessidade de investimentos, e dar suporte técnico

ao poder público que, junto com a comunidade possam encontrar soluções.

As análises do uso da terra e da cobertura vegetal permitiram compreender como se espacializa o processo de

ocupação da área de estudo que associado às demais informações oportunizou a identificação das zonas de fragilidade e

potencialidade, necessárias para o zoneamento geoambiental.

O diagnóstico apresenta aspectos marcantes do Bioma Pampa, que é um dos Biomas com menor percentual de área

legalmente protegida. De acordo com o IBAMA (2006), nas áreas de ocorrência do Bioma Pampa stricto sensu - regiões da

Campanha, Depressão Central, Serra do Sudeste e Missões – somente 0,04% (cerca de 7.000 hectares) estão em Unidades

de Conservação de Proteção Integral, e, no entanto, nenhuma federal. Este fato remete-nos a sensação de que o

desconhecimento da biodiversidade tenha favorecido o não comprometimento com a preservação de determinadas porções

e, consequentemente, a provável extinção de espécies da fauna e da flora associadas a estes relictos.

Diferentemente do que vinha sendo divulgado no meio acadêmico e na imprensa desde os primeiros debates a

respeito dos processos de arenização no oeste gaúcho, a pesquisa aponta que o substrato litológico mais associado à

formação de areais, nos municípios de Manoel Viana e São Francisco de Assis, pertence aos arenitos friáveis de origem

fluvial da Formação Guará.

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ZONEAMENTOS GEOAMBIENTAIS NO OESTE DO RIO GRANDE DO SUL: FERRAMENTAS PARA PLANEJAMENTO E GESTÃO 191

Ressaltam-se importantes áreas de pesquisa dentro desse Bioma, apenas no recorte de estudo, relacionado com os

sítios arqueológicos, com a diversidade de espécies adaptadas, como as pitangas-do-campo (Eugenia arenosa) que está

incluída na lista das espécies ameaçadas de extinção segundo a Secretaria Estadual de Meio Ambiente (SEMA, 2009), e o

butiá-anão (Butia lallemantii) que recentemente foi considerado espécie endêmica dos campos gaúchos, bem como as

próprias formações campestres pouco conhecidas.

Referências

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CENÁRIOS EPISTÊMICOS DA SUSTENTABILIDADE 193

CENÁRIOS EPISTÊMICOS DA SUSTENTABILIDADE

Sergio Roberto Martins Dr. Eng. Agrônomo, Prof. Visitante do Universidade Federal de Santa Catarina, Departamento de Engenharia Sanitária e

Ambiental. [email protected]

Introdução

São muitas as perguntas sobre “sustentabilidade”. Mas uma das principais, senão a fundamental, é qual a episteme que

subjaz a este vocábulo? Especialmente quando se observa que a banalização da expressão oculta diferentes e contraditórios

entendimentos sobre a relação sociedade/natureza. O tema da sustentabilidade envolve pelo menos dois outros vocábulos

igualmente tão importantes e tão reveladores de significados: “ambiente” e “desenvolvimento”, e que emergem de diferentes

epistemes. As “respostas” que se necessitam para entender ou construir a relação sociedade/natureza são precedidas por

“perguntas” que nascem da episteme de quem as formula, e cujas respostas representam valores que por sua vez

determinam princípios e ações e, portanto, determinam caminhos e estratégias. Refletir sobre o significado epistêmico é

questão primordial na academia: como os saberes se organizam e se constroem, como se dá produção do conhecimento que

exige o pensamento reflexivo.

É no contexto de um mundo a cada minuto mais complexo, e que conforma o paradigma da sustentabilidade que

podemos identificar os cenários epistêmicos da sustentabilidade. Para tanto, o presente texto parte do cenário identificado

como “hegemônico institucional do pós-guerra”, representado pela Ordem Econômica Internacional inaugurada a partir do

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CENÁRIOS EPISTÊMICOS DA SUSTENTABILIDADE 194

acordo de Bretton Woods em 1944 (Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional, e futura Organização Mundial do

Comércio), onde se dá a atual “arena de disputa” epistemológica do paradigma da sustentabilidade. Identifica-se o “cenário

tea party” que se manifesta em oposição aos princípios do ideário da sustentabilidade (cooperação, harmonia, solidariedade,

etc). E finalmente destaca-se o cenário “outro mundo é possível” que afirma o desenvolvimento como um processo de

igualdade de oportunidade para todos poderem exercer suas potencialidades, considera a ação comunicativa no lugar da

ação instrumental, trabalha com a idéia da racionalidade ambiental como alternativa a racionalidade econômica, e aponta

para a importância de entender o significado de necessidades ontológicas e axiológicas. O texto aponta ainda o aumento da

complexidade da realidade, bem como os desafios e possibilidades que emergem, e da necessidade de estratégias para a

construção da sustentabilidade como um processo de construção social diferentes daquelas responsáveis pela

insustentabilidade do mundo atual caracterizado por sua crise civilizatória..

O contexto

O presente texto está contextualizado na conferencia proferida no II Seminário de Sustentabilidade da Região da

Campanha, realizado em novembro de 2010 e promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade

Federal de Santa Maria (Santa Maria, RS). Muito embora seu conteúdo não consiga expressar a riqueza da interação com os

participantes do evento quando de sua apresentação oral, a relevância do tema escolhido de comum acordo com os

organizadores do seminário revela-se, entre outras razões, por estar diretamente vinculado a “questão ambiental”,

considerada como a única utopia planetária e de único objetivo comum neste mundo tão desigual, violento, e injusto.

Ao mesmo tempo é um desafio enorme tratar de tema tão complexo e que exige, por definição, uma reflexão de modo

sistêmico, interdisciplinar, prospectivo, e absolutamente aberta. Aliás, de modo coerente com a proposta do evento que

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CENÁRIOS EPISTÊMICOS DA SUSTENTABILIDADE 195

assume o debate sobre a sustentabilidade, de modo crítico, a partir do entendimento de sua complexidade. Nunca é demais

recordar que a análise de questões complexas exige pensamento complexo.

A conferencia não teve como centralidade as especificidades sobre impactos ambientais, políticas públicas, ou sobre

“sociedade e cultura”, uma vez que estes temas foram tratados em outros momentos do evento. Seu objetivo foi proporcionar

um momento de reflexão coletiva contribuindo para formular melhores perguntas sobre a sustentabilidade, especialmente

qual a episteme que subjaz a este vocábulo.

Sobre sustentabilidade

A expressão sustentabilidade é um substantivo adjetivado que lhe confere um sentido, uma significação. Assim, o verbo

sustentar indica a ação que possibilita seu significado (sustentação), que lhe substantiva em última análise. Contudo, é

resultante da episteme de quem o está utilizando.

Assim, dentro do campo da economia o significado do vocábulo sustentabilidade pode ser exclusivo ou prioritariamente

monetário ou financeiro. Entretanto para um economista este entendimento pode variar, e bastante. A economia clássica, por

exemplo, considera que um “produto” e seu respectivo valor resulta de um sistema fechado, sem troca de fluxos de matéria e

energia com o meio e onde a natureza é vista como um externalidade do seu processo de produção. A economia é

considerada “o sistema”, a natureza é vista apenas como seu compartimento, apenas um subsistema. O valor de um produto

é apenas uma questão de oferta e demanda.

A economia ecológica, por exemplo, trata da sustentabilidade de forma diferente. A economia é vista como um sub-

sistema da natureza, e entende-se como um sistema aberto. A natureza é o sistema.

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CENÁRIOS EPISTÊMICOS DA SUSTENTABILIDADE 196

Estes distintos entendimentos, entretanto, permeiam outros campos do conhecimento que embasam a formação

científica e tecnológica e que são indutoras de forma e conteúdo para a intervenção na realidade de profissionais das mais

diversas atuações profissionais. Por exemplo, o que dizer sobre o campo das ciências agrárias, que lidam diretamente com

os elementos da biosfera no afã de produzir de alimentos, necessários por certo, mas cujas cadeias produtivas são apoiados

no petróleo como principal elemento fornecedor de energia, com consideráveis fluxos permanentes de matéria e energia em

todos seus elos. E o que dizer sobre o “senso comum”, sobre o campo não acadêmico, dos cidadãos que estão longe da

reflexão sobre estas questões de cunho teórico e conceitual, e que são considerados o mercado consumidor sofrendo as

conseqüências do significado da economia como um sistema fechado?

O tema da sustentabilidade envolve por sua vez pelo menos dois outros vocábulos igualmente tão importantes e tão

reveladores de distintos significados: “ambiente” e “desenvolvimento”. E que também emergem de diferentes epistemes.

Todas elas ávidas de “respostas” sobre como entender a relação sociedade/natureza, mas que necessitam ser precedidas

por “perguntas” que nascem e ao mesmo tempo são reveladoras de uma episteme. Assim, uma pergunta revela uma

episteme, que conduz a uma resposta e é fruto de valores. Estes, determinam princípios (por exemplo, os pressupostos da

sustentabilidade) que por sua vez determinam ações (tanto individuais como coletivas). Estas pressupõem estratégias (os

caminhos), a exemplo das políticas públicas ou mesmo opções individuais.

A episteme, portanto é um processo exclusivamente individual, fruto de mecanismos cognitivos, que envolvem razão e

emoção, e que permitem o pensamento reflexivo capaz de gerar conhecimento Assim, informação não é a mesma coisa que

conhecimento. A informação é fundamental para o conhecimento, porém é um ato de fora para dentro. O processo cognitivo é

um processo interno, individual, que apreende a informação, reflete sobre ela, e a transforma em conhecimento através do

pensamento.

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CENÁRIOS EPISTÊMICOS DA SUSTENTABILIDADE 197

Marilena Chaui (2001) explica de forma bastante pedagógica a expressão utilizada desde a Grécia antiga “o

pensamento é o passeio da alma”. É o exercício da consciência que permite nosso espírito sair de dentro de si mesmo para

conhecer o mundo. Assim, explica ela, a consciência ativa e reflexiva reconhece a diferença entre o interior e o exterior, entre

si e os outros, entre si e as coisas e recolhe as informações, avalia, pondera, faz conclusões, formulando a partir de então

idéias, conceitos, juízos, raciocínios e valores, estabelecendo princípios que redundam em ações. Chaui, mostra bem como a

consciência ativa e reflexiva se difere da consciência passiva (por exemplo o devaneio, a vaga percepção de nós mesmo ou

dos outros) e da consciência vivida (a percepção dos outros apenas a partir de nossos sentimentos).

Sobre as estratégias de desenvolvimento

Tem sido árdua e desafiante a participação das Universidades, públicas e privadas, tanto do ponto de vista individual de

seus docentes como de seu coletivo institucional, na construção de estratégias de desenvolvimento do país, de forma

articulada com os demais setores sociedade civil. Certamente estimulados pelo poder público e fruto da dinâmica social

provocada pela relação local/global que foram estreitando-se e intensificando-se especialmente nas últimas décadas

marcadas pelo processo de redemocratização do país. Neste sentido são exemplares, particularmente no Rio Grande do Sul,

os sucessivos esforços de “desenvolvimento local” desde os anos 80, com destaque pelo menos para duas importantes

iniciativas, dentre tantos outros: os seminários regionais de “desenvolvimento científico e tecnológico” estimulados pela

“Secretaria Estadual de C&T” e posteriormente, como desdobramento, a criação dos Conselhos Regionais de

Desenvolvimento. Entre as distintas questões debatidas naquele perído assumia centralidade as disparidades regionais, e de

modo especial o empobrecimento da “metade sul” do Estado e a necessidade urgente de “saídas” para o desenvolvimento

daquela região. Não faltou inclusive quem propusesse a criação de um novo Estado (o Estado de Piratini), como solução aos

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CENÁRIOS EPISTÊMICOS DA SUSTENTABILIDADE 198

limites sócio-econômicos da ”metade sul”. É fundamental destacar que este período de redemocratização do país, é

coincidente com o período que ficou conhecido como a “década perdida” para a América Latina quando os investimentos

externos foram para a Ásia fortalecendo o conjunto de países na época denominados como “Tigres Asiáticos”.

Curiosamente pouca atenção era dada pelos distintos atores sociais participantes dos debates sobre as estratégias de

desenvolvimento, e de modo especial pela própria Universidade como um dos atores fundamentais (é bom lembrar que a

maioria dos debates eram realizados nos campus universitários do Estado) ao significado do vocábulo “desenvolvimento”.

Não se indagava sobre qual a episteme que embasava aquela expressão, muito embora era notório ou pelo menos possível

desconfiar que o sentido de “desenvolvimento” não era exatamente o mesmo para os distintos atores sociais envolvidos nos

debates. Sentia-se um verdadeiro vazio quanto ao arcabouço teórico que permitisse compreender o que se ocultava através

da expressão “desenvolvimento”.

Há que se registrar que o Relatório Brundtland (Nosso Futuro Comum) já estava sendo gestado na década de 80 (foi

concluído em 1987), e o Relatório Meadows “Os limites do crescimento” (questionador do modelo de desenvolvimento do

pós-guerra) fora publicado em 1972 na esteira da Conferência das Nações Unidades sobre Desenvolvimento e Meio

Ambiente realizada em Estocolmo naquele mesmo ano. Portanto, muito embora desde 1972 quando aparece o vocábulo

“ecodesenvolvimento” desdobrado posteriormente na expressão “desenvolvimento sustentável” da Comissão Brundtland, os

debates sobre as estratégias de desenvolvimento regional no Estado, anteriormente referidas, não aprofundavam com o rigor

necessário o significado de “desenvolvimento”. Não permitiam identificar sua episteme. Não davam lugar a tais

questionamentos. Desenvolvimento era visto como um processo necessariamente virtuoso, bom, que “alavancaria”

(expressão muito usada a época) soluções econômicas paras as distintas regiões do Estado, e conseqüentemente como num

passe de mágica transformaria as realidades locais. Se no âmbito global a estratégia era questionar o modelo de

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CENÁRIOS EPISTÊMICOS DA SUSTENTABILIDADE 199

desenvolvimento e construir soluções a partir de novas epistemes, aqui a idéia predominante era perseguir um modelo de

desenvolvimento assentado na velha premissa do “crescer para depois desenvolver”.

Portanto há necessidade de entender a construção epistêmica desse processo, tanto no âmbito global como local. Ou

seja, descobrir, destapar, descortinar, desembrulhar, des(envolver) o que estava sendo gestado naquele momento e segue

sendo apresentado como desenvolvimento, e adjetivado a partir dos anos 80 como “sustentável”. Detalhes sobre esta

questão podem ser encontrados no texto que trata da realidade latino-americana daquela década, especialmente no

momento em que o continente era subjugado às políticas de reajuste econômico vigentes (Martins, 2007). O pensamento que

perpassa a análise do mencionado texto, por exemplo, é fruto da consciência ativa reflexiva e que embasa a episteme que

procede a análise crítica sobre o vocábulo de “desenvolvimento sustentável”, e onde o “pensar sobre o desenvolvimento

sustentável de um sistema” dá lugar a “pensar sistemicamente sobre o desenvolvimento sustentável”.

Os cenários epistêmicos

Nesta trajetória, olhando sistemicamente o desenvolvimento como um processo de construção social pode-se identificar

alguns cenários epistêmicos, que conformam a realidade e nos quais o ideário da sustentabilidade se materializa em ações

concretas.

O cenário hegemônico do “direito ao desenvolvimento”:

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CENÁRIOS EPISTÊMICOS DA SUSTENTABILIDADE 200

É a partir da segunda guerra mundial que se configura uma “ordem econômica internacional” inaugurada no acordo de

Bretton Woods em 1944 para a reconstrução do capitalismo mundial, e liderada desde então pelo Fundo Monetário

Internacional (FMI), Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) mais tarde desdobrado em Banco

Mundial (BM), e o Acordo Geral para Tarifas e Comércio (GATT) transformado em Organização Mundial do Comércio em

1995. Tal ordem irá determinar o caminho da denominada moderna civilização ocidental e os instrumentos para tal,

assentada numa sociedade organizada com base no trabalho, mercado e sistemas políticos democráticos, e partindo da idéia

que o crescimento das economias determina o aumento da riqueza das nações. Assumido como “desenvolvimento”, tal idéia,

abre espaço para a construção do “direito ao desenvolvimento” desde a conferencia da Organização Internacional do

Trabalho em 1944, até a Resolução 41/128 da Assembléia Geral das Nações Unidas em 1986.

O direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável, em virtude do qual toda pessoa e todos os povos

estão habilitados a participar do desenvolvimento econômico, social, cultural e político, a ele contribuir e dele desfrutar, no

qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais possam ser plenamente realizados.

A resolução constitui-se num conjunto de 10 artigos, onde ficam plasmadas questões fundamentais tais como: a pessoa

humana como sujeito central do desenvolvimento, a obrigação dos Estados na formulação de políticas nacionais adequadas

para o “desenvolvimento” e seu dever na distribuição eqüitativa dos benefícios daí resultantes, e a necessidade da

cooperação internacional para prover os países de meios e facilidades apropriados para incrementar seu amplo

desenvolvimento. Entretanto, a Resolução da ONU não traz nenhuma questão específica com relação a “questão ambiental”,

exceto o aspecto de respeito a soberania plena dos países sobre sua riquezas e recursos naturais, muito embora durante

esta mesma década dos 80 estive sendo elaborado o Relatório Brundtland “Nosso Futuro Comum” como preâmbulo da

Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, que seria realizada no Rio de Janeiro em 1992.

Conhecida também como “Cúpula da Terra” por sua preocupação com respeito a relação sociedade/natureza.

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CENÁRIOS EPISTÊMICOS DA SUSTENTABILIDADE 201

Particularmente no caso brasileiro, a “questão ambiental” passa a ser incorporada à constituição de 1988 embora já

estivesse contida na Lei 6.938/81: que estabeleceu a Política Nacional de Meio Ambiente, embora dentro de um contexto

bastante conturbado da vida nacional (período ditatorial e de um modelo desenvolvimentista e voraz com relação aos

recursos naturais).

Não seria exagerado considerar que em 1992, na Conferencia da ONU, no Rio de Janeiro, inaugura-se “oficiosamente” a

idéia de “um outro tipo de desenvolvimento” adjetivado como ”sustentável”. Mas com um significado vago e polissêmico,

induzindo a que todos em alguma medida pudessem ser contemplados, mas sem deixar clara a episteme que lhe desse um

real sentido. Refere-se a garantia de necessidades presentes e futuras mas sem esclarecer qual o seu real significado.

Contudo, é no conjunto de idéias emanadas da ECO-92, a exemplo da carta climática, tratado da biodiversidade,

agenda 21, etc, preocupadas com a harmonização entre sociedade e natureza, que se processa a dinâmica prática do

“desenvolvimento” e as epistemes que lhe subjazem. É nessa idéia vaga de “desenvolvimento sustentável” capitaneada pela

ONU e seus organismos multilaterais, e determinantes das estratégias de “desenvolvimento” (públicas e privadas), que se

constitui, talvez, a principal arena de disputas.

A Constituição Brasileira, de 1988, por exemplo, no que pese revelar importante preocupação dos constituintes quanto a

“questão ambiental” certamente reflete suas epistemes em outras questões tais como previdência, saúde, educação, relações

trabalhistas, etc. Estas, passam a ser emanadas de políticas públicas formuladas por segmentos importantes da sociedade

que comungavam à época do pensamento neoliberal vigente, tendo como conseqüência a privatização de funções sociais do

Estado, como bem demonstra Gros (2003) em sua tese de doutoramento. Ou seja, trata-se de uma episteme constituída de

elementos reveladores da concepção de sociedade à mercê do mercado e do “Estado mínimo” e conformam o protagonismo

de estratégias de desenvolvimento que fazem parte da arena de disputas da sustentabilidade.

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CENÁRIOS EPISTÊMICOS DA SUSTENTABILIDADE 202

A referida tese mostra a importância, nesse processo, de instituições catalizadoras de idéias, dentro do conceito think

tank que produzem e difundem conhecimentos e estratégias sobre determinados assuntos, e participam da arena, disputando

o significado da sustentabilidade.

Desta arena emergem as contradições do modelo de desenvolvimento “idealizado” como harmônico entre sociedade e

natureza, pretensamente centrado no ser humano, preocupado com as grandes questões globais, etc. e assumido como

“sustentável” a partir da ECO-92 no Rio de Janeiro. Paradoxalmente, ao mesmo tempo, o significado de desenvolvimento

segue cada vez mais atrelado a dimensão econômica e reduzido aos aspectos quantitativos do produto interno bruto (idéia de

crescimento), ao ponto de não ser equivocado afirmar que hoje a dimensão econômica é mais forte e mais dura do que foi no

início dos anos 50, tanto para a relação entres os homens como para a relação entre sociedade e natureza. O trio de

organizações BM, FMI, e OMC segue fortalecido e determinante em boa medida das estratégias globais. A economia parece

que perdeu definitivamente o pudor na medida em que representa cada vez menos o sistema produtivo mundial em

detrimento ao seu atrelamento com o sistema financeiro global. A recente crise mundial provocadas pela ganância sem

medidas do sistema financeiro e onde os “bancos privados” foram socorridos pelos governos, é bastante representativa do

referido paradoxo

Como corolário dessa contradição, o número dos que vivem abaixo da linha da pobreza segue aumentando: já somam

1,4 bilhões de pessoas, cujas conseqüências sócio-ambientais são mostradas a cada ano a ONU e seus organismos

colaterais nos seus relatórios, num contexto de complexidade crescente no qual as mudanças climáticas é o fenômeno mais

revelador.

O cenário “Tea party”

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Outro cenário epistêmico, extremamente importante pelo poder que representa na definição de estratégias presentes e

futuras quanto ao significado de desenvolvimento, é o movimento “tea party” que tem arregimentado milhões de norte-

americanos e que foi decisivo nas ultimas eleições, freando as estratégias do partido dos democratas, colocando em cheque

o programa do Presidente Barak Obama. É bastante significativo o fato de sua equipe econômica atual ser constituída pelos

mesmos operadores financeiros responsáveis pela crise econômica global, alvo de suas principais críticas quando da disputa

presidencial.

Neste movimento se pode identificar um cenário epistêmico que se contrapõe diretamente ao ideário da

sustentabilidade. É o lado mais conservador e violento da disputa na arena do processo de desenvolvimento. É ligado aos

setores políticos mais conservadores e propaga uma série de idéias polêmicas sobre economia e também sobre política

social, relações internacionais, direitos civis e religião. É caracterizado pelo extremo super-patriotismo, é de caráter racista e

imperialista, profundamente dogmático, valoriza a força física e promove valores militares e religiosos. É amplamente

financiado por grandes grupos empresariais e tem apoio das igrejas fundamentalistas. Seu ideário econômico é ultra-liberal,

na defesa exacerbada dos interesses do mundo empresarial. O eixo central de suas propostas é a redução máxima do

tamanho e do papel do Estado. Considera que valores da solidariedade, da cooperação, do sentido coletivo, da diversidade

cultural e racial, etc. (valores que estão na base da sustentabilidade), são sinais de fraqueza, de debilidade, sinais de

perdedores, a partir dos quais não se pode esperar o fortalecimento de uma grande nação – os USA - como o “farol” do

mundo moderno capitalista.

Tal cenário tem sua capilaridade também aqui no Brasil e pode ser identificado facilmente, particularmente em posturas

contrárias ao avanço democrático e da afirmação da cidadania, de conquistas sociais, a exemplo das questões de liberdades

civis, racial, sexual, etc. E especialmente na questão ambiental, conforme tem ficado explícito nos embates sobre o novo

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CENÁRIOS EPISTÊMICOS DA SUSTENTABILIDADE 204

código florestal brasileiro, e nas estratégias de desenvolvimento onde a questão da ocupação da floresta amazônica tem sido

marcada pela truculência de assassinatos de lideranças ambientalistas que defendem a floresta e os povos indígenas que ali

vivem.

Cenário do outro mundo é possível:

O desafio que se coloca é como construir na complexidade do mundo real onde se processa a dinâmica social com sua

multi-dimensionalidade (econômica, ambiental, cultural, tecnológica, científica, etc), uma nova episteme para uma ordem que

se assente numa nova idéia de desenvolvimento na qual o ideário da sustentabilidade seja intrínseco, e que dispense

inclusive a necessidade do uso do adjetivo “sustentável” para caracterizá-lo. Ou seja, é possível pensar num cenário

alternativo aos dois primeiros, muito embora deva emergir da realidade concreta onde ambos estão presentes.

Neste contexto do mundo real, algumas premissas se impõem:

a) A “ordem” vigente não é uma fatalidade à qual todos estão condenados para sempre;

b) A “ordem” é um processo de construção social, no qual todos são protagonistas;

c) A passagem de uma “ordem” para outra não será dada de forma abrupta, e sim num processo de transição como fruto

de conquistas e não de concessões.

Olhares mais céticos vislumbram que as mudanças para a construção de uma nova ordem, de uma nova idéia de

desenvolvimento, somente ocorrerão como resultante dos limites que o próprio sistema vai impondo a si mesmo (seu

processo autofágico).

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CENÁRIOS EPISTÊMICOS DA SUSTENTABILIDADE 205

Mas há que se recordar que, considerando o tempo histórico, a idéia de desenvolvimento do pós-guerra (que tem como

premissa básica a idéia do crescimento) é muito recente e hoje é questionada na medida em que perdeu elementos

fundamentais da ciência que lhe deu origem (biologia) e que obrigaria, por definição, considerar a completude de processos

virtuosos à exemplo daqueles contidos no ciclo da vida. Mesmo a idéia de progresso e de economia do mundo grego -

assentada na prática do bem, e do respeito a natureza - também foram paulatinamente sendo desvirtuados.

Assim trata-se de recuperar este significado do desenvolvimento, para o qual o processo cognitivo, do pensamento

reflexivo, é fundamental. Neste processo a idéia da “visão sistêmica sobre o desenvolvimento” sobrepõe-se à ideia “do

desenvolvimento de um sistema”. Prevalece compreensão da multi-dimensionalidade do desenvolvimento: em que as

dimensões social, ecológica, cultural, econômica, etc, não pressupõem hierarquia entre si. Uma está imbricada na outra.

Entretanto, a idéia da construção de uma transição, não é desprovida de ingenuidade. No mundo real, do aqui e agora,

os desafios são enormes. Na ordem vigente a economia continua sendo o motor do desenvolvimento. As motivações se dão

por esta dimensão, o que implica em estratégias produtivas, as escolhas, as políticas públicas, etc. que em nome do

mercado, responsáveis pela insustentabilidade planetária, continuem pautando o presente e hipotecando o futuro. O consumo

segue sendo o “motor” e em seu nome, tudo se justifica.

Por outro lado, não são poucos os que estão engajados na construção de uma nova ordem, mostrando que não

estamos condenados ao presente. Os milhares de movimentos sociais espalhados pelo mundo todo dão conta disso.

Especialmente pelas crescentes alternativas de conexão imediata entre as pessoas através das inúmeras redes sociais, que

mostram seu interesse e prática em prol de uma melhor qualidade de vida, pelo desejo e real possibilidade de construir um

“outro mundo”, seja através de ações individuais ou coletivamente organizadas.

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CENÁRIOS EPISTÊMICOS DA SUSTENTABILIDADE 206

Considerações finais

Este cenário do “outro mundo é possível” está sendo construído com uma outra episteme na qual algumas contribuições

são essenciais, contidas por exemplo nos preceitos pedagógicos de Paulo Freire, na ação comunicativa proposta por Fritjof

Capra em lugar da ação instrumental bem como o pensamento e valor integrativo no lugar do auto-afirmativo, na idéia da

“racionalidade ambiental” proposta por Henrique Leff, no significado de necessidades (existenciais/ontológicas e

axiológicas/valores) apontadas por Manfred Max-Neef, na idéia de desenvolvimento libertário como possibilidade das

pessoas desenvolverem seus potenciais proposta por Amartya Sen, entre outras.

Há que se considerar, contudo, que é na realidade cada dia mais complexa que se processa a episteme para a

construção de um novo modelo de desenvolvimento cunhado pela expressão sustentabilidade que lhe confere um sentido,

uma significação de algo distinto do que temos vivido desde o pós-guerra e que tem sido responsável pelo desencontro entre

os homens e pela tentativa de separar o que é inseparável: o homem e natureza. Certamente tal construção epistêmica

depende de um número cada vez maior de variáveis e de componentes, e se por um lado significa desafios, a abordagem

sistêmica mostra que pode transformar-se ao mesmo tempo num maior numero de possibilidades para que se concretize.

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CENÁRIOS EPISTÊMICOS DA SUSTENTABILIDADE 207

MARTINS, S.R. Limites del Desarrollo Sostenible para América Latina en el marco de las políticas de (re)ajuste económico. Pelotas: UFPEL, 1997, 139p.

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QUESTÕES AMBIENTAIS DA ATUALIDADE: A PROBLEMÁTICA DO LIXO EM SÃO GABRIEL/ RS 208

QUESTÕES AMBIENTAIS DA ATUALIDADE: A PROBLEMÁTICA DO LIXO EM SÃO GABRIEL/ RS

Gabriela Dambros

Acadêmica do curso de Geografia

Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)

[email protected]

José Antônio Louzada Acadêmico do Curso de Agronomia

Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) [email protected]

Liliane Costa de Barros

Graduada em Biologia (ULBRA)

Acadêmica do curso de Geografia

Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)

[email protected]

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QUESTÕES AMBIENTAIS DA ATUALIDADE: A PROBLEMÁTICA DO LIXO EM SÃO GABRIEL/ RS 209

RESUMO

Dentre os problemas ambientais mais graves enfrentados atualmente destaca-se o lixo uma vez que causa seqüelas,

tanto para o meio ambiente quanto para a saúde da população. O lixo tornou-se uma das grandes preocupações de ordem

sanitária e ambiental para as cidades. Nessa perspectiva o presente trabalho objetiva discutir os possíveis impactos no que

tange aos aspectos socioambientais causados pelo aterro sanitário do município de São Gabriel/RS. O Aterro Sanitário de

São Gabriel está localizado nas proximidades do Trevo de acesso ao Bairro Universitário, em direção a Rosário do Sul. Para

chegar ao Aterro há a necessidade de andar-se 1,8 km em estrada de chão. A instalação do aterro foi feita próximo ao Bairro

Universitário pela necessidade de ser afastado do perímetro urbano da cidade para que a população seja poupada do

desconforto visual, riscos à saúde pública e pela proximidade da coleta de lixo. Metodologicamente o trabalho estrutura-se

em etapas, a primeira etapa refere-se à fundamentação das bases teóricas que norteiam o trabalho, seguida de levantamento

de dados de fontes secundárias em órgãos como IBGE e Prefeitura de São Gabriel a fim de verificar a situação do aterro

sanitário e como é feita a coleta dos resíduos sólidos no Município. Posteriormente far-se-á trabalho de campo no qual visitar-

se-á bairros da cidade a fim de se observar e capturar imagens da presença do lixo. Como a pesquisa está em andamento

não tem-se ainda resultados finais, todavia, destacam-se algumas considerações, como a adoção de novas práticas como a

reutilização de papéis e materiais passíveis de serem reutilizados, diminuirão o volume de resíduos. Com pequenas atitudes

incorporadas no dia-a-dia aumentará a proteção do solo, ar e água, gerando melhores condições de saúde, qualidade de vida

e saúde ambiental.

Palavras-chave: Aterro sanitário; São Gabriel; Impactos ambientais.

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QUESTÕES AMBIENTAIS DA ATUALIDADE: A PROBLEMÁTICA DO LIXO EM SÃO GABRIEL/ RS 210

INTRODUÇÃO

Com a globalização surgiu a necessidade de ganho de produtividade das grandes empresas que buscam o aumento

do consumo pela população. O consumo desenfreado promove grandes desequilíbrios socioambientais e neste contexto

emergem discussões sobre as questões ambientais, no sentido de avaliar a situação atual e as perspectivas futuras.

Dentre os problemas ambientais mais graves enfrentados atualmente destaca-se o lixo uma vez que causa seqüelas,

tanto para o meio ambiente quanto para a saúde da população. O lixo tornou-se uma das grandes preocupações de ordem

sanitária e ambiental para as cidades.

Nessa perspectiva o presente trabalho objetiva discutir os possíveis impactos causados pelo aterro sanitário do

município de São Gabriel/RS (MAPA 1).

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QUESTÕES AMBIENTAIS DA ATUALIDADE: A PROBLEMÁTICA DO LIXO EM SÃO GABRIEL/ RS 211

Mapa 1: Mapa de localização do município de São Gabriel/RS.

Org.: Dambros, G.; Louzada, J. A.; Barros, L. C.de, 2010.

O presente trabalho justifica-se pelo fato de que os problemas decorrentes da poluição causada pelo lixo podem

comprometer a qualidade de vida da população do Município, seja pela contaminação do solo, do ar e da água, assim como o

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QUESTÕES AMBIENTAIS DA ATUALIDADE: A PROBLEMÁTICA DO LIXO EM SÃO GABRIEL/ RS 212

não aproveitamento dos resíduos sólidos como elemento que possa contribuir para o desenvolvimento econômico local

sustentável e de modo a minimizar os impactos ambientais causados pela má condução de tratamentos de resíduos sólidos.

Assim, busca-se o entendimento do que é um aterro sanitário, o qual nas palavras de Mousinho (2003, p. 333) é “forma

de disposição final de resíduos sólidos que obedece a um conjunto de normas operacionais e critérios técnicos, de modo a

evitar riscos á saúde publica e ao ambiente. Os resíduos são depositados em terrenos impermeabilizados e, a seguir,

compactados e recobertos por camadas de terra”.

O município de São Gabriel possui um Aterro Sanitário de 11 ha, localizado nas proximidades do Trevo de acesso ao

Bairro Universitário (PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO GABRIEL, 2010).

O aterro sanitário possui grande importância para a sociedade, pois aumenta o número de empregos, reduz impactos à

saúde humana, gera renda e proporciona melhores condições de vida para a população de São Gabriel.

Com o problema do descarte de lixo na cidade, há também a campanha “Lixo tem horário” que indica para a população

sobre os horários que o caminhão fará a coleta, diminuindo o acúmulo de lixo em calçadas e que estes se espalhem pela

ação do vento.

O aterro sanitário consiste na deposição controlada de resíduos sólidos no solo e diariamente deverá ser feita sua

cobertura e assim estes resíduos se degradam naturalmente por via biológica, essa técnica minimiza os impactos ambientais,

pois apresentam uma configuração bastante elaborada (setor de preparação, execução e conclusão).

Na preparação da área onde será feito o aterro são realizados a impermeabilização, nivelamento do terreno, obras

para captação do chorume e vias de circulação. As áreas que limitam o terreno devem estar cercadas de uma “cerca viva”

com o intuito de diminuir os odores gerados pelo lixo e diminuir a poluição visual.

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QUESTÕES AMBIENTAIS DA ATUALIDADE: A PROBLEMÁTICA DO LIXO EM SÃO GABRIEL/ RS 213

O local onde se encontra o aterro sanitário de São Gabriel foi selecionado por ser afastado da zona urbana da cidade,

poupando a população local do desconforto visual, proliferação de micro (e macro) vetores e ter localização que permite a

maior racionalização do transporte de lixo coletado em todo o município.

O local selecionado para implementação de aterros deve ser dotado de topografia dominante que possibilite sua

utilização por grandes períodos, no caso de São Gabriel o Plano de Saneamento é de 30 (trinta) anos, entre 2011 e 2040.

ELEMENTOS TEÓRICOS CONCEITUAIS

SÃO GABRIEL

História

São Gabriel foi fundada em 02 de novembro de 1800, pelo espanhol Dom Felix de Azara. Em 16 de dezembro de

1813, o Governador da Província mandou que fosse feita a demarcação do terreno onde a cidade seria erguida. Em 1840 foi

eleita a Capital da República Rio Grandense.

São Gabriel foi elevada a categoria de município de acordo com a Lei Provincial nº 8 de 04 de abril de 1846, com a

instalação da Câmara de Vereadores onde o presidente exercia o Poder Executivo (PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO

GABRIEL, 2010).

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QUESTÕES AMBIENTAIS DA ATUALIDADE: A PROBLEMÁTICA DO LIXO EM SÃO GABRIEL/ RS 214

O município está ligado historicamente às armas, sendo muito chamado de “Terra dos Marechais”, porque é a cidade

onde nasceram marechais ilustres como Fábio Patrício de Azambuja, Hermes da Fonseca, Mascarenhas de Moraes e João

Propício Menna Barreto, na cidade também viveram Alcides Maia, que foi o primeiro gaúcho a ser admitido na Academia

Brasileira de Letras e o teólogo fundador da PUC do Rio de Janeiro, Padre Leonel Franca (PREFEITURA MUNICIPAL DE

SÃO GABRIEL, 2010).

Acessos

O município de São Gabriel está situado na fronteira-oeste do Rio Grande do Sul, na metade sul, na rota do Mercosul,

às margens da BR 290. Está situada a 320 quilômetros de Porto Alegre, 300 quilômetros de Uruguaiana, 170 quilômetros de

Livramento, fazendo parte de um corredor de exportação e importação.

Sua posição está estrategicamente relacionada às principais cidades do Mercosul, Brasil: Porto Alegre, Rio Grande

(Porto Oceânico), Uruguaiana (Porto Seco Internacional); no Paraguai: Assunção (Capital Federal); na Argentina: Buenos

Aires (Capital Federal e Porto); no Uruguai: Montevidéu (Capital Federal e Porto) e no Chile: Valparaíso (Porto Marítimo no

Oceano Pacífico).

De acordo com dados do Plano de Saneamento da Prefeitura Municipal de São Gabriel, a cidade possui intenso

tráfego de veículos de cargas, sendo que no período de veraneio tem aumentado significativamente o número de ônibus de

turismo e veículos particulares vindos da Argentina.

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QUESTÕES AMBIENTAIS DA ATUALIDADE: A PROBLEMÁTICA DO LIXO EM SÃO GABRIEL/ RS 215

São Gabriel estabelece uma ligação entre o norte do Estado do Rio Grande do Sul (RS) até o pólo rodo-ferroviário da

cidade de Santa Maria, tornando-se via alternativa de acesso ao Uruguai através de Santana do Livramento poderá reduzir a

distância entre São Gabriel e Santa Maria em quase 80 km.

Uso e Cobertura do Solo

De acordo com o IBGE (1992), a classificação da vegetação do Estado do Rio Grande do Sul, o município de São

Gabriel possui quatro regiões fitoecológicas: Estepe (77,76%), Área de Formação Pioneiras (11,64%), Floresta Estacional

Decidual (11,64%) e Área de Tensão Ecológica (8,82%).

Cerca de 49,23% do solo da área municipal é coberto pelo uso antrópico (agriculturas irrigadas, sem irrigação,

silvicultura) e 50,48% do território ainda possui cobertura vegetal original.

Entretanto, a classe onde pertence o sistema antrópico caracteriza um potencial de risco.

O município de São Gabriel possui um Aterro Sanitário que se localiza próximo ao Trevo de acesso do Bairro

Universitário (em direção a Rosário do Sul), ocupando uma área total de 11 ha.

2.1.3 Resíduos Sólidos e Lixo

A denominação para “resíduos sólidos”, segundo a Política Nacional de Gestão de Resíduos Sólidos (2010)

compreende aspectos inerentes a composição e destino dos resíduos. Denomina os resíduos sólidos como sendo

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QUESTÕES AMBIENTAIS DA ATUALIDADE: A PROBLEMÁTICA DO LIXO EM SÃO GABRIEL/ RS 216

Material, substância, objeto ou bem descartado resultante de atividades humanas em sociedade, a cuja destinação

final se procede, se propõe proceder ou se está obrigado a proceder, nos estados sólido ou semissólido, bem como gases

contidos em recipientes e líquidos cujas particularidades tornem inviável o seu lançamento na rede pública de esgotos ou em

corpos d‟água, ou exijam para isto soluções técnica ou economicamente inviáveis em face da melhor tecnologia disponível.

Lixo é tudo aquilo que não apresenta nenhuma utilidade para quem o descarta, porém para outro pode tornar-se

matéria-prima de um novo produto ou processo, ou seja, resíduo sólido. A palavra sólida é incorporada para diferenciar de

líquidos e gases. No Brasil, a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) via NBR31 10.004 (1987) atribui a seguinte

definição aos resíduos sólidos

[...] todos aqueles resíduos nos estado sólido e semi-sólido que resultam da atividade da comunidade de origem

industrial, doméstica, hospitalar, comercial, de serviços, de varrição ou agrícola. Incluem-se os lodos de Estações de

Tratamento de Água (ETAs) e Estações de Esgotos (ETEs), resíduos gerados em equipamentos e instalações de controle da

poluição e líquidos que não possam ser lançados na rede pública de esgotos, em função de suas particularidades.

31 Normas Brasileiras Registradas.

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QUESTÕES AMBIENTAIS DA ATUALIDADE: A PROBLEMÁTICA DO LIXO EM SÃO GABRIEL/ RS 217

Qual é a diferença entre lixo e resíduos sólidos? Nenhuma, antigamente os resíduos sólidos eram denominados lixo e

fim. Atualmente há uma compreensão que os materiais separados, passíveis de reciclagem ou reaproveitamento recebem

tratamento de resíduos sólidos, enquanto os materiais misturados e acumulados têm mais uma conotação de lixo.

Resíduos sólidos fazem parte dos resíduos que são gerados após sua utilização, produção ou bens de consumo como,

por exemplo, aparelhos celulares, computadores, televisores, ente outros.

A maioria dos resíduos é produzida em grandes centros urbanos, oriundos de indústrias, escolas, residências e

construções civis. Esses resíduos sólidos são compostos de materiais que podem ser recicláveis, podendo voltar para a

cadeia de produção e gerar lucros para trabalhadores. No entanto, é necessário que exista um sistema de coleta seletiva,

pois alguns tipos de resíduos sólidos causam danos ao meio ambiente (pilhas, baterias).

Todo resíduo sólido, semi-sólido e/ou semi-líquido procedente da atividade humana, ou aqueles gerados de processos

naturais, como por exemplo: poeira, ramos mortos, cadáveres de animais, etc. são considerados como “lixo”.

A grande parte das sociedades modernas geram o aumento exagerado na quantidade de lixo, o que faz com que na

atualidade o lixo urbano seja um dos maiores problemas, pois quando mal administrado aumenta a proliferação de animais

transmissores de doenças (ratos, moscas, mosquitos), causa mau cheiro, polui (solos, águas e o visual), há também a

preocupação com a queima do lixo (que contamina o ar).

Conforme Bérrios (2003) o lixo pode ser considerado o produto na saída de um sistema (output), ou seja, aquilo que foi

rejeitado no processo de fabricação, ou que não pode mais ser reutilizado em função das tecnologias disponíveis. Assim, na

língua portuguesa, o termo resíduo sólido tem substituído a palavra lixo em uma tentativa de desmistificar o produto do

metabolismo social e urbano.

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QUESTÕES AMBIENTAIS DA ATUALIDADE: A PROBLEMÁTICA DO LIXO EM SÃO GABRIEL/ RS 218

Na tabela pode-se analisar a classificação adotada para os diferentes tipos de lixo:

A produção de lixo já faz parte da história da humanidade, sua produção é, praticamente, inevitável, sendo que na

atualidade a produção do lixo em grande quantidade se deve a grande produção de produtos industrializados e bens de

consumo descartáveis.

Para um gerenciamento adequado do lixo, faz-se necessário que exista um programa ambiental que veja uma forma

de reduzir o consumo, reutilize e recicle o lixo (R3) e ações planejadas que levem em conta e garantam uma melhor

qualidade de vida para a geração atual e futuras.

TIPO DE LIXO COMPOSIÇÃO

Doméstico Restos de alimentos, embalagens, papéis, etc.

Comercial Papéis, papelões e plásticos.

Industrial Madeiras, tecidos, couros metais, etc

Hospitalar Seringas, algodão, gazes, órgãos humanos.

Nuclear Produtos radioativos (entre outros).

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QUESTÕES AMBIENTAIS DA ATUALIDADE: A PROBLEMÁTICA DO LIXO EM SÃO GABRIEL/ RS 219

2.1.4 Coleta e destinação final do Lixo

Em São Gabriel existe a campanha “Lixo tem horário”, onde a população fica orientada sobre os horários corretos que

o caminhão do lixo fará a coleta, esse projeto municipal evita que os sacos de lixos sejam acumulados em frente as casas e

que o mau cheiro seja espalhado pelo vento. Os caminhões de lixo também são monitorados via internet pela Secretaria de

Serviços Urbanos, onde há o projeto “Coleta Online”.

De acordo com dados fornecidos pelo Setor de Meio Ambiente da Secretaria Municipal de Agricultura e Meio Ambiente

de São Gabriel, a coleta de lixo gerou 45 empregos distribuídos em dois turnos, num total de 23 empregos diretos, sendo 19

homens e 4 mulheres.

O índice de coleta de lixo mostra a parcela da população acolhida pelos serviços de coleta de lixo doméstico em um

determinado território, para obter essas informações são levadas em consideração a população que reside em domicílios e as

diferentes formas de como é feita a coleta de lixo. A coleta dos resíduos sólidos são de grande melhoria para a qualidade

ambiental e de imediato as áreas são beneficiadas. Alguns efeitos ambientais são derivados da má destinação do lixo como a

poluição da água e do solo, através do chorume (líquido negro de odor forte, desagradável e que tem sua origem nas

enzimas expelidas das bactérias decompositoras do lixo). Por isso a coleta de lixo passível de ser reutilizada é uma ótima

opção para a preservação da qualidade ambiental.

De acordo com o IBGE (2000) a coleta de resíduos domésticos, em São Gabriel, está acima dos valores apresentados

para a região sul do país.

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QUESTÕES AMBIENTAIS DA ATUALIDADE: A PROBLEMÁTICA DO LIXO EM SÃO GABRIEL/ RS 220

A destinação final do lixo é considerada adequada quando tem sua disposição final em aterros sanitários, onde é feita

sua destinação em estações de triagem (reciclagem e compostagem) e sua incineração (feita por equipamentos e com

procedimentos próprios para esse fim).

Por sua vez, o destino final é considerado inadequado quando seu lançamento é feito a céu aberto, em áreas

alagadas, locais não fixos, queima a céu aberto e com equipamentos inadequados. Também é considerada inadequada

quando o chorume (principal poluidor) não é controlado nos aterros.

A coleta e a destinação final do lixo são de grande importância para as condições de saúde, pois reduz e controla

vetores e diminui as doenças que estão diretamente relacionadas.

3 Aterro Sanitário

O Aterro Sanitário de São Gabriel está localizado nas proximidades do Trevo de acesso ao Bairro Universitário, em

direção a Rosário do Sul. Para chegar ao Aterro há a necessidade de andar-se 1,8 km em estrada de chão.

A instalação do aterro foi feita próximo ao Bairro Universitário pela necessidade de ser afastado do perímetro urbano

da cidade para que a população seja poupada do desconforto visual, riscos à saúde pública e pela proximidade da coleta de

lixo.

Para a instalação do Aterro Sanitário fez-se necessário selecionar o local onde este foi implantado, possuindo

características que permitissem o controle de riscos de contaminação da água, ar e do solo, esse local também está próximo

de áreas que possibilitam o maior número de fluxo, para que comporte o transporte do lixo coletado em todo o município.

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QUESTÕES AMBIENTAIS DA ATUALIDADE: A PROBLEMÁTICA DO LIXO EM SÃO GABRIEL/ RS 221

Foi considerado o risco de contaminação das águas subterrâneas, contaminação dos mananciais superficiais, geração

de maus odores, espalhamento de resíduos urbanos pela ação dos ventos, aspecto visual desconfortável e a proliferação de

macro e micro vetores.

3.1 Critérios para a instalação do Aterro Sanitário em São Gabriel

Conforme Trigueiro (2005, p.76) “não é fácil encontrar locais que reúnam todos os atributos exigidos para a

implantação de um aterro sanitário. São necessários estudos e avaliações criteriosos”.

Para a instalação do aterro sanitário em São Gabriel foi considerado o tipo de solo, proximidade de rios e assim a

execução de drenagem de águas pluviais em forma de valetas, com declividade para as laterais do aterro (2%), essa

operação foi feita visando desviar da área de operação as águas pluviais que podem provocar transtornos operacionais e

aumentar, assim, a produção de líquido percolado.

A drenagem do chorume foi realizada através de drenos horizontais, constituídas de uma vala (de aproximadamente

60x60 cm), preenchida com brita e recoberta com uma camada de capim seco.

Os resíduos sólidos recebem cobertura de 60 cm de terra compactada, no final as várias camadas de lixo/terra

compactadas irão se sucedendo até atingir a meta final prevista no Plano Diretor do Município de São Gabriel (Prefeitura de

São Gabriel, 2009).

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3.2 Problemas causados pela grande produção de resíduos sólidos

Ao utilizar recursos naturais, o homem produz uma série de resíduos orgânicos e inorgânicos que são constantemente

despejados no meio ambiente sem um tratamento adequado. Tais resíduos são causadores de poluição e contaminação,

sendo muitas vezes responsáveis pela destruição irreversível de fontes de energia necessárias a vida humana (CARVALHO;

OLIVEIRA, 2003).

Atualmente a grande acumulação de resíduos sólidos tem sido um grande problema a nível mundial. No Brasil há uma

produção diária de 240 mil toneladas por dia. Esse problema mostra várias problemáticas em questão ao meio ambiente e a

saúde da população: surgem focos de vetores que transmitem doenças, odor desagradável, contaminação de corpos d‟água

e solo.

Há também que ser mencionado o risco que apresentam a presença de catadores nos aterros sanitários colocando em

risco sua saúde e invertendo a idéia de que são trabalhadores, submetendo-os, assim, em uma condição de serem vistos à

margem da sociedade, sendo confundidos pelo julgamento errôneo de “lixo”, essa situação deverá ser vista pelos

governantes para que seja melhor administrada.

4 METODOLOGIA

Este capítulo objetiva delinear os procedimentos metodológicos que serão realizados para atingir os objetivos

propostos. A primeira etapa metodológica refere-se à fundamentação das bases teóricas que norteiam o trabalho.

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QUESTÕES AMBIENTAIS DA ATUALIDADE: A PROBLEMÁTICA DO LIXO EM SÃO GABRIEL/ RS 223

Os procedimentos metodológicos utilizados nesta pesquisa baseiam-se em uma análise integrada das informações já

apresentadas no município.

Na primeira fase, houve um levantamento de dados de fontes secundárias em órgãos como IBGE e Prefeitura de São

Gabriel a fim de verificar a situação do aterro sanitário e como é feita a coleta dos resíduos sólidos no Município.

Na segunda fase, ocorrerá o trabalho de campo no qual visitar-se-á bairros da cidade a fim de se observar e capturar

imagens da presença do lixo seguida de visita à Secretária de Obras e ao aterro sanitário com o objetivo de acompanhar a

situação atual do município em relação ao lixo produzido, desde a geração até a sua destinação verificando os impactos

ambientais decorrentes do acúmulo de lixo na cidade e se existe algum modelo de responsabilidade ambiental adotado.

No trabalho de campo proceder-se-á a coleta de dados, no qual serão levantadas informações com a Secretária de

Obras e com a administração do Aterro Sanitário. Ressalta-se que neste trabalho adotar-se-á na coleta de dados a pesquisa

qualitativa e como instrumento de pesquisa, utilizar-se-á entrevistas com perguntas abertas a fim de saber se existe coleta

seletiva nas residências, se os moradores sabem o horário que o caminhão do lixo faz a coleta verificando a eficácia da

campanha “Lixo tem horário”. Tais questionamentos visam recolher informações que possam fornecer um maior respaldo ao

presente trabalho.

5 Resultados Parciais

Como a pesquisa está em andamento não tem-se ainda resultados finais, todavia destacam-se algumas

considerações.

É necessário que o governo e a população adotem novas maneiras com o intuito de melhor gerenciar a grande

quantidade e a diversidade de resíduos sólidos que são lançados diariamente (por residências e empresas).

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QUESTÕES AMBIENTAIS DA ATUALIDADE: A PROBLEMÁTICA DO LIXO EM SÃO GABRIEL/ RS 224

Adotar novas práticas como a reutilização de papéis e materiais passíveis de serem reutilizados, diminuirão o volume

de resíduos.

Com pequenas atitudes incorporadas no dia-a-dia aumentará a proteção do solo, ar e água, gerando melhores

condições de saúde, qualidade de vida e saúde ambiental.

REFERÊNCIAS

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 10.004 Resíduos sólidos: classificação. Rio de Janeiro: ABNT, 1987.

BRASIL. Política Nacional de Gestão de Resíduos Sólidos, Lei Nº 12.305, de 2 de Agosto de 2010. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12305.htm>. Acesso em: 1 nov. 2010.

BERRÍOS, M. R. Aterros sanitários: solução relativa. In: Simpósio Brasileiro de Geografia Física Aplicada, X, 2003. Rio de Janeiro: AGB, 2003.

_____. Consumismo e Geração de Resíduos Sólidos. GEOUSP. São Paulo: nº 6, p.17-28, 1999.

CARVALHO, Anésio Rodrigues de; OLIVEIRA, Mariá Vendramini Castrignano de. Princípios básicos do saneamento do meio. 2. ed. São Paulo: SENAC, 2003.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Cidades@: São Gabriel - RS. Disponível em < http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1>. Acesso em 26 de jul. 2010.

MOUSINHO, Patrícia. Glossário. In: Trigueiro, André (Org). Meio ambiente no século 21. 5. ed. Rio de Janeiro: Sextante, 2008.

PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO GABRIEL. Nossa historia. Disponível em:

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QUESTÕES AMBIENTAIS DA ATUALIDADE: A PROBLEMÁTICA DO LIXO EM SÃO GABRIEL/ RS 225

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_____. Meio ambiente. Disponível em: < http://www.saogabriel.rs.gov.br/portal/index.php?Conteudo=meio_ambiente>. Acesso em: 15 jul. 2010.

TRIGUEIRO, André. Mundo sustentável: abrindo espaço na mídia para um planeta em transformação. São Paulo: Globo, 2005.

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