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WWW.CIBERSCOPIO.NET CDIF’03 JUN’03 CIBERDIFUSÃO O Papel e o Pixel José Afonso Furtado Introdução Os desenvolvimentos espectaculares das novas tecnologias de informação e comunicação na última década e meia provocaram uma diversidade de reflexões e de acesas controvérsias sobre o futuro da edição tal como a tínhamos conhe- cido e, em particular, sobre o destino do livro impresso, a quem se vaticinou, com persistente regularidade, a morte ou o desaparecimento, substituído que seria por novas formas e técnicas de produção, reprodução e difusão de conteúdos. Nessa medida, têm vindo a surgir diversas investigações “sobre as formas mate- riais dos objectos culturais – e, em particular, dos impressos -, a sua vinculação a determinadas convenções no plano da estética, a sua inserção em certos con- textos institucionais e a diversidade de modos de apropriação desses objectos por vários tipos de «públicos»” (Nunes, 2002, pp.393-394). Roger Chartier tem sublinhado que, muito embora situações aparentemente semelhantes sejam recorrentes na história do livro e dos meios de comunicação, o momento em que nos encontramos configura uma “revolução” mais radical do que todas as ante- riores por abranger, pela primeira vez em simultâneo, um conjunto de mutações que até agora tinham ocorrido em separado. Desse modo, muitas das categorias com que temos lidado, captado, entendido e apropriado a cultura escrita estão a alterar-se: “assistimos a mudanças nas técnicas de reprodução do texto, na for- ma ou veículo do texto e ainda nas práticas de leitura. Esta situação nunca tinha ocorrido anteriormente. A invenção do códice no Ocidente não modificou os meios de reprodução dos textos ou dos manuscritos. A invenção de Gutenberg não modificou a forma do livro. As revoluções nas práticas de leitura ocorreram no contexto de uma certa estabilidade quer nas técnicas de reprodução dos tex- tos quer na forma e materialidade do objecto. Ora, hoje, estas três revoluções - técnica, morfológica e material – estão perfeitamente interligadas” (Chartier, 2002). Assim, nestes últimos anos, temos vindo a assistir ao aparecimento de livros em versão digital, de editores electrónicos, de livrarias virtuais, de obras de referência e bases de dados textuais online, de obras hipertextuais e de dis- positivos de leitura de livros electrónicos. Definida num sentido aberto, a noção de edição electrónica, ao contrário do que por vezes se faz crer, não é recente, já que pode integrar praticamente todas as edições produzidas sob uma forma que não tenha o papel como base (Warwick, 2003, p.202). Nesse sentido, o e-book é um termo vago utilizado para descrever um texto ou uma monografia disponível sob forma electrónica: “um e-book pode ser um romance publicado num Web site, um novela cujo download pode ser re- //1

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    CDIF03 JUN03

    CIBERDIFUSO

    O Papel e o Pixel Jos Afonso Furtado

    Introduo

    Os desenvolvimentos espectaculares das novas tecnologias de informao e comunicao na ltima dcada e meia provocaram uma diversidade de reflexes e de acesas controvrsias sobre o futuro da edio tal como a tnhamos conhe-cido e, em particular, sobre o destino do livro impresso, a quem se vaticinou, com persistente regularidade, a morte ou o desaparecimento, substitudo que seria por novas formas e tcnicas de produo, reproduo e difuso de contedos.

    Nessa medida, tm vindo a surgir diversas investigaes sobre as formas mate-riais dos objectos culturais e, em particular, dos impressos -, a sua vinculao a determinadas convenes no plano da esttica, a sua insero em certos con-textos institucionais e a diversidade de modos de apropriao desses objectos por vrios tipos de pblicos (Nunes, 2002, pp.393-394). Roger Chartier tem sublinhado que, muito embora situaes aparentemente semelhantes sejam recorrentes na histria do livro e dos meios de comunicao, o momento em que nos encontramos configura uma revoluo mais radical do que todas as ante-riores por abranger, pela primeira vez em simultneo, um conjunto de mutaes que at agora tinham ocorrido em separado. Desse modo, muitas das categorias com que temos lidado, captado, entendido e apropriado a cultura escrita esto a alterar-se: assistimos a mudanas nas tcnicas de reproduo do texto, na for-ma ou veculo do texto e ainda nas prticas de leitura. Esta situao nunca tinha ocorrido anteriormente. A inveno do cdice no Ocidente no modificou os meios de reproduo dos textos ou dos manuscritos. A inveno de Gutenberg no modificou a forma do livro. As revolues nas prticas de leitura ocorreram no contexto de uma certa estabilidade quer nas tcnicas de reproduo dos tex-tos quer na forma e materialidade do objecto. Ora, hoje, estas trs revolues - tcnica, morfolgica e material esto perfeitamente interligadas (Chartier, 2002). Assim, nestes ltimos anos, temos vindo a assistir ao aparecimento de livros em verso digital, de editores electrnicos, de livrarias virtuais, de obras de referncia e bases de dados textuais online, de obras hipertextuais e de dis-positivos de leitura de livros electrnicos.

    Definida num sentido aberto, a noo de edio electrnica, ao contrrio do que por vezes se faz crer, no recente, j que pode integrar praticamente todas as edies produzidas sob uma forma que no tenha o papel como base (Warwick, 2003, p.202). Nesse sentido, o e-book um termo vago utilizado para descrever um texto ou uma monografia disponvel sob forma electrnica: um e-book pode ser um romance publicado num Web site, um novela cujo download pode ser re-

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    Por outro lado, as tecnologias electrnicas penetraram j em todos os aspectos do processo de publicao: Os autores escrevem os seus textos em proces-sadores e enviam-nos para os editores via online ou em disquete. Imagens, quadros e grficos so tambm quase na sua totalidade criados em computa-dores. Mesmo que os autores no criem originalmente os seus textos sob formas electrnicas, a grande maioria dos editores digitaliza esses contedos para a produo. Editing, layout e outras tarefas de produo ocorrem j online, independentemente do produto final vir a aparecer sob forma impressa ou elec-trnica. Em suma, a maior parte dos aspectos e das actividades envolvidas na edio moderna so electrnicos (Borgman, 2000, p.83).

    No entanto, s em meados dos anos noventa do sculo passado, se verifica a grande mediatizao em torno dos livros electrnicos, se assiste entrada em cena das grandes empresas, agora j no s do tradicional universo editorial, mas tambm do mundo das novas tecnologias, e surgem as mais respeitveis firmas de estudos de mercado a avanar entusisticas previses sobre a emergncia de um novo e altamente rendoso mercado para os livros digitais. Esse momento pode ser emblematicamente assinalado pela publicao da novela Riding the Bullet de Stephen King em Maro de 2000. A partir da, multiplicam-se os for-matos, meios e canais de distribuio de contedos electrnicos, procede-se a alteraes na legislao sobre o copyright e tornam-se inevitveis as mudanas na economia da edio. Mas, cabe perguntar, porqu nesse momento? As razes para isso prendem-se, certamente, com o aparecimento e desenvolvimento da World Wide Web. Antes dela, os servios da Internet (principalmente o correio

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    electrnico e a simples transferncia de ficheiros) lidavam sobretudo com me-dia alfabticos e, embora fosse possvel transmitir grficos digitais, a maior parte dos utilizadores estava limitado a textos ASCII. E, mesmo no seu incio, a Web limitava-se apenas a assegurar comunicao textual (Bolter e Grusin, 1999, p.197). Mas, Marc Andreessen e Eric Bina, que dirigem a equipa Mosaic no National Center for Supercomputing Applications da University of Illinois (NCSA), apresentam cpias beta do Mosaic em Fevereiro de 1993, e a Verso 1.0 a 23 de Abril do mesmo ano. Embora Mosaic no fosse o primeiro browser nem sequer, como tantas vezes se afirma, o primeiro browser a ostentar um graphical user interface (WorldWideWeb de Tim Berners-Lee foi o primeiro browser grfico point-and-click, seguido pelo browser Viola de Pei Wei), para a maioria das pessoas Mosaic era o browser mais fcil de instalar, de usar e de navegar sem esforo na World Wide Web, concebida e desenvolvida por Bern-ers-Lee em 1991 (Delio, 2003). Com os browsers grficos, em particular com o desenvolvimento do Netscape, e com a generalizao da tecnologia dos hyper-links e do hipertexto, a situao vai alterar-se substancialmente (Blisle, 2003). Em primeiro lugar, alcana-se uma consistente base de utilizadores, incialmente recrutada entre os acadmicos e investigadores, e, logo a seguir, entre os tecno-logicamente mais letrados; este movimento dar origem vertiginosa expanso da Internet que hoje conhecemos. Em segundo lugar, era agora possvel integrar outros media e apresentar novos e populares gneros (revistas online, news ser-vices) ultrapassadas as limitaes anteriores (Bolter e Grusin, 1999, p.198). No admira portanto que as caracterizaes mais elementares da edio elec-trnica tendam a concentrar-se na distribuio electrnica de contedos e que, nos anos mais recentes, o termo livro electrnico ou e-book se tenha visto apropriado pelas empresas que vendem dispositivos electrnicos para apre-sentao de textos digitais.

    Se olharmos apenas para o lado tecnolgico, a mudana no sentido da distri-buio de contedos em rede parece imparvel, quer estes sejam destinados ao consumo sob forma electrnica ou a ser impressos a pedido. Mas, como alerta Mark Bide, a existncia de uma infra-estrutura tecnolgica no garante por si s uma utilizao neste ou naquele sentido nem define deterministicamente o tipo de impacte sobre o sector da edio. necessrio, pois, olhar para alm dos factores tecnolgicos de mudana e reconhecer que so as dimenses culturais, sociais e econmicas e o modo como elas interagem com as novas tecnologias que vo, na realidade, afectar a edio do futuro (Bide et al., 2000, p.23). Tam-bm Borgman salienta a importncia de se olhar para alm dos meros factores tecnolgicos e refere que os debates sobre publicao electrnica envolvem

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    a interaco de factores tecnolgicos, psicolgicos, sociolgicos, econmicos, polticos e culturais que influenciam o modo como as pesoas criam, usam, pro-curam e adquirem informao (Borgman, 2000, pp.83-84).

    Para complexificar este cenrio, acontece que demasiado simplista falar de edio como se se tratasse de uma nica indstria. Como refere ainda Bide, existem muitas e diversas indstrias da edio, at agora agrupadas pela sua utilizao de um medium comum para a sua disseminao: a impresso em papel. Mas as regras so diferentes de segmento para segmento, cada um com diferentes modelos de negcio. Mais ainda, medida que penetrarmos no ambi-ente de rede, vrios aspectos do modo como estabelecemos categorias de edi-tores devem forosamente comear a mudar, e algumas dessas diferenas no deixam de ser sublinhadas pelo modo e rapidez como os diversos mercados-alvo a que cada tipo de editor se dirige reagem distribuio electrnica de textos (Bide & Associates, 2000, p.10).

    nesta linha que se vem propondo uma reconcepo da cadeia de valor, recon-cepo tornada indispensvel pelo novo paradigma da conectividade universal criado pela Internet e pela expanso do digital, pois essa cadeia j no pode apenas centrar-se nos elementos tangveis que contribuem para a realizao de um produto valioso, devendo agora integrar igualmente a cadeia de valor da in-formao. Essa atitude obriga a ter em ateno diversos elementos-chave que formam o novo processo de valor acrescentado:

    O contedo que foi seleccionado para publicao; a produo e o processo logstico; a agregao relevante de obras; o modo como os consumidores podem encontrar a informao que procuram; e, qual a autoridade/brand que est a produzir essa informao.

    Torna-se assim indispensvel que dessa nova cadeia de valor faam parte, entre o autor e o leitor, pontos como a Seleco, o Acesso, a Agregao, o Desenvolvimento, a Navegao e a Autoridade. Poderia dizer-se, com razo, que algumas destas actividades sempre fizeram parte das preocupaes das casas editoras. No entanto, se se pensar o modo como o ambiente de rede est a mudar as regras do jogo, facilmente veremos que j no se est a falar exacta-mente da mesma coisa. A capacidade das redes desconstruirem os tradicionais constrangimentos fsicos faz com que, em muitos casos, o inventrio se torne agora virtual ou que, por exemplo, a edio seja j de algum modo possvel para

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    quase todos, em virtude das barreiras entrada isto , os investimentos ex-igidos para a produo e distribuio do inventrio fsico pura e simplesmente desparecerem. Esse mesmo ambiente permite ainda que os autores ignorem os canais habituais e publiquem as suas obras via web o que, podendo diminuir a importncia da seleco no incio do processo, implica em contrapartida um acrscimo do valor da navegao e da autoridade no final da cadeia (Bide, 2000).

    Livro Electrnico: Ensaio de Definio

    Perante este cenrio, so usuais as referncias dificuldade e complexidade em definir adequadamente tanto livro como edio electrnica. No entanto, essa tentativa irrenuncivel, pois o que se joga nesse conceito muito mais decisivo. Na verdade, como refere Arriscado Nunes, o modelo que agora se questiona um modelo histrico e no natural, que no se esgota no especfico problema do livro, livro que seria assim como que o sintoma das circunstncias dessa cultura num perodo de rpida transformao, mobilizando complexas e estreitas relaes entre processos de desenvolvimento tecnolgico, prticas e instituies sociais e culturais, e a instaurao de hierarquias e formas de domi-nao material e simblica; desse modo, as noes dominantes de competncia cultural nas sociedades ocidentais esto condicionadas pelo modelo da leitura, da escrita e do texto impresso, modelo dominante que pressupe, por outro lado, a relao necessria entre os modos de produo esttica e cognitiva cen-trados na narrativa e na exposio ou descrio(...), a tecnologia da impresso e os objectos materiais que ela torna possveis (...) e as formas de organizao e reproduo da cultura centrados na definio de objectos - potencialmente impressos - autocontidos, com fronteiras definidas, com autoria atribuvel, clas-sificveis por gnero, assunto, cronologia ou autoria, e que so conservados em instituies cuja funo garantir a sua colocao num modelo de ordem que disciplina o saber e a cultura; por fim, se aceitamos a centralidade da literatura e do livro, do ler e do escrever nos debates sobre a cultura e as suas dinmicas no mundo contemporneo, a possvel substituio do livro impresso e da litera-cia tipogrfica ter certamente implicaes no apenas ao nvel dos suportes e modos de transmisso da informao e do conhecimento e dever ser de novo o sintoma de transformaes mais gerais nas formas de organizao cultural e social (Nunes, 1996, pp.51-52). Por sua vez, para Lynch, o que est realmente a acontecer ainda mais complexo do que a emergncia de novos canais de com-ercializao de livros ou de um novo tipo de dispositivo electrnico de consumo.

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    O que est em jogo muito mais fundamental: como vamos pensar os livros no mundo digital e como que estes se iro comportar? De que modo vamos us-los, partilh-lhos e em que termos nos vamos referir a eles? Em particular, quais so as nossas expectativas sobre a persistncia e permanncia da comunicao humana com base nos livros, medida em que entramos no brave new digital world? Continuar o nosso pensamento a ser dominado pelas convenes e modelos de negcio da edio impressa (...) e pelas nossas prticas culturais, expectativas de consumidor, quadros legais e normas sociais ligadas aos livros ou essas tradies vo desaparecer, talvez a favor de prticas em desenvolvi-mento em indstrias como a msica? Salientam-se ento trs temas cruciais na transio para o mundo digital e que a excitao em torno dos e-books pode ocultar: a natureza do livro no mundo digital como forma de comunicao; o controlo dos livros nesse mesmo mundo, incluindo as relaes entre autores, consumidores/leitores e editores e, por extenso, o modo como viremos a gerir a nossa herana cultural e o nosso passado intelectual; e a reestruturao das economias da autoria e edio (Lynch, 2001).

    Neste quadro, como dissemos, encontram-se as mais diversas posies sobre a nova realidade da edio digital. Desde logo, a tese, mencionada por Roncaglia, que rejeita a prpria ideia do livro electrnico, considerando-o uma espcie de oxmoro e defendendo a concepo de que s possvel utilizar com legit-imidade a designao livro quando nos referimos ao livro impresso (Roncaglia, 2001b). E neste sentido, aponta para a posio do editor Giuseppe Laterza, que sublinha as diferenas existentes entre a elaborao de um livro destinado a ser impresso e a reunio digital (assemblaggio digitale) de contedos mul-timedia, j que os instrumentos utilizados e as possibilidades expressivas so, a seu ver, totalmente diversas nos dois casos, o que torna no s difcil como errnea a utilizao demasiado directa do modelo livro no mundo dos novos media digitais. E acrescenta que, quando tivermos um romance decomponvel e interactivo, cuja fruio advir da leitura do texto, da audio da banda sonora e da observao de imagens, no sei se poderemos ainda falar de livros, mesmo que electrnicos. Encontramo-nos perante uma realidade completamente nova na sua concepo, na sua realizao e na sua fruio. E que, nessa medida, im-plica autores e editores com capacidades inditas, entre a edio de livros, a realizao televisiva ou cinematogrfica e a produo musical. Desse modo, acaba por propor que essa nova realidade seja liberta da tutela dos livros e que, em vez de e-book se chame DIASS, isto , Digital Assembly (Laterza, 2001). Se se pode vislumbrar aqui uma preocupao de resguardar para a edio tradicio-nal um espao autnomo, em que o interesse pelas novas realizaes tornadas

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    possveis pelo uso das tecnologias digitais complementa a concepo de que deve deixar-se para o livro impresso e para quem o publica as suas tradicionais funes de transmisso e mediao cultural (Roncaglia, 2001b), no menos verdade que voltaremos a encontrar mais adiante, com diferente cpia de argu-mentos, uma semelhante rejeio dessa relao estreita entre livro impresso e livro electrnico entre os tericos do hipertexto.

    Uma posio muito prxima defendida por Jean-Gabriel Ganascia, enquanto relator de uma reflexo de prospectiva sobre o livro electrnico levado a cabo no mbito da Cellule Sciences de la Cognition do CNRS. Para ele, o termo livro electrnico considerado restritivo e inoportuno. Se o livro designa um suporte particular da escrita num dado momento da histria, restritivo falar de livro nos casos em que todos os suportes da escrita, do som e da imagem so convocados. O termo inoportuno pois a justaposio das duas palavras, livro e electrnico parece, desde logo, antittica; livro designa antes de mais o su-porte fsico da escrita. (...) Ora, a palavra electrnico sobrepe ao objecto ma-terial inicial, o livro de papel que todos conhecemos, um novo objecto imaterial definido por um conjunto de procedimentos de acesso e por uma estruturao lgica. Mais ainda, o suporte digitalizado do livro clssico confundido com o livro electrnico: por um lado, haveria um modo de apresentao particular que equivaleria funcionalmente impresso clssica ou, mais exactamente, a uma acumulao de pginas impressas; por outro, os processos tradicionais de aces-so escrita assim como s diferentes modalidades de conhecimento (imagens fixas, animadas, sons...) so susceptveis de sofrerem grandes modificaes, ao ponto de se colocarem problemas de ordem cognitiva at agora desconhecidos. Nesta ordem de ideias, aparecem novos objectos ainda mal definidos, carac-terizados de um modo impreciso como sendo simultaneamente suportes fsicos de informaes e de operaes de manipulao. Sero j livros electrnicos? E, com alguma dose de contrariedade, o relatrio acaba por reter o termo livro electrnico por traduzir bem, no que tem de problemtico e pelas prprias tenses que encerra, as questes e oposies levantadas durante o funciona-mento do Grupo, sem se referir contudo nem a um suporte particular nem a um contedo preciso (Ganascia, 1998).

    Por fim, outros autores chamam ainda a ateno para uma ambiguidade fun-damental da noo de livro electrnico, pois associa as noes de objecto (o dispositivo tcnico que permite a leitura) e de contedo intelectual veiculado por esse objecto (Le Loarer, 2002, p.445). Esta ambiguidade no pode deixar de ser o contraponto de um verdadeiro flou lexical em torno de uma panplia

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    de termos muitas vezes usados indistintamente: edio online, edio digital, livro electrnico, livro digital, livro virtual, e-book, livro desmateralizado. A este flou lexical acrescenta-se um flou semntico; pois no so s as terminologias que se fundem, so tambm as definies, cada uma delas remetendo para um aspecto da realidade tcnica do livro digital (Jhanno, 2000, p.13).

    Convir ento agora percorrer algumas propostas concretas de definio da ed-io e, sobretudo, do livro electrnico. Como pano de fundo, pode reconhecer-se que se tem verificado um interesse crescente em converter livros impressos em bytes bem como em produzir novos ttulos sob forma digital. Este movimento deu origem a uma srie de definies hbridas de e-books. Inicialmente, foram defini-dos como e-books livros impressos convertidos para formato digital, de um modo geral atravs de processos que permitiam a sua apresentao em computadores (Shiratuddin et al., 2003). Veja-se, neste sentido, uma primeira definio de Ana Arias Terry, para quem um e-book consistiria em contedo electrnico, com ori-gem em livros tradicionais (sublinhado nosso), material de referncia ou revistas, cujo download feito a partir da Internet e visionado atravs de um conjunto de dispositivos hardware, como PCs, laptops, PDAs, Palm PCs ou palmtops, ou e-book readers dedicados (Terry, 1999). Depois, o termo comeou tambm a in-cluir multimedia, hipertexto ou sistemas hipermedia baseados numa metfora do livro. Mais recentemente, a definio de um e-book foi alargada de modo a incluir ttulos disponveis online, que podem ser lidos como e-mail, que podem ser ace-didos por dispositivos de leitura electrnica portteis ou disponibilizados como um ficheiro cujo download pode ser feito para um computador (Shiratuddin et al., 2003). De modo semelhante, a National Information Standards Organization de-screve um ebook como um contedo electrnico monogrfico que pode ser lido num dispositivo dedicado e-book, num Personal Digital Assistant, num computa-dor pessoal ou na World Wide Web (Fischer e Lugg, 2001, p.1). E acrescenta que pode ainda ser lido numa pgina impressa (o que inclui print-on-demand). Essa ento outra interpretao de um e-book, e consiste no livro impresso a pedido (print-on-demand), em que os contedos se encontram armazenados num sistema ligado a impressoras topo de gama onde so produzidos livros casuisticamente e, por vezes, de modo personalizado (Hawkins 2000).

    Esta perspectiva de print-on-demand no vai merecer, nesta oportunidade, a nossa ateno. Com efeito, o resultado final , de todo o modo, um produto im-presso. E se a impresso se realiza directamente a partir do sistema informtico e por via elctronica, nem sempre so indispensveis impressoras digitais (Furtado, 2000, pp.416-424).

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    Concentremo-nos ento no referido alargamento da noo de e-book. A mesma Terry, logo um ano depois da concepo acima recordada, considera que o conceito de e-book tem vindo a desenvolver-se, o que leva a que possa ser entendido quer como o objecto que possibilita as representaes textuais e pic-tricas provenientes de um livro tradicional e depois convertidas para forma electrnica, quer como produzido desde o seu incio sob forma digital (born digital) (Terry, 2000).

    Mas outras diferenas se encontram nas diversas tentativas de definio do livro electrnico. O conceito tem sido discutido de modo impreciso numa srie de contextos em que se sublinha, por um lado, o contedo digital ou digitalizado e, por outro, as caractersticas do medium em que ele apresentado. E, assim, nem todos os e-books nascem iguais. O entendimento do que um e-book vai desde um simples ficheiro digital do contedo dum livro at ao ficheiro digital acompanhado pelo software que possibilita o acesso e a navegao do con-tedo. Outros referem-se ao e-book a partir do outro lado do espectro, fazendo referncia apenas ao novo hardware que ir conter os ficheiros electrnicos de livros. (Slowinski, 2003, p.12).

    Entre os que sublinham a preeminncia do contedo, Hawkins (2000) afirma que um e-book o contedo de um livro disponibilizado atravs de forma electrni-ca. No modelo netLibrary, o contedo a essncia de um e-book: um e-book no um dispositivo, nem um instrumento de criao, nem deve ser definido como uma fonte dedicada de contedo. Um e-book o prprio contedo (Connaway, 2001, p.344). Lynch, por sua vez, prope que se distinga entre a ideia de um livro digital (digital book) e uma ferramenta para leitura de livros (book-reading appliance). Um livro digital somente uma volumosa coleco estruturada de bits que podem ser transportados num CD-ROM ou noutro medium de armaze-namento ou distribudo numa conexo de rede, e que destinado a ser visionado numa combinao de hardware e de software, desde terminais estpidos a Web browsers em computadores pessoais at aos novos dispositivos de leitura. Os livros digitais cobrem um largo espectro de materiais, desde a translao literal de livros impressos at obras digitais complexas que so as sucessoras intelec-tuais de certos gneros de livros e que no podem ser reconvertidos, de maneira razovel, em forma impressa. Em grande medida, os livros digitais existem (ou pelo menos deviam existir) independentemente dos aparelhos utilizados para os aceder, transportar ou ler (Lynch, 1999). Mas j Balas (2000), estabelecendo uma distino entre livros electrnicos e textos electrnicos (e-texts), se centra no software necessrio para a leitura do livro, assinalando que os e-texts podem

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    ser lidos em qualquer computador enquanto os e-books requerem um particular software de leitura. Tambm Morgan (1999) vai nesse sentido, pois, servindo-se da mesma diferenciao entre e-texts e e-books, limita a definio de estes a uma combinao hardware/software usada para ler dados electrnicos em dispositivos portteis desenhados especialmente para esse fim. Terry (1999) e Lynch (2001) consideram que esses aspectos tm apenas a ver com tecnologias de viso (viewing technology).

    Sawyer (2002), chama a ateno para que, de um modo geral, na discusso so-bre a definio de e-books notrio que as questes relacionadas quer com o hardware e o software, seja de natureza proprietria ou no, tm assumido uma maior preeminncia do que uma definio em termos de contedo. Como Ardito (2000) salienta, Michael Hart iniciou o Projecto Gutenberg em 1971, Andries Van Dam em geral creditado por ter cunhado o termo livro electrnico h mais de vinte anos, os editores tm vindo a digitalizar livros para leitura em cr h mais de uma dcada e, no incio dos anos noventa, a Sony tentou realizar vrias verses de livros electrnicos portteis; mas os dispositivos handheld para leitura de e-books so um fenmeno recente, surgindo apenas no final de 1998. E acrescenta que a 3Com Corporation e os seus Palm Organizers podem ter sido os catalizadores para os esforos de editores e empresrios no de-senvolvimento de livros electrnicos. Na verdade, muito se tem escrito sobre esses aspectos tecnolgicos. Shiratuddin (Shiratuddin et al., 2003), descreve em primeiro lugar leitores (readers) com base hardware (Hardware Based Readers), categoria designada no projecto EBONI como dispositivos hardware (hardware devices) (Wilson, 2000), e que Wilson apresentar exaustivamente sob a classificao de hardware para livros electrnicos portteis, desde a primeira gerao de modelos nos anos oitenta do sculo passado at gama de dispositivos handheld hoje disponveis (Wilson, 2001). A primeira categoria que apresenta a dos leitores de ebooks dedicados (Dedicated Ebook Readers), em que se integram os dispositivos Rocket e SoftBook, do final dos anos noventa, cujas empresas produtoras (Nuvomedia e SoftBook Press) foram adquiridas em Janeiro de 2000 pelo grupo Gemstar. Este grupo apresentou primeiro os modelos REB1100 e REB1200 produzidos sob licena pela RCA e, depois do desinteresse desta, os modelos GEB 1150 e GEB 2150. Outros produtos vi-eram a surgir no mercado, como o goReader, o Microsoft IPM-NET Myfriend ou o Cytale Cybook (que entretanto interrompeu as suas actividades). Todos estes dispositivos tm em comum o facto de se destinarem exclusivamente leitura de livros electrnicos, de serem portteis, de apresentarem software propri-etrio, e o facto de em geral no permitirem uma srie de aces, como, por

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    exemplo, a impresso em papel. A soluo para proteco da cpia fornecida pela tecnologia proprietria do produtor do aparelho. Por exemplo, as edies Gemstar s se conseguem ler caso se disponha do dispositivo porttil GEB numa das suas verses, a duplicao impossvel bem como a leitura de fichei-ros em mquinas diferentes. Mas, com a expresso e-book devices, tambm se tem em conta os computadores portteis multifuncionais, como PDAs/Pocket PCs, Palm Pilots ou Handspring. Estes dispositivos so normalmente de menor dimenso, funcionam antes de mais como agendas ou organizadores pessoais, e oferecem agora tambm, com frequncia, acesso Internet, funes de proces-samento de texto, spreadsheet e capacidades de leitura de ficheiros MP3. medida que contedos e software e-book reader para estes aparelhos se torna disponvel, eles so cada vez mais usados, adicionalmente, para leitura de livros. Wilson (2001) refere-se ainda emergncia de dispositivos hbridos, como o eBookMan, o hiebook, o GoReader ou o MyFriend, que superam as barreiras que distinguem o hardware criado especialmente para a leitura de livros e o hard-ware criado para executar tarefas de organizao pessoal. Estes dispositivos hbridos so semelhantes aos dedicated readers, com crs mais largos desti-nados leitura de textos mais longos e com as usuais capacidades dos leitores ebook, como bookmarking e anotao, mas que podem tambm ser usados para executar os tipos de tarefas normalmente associados aos PDAs.

    A emergncia, praticamente em simultneo, destes trs grupos de dispositivos portteis susceptveis de permitir a leitura de livros electrnicos, significa que o mercado do ebook se encontra ainda na sua infncia e em estado de fluxo. At recentemente, o design destes produtos tem-se encontrado nas mos dos produtores. Mas, medida que a sua difuso aumentar, o futuro desenvolvim-ento dos livros electrnicos portteis estar necessariamente mais ligado procura e resposta do consumidor. Naturalmente que a disponibilidade de contedo ter um papel determinante no sucesso a mdio e a longo prazo deste ou daquele tipo de dispositivos (Wilson, 2001). Para uma perspectiva sobre o futuro do design fsico dos e-books, convm ter em considerao a aparente tendncia para a progressiva convergncia de tecnologias at agora distintas. Como descreve Hazewindus, os diferentes mundos da televiso, telefone e processamento de dados esto a comear a partilhar tecnologias similares e a sobrepor-se. Esta convergncia tecnolgica traz um conjunto de outros movi-mentos de convergncia em matria de produtos, mercados e negcios. (Haze-windus et al., 2000). Seguindo esta lgica, os dispositivos monofuno perecem perder espao para os aparelhos multifuncionais. Crawford (2002), refere que os dispositivos dedicados parecem no ter futuro. E lembra que quando a em-

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    presa Franklin publicitou o seu eBookMan, acentuava essencialmente as suas capacidades como PDA. Por seu turno, Shatzkin (2002) afirma que quem utilizar diariamente um Personal Digital Assistant e se encontrar entre o nmero cres-cente dos que trazem sempre um consigo, no precisa de ningum para explicar o valor e a utilidade dos ebooks. A contrapartida deste facto que, caso no se use regularmente um PDA, os e-books tm um interesse limitado. Existe alguma utilidade marginal em dispor de um software de leitura de livros num notebook, mas no muita. Nesse sentido, conclui Wilson (2001), dos trs tipos de livros electrnicos portteis acima referidos, PDAs e Pocket PCs ou dispositivos h-bridos, os que realizam uma multiplicidade de funes para alm da leitura de livros sero certamente os mais populares: qual a razo para transportar um aparelho para ler livros e outro para agenda diria quando ambas as actividades podem ser possveis utilizando apenas uma unidade?

    Em segundo lugar, Shiratuddin (Shiratuddin et al., 2003), descreve a categoria do leitores (readers) com base software (Software Based Readers), designa-dos no projecto EBONI como software de leitura de e-books (Ebook reader software) (Wilson, 2000). Trata-se de solues baseadas em software general-ista para leitura de livros e que podem ser usados em computadores pessoais e laptops. Nesse caso, uma das possveis vantagens dos software-based readers consiste em possibilitar facilidades adicionais s funes dos leitores dedica-dos, graas ao teclado e a um cr de maiores dimenses (Lynch, 2001). Mas, mais recentemente, na sua maioria, esses softwares vieram a tornar-se tambm utilizveis em dispositivos PDA e Pocket PC. Microsoft Reader, Adobe Acrobat Reader e Adobe Acrobat eBook Reader so trs exemplos desse software. O caso do Palm Digital Reader, resultante do desenvolvimento do Peanut Reader, mais curioso, pois destinava-se a funcionar em dispositivos PDA e Pocket PC e prepara-se agora para alargar a sua utilizao igualmente a PCs. Geralmente distribudas gratuitamente, convir contudo distinguir, com base na sua aber-tura, as aplicaes proprietrias das no proprietrias que, em conjunto com os modelos tecnolgicos de proteco da cpia, ou de Digital Rights Management (DRM), possibilitam ou impedem algumas funcionalidade. Justifica-se ainda uma referncia variedade de formatos em presena, e refiro-me aqui tanto a formatos de contedo como de apresentao. Na verdade, os primeiros produ-tores de e-books limitavam-se a realizar o scanning de livros impressos, a con-vert-los para texto usando a tecnologia OCR (optical character recognition) e a difundi-los em texto ASCII. No entanto, ASCII de leitura pouco apelativa, no preserva a formatao e no suporta grficos. Assim, foram desenvolvidos uma diversidade de formatos, criados para possibilitar uma leitura mais fcil dos

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    textos electrnicos, graas preservao da estrutura lgica do livro em papel e algumas das suas caractersticas visuais (Wilson, 2000). Entre eles, formatos Markup como HTML (HyperText Markup Language), SGML (Standard Gener-alised Markup Language), ou XML (eXtensible Markup Language) e formatos Layout, como PDF (Adobe Acrobats Portable Document Format), LIT (Microsoft Readers Literature) ou TK3 (Night Kitchens Tool Kit 3). No que se refere a stan-dards, e mau grado os esforos do Open eBook Forum que definiu a Open eBook Publication Structure (OEBPS), baseada em tecnologias usadas para criar pgi-nas web como HTML, XML e CSS, Adobe (um dos membros do OEB Forum), pro-cura activamente tornar o seu formato PDF o standard de facto para o e-book. Microsoft, por seu lado, favorece os documentos HTML e Word e desenvolveu o formato LIT que, contudo, suporta OEBPS (Shiratuddin et al., 2003). Neste momento, esses programas e as correspondentes frmulas tecnolgicas para o hosting e para o comrcio electrnico dos contedos esto longe de garantir solues de compatibilidade. Parece inegvel que todas as frmulas para os e-books surgidas nos ltimos dois ou trs anos tm como base a impossibilidade de transferir um livro electrnico adquirido atravs da rede de uma plataforma para outra, o que significa que a real interoperabilidade entre livros electrnicos tem sido rejeitada por agora, no s pelos produtores e editores como pelos in-vestidores, todos aparentemente mais atrados pela perspectiva de vincular a leitura da cpia ao aparelho do comprador, numa tentativa de forar situaes de lock-in.

    altura de analisarmos outras definies, por vezes de carcter institucional, e que se centram mais na vertente de contedo dos livros electrnicos. Assim, um e-book tem sido geralmente descrito como uma obra literria sob a forma de Objecto Digital, que um autor, editor ou outro criador construiu a partir de ficheiros electrnicos. Pode incluir um ou mais standards de identificao e pode incluir ou no metadata. Representa usualmente um corpo de contedo Monogrfico que publicado com o design e com a inteno de ser acedido electronicamente (Slowinski, 2003, p.12). A Association of American Publishers caracteriza um e-book como uma Obra Literria sob a forma de Objecto Digital, consistindo em um ou mais standards de identificao, metadata, e um corpo de contedo Monogrfico, destinado a ser publicado ou acedido electronicamente (Metadata Standards for Ebooks, 2000, p.56). Esta descrio da noo de ob-jecto digital est mais prxima da utilizada para identificao dos recursos na Internet. Segundo Borges (2002, pp.37-38), a arquitectura Wilensky tem por objectivo a definio de uma estrutura tcnica que possibilite a preservao da propriedade intelectual mesmo num ambiente complexo. Assim, o objecto

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    digital constitui basicamente um somatrio de duas partes: o contedo e infor-mao que lhe est associada ou metadados (metadata). Trata-se de uma forma de estruturar a informao e supe uma estrutura interna que compreende os seguintes componentes: um elemento (element) que uma sequncia de bits e que constitui uma unidade elementar de informao possuindo o seu prprio identificador interno do elemento no interior do objecto digital ou ID; um pacote (package) que uma coleco de elementos e outros pacotes, tambm com o seu ID especfico; um objecto digital que um pacote que contm metadados que se destinam a ser usados num ambiente de rede. Neste caso o ID o handle. Naturalmente que este sentido que deve ser retido, no s pelas preocupa-es que se prendem com a defesa do copyright, como pela capacidade de identificar univocamente unidades e subunidades para efeitos de identificao e negociao de direitos (veja-se a preocupao que levou ao aparecimento do Digital Object Identifier (DOI)), como pela gesto desses direitos em ambiente digital e de rede (DRM), isto , o conjunto de operaes que permite armazenar, duplicar ou transmitir o objecto sem fornecer o acesso ao contedo, ainda segundo Borges. Tambm o grupo de trabalho EBX (agora integrado no Open eBook Forum), no draft 0.8 da especificao do sistema EBX, definia um e-book como um objecto digital que uma representao electrnica de um livro (EBX System Specification, 2000). Algumas vezes prefere definir-se publicao elec-trnica, e nesse sentido, para o projecto NEDLIB, ela consiste num documento difundido sob formato legvel por mquina (machine-readable form). Inclui publicaes off-line (...) e publicaes on-line armazenadas usando tecnologia digital. Algumas publicaes electrnicas so de origem digital (born digital), isto , so criadas em forma digital, e outras foram criadas originalmente noutra forma tendo subsequentemente sido digitalizadas (Clavel-Merrin, 2000, p.7). Pode distinguir-se ainda entre publicaes electrnicas offline, online e hb-ridas, sendo estas publicaes offline que apresentam ligaes para material existente online. Mark Bide reconhece no entanto que o termo livro electrnico ou ebook no se adequa facilmente a nenhuma categoria, pois em seu entender trata-se de textos que embora distribudos online so consumidos offline (Bide & Associates, 2000, p.7). Essa poder ser uma das razes que levaram ao apa-recimento de definies menos generalistas. Andrew Cox e Sarah Ormes, por exemplo, partem da noo de textos cujo download foi feito a partir da Web para distinguirem, depois, os que so lidos num PC ou num handheld device usando um software especial ou um web browser, a que chamam E-Book, e os lidos numa pea de hardware dedicada, que designam como E-Book reader (Cox e Ormes, 2001). Chris Rippel utiliza trs categorias: os e-book readers, que correspondem componente hardware do e-book, os e-texts ou e-book

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    titles, que so os textos electrnicos, e por fim os e-books que resultam da integrao dos e-texts nos e-book readers (Rippel, 2001). Por sua vez, Lynch (2001) utiliza o termo appliances para dispositivos hardware especializados, software book readers para produtos que correm em computadores multi-tarefas ou PDAs multi-funes, e o termo mais genrico e-book reader para abranger ambos, mas no o software multi-tarefas como um Web browser, que pode tambm ser utilizado para ler alguns tipos de livros digitais. O Open eBook Forum evita expressamente na OEBPS Specification o uso formal do termo eB-ook e, em contrapartida, procura definir uma terminologia mais precisa. Assim, a OEBPS Publication o contedo digital que se l (uma verso paperless de um livro, artigo ou outro documento); o Reading Device corresponde ao aparelho (appliance) usado para disponibilizar uma publicao OEBPS (exemplos de dis-positivos de leitura incluem ebook readers dedicados, computadores pessoais e palm-sized personal digital assistants (PDAs); o Reading System a combi-nao do software e hardware que processa o contedo OEBPS e o apresenta a um utilizador (Open eBook Forum, 2002).

    Naturalmente que esta maior granularidade na definio constitui um apoio precioso para dissipar os equvocos terminolgicos e conceptuais sobre uma questo que est ainda bem longe de ter encontrado standards a nvel da com-ponente industrial ou da reflexo sobre os media. E, por isso, alguns problemas subsistem. Desde logo, o facto de se utilizar umas vezes a expresso livro elec-trnico e outras a expresso publicao electrnica. A questo deveras impor-tante pois, se na publicao electrnica se incluem livros, peridicos (e-journals, e-zines, etc.), bases de dados bibliogrficas e outros recursos de informao em formato digital (Reitz, 2002), o livro electrnico entendido (caso da Associa-tion of American Publishers) como uma Obra Literria sob a forma de Objecto Digital, (...) e um corpo de contedo Monogrfico. Esta perspectiva claramente mais restritiva e apresenta, pelo menos, trs problemas. Em primeiro lugar, de-ixa de lado, por exemplo, as publicaes em srie e os bancos de dados de texto integral (certamente os segmentos onde a edio electrnica encontrou j uma relevante massa crtica e a mais significativa rendibilidade). Os outros dois so sublinhados por Lynch (2001): por um lado, um e-book reader no serve apenas para ler livros. Serve para qualquer tipo de contedo em processo de transfer-ncia para forma electrnica e, por isso, algumas das leituras mais populares nesse ambiente incluem jornais como o New York Times ou o Wall Street Jour-nal. Por outro, no se deve conceber um e-book apenas como o substituto de um livro que pode tambm estar disponvel sob forma impressa j que, se tivermos em conta as trajectrias histricas em relao ao preo-performance do arma-

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    zenamento, dentro em pouco alguns produtos de ponta hospedaro centenas ou mesmo milhares de obras simultaneamente. E se pensarmos no em livros electrnicos mas em bibliotecas pessoais digitais, o que est em jogo tem uma dimenso bem diferente e as capacidades e constrangimentos dos dispositivos de leitura vo exercer uma bvia e significativa influncia no processo de mu-dana. Parece assim, sem dvida, prefervel o termo publicao electrnica a livro electrnico e, na verdade, muitas vezes sob este termo aqueloutro que se est a utilizar. Contudo, no mbito deste trabalho, iremos referir-nos espe-cialmente acepo de livro electrnico como corpo de contedo Monogrfico sob a forma de Objecto Digital, o que nos ir permitir enfrentar um certo nmero de questes sobre a relao entre livro impresso e electrnico, e deixaremos para outra oportunidade as questes relacionadas com as publicaes em srie e com os bancos de dados de texto integral, cuja importncia e dimenso no poderiam aqui ser desenvolvidas com a seriedade exigvel. No entanto, sempre que isso se revelar pertinente, no deixaremos de recorrer noo de docu-mento, normalmente entendido como sinnimo de texto impresso, e tambm ele agora claramente em processo de reconcepo (sobre esta questo ver Borges, 2002, pp. 25-43).

    Assim sendo, parece pacfico que aquela definio se baseia com grande prox-imidade (ressalvando as necessrias adaptaes) nas tradicionais acepes do livro impresso. Se consultarmos, por exemplo, a mais recente edio do Novo Dicionrio do Livro, encontraremos: Livro: conjunto de cadernos, manuscri-tos ou impressos, cosidos ordenadamente ou formando um bloco; Documento impresso, no peridico, com mais de 48 pginas sem contar as da capa, que constitui uma unidade bibliogrfica; Monografia. Obra cientfica ou literria que forma ou pode formar um volume. (Faria e Perico, 1999, p.374). Essa prox-imidade leva Roncaglia a comentar que, quando se fala de e-book parece amide fazer-se referncia a uma acepo bastante lata do termo, atribuindo a quali-ficao de livro electrnico a qualquer texto completo, orgnico e suficiente-mente longo (monografia), disponvel num formato electrnico que permita - entre outras a distribuio em rede e a leitura atravs de um qualquer tipo de dispositivo hardware, dedicado ou no. A frequente referncia ao modelo repre-sentado pelo tradicional livro em papel e ao complexo conjunto de conotaes a ele ligado normalmente bastante genrico e parece justificar-se na maioria dos casos por um raciocnio no especialmente rigoroso (e alis normalmente implcito): tendo em considerao a sua extenso e as suas caractersticas de completude e organicidade, se o texto em questo, em vez de estar disponvel em formato electrnico, fosse impresso, seria provavelmente impresso sob a

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    forma de livro (Roncaglia, 2001b). Mas, com maior ou menor rigor, tal situao parece ter algum sentido, pois vivemos num perodo de transio algo descon-fortvel, marcado pela generalizao dos documentos digitais e pela digitali-zao emn grande escala dos documentos impressos, mas que permanece fiel ao papel. Tem-se verificado que, por razes prticas ou sentimentais, quase ningum dispensa o livro impresso e esse material que o papel, cuja morte prxima muitos predisseram e que se arrisca afinal a surpreender-nos pela sua longevidade (Lebert, 2002, p.125).

    E muito embora, como refere Bazin (1996, p.8), a ordem do livro que tem sido a nossa e que conformava um campo simultaneamente cognitivo, cultural e polti-co em torno do qual o objecto livro ocupava a posio central, se encontre j em plena reconfigurao e essa cultura do livro, ou seja, uma certa maneira de produzir saber, sentido e sociabilidade v pouco a pouco desaparecendo, o que certo que a nossa experincia do passado, as nossas prticas de memria, so livrescas em todo o sentido do termo. E, de um modo quase impensado, en-tendemos, imaginamos livros quando reflectimos sobre a criao e a inveno, sobre as relaes do pensamento e da imaginao com o tempo, sobre o arquivo dos erros e do conhecimento (Steiner, 2001, pp.235-236).

    Verses Electrnicas e Reconceptualizao do Livro no Mundo Digital

    No fundo, quando se discute a metfora do livro, so dois clusters conceptuais que esto em jogo: por um lado, o da cultura do livro, com a sua famlia de cono-taes associadas a expresses como livro impresso, tradio tipogrfica ou gutenberguiana, textualidade, linearidade, abstraco, raciocnio dedutivo, monomedialidade, contexto fechado. Do lado da nova cultura multimedia, en-contramos expresses como multimedialidade, hipertextualidade, hipermedia, multilinearidade, imerso, raciocnio analgico ou contexto aberto (Roncaglia, 2001a). Contudo, no que se refere ao conceito de livro electrnico que temos seguido, o que tem predominado , nos termos de Lynch (2001), uma translao bastante literal dos livros impressos para uma representao digital. Nesse sentido, Blisle (2003) considera que o primeiro livro electrnico, o Rocket eBook, surge como a primeira experincia comercial sucedida de um projecto de dispositivo aberto e parametrizvel baseado no modelo conceptual do livro. Na verdade, a sua oferta de leitura maioritariamente textual e pretende inscrev-er-se num contrato de leitura familiar. E, se o eBook foi identificado como livro, isso deve-se ao facto de propor o mesmo contrato de legibilidade visual atravs

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    das solues tipogrficas adoptadas e manter a semelhana dos elementos do peritexto (Blisle, 2003). Pode entender-se que essa atitude corresponde a uma convico de que os e-books sero melhor compreendidos se forem vistos como uma evoluo e no como uma revoluo, como tm acentuado alguns estudos de funcionalidade. Os livros e a leitura encontram-se inextricavelmente ligados cultura e a sociedade, e por isso os costumes, necessidades e objectivos soci-ais e culturais no podem ser ignorados. E a finalidade do desenvolvimento dos e-books no a de substituir os livros impressos mas explorar e compreender o que podem oferecer estas novas tecnologias de informao e comunicao no apoio interaco entre as pessoas o conhecimento registado (Gibbons et al., 2003). A perspectiva de Roncaglia (2001b) bastante semelhante, ao recusar as teses mais extremas em nome de assuno de fundo, a ideia de que o con-junto de prticas e de modelos tericos que constituem a herana de (pelo me-nos) cinco sculos de cultura do livro no pode ser nem esquecida, nem aban-donada, nem considerada como um dado adquirido, mas pode e deve antes prosseguir a sua prpria evoluo certamente que sob formas em parte novas e inesperadas mesmo na era dos media digitais. Contudo, a esta perspectiva que valoriza as representaes derivadas ou secundrias de livros impressos e publicados ou de textos pensados primariamente para publicao impressa (a que Geoffrey Nunberg chama verses electrnicas), tem-se oposto uma outra, que defende a publicao de textos electrnicos pensados e concebidos para se moverem em suportes electrnicos desde o seu incio, que explorem as capaci-dades especficas do universo digital, ligados vulgarizao de ambientes hip-ertextuais e que questionem algumas das noes tradicionalmente atribuveis aos textos da cultura do impresso. Desse ponto de vista, o livro electrnico, tal como o descrevemos, seria ainda um avatar do livro impresso, uma pattica tentativa de o imitar. Longe de constituir uma passo em direco ao futuro, no mais do que o ltimo sinal da nossa ligao nostlgica a um objecto ameaado de desaparecimento, incapaz de enfrentar as questes culturais e intelectuais que a digitalizao das obras do esprito coloca, e constitui uma regresso em relao s promessas do electrnico (Clment, 2000, p.129 e p.136). Seria ento exigvel uma atitude de reconceptualizao dos livros no mundo digital (Lynch, 2001), que passa pelo desenvolvimento de novos gneros particular-mente adaptados leitura no ambiente online e gerados para explorar as poten-cialidades dos media digitais. Roncaglia (2001b) designa esta posio como a tese da heterogeneidade radical do livro impresso e dos media digitais. Se-gundo esta tese, a possibilidade de os media digitais integrarem contedos multimedia e de os organizar de modo hipertextual e interactivo leva inevitavel-mente elaborao de objectos informacionais muito afastados do modelo

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    fechado, linear e baseado primariamente na textualidade escrita prpria do livro impresso. Essa tambm a posio de Slowinski (2003, p.14), ao considerar que, se a metfora do livro pode ser til como ponto inicial de referncia a um contexto familiar, medida que os e-books se desenvolvem, o reeenvio para o livro na especificao dos contedos dos livros electrnicos tender a desapa-recer, e tornar-se-o desnecessrias as comparaes e distines com os produtos impressos. George Landow, na sua perspectiva especfica, escreve tambm que, se os hipertextos modificam radicalmente a experincia do que significam a leitura, a escrita e o texto, no mais possvel, sem induzir em erro, utilizar termos to carregados com os pressupostos da tecnologia do impresso quando nos referimos realidade e aos materiais electrnicos (Landow, 1997, p.57). Encontramo-nos, assim, perante a questo do hipertexto, tema sobre o qual remeto, no essencial, para Furtado (2000, pp.316-344). Convir recordar, contudo, a definio de base de Landow (1997, pp.3-4), para quem o hipertexto denota um texto composto por blocos de texto e as ligaes electrnicas que os agregam. O Hipermedia apenas alargaria a noo de texto no hipertexto ao in-cluir informao visual, som, animao e outras formas de dados. Dado que o hipertexto, que liga uma passagem de discurso verbal a imagens, mapas, dia-gramas e som to facilmente como a outra passagem verbal, expande a noo de texto para alm do exclusivamente verbal, no distingo entre hipertexto e hiper-media. Links electrnicos tanto conectam lexias externas a uma obra (...) como interiores a ela, criando assim texto que experimentado como no linear ou, mais propriamente, como multilinear ou multissequencial. Embora os hbitos convencionais de leitura se apliquem dentro de cada lexia, uma vez que se aban-dona os limites vagos de cada unidade de texto, aplicam-se novas regras e novas experincias. Daqui decorrem alguns pontos normalmente utilizados para car-acterizar o hipertexto (seguimos aqui Giulio Lughi): a) ausncia de linearidade sequencial; b) organizao reticular das unidades textuais (deixa de ter sentido o conceito de pgina enquanto unidade arbitrria determinada exclusivamente pelas particularidades fsicas do suporte papel); c) possibilidade de leituras in-finitas (o leitor rapidamente se d conta de que um hipertexto no uma leitura mas sim muitas leituras possveis); d) registo das leituras, o que possibilita que o leitor adquira uma certa dimenso de autoria ao assumir uma das caractersti-cas principais dos autores, a capacidade de decidir a organizao de um texto; e) labilidade da distino autor/leitor; f) possibilidade de expanso do texto (o texto em memria magntica deixa de ser definitivo, pois, num hipertexto, o autor/leitor pode acrescentar em qualquer momento novos elementos); g) pos-sibilidade de extenso multimedia (Lughi, 1993). Luciano Floridi considera que, passado este tempo (a primeira utilizao explcita do termo j tem pratica-

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    mente quarenta anos e o artigo seminal de Vannevar Bush mais de cinquenta), os hipertextos adquiriram tantos atributos e desenvolveram-se em tipologias to diferentes que uma definio englobante se arrisca a ser ou muito genrica ou muito controversa. De qualquer modo, chama a ateno para alguns equvocos recorrentes sobre o hipertexto, a que chama falcias, interesssando-nos aqui particularmente duas: em primeiro lugar, a falcia electrnica, segundo a qual o hipertexto seria unicamente um conceito computer-based. Ora, na verdade, tal conceito incorrecto e deve-se confuso entre o nvel fsico e nvel conceptu-al. Como o memex mostra, um hipertexto uma estrutura conceptual que foi originalmente concebido em termos completamente mecnicos. () certo que ns e links s podem ser implementados eficientemente e numa larga escala por um sistema de informao que possa, em primeiro lugar, unificar todos os docu-mentos, formatos e funes que usam o mesmo medium fsico e, em segundo lugar, proporcionar um interface interactivo que possa responder aos inputs externos quase em tempo real. E igualmente bvio que os computadores se ajustam de um modo preciso a esse papel, mas o memex ou Xanadu so, como a mquina de Turing, modelos tericos. A electrnica digital, embora pratica-mente vital para o seu desenvolvimento, em geral conceptualmente irrelevante para o seu entendimento. Em segundo lugar a falcia literria, segundo a qual o hipertexto teria comeado primariamente como uma tcnica narrativa sendo pois, essencialmente, uma nova forma de estilo literrio. Tambm esta noo incorrecta. Na verdade, os hipertextos foram encarados em primeiro lugar e permanecem antes do mais, como sistemas de recuperao de informao usa-dos para recolher, ordenar, agrupar, actualizar, pesquisar e recuperar informa-o de um modo mais fcil, rpido e eficiente. E, na realidade, o hipertexto for-nece meios potentes e efectivos para integrar e organizar documentos em coleces coerentes com referncias cruzadas extensas, estveis e imediata-mente disponveis (Floridi, 1999, p.121).

    Vemos assim que se deve evitar igualmente a tendncia para considerar os hipertextos como uma realidade nica, com caractersticas genericamente aplicveis aos diversos sistemas. Na verdade, o termo genrico hipertexto, tal como acontece com a expresso tecnologia do impresso que se refere a tipos de obras ou objectos textuais muito diferentes, inclui tambm sistemas bastante distintos. Landow (1994, pp.30-31), refere que o hipertexto pode assumir a forma ou de um sistema stand-alone ou de um sistema em rede (networked), que por sua vez podem ainda ser sistemas read-only, permitir aos leitores criar links ou breves anotaes ou garantir-lhe total acesso como escritor. Mais ainda, se muitas webs hipertextuais existem mais como unidades relativamente separa-

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    das do que como ns ou regies locais no interior de um enorme docuverse, elas podem dividir-se em vrios gneros e modos, incluindo hipertextos referenci-ais, construtivos, didticos e naquilo que falta de melhor termo chamarei hip-ertexto literrio. Nesse sentido, Alberto Cadioli distingue entre hipertextos de tipo ensastico e hipertextos literrio-criativos, dotado de uma elevada funo esttica (Cadioli, 1997, p.45) e Lughi (1993) entre hipertextos didactico-crti-cos (construdos a partir de obras literrias existentes) e hipertextos narrativos originais. Os primeiros, utilizam a conexo de informaes de documentos anteriores, com afinidades que o justifiquem, com vantagens no campo da in-vestigao, facilitando a consulta de documentos e livros, no implicando que esses livros abdiquem da sua integridade e existncia fsica, mas que encontram enormes mais-valias ao serem digitalizados e sobrecodificados em linguagens e protocolos hipertextuais. Jerome McGann, responsvel pelo Rossetti Archive, refere que os hipertextos permitem-nos navegar atravs de grandes massas de documentos e ligar esses documentos, ou partes deles, de modos complexos. As relaes podem ser definidas previamente ou podem ser desenvolvidas on the fly (atravs de relaes criadas na marcao SGML de uma obra). () Estas redes documentais podem ser organizadas interactivamente (permitindo inputs do leitor/utilizador). Podem ser distribudas de uma forma auto-contida (por exemplo, em discos CD-ROM) ou podem ser estruturadas para transmisso atravs da Rede. Neste caso, a estrutura hipertextual bsica apresenta maior capacidade (mas no um nvel mais elevado): uma estrutura de rede (como a World Wide Web) de hipertextos locais abre para uma rede de redes. (McGann, 2001, pp.56-57). Muito embora produtos escolares especializados, como os Canterbury tales, no alcancem um mercado de massas, recursos de pesquisa electrnica tm vindo a ser produzidos por grupos acadmicos especializados no mbito universitrio graas a bolsas de investigao. Contudo, apesar do fascinante trabalho desenvolvido, no se encontram indcios fortes, na rea das humanidades, de que a cultura de investigao se tenha alterado de modo a aco-modar a utilizao dessas publicaes, embora alguns produtos electrnicos como Bell and Howells Literature Online seja usado a nvel universitrio para apoio ao ensino e investigao (Warwick, 2003, p.210).

    Por seu lado, os hipertextos narrativos ou ficcionais constituem-se como instrumentos para a criao literria, como oportunidade para as primeiras experincias efectivas de texto literrio por parte dos escritores, agora liber-tos dos constrangimentos colocados sua imaginao pelas caractersticas prprias do livro impresso. Neste sentido, abririam novas possibilidades para a fico e seriam a satisfao de um desejo antigo dos escritores graas s suas

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    potencialidades de escrita no linear, graas a uma maior participao do leitor e incluso, no corpo do texto, de elementos no verbais. Desse modo, quando se analisa o campo literrio da escrita hipertextual, convm ter em conta, para alm das prprias hiperfices, um conjunto alargado de posies tericas. E, na verdade, nesta rea da reflexo sobre a escrita que encontramos as per-spectivas tericas mais elaboradas a propsito quer do hipertexto em geral quer do hipertexto narrativo. Essa a opinio de Lughi (2001, pp.126-127), que menciona alguns pontos de referncia literria e terica em que se fundamenta essa reflexo: dos grandes experimentadores do passado (de Rabelais e Sterne at Joyce e Borges) vanguarda experimental contempornea (Robbe-Grillet, Saporta, Pavic) e aos tericos da centralidade do leitor (de Barthes a Iser), tudo num contexto terico onde assumem um papel decisivo os conceitos de descentramento, segmentao e rede, remetidos para o desconstrucionismo de Derrida. Nesta perspectiva, o hipertexto literrio entendido como a realizao de instncias tericas j pr-existentes no plano filosfico e cultural, o banco de testes em que se analisa a dissoluo da centralidade do texto, a multiplicao dos pontos de vista e a livre iniciativa do leitor. Ao ser interrogado sobre os as-pectos desenvolvidos na nova verso do seu livro, Hypertext 2.0, Landow refere a sua insistncia na tentativa de mostrar uma convergncia entre as diversas formas do hipertexto e a actual teoria crtica, a teoria do ps-modernismo e do ps-estruturalismo, e ainda o aparecimento de uma nova seco sobre Deleuze e Guattari, a ideia do rizoma e do hipertexto como escrita rizomtica (Roncaglia, 1997). O que confirma a opinio de Aarseth de que os pressupostos normati-vos das teorias iniciais do hipertexto devem ser compreendidas luz de um projecto de mbito mais vasto no seio da sua primitiva comunidade, projecto que tentava associar a tecno-ideologia do hipertexto aos vrios paradigmas da teoria do texto. (Aarseth, 1997, p.25).

    A partir de 1987, com a publicao de Afternoon, de Michael Joyce, a obra mar-cante por excelncia do campo da hiperfico, primeiro apresentada em floppy disk e depois transferida para o programa Storyspace em parte desenvolvido pelo prprio autor em 1990, comeam a surgir diversas experincias de narra-tiva hipertextual. Para Joyce, a hiperfico a primeira instncia do verdadeiro texto electrnico, aquilo que viremos a conceber como a forma natural de es-crita multimodal e multissensitiva. No tem um centro fixo nem margens, no tem um fim ou fronteiras. O tradicional tempo linear da narrativa desaparece numa paisagem geogrfica ou num labirinto sem sada, e o comeo, o meio e o fim deixam de fazer parte da sua apresentao imediata. Em vez disso, temos opes ramificadas, menus, link markers e redes mapeadas. No existem hier-

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    arquias nestas redes, nem pargrafos, captulos ou outras tradicionais divises do texto, que so substitudas por janelas com blocos efmeros de texto e gr-ficos que, a breve trecho, sero complementados com som, animao e filme. Afternoon uma criao emblemtica dessa poca, a que Coover (2000) veio posteriormente a chamar a idade de ouro do hipertexto literrio, caracterizada por obras com mltiplos links entre crs de texto numa nonlinear webwork de elementos poticos ou narrativos e em que os primeiros escritores experimen-tais trabalhavam quase exclusivamente em texto. Estes primeiros hipertextos eram na sua maior parte objectos autnomos, tal como livros, passados para floppy disks de baixa densidade e distribudos por pequenas empresas em ar-ranque como Eastgate Systems e Voyager. Mas j nessa fase se colocavam al-gumas questes, pois desde logo se imps um ideal de navegao que Christian Vandendorpe caracteriza como s cegas, em que o leitor devia abandonar os seus velhos hbitos, resultantes de cinco sculos de cultura gutenberguiana. E acrescenta que, no primeiro romance em hipertexto, o referido Afternoon, a navegao era ainda mais constrangedora para o leitor, pois este no podia sequer voltar atrs no seu percurso de leitura e era convidado a avanar na narrativa, que ocupava cerca de 900 crs, clicando numa qualquer palavra, na esperana de encontrar uma ligao significativa. Ter-se- compreendido que o modelo implcito era o do labirinto. Esse modelo, que tem certamente um enorme valor no plano simblico, excelente para textos ou ambientes ldicos que pretendem testar os talentos de intuio, de observao e de memria do utilizador. Mas no certamente adequado para actividades de consulta e pesquisa de informao. O facto de se ter podido confundir estes dois planos releva de uma manipulao ideolgica que pretende restringir o hipertexto a uma essncia e a uma funo definidas em abstracto e de um modo muito es-treito, independentemente das possibilidades deste novo medium (Barbeau, 2000). Mas, desde ento, sobretudo com a possibilidade de se publicarem hiperfices directamente na Web, veio a verificar-se tambm uma progressiva diminuio da importncia da palavra, cada vez mais reduzida, diz Coover, a um cone ou a uma legenda. Tambm Vandendorpe (1999, p.109) assinala que, na realidade, a componente verbal j no representa praticamente nada nos hip-ermedia ficcionais... hoje possvel empenharmo-nos numa fico complexa sem que a linguagem esteja presente seno no estado de epifenmeno. Este movimento de desverbalizao tornou-se possvel devido a uma modificao radical do ponto de vista da narrao.

    Lynch (2001), considera que os livros digitais enfrentam uma srie de desafios e, particularmente os que representam uma reconceptualizao do livro im-

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    presso, tm pela frente enormes questes relativas ao seu modelo de autoria, ao seu modelo econmico e aceitao; na verdade, so formas emergentes e ainda longe da maturidade. E h mesmo quem pense que fcil verificar que o lugar primeiro de legibilidade destas formas hipertextuais no se encontra ai-nda dominado. Esse lugar est antes do semitico e d conta das modalidades de acesso ao semitico ou, se se preferir, de tudo o que no semitico na nossa relao com os signos, lugar dos suportes dos textos e do domnio das tecno-logias por eles implicadas (Gervais, 2003). E ainda Bertrand Gervais quem refere que sintomtico que os hipertextos de fico no sejam interpretados e comentados, mas apresentados como fenmenos, como objecto de um dis-curso sociolgico, antropolgico ou tecnolgico, raramente dando origem a verdadeiras anlises de texto. O prprio Landow (1994, pp.36-37), sugere que as tentativas crticas no mbito de um hipertexto partilham inevitavelmente as caractersticas do medium, designadamente a multivocalidade, abertura, organizao multilinear, incluso de informao no textual e uma reconfigura-o fundamental da autoria, e acrescenta que a forma ou gnero dessa escrita crtica apresenta diversos pontos de convergncia com o ps-estruturalismo. E quando se interroga sobre o que Deve um crtico fazer?, no admira ento que a resposta seja: escrever em hipertexto.

    Para Christian Allgre, o hipertexto ideal a que a teoria se refere no existe de um modo significativo. Existem alguns hipertextos de fico que podem servir de exemplo, mas, no fundamental, o hipertexto de que a teoria fala no existe; mais do que um texto, um modo de abordar o texto.

    Trata-se antes de tudo de uma postura e de um termo tericos que incorporam un conjunto de caractersticas ps-modernas mas de que existe apenas um nmero nfimo de incarnaes prticas. Os hipertextos de fico existem em escasso nmero de exemplares e so largamente experimentais (Allgre, 2000, p.70). Apesar da sua produo ser marginal, no se pode ignorar, contudo, que existe uma consistente comunidade de investigao, criativa e terica, em torno de escritores e de figuras ligadas a empresas tecnolgicas, editoras e universi-dades, como Marke Bernstein e Eastgate, George Landow e a Brown University, Michael Joyce em Vassar, Stuart Moulthrop na Universidade de Baltimore, Rob-ert Coover ou Nancy Kaplan.

    Esta concepo militante do hipertexto acabou por contribuir para deixar pou-co claro o facto de a estruturao hipertextual da informao no corresponder necessariamente a uma acumulao desordenada de fragmentos ligados entre

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    si de modo mais ou menos casual. Ao contrrio, cada hipertexto tem uma estru-tura prpria bem determinada (tanto que pode ser representada e analisvel matematicamente atravs de grafos) e hipertextos diferentes podem ter graus de diversa complexidade hipertextual (de modo a corresponder s caractersti-cas especficas dos diversos tipos de informao ou aos objectos particulares em causa) (Roncaglia, 2001a). Talvez por isso, Aarseth (1997, p.79) afirme que, com as actuais diferenas entre sistemas hipertextuais, nomeadamente os uti-lizados para fins poticos, perigoso elaborar teorias gerais sobre hiperlitera-tura e que, ao invs, devemos olhar para cada sistema como um medium tcnico potencialmente diferente, com consequncias estticas distintas. Para ele, o hipertexto tanto uma categoria tcnica como ideolgica, construda com base na sua pressuposta diferena de, e superioridade sobre, os media impressos e devemos ter o cuidado de no permitir que este mito influencie subconsci-entemente as nossas leituras de textos individuais. E, no mesmo sentido, Jane Yellowlees Douglas quase reduz as caractersticas do hipertexto a uma tecnologia que existe em grande medida como reflexo do que algumas pessoas vem como crucial para criar, armazenar, perquisar e manipular informao. E acrescenta que se pode dizer que o hipertexto se torna um aparato pelo qual diferentes grupos fixam as qualidades que consideram centrais para a comu-nicao atravs de palavras. Na maior parte da literatura sobre os aspectos do design do interface e da engenharia do software do hipertexto, os investiga-dores assinalam que existem praticamente tantos tipos diferentes de sistemas hipertexto quanto utilizaes bvias para a tecnologia, e que o prprio design do software tende a reflectir os tipos de actividades para cujo suporte foi criado. Essas actividades so ler, escrever e aprender, eles mesmos processos que se transformam de um contexto social para outro, bem como entre tarefas, gneros e textos. (Douglas, 2000).

    Apesar disso, Landow apresenta uma viso restritiva de hipertexto, contestan-do sobretudo a World Wide Web. Embora considere que a WWW inestimvel, ela , no entanto, uma forma de hipertexto muito primitiva, plana e reduzida. Por outro lado, tem o efeito danoso de diminuir as expectativas das pessoas, de faz-er com que elas queiram qualquer coisa de muito semelhante s potencialidades dos livros sem ter as potencialidades do que electrnico (Roncaglia, 1997). Esta posio bastante redutora e tende a confinar a discusso em torno do hipertexto a uma oposio entre a WWW e os sistemas ligados a um ambiente de escrita, como os conhecidos Storyspace, Intermedia, Microcosm ou Sepia. Em nosso entender, muito mais produtiva a perspectiva de Floridi, ao considerar o hipertexto como princpio organizacional da estrutura tipolgica do nosso espa-

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    o intelectual, o que permite descrev-lo como o princpio logicamente consti-tutivo de organizao do hiperespao representado pela infoesfera. Por outro lado, a hipertextualidade tambm um problema de perspectiva, que depende de quo de perto se est a analisar um documento e de aquilo que se aceita como tomo semntico. () Mais do que tentar impor uma linha de diviso ntida entre diferentes tipos de documentos, parece til reconhecer que o hipertexto, como organizao relacional de documentos digitais, ajuda a unificar, a tornar mais fina e eventualmente mais acessvel a estrutura intertextual e infratextual da in-foesfera. (Floridi, 1999, pp.128-129). Este ponto decisivo para entendermos que, independentemente de o hipertexto se poder considerar como programas, como software ou como diferentes tipos de hypermedia system designs e, portanto, dos documentos ou web sites a que d forma e estrutura, nos encon-tramos cada vez mais envolvidos num ambiente hipertextual pois que, como se disse, o hipertexto tambm o princpio organizacional da estrutura tipolgica do nosso espao intelectual.

    Allgre (2000, p.70) chama a ateno para o facto de, a haver um ponto em que todos os tericos do hipertexto esto de acordo, o da desmaterializao do texto atravs da electrnica, a sua des-substanciao. Ora, isso equivale a ignorar completamente o contexto material e social do computador (programa-o, constituintes materiais, software, etc.), no entanto bem significativo, e o fundo material, econmico e cultural sobre que se opera a referida desmaterial-izao. portanto indispensvel retomarmos a questo dos aspectos tecnolgi-cos ligados aos livros electrnicos, no completamente resolvida e deixada de algum modo em suspenso em razo da crtica de Sawyer preeminncia das questes relacionadas com o hardware e o software na definio dos e-books.

    Mediao Tecnolgica e Remediation

    Antes de mais, deve sublinhar-se a emergncia de uma realidade absolutamente nova e da maior importncia para a nossa relao com os livros. Na verdade, como lembra Lynch (2001), apenas com os textos digitais os livros se deparam, pela primeira vez, com questes que sempre foram familiares para os editores de msica e de vdeo. Ao contrrio do texto impresso, a mediao atravs da tec-nologia de equipamentos de leitura (players) uma parte intrnseca da fruio dos registos musicais e do vdeo, em que as actividades de audio, gravao e reproduo esto normalmente associadas. Neste campo, a mediao tec-nolgica vulgarizou a aceitao de expectativas bastante especficas por parte

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    dos consumidores, pois sabe-se de antemo, por exemplo, que essas tecnolo-gias viro a tornar-se obsoletas, no se garantindo a sua usabilidade a prazo. Ora, a mediao tecnolgica basicamente estranha ao mundo do livro. Ronca-glia (2001a) salienta, neste sentido, que, na nossa tradio cultural, o livro um objecto persistente, ao qual se retorna no decurso do tempo, e cuja conservao deve ser garantida. Um mecanismo que se afasta to profundamente deste modelo, aproximando de facto a leitura de um livro da viso de um filme pay per view, ser o melhor caminho para a difuso do livro electrnico e o cresci-mento do nmero dos seus leitores? O livro impresso sempre teve a vantagem de no exigir qualquer dispositivo tcnico para ser lido, de ser imediatamente visvel, folhevel e consultvel e de ser fcil de emprestar. A simplicidade do seu manuseamento, essa relao directa e fsica com o objecto livro incluindo no plano das posturas corporais so aspectos postos agora em questo com o novo dispositivo de leitura (Le Loarer, 2002, p.447). Como refere ainda Lynch, o impresso tem historicamente uma vida muito longa por ter usufrudo de uma ausncia nica de mediao tecnolgica e por ser um dos mais antigos media, certamente o medium mais antigo em termos de produo e comercializao em massa. O papel pelo menos o papel bem feito dura muito tempo. Estas pro-priedades esto estreitamente relacionadas com a funo e estatuto nicos dos livros. A msica gravada sempre foi mais frgil. Os discos de 78 RPM dos nossos pais ou avs, so hoje s precariamente acessveis, devido contnua mudana de tecnologias, a menos que tenham sido reeditados na nova tecnologia por uma editora musical ou transferida para um medium mais moderno por algum que possua uma cpia do registo original. Se certo que um leitor de CDs audio, as-sim como um leitor de DVDs, custa poucas centenas de dlares, a substituio uma coleco de LPs por CDs ou de uma coleco de vdeo cassettes por DVDs, pode custar dezenas de milhares de dlares, e isto no espao de apenas uma ou duas dcadas. Estaremos dispostos a sobrecarregar as nossas bibliotecas pessoais (e/ou bibliotecas institucionais) de livros, msica e filmes com esses custos para assegurar a transio de tecnologia em cada dez ou vinte anos, para satisfazer os modelos econmicos das indstrias de contedos? E a perder algumas obras preciosas, mas talvez no muito populares, em cada transio tecnolgica, por no serem disponibilizadas na nova tecnologia? Temos e con-tinuaremos a ter os direitos e a capacidade de preservar o contedo que j ad-quirimos perante as mutaes tecnolgicas? Num mundo futuro de contratos de licena e de tecnologias de gesto de direitos digitais (DRM) e enquadrada pelo Digital Millennium Copyright Act, tanto essses direitos como essas capacidades esto postas em questo. (Lynch, 2001).

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    Tambm Debray (2000) concede relevo a este ponto, salientando que o livro, ao contrrio, por exemplo, do cinema, nunca precisou de uma prtese para que o leitor se detivesse numa frase ou numa pgina, enquanto necessrio um mag-netoscpio para parar numa imagem ou um computador para ler um CD-ROM. E sublinha que a delegao da leitura numa mquina consubstancia uma enorme diferena, que abala perigosamente o plano do simblico. Debray chama ainda a ateno para dois pontos: o digital, por um lado, discretiza imagem e texto, por exemplo - em pontos ou pixels; por outro, substitui a infinita variedade das linguagens por uma sequncia de zeros e uns. Adiante retomaremos estas posies.

    Por outro lado, e em segundo lugar, o livro impresso corresponde na realidade a uma particular tecnologia de produo, transmisso e conservao do texto. Esta tecnologia no deixa de influenciar o tipo de textualidade produzida, trans-mitida e conservada, ou seja, os textos produzidos no interior do ambiente gutenberguiano transportam a sua marca estrutural (Roncaglia, 2001a). E ai-nda que Frost (2002) considere que o impresso um modo de baixa mediao tcnica, no reconhecer esse selo tecnolgico equivaleria a aceitar a ideia de que a informao tem uma forma e integridade independente do sistema em que produzida e consumida. Nesse caso, comenta Paul Duguid, a informao assumida como auto-suficiente, auto-explanativa e auto-legitimadora. Mais, os documentos so concebidos como uma espcie de elementos que transportam ideias pr-formadas ou contedos atravs do espao e do tempo. Para Duguid isto o exemplo daquilo a que Michael Reddy (1979) chama conduit metaphor, j que nesses termos que, na maior parte dos casos, as tecnologias da informa-o so descritas. Ora, essa metfora no tem em conta importantes aspectos dessas tecnologias, ignorando, designadamente, o modo como constituem e integram prticas sociais (Duguid e Brown, 1995). O texto seria assim uma sub-stncia neutral, transfervel independentemente da sua base material. O ponto fundamental que as caractersticas do interface utilizado no so de nenhum modo neutrais e no deixam de influenciar nem a estrutura textual nem os mo-dos de fruio do texto (Roncaglia, 2001b). Mais ainda, a questo do suporte essencial para o estabelecimento do estatuto dos textos, pois atravs deles que se identificam as modalidades concretas de presentificao dos textos: em que assenta este ser de linguagem? Surge num cr ou impresso em papel? Apresenta-se isoladamente ou em relao com outros signos? Em que contexto lido? Gervais (2003). De uma maneira geral, a translao do medium impresso para o medium electrnico uma operao cuja complexidade e exigncias cog-nitivas so enormes, mal documentadas e pouco investigadas. Christian Allgre

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    refere que esta translao de um medium para outro exige uma muito cuidadosa reconfigurao intelectual dos contedos, que deve ser decidida a partir de uma compreenso renovada da sua natureza, da sua genealogia, da sua contextual-izao cultural e das estratgias de leitura previstas; os contedos devem ser reclassificados e reordenados no sistema de conhecimentos com o fito de asse-gurar uma nova eficcia simblica exigida pelo novo medium. Esta recompreen-so em profundidade implica por sua vez reconfiguraes tcnicas. E, mais ainda, esta recompreenso no se faz no vcuo, mas num contexto institucional, econmico e social (Allgre, 2000, pp.72-73). Por outro lado, indispensvel ter presente, antes de tudo, quando se fala em meter o livro no computador, a transformao de um texto escrito em texto electrnico e distinguir este nvel do interface em que o texto electrnico vir a ser utilizado (Roncaglia, 2001a). Nzia Villaa considera, a partir de Serres, que a dinamizao deste espao entre implica pensar a articulao entre o conhecido e o desconhecido que existe desde a aurora da humanidade. este espao de passagem que basica-mente estar em jogo na avaliao do impresso e do eletrnico de forma a no alimentar o costumeiro hiato estabelecido entre a cultura do papel e as novas tecnologias... (Villaa, 2003).

    Para tentar abarcar a complexidade dos fenmenos a que nos referimos, tem vindo a ser utilizada a tese da remediation (remediao), desenvolvida por Bolter e Grusin (1999). Com essa noo, pretende-se dar conta da operao de transferncia de contedos para outros suportes, operao de translao-traduo-converso (Allgre, 2000, p.63) para novos media. Inspirando-se em McLuhan (1964, pp.23-24) e na sua tese de que o contedo de qualquer medium sempre outro medium, Bolter e Grusin consideram que, com essa afirmao, McLuhan no estava a pensar apenas no simples repurposing, mas num fenmeno mais complexo, que ocorre quando um medium ele mesmo incorporado ou representado num outro medium. A remediao (remedia-tion) justamente essa representao de um medium num outro e significa a lgica formal pela qual os novos media re-amoldam (refashion) anteriores formas mediais. A remediao (remediation) caracterstica definidora dos novos media digitais e apresenta uma dupla lgica tpica da nossa cultura. que quer simultaneamente multiplicar os seus media e apagar qualquer trao de mediao: idealmente gostaria de apagar os seus media no prprio acto de os multiplicar (Bolter e Grusin, 1999, p.45 e p.5). Existem assim duas estratgias na remediao (remediation): a primeira, immediacy (imediacia) ou transparent immediacy (imediacia transparente) corresponde a um estilo de representao

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    visual cujo objectivo fazer o observador esquecer a presena do medium (tela, fotografia, cinema, etc.) e acreditar que se encontra na presena dos objectos de representao; o que aqui se acentua a apresentao transparente do real. Na segunda, hypermediacy (hipermediacia), a representao visual pretende tornar o medium explcito para o observador, sublinhando a sua prpria opacid-ade. Mas a remediao (remediation) no comeou com a introduo dos media digitais, pois podemos identificar esse mesmo processo nos ltimos sculos da representao visual no Ocidente. Por exemplo, a perspectiva linear pode ser entendida como a tcnica que se apaga a si mesma como tcnica. E quando essa tcnica consegue automatizar-se na camera obscura e subsequentemente per-mitir o aparecimento da fotografia, deparamo-nos com um processo mecnico e qumico que parece completar a tendncia para esconder quer o processo quer o artista. Tal como o desejo pela imediacia transparente (transparent immediacy), o fascnio pelos media tambm tem uma histria de prtica representacional e uma lgica cultural. Nos media digitais de hoje, a prtica da hipermediacia (hypermediacy) evidente no estilo heterogneo das windows das pginas da World Wide Web, dos programas multimedia e dos jogos vdeo. Trata-se de um estilo visual que privilegia a fragmentao, a indeterminao, a heteroge-neidade e enfatiza o processo da realizao mais do que o objecto acabado. Em suma, como outros media desde o Renascimento, os novos media digitais oscilam entre a imediacia (immediacy) e a hipermediacia (hypermediacy), entre transparncia e opacidade. Esta oscilao a chave para para compreender como um medium re-amolda (refashion) os seus predecessores e outros media contemporneos. Embora cada medium prometa reformar os seus predecesso-res ao oferecer uma experincia mais imediata ou mais autntica, a promessa da reforma implica inevitavelmente uma conscincia do novo medium como me-dium. (...) Ao mesmo tempo, este processo insiste na presena efectiva, real dos media na nossa cultura. Os media tm a mesma exigncia de realidade que os artefactos mais tangveis; fotografias, filmes e aplicaes para computador so to reais como avies ou prdios. Mais ainda, as tecnologias mediais constituem redes ou hbridos que podem ser expresssas em termos fsicos, sociais, est-ticos e econmicos. A introduo de uma nova tecnologia medial no significa simplesmente inventar novo hardware e novo software, mas sobretudo amoldar (ou re-amoldar) essa rede. A World Wide Web no meramente um protocolo de software, texto e ficheiros de dados. tambm a soma dos usos de esse pro-tocolo (...). Esses usos so tanto parte da tecnologia como o prprio software. Por essa razo, pode dizer-se que as tecnologias mediais so agentes na nossa cultura sem cair na armadilha do determinismo tecnolgico. Os novos media digitais no so agentes externos que vm causar uma rotura numa cultura

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    inocente. Emergem do interior de contextos culturais e re-amoldam outros me-dia que esto inseridos no mesmo ou em similares contextos. (Bolter e Grusin, 1999, p.19). Assim, imediacia (immediacy), hipermediacia (hypermediacy) e remediao (remediation) no so verdades estticas universais, so prticas de grupos especficos em momentos especficos.

    Por outro lado, as duas lgicas de remediao (remediation) tm uma dimenso social tanto para os produtores como para os observadores. Por isso, a imedia-cia (immediacy) deve ser entendida em dois sentidos, um epistemolgico e outro psicolgico. No sentido epistemolgico, a imediacia (immediacy) transparn-cia: a ausncia de mediao ou de representao. a noo de que um medium se pode apagar e deixar o observador em presena dos objectos representados, de modo a conhecer os objectos directamente. No sentido psicolgico, a ime-diacia (immediacy) tem a ver com a sensao do observador de que o medium desapareceu e de que os objectos lhe esto presentes, com a sensao de que a sua experincia autntica. A hipermediacia (hypermediacy) tem tambm dois sentidos correspondentes. No seu sentido epistemolgico, a hipermediacia (hy-permediacy) opacidade o facto de que o conhecimento do mundo nos chega atravs de media. O observador tem conscincia de que est em presena de um medium e de que aprende atravs de actos de mediao ou ento aprende sobre a prpria mediao. O sentido psicolgico de hipermediacia (hypermediacy) a experincia de que se est em e na presena de media; a insistncia de que a experincia do medium ela mesma uma experincia do real. A atraco pela autenticidade da experincia o que junta as lgicas de imediacia (immediacy) e de hipermediacia (hypermediacy). Essa atraco socialmente construda pois evidente que no s indivduos como vrios grupos sociais podem ter diferen-tes definies de autntico (Bolter e Grusin, 1999, pp.70-71).

    Ainda trs aspectos especialmente importantes: em primeiro lugar, nenhum medium, hoje em dia, parece realizar o seu trabalho cultural isoladamente dos outros media nem trabalha isoladamente das outras foras sociais e econmi-cas; em segundo lugar, o que novo nos novos media o modo particular como eles re-amoldam os media anteriores e o modo como os media anteriores se re-amoldam a si mesmos para responder aos desafios dos novos media. Mais ainda, no h nada de estranho em um medium mais antigo tentar re-amoldar um mais recente pois, em relao imediacia (immediacy), hipermediacia (hyper-mediacy) e remediao (remediation), as filiaes histricas entre media tm uma inegvel importncia. Por fim, todos os correntes media activos (velhos e novos, anlogos e digitais) respeitam, reconhecem, apropriam-se e, explicita ou

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    explicitamente, atacam-se uns aos outros. Diferentes media adoptam diferen-tes estratgias, que so testadas por criadores e designers em cada medium (e por vezes em cada gnero dentro do medium) e depois aceites ou ou desencora-jadas por foras econmicas e culturais mais largas.

    Interessa agora verificar, neste quadro terico, qual os contributos de Bolter e Grusin para a questo do livro. Desde logo, o aparente reconhecimento de que o livro impresso, pela sua idade venervel, pode requerer um estatuto especial. Em seguida, que nesse medium encontramos naturalmente a mesma tenso entre imediacia (immediacy) e hipermediacia (hypermediacy) prpria dos fen-menos de remediao (remediation). Vejamos como. Num extremo, como alguns outros media mais antigos, ressaltado e representado sob forma digital sem aparente ironia ou crtica. Nesses casos, o medium electrnico no apresen-tado em oposio ao medium impresso (ou pintura, por exemplo); em vez disso, o computador surge como um novo meio de aceder a esses materiais mais anti-gos, como se o contedo do medium antigo pudesse simplesmente ser vertido para o novo. Como a verso electrnica se justifica a si mesma por garantir o acesso a media antigos, quer ser transparente. O medium digital quer apagar-se, de modo a que o observador mantenha com o contedo a mesma relao que teria se estivesse em confronto com o medium original. Idealmente, no deveria haver diferena entre, digamos, a experincia de ver uma pintura pessoalmente e no cr de um computador, mas tal nunca se verifica. O computador intervm sempre e torna deste ou daquele modo a sua presena sentida, talvez porque o utilizador deva clicar num boto, fazer deslizar a barra ou talvez porque a ima-gem digital surja granulada ou com cores incorrectas. Contudo, o objectivo a transparncia. Criadores de outras remediaes electrnicas (electronic reme-diations) parecem antes querer enfatizar as diferenas e no apag-las. Nestes casos, a verso electrnica apresentada como um aperfeioamento, embora o novo seja ainda justificado em termos do antigo e procure permanecer fiel ao carcter do velho medium. Existem, ainda assim,