021 quando surge a morte

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Page 1: 021 Quando Surge a Morte
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A bela espiã vai à Los Angeles investigar um movimento

racista e se envolve num tráfego de armas pesadas.

(C) 1965 – LOU CARRIGAN Publicado no Brasil pela Editora Monterrey

Digitalização: JVS 390531-390605

Page 3: 021 Quando Surge a Morte

CAPITULO PRIMEIRO

Um banho de Cleópatra, a carta e a esperança.

Brigitte raciocina entre as espumas.

A passagem do desconhecido e um começo de mistério.

Onde encontrar a voz?

Claro, as mulheres feias podem ser muito virtuosas,

cheias de qualidades humanas e até sobre-humanas, como

certas abnegadas de que nos fala a História. Mas as bonitas

emocionam à primeira vista. Fazem a alegria da Terra, são a

melhor paisagem sob o sol.

O último sultão de Marrocos disse, certa vez, que a

mulher de corpo bonito é a maior prova da existencia de

Deus na sua harmonia e integração com o Universo.

Brigitte Montfort é um desses casos aprimorados de

eugenia. Suas pernas e suas ancas tem sido comparados por

intelectuais, “gangsters” e artistas bem falantes de todas as

raças, às pernas e às ancas de Galatéia, famosa estátua grega

de Pigmalião que um dia virou gente (e muitos séculos mais

tarde se transformaria em MY FAIR LADY de Bernard

Shaw e Allan Lerner, para alegria dos freqüentadores da

Broadway e dos fãs de Hollywood).

Brigitte Montfort tem o corpo das mulheres eternas.

Deslumbra e atiça. Desnorteia e domina. Sua pele dourada

lembra uma tâmara fresca brilhando ao sol do deserto. Não

vamos insistir nestas descrições ociosas de baixa

estratificação literária, que o leitor deve estar querendo uma

história violenta, cheia de ação e suspense, como devem ser

as boas novelas de espionagem da era espacial.

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Vejamos o que faz Brigitte Montfort em Miami, na

“suíte” de luxo do Eden Rock Hotel, a dois passos do

Oceano Atlântico. Entremos, silenciosos, no seu quarto,

observando detalhes.

Sobre a mesinha da saleta foi deixado uni envelope

comprido e branco, carimbado de Nova York. Está aberto e

vazio.

Prossigamos.

Aqui está o dormitório, todo azul-claro, emoldurado de

cortinas brancas, macias. Sobre a cama enorme, jaz o

diáfano “baby doll” da linda repórter, como à espera

daquele corpo de estátua que lhe emprestará

estremecimentos humanos.

Mais um passo. Ah! Lá está ela, quieta, suave, quase

uma figura de Boticelli, imersa na água espumante da

grande banheira rosa. Esqueceu entreaberta a porta, e sua

atitude revela calma e bem estar, embora seus olhos ávidos,

curiosos, percorram as linhas da carta que tem na mão.

O sol de Miami fê-la de bronze, melhorando ainda mais

seu mistério de femea perfeita. (Ah! já esquecíamos a

ênfase!) Apoiada, docemente, sobre a orla da banheira,

Brigitte lê.

Aproximemo-nos ainda mais. Sejamos curiosos, como

detetives da série de Peter Sellers. A carta está assinada por

Miky Grogan, Diretor Redator Chefe do “Morning News”

de Nova York, jornal em que trabalha Brigitte. Diz assim:

Minha querida repórter:

É uma pena que eu tenha de interromper seu

ensolarado descanso em Miami. Sei que a praia

Page 5: 021 Quando Surge a Morte

dourada em frente ao seu hotel é um convite à

preguiça e à meditação. Mas não tenho outro

jeito. Preciso de você, com urgência. Só você

resolve os problemas que os outros começam. Por

que teria de ser assim? A eficiência morando na

sua beleza... Vejamos, então, sua próxima

designação. Voe para Los Angeles, na costa do

Pacifico. Informe-se sobre os conflitos raciais que

estão ocorrendo por lá. Não nos bastam os

telegramas das agencias noticiosas. Queremos um

estudo em profundidade, algo que represente a

observação dos nossos próprios olhos em Los

Angeles. Os seus olhos, Brigitte, são os nossos.

Embora mais azuis, trazem a imagem do que

significa a notícia exata para o “Morning News”.

Vá, veja e vença! E nos forneça, com a máxima

brevidade, relatos mais amplos. Queremos o “x”

do problema.

Espero que não fique muito zangada. com esta

nova ordem, desfazendo suas férias. Afinal, uma

repórter linda como você, nunca está totalmente

em férias. Beijos do seu,

Mick Grogan

P.S. — O nosso amigo, o inspetor Pitzer da

CIA, acaba de falar comigo ao telefone. Sobre o

caso que acabo de lhe dizer ele tem algumas

observações interessantes a acrescentar. Vai

contatá-la brevemente. Abraços.

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Brigitte leu e releu a carta, suspirou, deixou que o papel

caísse docemente sobre o tapete do banheiro, voltou a

ensaboar as pernas esculturais e afinal decidiu-se a encerrar

seu voluptuoso banho de Cleópatra.

Envolta numa toalha felpuda, quase uma carícia de

feltro, retornou ao quarto, sentou-se na poltrona bergere ao

lado da cama e pôs-se a enxugar o corpo distraidamente,

compondo uma cena maravilhosa que os nossos olhos

profanos teriam querido admirar.

Ali estava o inesperado, na carta de Miky Grogan —

pensava ela, um tanto decepcionada. A referencia ao

Inspetor Pitzer era sintomática. Não seria uma reportagem

comum, do jornal, mas sobretudo um caso envolvendo o

Serviço Secreto americano. Mais uma vez o Chefe Grogan e

o velho raposão da CIA tramavam jogá-la num episódio

arriscado.

O post scriptum estabelecia que Pitzer estava por se

comunicar com ela, brevemente. Mas quando? E onde?

— Pois bem! — murmurou Brigitte erguendo-se e

prendendo a toalha sobre os seios — estou mesmo nisso até

o pescoço, e vou em frente. Ah! Minhas férias douradas!

Quando terei outras, nestas circunstâncias?

A jovem e escultural repórter andou nervosamente pelo

quarto, acendeu um cigarro longo triplo, último lançamento

da Fali Mali, jogou no ar algumas baforadas azuis e

finalmente deitou-se de bruços na cama, sem tentar vestir o

“baby doll”. Precisava meditar, e desde muito conservava o

hábito de ficar nua, nos instantes mais agudos do raciocínio.

Page 7: 021 Quando Surge a Morte

Quando já fechava os olhos, numa lânguida

concentração, ouviu o tilintar do telefone na mesa de

cabeceira.

— Sim! — disse, apanhando o fone. — Sim, sou eu

mesma, Brigitte Montfort!

Houve uma pausa, e nos olhos da jovem surgiu uma

chama de flagrante curiosidade.

— Passagem para Los Angeles? — exclamou. — Mas...

eu ia pedir justamente que me reservassem essa passagem!

Quem se antecipou?

Brigitte repôs o aparelho no gancho, intrigada. Alguém

lhe reservara passagem no vôo Miami-Los Angeles! Mas,

quem? Não poderia ter sido o próprio Miky Grogan, pois o

chefe estava longe de adivinhar o momento exato em que

ela receberia a carta. E o vôo, com número marcado, seria

para dali a duas horas, o que fazia supor que o comprador

da passagem — a qual já fora entregue na portaria do Eden

Rock Hotel estava informado de sua presença naquele

endereço. Devia também conhece-la, saber de sua viagem!

Tudo muito estranho.

Ligou novamente para a portaria, insistindo em saber o

nome da pessoa que reservara a passagem. Nada conseguiu.

— De qualquer modo — pensou — tenho a passagem. E

o mistério não pode durar muito.

Ocupou-se em vestir um adorável Pucci en cio qué,

calçar as sandálias italianas que lhe realçam a beleza das

pernas perfeitas, descendo em seguida para o “salon de

beauté” do hotel, onde um “coiffeur” de gestos nervosos

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manejou seus profundos cabelos negros dando-lhes um

toque de estudada simplicidade, em poucos minutos.

Meia hora depois, assustadoramente linda, Brigitte

aparecia no balcão do aeroporto, declinando o nome e

perguntando pela reserva.

— O pedido foi feito ontem, por telefone — informou o

funcionário. — Só lhe posso dizer que a voz era masculina.

— Chamada interurbana? — indagou Brigitte.

— Não! Aqui mesmo em Miami — completou o

balconista. — Seu avião partirá dentro de dez minutos,

senhorita Montfort.

A jovem repórter, ainda intrigada, foi acomodar-se numa

poltrona, depois de ter encaminhado a bagagem. Fumando

procurou lembrar-se das pessoas que poderiam estar

relacionadas com aquela viagem. E, de repente, lhe veio a

memória o “post scriptum” da carta de Grogan: “... Pitzer

vai contata-la, brevemente.”

Um sexagenário que lhe cobiçava os joelhos, sentado em

frente, admirou-se quando Brigitte estalou os dedos,

levantando-se num impulso.

A moça ia sorrindo até o balcão da companhia. De lá

pediu ligação para a portaria do Éden Rock e fez uma

pergunta. Houve dois minutos de silencio, no outro fone,

depois que o interlocutor pediu que esperasse; iria indagar

de alguém. Voltou com a resposta:

— Senhorita Montfort? Sim... uma voz masculina, calma

e grave, perguntou, duas horas atrás, pelo telefone, se já

chegara ao Eden Rock uma carta para a senhorita.

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Respondemos afirmativamente, pois a carta fora realmente

entregue no seu quarto. Fizemos mal, senhorita?

— Oh, não! — respondeu Brigitte, só por delicadeza. E

insistiu: — Essa pessoa não se identificou?

— Quando nosso funcionário pediu que declinasse o

nome, o tal cavalheiro desligou. — informou o homem do

hotel.

— Está, bem! — conformou-se Brigitte, suspirando.

Já agora os alto-falantes chamavam os passageiros com

destino a Los Angeles. Brigitte encaminhou-se para a

aeronave, meditando:

— Voz calma e grave... de homem. Nenhuma havia mais

calma e mais grave do que a de...

Estacou, a dez passos da escada do avião. Lá em cima,

no último degrau, um homem de roupa clara, óculos

escuros, saudava-a com um sorriso. Foi um momento

apenas, pois logo entrou no aparelho.

A esta altura o leitor inteligente já terá percebido que o

misterioso cavalheiro que acaba de entrar nesse avião em

que vai viajar Brigitte é, nada mais, nada menos, que o

tremendo Inspetor Pitzer, da CIA, comandante dos

melhores agentes secretos do mundo cabeça de um grupo

selecionado de espionagem e contra-espionagem, velho

amigo de Brigitte, seu chefe em tantas missões arriscadas

no Oriente e na Europa Central, um patrão extra que maneja

seu destino além do Diretor Miky Grogan, do “Morning

News”.

Por que não se dera ele a conhecer?

Por que os óculos escuros? Por que o mistério?

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Brigitte subiu a escada e foi até às primeiras poltronas

do avião.

Não se enganou: lá estava ele, Pitzer, com estranhos

óculos escuros que jamais usara.

— Com sua licença, cavalheiro — disse ela, passando

para o lado da janelinha.

Tratou-o como se não o reconhecesse, mas Pitzer sabia

que a rápida olhadela, no pátio, fora suficiente para

identificá-lo perante a repórter. Ela agora olhava para o

outro lado, como que interessada na movimentação ao

aeroporto. O velho raposão cerebral da CIA mantinha-se

firme no jogo.

Dentro de um minuto, a comissária de bordo pediu que

usassem os cintos de segurança. O jato deslizou lento para a

extremidade da pista, começou a mover-se cada vez mais

rápido; a operação tomara apenas um minuto e já a possante

aeronave descrevia uma elegante curva nos céus, aproando

para Oeste.

Nos dois primeiros assentos, à esquerda, o simpático

Alan Pitzer e a belíssima Brigitte Montfort continuavam

perfeitamente desconhecidos um do outro. Nem um olhar

trocavam. Cena perfeita.

Somente dez minutos depois de terem alçado vôo foi que

Brigitte deixou de olhar para fora. Ajeitou-se, atirou para os

lados as partes do cinto de segurança, começando a

examinar com um olhar lento, muito lento, o homem do

lado. Considerou seus sapatos, passou aos joelhos

displicentemente superpostos, à mão que segurava um

cigarro, ao paletó cinza... e encarou-o.

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Pitzer seguira de viés aquele olhar, sempre sorrindo.

Mesmo ao ver a expressão irada de Brigitte, continuou

sustentando olhos nos olhos.

Por fim, com um impaciente suspiro, a repórter

explodiu:

— Muito bem, fale!

Entre o brando conversar dos passageiros, a voz

feminina, irritada, soou forte.

Pitzer fez um sinal, pedindo-lhe calma:

— Vai assustar os outros, querida. Não chame atenção.

Brigitte, amuada, cerrou o punho:

— Diga logo o que quer de mim. Não deve ser um

bombom.

Ele ficou sério:

— Não se irrite, querida. Não é nada de mais.

— Muito bem — tornou ela, contrafeita.

Mas deixe de chamar-me querida. Você não pagaria

minha passagem à toa! Que pretende, desta vez?

— Colaboração — foi a palavra que saiu dos lábios

firmes de Pitzer.

— Sempre o mesmo! — murmurou Brigitte, amuada. —

Sempre co-la-bo-ra-ção! Mas, de que tipo? É o que quero

saber!

Pitzer não respondeu logo. Em vez disso, estendeu-lhe o

maço de cigarros, insistindo para que aceitasse um.

Brigitte aquiesceu, mais calma, e Pitzer o acendeu com

seu isqueiro “que ofereciam os penhorados colegas de

trabalho” — como dizia a inscrição da face brilhante do

objeto.

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— Pois bem — falou ele, depois de vê-la mais tranqüila:

— trata-se de Lyn Galloway, da CIA. Perdeu-se em Los

Angeles e não mais achou o caminho de casa. Nem mesmo

o telefone. Tememos que algo lhe tenha ocorrido, pois não

dá sinais de vida há uma semana.

Fez uma pausa, apagou o cigarro num cinzeiro

aerodinâmico, ajeitou as pernas:

— Vou pedir-lhe que o procure.

— Um agente “capa e espada”?! (agentes destacados

para as missões mais arriscadas) — Brigitte sorria. — E

como pode um desses perder-se? Não são os melhores, os

invencíveis?!

— São homens, Brigitte — limitou-se a responder o

inspetor. — E como homens, às vezes falham. Mas... como

é? Vou poder contar com você?

Brigitte pensou um pouco, pareceu querer protestar;

voltou a olhar as nuvens lá fora:

— Você não vai a Los Angeles, meu caro?

— Vou — confirmou Pitzer — Mas preciso voltar

imediatamente a Washington... estudar um caso na Turquia.

Novo silencio dela, novas baforadas, e a calma vindo aos

poucos. Brigitte já aceitando o pedido:

— Que foi fazer esse Lyn?

— Examinar o Watts District — respondeu Pitzer. —

Não é esse o assunto que a leva a Los Angeles? — E, ante a

afirmativa de Brigitte: — Pois bem, Galloway também era

interessado nesse bairro. Devia enviar-me certos dados,

depois de investigar ingerências estranhas...

Brigitte não entendeu:

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— Quer explicar melhor? Que estranhos?

— Sim. As questões raciais aqui nos Estados Unidos

tem tido importância, mas não tem causado danos

excessivos. Agora, no entanto, surgem armas e “coquetéis

molotov” em demasia. A violência é tremenda. E nós só

queríamos ter certeza de que não há gente de fora

mandando armas para os negros e insuflando os ânimos.

Para ser claro: tememos que o dedo da subversão esteja

metido lá...

— E por que eu? — atalhou Brigitte.

Pitzer sorriu ligeiramente:

— Não vai escrever sobre o assunto?

— É ao que me enviam.

— Então! Aproveite e indague sobre Lyn...

— ...que pode ter sido vítima do... dedo subversivo —

sorriu Brigitte. — Garanto que nosso amigo está

desfrutando do sol do Pacífico, nos braços de uma loura

hollywoodiana. E o nosso caro chefe...

— Não brinque, Brigitte — o inspetor fez-se uni pouco

áspero. — Lyn era um sujeito dos melhores que já conheci.

Pelo menos no que tange ao lado humano. Se morreu,

sentirei muito. E se morreu, é porque descobriu algo muito

sério. Para dizer a verdade, não me espantaria se soubesse

que alguns estrangeiros — perigosos estrangeiros! — estão

metidos na anarquia. No fundo, é isso o que desejamos

saber: quem está por trás de todo esse estardalhaço em

Watts District? E onde foi parar Lyn?

— Pode ter sido vítima de um choque de rua, entre

brancos e negros — considerou ela.

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— Não, não, minha querida. Em tal caso, os restos

teriam aparecido. Pelo sumiço total de Lyn, pode-se

perfeitamente suspeitar de algo anormal.

Brigitte fez cara de espanto:

— Acredita mesmo que agentes estrangeiros estejam

metidos nisso, inspetor?

— Sim, e você pode avaliar de que país sejam. Quem

poderia estar interessado em que déssemos má impressão ao

mundo? Mas isso é uma hipótese, apenas, não se esqueça.

— Alto lá, meu caro! — Brigitte ergueu a mãozinha

delicada. — Eu não disse que o ajudaria... ainda.

— Não... não vai atender-me, Brigitte? — espantou-se

Pitzer. — Eu pensei...

Ela riu, mostrando considerar melhor o assunto, e

acabou por afirmar com um movimento de cabeça:

— Umas perguntas sobre Lyn Galloway serão quase

nada, perto do que vou precisar para os artigos de Miky

Grogan. Como é esse tal Lyn? Ou... como era?

— Era... — ou é — ruivo, forte, simpático, alto,

esperto...

— Já sei, já sei: um tipão Está bem. Farei as indagações

que deseja.

O inspetor mostrava-se agora satisfeito. Acendeu outro

cigarro, chamando a comissária do bordo:

— Dois cafés! — pediu.

Voltou-se depois para a linda repórter.

— Uma coisa, Brigitte: que acha dos negros? Digo, tem

algo contra a raça?

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— Tanto quanto tenho contra você, caríssimo —

respondeu ela. — E você, que acha dos esquimós?

— São pessoas às vezes melhores do que nós —

respondeu ele, rindo. — Dizem que tem muito mais calor

humano.

— Pois, então... — riu também Brigitte. — Você não

acha que os homens valem mais pelo cinzento do cérebro

do que pela alvura da pele?

CAPÍTULO SEGUNDO Primeiros passos dentro de um labirinto negro.

Praia de sangue, sob um luar de recordações amenas.

Quando um atirador perfeito escolhe um alvo pior.

Conjecturas em um Thunderbird.

Dois dias depois de sua chegada a Los Angeles, Brigitte

já se dera conta dos riscos e problemas que lhe traria a nova

missão.

Aliás o Inspetor Pitzer jamais lhe confiara um caso fácil.

Enquanto esperava, na estação de telex, sua vez de

comunicar-se com o “Morning News”, para transmitir os

primeiros informes, a repórter-agente repassava

mentalmente os resultados daqueles dois dias de

investigação. Do ponto de vista do jornalismo, tudo correra

satisfatoriamente. Mas em relação a Lyn Galloway, nenhum

progresso, o ruivo tinha mesmo sumido, sem deixar

vestígios. E era vital para o inspetor saber o que sucedera ao

agente.

Pouco depois, chamaram-na ao telex, o que não lhe deu

tempo para maiores conjecturas sobre sua inicial

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perplexidade — ou falta de sorte — no campo das

investigações. Naquela mesma tarde quase telefonara a

Pitzer, pedindo-lhe um de seus homens para substitui-la no

caso de Galloway. Mas, desistir assim, seria confessar

derrota antes da batalha. E Brigitte queria tentar pelo menos

um segundo avanço.

Fez o despacho para o “Morning News” e quando

passava pela secretaria da agencia, a recepcionista entregou-

lhe um bilhete:

— Foi entregue por um rapazinho que não se identificou

— disse a moça.

Brigitte estudou por alto o papel dobrado, bem fechado

nas pontas. Sua curiosidade agitava-lhe os nervos.

— Nenhuma informação mais? — indagou, fingindo a

maior calma.

— Sinto muito, mas nada sei dizer — respondeu a moça.

— Estava ocupada com o telex quando ele entrou. Deixou

sobre a mesa esse bilhete e disse seu nome, senhorita

Montfort. Apenas isto.

Brigitte olhou em volta. Estavam por perto dois homens

de meia-idade, possivelmente repórteres, conversando

baixinho, de olhos fixos em sua figura. Mas não pareciam

ter algo a ver com o fato.

— Está bem, obrigada — disse afinal Brigitte,

afastando-se.

Na rua movimentada, chamou um táxi, e antes de abrir o

bilhete, esteve analisando o papel branquíssimo, um tanto

espesso, grampeado nos cantos, sem nome algum por fora.

Page 17: 021 Quando Surge a Morte

O táxi seguia veloz na direção do hotel, enquanto a noite

caía e se acendiam as luzes da cidade. Naquele momento,

em Nova York, Miky Grogan estaria mandando às oficinas

o artigo telestafado de sua dedicada repórter. O Inspetor

Pitzer estaria jantando calmamente, em seu apartamento

perto de Saint Patrick... enquanto ela, Brigitte, que teria

preferido estar em frente a um espelho, preparando-se para

um encontro com algum belo companheiro, tinha de se

contentar com a simples emoção de saber o conteúdo

daquele bilhete, que tanto podia ser um convite para um

encontro com Galloway quanto uma ameaça de morte!

Finalmente, resolveu abri-lo. Fê-lo cuidadosamente,

como se tivesse nas mãos um testamento. Dizia assim: “Ao

lado dos barcos de pesca, na praia de Santa Mônica, há um

pinheiral, à direita, senhorita Montfort. Vá hoje, e vá

sozinha.”

Em muito boa caligrafia, com tinta vermelha, a

mensagem era clara, mesmo peremptória: “Vá hoje, vá

sozinha”! Galloway, um bom detetive, não usaria um tom

semelhante. Ou usaria?! O fato é que Pitzer nada dissera do

caráter de Galloway. Podia ser, portanto, do agente, e talvez

não. Ah, aquela curiosidade mordiscante!...

O táxi alcançava o hotel, e Brigitte pensava rapidamente:

iria, ou não? Não ir significava desprezar a primeira

oportunidade de saber, talvez, algo de concreto sobre o que

Pitzer solicitara; e indo, possivelmente encontraria barulho.

A curiosidade fazia-a vibrar, como uma adolescente em

véspera de festa. Há pessoas que nascem assim, com o

gosto do perigo, o sangue da aventura.

Page 18: 021 Quando Surge a Morte

“Pois bem” — pensou Brigitte — “se alguém estiver

querendo jogar, conseguiu uma parceira. E com trunfos!”

Estava já à porta do hotel e o motorista lhe abria a porta.

— Espere-me aqui — disse, enquanto descia. Entrou às

pressas no edifício, apanhou a chave de seu apartamento, foi

saudada pelos costumeiros olhares de admiração devoradora

e subiu ao refúgio.

Cinco minutos depois, precisamente às oito e quinze,

descia maravilhosa, num “chemisier” de gaze estampada.

Logo abaixo do colo podia-se ver, sob a fazenda leve,

estampada, uma ligeira saliência. O leitor já sabe que

Brigitte carrega sempre, entre os seios, uma pistola de cabo

de madrepérola, muito pequena mas nem por isso menos

eficiente nos momentos de perigo. Entrando novamente no

táxi, verificou a bolsa e os documentos. Tudo em ordem.

— Conhece algum locador de automóveis, aqui por

perto? — indagou do motorista.

— A dois minutos daqui — foi a resposta indiferente do

homem.

— Pois me leve até lá.

SOB O LUAR

As praias enluaradas deveriam ser, necessariamente,

lugares de encontros românticos. A Literatura e o Cinema

se encarregam de plasmar essa idéia no espírito das gentes,

e ainda escolhem um setor do Mundo para fixar

especialmente o maior conteúdo lírico da paisagem: o sul

do Pacifico.

Page 19: 021 Quando Surge a Morte

Das praias de Santa Mônica, na Califórnia, qualquer

americano versado em Keats ou Bernard Cook, imagina o

seu mesmo Oceano misterioso indo beijar, muito além do

horizonte, as areias douradas de Waikiki, onde as donzelas

de um povo essencialmente puro gostam de cantar, ao som

de guitarras macias, o feitiço do luar havaiano.

Onda que leva o barco e a espuma;

Onda que espelha a estrela e a lua;

Onda que traz a brisa e o peixe;

Responde agora, ou nunca:

— onde está minha sereia?

— o amor do meu amor,

— onde está? areia?

Naquela noite, Brigitte um tanto romântica, pensava em

algumas velhas ternuras ao estacionar seu automóvel junto

aos barcos de pesca, na praia de Santa Mônica.

Toda mulher gosta de emocionar-se, deixar-se envolver

pelo charme de um momento. Poucos são os homens que

procuram entender esta verdade eterna, pondo de lado seus

pequeninos egoísmos, suas vaidades pessoais, para ir tentar

acender, na alma da namorada, a chama de um prazer por

ela apenas desejado.

John Pearson, aliás, Mister Fantasma, velho amigo de

Brigitte, seu companheiro de aventuras passadas, conhecia

perfeitamente o mistério dessa arte: a arte de fazer uma

linda mulher feliz.

Page 20: 021 Quando Surge a Morte

Mas não se demorou, nossa jovem repórter, nessas

conjecturas líricas. Antes se fez repetir, na memória, a frase

que a levara ali:

“Vá hoje, e vá só.”

À direita, realmente, havia um bosque de pinheiros,

muralha escura contrastando com o céu claro. Do outro

lado, o mar e alguns iates iluminados.

“Bem, minha cara Brigitte Montfort, agora é ir em

frente!” — pensou ela, de si para si.

Fechado o carro, dependurou a chave num dos pedaços

de madeira que serviam de molhe às pequenas embarcações

pesqueiras e caminhou até o bosque de pinheiros. Na mão

direita, que mantinha entre as dobras do vestido esportivo,

segurava a pistola. Se qualquer surpresa surgisse, estaria

preparada, pelo menos, para dar o primeiro tiro.

Andara pouco menos de duzentos metros e já se

encontrava a um passo das árvores, quando de entre os

barcos mais próximos viu sair uma figura totalmente negra.

Sem se amedrontar, continuou em passo firme, parando

somente junto ao tronco do pinheiro mais próximo, entre os

arbustos. Nem acabara de voltar-se, quando o homem

estacou a dois passos dela, olhos fixos em seu rosto. Era um

belo exemplar de negro, com olhos vivos destacados na face

sombria. Silencioso, ele a estudava.

Também sem nada dizer, e a estudá-lo, Brigitte

recostou-se no tronco do pinheiro, conservando oculta a

arma. Podia ser aquele que a fizera vir ali. Podia ser

também daquela classe de homens que costumam molestar

Page 21: 021 Quando Surge a Morte

mulheres. Negros ou brancos, amarelos ou vermelhos, não

há distinção entre os aproveitadores.

Por seu lado, o homem também parecia perguntar-se que

classe de mulher era ela. Mas afinal deu uns passos para a

esquerda, encostando-se também num tronco, e resolveu

falar:

— Senhorita Montfort? — perguntou, com voz grave.

— Precisamente — respondeu Brigitte, ainda cheia de

medo.

— Obrigado por ter vindo — disse o negro — E

desculpe o tom que usei no bilhete.

— Como soube meu nome? — inquiriu ela. — E como

soube que eu estava na agencia de telex?

Ele encolheu os ombros, depois falou:

— A senhorita esteve rondando Watts District. Venho

seguindo seus passos desde o meio-dia de hoje. E gostaria

de falar-lhe sobre... certo ruivo chamado Galloway, Lyn

Galloway. Disseram-me que se interessa por esse homem.

— Sou jornalista — respondeu Brigitte, numa atitude

indiferente. — Soube que Galloway, meu amigo, estivera

em Watts District na semana passada. E como tenho que

informar meu jornal do que se passa ali, pensei que meu

amigo Lyn poderia fornecer-me detalhes. É um ótimo

descobridor de coisas, esse Galloway, e nunca se negou a

auxiliar-me. Sabe o senhor onde poderei encontrá-lo?

O negro voltou a encolher os ombros.

— Não, não sei, senhorita. Mas posso dizer com certeza

que seu amigo Lyn andou rondando o iate “Sol Ardente”,

em Santa Catalina.

Page 22: 021 Quando Surge a Morte

— E a quem pertence o iate?

O homem fez um sinal de desconhecimento.

Brigitte, no silencio que se seguiu, perguntou-se com

que tipo de homem estava tratando. Nada, em sua figura

totalmente vestida de negro, em que apenas o branco dos

vivos olhos se destacava, fazia supor que fosse perigoso.

Dava a impressão, antes, de um pacifico esportista, pela

calma e pela musculatura.

— Quer dizer que Galloway esteve na ilha de Santa

Catalina, então? — considerou ela, olhando para o mar.

— Foi o que disse — confirmou o negro.

— E... quem é o senhor?

— Um amigo, senhorita Montfort. Conforme-se com

isso. Preocupou-se em não ser seguida?

Brigitte fez que sim.

— Muito bem. Adeus — disse ele, voltando-se para

deixar o local.

Brigitte ergueu a direita, resoluta.

— Um momento, senhor! Vai dizer-me...

Foi subitamente interrompida por um ruído bem

conhecido: o de uma arma provida de silenciador, detonada

atrás do arbusto, à direita ante seus olhos atônitos, o negro

dobrou-se e, a um segundo disparo, audível apenas graças

ao quase absoluto silêncio ambiente, seu corpo atirou-se

para trás, caindo de braços abertos e logo rolando em

contorções de dor.

Por um instante, Brigitte permaneceu imobilizada,

estupefata, incerta. Mas logo compreendeu o perigo. O

negro encolhia-se, apertando com os braços o abdômen, e

Page 23: 021 Quando Surge a Morte

novo projétil fazia voar um punhado de areia, agora a seu

lado.

Brigitte, desta vez, percebeu o movimento do arbusto, à

direita, e ocultou-se imediatamente, atrás do tronco no qual

estivera recostada. Foi sua salvação, pois uma bala passou

silvando junto de sua testa, resvalando no tronco. Era bom

atirador, o atacante! Aquele tiro na areia, por que errara?

Um clarão iluminou a cena. Sem fazer pontaria nem

olhar, Brigitte atirara para o lugar de onde partiam as balas.

Novamente uma bala silvou, quase atingindo o braço

que ela estendera para atirar.

Não podia ficar ali, onde o atacante sabia que estava.

Deslizou, então, para o chão, arrastando-se até outro lugar,

aproximando-se do negro, cujos movimentos e gemidos se

tornavam débeis.

Terrível silêncio dominava, agora. A linda repórter do

“Morning News” não perdia de vista o campo adversário,

onde nada se movia. Lentamente avançava até o pequeno

arbusto junto ao qual já se imobilizava, como que

enovelado em si mesmo, o robusto e simpático negro que a

chamara ali.

Quando alcançava com a mão a testa do ferido, ouviu

passos de alguém que deveria estar correndo entre os

pinheiros, nas sombras, a cem metros dali. Momentos

depois um carro arrancava, às escuras, dentro do bosque.

Brigitte, para certificar-se de que era o atacante quem

fugia, procurou na areia e encontrou um ramo seco. Atirou-

o além, provocando um ruído suficientemente perceptível a

qualquer pessoa. Não houve, entretanto, novos disparos.

Page 24: 021 Quando Surge a Morte

Pôs-se de joelhos, então, e ergueu a cabeça do ferido.

Sentiu, com os dedos em seu pescoço, a pulsação do

sangue: estava ainda vivo.

Enquanto depositava ao lado a pistola, viu-o abrir os

olhos, fixando-a, com angústia.

O negro tinha dificuldades em respirar, nessa posição,

com a cabeça sobre as pernas de Brigitte. Fez um esforço,

voltando a dobrar o corpo, mas deixando a cabeça no

mesmo lugar.

Brigitte procurou entender esse movimento: ele se

apoiava sobre o lado direito, porque seu peito, à esquerda,

estava empapado de sangue. Aquela posição talvez lhe

minorasse a dor, fazendo-o também perder menos sangue.

Com a ponta da saia, Brigitte começou a limpar a areia

do seu rosto contraído.

— Está precisando de um médico, amigo — disse. — E

como vou fazer? Preciso deixá-lo aqui, para ir buscar

socorro.

Os lábios do homem se moveram; os olhos apareciam

desorbitados pela dor:

— Dia... Diamond — conseguiu murmurar, entre

resfôlegos estertorados.

Brigitte inclinou-se mais, para ouvi-lo.

— Que disse?

— Diamond — repetiu ele, sílaba a sílaba. — Irmão..

— Onde poderei encontrá-lo? — perguntou Brigitte,

aflita com tamanho sofrimento no rosto dele.

A cabeça negra voltou a pôr-se de lado, posição em que

a respiração parecia tornar-se mais fácil para ele.

Page 25: 021 Quando Surge a Morte

Brigitte repetiu a pergunta, bem junto do ouvido:

— O irmão Diamond, onde posso encontrá-lo?

— Jag... Jagger Lane... oitenta.., e dois... Los...

— Los Angeles, não é? — falou ela. — E Você? Como

se chama? Terei de dize-lo a Diamond!

— Dowen... Lemuel... diga Diamond. — murmurou o

ferido, quase exangue. — Médico... não será... preciso...

Brigitte ergueu a cabeça:

— Está bem, Lemuel

Ao erguer a cabeça do homem, para depositá-la no chão,

sobre um montículo de areia, sentiu-a pender, inerte.

Tateou-lhe o pescoço musculoso e não mais sentiu as

pulsações do coração. Estava morto!

Brigitte mordeu os lábios. Sentiu-se quase responsável

por aquela tragédia. Quem quer que fosse ele, Lemuel

Dowen viera até ali para lhe dar uma pista sobre Lyn

Galloway. Alguém muito importante deveria estar

interessado na manutenção do segredo. Se não, por que o

ataque? Mais, ainda, por que chamá-la a um lugar ermo,

quando naquela mesma tarde o homem podia tê-la

informado de tantos modos: por telefone, bilhete,

telegrama... Que o teria feito preferir a segurança de um

lugar que julgara deserto?

“Bem, o fato é que tenho agora um cadáver e um

endereço!” — pensou Brigitte. — “De qualquer maneira,

não poderei sair por aí levando o pobre morto de bagagem.

Alguém terá de saber disso e desincumbir-se dele: Diamond

Dowen, Jagger Lane, número oitenta e dois”.

Page 26: 021 Quando Surge a Morte

Pondo-se de pé, agarrou os pulsos do negro, arrastando-

o com dificuldade, para as sombras mais espessas do

pinheiral. Ajeitou-o sob arbustos e voltou, recolhendo a

pistola.

Em um minuto, sentava-se ao volante do carro que

alugara. Tinha de descansar um pouco. O musculoso corpo

do homem pesava muito, e tivera de empregar todas as

forças de seus braços femininos para ocultá-lo.

Entre dois barcos ali amarrados, a repórter distinguia, ao

longe, as luzes da ilha de Santa Catalina.

“Lá estivera Lyn Galloway — pensou — e o nome “Sol

Ardente”, de certo iate, seria a pista para saber de algo

sobre o agente desaparecido. O ataque, de minutos atrás,

que resultara na morte do pobre negro, deveria estar

relacionado com o caso. Um assassino escalado para

silenciar o informante e, quem sabe, a própria repórter

bisbilhoteira. Muitas conjecturas...

Mas, pairando acima de tudo, uma dúvida: como é que,

estando completamente à mercê da arma assassina, não fora

ela mesma atingida? Os projéteis endereçados a Lemuel

Dowen não haviam falhado! E um atirador daquele calibre

não erraria, principalmente tendo ela permanecido como

perfeito alvo durante tantos minutos.

Teria havido o propósito de apenas imobilizá-la ou

assustá-la? Os pontos vitais do corpo de Lemuel

certeiramente atingidos demonstravam que o atirador não

podia ter falhado contra Brigitte.

Page 27: 021 Quando Surge a Morte

O Thunderbird azul movimentou-se. Naquele momento

só havia uma coisa a fazer: procurar o tal Diamond, o irmão

do pobre negro recém assassinado.

Brigitte tinha o endereço e a coragem. Faltava-lhe apenas a

frase. Como anunciaria a morte de um irmão?

CAPÍTULO TERCEIRO Da calmaria ao momento dramático.

Quando é preciso agir como fera.

Das mãos e dos pés inteligentes e belicosos.

Chamas, suor e lágrimas.

Um corpo espera no bosque.

O apartamento, bem modesto, constava de sala, quarto e

banheiro. Num cubículo de metro e meio, que somente o

próprio locatário podia denominar “cozinha”, havia um

pequeno fogão, uma geladeira menor ainda, e alguns velhos

utensílios espalhados.

A sala, que ostentava um cortinado de terceira categoria,

a ocultar um sofá-cama, tinha livros por todos os lados.

Sobre a pequena mesa, em duas estantes, e ainda num

armário aberto, livros e mais livros. Pequenos, grandes,

delgados e folhudos. E dos mais variados assuntos. Os

livros dominavam totalmente o cenário. E, malgrado a falta

de cuidado, o ambiente era razoavelmente limpo.

É estranho como, às vezes, um pequeno apartamento dá

idéia de sujeira, só porque é exíguo e empilhado.

Junto da ampla janela que dava para os fundos do

edifício, Diamond Dowen estudava, apanhando de quando

em vez algum dos volumes em torno.

Page 28: 021 Quando Surge a Morte

Sentado, o jovem negro parecia vulgar e talvez um

pouco frágil. Mas quando se erguia, para buscar algum

objeto de que necessitava, revelava-se um Hércules de

ébano. Sua figura nada ficava a dever à do irmão Lemuel, o

monte de músculos que naquele momento jazia num bosque

de Santa Mônica. Menos volumoso, porém mais alto e

afilado, Diamond tinha o rosto distinto de um príncipe

etíope.

Naquela noite, por volta das nove e meia, Watts District

transformara-se numa praça de guerra: gritos, disparos,

sirenas de carros policiais, alto-falantes berrando ordens,

bombeiros em ação... o bairro sofria o tremendo impacto do

“riot” entre enfurecidos manifestantes negros e elementos

da Guarda Nacional, da Policia e da Brigada 160 de

Infantaria. Improvisados franco-atiradores, lançadores de

“coquetéis molotov”, provocadores de baderna, grupos

amotinados lutavam contra os homens da ordem. As

bombas lacrimogêneas desfaziam motins num setor mas

provocavam outros mais adiante. Mortos e feridos não eram

já novidade nas ruas entulhadas, incendiadas.

A menos de um quarteirão de sua morada, a rebelião

tinha curso, a morte rondava... e Diamond Dowen, embora

nervoso com tudo aquilo, permanecia quieto, estudando,

anotando, preparando-se para a mesma luta que seus irmãos

de cor travavam agora. Mas com uma diferença: não iria ele

bradar por seus direitos, pelos direitos de todos, com uma

tocha, uma pistola ou um “coquetel molotov” nas mãos.

Iria, sim, lutar, com o poder das idéias, com a palavra de

paz que aprendera dos seus verdadeiros lideres, defensores

Page 29: 021 Quando Surge a Morte

de sua gente muitas vezes desprezada pelos compatriotas.

Iria lutar com a persuasão, com a inteligência, com a

sabedoria, pois somente assim a vitória seria construtiva e

duradoura. Só despertando a compreensão nas mentes dos

antintegracionistas, dos que, sem razão além de um estúpida

motivação de cor, atiraram pólvora nas já sobre-excitadas

massas, somente assim veriam chegar o dia em que negros e

brancos poderiam viver lado a lado, em paz e prosperidade.

Diamond Dowen dava o máximo de si, nos estudos,

fazendo ouvidos surdos aos irmãos de cor que o atiçavam às

arruaças.

Seria advogado! Era o modo certo de lutar, sem ter que

sair pelas ruas a quebrar vidros, incendiar armazéns ou

atirar pedras nos homens da lei. Naquele caminho — o

caminho que sua mente esclarecida encontrara como o

melhor — ele, Diamond Dowen, seguiria até o fim!

Deixara de ler, agora, e ouvia, com desgosto, os gritos e

ruídos de mais além, ecos das refregas que tomavam a noite

enluarada. E então escutou chamarem à porta. Seria por

certo mais um que chegava para convida-lo à baderna, para

roubar-lhe a paz necessária ao estudo.

De má vontade, caminhou até a porta, um lápis na mão

esquerda. Colocou o lápis atrás da orelha, hesitou, antes de

levar a mão ao trinco, pensando se não lhe convinha fingir-

se ausente. Mas a chamada — um leve toque, repetido, na

madeira — voltou a alertá-lo.

Diamond resolveu abrir, afinal, e pensou estar sonhando.

A visitante, preocupada, imóvel e de olhos fixos nos seus,

era a mulher mais bonita que já tinha visto. Cabelos negros

Page 30: 021 Quando Surge a Morte

cobrindo os ombros, olhos azuis de céu, profundos e

faiscantes, boca entreaberta, vermelha, corpo escultural que

se podia adivinhar sob o vestido estampado, justo.

— Você é Diamond Dowen? — perguntou ela.

— Sim, sou eu — respondeu Diamond. — Que...?

— Preciso falar-lhe — cortou Brigitte, entrando sem

mais delongas.

Diamond olhou inquieto para a escada de madeira.

Fechou a porta, lentamente e voltou-se para ela, que se

plantara no centro da sala-dormitório:

— Creio que está sendo imprudente, senhora — disse.

Brigitte não lhe fez caso. Sabia quanto lhe custara passar

despercebida pelos grupos de manifestantes, para chegar ali:

— O assunto que me traz vale a imprudência, senhor

Dowen. E não vou ficar aqui por muito tempo.

— De que se trata, senhora? — perguntou Diamond,

subitamente estático e interessado.

Brigitte foi direta. Aquele tipo não era dos que levam

choques com as más notícias:

— Mataram seu irmão — disse.

Diamond Dowen, sem camisa, era um Hércules soberbo.

Brigitte pensou que talvez seus ombros se arriassem um

pouco, ao impacto da noticia. Mas não: como se não a

tivesse ouvido, ele caminhou com passadas largas, alcançou

um maço de cigarros numa das estantes e acendeu um deles.

Apenas uma ruga apareceu em sua testa bem formada e lisa,

enquanto a olhava em silêncio. Tragou a fumaça com

serenidade indo sentar-se nos dois degraus que conduziam à

saída:

Page 31: 021 Quando Surge a Morte

— Suponho que não foi a senhora quem o matou —

disse lentamente.

— Claro que não! O próprio Lemuel me disse seu nome

e endereço.

— Sei que se trata de Lemuel — cortou Diamond. —

Não tenho outro irmão. Quem o matou? E que tem a

senhora a ver com isso?

— Não sei quem o matou, senhor Dowen — falou ela,

sustentando aquele olhar penetrante. — Quanto à minha

participação nisso, aconteceu que me encarreguei de ouvir

suas últimas palavras e de esconder seu cadáver. Sou

jornalista, e Lemuel Dowen tinha informações a dar-me.

Tivemos um encontro em Santa Mônica. O cadáver está

agora numa praia. Ele mesmo pediu-me que o avisasse...

— Iremos buscá-lo — disse subitamente Diamond,

erguendo-se num salto.

— Se quiser, tenho um carro, estacionado além de Watts

District.

— Perfeitamente, perfeitamente. Espero que não

tenhamos problema em sair daqui, senhora...

— Senhorita — corrigiu ela. — Senhorita Brigitte

Montfort.

Passou a seu lado, dirigindo-se ao cortinado que

ocultava o sofá-cama. Apanhou uma camisa, vestiu-a, e

então sua semelhança com o irmão mostrou-se completa:

vestido de negro, ele era quase a mesma figura.

— Posso saber quais foram as informações que Lemuel

lhe deu? — indagou ele.

Page 32: 021 Quando Surge a Morte

— Falou-me sobre um repórter pelo qual me interesso,

O repórter é meu amigo... ou era... e seu irmão sabia algo

sobre ele. Mencionou um iate, o “Sol Ardente”, pelo qual

parece que meu amigo se interessou.

Diamond foi apanhar cigarros, guardando-os no bolso e

voltando a encará-la.

— E que impressão teve do caso? Pareceu-lhe o motivo

relacionado com a informação de Lemuel, ou talvez algo

pessoal entre meu irmão e o assassino?

— Tudo foi muito rápido. Pode ser que também

quisessem matar-me. Mas eu estava armada, e não seria

fácil. Em todo caso, não estou certa...

Ele aproximou-se mais, sempre de olhos fixos,

perscrutadores:

— Que vai fazer, senhorita Montfort?

Brigitte, com toda a naturalidade, abriu os braços, numa

atitude de desconsolo:

— Que iria fazer eu? Não sei; e depois a morte de seu

irmão me abalou muito.

Era uma bela mentira. Tinha certeza de que o motivo da

morte de Lemuel Dowen se relacionava com o

desaparecimento de Galloway. Alguém silenciara Lemuel

antes que falasse demasiado. Devia ter suspeitado dele e

preparado a emboscada, quem quer que fosse o assassino. E

depois de dois dias de busca infrutífera, Brigitte não iria

deixar evaporar-se a única pista que obtivera sobre

Galloway — o que, entretanto, não revelaria a esse

gigantesco e inteligente Diamond Dowen.

Page 33: 021 Quando Surge a Morte

— Nem mesmo sabe se fará uma visita ao “Sol

Ardente”, senhorita? — indagou Diamond, com um leve

tom de desconfiança na voz sonora e calma.

— É possível que sim — respondeu Brigitte, sem mover

um músculo da face.

Estavam os dois imóveis, em silencio. Os ruídos da rua,

mais adiante, haviam abafado outros: os de alguns homens

que subiam as escadas do edifício. E agora, fortes pancadas

faziam estremecer a porta ao mesmo tempo em que várias

vozes gritavam, no patamar:

— Diamond! Sabemos que há uma mulher branca aí!

Abra!

Calmamente, o colosso aproximou-se da porta, sem abri-

la. Em seu rosto surgia a ira e ele demorou um pouco a

responder:

— Vão embora daqui! É assunto meu!

— Abra, Diamond!

— Não me obriguem a lutar! Já os avisei para se

afastarem! — respondeu Diamond.

Ninguém mais ergueu a voz, do lado de fora, em vez

disso, principiaram a golpear a porta com violência.

Queriam arrombá-la, e logo o conseguiriam se

continuassem a bater daquela forma.

Diamond olhou para Brigitte. Em seu rosto apareceu um

irônico sorriso, ao notar a pistola que ela empunhava:

— Guarde isso, senhorita Montfort — disse,

aproximando-se. — De nada lhe servirá. Precisamos sair

daqui...

— Como poderemos? — balbuciou Brigitte, trêmula.

Page 34: 021 Quando Surge a Morte

— Não pela porta, naturalmente — e ele já a tomava

pelo braço, levando-a até a cozinha. — Vamos, depressa!

— e apontava uma janela estreita.

Os de fora arremetiam, agora com maior ímpeto, já a

ponto de despedaçar a madeira.

Quando Brigitte saltava sobre a pequena pia, para

alcançar a janela, a porta de entrada caiu. Cinco negros, às

cambalhotas, apareceram, olhando para todo lado. Viram

imediatamente a jovem repórter que tentava sair.

— Lá está ela! Vamos! — gritou um deles.

Três deram um passo à frente, estacando de imediato.

Plantado solidamente no vão da porta, protegendo a

retirada de Brigitte, Diamond fixava em cada um deles seu

olhar de fogo.

— Não me façam brigar! — grunhiu ele. — Não quero

nada com vocês. Vão embora daqui!

Brigitte parou também, na janela. A pistola enquadrava

o grupo invasor:

— Tome a arma, Diamond — disse.

O homem, no entanto, nem se voltou. Imóvel, tomando

toda a porta, suas grandes mãos pareciam garras. Os pés

deslizavam lentamente até alcançarem o apoio dos portais.

— Saiam daqui! — vociferou num tom estranhamente

surdo e ameaçador, como o de quem estava convencido de

um poder superior.

— Não seja bobo, Diamond. Só queremos a moça —

falou o que parecia comandar. — Você está sendo egoísta e

prepotente, não acha Dy?

Page 35: 021 Quando Surge a Morte

Falando assim, o negro fez balançar ante os olhos de

Diamond uma navalha aberta. E, ligeiro, imitando um bote

de serpente, quase alcançou o ventre do protetor de Brigitte.

Nem terminava de executar o golpe mal sucedido, e a

direita de Diamond já agarrava seu pulso fazendo-o

rodopiar e estatelar-se contra a porta quebrada.

Os outros, então, compreenderam que Diamond não

brincava. E Diamond sabia que, ao entenderem isso,

atacariam em massa. Por isso não perdeu um segundo:

como potentes molas, suas pernas se flexionaram. Era o

momento em que os quatro atacantes principiavam o

avanço, com navalhas e cassetetes preparados.

As mãos de Diamond apenas tocaram o assoalho, e seus

pés, separadamente, foram atingir os dois antagonistas mais

próximos, um em seguida ao outro, como possantes

martelos. Bateram em cheio nos rostos irados, fazendo com

que os dois voltassem atrás.

Mas o movimento total e demolidor de Diamond não

terminara. Tocando o chão, enquanto os pés derrubavam os

dois, as mãos impulsionavam o corpo para o alto e o

homem, como se fosse apenas músculos e correção de

movimentos, ficava na vertical, entre os negros restantes.

Ficou nessa posição por um segundo apenas: seus longos

braços, estirados, sustentaram novamente o peso do corpo.

Como que sentado no ar, suas pernas giravam, fazendo cair

de bruços os últimos rivais.

Brigitte, imobilizada pela admiração, permanecia na

janela, única espectadora da incrível cena. Jamais poderia

esquecer a precisão, a potencia. a elasticidade, a

Page 36: 021 Quando Surge a Morte

inacreditável façanha de Diamond Dowen, aquele

magnífico lutador que, no entanto, vivia cercado de livros.

Mas ali estava; seus olhos viam bem, os olhos azuis

desmesuradamente abertos, o cabelo negro esvoaçando à

brisa que os incêndios de ali perto faziam cálida, Brigitte

viu Diamond parar, encostado na parede oposta, vigiando os

quatro que se erguiam do assoalho.

O primeiro que tombara, entretanto, estava fora do

campo visual do gigante e Brigitte observou-o a levantar-se

para atacar de novo com a navalha.

A repórter-agente acordou de súbito, espantando-se

consigo mesma pela rapidez com que disparou a pistola.

Fora um gesto instintivo, e só ao ver o homem cair se deu

conta de que entrara em ação.

— Corra! — berrou ele, desviando-se do que tombava,

olhando para a escada exterior. — Vem vindo outros!

Ela, porém, tinha mais a fazer. Dois outros preparavam-

se para novo ataque. De costas para ela, cegos de ira,

pretendiam avançar para Diamond. E em suas mãos havia,

ameaçadoras, navalhas e barras de ferro.

Brigitte não quis matá-los. Preferiu atingir os braços que

empunhavam as armas.

Os dois estampidos fizeram abaixarem-se outra vez os

que restavam no solo, enquanto os atacantes largavam as

armas.

Diamond, no mesmo instante, estendia o longo braço,

agarrava a porta desmantelada, fazia-a bater e, com o

mesmo impulso, passava entre os dois feridos, derrubando-

os com estrépito e pulando em direção à cozinha. Já perto

Page 37: 021 Quando Surge a Morte

da janela, apanhou como se fossem brinquedos o fogão e a

pequena geladeira, obstruindo com eles a porta de

comunicação.

Voltou-se para ela:

— Vá, sua boba! — berrou.

Ela estava aturdida com a rapidez de tudo aquilo, mas

acordou ao sentir o alerta na voz de Diamond. Foi

empurrada, mal olhou para onde ia. De relance, apenas, viu

surgir na porta de entrada outro punhado de homens

apressados e gritalhões. Brigitte encontrou-se numa

pequeníssima plataforma de ferro, de onde subia uma

estreita escada de incêndio, completamente vertical. Antes

que pusesse o pé no primeiro degrau, sentiu nos quadris as

mãos de Diamond, empurrando-a para cima. Cinco metros

abaixo, da rua, um grupo de negros apontava para ela,

gritando. Acima, um andar apenas, e depois o terraço.

Forte e lépido, Diamond ia empurrando-a para cima,

enquanto murmurava censuras sobre a imprudência da

repórter. Alcançaram juntos o terraço, no instante em que a

escada era iluminada por tochas trazidas pelo novo grupo de

atacantes, já subindo também.

— Corra! — gritou Diamond. — Salte!

Caminhou, empurrada por ele, até a borda do raso

terraço. Ali, estacou, paralisada. Havia um espaço vazio,

negro, entre os dois edifícios. E Diamond lhe gritava que

saltasse. Voltou-se para protestar, quando viu surgir no

terraço, já deixando a escada, o primeiro dos perseguidores.

Disparou imediatamente. O homem rodopiou, caindo sobre

os que subiam.

Page 38: 021 Quando Surge a Morte

— Salte! — berrava Diamond.

Brigitte pôs-se de pé na borda do terraço. Se era a

véspera da morte, pelo menos tentaria salvar-se naquele

salto. O companheiro tinha razão. Ficar ali significava, para

ela, cair nas mãos implacáveis dos perseguidores

exasperados. Não perdoariam quem ferira quatro deles, e

muito menos sendo ela uma branca.

Ao imprimir movimento ao corpo, sentiu a grande mão

do companheiro de fuga, dando-lhe mais impulso.

Depois do vôo de dois metros, quando se assentava,

sentindo dores na coxa sobre a qual caíra, viu a silhueta de

Diamond, estranha ave recortada contra o céu e logo

pousando a seu lado...

— Continue! — ordenou ele, voltando-se para o terraço

de onde viera. — E não use mais essa arma! Só como

último recurso, ouviu?!

Um perseguidor preparava-se para saltar também.

Diamond o esperava, enquanto Brigitte corria pelo telhado.

Já no lado contrário, voltou-se e viu Diamond golpear,

fazendo o perseguidor urrar ao receber no baixo ventre a

força dos seus invencíveis pés. O corpo do tarado rolou até

chocar-se com o parapeito do telhado.

O elástico negro, Diamond, entretanto, não teve o tempo

necessário para alcançá-la, pois novamente se viu frente a

frente com outro adversário, que saltara, urrando

xingamentos e brandindo uma barra de ferro:

— Vai pagar, Dowen!...

Mas Diamond já apoiara a direita sobre as calhas, seu

corpo girava a meio metro do telhado, e os pés eram como

Page 39: 021 Quando Surge a Morte

tremendos martelos ferindo os joelhos do adversário, que

rolou, indo juntar-se ao primeiro, na borda alta da coberta.

Brigitte parara no outro lado, mais uma vez fascinada

pela proeza de Diamond Dowen. Este a alcançou logo,

tomou-lhe a mão sem dizer nada, e quase a arrastou para

longe. Saltando de um teto para outro naquele amontoado

de sobrados antigos, chegaram finalmente ao último, com

frente para uma rua quieta.

Na altura do primeiro piso, havia uma estreita marquise.

Ele dependurou-se, deixando-se cair sobre a plataforma.

— Venha, senhorita! — a voz tinha agora um pouco da

calma de antes.

Brigitte titubeou, mas não viu alternativa. Resvalou,

dependurando-se também, e sentiu seus pés seguros pelas

fortes mãos de Diamond, que sustinham facilmente os

cinqüenta e cinco quilos de seu corpo escultural.

Eram quatro metros, agora, para chegar à calçada. E na

esquina próxima, algumas pessoas surgiram:

— Espere que eu chegue lá — disse ele.

Tornou a balançar-se, agarrado à marquise, e deixou-se

cair, Afastou-se um pouco, já no chão:

— Faça como eu! Aí vêm eles! — gritou, inquieto, ao

vê-la hesitar.

Brigitte mordeu os lábios, mas obedeceu prontamente.

Ficou suspensa no ar, por um momento, e despencou. Não

sentiu, entretanto, o choque; o jovem Dowen a tomava nos

braços, com um balanceio que lhe amenizava a queda, e a

depositava brandamente no chão.

— Como pode ser?!... — começou ela.

Page 40: 021 Quando Surge a Morte

— Não pare! — cortou ele, empurrando-a para o lado

contrário ao de onde vinham os incansáveis perseguidores.

— Onde está seu carro?

— Fora do bairro, naquela direção — ela apontou para o

norte.

Seguiram por um beco, atravessaram outra rua e, mais

adiante, Diamond soltou-lhe a mão. Paralisado, olhava o

edifício onde morava, bem visível de onde estavam.

— Meus livros! — sua voz era desesperada.

O edifício inteiro ardia. As chamas, tão comuns naqueles

dias de refrega em Watts District, elevavam-se vermelhas,

lançando fagulhas para o céu de lua nova.

— Vamos! — gritou Brigitte, tentando movê-lo dali.

— Meus livros! — tornou Diamond, e era como se as

palavras fossem lágrimas.

— Vão pegar-nos!! — tornou ela, sacudindo-o.

Ele despertou, olhou para a moça:

— Lemuel?! — gritou.

— Sim, Lemuel! — falou Brigitte. — Lemuel é até mais

importante do que a Biblioteca do Congresso, Diamond!

Vamos!

Reiniciaram a corrida, e o jovem negro parecia novamente

lúcido, invencível, levando-a pelos lugares mais seguros,

em direção do norte. Sempre habitara aquele bairro, e

conhecia-o tão bem quanto os caminhos de sua infância.

Page 41: 021 Quando Surge a Morte

CAPITULO QUARTO Antes do encontro mais triste, conversa agradável sobre a velha arte do

“Angolano”.

O momento da verdade, quando as palavras são inúteis.

Um beijo no escuro, a prova que faltava.

Vitória de um príncipe etíope.

O Thunderbird azul distanciava-se de Los Angeles,

rumando para o mar; para Santa Mônica precisamente. Seus

dois ocupantes, uma linda jovem de cabelos desfeitos e um

gigante negro, fumavam quietamente. Mergulhados em si

mesmos; preocupação e desgosto marcavam os traços de

seus rostos.

Depois de algum tempo, Brigitte, que dirigia, quebrou o

silencio:

— Ainda não posso crer no que vi, amigo — disse.

— Que?

— Refiro-me à luta que teve. Uma verdadeira façanha!

— explicou ela.

Diamond Dowen suspirou, deixando de pensar por um

momento no irmão que iria ver feito cadáver, dali a pouco.

Deixando de imaginar vinganças, recostou-se no assento,

ergueu a cabeça para receber no rosto o vento, sobre o pára-

brisa do conversível.

— Aqueles tratantes não conhecem a capoeira — disse.

— Capoeira? — Brigitte não entendeu.

— Um modo de lutar que não tem muitos adeptos neste

país — continuou ele.

Page 42: 021 Quando Surge a Morte

— Com os pés?

— Sim, com os pés. Um amigo brasileiro, marinheiro

negro que ficou por estes lados depois de um naufrágio, me

ensinou a lutar assim, quando tinha quatorze anos. —

Sorriu. — Era um sujeito interessante, o “Angolano”, como

nós, Lemuel e eu, o chamávamos. Depois de muitos anos de

marinhagem, o naufrágio de seu barco fez com que tivesse

fobia do mar. Nunca mais entrou sequer num bote! Morreu

há dois anos, em Watts District, sem ter senão eu a seu lado.

E aqueles estúpidos imbecis acabam de incendiar, de

destruir o que o “Angolano” me deixou: minha morada!

Não era das melhores, mesmo em Watts District, mas

conservava o calor humano do velho amigo, ao qual eu já

me acostumara. Era o resultado de anos de trabalho tanto de

Lemuel quanto de nosso amigo brasileiro.

Brigitte percebeu que tinha de afastar aqueles

pensamentos da mente de Diamond. O rosto do negro se

crispava, ã medida que falava. E ela estava realmente

interessada no modo de brigar usado pelo companheiro, a

“capoeira”. Por isso insistiu:

— Não quer falar sobre este... “esporte”, senhor Dowen?

— Pode chamar-me Diamond, senhorita Mont...

— Brigitte... Diamond — sorriu ela.

— Obrigado. E perdoe-me a falta de cortesia de há

pouco.

— Nada há que perdoar, Diamond.

Page 43: 021 Quando Surge a Morte

Fizeram silencio, e o sorriso de Brigitte apagou do rosto

de Dowen a amargura: ele sorria também, embora um tanto

melancólico.

— Então, não quer falar-me de sua proeza?

— Bem, se quer saber... — suspirou fundo, jogou fora o

cigarro. — A modalidade de luta que uso vem de Angola, e

era praticada há duzentos anos pelo negros bantus. Na

atualidade, é praticada por muitos brasileiros, especialmente

no Leste e Nordeste, e ensinada também a grande parte dos

Fuzileiros Navais da Armada brasileira. Estes vêm a ser o

que nós denominamos “marines”, aqui. Meu amigo

“Angolano” era na verdade um baiano de Salvador. Para

ele, a luta não tinha segredos. Venceu os melhores

praticantes de jiu-jitsu, em Watts District.

— O que?! Ora, Diamond!... — duvidou Brigitte.

— Basta perguntar no bairro — protestou ele.

— É tão eficiente assim?! Vi o que fez, no apartamento,

mas...

— Vou contar-lhe, Brigitte: cinqüenta anos atrás, um

japonês andava desafiando todo mundo, no Rio de Janeiro.

Pusera fora de combate os melhores lutadores, e não havia

mais quem o enfrentasse para ganhar a bolsa oferecida ao

vencedor. Chamava-se Sadao Niaka e era um profissional

da luta-livre e do jiu-jitsu. Pois bem: a notícia chegou aos

ouvidos de um tal Ciríaco Francisco da Silva, simples

trabalhador do pesado, alcunhado de “Macaco Velho”.

Acertado o combate, o tal japonês foi vencido em três

tempos. Com o primeiro “rabo-de-arraia” do “Macaco

Page 44: 021 Quando Surge a Morte

Velho”, a luta estava terminada. E o homem não tinha o

apelido por nada: era velho, mesmo. Um velho, todavia, que

se mantinha em forma graças ao trabalho e à prática da

“capoeira”.

— Que é “rabo-de-arraia”?

— Um dos golpes que apliquei para derrubar os

atacantes. Você o viu: atinge-se a cabeça do adversário com

os pés. Tive muita sorte, ainda há pouco, em acertar os dois

ao mesmo tempo. Mas, além desse, há outros quarenta e

tantos golpes: “caída da ladeira”, “martelo”, “rasteira”,

“soltas”, “negaças”... os nomes vão longe. Essa espécie de

luta é como uma... dança pode-se dizer. Tem de haver

ritmo, precisão de movimentos que só com longa prática se

adquire. Quanto aos golpes que a gente usa, tem-se de

resolver no momento da refrega. Essa é a vantagem maior

da “capoeira”. Nunca se sabe o que o adversário irá fazer, e

quando o faz, é num átimo, sem dar tempo à defesa.

Brigitte suspirou, sorrindo:

— Tem de ser — assentiu. — Nunca vi tal sincronização

e celeridade numa luta. O espetáculo foi realmente

impressionante, Diamond.

UMA PROVA

No bosque, perto da praia de Santa Mônica, Diamond

Dowen correu para o lugar que Brigitte apontava, deixando-

a para trás. A moça não sabia se, naquele momento uma

Page 45: 021 Quando Surge a Morte

palavra de consolo soaria bem aos ouvidos do

extraordinário negro.

O olhar para a morte é sempre um estranho olhar.

Nenhum prosador, por mais tragédia que emprestasse ao

seu estilo, teria conseguido descrever a expressão de

Diamond, ao deparar com o cadáver do irmão que tanto

amava, do único ser por quem teria dado a vida.

Ali ficou ele, longos momentos, procurando conjecturar

as razões que teriam motivado o assassinato estúpido, até

que sentiu o vulto amigo de Brigitte, vindo ao seu encontro,

suavemente. Diamond ergueu a cabeça, deixando as mãos

pousadas na fronte do irmão morto.

— Baleado pelas costas — murmurou, surdamente. —

Quer repetir o que aconteceu?

— Ele me chamou aqui, para me dar notícias sobre meu

amigo — respondeu Brigitte. — Falou sobre o iate e

procurou afastar-se. Foi então que ouvi o sibilar das balas.

A pessoa que o matou usava silenciador na arma.

— Suponho que esteja dizendo a verdade — disse

Diamond, fixando nela o olhar profundamente turbado.

— E a verdade! — replicou Brigitte. — E o matador

tinha um carro à espera, no bosque. Tomou a direção norte.

Dowen começou a revistar as roupas do irmão

assassinado, e foi depositando na areia os objetos

encontrados; canivete, carteira, documentos, revólver e, por

último um maço de notas. Ficou olhando para o dinheiro

como se não compreendesse. E levantou-se depois:

Page 46: 021 Quando Surge a Morte

— Quinhentos dólares! — disse. — Onde teria arranjado

tanto?

— Algum trabalho rendoso, talvez — considerou

Brigitte.

— Por certo, esse trabalho foi o que lhe custou a vida.

Ele, que nunca me deixou trabalhar, para que estudasse!

A voz do negro era baixa, profunda e rouca. A mágoa o

fazia pender a cabeça, olhos fixos no corpo inanimado do

irmão.

— Que pensa fazer? — perguntou ela. — Teríamos de

levar o corpo e...

— Pode emprestar-me o carro?

— A vontade, Diamond. Vou levá-lo para onde quiser.

— Não — replicou. — Irei sozinho. Sei aonde deixá-lo

até que lhe demos sepultura.

— E depois?

— Depois... creio que irei até Santa Catalina, ao “Sol

Ardente”. Preciso saber o motivo dessa morte.

Brigitte pensou depressa. Não lhe convinha que

Diamond Dowen entrasse naquele assunto. Poderia estragar

a única pista conseguida, até ali, sobre Lyn Galloway. Mas

não seria fácil tirar-lhe a idéia.

— Também tenho que ir até lá, Diamond — falou. — Se

você vai procurar barulho, este é mais meu do que seu.

— Não é assunto para uma jornalista — protestou ele.

— Mas para uma contra-espiã, sim — replicou Brigitte

O gigante de ébano, que se dobrava para erguer o

cadáver, estacou, voltando-se para ela:

Page 47: 021 Quando Surge a Morte

— O que disse?

— Estou trabalhando para o serviço de espionagem e

contra-espionagem, Diamond.

Estupefato, ele recuou:

— Escute, minha cara

— Estou falando sério! — cortou Brigitte. — Esse meu

amigo, Lin Galloway, era um agente do FBI. E desapareceu

por completo. Veio aqui para investigar a causa de tanta

balbúrdia em Watts District. A procedência de certas armas,

as características dos motins, tudo nos leva a crer que haja

aproveitadores estrangeiros.

Diamond fez silencio, pensativo. Olhava para o dinheiro

que encontrara nos bolsos de seu irmão. Depois, ergueu a

cabeça, inquiridor.

— Acha que Lemuel estivesse metido nisso?

— Suspeito de que sim, infelizmente. Alguém pode ter

pago a seu irmão por algum serviço perigoso mas

importante. Uma tal soma não se justifica por menos. E ele

sabia de Lyn Galloway; quis dar-me uma pista apenas,

sendo morto por essa causa. Portanto, os responsáveis pelo

desaparecimento do agente devem ser os mesmos que

mataram Lemuel, não lhe parece evidente?

— Mas, por que não a acertaram, então?!

— Estava armada, meu caro Diamond. Além disso, a

morte de um agente já é uma carga bastante pesada para um

criminoso, seja ele quem for. Não se matam federais sem

mais nem menos.

Page 48: 021 Quando Surge a Morte

O gigante caminhou dois passos, indo recostar-se num

tronco, mais perto dela. Mostrava-se desconfiado, ao falar.

— Por que me conta isso? Não suspeita de mim?

— Está disposto a investigar a morte de seu irmão, não

está? Pois bem: nossos caminhos se cruzam em Santa

Catalina.

— Não está brincando comigo?

— Por que?

— Há diferenças, entre nós. São os próprios brancos que

o dizem.

Brigitte fez um gesto de enfado.

— Pensei que fosse inteligente, Diamond Dowen —

disse. — Vejo que o veneno de Watts District o atingiu

também. Se quisesse matá-lo, ou aprontar-lhe uma

armadilha qualquer, já o teria feito. O que disse é apenas a

verdade! Deixe de pensar na cor de sua pele, da mesma

forma que eu não dou importância ao fato de ser branca!

Somos apenas um homem e uma mulher! E temos cérebros.

Ele ainda a encarou por um instante, para depois

estender os braços e atraí-la para si. Apertou-a contra o

peito, procurando seus lábios.

Brigitte não opôs a mínima resistência. Correspondeu ao

beijo e ao abraço, plenamente.

E Diamond estremeceu, afastando-a de si.

Brigitte sustentou aquele olhar afogueado:

— Uma prova, não é? perguntou.

— Sim, uma prova — respondeu ele, e quase sorriu. —

Acredito em você, Brigitte Montfort.

Page 49: 021 Quando Surge a Morte

— E não se pergunta se dentro de mim houve algo de

repulsa, ao beijá-lo?

Então, Diamond Dowen sorriu:

— Se houvesse, eu o teria notado, Brigitte.

Ela lhe acariciou a face:

— Muito bem, você sabe reconhecer emoções. Quanto

ao que senti, realmente, creio que não chegou a conhecer.

Mas vou dize-lo: abracei e beijei apenas um homem que

vale a pena. Se assim não fosse, não o teria feito.

— Obrigado... e obrigado também por ter-se arriscado

em Watts District.

— Então, vai ajudar-me? — sorriu Brigitte.

— Em tudo que puder... depois de levar o corpo de meu

irmão para lugar mais apropriado.

E sem mais, tomou os pulsos do cadáver, cujo peso era

superior ao seu, ajeitando-o sobre os ombros.

Brigitte, incrédula por não haver notado qualquer

esforço maior daqueles músculos poderosos, ficou a olhá-lo

boquiaberta:

— A cada minuto tenho mais razões para considerá-lo

o...

— Chit! — fez Diamond. — Lemuel dorme, não vê?

Além do mais, poderia ferir minha modéstia, Brigitte. Quer

trazer o carro para mais perto daqui? Se o levássemos até à

praia aberta, alguém talvez notasse.

— Está bem, Diamond.

Page 50: 021 Quando Surge a Morte

Três minutos depois, o rapaz acomodara o cadáver no

automóvel, tomando o volante. A seu lado, Brigitte

pensava, e logo se decidia:

— Iremos hoje mesmo para Santa Catalina, Diamond.

Você irá ao meu hotel apanhar a bagagem. Telefonarei,

avisando a portaria. Depois de deixarmos o corpo...

— ... na casa de uns amigos — revelou ele.

— Sim — continuou Brigitte. — Depois disso, irei

entregar o automóvel. Encontre-me no cais das barcas para

Santa Catalina. Estarei lá.

— E o dinheiro que encontrei com Lemuel?

— São notas novas, não? Guarde-as, que talvez sejam

úteis mais tarde. Dar-lhe-ei o dinheiro que for necessário,

enquanto estiver comigo. Em Santa Catalina, ficaremos em

locais diferentes.

— Começaremos esta noite mesmo a procurar o iate?

— Não, Diamond. Precisamos descansar. É bom a gente

estar em boas condições físicas, quando se mete no campo

inimigo. Na ilha, você deve seguir-me, para saber onde

ficarei. Pode ser que precise a qualquer momento de sua

ajuda.

Antes de entrarem em Los Angeles, Diamond dirigiu o

carro até um bairro afastado, entrando numa viela escura.

Parando em frente a uma casinha clara, bateu e foi

prontamente atendido. Levou o corpo do irmão para dentro

e voltou:

— Daqui a meia hora estarei no embarcadouro, Brigitte.

Page 51: 021 Quando Surge a Morte

— Muito bem — assentiu ela. — Não esqueça do que

disse. Além disso, o embarcadouro apenas me entregará a

bagagem. Aja como se fosse um simples serviçal. Todo

cuidado é pouco, de agora em diante. Seu irmão morreu por

não ter-se cuidado suficientemente.

— Compreendo, Brigitte. Farei como diz. Tomarei um

táxi aqui perto e irei ao hotel. Meia hora, está bem?

— Está. Até logo.

Brigitte afastou-se, voltando para as ruas principais. Mas

ao invés de entrar na cidade, rumou a toda pressa para Santa

Mônica. Logo estava novamente na orla da praia, onde

desceu do automóvel e foi ao bosque de pinheiros.

Silenciosamente, buscou o lugar de onde pressentira

partir o carro do assassino de Lemuel. Encontrou uma trilha

estreita, que levava a um pequeno banco de areia, além do

bosque. Ali, o automóvel se detivera. E havia pegadas que

conduziam até um embarcadouro. Por certo o assassino

tivera alguém a esperá-lo, no carro, e depois fugira pelo

mar. As marcas que o veículo deixara seguiam por outro

caminho, voltando à mesma estrada da praia.

Voltando às pressas até onde deixara o automóvel,

Brigitte refez o caminho para Los Angeles.

Já nos arredores da cidade, parou num posto de gasolina,

buscou na bolsa o talão de aluguel do veículo e discou para

o locador.

Dois minutos depois, tudo estava acertado: deixaria o

resto do pagamento no porta-luvas, e o dono mandaria

alguém vir apanhar ali o “Thunderbird” azul.

Page 52: 021 Quando Surge a Morte

Agora, outra vez para Santa Mônica, pelo mesmo

caminho, num táxi! E, de lá, até a ilha de Santa Catalina,

onde talvez se esclarecessem vários mistérios.

A VITÓRIA

Eram já duas horas da madrugada, e ainda estava em

vigília, a pensar nos acontecimentos daquele dia, nos

perigos de Watts District e na morte de Lemuel Dowen.

Por volta de meia-noite, Diamond telefonara, avisando-

lhe onde podia ser encontrado: uma pensão, junto à mesma

praia que ficava em frente ao hotel, a quinhentos metros

dali. Reconhecendo ser ela mais experiente no que se

propunham ambos a fazer, o estudante de advocacia

deixava-se guiar pela moça e não discutia suas opiniões.

Agora, quase às duas e meia, o telefone voltava a soar.

Brigitte, que lia para desanuviar a mente, em busca de

descanso, atendeu:

— Sim?

Era Diamond, novamente:

— Preciso falar-lhe, antes que amanheça.

— Falar-me?! — estranhou ela. — O que há?

— O sol arderá muito — foi a resposta enigmática de

Diamond.

Em seu apartamento do “Santa Catalina Bay Hotel”,

Brigitte tentava conciliar o sono. As peripécias da noite,

entretanto, haviam-na deixado num estado de alerta

nervoso, sensação dificilmente corrigível.

Page 53: 021 Quando Surge a Morte

— Ah, sim! Mas, como é isso? Andou investigando o

tempo?

— Perfeitamente, senhorita Montfort.

Brigitte ficou contrariada, mas concordou logo,

indicando:

— Quinze minutos, a meio caminho — falou.

E quinze minutos depois, dois vultos se aproximaram, na

praia, a meio caminho entre o hotel e a pensão: Brigitte

Montfort e Diamond Dowen. Olharam-se em silencio, a

princípio, e depois caminharam para uma amurada, a

poucos passos, sentando-se ambos.

— Não cometeu alguma imprudência, Diamond? —

indagou ela, um tanto aflita.

— Sei tomar cuidado. Trata-se do iate.

— Já sei. “O sol arderá”.

— Pertence a um tal Percival Silverton, que também

possui uma quinta no interior desta ilha, e um bangalô na

praia, na ponta da baia. Como não podia procurá-la durante

o dia, chamei-a agora. Não há perigo de sermos vistos

juntos, a esta hora.

— Fez bem — concordou Brigitte. — Além do mais,

não conseguia dormir. Foi só o que descobriu?

— Sim, por enquanto.., até porque se insistisse com

minhas fontes, acabaria despertando suspeitas.

— É certo — disse ela, aproximando-se mais.

— Agora, ouça bem: pela manhã, irei ao embarcadouro,

rondarei o iate. Você não deve de maneira alguma falar

comigo, a menos que o chame. Não se precipite, haja o que

Page 54: 021 Quando Surge a Morte

houver. Se a coisa é o que penso, tudo será imprevisível, da

parte dos que procuramos.

— Não é preciso insistir tanto, Brigitte — sorriu

Diamond, pegando-lhe a mão coberta de areia. — Está

descontente pelo que fiz?

— Devia estar, mas enfim... Bem, não estou, Diamond.

A informação é bastante valiosa. Adianta.

Ela sorriu, e Diamond sentiu um frêmito, ao ver aquela

cabeça linda apoiar-se em seu ombro. Quis afastá-la, mas

Brigitte não consentiu.

— Incomoda-se de eu descansar um pouco assim,

Diamond?

— Claro que não — murmurou ele. — Apenas não

quero que tenha uma idéia errada a meu respeito. O beijo

roubado de ontem não foi mais do que uma prova, que eu

procurei ter, de sua falta de preconceito racial.

— Ora, Diamond! — protestou ela. — Senti isso. Não é

preciso que me de explicações. Qualquer mulher gosta de

ser beijada, ainda mais por um homem incomum. Sua

presença me faz sentir segura, despreocupada. Por isso lhe

perguntei se não o incomodava.

Diamond Dowen conseguiu desfazer um nó que lhe

subia à garganta. Voltou a cabeça, beijando-lhe os cabelos:

— Confia tanto assim em mim?! — murmurou.

— E por que não? Vamos, perca essa mania, Diamond!

O sorriso dela morreu num ligeiro bocejo, pelo qual

desculpou-se.

Page 55: 021 Quando Surge a Morte

— Não se amofine — disse ele. — Deve estar mesmo

exausta.

— E você?

Diamond suspirou:

— Sua proximidade, esse perfume desfazem todo meu

cansaço e...

— ... e não obstante, sei que é um cavalheiro —

completou Brigitte.

— Faço o possível — aceitou ele, não sem desgosto.

Voltou o silêncio, apenas quebrado pelo rumor das águas

e por algum automóvel, na distância.

Dentro de minutos, Brigitte dormia docemente.

Acariciando-lhe os longos cabelos negros, Diamond Dowen

julgava embalar uma criança... uma criança em cuja

presença ele não era apenas Diamond Dowen, mas um

homem todo feliz, um cavalheiro... apesar das forças

despertadas dentro de si. E Diamond Dowen, pela primeira

vez na vida, ganhava uma das batalhas nas quais sempre

julgara que se revelavam os verdadeiros homens: a batalha

contra si mesmo, a vitória sobre seus instintos espicaçados.

Aquela era uma noite da qual sempre se lembraria.

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CAPÍTULO QUINTO Perambulações intencionais e desejos atiçados.

Quando um milionário só é milionário até o limite do capricho de sua cara-

metade.

Ações dissimuladas de Brigitte Montfort para um efeito surpreendente.

O sol era o de um filme da Metro. O mar azul-

esverdeado, a paisagem “technicolor” de Santa Catalina, os

personagens elegantes desfilando suas vaidades, tudo a

compor um cenário de marinha rica, a que não faltavam

nem os bandos de gaivotas gritalhonas. Mar adentro,

lanchas velozes exibindo esquiadores tostados de sol.

Ao lado do pequeno cais, o “Sol Ardente” mostrando

sua linha aristocrática de “yacht” milionário. Um barco e

tanto, desses de encher a vista.

No porto dos “ferry-boats”, Brigitte passou por um rapaz

bronzeado, de olhar simpático e alerta.

— Esqui, senhorita? — indagou ele.

— Agora, não.

Antes que ela se afastasse, naquele passo

despreocupado, o rapaz ainda informou:

— Quando quiser, pergunte por Boyd, aqui. Todos me

conhecem.

Fez que sim, sorrindo, mas de olhos postos no iate, que

se aquietava muito branco sobre as águas escuras. Andou

alguns minutos, já na praia, pensando no modo como o

abordaria.

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Ao voltar, brincando com os pés na areia, Brigitte viu

surgir no convés coberto do barco um homem todo de

branco, identificável na distância.

Passou novamente pelo rapaz, que aproveitou a ocasião:

— Deixo tudo grátis, para a senhorita!

— Obrigada — sorriu Brigitte. — Mais tarde.

Não lhe interessava o atleta alugador de lancha. Tinha os

olhos postos no homem que, apoiado à amurada do iate,

falava a um tripulante. Via-o melhor, agora: devia ter seus

trinta anos, era bastante atraente e forte de aspecto. Todo de

branco, desde os sapatos ao lenço que lhe pendia do

pescoço, devia ser aquele, certamente, o dono da luxuosa

embarcação: Percival Silverton — como informara

Diamond.

Era, mesmo, Silverton. E, por seu lado, também ele

considerava a mulher que vinha da praia em direção ao

embarcadouro.

— Linda! — comentava Silverton com o ajudante.

— Tem a envergadura de um Constellation! — aprovava

o outro.

— E está sozinha! Não é uma pena?

— Pena?! É de causar desgosto! Melhor ainda, é uma

afronta a nós, homens, válidos, inteligentes e vacinados

deixar assim uma deusa na areia.

— Realmente — sorriu Sílverton.

Seu ajudante era Mix Baynes. A um sinal do chefe, Mix

foi cuidar de seus afazeres, enquanto o próprio Silverton

seguia Brigitte com o olhar.

Page 58: 021 Quando Surge a Morte

Ao vê-la aproximar-se, o homem aleitou o lenço do

pescoço:

— Parece mesmo uma deusa, Mix! — exclamou, sem

voltar-se. — E está procurando companhia.

No entanto, não foi a voz de Mix que ouviu em seguida,

mas sim uma de mulher, em tom acre:

— Quem, meu caro?

Percival Silverton girou o corpo, encarando a esposa. Ia

dizer qualquer coisa dura, mas conteve-se. Sua cara-metade,

uma quarentona míope, com grossas lentes sobre o nariz

vermelho, valia muitos milhões de dólares, e era por isso

que Silverton, o guapo homem de branco, se continha ante

sua figura esbranquiçada e gorda.

— Perci — dizia ela, — estou farta de sua maneira de

olhar essas mulheres vulgares que andam por ai fazendo o

“trottoir”.

— Você deve estar irritada, hoje, Carol — falou ele,

SuSpirando. — Que houve? Brigou com alguém? Ressaca?

Ou enxaqueca?

— Mande embora seus convidados. Não suporto mais

sorrir para aquela mulherzinha — murmurou Carol,

surdamente.

— Mulherzinha?! — admirou-se Silverton. — Não pode

ser um pouco mais amável com a senhora Salamanca?

Mix Baynes aproximava-se. Viu o ligeiro enrubecimento

de Carol Silverton, que em solteira assinara Wendix. O

marinheiro compreendeu que não devia interromper a

Page 59: 021 Quando Surge a Morte

conversa. Nessas ocasiões de tormenta entre os patrões,

Carol chegava a xingar todo mundo.

Percival também detestava os humores da esposa, e

dispôs-se a caminhar para o outro lado, de onde podia ver

melhor a garôta que passava na orla, agora já bem perto do

iate. Mas Carol o acompanhou.

— Escute, Percival Holmes Silverton, — vociferou —

estou farta de que me admoeste, de que me traia com

outras! E pela centésima vez o advirto de que não lhe darei

o divórcio.

— Querida — suspirou Percival — ninguém pediu o

divórcio.

— Por causa de meu dinheiro, naturalmente — ciciou

ela, como uma serpente velha.

Silverton, que já se acostumara a tudo aquilo,

desconversou:

— Ora, Carol, vamos ser civilizados, meu bem...

Nesse momento, outro casal surgiu no convés, vindo de

dentro. E Percival sorriu, sentindo-se de repente um novo

homem, salvo pelo gongo.

— Como está, Abelardo? Alô, Nati. Tudo bem?

Carol não olhou para os dois jovens que acabavam de

aparecer. Deu dois passos, indo encostar-se à amurada, os

pequenos olhos franzidos de raiva.

O casal Salamanca, hóspede dos Silverton, fazia bela

figura. Ela, Natividad, muito bem feita de corpo e elegante.

Talvez um pouco mais dotada em cadeiras e busto do que as

sílfides californianas, porém extremamente “sexy”. E ele,

Page 60: 021 Quando Surge a Morte

Abelardo, esguio e forte, tinha sua presença de palco

assegurada em qualquer momento.

Ambos, logo à chegada haviam notado o mal-estar do

Silverton, mas comportaram-se diplomaticamente, tentando

desfazer a cena.

— Estamos muito bem dispostos, Percival — sorriu

Abelardo, piscando para o amigo. — Já fez seu programa?

— Desejaria pescar — falou Silverton, olhando de viés

para a esposa, que não se voltara, ainda.

— Daqui a dois ou três dias...

— Maravilhoso! — exclamou Natividad Salamanca.

E a jovem caminhou para Carol, que vencera a própria

ira, conseguindo sorrir-lhe:

— Não gosta de pesca, querida? — indagou.

— No momento, gostaria mais de uma bebida — falou

Carol. — Acho que vou buscá-la. — Voltou-se para os dois

homens: — Não querem algo?

— Boa idéia, querida — disse o marido, escondendo a

má-vontade atrás do sorriso. — Mas, não se incomode. Há

um camareiro para servir-nos. Quer um “drink”, Abelardo?

O hóspede aceitou, enquanto Carol chamava por Mix

Baynes, ordenando-lhe providenciasse as bebidas. Pediram

o que desejavam, os quatro, ao camareiro que logo trouxe

os “drinks” e, depois, puseram-se a conversar

amigavelmente. O sorriso de Carol Sllverton conseguia

quase sempre esconder outros sentimentos, no que seu rosto

inexpressivo ajudava muito.

Page 61: 021 Quando Surge a Morte

E enquanto palestravam os quatro, Percival não perdia

de vista a sereia, de roupas muito leves, que passeava na

vizinhança. “Estará procurando companhia, certamente” —

pensava ele.

Brigitte, levada pela brisa, afastava-se, agora, para os

lados do Oriente do Eden.

Percival entristecia.

APROXIMAÇÃO

Diamond Dowen tinha noticias.

— Tudo deu certo? — perguntou ela.

— Sim. Tenho peixes na rede. Onde poderemos falar?

— Há uma confeitaria, perto de sua pensão — falou

Brigitte.

— Muito bem. Estarei lá.

E não demoraram a avistar-se. Diamond esperava nas

proximidades da confeitaria.

— Não entrei. Talvez houvesse complicações. Nessa

época, todos parecem ter prevenções contra os negros.

— Bobagem, Diamond. Vamos!

Entraram, ocupando uma discreta mesa.

— Fiz o que você mandou, Brigitte — informou ele,

depois de pedir um refrigerante para ambos. — O casal que

está com os Silverton chama-se Salamanca. São Natividad e

Abelardo, não sei de que nacionalidade. Latino-americanos,

Duas horas depois, no hotel, onde mudava de roupa,

Brigitte atendia ao telefone.

Page 62: 021 Quando Surge a Morte

talvez. A senhora Silverton tem seus quarenta anos e é a

verdadeira dona de tudo. Uma chata

— Muito bem. Também descobri coisas — disse

Brigitte. — Há mesmo uma relação entre Silverton e seu

irmão Lemuel.

— Tem certeza?

— Estive trocando notas de cem dólares, nos bancos —

disse a repórter. — Dava em troca dinheiro miúdo, velho. E

num certo estabelecimento, a numeração das que me deram

— notas novas, como pedi — era parecida com as de cem

dólares que Lemuel levava. Disse, então, ao bancário que

me atendeu, que era empregada de Silverton, e que meu

irmão queria saber como estava sua conta. Não falhou:

Silverton tinha mesmo conta naquele banco, pois

informaram-me que ia bem, com bons fundos.

— Então, podemos ter certeza de que é o responsável

pela morte de meu irmão!

Diamond acendeu um cigarro, nervosamente.

— Não temos prova nenhuma, Diamond. É preciso

calma. Além do que, há um senão: por que Silverton

mataria Lemuel? Certamente porque Lemuel atrapalhava

alguma coisa, ao indicar-me que Lyn Galloway rondara o

iate. Mas, por que seria isso uma atrapalhação para

Silverton? Não é verossímil que Silverton tenha ele mesmo

ordenado a seu irmão encontrar-se comigo, dando-me a

pista. Silverton não me atrairia para seu covil à toa... isso

tudo, naturalmente, no caso de ser ele responsável por

alguma coisa.

Page 63: 021 Quando Surge a Morte

Diamond, nesse momento, chamou a atenção para algo:

— Veja.

Através dos vidros da confeitaria, Brigitte viu passar um

grande automóvel branco.

— É o carro que vi no bangalô do nosso homem —

falou Diamond.

Seguiram o carro com os olhos. Mais adiante, na curva

da praia, parou à frente do elegante “Sing Sing Bar”.

— Boa ocasião! — murmurou Brigitte. — Se ele estiver

lá...

— Que vai fazer? — indagou o companheiro, temeroso.

— A-bor-dar — silabou Brigitte. — Escute: fique por

perto. Se lhe fizer algum sinal, depois, siga-me. Caso

contrário, continue apenas vigiando nossos “amigos”.

Diamond suspirou. O encontro terminara, e ele que tanto

gostava de estar com Brigitte!

— Está bem. Mas, você usa arma?

— Não me separo dela, quando trabalho nisto.

Ele pegou sua mão, beijando-a: — Tome cuidado,

Brigitte.

— Meu cavalheiro perfeito — sorriu ela, por sua vez

beijando-lhe a testa e saindo.

Dirigiu-se ao “Sing Sing Bar”, a duzentos metros dali.

Despreocupadamente, a linda repórter transpôs a entrada

do estabelecimento. Que era, na verdade em amplo terraço

ensombrecido por lindas plantas floridas, dando para a baía.

Ao fundo, o balcão onde várias pessoas tagarelavam e

bebiam.

Page 64: 021 Quando Surge a Morte

Brigitte procurou mesa, ficando de frente para o bar. E

depois de pedir champanha com limão, seu coquetel

predileto, procurou o homem que avistara de manhã, a

bordo do “Sol Ardente”.

Não demorou a encontrá-lo: Percival Silverton

acompanhado do casal Salamanca. Carol, a quarentona,

estava ausente, e os três bebiam, rindo.

Quando Percival notou a presença da repórter parou de

conversar, ficando a sorrir-lhe amavelmente, sem desviar os

olhos. Natividad Salamanca dizia qualquer coisa de

engraçado, mas Silverton já não ouvia nada e somente o

marido se pôs a rir, abraçado à moça que até lembrava a

figura de Brigitte.

Mostrando-se interessada naquele olhar admirado de

Percival, a repórter retribuía, encorajando uma conveniente

aproximação. Mas não correspondia ao brinde que, a

distância, Silverton lhe fazia. Brigitte tinha de mostrar

classe e inteligência ao homem do iate.

Sempre a olhá-la, Silverton trocou algumas frases com o

amigo. Pôs-se em pé, depois, dirigindo-se em linha reta, o

copo de uísque nas mãos, até a bela repórter.

Brigitte sorriu levemente, ao vê-lo sentar-se a sua frente.

— Como vai, moça bonita? — perguntou ele. Sorriu

mais largo: — É linda mesmo!

— Este estilo de abordagem já está muito batido —

disse Brigitte.

Page 65: 021 Quando Surge a Morte

Silverton pareceu vacilar ligeiramente, ante a resposta

sarcástica, mas engoliu um trago de uísque, olhando-a nos

olhos:

— Diga: lembra-se de mim?

Brigitte recostou-se na cadeira, desviando os olhos para

o mar azul.

— Como está aquela senhora que o admoestava hoje, a

bordo do iate... iate “Sol...” já me lembro, “Sol Ardente”?

O homem franziu o cenho, mas riu.

— Minha esposa, querida, minha esposa! O fato a

preocupa?

— Nem um pouco, senhor,..

— Percival Holmes Silverton — disse ele — um

escravo!

Ela bebeu o último gole de champanha, divertida.

— Pela maneira de aproximar-se, vi que não é tão

humilde assim, senhor Silverton. Talvez um escravo de Jó...

O homem surpreendia-se. Aquela mulher sabia

manifestar o pensamento com muita rapidez. Não se deu

por achado.

— Ainda não fui às galés, confesso... — disse ele,

jogando o mesmo jogo. — Mas acho que uma figura tão

nobre como a sua pode ter os escravos que quiser. Desde já

me candidato a mucamo, senhorita... senhorita...

— Brigitte, veranista permanente.

— Brigitte de que?

— Brigitte, somente. Gosto de meu primeiro nome.

— Francesa? — indagou ele.

Page 66: 021 Quando Surge a Morte

— Japonesa — riu Brigitte.

Dessa vez, Silverton precisou engolir maior dose de

uísque.

— Bem, uma pergunta tão óbvia como a minha só

poderia receber essa resposta. Quem, senão uma francesa,

teria tal nome?

— Como queira, senhor Silverton — Brigitte continuou

ironizando.

Houve nova hesitação dele, mas recuperou-se logo:

— Não gostaria de chamar-me Perci? Isso facilitaria as

coisas.

— Tão cedo?! — espantou-se ela: — Que diria madame

Silverton?

— Madame Silverton está ausente! — informou ele. —

Ficou no iate, com medo do sol.

— É seu, o iate... Perci?

— Em parte.

— Sociedade? Com quem? Seus amigos?

— Não, com minha esposa — disse Silverton. — Mas

nem por isso deixaria de convidá-la a um passeio... nele.

— Oh, oh! — fez Brigitte. — Realmente, estou lidando

com alguém destemido.

— Sim — respondeu ele. — Sei o que pensa: minha

esposa se zangará. — Tomou mais uísque, fitando-a

sorridente. — É isso o que desejo, Brigitte. Quero o

divórcio e ela não quer. Então, que acha do passeio?

Page 67: 021 Quando Surge a Morte

Brigitte não podia esperar melhor, mas Silverton levava

as coisas com muita pressa. Fazer-se de rogada seria de boa

política:

— E vou aceitar por nada? — perguntou, optando pela

figura de aventureira.

Silverton deixou o copo sobre a mesa, estudando-a com

seriedade. Por fim, riu explosivamente.

— Imagine só! Creio que estou perdendo a lucidez,

Brigitte. Nem pensara nisso. Mas, é claro que você não vai

perder seu tempo. Uma jovem linda como você não pode

jogar o tempo ao mar...

Houve silencio. E ele riu de novo:

— Bem, você já deve ter percebido que a convido para

enraivecer meu “narizinho vermelho”. Pouco importa que

você saiba. Não dou importância a certas convenções.

— Seu “narizinho vermelho” é... sua esposa,

— Claro! Devia ser “narigão”, mas enfim...

— E, irritando-a com minha presença, você talvez

consiga o divórcio. Fácil de entender — disse Brigitte. —

Acho que o ajudarei, Perci. Não gostei da figura dela.

— É horrível de se suportar! — falou ele, com uma

antipatia profunda no rosto.

Terminou com o uísque, de um trago só, e riu

novamente:

— Engraçado. Há pouco, éramos desconhecidos, e agora

somos aliados em causa tão intima.

— Não se preocupe — disse Brigitte.

Page 68: 021 Quando Surge a Morte

— Não me preocupo, creia. Nem com você, nem com os

dólares.

— Não pedirei muito — sorriu Brigitte. Alguns poucos

milhares.

— Muito bem — Silverton tomou-lhe a mão, erguendo-

se: — Agora, trabalha para mim ... como hóspede,

naturalmente. Venha conhecer meus amigos.

— São amigos do “narizinho vermelho” também? —

indagou dubiamente a repórter.

— Aparentemente, aparentemente — fez ele. — Quando

estão em presença dela, apenas.

Levantou-se, afastou a cadeira de Brigitte e levou-a pelo

braço através do salão.

Abelardo Salamanca, todo sorrisos, ergueu-se para

cumprimentá-la, quando se acercaram da outra mesa.

— Apresento-lhes Brigitte, meus caros. Brigitte, estes

são Natividad e Abelardo Salamanca.

— Como vai, Nati? É um prazer, Abelardo —

cumprimentou Brigitte.

— Sente-se, querida — sorriu Natividad, que parecia

divertir-se com a situação.

Com certeza, Percival Silverton já lhes falara sobre o

plano de levá-la a bordo, para tentar induzir a esposa ao

divórcio.

— Que vai beber, Brigitte? — indagou Abelardo.

— Champanha — sorriu ela. — Champanha com limão,

bem gelado.

Page 69: 021 Quando Surge a Morte

Estiveram algum tempo falando de coisas triviais, até

que Silverton propôs continuarem o passeio pela ilha.

— Mas, não acha que está um pouco quente, Perci?! —

fez Natividad.

Brigitte, que admirava a beleza da outra, apoiou-a:

— Realmente, Perci. A tarde não está para se levar sol,

hoje. Creio que ficar à sombra é bem melhor.

Silverton olhou para a nova amiga e tornou a rir,

piscando um olho:

— De acordo, de acordo — falou com malícia.

— Vamos beber à sombra no “Sol Ardente”, já que o sol

daqui arde com tanta ênfase.

Os outros três riram do péssimo trocadilho.

— Quando bebe um quarto de litro, você fica inteligente,

hem, Perci? — falou Nati, com uma intimidade que Brigitte

já notara ser fora do comum.

— Isso não é nada — fez Silverton, fingindo o modesto.

— Mas, não aceitam a idéia?

— Ora, vamos! — e Abelardo Salamanca, tomando o

braço da mulher, levantou-se.

Saíram os quatro do “Sing Sing Bar”. Lá fora, Silverton

acionou a buzina do elegante Cadiflac, e Mix Baynes

apareceu, dando adeus a uma garota.

— Aproveitando o tempo, hem, Mix?! — fez Percival.

O empregado deu de ombros:

— Não dá para nada, senhor Silverton.

Page 70: 021 Quando Surge a Morte

— Por causa da época, meu caro. Tenho-lhe dado muito

trabalho, é verdade. Num futuro próximo, você terá mais

tempo livre. Agora, leve-nos até o iate, sim?

Aquela frase haveria de ficar na mente de Brigitte:

“tenho-lhe dado muito trabalho, é verdade”. O que se

ocultaria sob tais palavras? Que trabalho era o deles?

Chegaram ao embarcadouro.

Enquanto Baynes se afastava com o carro branco, indo

guardá-lo em alguma garagem de ali perto, os quatro

transpunham a prancha de embarque.

Logo que pisou o convés, Percival Silverton viu surgir

uma jovem de cor, esguia e bonita, de trás da cabina.

Brigitte, que o acompanhava de perto, percebeu uma ruga

em sua testa.

Ele, entretanto, dissimulou logo, saudando:

— Como vai, Dora? Algum problema?

A moça, timidamente, aproximou-se: Não devia ter mais

de vinte e dois anos, e sua expressão era profundamente

preocupada.

— Vim ver se sabe algo de Tom, senhor Silverton —

disse.

— Tom?! — fez ele. — Que aconteceu com ele?

— Não sei, senhor. Já... já lhe falei ontem sobre...

— Ah, sim! Que memória! — exclamou Silverton. —

Seu marido ainda não voltou para casa?

Ela maneou a cabeça, triste.

O homem suspirou, contrariado, mas sorriu logo.

— Deve estar por ai, Dora. Já o procurou fora da ilha?

Page 71: 021 Quando Surge a Morte

— Sim. Em Santa Mônica ninguém sabe.

— Sinto muito, nada sei dele, Dora. Foi à policia,

indagar?

— Não, senhor — e Dora abaixou a cabeça: — Tom não

me perdoaria, se fizesse isso.

— É verdade, ele não gostaria — concordou Silverton.

— Então, o que podemos fazer é continuar esperando.

Compreenda, não sei o que faz ele, quando deixa o iate.

Lamento muito, Creia.

Dora vacilou, ergueu ligeiramente a cabeça para dizer

um “obrigado” muito apagado, e rumou para a passarela,

deixando-os.

Logo em seguida, Silverton sorriu para os companheiros.

— Bem, vamos ver o “narizinho vermelho”!

Mix Baynes já regressava, passava por eles e ia à cabina

de comando. Foi então que Silverton olhou para lá. Havia

outro homem a bordo, quieto, olhando os quatro.

— Desculpem-me um momento — falou Silverton.

Dirigiu-se à cabina, onde Mix saudava o estranho com

um sorriso.

Enquanto os Salamanca comentavam algo, Brigitte

encostou-se à amurada, gozando o belo cenário que se

oferecia desde o embarcadouro. Viu Dora a se afastar acima

da praia, e Diamond, sentado na areia, numa pequena

sombra de palmeira, seguindo a jovem negra com os olhos.

Brigitte observou os Salamanca, a dois passos. O casal

estava entretido, conversando.

Page 72: 021 Quando Surge a Morte

Logo, Diamond Dowen olhava o mar e, lentamente,

voltava-se para o iate, a cento e poucos metros dele.

Brigitte, então, lhe fez um sinal com a mão, oculta dos

outros pela amurada. O sinal nada significaria para qualquer

outro, mas fez Diamond levantar-se.

Brigitte repetiu o gesto. O jovem gigante olhou

novamente para Dora, que se afastava. E Brigitte, quando

ele tornou a voltar-se para o iate, fez um movimento

afirmativo com a cabeça.

A repórter dirigiu-se, então, para o casal. Ninguém lhe

notara os gestos. E quando tornou a olhar a praia viu que

Diamond Dowen já seguia os passos de Dora, a bela e

tímida jovem que procurava o marido.

Satisfeita, Brigitte resolveu andar pelo corredor do iate,

ao lado das cabinas, sempre olhando para o compartimento

de comando, mais acima. Não conseguia ouvir o que diziam

os homens ali reunidos, mas era certo que eles, tampouco,

lhe vigiavam os movimentos.

Fixou bem a fisionomia do desconhecido e tratou de

voltar à companhia do casal Salamanca. Abelardo e Nati se

acariciavam maliciosamente, como perfeitos noivos em lua-

de-mel.

Page 73: 021 Quando Surge a Morte

CAPÍTULO SEXTO De onde partem as ordens e os nomes que se substituem.

Por que é preciso analisar até mesmo um beijo.

O iate e seus ocupantes ainda constituem um mistério.

Depois de conversar muito com o visitante inesperado,

Percival Holmes Silverton tentava desfazer sua má vontade

quanto à presença dos convidados.

O misterioso visitante não gostara de ver no iate a bela

repórter.

— Não é aconselhável trazer estranhos a bordo,

Silverton! — dizia ele, nervoso.

— É uma garota ótima que encontrei hoje, Spencer.

Ajudará a desfazer suspeitas, pode ter certeza.

— Já não havia o casal Salamanca? — replicou o outro.

— Sim, mas não precisa inquietar-se. A moça é somente

da minha conta, assunto particular — sorriu Percival.

Mix Baynes, ao lado, esfregava o queixo, talvez

pensando na mulher que deixara perto do “Sing Sing Bar”,

e observou:

— É uma gata de praia à procura de dinheiro, Spencer.

— Mas pode trazer complicações — considerou o

visitante.

Silverton suspirou, enfarado, ficando sério.

— Bem, eu tenho negócios com você, Spencer.

Negócios importantes talvez perigosos. Não deixo de tomar

os necessários cuidados. Tento fazer minha vida parecer

natural, para todos; e você me admoesta por isso?

Page 74: 021 Quando Surge a Morte

Spencer hesitou, pensativo, sempre com o rosto fechado.

Deu alguns passos pela cabina, olhou o horizonte de mar

aberto, e voltou-se:

— Está bem, Silverton. E estará bem, se tudo sair como

combinamos. Veja lá o que faz.

O milionário voltou a sorrir.

— Sei que compreende, meu caro. Tenho planos com

essa garota. Pois bem: apareça amanhã à noite na quinta,

com os dois milhões. Do resto, cuido eu... com minha

tripulação. Tudo sairá certinho.

— Assim espero! — grunhiu Spencer.

Saiu sem despedir-se, descendo à passarela e dali à terra.

Era um tipo esquisito, ensimesmado, duro de feições. Ao

passar por Brigitte, que ouvia um chiste de Salamanca,

olhou-a de viés. Não pôde conter um frêmito de admiração.

Enquanto isso, Silverton descia e parava na pequena

escada, chamando por um homem que limpava o convés.

— Minha esposa está dormindo?

— Saiu há hora e meia, senhor Silverton — disse o

servente.

— Para onde?

— Para a quinta.

Silverton mostrou-se zangado.

— Logo hoje! — disse, aproximando-se dos convidados,

que tinham ouvido o diálogo. — Queria começar a

aborrece-la de verdade, e ela vai à quinta. Então, que

fazemos aqui?

Page 75: 021 Quando Surge a Morte

Os quatro desceram para o interior do barco, rindo da

frustração de Silverton.

No instante em que desapareciam, Mix Baynes resolveu

sair até o embarcadouro, encaminhando-se para as primeiras

construções junto à praia. E lá estava o misterioso Joyce

Spencer a esperá-lo, discretamente.

— Que acha da situação, Miko? — perguntou.

Mix sorriu.

— Nada de mais, Yuri. Pensando nos dois milhões,

Silverton anda entusiamado. Quer a todo custo livrar-se da

esposa. O divórcio. Depois de recebe-los, então, a coisa terá

de estourar. Ele vai aprontar um inferno para a gorduchinha

milionária.

— Ela sabe alguma coisa sobre nossos negócios?

— Nem uma vírgula, meu caro — Mix foi convincente.

— É uma perfeita imbecil!

— Muito bem — falou Spencer, que Mix chamava Yuri.

— Isso é com eles. Quanto a você, não perca de vista nosso

amigo Silverton.

O BEIJO

Já fazia noite sobre Santa Catalina. Acendiam-se as

luzes e outra vez a lua voltava seu olhar prateado à baia.

No compartimento principal do “Sol Ardente”, já

cansada de dançar, ao som de um gravador, Brigitte foi

servir-se de um refrigerante, na geladeira que os outros já

Page 76: 021 Quando Surge a Morte

haviam quase esvaziado. Notou, então, a ausência de

Abelardo Salamanca.

Natividad, que agora dançava com Silverton, falou:

— Descanse, querida. Quero ensinar a Perci o “hully

gully”.

— E Abelardo, onde foi? — perguntou Brigitte.

— Deve estar no convés.

— Vou buscá-lo — anunciou. — Como é que pode um

latino desprezar a dança?

Estava subindo a pequena escada, quando lhe veio a

idéia de procurar em Abelardo uma fonte de informações.

Quem bebe ao lado de uma mulher bonita acaba sempre

fazendo revelações e, com astúcia, numa conversa

amigável, talvez ela arrancasse dele algo de valioso.

Voltou, então, para buscar uns “drinks”.

Brigitte, no penúltimo degrau, imobilizou-se. Sllverton e

Natividad estavam abraçados, beijando-se de um modo que

não deixava dúvidas. Estavam apaixonados.

Sem fazer o menor ruído, Brigitte colou-se à parede e

tornou a subir. Desceu, em seguida, fazendo tudo para

anunciar sua aproximação. E quando apareceu na sala, Nati

lhe sorria, mostrando um passo de dança a Silverton.

— Pensei que Abelardo talvez quisesse um pouco de

“whisky”, Nati.

— Ele jamais recusa um copo — riu a outra,

continuando a dançar. — Deve estar aborrecido, o meu

querido.

Page 77: 021 Quando Surge a Morte

— Pois acho que você é a indicada para alegra-lo —

interveio Silverton, parando. — E Brigitte poderá continuar

a lição. Que acham?

Brigitte aceitou.

— Boa idéia, Perci.

Natividad não pareceu aborrecer-se com a proposta de

Silverton. Foi ao barzinho, serviu dois copos e dispôs-se a

subir. Nesse momento, o marido apareceu.

— Acho que vou dormir — disse. — Você vem,

querida?

— Não gostariam de ir até a quinta? — indagou

Silverton.

— Pois vamos lá! — e Nati girou o corpo contente.

Saíram.

Silverton chamou Baynes:

— Veja o carro, Mix.

O empregado voltou dois minutos depois, com o

reluzente automóvel.

— Pode ficar, meu caro — disse Silverton. — Cuide do

barco.

— Muito bem — limitou-se a dizer Mix Baynes. — Boa

noite.

— Boa noite. Mande alguém reabastecer a geladeira. — E,

voltando-se para Brigitte: — Agora você conhecerá o

“narizinho vermelho”, querida. Brigitte protestou:

— Já são nove e meia, Perci. Se eu fosse até lá, hoje, sua

mulher explodiria.

Page 78: 021 Quando Surge a Morte

— Ela tem razão, Perci — apoiou Nati. — Não leve as

coisas longe demais.

Silverton suspirou, acabando por concordar:

— Está bem. Até amanhã, Brigitte.

— Vamos encontrar-nos aqui? — perguntou ela.

— Não, aqui não. Espero-a na quinta. Fica no 1877 de

Montam Drive, no centro da ilha.

— Está bem. Irei lá, Perci, contanto que não haja perigo.

— Perigo?! — riu ele. — A “narizinho” só sabe gritar,

sossegue. Seu hotel fica perto?

— A dois passos, não se incomode.

— Muito bem — ele a enlaçou, beijando-a rápido: —

Até amanhã... com bons dólares, claro.

Brigitte ficou a olhá-los até que desapareceram na

avenida que marginava a praia. Depois, encaminhou-se para

a areia.

Lá estava Díamond, junto à confeitaria onde se haviam

encontrado de tarde.

O negro não parecia satisfeito, ao vê-la.

— Que há Diamond? — indagou Brigitte, sacudindo a

areia dos pés.

— Era preciso beijá-lo? — fez ele.

— Não o beijei — replicou a repórter. — Não foi um

beijo, aquilo.

— É um assassino! — murmurou Diamond.

— Sei o que sente. Obrigada por preocupar-se comigo,

Mas, conseguiu alguma coisa mais?

— Segui a moça.

Page 79: 021 Quando Surge a Morte

— Até onde?

— Até uma casinha modesta, do outro lado dos

rochedos, além da baía.

— Ela encontrou-se com alguém?

— Não, ninguém. Que houve com ela?

— Leve-me até lá — disse Brigitte, — e ficará sabendo.

Vamos esclarecer algo, muito importante.

CAPITULO SÉTIMO Do Paraíso ao Inferno em poucos meses.

Busca de um homem, chave do enigma.

As plantas do tio Charles e o preço das circunstâncias.

Decisão na madrugada.

Era um bom lugar, além dos rochedos. A casinha,

modesta mas acolhedora, plantava-se, solidamente, na base

da escarpa, à beira d’água.

De um lado, estendia-se a ilha. Do outro, o mar, até o

horizonte de luzes na baía de Santa Mônica.

Junto à rocha, ancorada, uma embarcação pequena, a

motor. E redes e outros apetrechos de pesca.

Vamos chegar mais perto e bisbilhotar. Os moradores da

casinha são Dora e Tom, casal romântico, interessados na

poesia da vida em plena Natureza. Ali haviam feito nascer

seu pequeno mundo, com um filho e muitas esperanças.

Viviam da pesca e de algum transporte de pequenas cargas.

Tom era um enamorado lobo do mar. Por vários anos

estivera feliz, naquela existência simples de Santa Catalina,

entre o céu e as ondas.

Page 80: 021 Quando Surge a Morte

Mas algum fato especial veio modificar o curso

tranqüilo da sua existência de pescador moderno. Tom

deixou de ser o garotão simplório e afável, de fisionomia

sempre alegre, para converter-se num adulto preocupado e

arredio. Misteriosamente encontrou fartura de dinheiro. Não

se sabia a fonte de suas rendas, mas o rapaz ausentava-se

cada vez com mais freqüência.

Um dia, desapareceu.

Dora, ainda tímida, contava o que sabia a Brigitte

Montfort e a Diamond Dowen, que agora a entrevistavam.

— Não sei mais onde procurá-lo — dizia ela, aflita. —

Há três dias que não o vejo. Ele que nunca ficou fora de

casa mais de vinte e quatro horas!

Já pedira que falasse baixo, para não acordar o filhinho

de um ano. O vozeirão de Diamond mudou-se num

sussurro:

— Vamos ajudá-la a encontrar seu marido. E não precisa

olhar com desconfiança para a senhorita Montfort. Ela nada

tem contra nós, por sermos de cor. Já tive uma prova.

— E não pense que temos negócios com o senhor

Silverton — emendou Brigitte. — Tudo que disser ficará

entre nós, sob palavra. Qual é o nome completo do seu

Tom?

— Thomas Yale. Trabalhava às vezes para o senhor

Silverton, mas não como empregado fixo. Sempre lhe

pagou bem.

— Por que foi procurá-lo no iate, hoje?

Page 81: 021 Quando Surge a Morte

Diamond fizera a pergunta e, vendo-a vacilar ainda na

resposta, encorajou-a com um sorriso de confiança. A moça

terminou por esclarecer:

— Acompanhei-o até a embarcação, há três dias. Íamos

fazer compras de móveis, e até de um novo motor para o

barco dele, pois ganhara uma bela quantia na última

semana. Disse que tinha algo importante a fazer no iate, e

fiquei a esperá-lo a alguma distância, na praia, para que me

acompanhasse nas compras. Tommie, meu filho, estava

comigo. Fiquei esperando até o meio-dia, e ele não voltou.

Tenho certeza de que não deixou o iate. Foi por isso que

perguntei ao senhor Silverton, hoje.

Brigitte e Diamond trocaram um olhar significativo.

— Ele deixara o dinheiro com você, Dora? — perguntou

ela.

— Sim.

— E você dispõe de alguma parte do dinheiro, ainda?

Gostaria de vê-lo.

A jovem foi ao dormitório anexo e trouxe três notas de

cem dólares, entregando-as a Diamond, que as passou a

Brigitte. Esta retirou da bolsa algumas outras notas,

conferindo umas e outras.

— São parecidas? — perguntou Diamond.

— A série é correlativa. Devem ter saído do mesmo

banco, pois são novíssimas. Posso ficar com esse dinheiro,

Dora? Dar-lhe-ei outro.

Dizendo isso, entregou-lhe quinhentos dólares, quase

tudo que levava na bolsa:

Page 82: 021 Quando Surge a Morte

— Isto é seu — continuou. — Gaste como quiser. E

agora, uma recomendação importantíssima: não diga

absolutamente nada a ninguém. Para todos os efeitos,

ninguém esteve aqui, entendeu? Continue procurando seu

marido como se nada houvesse acontecido. Diamond vai

ajudá-la nisso. Compreendeu bem?

Dora Yale era uma pessoa simples mas inteligente. Sabia

por intuição que podia confiar na bela visitante noturna.

— Está bem — disse. — Contanto que Tom apareça.

Despediram-se, e pouco depois Brigitte dava instruções

a Diamond, já na praia:

— São três, os mortos — dizia. — Temos que descobrir

as provas contra os assassinos o quanto antes. Você

deverá...

Conversaram durante quinze minutos, acertando planos.

Na orla de areia, somente a lua iluminava suas faces

crispadas.

Finalmente, Brigitte beijou o rosto do companheiro:

— Tenho algo importante a fazer, agora. Não se trata de

perigo, não se preocupe. Vá descansar, Diamond.

Mas, o gigante não resistiu, desta vez, e abraçou-a:

— Não será um teste agora — disse, beijando-a em

seguida.

Um beijo longo, que lhe pôs um tremor no Sangue. E

Brigitte, a linda Brigitte não lhe fugia.

Afastou-a, depois, olhando-a nos olhos:

— Várias vezes já me perguntei o que realmente é você,

Brigitte Montfort. A resposta é uma angústia.

Page 83: 021 Quando Surge a Morte

Brigitte acariciou-lhe o rosto:

— Sou apenas mulher, Diamond.

Ele suspirou, tentando sufocar o desejo em suas veias:

— Está bem, é apenas mulher. Talvez aquela mulher a

que sempre se referiu Verlaine nos seus poemas

simbolistas: “Um conjunto de sugestões eróticas numa

forma crepitante; a melhor modulação do ser humano, ou o

grande momento da criação.”

— Muito bonito, Diamond — sorriu Brigitte. — Mas

não creio...

— Não diga nada, por favor — interrompeu-a Diamond.

— Deixe-me com essa impressão. Pelo menos terei para

sempre o desejo de imaginá-la assim. Sou um dos poucos

que chegaram a quase conhece-la como é, e isso me basta.

Fez uma pausa, olhou o mar e o céu enluarado.

— Em tudo isso a mulher branca e bonita domina. E

bendito sejam os homens que a conhecem.

— Diamond! — protestou ela.. — Já está me fazendo

sentimental!

— Ora, não estou querendo chegar a nada, Brigitte. O

que digo, outros provavelmente já disseram milhares de

vezes... à mulher. E nem sempre com a idéia de conquistá-

la.

Ainda com as mãos em seus ombros, Brigitte voltou a

falar-lhe:

— É tudo muito bonito, Diamond Dowen, mas tenho

algo urgente a fazer. Deixemos, por ora, a poesia. Boa noite.

Page 84: 021 Quando Surge a Morte

Lá ficou Diamond Dowen, o Hércules quase advogado,

sentado na areia, considerando as ondas e o luar.

E um quarto de hora mais tarde, no hotel, Brigitte pedia

um telefonema para Nova York.

TIO CHARLIE, O FLORICULTOR

Cinco e meia da manhã, em Nova York O inspetor Alan

Pitzer, em seu escritório, foi despertado por um auxiliar.

Abriu os olhos cansados. Naquela noite trabalhara até alta

madrugada, chegando ao limite do esgotamento. Nem tivera

ânimo de regressar ao seu apartamento, perto da catedral de

Saint Patrick. Ficara ali mesmo, no “bureau”, dormindo

num sofá. E despertava agora, às cinco e meia, um tanto

zonzo, o estômago pedindo um café.

— Há uma chamada de bem longe, inspetor — disse o

auxiliar.

Pitzer encaminhou-se até a sala vizinha, pegou o

telefone e rosnou: — Fala Pitzer.

A voz da telefonista soou como um tranqüilizante, muito

doce:

— É da floricultura do Charlie? Temos uma chamada de

Los Angeles; Santa Catalina, precisamente.

Ele despertou, de repente:

— Sim, sim, telefonista! Complete logo!

Houve um ruído característico, e logo uma voz

masculina:

— Senhor Charlie? Um momento, por favor.

Page 85: 021 Quando Surge a Morte

Em seguida, novamente voz de mulher, desta vez, muito

conhecida:

— Alô, tio Charlie! Como vai?

— Brigitte, é você mesmo?!

— Por acaso tem outra sobrinha?

— Não, claro que não! Que aconteceu?

— Nada de mais, querido tio. Somente que eu gostaria

muito, se mandasse um auxiliar para mim. Tenho muitos

convites; não consigo fazer tudo sozinha, entenda. Os

convites são demasiados. Sem ajuda, para pôr em dia meus

compromissos, perderemos alguns dos negócios da firma.

— Então, está trabalhando de verdade? É inacreditável!

— Titio! — protestou Brigitte. — Você sabe que

trabalho bastante! Já cheguei a comprar algumas boas

coisas e vender outras.

— Encontrou boas espécies de plantas, minha querida?

Ela sorriu:

— Sim! Um pouco fracas, mas adubando-as faremos boa

coisa. Para isso, para cuidar de algumas, é que estou

pedindo um de seus ajudantes. Sei que não poderia contratar

um aqui; você não gostaria, tão ciumento que é de suas

plantas.

— Verei isso imediatamente, querida — foi a resposta

de “tio Charlie”. — Fico feliz de saber que está fazendo

algo de útil. Mandarei Simon até ai. Santa Catalina, não é?

— Sim, no “Santa Catalina Bay Hotel”, tio Charlie. Vou

inspecionar a estufa hoje à tarde. Fica aqui mesmo na ilha.

Page 86: 021 Quando Surge a Morte

Posso gastar à vontade, não? Ando gastando um pouco além

da conta.

— O que pedirem, Brigitte, o que pedirem — e ele riu.

— Contanto que as plantas dêem lucros.

— Estamos certos, então? Espero Simon. Vou deixá-lo

dormir, titio.

— Dormir! São quase seis de manhã! — fez ele.

Brigitte surpreendeu-se, mas compreendeu logo: seu

relógio mostrava uma e meia. Em Nova York com a

diferença dos fusos horários o tempo era bem outro: quatro

da matina!

— Sinto muito tê-lo acordado a esta hora, tio Charlie —

disse ela, rindo.

— Sei que não sente coisa alguma! — replicou ele. —

Você tem certo prazer sádico em incomodar este pobre

velho. Mas, vá lá: estou satisfeito em vê-la fazer alguma

coisa. Não me zangarei desta vez.

— Tenha um bom dia, titio. Um beijinho.

— Com um beijo seu, talvez melhore o meu dia. Boa

noite, caríssima sobrinha.

Brigitte colocou o fone sobre o cavalete, aconchegou-se

sob o lençol e adormeceu logo, tranqüilamente.

Page 87: 021 Quando Surge a Morte

CAPÍTULO OITAVO Acolhida pouco amigável.

Conversas à margem da piscina.

Um plano pouco gentil.

Onde se vê que Brigitte gosta das sutilezas.

Logo cedo, pela manhã, Brigitte deixou o hotel,

procurando um automóvel. Alugou um Chevrolet usado, e

bancou a jovem secretária em férias, à cata de paisagens.

— Há pouco que ver na ilha — disse o locador. — Não

haverá interesse para uma moça tão bonita.

Brigitte preferiu as evasivas

— Estou de férias, e vou para a casa de uns amigos —

replicou sem dar mais conversa.

E três horas depois, sem levar bagagem, aparecia na

quinta dos Silverton.

Era um lugar tranqüilo, com entrada magnífica, ladeada

de álamos e choupos. A casa, no meio do bosque, fora

muito cuidada na construção, rodeada de varandas de

colunatas. Só um milionário poderia ostentar aquela

opulência. E o milionário não era Percival Holmes

Silverton, senão sua esposa, Carol.

Um criado grandalhão, exótico e desengonçado,

apareceu para atende-la. Conseguiu sorrir-lhe, Brigitte não

soube como, e abriu-lhe a porta do veículo.

— Sou Brigitte — anunciou ela.

— Estão todos na piscina, senhorita — respondeu o

homem, numa voz rouca. — O senhor Silverton ordenou

Page 88: 021 Quando Surge a Morte

que a conduzisse até lá. Pode deixar o carro. Mandarei

guardá-lo.

Brigitte entrou, acompanhada pelo bruxo que, não

obstante o peso, fazia o passo leve como um bailarino.

Atravessaram duas salas, saindo à direita da casa. E lá

estavam os Silverton e os Salamanca, todos em roupas de

banho. Percival nadava, enquanto o outro casal palestrava,

como sempre alegre, sob um toldo. E ao lado dos dois, uma

quarentona gorda, de óculos, o corpo muito esbranquiçado.

Era Carol Silverton, metida num maiô amarelo, o rosto

contraído, mostrando sua chatice interior.

Nati ergueu-se, ao vê-la aparecer. Usava um biquíni dos

menores, mostrando um corpo cheio de pecado.

Veio ao encontro de Brigitte e beijando-a amistosamente

falou:

— Carol não está num de seus melhores dias hoje,

querida.

— Não se preocupe, Nati — sorriu Brigitte, notando os

óculos da gorda milionária assestados nela. — Mas,

obrigada pelo aviso.

Aproximaram-se e Percival saiu da piscina, esbelto e

forte.

— Como passou o dia, Brigitte? Dormiu bem? — disse,

jovial e, depois, conduziu a repórter à presença da esposa:

— Carol, esta é Brigitte, de quem lhe falamos, muito

amiga de Nati e Abelardo.

Carol fez um gesto de enfado.

Page 89: 021 Quando Surge a Morte

— Já sei, já sei, Perci. Nada tenho com isso. Você a

convidou e está acabado.

— Não se impressione, Brigitte — sorriu Percival. —

Carol não teve bons sonhos, esta noite.

Sem nada dizer, a mulher levantou-se, rumando para

casa. Silverton seguiu-a com os olhos, rindo baixinho.

Quando ela desapareceu, voltou-se para os outros:

— Vamos celebrar a chegada de Brigitte, amigos!

Bateu palmas, e o criado grandalhão apareceu.

— Joe, traga-nos alguma coisa de beber. — ordenou. —

Que vão tomar vocês?

Os Salamanca pediram uísque. Brigitte pensou um

pouco.

— Champanha com limão — disse, por fim. — Não me

ocorre outra coisa.

— Muito bem, Joe — fez Silverton. — Champanha com

limão, e uísque.

O homem afastou-se, calado. E Percival riu novamente.

— Viram só a reação do “narizinho”?

— Ora, Perci, você chateia demais a pobre mulher —

disse Brigitte.

— Demais?! E ela, o que me faz? — retrucou ele.

E pôs-se a rir mais alto, quase uma gargalhada. Voltou

depois a pegar o braço da repórter, perguntando:

— Está desgostosa com o jogo, querida? Não mostre

esse jeito melancólico ao falar de Carol. Ela merece o que

faço.

— Não sei se merece, mas...

Page 90: 021 Quando Surge a Morte

— Bons dólares ajudariam? — insinuou ele.

— Não os vi, ainda — sorriu Brigitte, ambígua.

— Você os verá hoje, não se preocupe. Lembre-se:

quando se começa uma batalha tem-se que terminá-la. Você

já azedou, só com seu aparecimento aqui, o dia inteiro do

“narizinho”. Ela fugiu. Amanhã iremos para o iate, e então

não terá para onde fugir, entende? Vai ser divertido à beça,

oh, se vai!

OS AMIGOS DE PERCIVAL H. SILVERTON

Durante a tarde, apareceram Mix Baynes e um

cumpincha, que Brigitte vira também no iate. Baynes não se

comportava como um simples empregado de Silverton.

Mesmo para um homem de confiança do patrão, seu jeito

não era jamais o de um subserviente assalariado. Em certos

momentos parecia ser o verdadeiro chefe do outro homem

que viera na sua companhia.

Depois do jantar chegou uma visita. Era Spencer, o

homem que falara com Silverton e Baynes, no dia anterior,

na cabina de comando do iate.

Estavam todos já reunidos na grande sala fronteira da

casa, bebendo e contando pilhérias, quando Joyce Spencer,

que Baynes chamava de Yuri, às ocultas, foi introduzido

por Joe Gulik, o primeiro criado. Trazia uma valise negra e

mostrava a mesma cara de pau.

— Boa noite — saudou.

Page 91: 021 Quando Surge a Morte

— Como vai, Spencer — respondeu Silverton. — Toma

alguma coisa?

— Não, obrigado — agradeceu ele. — Disponho de

pouco tempo e preciso falar-lhe.

— Muito bem. Quer passar ao escritório?

Os dois saíram, rumando para o interior da casa.

Brigitte simulou não dar importância ao recém-chegado,

mas ia analisando tudo. Num canto, Baynes sorrira, ao ver

Spencer, e tinha cumprimentado o homem piscando um

olho. Ao seu lado, o tal cumpincha que Brigitte julgava ser

marinheiro, também sorrira de modo ambíguo.

Carol, criatura permanentemente insatisfeita, parecia

indagar-se sobre as relações entre o marido e o tal Spencer.

Lançava olhares turvos para todos, mas especialmente para

Baynes e o outro.

O casal Salamanca ocupava-se em não fazer nada. Nada

aparentemente, lhes atraia a atenção, a não ser suas próprias

pessoas e as ocasiões de se mostrarem espirituosos, talvez

para agradar à dona da casa. Se houvesse algo ali de

criminoso eles não teriam notado.

E Joe Gulik? Teria algo mais a ver com Sllverton do que

cuidar da casa? Talvez com Spencer, pois Brigitte o vira

sorrir, pela primeira vez, quando introduzira o visitante na

sala. Era um sorriso antipático, o dele. Um sorriso que

revelava algo de felino, como se os dentes fossem garras. E

Brigitte, Imaginando seu modo de andar, conjugou.o ao

sorriso. Então, Joe Gulik apareceu em sua mente com a

Page 92: 021 Quando Surge a Morte

figura de um gato matreiro. Melhor: um gato sério demais

para ser apenas gato.

Erguendo-se, Brigitte bocejou perceptivelmente.

— Nati, poderia indicar-me o toalete? — perguntou.

— Dez passos à esquerda, vinte à direita, ande em

frente, mais dez passos, suba a escada, desça ao porão

caminhe dez jardas e meia, dobre à direita... e pronto! —

brincou Abelardo, rindo. —Minha imaginação detém-se aí.

— Não certamente na toalete, querido! — fez Natividad.

— E por que não? Brigitte...

— Deixe de conversas fiadas — falou a esposa,

divertida, fechando-lhe a boca. — Brigitte, vá pelo

corredor: é a terceira porta.

Carol Silverton não moveu um dedo, nem achou graça

nos ditos dos brincalhões Salamanca, embora todos ali

rissem à vontade.

Brigitte, acompanhando os outros, ria também, enquanto

rumava para o corredor que levava ao interior da casa.

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CAPITULO NONO Perigo e milhões numa contagem ambiciosa.

O que quer dizer, Caput!

Quando não se pode trocar sequer a letra de um nome.

Mulher atrás da porta.

Silverton sentado à uma escrivaninha, no escritório, e

Joyce Spencer, com a valise negra vazia nas mãos, a

observá-lo. Cena perfeitamente normal, entre amigos.

Exceto por um detalhe: sobre a mesa, Spencer depusera

muitos maços de notas. Blocos de todo tamanho, já que as

cédulas eram de valor diverso, enfeixadas junto às do

mesmo valor. E Silverton ia contando, com um sorriso nos

lábios:

— Oitocentos... novecentos... Bem, Spencer, pode ir

falando. Não me atrapalha em nada. Mil... mil e cem...

— Você agirá amanhã, Silverton — respondeu o outro.

— Encontrará o hidroplano ao entardecer quando a noite

não tiver descido totalmente ainda. Evitaremos assim o

emprego de sinais luminosos ou do rádio.

Silverton continuava passando pelas mãos os maços de

dólares, sem deixar de prestar atenção a Spencer:

— Digamos, meia hora antes que anoiteça...

— Sim, e exatamente no ponto combinado:

— Quarenta milhas ao sul da ilha de San Clemente, não

me esqueci — falou Silverton. — Creio que a tal distância a

guarda costeira americana não me amolará: nem a

mexicana, por certo.

Page 94: 021 Quando Surge a Morte

— Espero que de a devida importância à operação, meu

caro. Muito cuidado ao transladarem as armas. Custaram-

nos muito, tanto para obtê-las como para pagá-las a você e

aos Salamanca. Os dois também sabem o que contem as

caixas.

— Já sei. Abelardo me falou — disse Silverton. —

Tencionam guardar a “mercadoria” na granja dele.

— Salamanca nos é totalmente leal, Silverton. Espero o

mesmo de você. E, por falar nisso: entenda que de agora em

diante poderemos dar-lhe trabalho sempre que precisarmos.

— Sempre?! — espantou-se Silverton.

— Esse “Sempre” quer dizer de dois em dois anos, mais

ou menos. Se recorrêssemos muitas vezes a você,

despertaríamos suspeitas. Não se incomode.

— Assim é melhor — sorriu Silverton. — E se me

negasse a colaborar em alguma ocasião?

— Caput! — limitou-se a dizer o impassível Spencer.

Percival empalideceu violentamente mas voltou logo a

falar:

— Então é assim, hem? Negativa será sinônimo de

morte.

— Fui bastante franco. E espero franqueza de você —

grunhiu o outro, depositando a valise sobre a escrivaninha.

— Quanto ao que pense sobre o assunto, devo dizer que só

eliminamos alguém em última instância, quando não há

probabilidade de recuperação para nossa causa, ou quando

nos vemos em perigo de sofrer denúncia.

Page 95: 021 Quando Surge a Morte

Percival, tentando disfarçar o mal-estar que lhe havia

dado aquele “caput!” sem cerimônias, levantou-se, indo

abrir um cofre na parede. Esteve algum tempo silencioso,

metendo no cofre os feixes de dólares que perfaziam dois

milhões. Somente quando terminou de guardá-los teve um

pouco mais de frieza.

— Bem... preciso aclarar alguns pontos, ainda, Spencer.

Que classe de armas vou transportar?

— Americanas — disse o outro, com um sorriso cínico.

— São armas tomadas aos invasores de Cuba. Não é

interessante, Silverton? Veja só: vamos usar as próprias

armas que os americanos deram aos invasores.

— Que espécie de armas, Spencer?

— Pistolas, fuzis, metralhadoras de mão, granadas,

morteiros portáteis... Está ansioso por causa do iate? Não se

preocupe. Estão todas bem embaladas, e mesmo as caixas

de munição não explodirão.

— E se houver uma vistoria?

— Não haverá, temos certeza.

— E devo traze-las à costa. Muito bem. Espero que de

certo — ensejou Silverton.

— Dará! — Spencer foi categórico. — Tudo está

acondicionado em caixas de uma companhia leiteira que

serve Los Angeles. Faremos desses incidentes entre raças

um motim fenomenal, vai ver, Até você irá orgulhar-se de

ter colaborado para a baderna. A política interior dos

Estados Unidos se debilitará, pedindo mais atenção do

governo. Então, deixarão de sustentar tão pacientemente a

Page 96: 021 Quando Surge a Morte

luta em certos pontos do globo. E será mais fácil para nós a

ação nesses pontos.

— Bem... creio que não haverá problema se tudo foi

arranjado assim — assentiu Percival. — Minha matrícula

marítima está em dia, sou cidadão americano e tudo o mais.

A Costeira nada verá de anormal. Muito bem pensado,

Spencer. Diga-me: como trarão as armas do Atlântico ao

Pacífico?

Joyce Spencer, olhando para o outro, ficou pensativo por

um momento.

— Bem, penso que poderá saber, pois é uni dos nossos a

partir de hoje. O hidroavião atinge grande altura. Passará

alta noite sobre o sul do México, por locais quase

desabitados. Depois de chegar ao ponto combinado esperará

sua aproximação, à tarde.

— E o ponto de desembarque — interveio Percival, —

está mais ou menos em San Juan de Capistrano. Um bom

lugar.

— Sim, um bom lugar — sorriu pela segunda vez o

visitante.

— Vamos ver: o nome do receptador será... Graves, não

é?

— Craves! — corrigiu Joyce, fazendo um sinal de

descontentamento. — Já lhe disse que deve decorar tudo,

Silverton!

— Coisa pouca! protestou Silverton. — Apenas errei

uma letra!

Page 97: 021 Quando Surge a Morte

— Não é pouco! — replicou Spencer. — Uma letra às

vezes pode levar a... — suspirou: — Bem, o nome é

Joshuah Craves, embora falso. É mais uma senha do que um

nome, entende?

— Perfeitamente, perfeitamente! — sorriu Silverton. —

Ele levará as caixas para a granja de Abelardo, que as

mandará nos seus caminhões de leite para Los Angeles. Não

esqueci! E tem mais: o piloto do hidroavião se chamará

John Sibinsky. Está vendo, Joyce Spencer? O esquecimento

não foi mais que um lapso! Não se preocupe, não se

preocupe!

Joyce Spencer, nascido Yuri Skoveko e assim conhecido

fora dos Estados Unidos, fechou a valise e ergueu-se.

Caminhou até a porta, parando a três passos dela:

— E sobre essa garota, Silverton? Que resolveu?

— Caput! — fez Silverton.

— Ainda bem — sorriu o outro, repuxando os lábios. —

Vai levá-la?

— Em alto mar, tudo se tornará mais fácil...

imperceptível, como se diz.

Spencer, ou Skoveko, assentiu com a cabeça e avançou a

mão para a maçaneta da porta. Esta não cedeu.

— Espere, fechei-a à chave — disse Silverton,

aproximando-se.

Girou a chave, abrindo a porta. E lá estava Brigitte

Montfort com a mão erguida como se fosse bater.

Page 98: 021 Quando Surge a Morte

CAPÍTULO DÉCIMO Pequeno esforço de memória e uma explicação necessária.

Quando um cavalheiro se aproveita.

Caminho interceptado e uma sombra da morte.

Deixemos por um momento os três surpresos

personagens da cena anterior e voltemos atrás uns tantos

minutos. Enquanto Brigitte Montfort ouvia a conversa de

Percival Holmes Silverton e Yuri Skoveko, um homem

silencioso encaminhava-se até o mesmo corredor e,

chegando à porta perto da qual estava Brigitte, estacava. Era

o mordomo, Joe Gulik, o grandalhão sisudo. Estivera nos

fundos da casa, ordenando o preparo de mais bebidas para

os amigos de Silverton. E vendo Brigitte agachada junto à

porta do escritório, compreendera imediatamente o que se

passava. Joe Gulik retrocedeu, buscando o salão da frente

por outro corredor. E quando lá chegou, fez um sinal a Mix

Baynes, que saiu para atende-lo. Estiveram falando por dois

minutos, num canto, e depois Joe Gulik desapareceu de

vista. Mix Baynes sorria.

O GESTO

Brigitte ficou indecisa por um minuto, encarando os dois

homens. Ambos a olhavam com surpresa, mas o rosto de

Yuri Skoveko era simplesmente de assassino. Silverton, que

sorria ao abrir a porta, conseguiu manter-se assim, embora

com dificuldade.

Page 99: 021 Quando Surge a Morte

Afinal, a mente de Brigitte se aclarou um pouco.

— Pensei.., pensei que já estivesse só, Perci. Ia chamá-lo

para...

Silverton demorou a responder. Depois, ampliou o

sorriso.

— Não se preocupe, queridinha. O senhor Spencer já

saía. Que houve?

— Pensei em levá-lo de volta à sala — sorriu Brigitte.

— Fui à toalete e estava de volta. Na verdade, não me

convém ficar esta noite aqui, pois Carol está com um olhar

fulminante. Ia pedir que me levasse a... bem, você sabe,

não?

— Sei?! — fez ele. — Sei o que?! Carol fez algo?

— Não, Perci, não! — disse Brigitte, e com a mão lhe

tocou um bolso do “slack”.

Silverton sorriu novamente:

— Ah! Ia falar-lhe logo sobre isso, Brigitte.

Skoveko, a cara endurecida ainda, tocou o braço de

Silverton.

— Preciso ir, amigo — e piscou um olho. — Sabe como

quero as coisas, não?

— Sim, sim — e Silverton fez o mesmo gesto.

— Não se preocupe.

Skovenko afastou-se, desaparecendo, e Percival tornou a

Brigitte:

— Muito bem, minha querida. Desculpe, mas não quis

ser apressado em dar-lhe o dinheiro combinado. Pensei que

Page 100: 021 Quando Surge a Morte

fosse ficar aqui até mais tarde. Tencionava mesmo pedir-lhe

que pernoitasse aqui.

Dizendo isso, metia a mão no bolso, retirava um maço

de notas, contava-as: mil e quinhentos dólares. Entregou

tudo a Brigitte, que sorriu.

— Assim vai bem o trato — disse, beijando-o

ligeiramente.

Em sua mente as palavras que os dois homens haviam

trocado martelavam: “Sabe como quero as coisas” —

dissera o tal Spencer. E aquilo, evidentemente, era nada

menos que — “Caput” — para ela, isto é, eliminação

sumária. Todavia, não podia odiar Spencer por isso. Era um

espião, e se assim não agisse, ele e os companheiros

estariam perdidos, inda mais em território estadunidense.

Ele apenas se defendia, e aos seus.

— Se ganhar a luta para a qual a contratei, terá muitos

milhares, Brigitte — disse Silverton, sempre sorridente. —

Mas, é verdade que deseja ir já?

— É preciso, Perci — confirmou ela, (e na verdade era

preciso).

— Bem — conformou-se ele — você me escapa hoje,

mas amanhã à noite estaremos no iate: lá será difícil fugir

de mim.

— Quem sabe! — fez Brigitte, matreira.

Beijou-o novamente:

— Agora, leve-me, por favor!

Encaminharam-se até a sala, e durante o breve percurso

Silverton não perdeu a ocasião de abraçá-la:

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— De modo algum me fugirá! — repetiu, esmagando-

lhe os lábios com um beijo demorado.

Jeitosamente, Brigitte desvencilhou-se.

— Mais calma, Perci. Amanhã veremos.

Ele conformou-se, levando-a à sala:

— Não quer que Mix a conduza?

— Não, obrigada — sorriu ela. — Mix está se

divertindo. Além do mais tenho o carro, e não bebi muito.

— Está bem — disse Silverton, com uma leve

preocupação na voz.

Chegando onde estavam os outros, Brigitte despediu-se,

embora sob protestos dos Salamanca, secundados ainda por

Silverton. Somente Carol aprovou, saindo do mutismo em

que vivera aquele dia:

— É ótimo que vá — disse a mulher.

“Um favor que lhe faço, pobre Carol” — pensou

Brigitte, consigo, com verdadeira pena da mulher que ela, a

contragosto, estava hostilizando.

Assim foi que, minutos depois, já deixando a quinta,

Brigitte pensava no que não sofreria Carol Silverton nas

mãos de tal marido. Sua vida devia ser um inferno de

ciúmes, e todos provocados cinicamente.

Ia a duzentos metros do portão de saída, já atingindo a

estrada que a levaria à cidade, quando repentinamente

deixou de pensar em Carol Silverton: à frente do automóvel,

bem iluminado pelos faróis, estava Joe Gulik, o mordomo,

que lhe fazia sinais para parar. Reconheceu-o de imediato,

não sabendo como julgar, entretanto, sua presença ali.

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Não obstante um sexto sentido a prevenisse de perigo,

Brigitte parou o automóvel junto dele.

— Que aconteceu, Joe? — perguntou.

Ele cruzou o indicador nos lábios, pedindo silencio:

— Apague as luzes e venha comigo — sussurrou.

Brigitte quis dizer algo, mas o grandalhão já se metia

entre os arbustos do lado da estrada, entre as árvores.

Antes de atende-lo, Brigitte procurou sua arma preferida

sob o assento do automóvel. Empunhando a pequena

pistola, levou-a entre as dobras da saia.

Quando ultrapassou os primeiros arbustos, Gulik

apareceu repentinamente em sua frente. Surpreendeu-a com

o silencio de um felino, ao golpear-lhe a mão armada,

derrubando a pistola, enquanto com a outra lhe tapava a

boca.

Dentro de dois segundos1 uma navalha afiada apareceu

ante os olhos de Brigitte, brilhando à luz da lua. Ele

conseguia sujeitá-la apenas com um cotovelo, mantendo-a

imobilizada. Era de uma força incomum, o gigantesco Joe

Gulik.

Aproximando a navalha de seu pescoço, imobilizando-a

contra o peito enorme, o gigante murmurava:

— Tenho ordem de matá-la, meu benzinho. Sabe que é

realmente uma pena? Mas, antes de matá-la, que tal se?...

Joe tem boas idéias, meu benzinho...

Ouvindo aquela voz implacável, Brigitte sentiu chegada

sua hora.