021 quando surge a morte
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A bela espiã vai à Los Angeles investigar um movimento
racista e se envolve num tráfego de armas pesadas.
(C) 1965 – LOU CARRIGAN Publicado no Brasil pela Editora Monterrey
Digitalização: JVS 390531-390605
CAPITULO PRIMEIRO
Um banho de Cleópatra, a carta e a esperança.
Brigitte raciocina entre as espumas.
A passagem do desconhecido e um começo de mistério.
Onde encontrar a voz?
Claro, as mulheres feias podem ser muito virtuosas,
cheias de qualidades humanas e até sobre-humanas, como
certas abnegadas de que nos fala a História. Mas as bonitas
emocionam à primeira vista. Fazem a alegria da Terra, são a
melhor paisagem sob o sol.
O último sultão de Marrocos disse, certa vez, que a
mulher de corpo bonito é a maior prova da existencia de
Deus na sua harmonia e integração com o Universo.
Brigitte Montfort é um desses casos aprimorados de
eugenia. Suas pernas e suas ancas tem sido comparados por
intelectuais, “gangsters” e artistas bem falantes de todas as
raças, às pernas e às ancas de Galatéia, famosa estátua grega
de Pigmalião que um dia virou gente (e muitos séculos mais
tarde se transformaria em MY FAIR LADY de Bernard
Shaw e Allan Lerner, para alegria dos freqüentadores da
Broadway e dos fãs de Hollywood).
Brigitte Montfort tem o corpo das mulheres eternas.
Deslumbra e atiça. Desnorteia e domina. Sua pele dourada
lembra uma tâmara fresca brilhando ao sol do deserto. Não
vamos insistir nestas descrições ociosas de baixa
estratificação literária, que o leitor deve estar querendo uma
história violenta, cheia de ação e suspense, como devem ser
as boas novelas de espionagem da era espacial.
Vejamos o que faz Brigitte Montfort em Miami, na
“suíte” de luxo do Eden Rock Hotel, a dois passos do
Oceano Atlântico. Entremos, silenciosos, no seu quarto,
observando detalhes.
Sobre a mesinha da saleta foi deixado uni envelope
comprido e branco, carimbado de Nova York. Está aberto e
vazio.
Prossigamos.
Aqui está o dormitório, todo azul-claro, emoldurado de
cortinas brancas, macias. Sobre a cama enorme, jaz o
diáfano “baby doll” da linda repórter, como à espera
daquele corpo de estátua que lhe emprestará
estremecimentos humanos.
Mais um passo. Ah! Lá está ela, quieta, suave, quase
uma figura de Boticelli, imersa na água espumante da
grande banheira rosa. Esqueceu entreaberta a porta, e sua
atitude revela calma e bem estar, embora seus olhos ávidos,
curiosos, percorram as linhas da carta que tem na mão.
O sol de Miami fê-la de bronze, melhorando ainda mais
seu mistério de femea perfeita. (Ah! já esquecíamos a
ênfase!) Apoiada, docemente, sobre a orla da banheira,
Brigitte lê.
Aproximemo-nos ainda mais. Sejamos curiosos, como
detetives da série de Peter Sellers. A carta está assinada por
Miky Grogan, Diretor Redator Chefe do “Morning News”
de Nova York, jornal em que trabalha Brigitte. Diz assim:
Minha querida repórter:
É uma pena que eu tenha de interromper seu
ensolarado descanso em Miami. Sei que a praia
dourada em frente ao seu hotel é um convite à
preguiça e à meditação. Mas não tenho outro
jeito. Preciso de você, com urgência. Só você
resolve os problemas que os outros começam. Por
que teria de ser assim? A eficiência morando na
sua beleza... Vejamos, então, sua próxima
designação. Voe para Los Angeles, na costa do
Pacifico. Informe-se sobre os conflitos raciais que
estão ocorrendo por lá. Não nos bastam os
telegramas das agencias noticiosas. Queremos um
estudo em profundidade, algo que represente a
observação dos nossos próprios olhos em Los
Angeles. Os seus olhos, Brigitte, são os nossos.
Embora mais azuis, trazem a imagem do que
significa a notícia exata para o “Morning News”.
Vá, veja e vença! E nos forneça, com a máxima
brevidade, relatos mais amplos. Queremos o “x”
do problema.
Espero que não fique muito zangada. com esta
nova ordem, desfazendo suas férias. Afinal, uma
repórter linda como você, nunca está totalmente
em férias. Beijos do seu,
Mick Grogan
P.S. — O nosso amigo, o inspetor Pitzer da
CIA, acaba de falar comigo ao telefone. Sobre o
caso que acabo de lhe dizer ele tem algumas
observações interessantes a acrescentar. Vai
contatá-la brevemente. Abraços.
Brigitte leu e releu a carta, suspirou, deixou que o papel
caísse docemente sobre o tapete do banheiro, voltou a
ensaboar as pernas esculturais e afinal decidiu-se a encerrar
seu voluptuoso banho de Cleópatra.
Envolta numa toalha felpuda, quase uma carícia de
feltro, retornou ao quarto, sentou-se na poltrona bergere ao
lado da cama e pôs-se a enxugar o corpo distraidamente,
compondo uma cena maravilhosa que os nossos olhos
profanos teriam querido admirar.
Ali estava o inesperado, na carta de Miky Grogan —
pensava ela, um tanto decepcionada. A referencia ao
Inspetor Pitzer era sintomática. Não seria uma reportagem
comum, do jornal, mas sobretudo um caso envolvendo o
Serviço Secreto americano. Mais uma vez o Chefe Grogan e
o velho raposão da CIA tramavam jogá-la num episódio
arriscado.
O post scriptum estabelecia que Pitzer estava por se
comunicar com ela, brevemente. Mas quando? E onde?
— Pois bem! — murmurou Brigitte erguendo-se e
prendendo a toalha sobre os seios — estou mesmo nisso até
o pescoço, e vou em frente. Ah! Minhas férias douradas!
Quando terei outras, nestas circunstâncias?
A jovem e escultural repórter andou nervosamente pelo
quarto, acendeu um cigarro longo triplo, último lançamento
da Fali Mali, jogou no ar algumas baforadas azuis e
finalmente deitou-se de bruços na cama, sem tentar vestir o
“baby doll”. Precisava meditar, e desde muito conservava o
hábito de ficar nua, nos instantes mais agudos do raciocínio.
Quando já fechava os olhos, numa lânguida
concentração, ouviu o tilintar do telefone na mesa de
cabeceira.
— Sim! — disse, apanhando o fone. — Sim, sou eu
mesma, Brigitte Montfort!
Houve uma pausa, e nos olhos da jovem surgiu uma
chama de flagrante curiosidade.
— Passagem para Los Angeles? — exclamou. — Mas...
eu ia pedir justamente que me reservassem essa passagem!
Quem se antecipou?
Brigitte repôs o aparelho no gancho, intrigada. Alguém
lhe reservara passagem no vôo Miami-Los Angeles! Mas,
quem? Não poderia ter sido o próprio Miky Grogan, pois o
chefe estava longe de adivinhar o momento exato em que
ela receberia a carta. E o vôo, com número marcado, seria
para dali a duas horas, o que fazia supor que o comprador
da passagem — a qual já fora entregue na portaria do Eden
Rock Hotel estava informado de sua presença naquele
endereço. Devia também conhece-la, saber de sua viagem!
Tudo muito estranho.
Ligou novamente para a portaria, insistindo em saber o
nome da pessoa que reservara a passagem. Nada conseguiu.
— De qualquer modo — pensou — tenho a passagem. E
o mistério não pode durar muito.
Ocupou-se em vestir um adorável Pucci en cio qué,
calçar as sandálias italianas que lhe realçam a beleza das
pernas perfeitas, descendo em seguida para o “salon de
beauté” do hotel, onde um “coiffeur” de gestos nervosos
manejou seus profundos cabelos negros dando-lhes um
toque de estudada simplicidade, em poucos minutos.
Meia hora depois, assustadoramente linda, Brigitte
aparecia no balcão do aeroporto, declinando o nome e
perguntando pela reserva.
— O pedido foi feito ontem, por telefone — informou o
funcionário. — Só lhe posso dizer que a voz era masculina.
— Chamada interurbana? — indagou Brigitte.
— Não! Aqui mesmo em Miami — completou o
balconista. — Seu avião partirá dentro de dez minutos,
senhorita Montfort.
A jovem repórter, ainda intrigada, foi acomodar-se numa
poltrona, depois de ter encaminhado a bagagem. Fumando
procurou lembrar-se das pessoas que poderiam estar
relacionadas com aquela viagem. E, de repente, lhe veio a
memória o “post scriptum” da carta de Grogan: “... Pitzer
vai contata-la, brevemente.”
Um sexagenário que lhe cobiçava os joelhos, sentado em
frente, admirou-se quando Brigitte estalou os dedos,
levantando-se num impulso.
A moça ia sorrindo até o balcão da companhia. De lá
pediu ligação para a portaria do Éden Rock e fez uma
pergunta. Houve dois minutos de silencio, no outro fone,
depois que o interlocutor pediu que esperasse; iria indagar
de alguém. Voltou com a resposta:
— Senhorita Montfort? Sim... uma voz masculina, calma
e grave, perguntou, duas horas atrás, pelo telefone, se já
chegara ao Eden Rock uma carta para a senhorita.
Respondemos afirmativamente, pois a carta fora realmente
entregue no seu quarto. Fizemos mal, senhorita?
— Oh, não! — respondeu Brigitte, só por delicadeza. E
insistiu: — Essa pessoa não se identificou?
— Quando nosso funcionário pediu que declinasse o
nome, o tal cavalheiro desligou. — informou o homem do
hotel.
— Está, bem! — conformou-se Brigitte, suspirando.
Já agora os alto-falantes chamavam os passageiros com
destino a Los Angeles. Brigitte encaminhou-se para a
aeronave, meditando:
— Voz calma e grave... de homem. Nenhuma havia mais
calma e mais grave do que a de...
Estacou, a dez passos da escada do avião. Lá em cima,
no último degrau, um homem de roupa clara, óculos
escuros, saudava-a com um sorriso. Foi um momento
apenas, pois logo entrou no aparelho.
A esta altura o leitor inteligente já terá percebido que o
misterioso cavalheiro que acaba de entrar nesse avião em
que vai viajar Brigitte é, nada mais, nada menos, que o
tremendo Inspetor Pitzer, da CIA, comandante dos
melhores agentes secretos do mundo cabeça de um grupo
selecionado de espionagem e contra-espionagem, velho
amigo de Brigitte, seu chefe em tantas missões arriscadas
no Oriente e na Europa Central, um patrão extra que maneja
seu destino além do Diretor Miky Grogan, do “Morning
News”.
Por que não se dera ele a conhecer?
Por que os óculos escuros? Por que o mistério?
Brigitte subiu a escada e foi até às primeiras poltronas
do avião.
Não se enganou: lá estava ele, Pitzer, com estranhos
óculos escuros que jamais usara.
— Com sua licença, cavalheiro — disse ela, passando
para o lado da janelinha.
Tratou-o como se não o reconhecesse, mas Pitzer sabia
que a rápida olhadela, no pátio, fora suficiente para
identificá-lo perante a repórter. Ela agora olhava para o
outro lado, como que interessada na movimentação ao
aeroporto. O velho raposão cerebral da CIA mantinha-se
firme no jogo.
Dentro de um minuto, a comissária de bordo pediu que
usassem os cintos de segurança. O jato deslizou lento para a
extremidade da pista, começou a mover-se cada vez mais
rápido; a operação tomara apenas um minuto e já a possante
aeronave descrevia uma elegante curva nos céus, aproando
para Oeste.
Nos dois primeiros assentos, à esquerda, o simpático
Alan Pitzer e a belíssima Brigitte Montfort continuavam
perfeitamente desconhecidos um do outro. Nem um olhar
trocavam. Cena perfeita.
Somente dez minutos depois de terem alçado vôo foi que
Brigitte deixou de olhar para fora. Ajeitou-se, atirou para os
lados as partes do cinto de segurança, começando a
examinar com um olhar lento, muito lento, o homem do
lado. Considerou seus sapatos, passou aos joelhos
displicentemente superpostos, à mão que segurava um
cigarro, ao paletó cinza... e encarou-o.
Pitzer seguira de viés aquele olhar, sempre sorrindo.
Mesmo ao ver a expressão irada de Brigitte, continuou
sustentando olhos nos olhos.
Por fim, com um impaciente suspiro, a repórter
explodiu:
— Muito bem, fale!
Entre o brando conversar dos passageiros, a voz
feminina, irritada, soou forte.
Pitzer fez um sinal, pedindo-lhe calma:
— Vai assustar os outros, querida. Não chame atenção.
Brigitte, amuada, cerrou o punho:
— Diga logo o que quer de mim. Não deve ser um
bombom.
Ele ficou sério:
— Não se irrite, querida. Não é nada de mais.
— Muito bem — tornou ela, contrafeita.
Mas deixe de chamar-me querida. Você não pagaria
minha passagem à toa! Que pretende, desta vez?
— Colaboração — foi a palavra que saiu dos lábios
firmes de Pitzer.
— Sempre o mesmo! — murmurou Brigitte, amuada. —
Sempre co-la-bo-ra-ção! Mas, de que tipo? É o que quero
saber!
Pitzer não respondeu logo. Em vez disso, estendeu-lhe o
maço de cigarros, insistindo para que aceitasse um.
Brigitte aquiesceu, mais calma, e Pitzer o acendeu com
seu isqueiro “que ofereciam os penhorados colegas de
trabalho” — como dizia a inscrição da face brilhante do
objeto.
— Pois bem — falou ele, depois de vê-la mais tranqüila:
— trata-se de Lyn Galloway, da CIA. Perdeu-se em Los
Angeles e não mais achou o caminho de casa. Nem mesmo
o telefone. Tememos que algo lhe tenha ocorrido, pois não
dá sinais de vida há uma semana.
Fez uma pausa, apagou o cigarro num cinzeiro
aerodinâmico, ajeitou as pernas:
— Vou pedir-lhe que o procure.
— Um agente “capa e espada”?! (agentes destacados
para as missões mais arriscadas) — Brigitte sorria. — E
como pode um desses perder-se? Não são os melhores, os
invencíveis?!
— São homens, Brigitte — limitou-se a responder o
inspetor. — E como homens, às vezes falham. Mas... como
é? Vou poder contar com você?
Brigitte pensou um pouco, pareceu querer protestar;
voltou a olhar as nuvens lá fora:
— Você não vai a Los Angeles, meu caro?
— Vou — confirmou Pitzer — Mas preciso voltar
imediatamente a Washington... estudar um caso na Turquia.
Novo silencio dela, novas baforadas, e a calma vindo aos
poucos. Brigitte já aceitando o pedido:
— Que foi fazer esse Lyn?
— Examinar o Watts District — respondeu Pitzer. —
Não é esse o assunto que a leva a Los Angeles? — E, ante a
afirmativa de Brigitte: — Pois bem, Galloway também era
interessado nesse bairro. Devia enviar-me certos dados,
depois de investigar ingerências estranhas...
Brigitte não entendeu:
— Quer explicar melhor? Que estranhos?
— Sim. As questões raciais aqui nos Estados Unidos
tem tido importância, mas não tem causado danos
excessivos. Agora, no entanto, surgem armas e “coquetéis
molotov” em demasia. A violência é tremenda. E nós só
queríamos ter certeza de que não há gente de fora
mandando armas para os negros e insuflando os ânimos.
Para ser claro: tememos que o dedo da subversão esteja
metido lá...
— E por que eu? — atalhou Brigitte.
Pitzer sorriu ligeiramente:
— Não vai escrever sobre o assunto?
— É ao que me enviam.
— Então! Aproveite e indague sobre Lyn...
— ...que pode ter sido vítima do... dedo subversivo —
sorriu Brigitte. — Garanto que nosso amigo está
desfrutando do sol do Pacífico, nos braços de uma loura
hollywoodiana. E o nosso caro chefe...
— Não brinque, Brigitte — o inspetor fez-se uni pouco
áspero. — Lyn era um sujeito dos melhores que já conheci.
Pelo menos no que tange ao lado humano. Se morreu,
sentirei muito. E se morreu, é porque descobriu algo muito
sério. Para dizer a verdade, não me espantaria se soubesse
que alguns estrangeiros — perigosos estrangeiros! — estão
metidos na anarquia. No fundo, é isso o que desejamos
saber: quem está por trás de todo esse estardalhaço em
Watts District? E onde foi parar Lyn?
— Pode ter sido vítima de um choque de rua, entre
brancos e negros — considerou ela.
— Não, não, minha querida. Em tal caso, os restos
teriam aparecido. Pelo sumiço total de Lyn, pode-se
perfeitamente suspeitar de algo anormal.
Brigitte fez cara de espanto:
— Acredita mesmo que agentes estrangeiros estejam
metidos nisso, inspetor?
— Sim, e você pode avaliar de que país sejam. Quem
poderia estar interessado em que déssemos má impressão ao
mundo? Mas isso é uma hipótese, apenas, não se esqueça.
— Alto lá, meu caro! — Brigitte ergueu a mãozinha
delicada. — Eu não disse que o ajudaria... ainda.
— Não... não vai atender-me, Brigitte? — espantou-se
Pitzer. — Eu pensei...
Ela riu, mostrando considerar melhor o assunto, e
acabou por afirmar com um movimento de cabeça:
— Umas perguntas sobre Lyn Galloway serão quase
nada, perto do que vou precisar para os artigos de Miky
Grogan. Como é esse tal Lyn? Ou... como era?
— Era... — ou é — ruivo, forte, simpático, alto,
esperto...
— Já sei, já sei: um tipão Está bem. Farei as indagações
que deseja.
O inspetor mostrava-se agora satisfeito. Acendeu outro
cigarro, chamando a comissária do bordo:
— Dois cafés! — pediu.
Voltou-se depois para a linda repórter.
— Uma coisa, Brigitte: que acha dos negros? Digo, tem
algo contra a raça?
— Tanto quanto tenho contra você, caríssimo —
respondeu ela. — E você, que acha dos esquimós?
— São pessoas às vezes melhores do que nós —
respondeu ele, rindo. — Dizem que tem muito mais calor
humano.
— Pois, então... — riu também Brigitte. — Você não
acha que os homens valem mais pelo cinzento do cérebro
do que pela alvura da pele?
CAPÍTULO SEGUNDO Primeiros passos dentro de um labirinto negro.
Praia de sangue, sob um luar de recordações amenas.
Quando um atirador perfeito escolhe um alvo pior.
Conjecturas em um Thunderbird.
Dois dias depois de sua chegada a Los Angeles, Brigitte
já se dera conta dos riscos e problemas que lhe traria a nova
missão.
Aliás o Inspetor Pitzer jamais lhe confiara um caso fácil.
Enquanto esperava, na estação de telex, sua vez de
comunicar-se com o “Morning News”, para transmitir os
primeiros informes, a repórter-agente repassava
mentalmente os resultados daqueles dois dias de
investigação. Do ponto de vista do jornalismo, tudo correra
satisfatoriamente. Mas em relação a Lyn Galloway, nenhum
progresso, o ruivo tinha mesmo sumido, sem deixar
vestígios. E era vital para o inspetor saber o que sucedera ao
agente.
Pouco depois, chamaram-na ao telex, o que não lhe deu
tempo para maiores conjecturas sobre sua inicial
perplexidade — ou falta de sorte — no campo das
investigações. Naquela mesma tarde quase telefonara a
Pitzer, pedindo-lhe um de seus homens para substitui-la no
caso de Galloway. Mas, desistir assim, seria confessar
derrota antes da batalha. E Brigitte queria tentar pelo menos
um segundo avanço.
Fez o despacho para o “Morning News” e quando
passava pela secretaria da agencia, a recepcionista entregou-
lhe um bilhete:
— Foi entregue por um rapazinho que não se identificou
— disse a moça.
Brigitte estudou por alto o papel dobrado, bem fechado
nas pontas. Sua curiosidade agitava-lhe os nervos.
— Nenhuma informação mais? — indagou, fingindo a
maior calma.
— Sinto muito, mas nada sei dizer — respondeu a moça.
— Estava ocupada com o telex quando ele entrou. Deixou
sobre a mesa esse bilhete e disse seu nome, senhorita
Montfort. Apenas isto.
Brigitte olhou em volta. Estavam por perto dois homens
de meia-idade, possivelmente repórteres, conversando
baixinho, de olhos fixos em sua figura. Mas não pareciam
ter algo a ver com o fato.
— Está bem, obrigada — disse afinal Brigitte,
afastando-se.
Na rua movimentada, chamou um táxi, e antes de abrir o
bilhete, esteve analisando o papel branquíssimo, um tanto
espesso, grampeado nos cantos, sem nome algum por fora.
O táxi seguia veloz na direção do hotel, enquanto a noite
caía e se acendiam as luzes da cidade. Naquele momento,
em Nova York, Miky Grogan estaria mandando às oficinas
o artigo telestafado de sua dedicada repórter. O Inspetor
Pitzer estaria jantando calmamente, em seu apartamento
perto de Saint Patrick... enquanto ela, Brigitte, que teria
preferido estar em frente a um espelho, preparando-se para
um encontro com algum belo companheiro, tinha de se
contentar com a simples emoção de saber o conteúdo
daquele bilhete, que tanto podia ser um convite para um
encontro com Galloway quanto uma ameaça de morte!
Finalmente, resolveu abri-lo. Fê-lo cuidadosamente,
como se tivesse nas mãos um testamento. Dizia assim: “Ao
lado dos barcos de pesca, na praia de Santa Mônica, há um
pinheiral, à direita, senhorita Montfort. Vá hoje, e vá
sozinha.”
Em muito boa caligrafia, com tinta vermelha, a
mensagem era clara, mesmo peremptória: “Vá hoje, vá
sozinha”! Galloway, um bom detetive, não usaria um tom
semelhante. Ou usaria?! O fato é que Pitzer nada dissera do
caráter de Galloway. Podia ser, portanto, do agente, e talvez
não. Ah, aquela curiosidade mordiscante!...
O táxi alcançava o hotel, e Brigitte pensava rapidamente:
iria, ou não? Não ir significava desprezar a primeira
oportunidade de saber, talvez, algo de concreto sobre o que
Pitzer solicitara; e indo, possivelmente encontraria barulho.
A curiosidade fazia-a vibrar, como uma adolescente em
véspera de festa. Há pessoas que nascem assim, com o
gosto do perigo, o sangue da aventura.
“Pois bem” — pensou Brigitte — “se alguém estiver
querendo jogar, conseguiu uma parceira. E com trunfos!”
Estava já à porta do hotel e o motorista lhe abria a porta.
— Espere-me aqui — disse, enquanto descia. Entrou às
pressas no edifício, apanhou a chave de seu apartamento, foi
saudada pelos costumeiros olhares de admiração devoradora
e subiu ao refúgio.
Cinco minutos depois, precisamente às oito e quinze,
descia maravilhosa, num “chemisier” de gaze estampada.
Logo abaixo do colo podia-se ver, sob a fazenda leve,
estampada, uma ligeira saliência. O leitor já sabe que
Brigitte carrega sempre, entre os seios, uma pistola de cabo
de madrepérola, muito pequena mas nem por isso menos
eficiente nos momentos de perigo. Entrando novamente no
táxi, verificou a bolsa e os documentos. Tudo em ordem.
— Conhece algum locador de automóveis, aqui por
perto? — indagou do motorista.
— A dois minutos daqui — foi a resposta indiferente do
homem.
— Pois me leve até lá.
SOB O LUAR
As praias enluaradas deveriam ser, necessariamente,
lugares de encontros românticos. A Literatura e o Cinema
se encarregam de plasmar essa idéia no espírito das gentes,
e ainda escolhem um setor do Mundo para fixar
especialmente o maior conteúdo lírico da paisagem: o sul
do Pacifico.
Das praias de Santa Mônica, na Califórnia, qualquer
americano versado em Keats ou Bernard Cook, imagina o
seu mesmo Oceano misterioso indo beijar, muito além do
horizonte, as areias douradas de Waikiki, onde as donzelas
de um povo essencialmente puro gostam de cantar, ao som
de guitarras macias, o feitiço do luar havaiano.
Onda que leva o barco e a espuma;
Onda que espelha a estrela e a lua;
Onda que traz a brisa e o peixe;
Responde agora, ou nunca:
— onde está minha sereia?
— o amor do meu amor,
— onde está? areia?
Naquela noite, Brigitte um tanto romântica, pensava em
algumas velhas ternuras ao estacionar seu automóvel junto
aos barcos de pesca, na praia de Santa Mônica.
Toda mulher gosta de emocionar-se, deixar-se envolver
pelo charme de um momento. Poucos são os homens que
procuram entender esta verdade eterna, pondo de lado seus
pequeninos egoísmos, suas vaidades pessoais, para ir tentar
acender, na alma da namorada, a chama de um prazer por
ela apenas desejado.
John Pearson, aliás, Mister Fantasma, velho amigo de
Brigitte, seu companheiro de aventuras passadas, conhecia
perfeitamente o mistério dessa arte: a arte de fazer uma
linda mulher feliz.
Mas não se demorou, nossa jovem repórter, nessas
conjecturas líricas. Antes se fez repetir, na memória, a frase
que a levara ali:
“Vá hoje, e vá só.”
À direita, realmente, havia um bosque de pinheiros,
muralha escura contrastando com o céu claro. Do outro
lado, o mar e alguns iates iluminados.
“Bem, minha cara Brigitte Montfort, agora é ir em
frente!” — pensou ela, de si para si.
Fechado o carro, dependurou a chave num dos pedaços
de madeira que serviam de molhe às pequenas embarcações
pesqueiras e caminhou até o bosque de pinheiros. Na mão
direita, que mantinha entre as dobras do vestido esportivo,
segurava a pistola. Se qualquer surpresa surgisse, estaria
preparada, pelo menos, para dar o primeiro tiro.
Andara pouco menos de duzentos metros e já se
encontrava a um passo das árvores, quando de entre os
barcos mais próximos viu sair uma figura totalmente negra.
Sem se amedrontar, continuou em passo firme, parando
somente junto ao tronco do pinheiro mais próximo, entre os
arbustos. Nem acabara de voltar-se, quando o homem
estacou a dois passos dela, olhos fixos em seu rosto. Era um
belo exemplar de negro, com olhos vivos destacados na face
sombria. Silencioso, ele a estudava.
Também sem nada dizer, e a estudá-lo, Brigitte
recostou-se no tronco do pinheiro, conservando oculta a
arma. Podia ser aquele que a fizera vir ali. Podia ser
também daquela classe de homens que costumam molestar
mulheres. Negros ou brancos, amarelos ou vermelhos, não
há distinção entre os aproveitadores.
Por seu lado, o homem também parecia perguntar-se que
classe de mulher era ela. Mas afinal deu uns passos para a
esquerda, encostando-se também num tronco, e resolveu
falar:
— Senhorita Montfort? — perguntou, com voz grave.
— Precisamente — respondeu Brigitte, ainda cheia de
medo.
— Obrigado por ter vindo — disse o negro — E
desculpe o tom que usei no bilhete.
— Como soube meu nome? — inquiriu ela. — E como
soube que eu estava na agencia de telex?
Ele encolheu os ombros, depois falou:
— A senhorita esteve rondando Watts District. Venho
seguindo seus passos desde o meio-dia de hoje. E gostaria
de falar-lhe sobre... certo ruivo chamado Galloway, Lyn
Galloway. Disseram-me que se interessa por esse homem.
— Sou jornalista — respondeu Brigitte, numa atitude
indiferente. — Soube que Galloway, meu amigo, estivera
em Watts District na semana passada. E como tenho que
informar meu jornal do que se passa ali, pensei que meu
amigo Lyn poderia fornecer-me detalhes. É um ótimo
descobridor de coisas, esse Galloway, e nunca se negou a
auxiliar-me. Sabe o senhor onde poderei encontrá-lo?
O negro voltou a encolher os ombros.
— Não, não sei, senhorita. Mas posso dizer com certeza
que seu amigo Lyn andou rondando o iate “Sol Ardente”,
em Santa Catalina.
— E a quem pertence o iate?
O homem fez um sinal de desconhecimento.
Brigitte, no silencio que se seguiu, perguntou-se com
que tipo de homem estava tratando. Nada, em sua figura
totalmente vestida de negro, em que apenas o branco dos
vivos olhos se destacava, fazia supor que fosse perigoso.
Dava a impressão, antes, de um pacifico esportista, pela
calma e pela musculatura.
— Quer dizer que Galloway esteve na ilha de Santa
Catalina, então? — considerou ela, olhando para o mar.
— Foi o que disse — confirmou o negro.
— E... quem é o senhor?
— Um amigo, senhorita Montfort. Conforme-se com
isso. Preocupou-se em não ser seguida?
Brigitte fez que sim.
— Muito bem. Adeus — disse ele, voltando-se para
deixar o local.
Brigitte ergueu a direita, resoluta.
— Um momento, senhor! Vai dizer-me...
Foi subitamente interrompida por um ruído bem
conhecido: o de uma arma provida de silenciador, detonada
atrás do arbusto, à direita ante seus olhos atônitos, o negro
dobrou-se e, a um segundo disparo, audível apenas graças
ao quase absoluto silêncio ambiente, seu corpo atirou-se
para trás, caindo de braços abertos e logo rolando em
contorções de dor.
Por um instante, Brigitte permaneceu imobilizada,
estupefata, incerta. Mas logo compreendeu o perigo. O
negro encolhia-se, apertando com os braços o abdômen, e
novo projétil fazia voar um punhado de areia, agora a seu
lado.
Brigitte, desta vez, percebeu o movimento do arbusto, à
direita, e ocultou-se imediatamente, atrás do tronco no qual
estivera recostada. Foi sua salvação, pois uma bala passou
silvando junto de sua testa, resvalando no tronco. Era bom
atirador, o atacante! Aquele tiro na areia, por que errara?
Um clarão iluminou a cena. Sem fazer pontaria nem
olhar, Brigitte atirara para o lugar de onde partiam as balas.
Novamente uma bala silvou, quase atingindo o braço
que ela estendera para atirar.
Não podia ficar ali, onde o atacante sabia que estava.
Deslizou, então, para o chão, arrastando-se até outro lugar,
aproximando-se do negro, cujos movimentos e gemidos se
tornavam débeis.
Terrível silêncio dominava, agora. A linda repórter do
“Morning News” não perdia de vista o campo adversário,
onde nada se movia. Lentamente avançava até o pequeno
arbusto junto ao qual já se imobilizava, como que
enovelado em si mesmo, o robusto e simpático negro que a
chamara ali.
Quando alcançava com a mão a testa do ferido, ouviu
passos de alguém que deveria estar correndo entre os
pinheiros, nas sombras, a cem metros dali. Momentos
depois um carro arrancava, às escuras, dentro do bosque.
Brigitte, para certificar-se de que era o atacante quem
fugia, procurou na areia e encontrou um ramo seco. Atirou-
o além, provocando um ruído suficientemente perceptível a
qualquer pessoa. Não houve, entretanto, novos disparos.
Pôs-se de joelhos, então, e ergueu a cabeça do ferido.
Sentiu, com os dedos em seu pescoço, a pulsação do
sangue: estava ainda vivo.
Enquanto depositava ao lado a pistola, viu-o abrir os
olhos, fixando-a, com angústia.
O negro tinha dificuldades em respirar, nessa posição,
com a cabeça sobre as pernas de Brigitte. Fez um esforço,
voltando a dobrar o corpo, mas deixando a cabeça no
mesmo lugar.
Brigitte procurou entender esse movimento: ele se
apoiava sobre o lado direito, porque seu peito, à esquerda,
estava empapado de sangue. Aquela posição talvez lhe
minorasse a dor, fazendo-o também perder menos sangue.
Com a ponta da saia, Brigitte começou a limpar a areia
do seu rosto contraído.
— Está precisando de um médico, amigo — disse. — E
como vou fazer? Preciso deixá-lo aqui, para ir buscar
socorro.
Os lábios do homem se moveram; os olhos apareciam
desorbitados pela dor:
— Dia... Diamond — conseguiu murmurar, entre
resfôlegos estertorados.
Brigitte inclinou-se mais, para ouvi-lo.
— Que disse?
— Diamond — repetiu ele, sílaba a sílaba. — Irmão..
— Onde poderei encontrá-lo? — perguntou Brigitte,
aflita com tamanho sofrimento no rosto dele.
A cabeça negra voltou a pôr-se de lado, posição em que
a respiração parecia tornar-se mais fácil para ele.
Brigitte repetiu a pergunta, bem junto do ouvido:
— O irmão Diamond, onde posso encontrá-lo?
— Jag... Jagger Lane... oitenta.., e dois... Los...
— Los Angeles, não é? — falou ela. — E Você? Como
se chama? Terei de dize-lo a Diamond!
— Dowen... Lemuel... diga Diamond. — murmurou o
ferido, quase exangue. — Médico... não será... preciso...
Brigitte ergueu a cabeça:
— Está bem, Lemuel
Ao erguer a cabeça do homem, para depositá-la no chão,
sobre um montículo de areia, sentiu-a pender, inerte.
Tateou-lhe o pescoço musculoso e não mais sentiu as
pulsações do coração. Estava morto!
Brigitte mordeu os lábios. Sentiu-se quase responsável
por aquela tragédia. Quem quer que fosse ele, Lemuel
Dowen viera até ali para lhe dar uma pista sobre Lyn
Galloway. Alguém muito importante deveria estar
interessado na manutenção do segredo. Se não, por que o
ataque? Mais, ainda, por que chamá-la a um lugar ermo,
quando naquela mesma tarde o homem podia tê-la
informado de tantos modos: por telefone, bilhete,
telegrama... Que o teria feito preferir a segurança de um
lugar que julgara deserto?
“Bem, o fato é que tenho agora um cadáver e um
endereço!” — pensou Brigitte. — “De qualquer maneira,
não poderei sair por aí levando o pobre morto de bagagem.
Alguém terá de saber disso e desincumbir-se dele: Diamond
Dowen, Jagger Lane, número oitenta e dois”.
Pondo-se de pé, agarrou os pulsos do negro, arrastando-
o com dificuldade, para as sombras mais espessas do
pinheiral. Ajeitou-o sob arbustos e voltou, recolhendo a
pistola.
Em um minuto, sentava-se ao volante do carro que
alugara. Tinha de descansar um pouco. O musculoso corpo
do homem pesava muito, e tivera de empregar todas as
forças de seus braços femininos para ocultá-lo.
Entre dois barcos ali amarrados, a repórter distinguia, ao
longe, as luzes da ilha de Santa Catalina.
“Lá estivera Lyn Galloway — pensou — e o nome “Sol
Ardente”, de certo iate, seria a pista para saber de algo
sobre o agente desaparecido. O ataque, de minutos atrás,
que resultara na morte do pobre negro, deveria estar
relacionado com o caso. Um assassino escalado para
silenciar o informante e, quem sabe, a própria repórter
bisbilhoteira. Muitas conjecturas...
Mas, pairando acima de tudo, uma dúvida: como é que,
estando completamente à mercê da arma assassina, não fora
ela mesma atingida? Os projéteis endereçados a Lemuel
Dowen não haviam falhado! E um atirador daquele calibre
não erraria, principalmente tendo ela permanecido como
perfeito alvo durante tantos minutos.
Teria havido o propósito de apenas imobilizá-la ou
assustá-la? Os pontos vitais do corpo de Lemuel
certeiramente atingidos demonstravam que o atirador não
podia ter falhado contra Brigitte.
O Thunderbird azul movimentou-se. Naquele momento
só havia uma coisa a fazer: procurar o tal Diamond, o irmão
do pobre negro recém assassinado.
Brigitte tinha o endereço e a coragem. Faltava-lhe apenas a
frase. Como anunciaria a morte de um irmão?
CAPÍTULO TERCEIRO Da calmaria ao momento dramático.
Quando é preciso agir como fera.
Das mãos e dos pés inteligentes e belicosos.
Chamas, suor e lágrimas.
Um corpo espera no bosque.
O apartamento, bem modesto, constava de sala, quarto e
banheiro. Num cubículo de metro e meio, que somente o
próprio locatário podia denominar “cozinha”, havia um
pequeno fogão, uma geladeira menor ainda, e alguns velhos
utensílios espalhados.
A sala, que ostentava um cortinado de terceira categoria,
a ocultar um sofá-cama, tinha livros por todos os lados.
Sobre a pequena mesa, em duas estantes, e ainda num
armário aberto, livros e mais livros. Pequenos, grandes,
delgados e folhudos. E dos mais variados assuntos. Os
livros dominavam totalmente o cenário. E, malgrado a falta
de cuidado, o ambiente era razoavelmente limpo.
É estranho como, às vezes, um pequeno apartamento dá
idéia de sujeira, só porque é exíguo e empilhado.
Junto da ampla janela que dava para os fundos do
edifício, Diamond Dowen estudava, apanhando de quando
em vez algum dos volumes em torno.
Sentado, o jovem negro parecia vulgar e talvez um
pouco frágil. Mas quando se erguia, para buscar algum
objeto de que necessitava, revelava-se um Hércules de
ébano. Sua figura nada ficava a dever à do irmão Lemuel, o
monte de músculos que naquele momento jazia num bosque
de Santa Mônica. Menos volumoso, porém mais alto e
afilado, Diamond tinha o rosto distinto de um príncipe
etíope.
Naquela noite, por volta das nove e meia, Watts District
transformara-se numa praça de guerra: gritos, disparos,
sirenas de carros policiais, alto-falantes berrando ordens,
bombeiros em ação... o bairro sofria o tremendo impacto do
“riot” entre enfurecidos manifestantes negros e elementos
da Guarda Nacional, da Policia e da Brigada 160 de
Infantaria. Improvisados franco-atiradores, lançadores de
“coquetéis molotov”, provocadores de baderna, grupos
amotinados lutavam contra os homens da ordem. As
bombas lacrimogêneas desfaziam motins num setor mas
provocavam outros mais adiante. Mortos e feridos não eram
já novidade nas ruas entulhadas, incendiadas.
A menos de um quarteirão de sua morada, a rebelião
tinha curso, a morte rondava... e Diamond Dowen, embora
nervoso com tudo aquilo, permanecia quieto, estudando,
anotando, preparando-se para a mesma luta que seus irmãos
de cor travavam agora. Mas com uma diferença: não iria ele
bradar por seus direitos, pelos direitos de todos, com uma
tocha, uma pistola ou um “coquetel molotov” nas mãos.
Iria, sim, lutar, com o poder das idéias, com a palavra de
paz que aprendera dos seus verdadeiros lideres, defensores
de sua gente muitas vezes desprezada pelos compatriotas.
Iria lutar com a persuasão, com a inteligência, com a
sabedoria, pois somente assim a vitória seria construtiva e
duradoura. Só despertando a compreensão nas mentes dos
antintegracionistas, dos que, sem razão além de um estúpida
motivação de cor, atiraram pólvora nas já sobre-excitadas
massas, somente assim veriam chegar o dia em que negros e
brancos poderiam viver lado a lado, em paz e prosperidade.
Diamond Dowen dava o máximo de si, nos estudos,
fazendo ouvidos surdos aos irmãos de cor que o atiçavam às
arruaças.
Seria advogado! Era o modo certo de lutar, sem ter que
sair pelas ruas a quebrar vidros, incendiar armazéns ou
atirar pedras nos homens da lei. Naquele caminho — o
caminho que sua mente esclarecida encontrara como o
melhor — ele, Diamond Dowen, seguiria até o fim!
Deixara de ler, agora, e ouvia, com desgosto, os gritos e
ruídos de mais além, ecos das refregas que tomavam a noite
enluarada. E então escutou chamarem à porta. Seria por
certo mais um que chegava para convida-lo à baderna, para
roubar-lhe a paz necessária ao estudo.
De má vontade, caminhou até a porta, um lápis na mão
esquerda. Colocou o lápis atrás da orelha, hesitou, antes de
levar a mão ao trinco, pensando se não lhe convinha fingir-
se ausente. Mas a chamada — um leve toque, repetido, na
madeira — voltou a alertá-lo.
Diamond resolveu abrir, afinal, e pensou estar sonhando.
A visitante, preocupada, imóvel e de olhos fixos nos seus,
era a mulher mais bonita que já tinha visto. Cabelos negros
cobrindo os ombros, olhos azuis de céu, profundos e
faiscantes, boca entreaberta, vermelha, corpo escultural que
se podia adivinhar sob o vestido estampado, justo.
— Você é Diamond Dowen? — perguntou ela.
— Sim, sou eu — respondeu Diamond. — Que...?
— Preciso falar-lhe — cortou Brigitte, entrando sem
mais delongas.
Diamond olhou inquieto para a escada de madeira.
Fechou a porta, lentamente e voltou-se para ela, que se
plantara no centro da sala-dormitório:
— Creio que está sendo imprudente, senhora — disse.
Brigitte não lhe fez caso. Sabia quanto lhe custara passar
despercebida pelos grupos de manifestantes, para chegar ali:
— O assunto que me traz vale a imprudência, senhor
Dowen. E não vou ficar aqui por muito tempo.
— De que se trata, senhora? — perguntou Diamond,
subitamente estático e interessado.
Brigitte foi direta. Aquele tipo não era dos que levam
choques com as más notícias:
— Mataram seu irmão — disse.
Diamond Dowen, sem camisa, era um Hércules soberbo.
Brigitte pensou que talvez seus ombros se arriassem um
pouco, ao impacto da noticia. Mas não: como se não a
tivesse ouvido, ele caminhou com passadas largas, alcançou
um maço de cigarros numa das estantes e acendeu um deles.
Apenas uma ruga apareceu em sua testa bem formada e lisa,
enquanto a olhava em silêncio. Tragou a fumaça com
serenidade indo sentar-se nos dois degraus que conduziam à
saída:
— Suponho que não foi a senhora quem o matou —
disse lentamente.
— Claro que não! O próprio Lemuel me disse seu nome
e endereço.
— Sei que se trata de Lemuel — cortou Diamond. —
Não tenho outro irmão. Quem o matou? E que tem a
senhora a ver com isso?
— Não sei quem o matou, senhor Dowen — falou ela,
sustentando aquele olhar penetrante. — Quanto à minha
participação nisso, aconteceu que me encarreguei de ouvir
suas últimas palavras e de esconder seu cadáver. Sou
jornalista, e Lemuel Dowen tinha informações a dar-me.
Tivemos um encontro em Santa Mônica. O cadáver está
agora numa praia. Ele mesmo pediu-me que o avisasse...
— Iremos buscá-lo — disse subitamente Diamond,
erguendo-se num salto.
— Se quiser, tenho um carro, estacionado além de Watts
District.
— Perfeitamente, perfeitamente. Espero que não
tenhamos problema em sair daqui, senhora...
— Senhorita — corrigiu ela. — Senhorita Brigitte
Montfort.
Passou a seu lado, dirigindo-se ao cortinado que
ocultava o sofá-cama. Apanhou uma camisa, vestiu-a, e
então sua semelhança com o irmão mostrou-se completa:
vestido de negro, ele era quase a mesma figura.
— Posso saber quais foram as informações que Lemuel
lhe deu? — indagou ele.
— Falou-me sobre um repórter pelo qual me interesso,
O repórter é meu amigo... ou era... e seu irmão sabia algo
sobre ele. Mencionou um iate, o “Sol Ardente”, pelo qual
parece que meu amigo se interessou.
Diamond foi apanhar cigarros, guardando-os no bolso e
voltando a encará-la.
— E que impressão teve do caso? Pareceu-lhe o motivo
relacionado com a informação de Lemuel, ou talvez algo
pessoal entre meu irmão e o assassino?
— Tudo foi muito rápido. Pode ser que também
quisessem matar-me. Mas eu estava armada, e não seria
fácil. Em todo caso, não estou certa...
Ele aproximou-se mais, sempre de olhos fixos,
perscrutadores:
— Que vai fazer, senhorita Montfort?
Brigitte, com toda a naturalidade, abriu os braços, numa
atitude de desconsolo:
— Que iria fazer eu? Não sei; e depois a morte de seu
irmão me abalou muito.
Era uma bela mentira. Tinha certeza de que o motivo da
morte de Lemuel Dowen se relacionava com o
desaparecimento de Galloway. Alguém silenciara Lemuel
antes que falasse demasiado. Devia ter suspeitado dele e
preparado a emboscada, quem quer que fosse o assassino. E
depois de dois dias de busca infrutífera, Brigitte não iria
deixar evaporar-se a única pista que obtivera sobre
Galloway — o que, entretanto, não revelaria a esse
gigantesco e inteligente Diamond Dowen.
— Nem mesmo sabe se fará uma visita ao “Sol
Ardente”, senhorita? — indagou Diamond, com um leve
tom de desconfiança na voz sonora e calma.
— É possível que sim — respondeu Brigitte, sem mover
um músculo da face.
Estavam os dois imóveis, em silencio. Os ruídos da rua,
mais adiante, haviam abafado outros: os de alguns homens
que subiam as escadas do edifício. E agora, fortes pancadas
faziam estremecer a porta ao mesmo tempo em que várias
vozes gritavam, no patamar:
— Diamond! Sabemos que há uma mulher branca aí!
Abra!
Calmamente, o colosso aproximou-se da porta, sem abri-
la. Em seu rosto surgia a ira e ele demorou um pouco a
responder:
— Vão embora daqui! É assunto meu!
— Abra, Diamond!
— Não me obriguem a lutar! Já os avisei para se
afastarem! — respondeu Diamond.
Ninguém mais ergueu a voz, do lado de fora, em vez
disso, principiaram a golpear a porta com violência.
Queriam arrombá-la, e logo o conseguiriam se
continuassem a bater daquela forma.
Diamond olhou para Brigitte. Em seu rosto apareceu um
irônico sorriso, ao notar a pistola que ela empunhava:
— Guarde isso, senhorita Montfort — disse,
aproximando-se. — De nada lhe servirá. Precisamos sair
daqui...
— Como poderemos? — balbuciou Brigitte, trêmula.
— Não pela porta, naturalmente — e ele já a tomava
pelo braço, levando-a até a cozinha. — Vamos, depressa!
— e apontava uma janela estreita.
Os de fora arremetiam, agora com maior ímpeto, já a
ponto de despedaçar a madeira.
Quando Brigitte saltava sobre a pequena pia, para
alcançar a janela, a porta de entrada caiu. Cinco negros, às
cambalhotas, apareceram, olhando para todo lado. Viram
imediatamente a jovem repórter que tentava sair.
— Lá está ela! Vamos! — gritou um deles.
Três deram um passo à frente, estacando de imediato.
Plantado solidamente no vão da porta, protegendo a
retirada de Brigitte, Diamond fixava em cada um deles seu
olhar de fogo.
— Não me façam brigar! — grunhiu ele. — Não quero
nada com vocês. Vão embora daqui!
Brigitte parou também, na janela. A pistola enquadrava
o grupo invasor:
— Tome a arma, Diamond — disse.
O homem, no entanto, nem se voltou. Imóvel, tomando
toda a porta, suas grandes mãos pareciam garras. Os pés
deslizavam lentamente até alcançarem o apoio dos portais.
— Saiam daqui! — vociferou num tom estranhamente
surdo e ameaçador, como o de quem estava convencido de
um poder superior.
— Não seja bobo, Diamond. Só queremos a moça —
falou o que parecia comandar. — Você está sendo egoísta e
prepotente, não acha Dy?
Falando assim, o negro fez balançar ante os olhos de
Diamond uma navalha aberta. E, ligeiro, imitando um bote
de serpente, quase alcançou o ventre do protetor de Brigitte.
Nem terminava de executar o golpe mal sucedido, e a
direita de Diamond já agarrava seu pulso fazendo-o
rodopiar e estatelar-se contra a porta quebrada.
Os outros, então, compreenderam que Diamond não
brincava. E Diamond sabia que, ao entenderem isso,
atacariam em massa. Por isso não perdeu um segundo:
como potentes molas, suas pernas se flexionaram. Era o
momento em que os quatro atacantes principiavam o
avanço, com navalhas e cassetetes preparados.
As mãos de Diamond apenas tocaram o assoalho, e seus
pés, separadamente, foram atingir os dois antagonistas mais
próximos, um em seguida ao outro, como possantes
martelos. Bateram em cheio nos rostos irados, fazendo com
que os dois voltassem atrás.
Mas o movimento total e demolidor de Diamond não
terminara. Tocando o chão, enquanto os pés derrubavam os
dois, as mãos impulsionavam o corpo para o alto e o
homem, como se fosse apenas músculos e correção de
movimentos, ficava na vertical, entre os negros restantes.
Ficou nessa posição por um segundo apenas: seus longos
braços, estirados, sustentaram novamente o peso do corpo.
Como que sentado no ar, suas pernas giravam, fazendo cair
de bruços os últimos rivais.
Brigitte, imobilizada pela admiração, permanecia na
janela, única espectadora da incrível cena. Jamais poderia
esquecer a precisão, a potencia. a elasticidade, a
inacreditável façanha de Diamond Dowen, aquele
magnífico lutador que, no entanto, vivia cercado de livros.
Mas ali estava; seus olhos viam bem, os olhos azuis
desmesuradamente abertos, o cabelo negro esvoaçando à
brisa que os incêndios de ali perto faziam cálida, Brigitte
viu Diamond parar, encostado na parede oposta, vigiando os
quatro que se erguiam do assoalho.
O primeiro que tombara, entretanto, estava fora do
campo visual do gigante e Brigitte observou-o a levantar-se
para atacar de novo com a navalha.
A repórter-agente acordou de súbito, espantando-se
consigo mesma pela rapidez com que disparou a pistola.
Fora um gesto instintivo, e só ao ver o homem cair se deu
conta de que entrara em ação.
— Corra! — berrou ele, desviando-se do que tombava,
olhando para a escada exterior. — Vem vindo outros!
Ela, porém, tinha mais a fazer. Dois outros preparavam-
se para novo ataque. De costas para ela, cegos de ira,
pretendiam avançar para Diamond. E em suas mãos havia,
ameaçadoras, navalhas e barras de ferro.
Brigitte não quis matá-los. Preferiu atingir os braços que
empunhavam as armas.
Os dois estampidos fizeram abaixarem-se outra vez os
que restavam no solo, enquanto os atacantes largavam as
armas.
Diamond, no mesmo instante, estendia o longo braço,
agarrava a porta desmantelada, fazia-a bater e, com o
mesmo impulso, passava entre os dois feridos, derrubando-
os com estrépito e pulando em direção à cozinha. Já perto
da janela, apanhou como se fossem brinquedos o fogão e a
pequena geladeira, obstruindo com eles a porta de
comunicação.
Voltou-se para ela:
— Vá, sua boba! — berrou.
Ela estava aturdida com a rapidez de tudo aquilo, mas
acordou ao sentir o alerta na voz de Diamond. Foi
empurrada, mal olhou para onde ia. De relance, apenas, viu
surgir na porta de entrada outro punhado de homens
apressados e gritalhões. Brigitte encontrou-se numa
pequeníssima plataforma de ferro, de onde subia uma
estreita escada de incêndio, completamente vertical. Antes
que pusesse o pé no primeiro degrau, sentiu nos quadris as
mãos de Diamond, empurrando-a para cima. Cinco metros
abaixo, da rua, um grupo de negros apontava para ela,
gritando. Acima, um andar apenas, e depois o terraço.
Forte e lépido, Diamond ia empurrando-a para cima,
enquanto murmurava censuras sobre a imprudência da
repórter. Alcançaram juntos o terraço, no instante em que a
escada era iluminada por tochas trazidas pelo novo grupo de
atacantes, já subindo também.
— Corra! — gritou Diamond. — Salte!
Caminhou, empurrada por ele, até a borda do raso
terraço. Ali, estacou, paralisada. Havia um espaço vazio,
negro, entre os dois edifícios. E Diamond lhe gritava que
saltasse. Voltou-se para protestar, quando viu surgir no
terraço, já deixando a escada, o primeiro dos perseguidores.
Disparou imediatamente. O homem rodopiou, caindo sobre
os que subiam.
— Salte! — berrava Diamond.
Brigitte pôs-se de pé na borda do terraço. Se era a
véspera da morte, pelo menos tentaria salvar-se naquele
salto. O companheiro tinha razão. Ficar ali significava, para
ela, cair nas mãos implacáveis dos perseguidores
exasperados. Não perdoariam quem ferira quatro deles, e
muito menos sendo ela uma branca.
Ao imprimir movimento ao corpo, sentiu a grande mão
do companheiro de fuga, dando-lhe mais impulso.
Depois do vôo de dois metros, quando se assentava,
sentindo dores na coxa sobre a qual caíra, viu a silhueta de
Diamond, estranha ave recortada contra o céu e logo
pousando a seu lado...
— Continue! — ordenou ele, voltando-se para o terraço
de onde viera. — E não use mais essa arma! Só como
último recurso, ouviu?!
Um perseguidor preparava-se para saltar também.
Diamond o esperava, enquanto Brigitte corria pelo telhado.
Já no lado contrário, voltou-se e viu Diamond golpear,
fazendo o perseguidor urrar ao receber no baixo ventre a
força dos seus invencíveis pés. O corpo do tarado rolou até
chocar-se com o parapeito do telhado.
O elástico negro, Diamond, entretanto, não teve o tempo
necessário para alcançá-la, pois novamente se viu frente a
frente com outro adversário, que saltara, urrando
xingamentos e brandindo uma barra de ferro:
— Vai pagar, Dowen!...
Mas Diamond já apoiara a direita sobre as calhas, seu
corpo girava a meio metro do telhado, e os pés eram como
tremendos martelos ferindo os joelhos do adversário, que
rolou, indo juntar-se ao primeiro, na borda alta da coberta.
Brigitte parara no outro lado, mais uma vez fascinada
pela proeza de Diamond Dowen. Este a alcançou logo,
tomou-lhe a mão sem dizer nada, e quase a arrastou para
longe. Saltando de um teto para outro naquele amontoado
de sobrados antigos, chegaram finalmente ao último, com
frente para uma rua quieta.
Na altura do primeiro piso, havia uma estreita marquise.
Ele dependurou-se, deixando-se cair sobre a plataforma.
— Venha, senhorita! — a voz tinha agora um pouco da
calma de antes.
Brigitte titubeou, mas não viu alternativa. Resvalou,
dependurando-se também, e sentiu seus pés seguros pelas
fortes mãos de Diamond, que sustinham facilmente os
cinqüenta e cinco quilos de seu corpo escultural.
Eram quatro metros, agora, para chegar à calçada. E na
esquina próxima, algumas pessoas surgiram:
— Espere que eu chegue lá — disse ele.
Tornou a balançar-se, agarrado à marquise, e deixou-se
cair, Afastou-se um pouco, já no chão:
— Faça como eu! Aí vêm eles! — gritou, inquieto, ao
vê-la hesitar.
Brigitte mordeu os lábios, mas obedeceu prontamente.
Ficou suspensa no ar, por um momento, e despencou. Não
sentiu, entretanto, o choque; o jovem Dowen a tomava nos
braços, com um balanceio que lhe amenizava a queda, e a
depositava brandamente no chão.
— Como pode ser?!... — começou ela.
— Não pare! — cortou ele, empurrando-a para o lado
contrário ao de onde vinham os incansáveis perseguidores.
— Onde está seu carro?
— Fora do bairro, naquela direção — ela apontou para o
norte.
Seguiram por um beco, atravessaram outra rua e, mais
adiante, Diamond soltou-lhe a mão. Paralisado, olhava o
edifício onde morava, bem visível de onde estavam.
— Meus livros! — sua voz era desesperada.
O edifício inteiro ardia. As chamas, tão comuns naqueles
dias de refrega em Watts District, elevavam-se vermelhas,
lançando fagulhas para o céu de lua nova.
— Vamos! — gritou Brigitte, tentando movê-lo dali.
— Meus livros! — tornou Diamond, e era como se as
palavras fossem lágrimas.
— Vão pegar-nos!! — tornou ela, sacudindo-o.
Ele despertou, olhou para a moça:
— Lemuel?! — gritou.
— Sim, Lemuel! — falou Brigitte. — Lemuel é até mais
importante do que a Biblioteca do Congresso, Diamond!
Vamos!
Reiniciaram a corrida, e o jovem negro parecia novamente
lúcido, invencível, levando-a pelos lugares mais seguros,
em direção do norte. Sempre habitara aquele bairro, e
conhecia-o tão bem quanto os caminhos de sua infância.
CAPITULO QUARTO Antes do encontro mais triste, conversa agradável sobre a velha arte do
“Angolano”.
O momento da verdade, quando as palavras são inúteis.
Um beijo no escuro, a prova que faltava.
Vitória de um príncipe etíope.
O Thunderbird azul distanciava-se de Los Angeles,
rumando para o mar; para Santa Mônica precisamente. Seus
dois ocupantes, uma linda jovem de cabelos desfeitos e um
gigante negro, fumavam quietamente. Mergulhados em si
mesmos; preocupação e desgosto marcavam os traços de
seus rostos.
Depois de algum tempo, Brigitte, que dirigia, quebrou o
silencio:
— Ainda não posso crer no que vi, amigo — disse.
— Que?
— Refiro-me à luta que teve. Uma verdadeira façanha!
— explicou ela.
Diamond Dowen suspirou, deixando de pensar por um
momento no irmão que iria ver feito cadáver, dali a pouco.
Deixando de imaginar vinganças, recostou-se no assento,
ergueu a cabeça para receber no rosto o vento, sobre o pára-
brisa do conversível.
— Aqueles tratantes não conhecem a capoeira — disse.
— Capoeira? — Brigitte não entendeu.
— Um modo de lutar que não tem muitos adeptos neste
país — continuou ele.
— Com os pés?
— Sim, com os pés. Um amigo brasileiro, marinheiro
negro que ficou por estes lados depois de um naufrágio, me
ensinou a lutar assim, quando tinha quatorze anos. —
Sorriu. — Era um sujeito interessante, o “Angolano”, como
nós, Lemuel e eu, o chamávamos. Depois de muitos anos de
marinhagem, o naufrágio de seu barco fez com que tivesse
fobia do mar. Nunca mais entrou sequer num bote! Morreu
há dois anos, em Watts District, sem ter senão eu a seu lado.
E aqueles estúpidos imbecis acabam de incendiar, de
destruir o que o “Angolano” me deixou: minha morada!
Não era das melhores, mesmo em Watts District, mas
conservava o calor humano do velho amigo, ao qual eu já
me acostumara. Era o resultado de anos de trabalho tanto de
Lemuel quanto de nosso amigo brasileiro.
Brigitte percebeu que tinha de afastar aqueles
pensamentos da mente de Diamond. O rosto do negro se
crispava, ã medida que falava. E ela estava realmente
interessada no modo de brigar usado pelo companheiro, a
“capoeira”. Por isso insistiu:
— Não quer falar sobre este... “esporte”, senhor Dowen?
— Pode chamar-me Diamond, senhorita Mont...
— Brigitte... Diamond — sorriu ela.
— Obrigado. E perdoe-me a falta de cortesia de há
pouco.
— Nada há que perdoar, Diamond.
Fizeram silencio, e o sorriso de Brigitte apagou do rosto
de Dowen a amargura: ele sorria também, embora um tanto
melancólico.
— Então, não quer falar-me de sua proeza?
— Bem, se quer saber... — suspirou fundo, jogou fora o
cigarro. — A modalidade de luta que uso vem de Angola, e
era praticada há duzentos anos pelo negros bantus. Na
atualidade, é praticada por muitos brasileiros, especialmente
no Leste e Nordeste, e ensinada também a grande parte dos
Fuzileiros Navais da Armada brasileira. Estes vêm a ser o
que nós denominamos “marines”, aqui. Meu amigo
“Angolano” era na verdade um baiano de Salvador. Para
ele, a luta não tinha segredos. Venceu os melhores
praticantes de jiu-jitsu, em Watts District.
— O que?! Ora, Diamond!... — duvidou Brigitte.
— Basta perguntar no bairro — protestou ele.
— É tão eficiente assim?! Vi o que fez, no apartamento,
mas...
— Vou contar-lhe, Brigitte: cinqüenta anos atrás, um
japonês andava desafiando todo mundo, no Rio de Janeiro.
Pusera fora de combate os melhores lutadores, e não havia
mais quem o enfrentasse para ganhar a bolsa oferecida ao
vencedor. Chamava-se Sadao Niaka e era um profissional
da luta-livre e do jiu-jitsu. Pois bem: a notícia chegou aos
ouvidos de um tal Ciríaco Francisco da Silva, simples
trabalhador do pesado, alcunhado de “Macaco Velho”.
Acertado o combate, o tal japonês foi vencido em três
tempos. Com o primeiro “rabo-de-arraia” do “Macaco
Velho”, a luta estava terminada. E o homem não tinha o
apelido por nada: era velho, mesmo. Um velho, todavia, que
se mantinha em forma graças ao trabalho e à prática da
“capoeira”.
— Que é “rabo-de-arraia”?
— Um dos golpes que apliquei para derrubar os
atacantes. Você o viu: atinge-se a cabeça do adversário com
os pés. Tive muita sorte, ainda há pouco, em acertar os dois
ao mesmo tempo. Mas, além desse, há outros quarenta e
tantos golpes: “caída da ladeira”, “martelo”, “rasteira”,
“soltas”, “negaças”... os nomes vão longe. Essa espécie de
luta é como uma... dança pode-se dizer. Tem de haver
ritmo, precisão de movimentos que só com longa prática se
adquire. Quanto aos golpes que a gente usa, tem-se de
resolver no momento da refrega. Essa é a vantagem maior
da “capoeira”. Nunca se sabe o que o adversário irá fazer, e
quando o faz, é num átimo, sem dar tempo à defesa.
Brigitte suspirou, sorrindo:
— Tem de ser — assentiu. — Nunca vi tal sincronização
e celeridade numa luta. O espetáculo foi realmente
impressionante, Diamond.
UMA PROVA
No bosque, perto da praia de Santa Mônica, Diamond
Dowen correu para o lugar que Brigitte apontava, deixando-
a para trás. A moça não sabia se, naquele momento uma
palavra de consolo soaria bem aos ouvidos do
extraordinário negro.
O olhar para a morte é sempre um estranho olhar.
Nenhum prosador, por mais tragédia que emprestasse ao
seu estilo, teria conseguido descrever a expressão de
Diamond, ao deparar com o cadáver do irmão que tanto
amava, do único ser por quem teria dado a vida.
Ali ficou ele, longos momentos, procurando conjecturar
as razões que teriam motivado o assassinato estúpido, até
que sentiu o vulto amigo de Brigitte, vindo ao seu encontro,
suavemente. Diamond ergueu a cabeça, deixando as mãos
pousadas na fronte do irmão morto.
— Baleado pelas costas — murmurou, surdamente. —
Quer repetir o que aconteceu?
— Ele me chamou aqui, para me dar notícias sobre meu
amigo — respondeu Brigitte. — Falou sobre o iate e
procurou afastar-se. Foi então que ouvi o sibilar das balas.
A pessoa que o matou usava silenciador na arma.
— Suponho que esteja dizendo a verdade — disse
Diamond, fixando nela o olhar profundamente turbado.
— E a verdade! — replicou Brigitte. — E o matador
tinha um carro à espera, no bosque. Tomou a direção norte.
Dowen começou a revistar as roupas do irmão
assassinado, e foi depositando na areia os objetos
encontrados; canivete, carteira, documentos, revólver e, por
último um maço de notas. Ficou olhando para o dinheiro
como se não compreendesse. E levantou-se depois:
— Quinhentos dólares! — disse. — Onde teria arranjado
tanto?
— Algum trabalho rendoso, talvez — considerou
Brigitte.
— Por certo, esse trabalho foi o que lhe custou a vida.
Ele, que nunca me deixou trabalhar, para que estudasse!
A voz do negro era baixa, profunda e rouca. A mágoa o
fazia pender a cabeça, olhos fixos no corpo inanimado do
irmão.
— Que pensa fazer? — perguntou ela. — Teríamos de
levar o corpo e...
— Pode emprestar-me o carro?
— A vontade, Diamond. Vou levá-lo para onde quiser.
— Não — replicou. — Irei sozinho. Sei aonde deixá-lo
até que lhe demos sepultura.
— E depois?
— Depois... creio que irei até Santa Catalina, ao “Sol
Ardente”. Preciso saber o motivo dessa morte.
Brigitte pensou depressa. Não lhe convinha que
Diamond Dowen entrasse naquele assunto. Poderia estragar
a única pista conseguida, até ali, sobre Lyn Galloway. Mas
não seria fácil tirar-lhe a idéia.
— Também tenho que ir até lá, Diamond — falou. — Se
você vai procurar barulho, este é mais meu do que seu.
— Não é assunto para uma jornalista — protestou ele.
— Mas para uma contra-espiã, sim — replicou Brigitte
O gigante de ébano, que se dobrava para erguer o
cadáver, estacou, voltando-se para ela:
— O que disse?
— Estou trabalhando para o serviço de espionagem e
contra-espionagem, Diamond.
Estupefato, ele recuou:
— Escute, minha cara
— Estou falando sério! — cortou Brigitte. — Esse meu
amigo, Lin Galloway, era um agente do FBI. E desapareceu
por completo. Veio aqui para investigar a causa de tanta
balbúrdia em Watts District. A procedência de certas armas,
as características dos motins, tudo nos leva a crer que haja
aproveitadores estrangeiros.
Diamond fez silencio, pensativo. Olhava para o dinheiro
que encontrara nos bolsos de seu irmão. Depois, ergueu a
cabeça, inquiridor.
— Acha que Lemuel estivesse metido nisso?
— Suspeito de que sim, infelizmente. Alguém pode ter
pago a seu irmão por algum serviço perigoso mas
importante. Uma tal soma não se justifica por menos. E ele
sabia de Lyn Galloway; quis dar-me uma pista apenas,
sendo morto por essa causa. Portanto, os responsáveis pelo
desaparecimento do agente devem ser os mesmos que
mataram Lemuel, não lhe parece evidente?
— Mas, por que não a acertaram, então?!
— Estava armada, meu caro Diamond. Além disso, a
morte de um agente já é uma carga bastante pesada para um
criminoso, seja ele quem for. Não se matam federais sem
mais nem menos.
O gigante caminhou dois passos, indo recostar-se num
tronco, mais perto dela. Mostrava-se desconfiado, ao falar.
— Por que me conta isso? Não suspeita de mim?
— Está disposto a investigar a morte de seu irmão, não
está? Pois bem: nossos caminhos se cruzam em Santa
Catalina.
— Não está brincando comigo?
— Por que?
— Há diferenças, entre nós. São os próprios brancos que
o dizem.
Brigitte fez um gesto de enfado.
— Pensei que fosse inteligente, Diamond Dowen —
disse. — Vejo que o veneno de Watts District o atingiu
também. Se quisesse matá-lo, ou aprontar-lhe uma
armadilha qualquer, já o teria feito. O que disse é apenas a
verdade! Deixe de pensar na cor de sua pele, da mesma
forma que eu não dou importância ao fato de ser branca!
Somos apenas um homem e uma mulher! E temos cérebros.
Ele ainda a encarou por um instante, para depois
estender os braços e atraí-la para si. Apertou-a contra o
peito, procurando seus lábios.
Brigitte não opôs a mínima resistência. Correspondeu ao
beijo e ao abraço, plenamente.
E Diamond estremeceu, afastando-a de si.
Brigitte sustentou aquele olhar afogueado:
— Uma prova, não é? perguntou.
— Sim, uma prova — respondeu ele, e quase sorriu. —
Acredito em você, Brigitte Montfort.
— E não se pergunta se dentro de mim houve algo de
repulsa, ao beijá-lo?
Então, Diamond Dowen sorriu:
— Se houvesse, eu o teria notado, Brigitte.
Ela lhe acariciou a face:
— Muito bem, você sabe reconhecer emoções. Quanto
ao que senti, realmente, creio que não chegou a conhecer.
Mas vou dize-lo: abracei e beijei apenas um homem que
vale a pena. Se assim não fosse, não o teria feito.
— Obrigado... e obrigado também por ter-se arriscado
em Watts District.
— Então, vai ajudar-me? — sorriu Brigitte.
— Em tudo que puder... depois de levar o corpo de meu
irmão para lugar mais apropriado.
E sem mais, tomou os pulsos do cadáver, cujo peso era
superior ao seu, ajeitando-o sobre os ombros.
Brigitte, incrédula por não haver notado qualquer
esforço maior daqueles músculos poderosos, ficou a olhá-lo
boquiaberta:
— A cada minuto tenho mais razões para considerá-lo
o...
— Chit! — fez Diamond. — Lemuel dorme, não vê?
Além do mais, poderia ferir minha modéstia, Brigitte. Quer
trazer o carro para mais perto daqui? Se o levássemos até à
praia aberta, alguém talvez notasse.
— Está bem, Diamond.
Três minutos depois, o rapaz acomodara o cadáver no
automóvel, tomando o volante. A seu lado, Brigitte
pensava, e logo se decidia:
— Iremos hoje mesmo para Santa Catalina, Diamond.
Você irá ao meu hotel apanhar a bagagem. Telefonarei,
avisando a portaria. Depois de deixarmos o corpo...
— ... na casa de uns amigos — revelou ele.
— Sim — continuou Brigitte. — Depois disso, irei
entregar o automóvel. Encontre-me no cais das barcas para
Santa Catalina. Estarei lá.
— E o dinheiro que encontrei com Lemuel?
— São notas novas, não? Guarde-as, que talvez sejam
úteis mais tarde. Dar-lhe-ei o dinheiro que for necessário,
enquanto estiver comigo. Em Santa Catalina, ficaremos em
locais diferentes.
— Começaremos esta noite mesmo a procurar o iate?
— Não, Diamond. Precisamos descansar. É bom a gente
estar em boas condições físicas, quando se mete no campo
inimigo. Na ilha, você deve seguir-me, para saber onde
ficarei. Pode ser que precise a qualquer momento de sua
ajuda.
Antes de entrarem em Los Angeles, Diamond dirigiu o
carro até um bairro afastado, entrando numa viela escura.
Parando em frente a uma casinha clara, bateu e foi
prontamente atendido. Levou o corpo do irmão para dentro
e voltou:
— Daqui a meia hora estarei no embarcadouro, Brigitte.
— Muito bem — assentiu ela. — Não esqueça do que
disse. Além disso, o embarcadouro apenas me entregará a
bagagem. Aja como se fosse um simples serviçal. Todo
cuidado é pouco, de agora em diante. Seu irmão morreu por
não ter-se cuidado suficientemente.
— Compreendo, Brigitte. Farei como diz. Tomarei um
táxi aqui perto e irei ao hotel. Meia hora, está bem?
— Está. Até logo.
Brigitte afastou-se, voltando para as ruas principais. Mas
ao invés de entrar na cidade, rumou a toda pressa para Santa
Mônica. Logo estava novamente na orla da praia, onde
desceu do automóvel e foi ao bosque de pinheiros.
Silenciosamente, buscou o lugar de onde pressentira
partir o carro do assassino de Lemuel. Encontrou uma trilha
estreita, que levava a um pequeno banco de areia, além do
bosque. Ali, o automóvel se detivera. E havia pegadas que
conduziam até um embarcadouro. Por certo o assassino
tivera alguém a esperá-lo, no carro, e depois fugira pelo
mar. As marcas que o veículo deixara seguiam por outro
caminho, voltando à mesma estrada da praia.
Voltando às pressas até onde deixara o automóvel,
Brigitte refez o caminho para Los Angeles.
Já nos arredores da cidade, parou num posto de gasolina,
buscou na bolsa o talão de aluguel do veículo e discou para
o locador.
Dois minutos depois, tudo estava acertado: deixaria o
resto do pagamento no porta-luvas, e o dono mandaria
alguém vir apanhar ali o “Thunderbird” azul.
Agora, outra vez para Santa Mônica, pelo mesmo
caminho, num táxi! E, de lá, até a ilha de Santa Catalina,
onde talvez se esclarecessem vários mistérios.
A VITÓRIA
Eram já duas horas da madrugada, e ainda estava em
vigília, a pensar nos acontecimentos daquele dia, nos
perigos de Watts District e na morte de Lemuel Dowen.
Por volta de meia-noite, Diamond telefonara, avisando-
lhe onde podia ser encontrado: uma pensão, junto à mesma
praia que ficava em frente ao hotel, a quinhentos metros
dali. Reconhecendo ser ela mais experiente no que se
propunham ambos a fazer, o estudante de advocacia
deixava-se guiar pela moça e não discutia suas opiniões.
Agora, quase às duas e meia, o telefone voltava a soar.
Brigitte, que lia para desanuviar a mente, em busca de
descanso, atendeu:
— Sim?
Era Diamond, novamente:
— Preciso falar-lhe, antes que amanheça.
— Falar-me?! — estranhou ela. — O que há?
— O sol arderá muito — foi a resposta enigmática de
Diamond.
Em seu apartamento do “Santa Catalina Bay Hotel”,
Brigitte tentava conciliar o sono. As peripécias da noite,
entretanto, haviam-na deixado num estado de alerta
nervoso, sensação dificilmente corrigível.
— Ah, sim! Mas, como é isso? Andou investigando o
tempo?
— Perfeitamente, senhorita Montfort.
Brigitte ficou contrariada, mas concordou logo,
indicando:
— Quinze minutos, a meio caminho — falou.
E quinze minutos depois, dois vultos se aproximaram, na
praia, a meio caminho entre o hotel e a pensão: Brigitte
Montfort e Diamond Dowen. Olharam-se em silencio, a
princípio, e depois caminharam para uma amurada, a
poucos passos, sentando-se ambos.
— Não cometeu alguma imprudência, Diamond? —
indagou ela, um tanto aflita.
— Sei tomar cuidado. Trata-se do iate.
— Já sei. “O sol arderá”.
— Pertence a um tal Percival Silverton, que também
possui uma quinta no interior desta ilha, e um bangalô na
praia, na ponta da baia. Como não podia procurá-la durante
o dia, chamei-a agora. Não há perigo de sermos vistos
juntos, a esta hora.
— Fez bem — concordou Brigitte. — Além do mais,
não conseguia dormir. Foi só o que descobriu?
— Sim, por enquanto.., até porque se insistisse com
minhas fontes, acabaria despertando suspeitas.
— É certo — disse ela, aproximando-se mais.
— Agora, ouça bem: pela manhã, irei ao embarcadouro,
rondarei o iate. Você não deve de maneira alguma falar
comigo, a menos que o chame. Não se precipite, haja o que
houver. Se a coisa é o que penso, tudo será imprevisível, da
parte dos que procuramos.
— Não é preciso insistir tanto, Brigitte — sorriu
Diamond, pegando-lhe a mão coberta de areia. — Está
descontente pelo que fiz?
— Devia estar, mas enfim... Bem, não estou, Diamond.
A informação é bastante valiosa. Adianta.
Ela sorriu, e Diamond sentiu um frêmito, ao ver aquela
cabeça linda apoiar-se em seu ombro. Quis afastá-la, mas
Brigitte não consentiu.
— Incomoda-se de eu descansar um pouco assim,
Diamond?
— Claro que não — murmurou ele. — Apenas não
quero que tenha uma idéia errada a meu respeito. O beijo
roubado de ontem não foi mais do que uma prova, que eu
procurei ter, de sua falta de preconceito racial.
— Ora, Diamond! — protestou ela. — Senti isso. Não é
preciso que me de explicações. Qualquer mulher gosta de
ser beijada, ainda mais por um homem incomum. Sua
presença me faz sentir segura, despreocupada. Por isso lhe
perguntei se não o incomodava.
Diamond Dowen conseguiu desfazer um nó que lhe
subia à garganta. Voltou a cabeça, beijando-lhe os cabelos:
— Confia tanto assim em mim?! — murmurou.
— E por que não? Vamos, perca essa mania, Diamond!
O sorriso dela morreu num ligeiro bocejo, pelo qual
desculpou-se.
— Não se amofine — disse ele. — Deve estar mesmo
exausta.
— E você?
Diamond suspirou:
— Sua proximidade, esse perfume desfazem todo meu
cansaço e...
— ... e não obstante, sei que é um cavalheiro —
completou Brigitte.
— Faço o possível — aceitou ele, não sem desgosto.
Voltou o silêncio, apenas quebrado pelo rumor das águas
e por algum automóvel, na distância.
Dentro de minutos, Brigitte dormia docemente.
Acariciando-lhe os longos cabelos negros, Diamond Dowen
julgava embalar uma criança... uma criança em cuja
presença ele não era apenas Diamond Dowen, mas um
homem todo feliz, um cavalheiro... apesar das forças
despertadas dentro de si. E Diamond Dowen, pela primeira
vez na vida, ganhava uma das batalhas nas quais sempre
julgara que se revelavam os verdadeiros homens: a batalha
contra si mesmo, a vitória sobre seus instintos espicaçados.
Aquela era uma noite da qual sempre se lembraria.
CAPÍTULO QUINTO Perambulações intencionais e desejos atiçados.
Quando um milionário só é milionário até o limite do capricho de sua cara-
metade.
Ações dissimuladas de Brigitte Montfort para um efeito surpreendente.
O sol era o de um filme da Metro. O mar azul-
esverdeado, a paisagem “technicolor” de Santa Catalina, os
personagens elegantes desfilando suas vaidades, tudo a
compor um cenário de marinha rica, a que não faltavam
nem os bandos de gaivotas gritalhonas. Mar adentro,
lanchas velozes exibindo esquiadores tostados de sol.
Ao lado do pequeno cais, o “Sol Ardente” mostrando
sua linha aristocrática de “yacht” milionário. Um barco e
tanto, desses de encher a vista.
No porto dos “ferry-boats”, Brigitte passou por um rapaz
bronzeado, de olhar simpático e alerta.
— Esqui, senhorita? — indagou ele.
— Agora, não.
Antes que ela se afastasse, naquele passo
despreocupado, o rapaz ainda informou:
— Quando quiser, pergunte por Boyd, aqui. Todos me
conhecem.
Fez que sim, sorrindo, mas de olhos postos no iate, que
se aquietava muito branco sobre as águas escuras. Andou
alguns minutos, já na praia, pensando no modo como o
abordaria.
Ao voltar, brincando com os pés na areia, Brigitte viu
surgir no convés coberto do barco um homem todo de
branco, identificável na distância.
Passou novamente pelo rapaz, que aproveitou a ocasião:
— Deixo tudo grátis, para a senhorita!
— Obrigada — sorriu Brigitte. — Mais tarde.
Não lhe interessava o atleta alugador de lancha. Tinha os
olhos postos no homem que, apoiado à amurada do iate,
falava a um tripulante. Via-o melhor, agora: devia ter seus
trinta anos, era bastante atraente e forte de aspecto. Todo de
branco, desde os sapatos ao lenço que lhe pendia do
pescoço, devia ser aquele, certamente, o dono da luxuosa
embarcação: Percival Silverton — como informara
Diamond.
Era, mesmo, Silverton. E, por seu lado, também ele
considerava a mulher que vinha da praia em direção ao
embarcadouro.
— Linda! — comentava Silverton com o ajudante.
— Tem a envergadura de um Constellation! — aprovava
o outro.
— E está sozinha! Não é uma pena?
— Pena?! É de causar desgosto! Melhor ainda, é uma
afronta a nós, homens, válidos, inteligentes e vacinados
deixar assim uma deusa na areia.
— Realmente — sorriu Sílverton.
Seu ajudante era Mix Baynes. A um sinal do chefe, Mix
foi cuidar de seus afazeres, enquanto o próprio Silverton
seguia Brigitte com o olhar.
Ao vê-la aproximar-se, o homem aleitou o lenço do
pescoço:
— Parece mesmo uma deusa, Mix! — exclamou, sem
voltar-se. — E está procurando companhia.
No entanto, não foi a voz de Mix que ouviu em seguida,
mas sim uma de mulher, em tom acre:
— Quem, meu caro?
Percival Silverton girou o corpo, encarando a esposa. Ia
dizer qualquer coisa dura, mas conteve-se. Sua cara-metade,
uma quarentona míope, com grossas lentes sobre o nariz
vermelho, valia muitos milhões de dólares, e era por isso
que Silverton, o guapo homem de branco, se continha ante
sua figura esbranquiçada e gorda.
— Perci — dizia ela, — estou farta de sua maneira de
olhar essas mulheres vulgares que andam por ai fazendo o
“trottoir”.
— Você deve estar irritada, hoje, Carol — falou ele,
SuSpirando. — Que houve? Brigou com alguém? Ressaca?
Ou enxaqueca?
— Mande embora seus convidados. Não suporto mais
sorrir para aquela mulherzinha — murmurou Carol,
surdamente.
— Mulherzinha?! — admirou-se Silverton. — Não pode
ser um pouco mais amável com a senhora Salamanca?
Mix Baynes aproximava-se. Viu o ligeiro enrubecimento
de Carol Silverton, que em solteira assinara Wendix. O
marinheiro compreendeu que não devia interromper a
conversa. Nessas ocasiões de tormenta entre os patrões,
Carol chegava a xingar todo mundo.
Percival também detestava os humores da esposa, e
dispôs-se a caminhar para o outro lado, de onde podia ver
melhor a garôta que passava na orla, agora já bem perto do
iate. Mas Carol o acompanhou.
— Escute, Percival Holmes Silverton, — vociferou —
estou farta de que me admoeste, de que me traia com
outras! E pela centésima vez o advirto de que não lhe darei
o divórcio.
— Querida — suspirou Percival — ninguém pediu o
divórcio.
— Por causa de meu dinheiro, naturalmente — ciciou
ela, como uma serpente velha.
Silverton, que já se acostumara a tudo aquilo,
desconversou:
— Ora, Carol, vamos ser civilizados, meu bem...
Nesse momento, outro casal surgiu no convés, vindo de
dentro. E Percival sorriu, sentindo-se de repente um novo
homem, salvo pelo gongo.
— Como está, Abelardo? Alô, Nati. Tudo bem?
Carol não olhou para os dois jovens que acabavam de
aparecer. Deu dois passos, indo encostar-se à amurada, os
pequenos olhos franzidos de raiva.
O casal Salamanca, hóspede dos Silverton, fazia bela
figura. Ela, Natividad, muito bem feita de corpo e elegante.
Talvez um pouco mais dotada em cadeiras e busto do que as
sílfides californianas, porém extremamente “sexy”. E ele,
Abelardo, esguio e forte, tinha sua presença de palco
assegurada em qualquer momento.
Ambos, logo à chegada haviam notado o mal-estar do
Silverton, mas comportaram-se diplomaticamente, tentando
desfazer a cena.
— Estamos muito bem dispostos, Percival — sorriu
Abelardo, piscando para o amigo. — Já fez seu programa?
— Desejaria pescar — falou Silverton, olhando de viés
para a esposa, que não se voltara, ainda.
— Daqui a dois ou três dias...
— Maravilhoso! — exclamou Natividad Salamanca.
E a jovem caminhou para Carol, que vencera a própria
ira, conseguindo sorrir-lhe:
— Não gosta de pesca, querida? — indagou.
— No momento, gostaria mais de uma bebida — falou
Carol. — Acho que vou buscá-la. — Voltou-se para os dois
homens: — Não querem algo?
— Boa idéia, querida — disse o marido, escondendo a
má-vontade atrás do sorriso. — Mas, não se incomode. Há
um camareiro para servir-nos. Quer um “drink”, Abelardo?
O hóspede aceitou, enquanto Carol chamava por Mix
Baynes, ordenando-lhe providenciasse as bebidas. Pediram
o que desejavam, os quatro, ao camareiro que logo trouxe
os “drinks” e, depois, puseram-se a conversar
amigavelmente. O sorriso de Carol Sllverton conseguia
quase sempre esconder outros sentimentos, no que seu rosto
inexpressivo ajudava muito.
E enquanto palestravam os quatro, Percival não perdia
de vista a sereia, de roupas muito leves, que passeava na
vizinhança. “Estará procurando companhia, certamente” —
pensava ele.
Brigitte, levada pela brisa, afastava-se, agora, para os
lados do Oriente do Eden.
Percival entristecia.
APROXIMAÇÃO
Diamond Dowen tinha noticias.
— Tudo deu certo? — perguntou ela.
— Sim. Tenho peixes na rede. Onde poderemos falar?
— Há uma confeitaria, perto de sua pensão — falou
Brigitte.
— Muito bem. Estarei lá.
E não demoraram a avistar-se. Diamond esperava nas
proximidades da confeitaria.
— Não entrei. Talvez houvesse complicações. Nessa
época, todos parecem ter prevenções contra os negros.
— Bobagem, Diamond. Vamos!
Entraram, ocupando uma discreta mesa.
— Fiz o que você mandou, Brigitte — informou ele,
depois de pedir um refrigerante para ambos. — O casal que
está com os Silverton chama-se Salamanca. São Natividad e
Abelardo, não sei de que nacionalidade. Latino-americanos,
Duas horas depois, no hotel, onde mudava de roupa,
Brigitte atendia ao telefone.
talvez. A senhora Silverton tem seus quarenta anos e é a
verdadeira dona de tudo. Uma chata
— Muito bem. Também descobri coisas — disse
Brigitte. — Há mesmo uma relação entre Silverton e seu
irmão Lemuel.
— Tem certeza?
— Estive trocando notas de cem dólares, nos bancos —
disse a repórter. — Dava em troca dinheiro miúdo, velho. E
num certo estabelecimento, a numeração das que me deram
— notas novas, como pedi — era parecida com as de cem
dólares que Lemuel levava. Disse, então, ao bancário que
me atendeu, que era empregada de Silverton, e que meu
irmão queria saber como estava sua conta. Não falhou:
Silverton tinha mesmo conta naquele banco, pois
informaram-me que ia bem, com bons fundos.
— Então, podemos ter certeza de que é o responsável
pela morte de meu irmão!
Diamond acendeu um cigarro, nervosamente.
— Não temos prova nenhuma, Diamond. É preciso
calma. Além do que, há um senão: por que Silverton
mataria Lemuel? Certamente porque Lemuel atrapalhava
alguma coisa, ao indicar-me que Lyn Galloway rondara o
iate. Mas, por que seria isso uma atrapalhação para
Silverton? Não é verossímil que Silverton tenha ele mesmo
ordenado a seu irmão encontrar-se comigo, dando-me a
pista. Silverton não me atrairia para seu covil à toa... isso
tudo, naturalmente, no caso de ser ele responsável por
alguma coisa.
Diamond, nesse momento, chamou a atenção para algo:
— Veja.
Através dos vidros da confeitaria, Brigitte viu passar um
grande automóvel branco.
— É o carro que vi no bangalô do nosso homem —
falou Diamond.
Seguiram o carro com os olhos. Mais adiante, na curva
da praia, parou à frente do elegante “Sing Sing Bar”.
— Boa ocasião! — murmurou Brigitte. — Se ele estiver
lá...
— Que vai fazer? — indagou o companheiro, temeroso.
— A-bor-dar — silabou Brigitte. — Escute: fique por
perto. Se lhe fizer algum sinal, depois, siga-me. Caso
contrário, continue apenas vigiando nossos “amigos”.
Diamond suspirou. O encontro terminara, e ele que tanto
gostava de estar com Brigitte!
— Está bem. Mas, você usa arma?
— Não me separo dela, quando trabalho nisto.
Ele pegou sua mão, beijando-a: — Tome cuidado,
Brigitte.
— Meu cavalheiro perfeito — sorriu ela, por sua vez
beijando-lhe a testa e saindo.
Dirigiu-se ao “Sing Sing Bar”, a duzentos metros dali.
Despreocupadamente, a linda repórter transpôs a entrada
do estabelecimento. Que era, na verdade em amplo terraço
ensombrecido por lindas plantas floridas, dando para a baía.
Ao fundo, o balcão onde várias pessoas tagarelavam e
bebiam.
Brigitte procurou mesa, ficando de frente para o bar. E
depois de pedir champanha com limão, seu coquetel
predileto, procurou o homem que avistara de manhã, a
bordo do “Sol Ardente”.
Não demorou a encontrá-lo: Percival Silverton
acompanhado do casal Salamanca. Carol, a quarentona,
estava ausente, e os três bebiam, rindo.
Quando Percival notou a presença da repórter parou de
conversar, ficando a sorrir-lhe amavelmente, sem desviar os
olhos. Natividad Salamanca dizia qualquer coisa de
engraçado, mas Silverton já não ouvia nada e somente o
marido se pôs a rir, abraçado à moça que até lembrava a
figura de Brigitte.
Mostrando-se interessada naquele olhar admirado de
Percival, a repórter retribuía, encorajando uma conveniente
aproximação. Mas não correspondia ao brinde que, a
distância, Silverton lhe fazia. Brigitte tinha de mostrar
classe e inteligência ao homem do iate.
Sempre a olhá-la, Silverton trocou algumas frases com o
amigo. Pôs-se em pé, depois, dirigindo-se em linha reta, o
copo de uísque nas mãos, até a bela repórter.
Brigitte sorriu levemente, ao vê-lo sentar-se a sua frente.
— Como vai, moça bonita? — perguntou ele. Sorriu
mais largo: — É linda mesmo!
— Este estilo de abordagem já está muito batido —
disse Brigitte.
Silverton pareceu vacilar ligeiramente, ante a resposta
sarcástica, mas engoliu um trago de uísque, olhando-a nos
olhos:
— Diga: lembra-se de mim?
Brigitte recostou-se na cadeira, desviando os olhos para
o mar azul.
— Como está aquela senhora que o admoestava hoje, a
bordo do iate... iate “Sol...” já me lembro, “Sol Ardente”?
O homem franziu o cenho, mas riu.
— Minha esposa, querida, minha esposa! O fato a
preocupa?
— Nem um pouco, senhor,..
— Percival Holmes Silverton — disse ele — um
escravo!
Ela bebeu o último gole de champanha, divertida.
— Pela maneira de aproximar-se, vi que não é tão
humilde assim, senhor Silverton. Talvez um escravo de Jó...
O homem surpreendia-se. Aquela mulher sabia
manifestar o pensamento com muita rapidez. Não se deu
por achado.
— Ainda não fui às galés, confesso... — disse ele,
jogando o mesmo jogo. — Mas acho que uma figura tão
nobre como a sua pode ter os escravos que quiser. Desde já
me candidato a mucamo, senhorita... senhorita...
— Brigitte, veranista permanente.
— Brigitte de que?
— Brigitte, somente. Gosto de meu primeiro nome.
— Francesa? — indagou ele.
— Japonesa — riu Brigitte.
Dessa vez, Silverton precisou engolir maior dose de
uísque.
— Bem, uma pergunta tão óbvia como a minha só
poderia receber essa resposta. Quem, senão uma francesa,
teria tal nome?
— Como queira, senhor Silverton — Brigitte continuou
ironizando.
Houve nova hesitação dele, mas recuperou-se logo:
— Não gostaria de chamar-me Perci? Isso facilitaria as
coisas.
— Tão cedo?! — espantou-se ela: — Que diria madame
Silverton?
— Madame Silverton está ausente! — informou ele. —
Ficou no iate, com medo do sol.
— É seu, o iate... Perci?
— Em parte.
— Sociedade? Com quem? Seus amigos?
— Não, com minha esposa — disse Silverton. — Mas
nem por isso deixaria de convidá-la a um passeio... nele.
— Oh, oh! — fez Brigitte. — Realmente, estou lidando
com alguém destemido.
— Sim — respondeu ele. — Sei o que pensa: minha
esposa se zangará. — Tomou mais uísque, fitando-a
sorridente. — É isso o que desejo, Brigitte. Quero o
divórcio e ela não quer. Então, que acha do passeio?
Brigitte não podia esperar melhor, mas Silverton levava
as coisas com muita pressa. Fazer-se de rogada seria de boa
política:
— E vou aceitar por nada? — perguntou, optando pela
figura de aventureira.
Silverton deixou o copo sobre a mesa, estudando-a com
seriedade. Por fim, riu explosivamente.
— Imagine só! Creio que estou perdendo a lucidez,
Brigitte. Nem pensara nisso. Mas, é claro que você não vai
perder seu tempo. Uma jovem linda como você não pode
jogar o tempo ao mar...
Houve silencio. E ele riu de novo:
— Bem, você já deve ter percebido que a convido para
enraivecer meu “narizinho vermelho”. Pouco importa que
você saiba. Não dou importância a certas convenções.
— Seu “narizinho vermelho” é... sua esposa,
— Claro! Devia ser “narigão”, mas enfim...
— E, irritando-a com minha presença, você talvez
consiga o divórcio. Fácil de entender — disse Brigitte. —
Acho que o ajudarei, Perci. Não gostei da figura dela.
— É horrível de se suportar! — falou ele, com uma
antipatia profunda no rosto.
Terminou com o uísque, de um trago só, e riu
novamente:
— Engraçado. Há pouco, éramos desconhecidos, e agora
somos aliados em causa tão intima.
— Não se preocupe — disse Brigitte.
— Não me preocupo, creia. Nem com você, nem com os
dólares.
— Não pedirei muito — sorriu Brigitte. Alguns poucos
milhares.
— Muito bem — Silverton tomou-lhe a mão, erguendo-
se: — Agora, trabalha para mim ... como hóspede,
naturalmente. Venha conhecer meus amigos.
— São amigos do “narizinho vermelho” também? —
indagou dubiamente a repórter.
— Aparentemente, aparentemente — fez ele. — Quando
estão em presença dela, apenas.
Levantou-se, afastou a cadeira de Brigitte e levou-a pelo
braço através do salão.
Abelardo Salamanca, todo sorrisos, ergueu-se para
cumprimentá-la, quando se acercaram da outra mesa.
— Apresento-lhes Brigitte, meus caros. Brigitte, estes
são Natividad e Abelardo Salamanca.
— Como vai, Nati? É um prazer, Abelardo —
cumprimentou Brigitte.
— Sente-se, querida — sorriu Natividad, que parecia
divertir-se com a situação.
Com certeza, Percival Silverton já lhes falara sobre o
plano de levá-la a bordo, para tentar induzir a esposa ao
divórcio.
— Que vai beber, Brigitte? — indagou Abelardo.
— Champanha — sorriu ela. — Champanha com limão,
bem gelado.
Estiveram algum tempo falando de coisas triviais, até
que Silverton propôs continuarem o passeio pela ilha.
— Mas, não acha que está um pouco quente, Perci?! —
fez Natividad.
Brigitte, que admirava a beleza da outra, apoiou-a:
— Realmente, Perci. A tarde não está para se levar sol,
hoje. Creio que ficar à sombra é bem melhor.
Silverton olhou para a nova amiga e tornou a rir,
piscando um olho:
— De acordo, de acordo — falou com malícia.
— Vamos beber à sombra no “Sol Ardente”, já que o sol
daqui arde com tanta ênfase.
Os outros três riram do péssimo trocadilho.
— Quando bebe um quarto de litro, você fica inteligente,
hem, Perci? — falou Nati, com uma intimidade que Brigitte
já notara ser fora do comum.
— Isso não é nada — fez Silverton, fingindo o modesto.
— Mas, não aceitam a idéia?
— Ora, vamos! — e Abelardo Salamanca, tomando o
braço da mulher, levantou-se.
Saíram os quatro do “Sing Sing Bar”. Lá fora, Silverton
acionou a buzina do elegante Cadiflac, e Mix Baynes
apareceu, dando adeus a uma garota.
— Aproveitando o tempo, hem, Mix?! — fez Percival.
O empregado deu de ombros:
— Não dá para nada, senhor Silverton.
— Por causa da época, meu caro. Tenho-lhe dado muito
trabalho, é verdade. Num futuro próximo, você terá mais
tempo livre. Agora, leve-nos até o iate, sim?
Aquela frase haveria de ficar na mente de Brigitte:
“tenho-lhe dado muito trabalho, é verdade”. O que se
ocultaria sob tais palavras? Que trabalho era o deles?
Chegaram ao embarcadouro.
Enquanto Baynes se afastava com o carro branco, indo
guardá-lo em alguma garagem de ali perto, os quatro
transpunham a prancha de embarque.
Logo que pisou o convés, Percival Silverton viu surgir
uma jovem de cor, esguia e bonita, de trás da cabina.
Brigitte, que o acompanhava de perto, percebeu uma ruga
em sua testa.
Ele, entretanto, dissimulou logo, saudando:
— Como vai, Dora? Algum problema?
A moça, timidamente, aproximou-se: Não devia ter mais
de vinte e dois anos, e sua expressão era profundamente
preocupada.
— Vim ver se sabe algo de Tom, senhor Silverton —
disse.
— Tom?! — fez ele. — Que aconteceu com ele?
— Não sei, senhor. Já... já lhe falei ontem sobre...
— Ah, sim! Que memória! — exclamou Silverton. —
Seu marido ainda não voltou para casa?
Ela maneou a cabeça, triste.
O homem suspirou, contrariado, mas sorriu logo.
— Deve estar por ai, Dora. Já o procurou fora da ilha?
— Sim. Em Santa Mônica ninguém sabe.
— Sinto muito, nada sei dele, Dora. Foi à policia,
indagar?
— Não, senhor — e Dora abaixou a cabeça: — Tom não
me perdoaria, se fizesse isso.
— É verdade, ele não gostaria — concordou Silverton.
— Então, o que podemos fazer é continuar esperando.
Compreenda, não sei o que faz ele, quando deixa o iate.
Lamento muito, Creia.
Dora vacilou, ergueu ligeiramente a cabeça para dizer
um “obrigado” muito apagado, e rumou para a passarela,
deixando-os.
Logo em seguida, Silverton sorriu para os companheiros.
— Bem, vamos ver o “narizinho vermelho”!
Mix Baynes já regressava, passava por eles e ia à cabina
de comando. Foi então que Silverton olhou para lá. Havia
outro homem a bordo, quieto, olhando os quatro.
— Desculpem-me um momento — falou Silverton.
Dirigiu-se à cabina, onde Mix saudava o estranho com
um sorriso.
Enquanto os Salamanca comentavam algo, Brigitte
encostou-se à amurada, gozando o belo cenário que se
oferecia desde o embarcadouro. Viu Dora a se afastar acima
da praia, e Diamond, sentado na areia, numa pequena
sombra de palmeira, seguindo a jovem negra com os olhos.
Brigitte observou os Salamanca, a dois passos. O casal
estava entretido, conversando.
Logo, Diamond Dowen olhava o mar e, lentamente,
voltava-se para o iate, a cento e poucos metros dele.
Brigitte, então, lhe fez um sinal com a mão, oculta dos
outros pela amurada. O sinal nada significaria para qualquer
outro, mas fez Diamond levantar-se.
Brigitte repetiu o gesto. O jovem gigante olhou
novamente para Dora, que se afastava. E Brigitte, quando
ele tornou a voltar-se para o iate, fez um movimento
afirmativo com a cabeça.
A repórter dirigiu-se, então, para o casal. Ninguém lhe
notara os gestos. E quando tornou a olhar a praia viu que
Diamond Dowen já seguia os passos de Dora, a bela e
tímida jovem que procurava o marido.
Satisfeita, Brigitte resolveu andar pelo corredor do iate,
ao lado das cabinas, sempre olhando para o compartimento
de comando, mais acima. Não conseguia ouvir o que diziam
os homens ali reunidos, mas era certo que eles, tampouco,
lhe vigiavam os movimentos.
Fixou bem a fisionomia do desconhecido e tratou de
voltar à companhia do casal Salamanca. Abelardo e Nati se
acariciavam maliciosamente, como perfeitos noivos em lua-
de-mel.
CAPÍTULO SEXTO De onde partem as ordens e os nomes que se substituem.
Por que é preciso analisar até mesmo um beijo.
O iate e seus ocupantes ainda constituem um mistério.
Depois de conversar muito com o visitante inesperado,
Percival Holmes Silverton tentava desfazer sua má vontade
quanto à presença dos convidados.
O misterioso visitante não gostara de ver no iate a bela
repórter.
— Não é aconselhável trazer estranhos a bordo,
Silverton! — dizia ele, nervoso.
— É uma garota ótima que encontrei hoje, Spencer.
Ajudará a desfazer suspeitas, pode ter certeza.
— Já não havia o casal Salamanca? — replicou o outro.
— Sim, mas não precisa inquietar-se. A moça é somente
da minha conta, assunto particular — sorriu Percival.
Mix Baynes, ao lado, esfregava o queixo, talvez
pensando na mulher que deixara perto do “Sing Sing Bar”,
e observou:
— É uma gata de praia à procura de dinheiro, Spencer.
— Mas pode trazer complicações — considerou o
visitante.
Silverton suspirou, enfarado, ficando sério.
— Bem, eu tenho negócios com você, Spencer.
Negócios importantes talvez perigosos. Não deixo de tomar
os necessários cuidados. Tento fazer minha vida parecer
natural, para todos; e você me admoesta por isso?
Spencer hesitou, pensativo, sempre com o rosto fechado.
Deu alguns passos pela cabina, olhou o horizonte de mar
aberto, e voltou-se:
— Está bem, Silverton. E estará bem, se tudo sair como
combinamos. Veja lá o que faz.
O milionário voltou a sorrir.
— Sei que compreende, meu caro. Tenho planos com
essa garota. Pois bem: apareça amanhã à noite na quinta,
com os dois milhões. Do resto, cuido eu... com minha
tripulação. Tudo sairá certinho.
— Assim espero! — grunhiu Spencer.
Saiu sem despedir-se, descendo à passarela e dali à terra.
Era um tipo esquisito, ensimesmado, duro de feições. Ao
passar por Brigitte, que ouvia um chiste de Salamanca,
olhou-a de viés. Não pôde conter um frêmito de admiração.
Enquanto isso, Silverton descia e parava na pequena
escada, chamando por um homem que limpava o convés.
— Minha esposa está dormindo?
— Saiu há hora e meia, senhor Silverton — disse o
servente.
— Para onde?
— Para a quinta.
Silverton mostrou-se zangado.
— Logo hoje! — disse, aproximando-se dos convidados,
que tinham ouvido o diálogo. — Queria começar a
aborrece-la de verdade, e ela vai à quinta. Então, que
fazemos aqui?
Os quatro desceram para o interior do barco, rindo da
frustração de Silverton.
No instante em que desapareciam, Mix Baynes resolveu
sair até o embarcadouro, encaminhando-se para as primeiras
construções junto à praia. E lá estava o misterioso Joyce
Spencer a esperá-lo, discretamente.
— Que acha da situação, Miko? — perguntou.
Mix sorriu.
— Nada de mais, Yuri. Pensando nos dois milhões,
Silverton anda entusiamado. Quer a todo custo livrar-se da
esposa. O divórcio. Depois de recebe-los, então, a coisa terá
de estourar. Ele vai aprontar um inferno para a gorduchinha
milionária.
— Ela sabe alguma coisa sobre nossos negócios?
— Nem uma vírgula, meu caro — Mix foi convincente.
— É uma perfeita imbecil!
— Muito bem — falou Spencer, que Mix chamava Yuri.
— Isso é com eles. Quanto a você, não perca de vista nosso
amigo Silverton.
O BEIJO
Já fazia noite sobre Santa Catalina. Acendiam-se as
luzes e outra vez a lua voltava seu olhar prateado à baia.
No compartimento principal do “Sol Ardente”, já
cansada de dançar, ao som de um gravador, Brigitte foi
servir-se de um refrigerante, na geladeira que os outros já
haviam quase esvaziado. Notou, então, a ausência de
Abelardo Salamanca.
Natividad, que agora dançava com Silverton, falou:
— Descanse, querida. Quero ensinar a Perci o “hully
gully”.
— E Abelardo, onde foi? — perguntou Brigitte.
— Deve estar no convés.
— Vou buscá-lo — anunciou. — Como é que pode um
latino desprezar a dança?
Estava subindo a pequena escada, quando lhe veio a
idéia de procurar em Abelardo uma fonte de informações.
Quem bebe ao lado de uma mulher bonita acaba sempre
fazendo revelações e, com astúcia, numa conversa
amigável, talvez ela arrancasse dele algo de valioso.
Voltou, então, para buscar uns “drinks”.
Brigitte, no penúltimo degrau, imobilizou-se. Sllverton e
Natividad estavam abraçados, beijando-se de um modo que
não deixava dúvidas. Estavam apaixonados.
Sem fazer o menor ruído, Brigitte colou-se à parede e
tornou a subir. Desceu, em seguida, fazendo tudo para
anunciar sua aproximação. E quando apareceu na sala, Nati
lhe sorria, mostrando um passo de dança a Silverton.
— Pensei que Abelardo talvez quisesse um pouco de
“whisky”, Nati.
— Ele jamais recusa um copo — riu a outra,
continuando a dançar. — Deve estar aborrecido, o meu
querido.
— Pois acho que você é a indicada para alegra-lo —
interveio Silverton, parando. — E Brigitte poderá continuar
a lição. Que acham?
Brigitte aceitou.
— Boa idéia, Perci.
Natividad não pareceu aborrecer-se com a proposta de
Silverton. Foi ao barzinho, serviu dois copos e dispôs-se a
subir. Nesse momento, o marido apareceu.
— Acho que vou dormir — disse. — Você vem,
querida?
— Não gostariam de ir até a quinta? — indagou
Silverton.
— Pois vamos lá! — e Nati girou o corpo contente.
Saíram.
Silverton chamou Baynes:
— Veja o carro, Mix.
O empregado voltou dois minutos depois, com o
reluzente automóvel.
— Pode ficar, meu caro — disse Silverton. — Cuide do
barco.
— Muito bem — limitou-se a dizer Mix Baynes. — Boa
noite.
— Boa noite. Mande alguém reabastecer a geladeira. — E,
voltando-se para Brigitte: — Agora você conhecerá o
“narizinho vermelho”, querida. Brigitte protestou:
— Já são nove e meia, Perci. Se eu fosse até lá, hoje, sua
mulher explodiria.
— Ela tem razão, Perci — apoiou Nati. — Não leve as
coisas longe demais.
Silverton suspirou, acabando por concordar:
— Está bem. Até amanhã, Brigitte.
— Vamos encontrar-nos aqui? — perguntou ela.
— Não, aqui não. Espero-a na quinta. Fica no 1877 de
Montam Drive, no centro da ilha.
— Está bem. Irei lá, Perci, contanto que não haja perigo.
— Perigo?! — riu ele. — A “narizinho” só sabe gritar,
sossegue. Seu hotel fica perto?
— A dois passos, não se incomode.
— Muito bem — ele a enlaçou, beijando-a rápido: —
Até amanhã... com bons dólares, claro.
Brigitte ficou a olhá-los até que desapareceram na
avenida que marginava a praia. Depois, encaminhou-se para
a areia.
Lá estava Díamond, junto à confeitaria onde se haviam
encontrado de tarde.
O negro não parecia satisfeito, ao vê-la.
— Que há Diamond? — indagou Brigitte, sacudindo a
areia dos pés.
— Era preciso beijá-lo? — fez ele.
— Não o beijei — replicou a repórter. — Não foi um
beijo, aquilo.
— É um assassino! — murmurou Diamond.
— Sei o que sente. Obrigada por preocupar-se comigo,
Mas, conseguiu alguma coisa mais?
— Segui a moça.
— Até onde?
— Até uma casinha modesta, do outro lado dos
rochedos, além da baía.
— Ela encontrou-se com alguém?
— Não, ninguém. Que houve com ela?
— Leve-me até lá — disse Brigitte, — e ficará sabendo.
Vamos esclarecer algo, muito importante.
CAPITULO SÉTIMO Do Paraíso ao Inferno em poucos meses.
Busca de um homem, chave do enigma.
As plantas do tio Charles e o preço das circunstâncias.
Decisão na madrugada.
Era um bom lugar, além dos rochedos. A casinha,
modesta mas acolhedora, plantava-se, solidamente, na base
da escarpa, à beira d’água.
De um lado, estendia-se a ilha. Do outro, o mar, até o
horizonte de luzes na baía de Santa Mônica.
Junto à rocha, ancorada, uma embarcação pequena, a
motor. E redes e outros apetrechos de pesca.
Vamos chegar mais perto e bisbilhotar. Os moradores da
casinha são Dora e Tom, casal romântico, interessados na
poesia da vida em plena Natureza. Ali haviam feito nascer
seu pequeno mundo, com um filho e muitas esperanças.
Viviam da pesca e de algum transporte de pequenas cargas.
Tom era um enamorado lobo do mar. Por vários anos
estivera feliz, naquela existência simples de Santa Catalina,
entre o céu e as ondas.
Mas algum fato especial veio modificar o curso
tranqüilo da sua existência de pescador moderno. Tom
deixou de ser o garotão simplório e afável, de fisionomia
sempre alegre, para converter-se num adulto preocupado e
arredio. Misteriosamente encontrou fartura de dinheiro. Não
se sabia a fonte de suas rendas, mas o rapaz ausentava-se
cada vez com mais freqüência.
Um dia, desapareceu.
Dora, ainda tímida, contava o que sabia a Brigitte
Montfort e a Diamond Dowen, que agora a entrevistavam.
— Não sei mais onde procurá-lo — dizia ela, aflita. —
Há três dias que não o vejo. Ele que nunca ficou fora de
casa mais de vinte e quatro horas!
Já pedira que falasse baixo, para não acordar o filhinho
de um ano. O vozeirão de Diamond mudou-se num
sussurro:
— Vamos ajudá-la a encontrar seu marido. E não precisa
olhar com desconfiança para a senhorita Montfort. Ela nada
tem contra nós, por sermos de cor. Já tive uma prova.
— E não pense que temos negócios com o senhor
Silverton — emendou Brigitte. — Tudo que disser ficará
entre nós, sob palavra. Qual é o nome completo do seu
Tom?
— Thomas Yale. Trabalhava às vezes para o senhor
Silverton, mas não como empregado fixo. Sempre lhe
pagou bem.
— Por que foi procurá-lo no iate, hoje?
Diamond fizera a pergunta e, vendo-a vacilar ainda na
resposta, encorajou-a com um sorriso de confiança. A moça
terminou por esclarecer:
— Acompanhei-o até a embarcação, há três dias. Íamos
fazer compras de móveis, e até de um novo motor para o
barco dele, pois ganhara uma bela quantia na última
semana. Disse que tinha algo importante a fazer no iate, e
fiquei a esperá-lo a alguma distância, na praia, para que me
acompanhasse nas compras. Tommie, meu filho, estava
comigo. Fiquei esperando até o meio-dia, e ele não voltou.
Tenho certeza de que não deixou o iate. Foi por isso que
perguntei ao senhor Silverton, hoje.
Brigitte e Diamond trocaram um olhar significativo.
— Ele deixara o dinheiro com você, Dora? — perguntou
ela.
— Sim.
— E você dispõe de alguma parte do dinheiro, ainda?
Gostaria de vê-lo.
A jovem foi ao dormitório anexo e trouxe três notas de
cem dólares, entregando-as a Diamond, que as passou a
Brigitte. Esta retirou da bolsa algumas outras notas,
conferindo umas e outras.
— São parecidas? — perguntou Diamond.
— A série é correlativa. Devem ter saído do mesmo
banco, pois são novíssimas. Posso ficar com esse dinheiro,
Dora? Dar-lhe-ei outro.
Dizendo isso, entregou-lhe quinhentos dólares, quase
tudo que levava na bolsa:
— Isto é seu — continuou. — Gaste como quiser. E
agora, uma recomendação importantíssima: não diga
absolutamente nada a ninguém. Para todos os efeitos,
ninguém esteve aqui, entendeu? Continue procurando seu
marido como se nada houvesse acontecido. Diamond vai
ajudá-la nisso. Compreendeu bem?
Dora Yale era uma pessoa simples mas inteligente. Sabia
por intuição que podia confiar na bela visitante noturna.
— Está bem — disse. — Contanto que Tom apareça.
Despediram-se, e pouco depois Brigitte dava instruções
a Diamond, já na praia:
— São três, os mortos — dizia. — Temos que descobrir
as provas contra os assassinos o quanto antes. Você
deverá...
Conversaram durante quinze minutos, acertando planos.
Na orla de areia, somente a lua iluminava suas faces
crispadas.
Finalmente, Brigitte beijou o rosto do companheiro:
— Tenho algo importante a fazer, agora. Não se trata de
perigo, não se preocupe. Vá descansar, Diamond.
Mas, o gigante não resistiu, desta vez, e abraçou-a:
— Não será um teste agora — disse, beijando-a em
seguida.
Um beijo longo, que lhe pôs um tremor no Sangue. E
Brigitte, a linda Brigitte não lhe fugia.
Afastou-a, depois, olhando-a nos olhos:
— Várias vezes já me perguntei o que realmente é você,
Brigitte Montfort. A resposta é uma angústia.
Brigitte acariciou-lhe o rosto:
— Sou apenas mulher, Diamond.
Ele suspirou, tentando sufocar o desejo em suas veias:
— Está bem, é apenas mulher. Talvez aquela mulher a
que sempre se referiu Verlaine nos seus poemas
simbolistas: “Um conjunto de sugestões eróticas numa
forma crepitante; a melhor modulação do ser humano, ou o
grande momento da criação.”
— Muito bonito, Diamond — sorriu Brigitte. — Mas
não creio...
— Não diga nada, por favor — interrompeu-a Diamond.
— Deixe-me com essa impressão. Pelo menos terei para
sempre o desejo de imaginá-la assim. Sou um dos poucos
que chegaram a quase conhece-la como é, e isso me basta.
Fez uma pausa, olhou o mar e o céu enluarado.
— Em tudo isso a mulher branca e bonita domina. E
bendito sejam os homens que a conhecem.
— Diamond! — protestou ela.. — Já está me fazendo
sentimental!
— Ora, não estou querendo chegar a nada, Brigitte. O
que digo, outros provavelmente já disseram milhares de
vezes... à mulher. E nem sempre com a idéia de conquistá-
la.
Ainda com as mãos em seus ombros, Brigitte voltou a
falar-lhe:
— É tudo muito bonito, Diamond Dowen, mas tenho
algo urgente a fazer. Deixemos, por ora, a poesia. Boa noite.
Lá ficou Diamond Dowen, o Hércules quase advogado,
sentado na areia, considerando as ondas e o luar.
E um quarto de hora mais tarde, no hotel, Brigitte pedia
um telefonema para Nova York.
TIO CHARLIE, O FLORICULTOR
Cinco e meia da manhã, em Nova York O inspetor Alan
Pitzer, em seu escritório, foi despertado por um auxiliar.
Abriu os olhos cansados. Naquela noite trabalhara até alta
madrugada, chegando ao limite do esgotamento. Nem tivera
ânimo de regressar ao seu apartamento, perto da catedral de
Saint Patrick. Ficara ali mesmo, no “bureau”, dormindo
num sofá. E despertava agora, às cinco e meia, um tanto
zonzo, o estômago pedindo um café.
— Há uma chamada de bem longe, inspetor — disse o
auxiliar.
Pitzer encaminhou-se até a sala vizinha, pegou o
telefone e rosnou: — Fala Pitzer.
A voz da telefonista soou como um tranqüilizante, muito
doce:
— É da floricultura do Charlie? Temos uma chamada de
Los Angeles; Santa Catalina, precisamente.
Ele despertou, de repente:
— Sim, sim, telefonista! Complete logo!
Houve um ruído característico, e logo uma voz
masculina:
— Senhor Charlie? Um momento, por favor.
Em seguida, novamente voz de mulher, desta vez, muito
conhecida:
— Alô, tio Charlie! Como vai?
— Brigitte, é você mesmo?!
— Por acaso tem outra sobrinha?
— Não, claro que não! Que aconteceu?
— Nada de mais, querido tio. Somente que eu gostaria
muito, se mandasse um auxiliar para mim. Tenho muitos
convites; não consigo fazer tudo sozinha, entenda. Os
convites são demasiados. Sem ajuda, para pôr em dia meus
compromissos, perderemos alguns dos negócios da firma.
— Então, está trabalhando de verdade? É inacreditável!
— Titio! — protestou Brigitte. — Você sabe que
trabalho bastante! Já cheguei a comprar algumas boas
coisas e vender outras.
— Encontrou boas espécies de plantas, minha querida?
Ela sorriu:
— Sim! Um pouco fracas, mas adubando-as faremos boa
coisa. Para isso, para cuidar de algumas, é que estou
pedindo um de seus ajudantes. Sei que não poderia contratar
um aqui; você não gostaria, tão ciumento que é de suas
plantas.
— Verei isso imediatamente, querida — foi a resposta
de “tio Charlie”. — Fico feliz de saber que está fazendo
algo de útil. Mandarei Simon até ai. Santa Catalina, não é?
— Sim, no “Santa Catalina Bay Hotel”, tio Charlie. Vou
inspecionar a estufa hoje à tarde. Fica aqui mesmo na ilha.
Posso gastar à vontade, não? Ando gastando um pouco além
da conta.
— O que pedirem, Brigitte, o que pedirem — e ele riu.
— Contanto que as plantas dêem lucros.
— Estamos certos, então? Espero Simon. Vou deixá-lo
dormir, titio.
— Dormir! São quase seis de manhã! — fez ele.
Brigitte surpreendeu-se, mas compreendeu logo: seu
relógio mostrava uma e meia. Em Nova York com a
diferença dos fusos horários o tempo era bem outro: quatro
da matina!
— Sinto muito tê-lo acordado a esta hora, tio Charlie —
disse ela, rindo.
— Sei que não sente coisa alguma! — replicou ele. —
Você tem certo prazer sádico em incomodar este pobre
velho. Mas, vá lá: estou satisfeito em vê-la fazer alguma
coisa. Não me zangarei desta vez.
— Tenha um bom dia, titio. Um beijinho.
— Com um beijo seu, talvez melhore o meu dia. Boa
noite, caríssima sobrinha.
Brigitte colocou o fone sobre o cavalete, aconchegou-se
sob o lençol e adormeceu logo, tranqüilamente.
CAPÍTULO OITAVO Acolhida pouco amigável.
Conversas à margem da piscina.
Um plano pouco gentil.
Onde se vê que Brigitte gosta das sutilezas.
Logo cedo, pela manhã, Brigitte deixou o hotel,
procurando um automóvel. Alugou um Chevrolet usado, e
bancou a jovem secretária em férias, à cata de paisagens.
— Há pouco que ver na ilha — disse o locador. — Não
haverá interesse para uma moça tão bonita.
Brigitte preferiu as evasivas
— Estou de férias, e vou para a casa de uns amigos —
replicou sem dar mais conversa.
E três horas depois, sem levar bagagem, aparecia na
quinta dos Silverton.
Era um lugar tranqüilo, com entrada magnífica, ladeada
de álamos e choupos. A casa, no meio do bosque, fora
muito cuidada na construção, rodeada de varandas de
colunatas. Só um milionário poderia ostentar aquela
opulência. E o milionário não era Percival Holmes
Silverton, senão sua esposa, Carol.
Um criado grandalhão, exótico e desengonçado,
apareceu para atende-la. Conseguiu sorrir-lhe, Brigitte não
soube como, e abriu-lhe a porta do veículo.
— Sou Brigitte — anunciou ela.
— Estão todos na piscina, senhorita — respondeu o
homem, numa voz rouca. — O senhor Silverton ordenou
que a conduzisse até lá. Pode deixar o carro. Mandarei
guardá-lo.
Brigitte entrou, acompanhada pelo bruxo que, não
obstante o peso, fazia o passo leve como um bailarino.
Atravessaram duas salas, saindo à direita da casa. E lá
estavam os Silverton e os Salamanca, todos em roupas de
banho. Percival nadava, enquanto o outro casal palestrava,
como sempre alegre, sob um toldo. E ao lado dos dois, uma
quarentona gorda, de óculos, o corpo muito esbranquiçado.
Era Carol Silverton, metida num maiô amarelo, o rosto
contraído, mostrando sua chatice interior.
Nati ergueu-se, ao vê-la aparecer. Usava um biquíni dos
menores, mostrando um corpo cheio de pecado.
Veio ao encontro de Brigitte e beijando-a amistosamente
falou:
— Carol não está num de seus melhores dias hoje,
querida.
— Não se preocupe, Nati — sorriu Brigitte, notando os
óculos da gorda milionária assestados nela. — Mas,
obrigada pelo aviso.
Aproximaram-se e Percival saiu da piscina, esbelto e
forte.
— Como passou o dia, Brigitte? Dormiu bem? — disse,
jovial e, depois, conduziu a repórter à presença da esposa:
— Carol, esta é Brigitte, de quem lhe falamos, muito
amiga de Nati e Abelardo.
Carol fez um gesto de enfado.
— Já sei, já sei, Perci. Nada tenho com isso. Você a
convidou e está acabado.
— Não se impressione, Brigitte — sorriu Percival. —
Carol não teve bons sonhos, esta noite.
Sem nada dizer, a mulher levantou-se, rumando para
casa. Silverton seguiu-a com os olhos, rindo baixinho.
Quando ela desapareceu, voltou-se para os outros:
— Vamos celebrar a chegada de Brigitte, amigos!
Bateu palmas, e o criado grandalhão apareceu.
— Joe, traga-nos alguma coisa de beber. — ordenou. —
Que vão tomar vocês?
Os Salamanca pediram uísque. Brigitte pensou um
pouco.
— Champanha com limão — disse, por fim. — Não me
ocorre outra coisa.
— Muito bem, Joe — fez Silverton. — Champanha com
limão, e uísque.
O homem afastou-se, calado. E Percival riu novamente.
— Viram só a reação do “narizinho”?
— Ora, Perci, você chateia demais a pobre mulher —
disse Brigitte.
— Demais?! E ela, o que me faz? — retrucou ele.
E pôs-se a rir mais alto, quase uma gargalhada. Voltou
depois a pegar o braço da repórter, perguntando:
— Está desgostosa com o jogo, querida? Não mostre
esse jeito melancólico ao falar de Carol. Ela merece o que
faço.
— Não sei se merece, mas...
— Bons dólares ajudariam? — insinuou ele.
— Não os vi, ainda — sorriu Brigitte, ambígua.
— Você os verá hoje, não se preocupe. Lembre-se:
quando se começa uma batalha tem-se que terminá-la. Você
já azedou, só com seu aparecimento aqui, o dia inteiro do
“narizinho”. Ela fugiu. Amanhã iremos para o iate, e então
não terá para onde fugir, entende? Vai ser divertido à beça,
oh, se vai!
OS AMIGOS DE PERCIVAL H. SILVERTON
Durante a tarde, apareceram Mix Baynes e um
cumpincha, que Brigitte vira também no iate. Baynes não se
comportava como um simples empregado de Silverton.
Mesmo para um homem de confiança do patrão, seu jeito
não era jamais o de um subserviente assalariado. Em certos
momentos parecia ser o verdadeiro chefe do outro homem
que viera na sua companhia.
Depois do jantar chegou uma visita. Era Spencer, o
homem que falara com Silverton e Baynes, no dia anterior,
na cabina de comando do iate.
Estavam todos já reunidos na grande sala fronteira da
casa, bebendo e contando pilhérias, quando Joyce Spencer,
que Baynes chamava de Yuri, às ocultas, foi introduzido
por Joe Gulik, o primeiro criado. Trazia uma valise negra e
mostrava a mesma cara de pau.
— Boa noite — saudou.
— Como vai, Spencer — respondeu Silverton. — Toma
alguma coisa?
— Não, obrigado — agradeceu ele. — Disponho de
pouco tempo e preciso falar-lhe.
— Muito bem. Quer passar ao escritório?
Os dois saíram, rumando para o interior da casa.
Brigitte simulou não dar importância ao recém-chegado,
mas ia analisando tudo. Num canto, Baynes sorrira, ao ver
Spencer, e tinha cumprimentado o homem piscando um
olho. Ao seu lado, o tal cumpincha que Brigitte julgava ser
marinheiro, também sorrira de modo ambíguo.
Carol, criatura permanentemente insatisfeita, parecia
indagar-se sobre as relações entre o marido e o tal Spencer.
Lançava olhares turvos para todos, mas especialmente para
Baynes e o outro.
O casal Salamanca ocupava-se em não fazer nada. Nada
aparentemente, lhes atraia a atenção, a não ser suas próprias
pessoas e as ocasiões de se mostrarem espirituosos, talvez
para agradar à dona da casa. Se houvesse algo ali de
criminoso eles não teriam notado.
E Joe Gulik? Teria algo mais a ver com Sllverton do que
cuidar da casa? Talvez com Spencer, pois Brigitte o vira
sorrir, pela primeira vez, quando introduzira o visitante na
sala. Era um sorriso antipático, o dele. Um sorriso que
revelava algo de felino, como se os dentes fossem garras. E
Brigitte, Imaginando seu modo de andar, conjugou.o ao
sorriso. Então, Joe Gulik apareceu em sua mente com a
figura de um gato matreiro. Melhor: um gato sério demais
para ser apenas gato.
Erguendo-se, Brigitte bocejou perceptivelmente.
— Nati, poderia indicar-me o toalete? — perguntou.
— Dez passos à esquerda, vinte à direita, ande em
frente, mais dez passos, suba a escada, desça ao porão
caminhe dez jardas e meia, dobre à direita... e pronto! —
brincou Abelardo, rindo. —Minha imaginação detém-se aí.
— Não certamente na toalete, querido! — fez Natividad.
— E por que não? Brigitte...
— Deixe de conversas fiadas — falou a esposa,
divertida, fechando-lhe a boca. — Brigitte, vá pelo
corredor: é a terceira porta.
Carol Silverton não moveu um dedo, nem achou graça
nos ditos dos brincalhões Salamanca, embora todos ali
rissem à vontade.
Brigitte, acompanhando os outros, ria também, enquanto
rumava para o corredor que levava ao interior da casa.
CAPITULO NONO Perigo e milhões numa contagem ambiciosa.
O que quer dizer, Caput!
Quando não se pode trocar sequer a letra de um nome.
Mulher atrás da porta.
Silverton sentado à uma escrivaninha, no escritório, e
Joyce Spencer, com a valise negra vazia nas mãos, a
observá-lo. Cena perfeitamente normal, entre amigos.
Exceto por um detalhe: sobre a mesa, Spencer depusera
muitos maços de notas. Blocos de todo tamanho, já que as
cédulas eram de valor diverso, enfeixadas junto às do
mesmo valor. E Silverton ia contando, com um sorriso nos
lábios:
— Oitocentos... novecentos... Bem, Spencer, pode ir
falando. Não me atrapalha em nada. Mil... mil e cem...
— Você agirá amanhã, Silverton — respondeu o outro.
— Encontrará o hidroplano ao entardecer quando a noite
não tiver descido totalmente ainda. Evitaremos assim o
emprego de sinais luminosos ou do rádio.
Silverton continuava passando pelas mãos os maços de
dólares, sem deixar de prestar atenção a Spencer:
— Digamos, meia hora antes que anoiteça...
— Sim, e exatamente no ponto combinado:
— Quarenta milhas ao sul da ilha de San Clemente, não
me esqueci — falou Silverton. — Creio que a tal distância a
guarda costeira americana não me amolará: nem a
mexicana, por certo.
— Espero que de a devida importância à operação, meu
caro. Muito cuidado ao transladarem as armas. Custaram-
nos muito, tanto para obtê-las como para pagá-las a você e
aos Salamanca. Os dois também sabem o que contem as
caixas.
— Já sei. Abelardo me falou — disse Silverton. —
Tencionam guardar a “mercadoria” na granja dele.
— Salamanca nos é totalmente leal, Silverton. Espero o
mesmo de você. E, por falar nisso: entenda que de agora em
diante poderemos dar-lhe trabalho sempre que precisarmos.
— Sempre?! — espantou-se Silverton.
— Esse “Sempre” quer dizer de dois em dois anos, mais
ou menos. Se recorrêssemos muitas vezes a você,
despertaríamos suspeitas. Não se incomode.
— Assim é melhor — sorriu Silverton. — E se me
negasse a colaborar em alguma ocasião?
— Caput! — limitou-se a dizer o impassível Spencer.
Percival empalideceu violentamente mas voltou logo a
falar:
— Então é assim, hem? Negativa será sinônimo de
morte.
— Fui bastante franco. E espero franqueza de você —
grunhiu o outro, depositando a valise sobre a escrivaninha.
— Quanto ao que pense sobre o assunto, devo dizer que só
eliminamos alguém em última instância, quando não há
probabilidade de recuperação para nossa causa, ou quando
nos vemos em perigo de sofrer denúncia.
Percival, tentando disfarçar o mal-estar que lhe havia
dado aquele “caput!” sem cerimônias, levantou-se, indo
abrir um cofre na parede. Esteve algum tempo silencioso,
metendo no cofre os feixes de dólares que perfaziam dois
milhões. Somente quando terminou de guardá-los teve um
pouco mais de frieza.
— Bem... preciso aclarar alguns pontos, ainda, Spencer.
Que classe de armas vou transportar?
— Americanas — disse o outro, com um sorriso cínico.
— São armas tomadas aos invasores de Cuba. Não é
interessante, Silverton? Veja só: vamos usar as próprias
armas que os americanos deram aos invasores.
— Que espécie de armas, Spencer?
— Pistolas, fuzis, metralhadoras de mão, granadas,
morteiros portáteis... Está ansioso por causa do iate? Não se
preocupe. Estão todas bem embaladas, e mesmo as caixas
de munição não explodirão.
— E se houver uma vistoria?
— Não haverá, temos certeza.
— E devo traze-las à costa. Muito bem. Espero que de
certo — ensejou Silverton.
— Dará! — Spencer foi categórico. — Tudo está
acondicionado em caixas de uma companhia leiteira que
serve Los Angeles. Faremos desses incidentes entre raças
um motim fenomenal, vai ver, Até você irá orgulhar-se de
ter colaborado para a baderna. A política interior dos
Estados Unidos se debilitará, pedindo mais atenção do
governo. Então, deixarão de sustentar tão pacientemente a
luta em certos pontos do globo. E será mais fácil para nós a
ação nesses pontos.
— Bem... creio que não haverá problema se tudo foi
arranjado assim — assentiu Percival. — Minha matrícula
marítima está em dia, sou cidadão americano e tudo o mais.
A Costeira nada verá de anormal. Muito bem pensado,
Spencer. Diga-me: como trarão as armas do Atlântico ao
Pacífico?
Joyce Spencer, olhando para o outro, ficou pensativo por
um momento.
— Bem, penso que poderá saber, pois é uni dos nossos a
partir de hoje. O hidroavião atinge grande altura. Passará
alta noite sobre o sul do México, por locais quase
desabitados. Depois de chegar ao ponto combinado esperará
sua aproximação, à tarde.
— E o ponto de desembarque — interveio Percival, —
está mais ou menos em San Juan de Capistrano. Um bom
lugar.
— Sim, um bom lugar — sorriu pela segunda vez o
visitante.
— Vamos ver: o nome do receptador será... Graves, não
é?
— Craves! — corrigiu Joyce, fazendo um sinal de
descontentamento. — Já lhe disse que deve decorar tudo,
Silverton!
— Coisa pouca! protestou Silverton. — Apenas errei
uma letra!
— Não é pouco! — replicou Spencer. — Uma letra às
vezes pode levar a... — suspirou: — Bem, o nome é
Joshuah Craves, embora falso. É mais uma senha do que um
nome, entende?
— Perfeitamente, perfeitamente! — sorriu Silverton. —
Ele levará as caixas para a granja de Abelardo, que as
mandará nos seus caminhões de leite para Los Angeles. Não
esqueci! E tem mais: o piloto do hidroavião se chamará
John Sibinsky. Está vendo, Joyce Spencer? O esquecimento
não foi mais que um lapso! Não se preocupe, não se
preocupe!
Joyce Spencer, nascido Yuri Skoveko e assim conhecido
fora dos Estados Unidos, fechou a valise e ergueu-se.
Caminhou até a porta, parando a três passos dela:
— E sobre essa garota, Silverton? Que resolveu?
— Caput! — fez Silverton.
— Ainda bem — sorriu o outro, repuxando os lábios. —
Vai levá-la?
— Em alto mar, tudo se tornará mais fácil...
imperceptível, como se diz.
Spencer, ou Skoveko, assentiu com a cabeça e avançou a
mão para a maçaneta da porta. Esta não cedeu.
— Espere, fechei-a à chave — disse Silverton,
aproximando-se.
Girou a chave, abrindo a porta. E lá estava Brigitte
Montfort com a mão erguida como se fosse bater.
CAPÍTULO DÉCIMO Pequeno esforço de memória e uma explicação necessária.
Quando um cavalheiro se aproveita.
Caminho interceptado e uma sombra da morte.
Deixemos por um momento os três surpresos
personagens da cena anterior e voltemos atrás uns tantos
minutos. Enquanto Brigitte Montfort ouvia a conversa de
Percival Holmes Silverton e Yuri Skoveko, um homem
silencioso encaminhava-se até o mesmo corredor e,
chegando à porta perto da qual estava Brigitte, estacava. Era
o mordomo, Joe Gulik, o grandalhão sisudo. Estivera nos
fundos da casa, ordenando o preparo de mais bebidas para
os amigos de Silverton. E vendo Brigitte agachada junto à
porta do escritório, compreendera imediatamente o que se
passava. Joe Gulik retrocedeu, buscando o salão da frente
por outro corredor. E quando lá chegou, fez um sinal a Mix
Baynes, que saiu para atende-lo. Estiveram falando por dois
minutos, num canto, e depois Joe Gulik desapareceu de
vista. Mix Baynes sorria.
O GESTO
Brigitte ficou indecisa por um minuto, encarando os dois
homens. Ambos a olhavam com surpresa, mas o rosto de
Yuri Skoveko era simplesmente de assassino. Silverton, que
sorria ao abrir a porta, conseguiu manter-se assim, embora
com dificuldade.
Afinal, a mente de Brigitte se aclarou um pouco.
— Pensei.., pensei que já estivesse só, Perci. Ia chamá-lo
para...
Silverton demorou a responder. Depois, ampliou o
sorriso.
— Não se preocupe, queridinha. O senhor Spencer já
saía. Que houve?
— Pensei em levá-lo de volta à sala — sorriu Brigitte.
— Fui à toalete e estava de volta. Na verdade, não me
convém ficar esta noite aqui, pois Carol está com um olhar
fulminante. Ia pedir que me levasse a... bem, você sabe,
não?
— Sei?! — fez ele. — Sei o que?! Carol fez algo?
— Não, Perci, não! — disse Brigitte, e com a mão lhe
tocou um bolso do “slack”.
Silverton sorriu novamente:
— Ah! Ia falar-lhe logo sobre isso, Brigitte.
Skoveko, a cara endurecida ainda, tocou o braço de
Silverton.
— Preciso ir, amigo — e piscou um olho. — Sabe como
quero as coisas, não?
— Sim, sim — e Silverton fez o mesmo gesto.
— Não se preocupe.
Skovenko afastou-se, desaparecendo, e Percival tornou a
Brigitte:
— Muito bem, minha querida. Desculpe, mas não quis
ser apressado em dar-lhe o dinheiro combinado. Pensei que
fosse ficar aqui até mais tarde. Tencionava mesmo pedir-lhe
que pernoitasse aqui.
Dizendo isso, metia a mão no bolso, retirava um maço
de notas, contava-as: mil e quinhentos dólares. Entregou
tudo a Brigitte, que sorriu.
— Assim vai bem o trato — disse, beijando-o
ligeiramente.
Em sua mente as palavras que os dois homens haviam
trocado martelavam: “Sabe como quero as coisas” —
dissera o tal Spencer. E aquilo, evidentemente, era nada
menos que — “Caput” — para ela, isto é, eliminação
sumária. Todavia, não podia odiar Spencer por isso. Era um
espião, e se assim não agisse, ele e os companheiros
estariam perdidos, inda mais em território estadunidense.
Ele apenas se defendia, e aos seus.
— Se ganhar a luta para a qual a contratei, terá muitos
milhares, Brigitte — disse Silverton, sempre sorridente. —
Mas, é verdade que deseja ir já?
— É preciso, Perci — confirmou ela, (e na verdade era
preciso).
— Bem — conformou-se ele — você me escapa hoje,
mas amanhã à noite estaremos no iate: lá será difícil fugir
de mim.
— Quem sabe! — fez Brigitte, matreira.
Beijou-o novamente:
— Agora, leve-me, por favor!
Encaminharam-se até a sala, e durante o breve percurso
Silverton não perdeu a ocasião de abraçá-la:
— De modo algum me fugirá! — repetiu, esmagando-
lhe os lábios com um beijo demorado.
Jeitosamente, Brigitte desvencilhou-se.
— Mais calma, Perci. Amanhã veremos.
Ele conformou-se, levando-a à sala:
— Não quer que Mix a conduza?
— Não, obrigada — sorriu ela. — Mix está se
divertindo. Além do mais tenho o carro, e não bebi muito.
— Está bem — disse Silverton, com uma leve
preocupação na voz.
Chegando onde estavam os outros, Brigitte despediu-se,
embora sob protestos dos Salamanca, secundados ainda por
Silverton. Somente Carol aprovou, saindo do mutismo em
que vivera aquele dia:
— É ótimo que vá — disse a mulher.
“Um favor que lhe faço, pobre Carol” — pensou
Brigitte, consigo, com verdadeira pena da mulher que ela, a
contragosto, estava hostilizando.
Assim foi que, minutos depois, já deixando a quinta,
Brigitte pensava no que não sofreria Carol Silverton nas
mãos de tal marido. Sua vida devia ser um inferno de
ciúmes, e todos provocados cinicamente.
Ia a duzentos metros do portão de saída, já atingindo a
estrada que a levaria à cidade, quando repentinamente
deixou de pensar em Carol Silverton: à frente do automóvel,
bem iluminado pelos faróis, estava Joe Gulik, o mordomo,
que lhe fazia sinais para parar. Reconheceu-o de imediato,
não sabendo como julgar, entretanto, sua presença ali.
Não obstante um sexto sentido a prevenisse de perigo,
Brigitte parou o automóvel junto dele.
— Que aconteceu, Joe? — perguntou.
Ele cruzou o indicador nos lábios, pedindo silencio:
— Apague as luzes e venha comigo — sussurrou.
Brigitte quis dizer algo, mas o grandalhão já se metia
entre os arbustos do lado da estrada, entre as árvores.
Antes de atende-lo, Brigitte procurou sua arma preferida
sob o assento do automóvel. Empunhando a pequena
pistola, levou-a entre as dobras da saia.
Quando ultrapassou os primeiros arbustos, Gulik
apareceu repentinamente em sua frente. Surpreendeu-a com
o silencio de um felino, ao golpear-lhe a mão armada,
derrubando a pistola, enquanto com a outra lhe tapava a
boca.
Dentro de dois segundos1 uma navalha afiada apareceu
ante os olhos de Brigitte, brilhando à luz da lua. Ele
conseguia sujeitá-la apenas com um cotovelo, mantendo-a
imobilizada. Era de uma força incomum, o gigantesco Joe
Gulik.
Aproximando a navalha de seu pescoço, imobilizando-a
contra o peito enorme, o gigante murmurava:
— Tenho ordem de matá-la, meu benzinho. Sabe que é
realmente uma pena? Mas, antes de matá-la, que tal se?...
Joe tem boas idéias, meu benzinho...
Ouvindo aquela voz implacável, Brigitte sentiu chegada
sua hora.