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AS FENÍCIAS' DE EURÍPIDES UMA PARÁFRASE DE CÂNDÍDO LUSÍTANO Urna das tragédias euripídeas que mais populares se tornaram foram, sem dúvida, As Fenícias. O seu argumento congloba uma plu- ralidade de motivos dispersos pela poesia épica (//. Ií. 572; IV. 378 sq., 406 sqq.; X. 285 sqq.; XIV. 114 sqq.; XXTII. 678-680, 326 sq; Od. XI. 271 sqq., 362 sq.; XV. 244 sqq.; Edipodia; Thebais frs. II e III Allen), lírica (Tind., Ol. VI. 12-17; Nem. IX.8-17) c dramática (Laio, Édipo, Esfinge, Sete contra Tebas e Eleusínios de Esquilo; Antígona, Rei Édipo e Édipo em Colono de Sófocles; Antígona, Édipo, Suplicantes e Hipsípila de Eurípides). Com a data aproximada de 410 a.C, este drama do ciclo tebano tornou-se de tal maneira apreciado na época helenística, que veio a constituir, juntamente com a Hécuba e o Orestes do mesmo dramaturgo, a chamada tríade bizantina. Já o autor do primeiro argu- mento reconheceu a riqueza do seu conteúdo trágico, bem como a beleza das suas múltiplas cenas e sentenças. Foi também uma das peças que mais contribuíram para que Eurípides, dentre os três con- sagrados tragediografos gregos, fosse considerado Tqaytmixaxoç por Aristóteles (Poet. 1453a). Não é de admirar, pois, que As Fenícias tenham sido, ao longo dos tempos, muito citadas (1), imitadas, traduzidas e para- fraseadas. A este propósito, podem citar-se as peças homónimas dos poetas latinos Ácio e Séneca (2), a Giocasta de Lodovico (1) Cf. A. Tuilier, Recherches critiques sur la tradition du texte d y £uripide. Paris, Klincksieck, 1968, pp. 76-100. (2) Cf. L. Hcrrmann, Sénèque: Tragedies, Paris, Société d'Édition «Les Bcllcs Lettres», 1925, p. 106. Deve mencionar-se também, sobre este assunto, a Tebaida de Estácio, pois, embora se trate de um poema e não de uma peça teatral, retoma, contudo, o argumento da tragédia euripídea.

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  • AS FENCIAS' DE EURPIDES UMA PARFRASE DE CNDDO LUSTANO

    Urna das tragdias euripdeas que mais populares se tornaram foram, sem dvida, As Fencias. O seu argumento congloba uma plu-ralidade de motivos dispersos pela poesia pica (//. I. 572; IV. 378 sq., 406 sqq.; X. 285 sqq.; XIV. 114 sqq.; XXTII. 678-680, 326 sq; Od. XI. 271 sqq., 362 sq.; XV. 244 sqq.; Edipodia; Thebais frs. II e III Allen), lrica (Tind., Ol. VI. 12-17; Nem. IX.8-17) c dramtica (Laio, dipo, Esfinge, Sete contra Tebas e Eleusnios de Esquilo; Antgona, Rei dipo e dipo em Colono de Sfocles; Antgona, dipo, Suplicantes e Hipspila de Eurpides). Com a data aproximada de 410 a.C, este drama do ciclo tebano tornou-se de tal maneira apreciado na poca helenstica, que veio a constituir, juntamente com a Hcuba e o Orestes do mesmo dramaturgo, a chamada trade bizantina. J o autor do primeiro argu-mento reconheceu a riqueza do seu contedo trgico, bem como a beleza das suas mltiplas cenas e sentenas. Foi tambm uma das peas que mais contriburam para que Eurpides, dentre os trs con-sagrados tragediografos gregos, fosse considerado Tqaytmixaxo por Aristteles (Poet. 1453a).

    No de admirar, pois, que As Fencias tenham sido, ao longo dos tempos, muito citadas (1), imitadas, traduzidas e para-fraseadas. A este propsito, podem citar-se as peas homnimas dos poetas latinos cio e Sneca (2), a Giocasta de Lodovico

    (1) Cf. A. Tuilier, Recherches critiques sur la tradition du texte dyuripide. Paris, Klincksieck, 1968, pp. 76-100.

    (2) Cf. L. Hcrrmann, Snque: Tragedies, Paris, Socit d'dition Les Bcllcs Lettres, 1925, p. 106. Deve mencionar-se tambm, sobre este assunto, a Tebaida de Estcio, pois, embora se trate de um poema e no de uma pea teatral, retoma, contudo, o argumento da tragdia euripdea.

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    Dolce (1), a Antigone de Rotrou (2), La Thbaide ou les Freres Ennemis de Racine (3) e, j no sc. XX, Les Phniciennes de Georges Rivollet, cujo I. Acto foi traduzido pelo poeta portugus Augusto Gil (4).

    A este significativo, embora incompleto, inventrio, que documenta a vitalidade da pea euripdea, traz preciosa achega um manuscrito que se conserva na Biblioteca Pblico de vora. Trata-se de uma parfrase de As Fencias de Eurpides, registada no catlogo de Ino-cncio sob o n. 987 (5). uma das trinta e seis obras inditas do P. Francisco Jos Freire, mais conhecido pelo nome arcdico de Cn-dido Lusitano.

    O modelo helnico aparece transformado numa pea em cinco actos, quase toda em decasslabos soltos, em geral dispostos astroficamente. O I. Acto abrange trs cenas, correspondentes, respectivamente, ao monlogo de Jocasta, teichoscopia e ao prodo da pea euripdea. A me-esposa de dipo expe as tribulaes passadas e presentes da famlia (cena 1). Antgona e o velho escravo assomam, depois, ao terrao do palcio, donde divisam, sobre a plancie tebana, o exrcito sitiante, cujos chefes argivos so identificados pelo ancio. vista das donzelas fencias, recolhem-se no interior da casa real, para evitar reparos que a tica grega prev para casos idnticos (cena II). A seguir, o coro faz a sua apresentao. Como urea esttua destinada a Apolo, encontra-sc de passagem em Tebas, donde prosseguir viagem para o templo da deifica deidade. Anseia pelas guas da Castlia corrente, invoca a Parnsia Montanha e mostra-se apreensivo pelas ameaas de Marte horrfico contra seus parentes tebanos (cena III). A primeira dade estrofe-antstrofe do prodo helnico encontram-se fundidas; as outras partes aparecem separadas pela curiosa rubrica Outra do Coro, colocada entre dois asteriscos. As designaes gregas desapa-receram.

    No TT. Acto, que, como o anterior, compreende trs cenas, trans-fundiu Cndido Lusitano todo o primeiro episdio da pea grega.

    (1) Encontra-se uma anlise comparativa desta peca, na minha dissertao Eurpides: As Fencias, Coimbra, 1974 (policopiada), pp. 306-312.

    (2) Cf. P. Brumoy, Le Thtre des Grecs, IV, Paris, 21763, pp. 279-290. (3) Sobre esta pea, cf. o meu trabalho j citado, pp. 312-314. (4) Cf. M. H. Rocha Pereira, Poetas Gregos em Augusto Gil, Humanitas

    21-22 (1969-70), 379-401, especialmente pp. 389^401. (5) Cf. Dicionrio Bibliogrfico de Inocncio, Tomo II, 1859, p. 410.

  • UMA PARFRASE DE 'AS FENCIAS' DE EURPIDES 19

    Polinices entra receoso na cidade natal, levando na dextra pronta espada. O seu temor dissipa-se vista do coro, que o reconhece como nome noto em Tebas e o sada: s tuas plantas me prostro reverente, / Rei fatal (cena I). Segue-se a mondia de Jocasta: aos brados das donzelas, a Rainha sai do palcio e abraa efusivamente o filho h tanto tempo expulso por ingrato irmo mpio. Polinices justifica-se perante a me pela atitude tomada. Jocasta responsabiliza o fado infesto, pois foi devido s maquinaes deste que Polinices nasceu por maneira vedada a mortal prole. O dilogo entre os dois prossegue agora sobre as pri-vaes que Polinices sofrera no exlio (cena II). A cena II contm o equivalente ao yiv e esticomitia que se lhe segue no original. Reunidos cm assembleia, a que Jocasta preside como KQntf, os dois irmos rivais encontram-se frente a frente nas suas posies irredutveis: Polinices saquear Tebas, se o irmo lhe no entregar o poder; Etocles, porm, recusa-se terminantemente a satisfazer tal exigncia; Jocasta apela para o bom senso dos filhos, mas sem resultado.

    Omitindo o primeiro estsimo (vv. 638-689), com que deveria ter-minar o II. Acto, Cndido Lusitano englobou no III. Acto, composto s por duas cenas, todo o conjunto formado pelo segundo episdio, segundo cstsimo, terceiro episdio e terceiro estsimo da pea helnica. A cena I contm a discusso entre Etocles e seu tio Creonte sobre a estratgia militar a seguir na defesa de Tebas, bem como o motivo das ltimas vontades c ainda todo o segundo estsimo, que aparece dividido em trs partes: a primeira corresponde ponto por ponto estrofe e dirigida pelo coro contra Mavorte, precursor tremendo j De danos mil; a segunda, encimada pela rubrica Outra voz colo-cada entre parntesis sob um asterisco, corresponde a uma parte da antstrofe (vv. 801-810) e ocupa-se do Citero dilecto da casta Cntia, monte jucundo por caas hrridas, bero do malogrado dipo, que decifrou os enigmas da mortfera Esfinge; finalmente a terceira, sob rubrica idntica da anterior, abrange o resto da antstrofe (vv. 811-817) c todo o epodo, no qual referida a origem dos Tebanos, gente assinalada,

    Que inda agora a Fama canta, Que inda agora os cus povoa.

    cena II pertence o encontro entre Tirsias e Creonte. Este, informado pelo adivinho de que a salvao de Tebas exige a morte de

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    seu prprio filho Meneceu, fica estupefacto, como observa o coro con-tagiado de espanto:

    Ah, Creonte infeliz, porque emudeces E com dor taciturna o peito oprimes? E qual ser tua dor, se eu angustiado O peito tambm sinto, ouvindo ao vate?

    Aos porfiados esforos para o salvar corresponde o filho com um hbil logro: a pretexto de se ir despedir de sua tia Jocasta, descmbaraa-se da presena de Creonte e, recusando ser traidor Ptria amada, imola-se pela salvao de Tebas. Antes de louvar a aco pasmosa do Mancebo ilustre, o coro apostrofa o Monstro terrfico, a Esfinge que, nascida da tartrea Equidna, provocou a runa dos Labdcidas, lanando-os em execranda guerra. As donzelas fencias exclamam apreensivas:

    Ai combate cruel, que tanto sangue Derramars fraterno!

    A aco prossegue, no IV. Acto correspondente ao quarto episdio e ao quarto estsimo do modelo helnico com a chegada do escudeiro de Etocles, o qual informa Jocasta acerca dos prepara-tivos blicos: sete batalhes, comandados por sete chefes, esto prestes a atacar as sete portas de Tebas. Aps os primeiros combates, a luta interrompida por proposta de Etocles, e a sorte da contenda ser decidida em duelo. Jocasta chama Antgona pressa (cena I). Me e filha saem rapidamente para o campo de batalha. Nas suas lamenta-es, o coro pressente como inevitvel a morte de Etocles e Polinices (cena II).

    Ao contrrio do anterior, o V. Acto o mais extenso de todos e contm o equivalente aos 458 versos que constituem o xodo da pea euripdea. A primeira das quatro cenas em que se divide, compreende a entrada de Creonte no palco, procura de sua irm Jocasta, para prestar as honras fnebres ao cadver de Meneceu:

    Porque aos vivos pertence honrar os mortos, E cultos dar s Infernais Deidades.

    Entretanto, chega o mensageiro, que, a pedido de Creonte, narra

    Desses fatais Irmos A morte asprrima.

  • UMA PARFRASE DE 'AS FENCIAS' DE EURPIDES 21

    Descreve em seguida a morte de Jocasta (cena II), que no fatal sucesso

    Em mudez reflectindo, e toda atnita, Mas logo fria insana sobrevindo-Ihe, Tirou do filho a espada em feroz mpeto E o colo trespassou nela lanando-se.

    A cena IIT corresponde mondia de Antgona. Sem os feminis enfeites, mas com cabelos informes, espargidos e arrastando cor lgubre, a infeliz donzela conduz para a cena o squito fnebre e chama o pai, que se encontra fechado num quarto do palcio, sempre co'as mos topando em negras sombras. Antgona comunica-lhe em seguida a morte da esposa e filhos (cena IV). A cena ltima abrange o decreto de expulso lanado por Creonte contra dipo, a proibio da sepultura de Polinices e, finalmente, a partida de Antgona para o exlio em com-panhia do pai, que exclama:

    Quem dir que sou hoje aquele insigne dipo vitorioso dos escuros Altos enigmas do Virgneo Monstro?

    Tal , nas suas linhas gerais, a estrutura desta parfrase de As Fen-cias de Eurpides, na qual se no notam variantes significativas em relao ao modelo helnico, ao contrrio do que sucede na Giocasta de Lodovico Dolcc c, cm maior grau, nas outras peas j citadas dos dra-maturgos franceses. Todavia, uma anlise comparativa revela-nos a existncia de desvios, que, segundo creio, valer a pena referir.

    A diviso cm Actos inscre-sc, com certeza, numa tradio que come-ou a fixar-se a partir do Renascimento (1). Este pormenor em si mesmo de importncia secundria, uma vez que o drama euripdeo permanece, como foi dito, inalterado. Mas, por isso mesmo, soa a falso, pelo que teria sido prefervel pr de parte, neste caso, o preceito hora-ciano neve minor neu sit quinto produetior actu (A.P. 189) e res-peitar a nomenclatura adoptada por Aristteles (Poet. 1452b) para as

    (I) Cf. F. Plessis et P. Lejay, Oeuvres d'Horace, Paris, Hachette, 1957, p. 602.

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    vrias partes duma tragdia (1). O prlogo aparece reduzido ao monlogo inicial de Jocasta, como o indica a prpria palavra prlogo, subposta rubrica cena 7.a, e nesse pormenor mais uma vez Cndido Lusitano se afastou da Potica aristotlica, segundo a qual prlogo tudo o que precede a entrada do coro (Aristol. Poet. 1452b) e inclui, portanto, no caso de As Fencias, a teichoseopia (cena 11). Euripides apresenta incompleta a filiao de Harmonia: apenas mencionado o nome da me, que Cpria; na parfrase portuguesa acrescentado o nome do pai, com certeza por exigncias mtricas, mas erroneamente. Com efeito, segundo a verso adoptada na pea euripdea, a esposa de Cadmo filha de Ares / Marte, e no de Zeus / Jove (2). A splica de Jocasta ao pai dos deuses (Phoen. 84-87) parafraseada do seguinte modo:

    Mas tu que assistes l nos luminosos, Altos giros do cu, Jove supremo, Inspira nos meus filhos a concrdia, Pois que no deves, se s prudente Nume, Deixar passar ao homem tristes dias, Misrrima fortuna padecendo.

    A elegncia da traduo e a relativa fidelidade de sentido no nos impedem de reparar que a palavra homem, tomada em sentido universal, no parece corresponder expresso (IQOTV rv avrv (Phoen. 86 sq.), a qual, neste contexto, s se pode referir concretamente a dipo.

    Outra observao a fazer diz respeito ao verso 100:

    xQOv itaXaiv xXfiax statna. no'

    (1) Alis, o prprio Cndido Lusitano diz o seguinte: pareceu a toda a Anti-guidade, e tem parecido at aqui a todos os bons Dramticos modernos, especial-mente Trgicos, que a diviso das partes de um Drama deve ser em cinco Actos, nome que lhe deram os Latinos; porque os Gregos dividiam em partes, e a sua diviso era muito melhor e mais natural e artificiosa: pois no repartiam como os Latinos em partes iguais o corpo da Tragdia, ou Comdia (Arte Potica de Q. Horcio Flavo, Traduzida c ilustrada em Portugus, Lisboa, 31784, p. 121). Cf., do mesmo, Arte Potica ou Regras de Verdadeira Poesia em geral e de todas as suas espcies prin-cipais, tratadas em juzo crtico, Tomo II, Lisboa, 21759, p. 14.

    Uma discusso actualizada sobre o assunto encontra-se em C. O. Brink, Horace on Poetry, The "Ars Potica', Cambridge University Press, 1971, pp. 248-250.

    (2) Cf. W. H. Roscher, Lexicon, Hildesheim, Georg Olms, 1965.

  • DMA PARFRASE DE 'AS FENCIAS' DE EURPIDES 23

    ao qual corresponde, na traduo quase literal:

    Sobe essa escada velha, mas de cedro.

    A posio de realce em que, no texto grego, se encontra o substan-tivo xQov em princpio de verso, no parece suficiente para explicar o emprego da adversativa. Com efeito, o carcter antigo (naXaxv) da escada e a matria de que ela feita no se opem entre si, mas tm a funo de pr em destaque a nobreza do palcio real dos Labdcidas. Mais uma vez a tirania do decasslabo deve ter ditado as suas leis.

    Tambm suscita reparos a verso do seguinte passo, proferido por Antgona:

    TAa TtvXm xfajiQot %aXxEr ftfoX te Xaivotaiv 'Apapovo oyvot Tei%eo rjufioarai;

    (W. 114-116)

    Cndido Lusitano aproveitou a meno apenas acidental do nome de Anfon, para explorar o motivo da construo das muralhas de Tebas pelo Dioscuro tebano:

    Ai! Se estaro bem firmes As portas das muralhas! Ouvi dizer que todas So excelentes obras De Anfio, que ao som da lira Soubera atrair pedras.

    Esta ampliao explica-se, com certeza, pelo facto de se tratar de um vasto conjunto em que, no dilogo entre os dois, as perguntas e exclamaes da donzela so formuladas em sextilhas de hericos quebrados, e as respostas do velho escravo em tercetos de decasslabos hericos.

    Algo pitoresca, ingnua c incoerente se me afigura a resposta do pedagogo, correspondente ao verso 123. No texto original, depois de Antgona ter pedido a identificao de um guerreiro de alvo penacho com um escudo de macio bronze (vv. 119-122), o ancio responde pronta

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    e laconicamente: Ao^ay, & aTioiva. Na verso portuguesa, a prin-cpio hesita, porque no distingue com suficiente clareza:

    Aquele... espera um pouco... Oh, j conheo!

    Pouco depois, vai dizer expressamente a Antgona que no v Capaneu:

    Esse, pois que o no vejo, discorrendo E espiando andar as Sete Portas, Ou medindo dos muros a eminncia.

    ao passo que, no texto grego (vv. 180 sq.), a funo epidctica do pronome xelvo uma prova evidente da visibilidade do guerreiro. Mridier traduz at aquele demonstrativo por l-bas (1). Parece, na verdade, pouco verosmil esta incoerncia do atento escravo, que, momentos antes, tinha visto de perto o grego acampamento e, na lngua de Eur-pides, havia garantido donzela: nvra ' tifhc; (ppo(o (v. 95). Ele mesmo vem, posteriormente, a explicar a origem do seu perfeito conhecimento :

    Reparei bem dos chefes nas Insgnias, Quando fui l com outros pedir trguas. Por mandado de Etocles: notei-as E, por isso, os distingo claramente (2).

    Outra distraco esta bem mais grave de Cndido Lusi-tano: o pedagogo no foi enviado a propor trguas por iniciativa de Etocles nem poderia s-lo, dentro da economia dramtica da pea mas sim de Jocasta, a medianeira no diferendo entre os dois prncipes (3).

    Os versos 175-178 foram postos de parte, com certeza por consti-turem, em certa medida, uma duplicao dos versos 109-111, nos quais a filha de Latona j tinha sido invocada por Antgona. O substantivo comum Tptavm (v. 187) tomado erradamente como um topnimo

    (1) L. Mridier, Euripide, V, Paris, Socit cTdition Les Belles Lettres, 1961, p. 161.

    (2) Cf. Eurpidcs, Ptioen., 142-144. (3) Cf. Eurpides, Phoen. 81-82.

  • UMA PARFRASE DE 'AS FENCIAS' DE EURPIDES 25

    Triena enquanto, no mesmo passo, omitido o mitnimo Posi-don implcito no texto grego (v. 188). Esta interveno de Antgona termina com um apelo Pura Deidade Cntia: trata-sc de um epteto derivado de KVVOOQ, nome do monte da ilha de Delos, onde nasceu a irm gmea de Apolo; a deusa rtcmis, mitnimo que, curiosamente, nunca aparece ao longo da parfrase, embora Cndido Lusitano o empre-gue aportuguesado sob a forma de Artemisa, num comentrio ao verso 119 da Arte Potica de Horcio (1). O facto de Cntia ser um nome potico, j consagrado pelo largo uso que dele fizera Proprcio, parece ser uma explicao razovel. Na cena III, aparece o topnimo Cilicia, sem dvida cm vez de Siclia (2). Deve tratar-se de um lapso semelhante ao que se l na cena II do III. Acto: Eupolmo por Eumolpo (3). H ainda a referir que Polirces no revela ao coro a sua filiao, ao contrrio do que acontece na pea original (w. 288-289).

    Uma rectificao, que no pode deixar de fazer-se, diz respeito aos versos 355-356. As intensas efuses de afecto maternal, expressas por Jocasta num ritmo variadssimo, provocam viva impresso no coro, que exclama:

    etvv ywalv a i vwv yova, uai (fiXrexvv na>; nv yvvaixsiov yvo.

    Segundo opinio unnime dos intrpretes actuais, a traduo dever ser esta: s mulheres misteriosa fora lhes confere o transe de serem mes, e o amor maternal de algum modo se estende a todo o sexo feminino. Observao similar se encontra na Ifignia em ulide. Depois de Clitemnestra se ter prostrado aos ps de Aquiles, suplicando-lhe veemen-temente pela salvao da rilha, o coro comenta:

    etvv r TXXSIV xai >QEI (pkroov fiya naoiv r, xoivv axj' VTiEQxfivetv xxvmv.

    (vv. 917-918)

    , alis, frequente, na Tragdia grega, o coro sublinhar, com um sucinto comentrio general izante, as impresses que lhe causa a fala de uma personagem exaltada por sentimentos intensos. o que sucede

    (1) Op. cit., p. 86. (2) Cf. Eurpides, Phoen. 211. (3) Cf. Eurpides, Phoen. 854.

  • 26 MANUEL DOS SANTOS ALVES

    no citado passo de As Fencias, o qual representa um delicadssimo encmio ao fragile sexum. Pois para o belo dstico grego apresenta Cndido Lusitano esta monstruosa parfrase, pouco abonatria do instinto materno:

    Maravilhosa cousa , na verdade, Que, sendo nas mulheres dor acerba Seus partos, inda assim tanto dirigem Ter a vaidosa glria de fecundar.

    O facto de o ltimo destes versos ter uma slaba a mais pouco interessa. O que preciso frisar que estamos em presena de uma interpretao infeliz do texto original. Para ela no deve ter contribudo pouco, graas aos remoques aristofnicos, o tradicional ferrete de misgino lanado contra Eurpides. Tai preconceito est hoje, porm, posto de parte (1).

    Mais bem sucedido foi Cndido Lusitano em respeitar a tradio, relativamente aos versos 408-415, que os ltimos editores, excepo de Murray, alteraram sem vantagem alguma (2). O mesmo se pode afirmar, quanto distribuio das falas de Creonte e Meneceu (w. 985--990), Jocasta e Antgona (vv. 1279-1283). Contudo, mais uma vez se afastou do texto original, ao apresentar como feito a sua me o pedido que Polinices dirige a Etocles, de lhe ser permitido visitar dipo (v. 615). Tambm a vjiXaftf) proferida por Etocles no fim da discusso entre os dois prncipes inora) JIOTZCI pio (v. 624) falsamente atribuda a Polinices, que diz:

    O sangue de dipo Antes acabe que este brao vlido Deixe de se vingar neste vil emulo. Ferro cravando no seu peito prfido!

    Como estas ameaas e insultos carregam de tons escuros a figura do prncipe esbulhado, to simptica na pea euripdea! O verso 765

    (1) Cf. J. Alsina Clota, Studia curipidea, III: El problema de la mujer en Eurpides, Helmantica IX (1958), 87-131; La position de Eurpides ante la mujer, Actas Ler Cong. Esp. de Est. Cts. II (1958), 447-453.

    (2) Cf. o meu trabalho citado supra, pp. 544-546.

  • UMA PARFRASE DE 'AS FENCIAS' DE EURPIDES 27

    formado por um perodo hipottico no caso eventual que aparece, na parfrase portuguesa, transformado em caso irreal, com evidente distoro de sentido. Confronte-se, pois, a frase:

    rjfi ' oiaiv, f/v xvyr\it xazaxTevet

    com o dstico

    E h muito que ele me ciaria a morte, Com mpias maldies, se o cu o ouvira.

    em que tambm o plural rj/n aparece traduzido pelo singular me. J, pelo contrrio, a condio que o rcade portugus acrescenta,

    relativamente aos versos 775-777, revela uma inteligente interpretao deste passo, que, alis, bons helenistas contemporneos consideram interpolado (1). Com efeito, perante o texto

    tfvTieQ XQarrjorji rfi, IJoXvvelxov vxvv juyxoTe raqfjvat rFjie rj(iaai %Qov, Ovrjiane.iv rv OyjavTa, xv

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    baseiam-se numa interpretao, hoje desactualizada, do escoliasta, que toma Tvyr\ no sentido de evrvyja e no vorv%la. (1). No fim do dilogo entre Creontc e o filho, as duas primeiras frases da resposta deste (vv. 985-986) Ev Xyetf Tixeo e Xowei vvv no so consi-deradas. Porm, a distribuio das falas das duas personagens , como foi dito, correcta. Efectivamente, ltima pergunta que, solicito, o pai lhe dirige E que mais queres? o filho responde logo, com a piedosa mentira.

    De tua Irm despedir-me, que amo muito (Cara Jocasta, a cujos peitos devo O alimento infantil, rfo ficando); Se licena me ds, eu vou e volto.

    qual Creonte, j logrado, reage positivamente: Teu amor satisfaze, mas no ponhas Por ti mesmo embaraos fugida.

    (vai-se)

    Outra observao a fazer diz respeito frjot que, iniciada pelo mensageiro (vv. 1090 sqq.), logo interrompida por Jocasta, o que constitui uma inovao e tambm um exemplo do modo como, na tragdia grega, se originam, por vezes, as esticomitias: mal uma per-sonagem comea a falar, imediatamente interpelada por outra, sur-preendida por uma notcia ou ansiosa de informar-se. Assim se desen-cadeia, em certos casos que no neste passo da parfrase todo um jogo de perguntas e respostas, no qual acaba por se desintegrar uma fala de antemo planeada (2). Na verdade, aps o escudeiro de Etecles haver principiado a sua mensagem.

    Depois que o Filho ilustre de Creonte O colo trespassou co'a prpria espada...

    Jocasta pergunta:

    Morto o meu Meneceu, ai, que me dizes?

    (1) Ibidem, p. 629. (2) Ibidem, pp. 545 sq.

  • UMA PARFRASE DE AS FENCIAS' DE EURPIDES 29

    O mensageiro retoma, em seguida, a sua pfjoi, e no volta a ser inter-rompido. De entre as sete portas que menciona, s a ltima annima e aparece sob a designao de fip,ai;... v nvlaiaiv (v. 1134). Na parfrase, porm, no se l stima porta, pois o ordinal tomado como nome prprio das portas Hebdomas. tambm hoje inaceitvel o sen-tido que Cndido Lusitano atribui expresso fiiMm %Qov (v. 1408), a qual no designa o pas (Tesslia) onde Etocles teria aprendido o estrategema tesslico, mas sim o perfeito conhecimento das condies do terreno em que o duelo se estava a travar. Era, com efeito, essa familiaridade com o terreno, que permitia ao prncipe pr em prtica a sua tcnica especial no momento mais conveniente (1).

    So estes, em suma, os desvios que me pareceram mais significativos na parfrase de Cndido Lusitano. Outros h que no interessa ana-lisar, por serem facilmente explicveis, pois, ou fazem parte da natureza da prpria parfrase, ou resultam de lapsos e erros do copista. De entre estes, os mais frequentes so a troca ou falta de letras e sinais de pontuao.

    Feito o confronto que nos revelou as diferenas j apontadas entre a verso livre e o seu modelo helnico, uma pergunta agora se impe: teria Cndido Lusitano composto a sua parfrase a partir do texto euripdeo? O estudo do ensino do grego em Portugal est ainda pra-ticamente por fazer (2) certo. Mas que o ilustre oratoriano conhe-cia a lngua de Homero, dificilmente poderia negar-se. H disso pro-vas pelo menos indirectas. No nos podemos esquecer que ele cursou Humanidades no Colgio de Santo Anto, dirigido pelos Jesutas, e que a lngua grega figurava nesse estabelecimento de ensino como dis-ciplina obrigatria do curriculum de estudos (3). Alm disso, a sua Arte Potica, bem como a sua traduo da Arte Potica de Horcio com o Discurso preliminar e os comentrios que a enriquecem, revelam uma to vasta erudio sobre literatura grega, que me parece impensvel o seu desconhecimento do idioma tico. Embora muitos dos juzos formulados naquelas duas obras sejam indirectos, isto , baseados em

    (1) Ibidem, pp. 701 sq. (2) Sobre o assunto, fornece-nos preciosas achegas Joo Pereira Gomes,

    Fr. Manuel do Cenculo. Da Histria da Lgica, Lisboa, Edies Brotria, 1958, pp. 10 sqq. Cf., ainda, M. H. Rocha Pereira, Temas Clssicos na Poesia Portu-guesa, Lisboa, Editorial Verbo, 1972, p. 42, nota 1.

    (3) Ibidem, p. 14. Cf. Inocncio, II, p. 309.

  • 30 MANUEL DOS SANTOS ALVES

    autores latinos e helcnistas de renome, h casos em que emite opinies pessoais: elogia Erasmo nas suas tradues do grego e critica Fran-cisco Filelfo na sua traduo de Xenofonte (1). Ele mesmo chegou a traduzir uma pea grega (2).

    Admitindo, pois, com base nestes argumentos, que Cndido Lusi-tano conhecia o grego, muito provvel que tenha composto a sua parfrase a partir do texto original. Esta hiptese amplamente favorecida pelo estudo comparativo das duas obras. H passos que representam uma traduo fiel c at feliz. So, no entanto, dois por-menores em si mesmo insignificantes os que mais nos elucidam sobre o assunto. No yv da pea euripdea, os dois prncipes, recusando nomearem-se mutuamente, recorrem ao epidctico E (VV. 453, 477, 479, etc), em tom pejorativo; no manuscrito portugus, o demonstra-tivo este, equivalente quele pronome grego, est sublinhado; ora isto no se explicaria facilmente, sem um contacto directo com o texto ori-ginal; o mesmo se poder dizer em relao aos comparativos neutros substantivados r nMov (vv. 509 e 553) e x sXkacoov (v. 510), aos quais correspondem, na parfrase, os advrbios o mais e o menos, tambm sublinhados.

    Contudo, Cndido Lusitano deve-se ter baseado, com toda a pro-babilidade, em alguma outra traduo. Esta hiptese amplamente favorecida pela apstrofe ao Sol que d incio pea, e cujo texto grego o seguinte:

    XQ xrjv v aroot ovoavav TfivoiV v xai xQvaoxoXXrJToiaiv fj,fiefl(b tpQoi rH\tE, doi TiTtoiaiv eiXaacov (pXya

    O tradutor portugus parafraseou:

    Sol, que por estradas luminosas, Rpido corres entre belos coros. Vivos raios vibrando em ureo carro De fogosa quadriga....!

    (1) Cndido Lusitano, Arte Potica de Q. Horcio Flaco, Discurso pre-liminar.

    (2) Trata-se, contudo, de uma traduo inacabada, que aparece registada no catlogo de Inocncio, sob o n. 990 (op. c/7., p. 410).

  • UMA PARFRASE DE 'AS FENCIAS' DE EURPIDES 31

    Embora a expresso estradas luminosas possa ter sido sugerida por v azooi ovqavov... v (v. 1) e fogosa quadriga por doi IjtTioiaiv (v. 3), que, por sua vez, teria influenciado o conjunto rpido corres dificilmente poderia negar-se uma reminiscncia de cio:

    Sol qui micantem cndido curru atque equis flammam ci latis fervido ar dor e explicas

    (fr. 585-586 Warmington)

    A micantem flammam parece corresponder vivos raios, a cndido curru, estradas luminosas, a equis citatis, fogosa quadriga, expresso tambm favorecida por fervido ardore explicas, qual equivaleria rpido corres. Este confronto sugere-nos, pois, que tal passo da parfrase est muito mais prximo do texto latino que do grego, e a semelhana entre as duas imitaes no ser mera coincidncia.

    Desde o sculo XVI ao sculo XVIII, apareceram, das peas de Eurpides, inmeras verses latinas, quer isoladas, quer em conjunto com as edies prncipes do dramaturgo. E no faltavam, tambm, tradues em vernculo, inclusive o italiano. De qualquer delas o nosso parafrasta se poderia ter servido (1); de qual em concreto, no , de momento, possvel determin-lo. O manuscrito portugus no acom-panhado de quaisquer notas, nem de um elucidativo Discurso preliminar, como acontece na traduo da Arte Potica de Horcio, em que o teo-rizador do neoclassicismo em Portugal, diz expressamente ter seguido Dacier. Quanto elegante traduo latina (2) do helenista holands

    (I > Omitindo, por serem mais antigas, as edies do sculo XVI a primeira aldina (Veneza, 1503) parecem reunir, no aspecto focado, maior probabilidade as seguintes: Ingolstadt, 1606 (edio da trade bizantina in usum scholarum Societatis Jesu) ; Paris, 1630 (traduo latina de As Fencias por H. Grcio); Veneza, 1744 (verso italiana de As Fencias por Z. Valaresso); Pdua, 1743-1754 (Tragedie di Euripide... Greco-italiane in versi. illimrate di annotazioni ai testo greco, ed alia traduzione.. opera dei P. Carmeli). Para uma informao mais ampla, cf. British Museum. General Catalogue of Printed Books, volume 69, London, 1960; Catalogue General des Livres Imprimes de la Bibliothque Nationale, Tome XLVIII, Paris, Imprimerie Nationale, 1912.

    (2) Faz parte de uma edio bilingue, datada de 1602, de todas as tragdias de Eurpides "Oaa aovrai Euripidis Tragoediae quae extant (cum Latina Gulielmi Canteri interpretatione e Scholia doctorum virorum in Septem Euripidis

  • 32 MANUEL DOS SANTOS ALVES

    Guilherme Canter, no encontrei quaisquer pontos de contacto. No sculo XVIII, foi muito divulgada entre ns e no estrangeiro a obra do jesuta francs P. Brumoy, Le Thtre des Grecs. Editada em Paris (3 volumes, 1730), Amsterdo (1732), novamente em Paris (1749), onde foi reeditada revue, corrige & augmente cm seis volu-mes em 1763, a sua influncia fez-se sentir em escritores contemporneos de Cndido Lusitano, como Manuel de Figueiredo e Reis Quita (1). Todavia, entre a parfrase portuguesa e a obra do jesuta francs apenas h de comum, no que respeita tragdia de Eurpides, a diviso em actos. De resto, Brumoy debrua-se sobre a anlise da pea euripdea, limitando-se a traduzir extractos, uns mais longos que outros. Cn-dido Lusitano parece mesmo ter ignorado aquele autor francs to conhecido no seu tempo. Na verdade, no o cita uma nica vez na sua Arte Potica, na qual se refere constantemente a um vasto elenco de teorizadores literrios, desde Aristteles a Luzan, passando por Horcio, Castelvetro, Vssio, Boileau, Muratori, Dacier e outros (2). Enfim, a identificao da fonte em que se teria baseado Cndido Lusi-tano constitui tarefa rdua e, alis, de menor interesse para os objec-tivos deste trabalho. Mais importante , na verdade, a apreciao crtica da parfrase.

    Qualquer juzo de valor que, nesse aspecto, se possa fazer, ser indissocivel de certos conceitos estticos defendidos pelo iluminista neoclssico, principal teorizador literrio da Arcdia Lusitana. A cria-

    Tragoedias, ex antiquis cxcmplaribus ab Arsnio Moncmbasiae archiepiscopo collecta. Accesscrunt doctac Johannis Brodaei, Gulielmi Canter, Gasparis Stiblini, Aemilii Porti, in Euripidem Annotationes cum indicibus necessariis. Excudebat P. Ste-fanus. (O local da impresso no aparece mencionado, mas, segundo os referidos catlogos do Museu Britnico e da Biblioteca Nacional de Paris, seria a cidade de Genebra). Embora se no trate de uma simples reedio, parece estar intimamente relacionada com a Editio Princeps de 1571, feila em Anturpia ex officina C. Planfini, a qual contm 19 Tragdias, anotadas e Latinis versibus reditae a G. Cantero.

    (1) Tal a concluso a que chegou J. Ribeiro Ferreira, no trabalho A Influn-cia da Andrmaea de Eurpides no Teatro Portugus do sculo XVIII, apresentado no Congresso Internacional de Estudos em homenagem a Andr Soares, sobre A Arte em Portugal no Sculo XVIII.

    (2) Tambm no fcil compreender como que o erudito oratoriano poderia citar o nome de um jesuta do seu tempo, numa obra que ele dedicou, em treze pginas de rasgados elogios, ao Marqus de Pombal, o mais acrrimo inimigo da Compa-nhia de Jesus, que ele expulsou em 1759, enquanto convidava os Nris para seus colaboradores na reforma do ensino.

  • UMA PARFRASE DE AS FENCIAS' DE EURP1DES 33

    o potica, que se fundamenta na natureza e se inspira na verdade, a resultante da confluncia destes dois factores: entendimento e fan-tasia. Esta imprescindvel na elaborao de imagens fantsticas, isto , transfiguraes da realidade, de que se alimenta a verdadeira poesia, qual no bastam as imagens meramente icsticas ou concretas. , porm, banida do foro potico, se no estiver inteiramente submetida ao controlo do entendimento, que desempenha um papel fundamental (1). Esta concepo racionalista do fenmeno potico integra-se, por um lado, na mentalidade vigente no chamado Sculo das Luzes e constitui, por outro, uma reaco contra o estilo gongrico, produto de um gosto depravado (2). Quanto rima, restringe-a s composies lricas e poesias breves destinadas msica. Mas, relativamente ao que ele considera poesia sria e nobre, embora admita, em composies teatrais, o uso espordico de consoantes, pronuncia-se abertamente contra ela. Com a introduo da rima afirma ele no j citado Discurso preli-minar passou para os ouvidos aquele deleite que antes causava a poe-sia ao entendimento e imaginativa, pagando-se os homens muito de um som material e de uma espcie de msica plebeia. Outro efeito negativo o de obrigar os poetas a recorrer a certos rodeios de expres-ses e de vozes sem significao, a fim de armarem ao consoante. Defende inversamente o verso solto como a melhor pedra de toque para experimentar o valor de um poeta, pois no tem a que se torne para causar deleite, seno a beleza verdadeira, ou seja, o esplendor da verdade. Considera-o mesmo como o nico meio capaz de remediar a falta do iambo to acomodado aco teatral que s quer um tecido de versos que naturalmente paream perodos de prosa (3).

    luz desta doutrina esttica, melhor se compreende a parfrase de Cndido Lusitano. A estrutura latinizante da frase, o predomnio da hipotaxe sobre a parataxe e o recurso a partculas de conexo lgica denunciam um tipo de poesia mais dirigida razo que ao sentimento. Do uso quase sistemtico do decasslabo solto, de mtrica rgida, resul-tou um estilo seco, com alguns versos banais, sem espontaneidade, com-postos base de palavras suprfluas e expresses estereotipadas, como: caso to nefando, fados to horrendos, imprecaes to execrandas.

    (1) Cndido Lusitano, Arte Potica, Tomo I, pp. 24, 35 sqq. e 85 sqq. (2) Ibidem, p. 208. (3) Cndido Lusitano, Arte Potica de Q. Horcio Flaco, Discurso prelimi-

    nar e Arte Potica, Tomo II, p. 80.

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    Embora seja bastante discreto o uso da aliterao, que nunca ultrapassa trs consoantes seguidas e consta em geral de duas v.g: nome. noto, negra nuvem, fado infesto, aspecto ttrico, por Jove o juro, peito prfido raio rpido, etc. causa desagradvel impresso a insistncia na gutu-ral surda em expresses como estas: porque causa, que concerto, que arcano oculto, que qualquer, com que queres, que concorrer, j que aqui, porque a cada carroa, etc. A frieza e a aridez do prosasmo narrativo chegam a ser confrangedoras em relao a certos passos mlicos, como as mondias de Jocasta e Antgona, em que o isometrismo monocrdico contrasta com a subtil variao mtrica e rtmica do texto grego, muito apta para captar o fluxo e refluxo de sentimentos intensos, que agitam aquelas duas figuras femininas arremessadas por um destino cruel para a mais angustiosa situao. Todavia, Cndido Lusitano ainda consegue dar-nos uma plida ideia da emoo da me atribulada, que diz para o filho:

    A mim, quanto me deves, bem o observas Na dobrada velhice que ests vendo, Nestas cortadas cs, nestes vestidos De luto perenal. Oh, se eu pudera Juntas mostrar-te as guas destes olhos! Se puderas ouvir juntas desValma Os soluos, os ais, ento verias Quanto me deves, suspirado filho! (I)

    Apesar dos seus defeitos, a parfrase portuguesa vlida e contm versos to bem conseguidos, que os bons poetas do sc. XVIII no des-denhariam subscrev-los. Creio que valer a pena exemplificar.

    Jocasta recorda os atribulados princpios da existncia de seu filho dipo. Viram-no os pastores exposto morte no monte Citron e leva-ram-no rainha de Corinto, que o adoptou como filho:

    ... *H TV f&v voiv Ttvov p,aarol txpEro...

    (w. 30-31)

    O sentido do texto grego, muito conciso, espraia-se na verso portuguesa em trs elegantes versos que se impem pela singeleza, cadncia e sobrie-

    (1) Cf. Eurpides, Pkoen., 322-326.

  • UMA PARFRASE DE AS FENCIAS' DE EURPIDES 35

    dade. O ltimo destaca-se ainda pela aliterao e uma perfrase que constitui verdadeiro achado estilstico:

    Recebendo em seus braos a quem era Fruto s do meu ventre, ministrou-lhe O cndido licor dos prprios peitos

    No raro, porm, a verso livre d lugar a uma correspondncia per-feita. o que sucede, por exemplo, relativamente orao coordenada que remata o verso 31 xai naiv nFOei rsxetv- qual corresponde o seguinte verso:

    E persuadiu o Esposo ser seu filho.

    Mais ainda: verifica-se em certos passos o nitido propsito de captar os prprios recursos estilsticos que enriquecem o original, como, por exemplo, no verso 55:

    XKXO nala izaii avo [xv oaeva,

    cuja aliterao e derivatio se mantm no texto portugus:

    Por onde prole De prole minha dei infausta ao mundo, Dois vares.

    Cndido Lusitano recorreu tambm ao uso de versos esdrxulos seguidos (1), cujas trs ltimas slabas a tnica e as duas post-nicas so equivalentes ao dctilo trissilbico. Estas terminaes, que unificam numa correspondncia recproca a sequncia dos decasslabos, conferem ao ritmo uma nota estranha que faz lem-brar certos hinos latino-litrgicos. Um bom exemplo encontra-se

    (1) Ser curioso notar que so banidos do decasslabo herico, precisamente pelo autor annimo das Regras da versificao portuguesa que aparecem, em apndice, na Arte Potica cie Q. Horcio Flaco, p. 257. Cndido Lusitano, porm, utilizou-os, por melhor corresponderem aos iambos dos antigos, como diz expres-samente na sua Arte Potica, Tomo II, p. 81.

  • 36 MANUEL DOS SANTOS ALVES

    no passo em que, aps o malogro das negociaes com seu irmo, Polinices protesta:

    Porm oua-me Tebas, os cus ouam-me, De mim testemunhando os Deuses ptimos, De que, se contra a Ptria estou colrico, porque me expulsou com modos speros, Deixando-me sofrer penas misrrimas, Exposto a vir a ser servo de brbaros Quem era digno filho de um Rei nclito. Por onde, se atroz mal, Tebas msera, No mo imputes a mim: a causa o mpio Que de ti sabe ser um cruel rbitro (1).

    O mesmo tipo de versos usado na descrio da morte de Capaneu. No momento em que o guerreiro transpunha

    As ameias da torre, troa Jpiter, E de improviso o fere um raio rpido, O qual fez estampido to horrssono, Que aturdido ficou o grego exrcito {2).

    Tambm o smile homrico usado na descrio da luta entre os dois prncipes expresso desta maneira:

    Eis que um se lana ao outro to terrfico, Como se fossem dois javalis hrridos, Que, aguando no mato os dentes rbidos. Se investem, j escumando sangue ttrico (3).

    Mas o verso esdrxulo nem sempre aparece com dez slabas: por vezes tem apenas quatro, como no passo em que Creonte lamenta a morte dos sobrinhos, Etocles e Polinices:

    Oh Fado asprrimo, Oh danos hrridos, Oh Tebas msera, Oh velho atnito (4).

    (1) Cf. Eurpides, Phoen., 625-629. (2) Cf. Eurpides, Phoen., 1180-1182. (3) Cf. Eurpides, Phoen., 1379-1381. (4) Cf. Eurpides, Phoen., 1345-1346.

  • UMA PARFRASE DE 'AS FENCIAS' DE EURPIDES 37

    Tambm nem sempre forma uma sequncia contnua: Creonte lamenta o suicdio de sua irm Jocasta em quebrados de redondilha menor esdrxulos, alternando com hericos quebrados ora agudos, ora graves:

    Ah Jocasta infelice, Irm misrrima,

    Teve o teu himeneu Um fim to ttrico,

    Sendo ele o galardo De monstro horrficol (1)

    Outra caracterstica da parfrase: Cndido Lusitano serve-se, em certos casos, de um simples composto como motivo de recriao est-tica. Assim, o epteto oxQcoTi, atribudo a Hipomedonte (v. 129), desdobrado em dois hexasslabos, que a anfora e o paralelismo valo-rizam consideravelmente:

    Brilha qual astro a fronte, Brilha qual sol seu corpo.

    Outras vezes, a resposta muito concisa de uma personagem serve de tema de desenvolvimento, expresso em versos repassados de emoo. As duas vxiXafa lacnicas, por exemplo Mfjxso, kX fiot av x-iQe e #agt yovv na%a), xxvov (v. 618) trocadas respectivamente entre Polinices e sua me Jocasta, so glosadas desta maneira:

    Enfim, j que a meus rogos no anues, Fica-te embora (2); adeus, Me querida, Por mim sada a todos: o cu te guarde Sempre ditosa.

    Jocasta reage com amarga ironia:

    Eu ditosa! Em mim fados compassivos! Eu que por mi! inslitas maneiras Desgraada nasci! Eu que de um novo Pudor objecto sou para meus filhos!

    (1) Cf. Euripides, Phoen., 1352-1353. (2) Estas palavras ainda so ditas para seu irmo Etocles.

  • 38 MANUEL DOS SANTOS ALVES

    Exemplo algo semelhante se verifica no que respeita atitude de Creonte perante o orculo sinistro revelado pelo adivinho Tirsias, o qual preconizava a morte de seu prprio filho fv. 915):

    Ti vpfy; Tv FJTMI rva juvQov, & yoov;

    A reaco do pai desesperado torna-se ainda mais pattica na verso amplificadora de Cndido Lusitano, onde, em vez das duas oraes interrogativas do texto original, aparecem quatro:

    Vtima Meneceu? Velho, que dizes? Que falar o teu? Que mal Creonte Te fez, para seu peito atravessares?

    Contudo, se quisermos ficar com uma ideia aproximada acerca do ndice geral de fidelidade entre a parfrase portuguesa e seu modelo helnico, bastar confrontar o seguinte dstico grego proferido pelo pedagogo para Antgona (vv. 154-155),

    Fij r' a> ni. Sv xrji ' rjxovat yfjv 5 xai ooca ftr) anonoa' QQ 9eo(.

    com esta quadra:

    Cumpridos vejas esses justos rogos: Mas efes com razo vm contra a Ptria. Por onde temo muito que as Deidades Se conjurem tambm em nosso danos.

    Podem citar-se ainda, a ttulo de confirmao, mais alguns exemplos. Contrapondo a igualdade Ambio, Jocasta adverte seu filho Eto-cles:

    Tu deliras por ela, filho incauto! O que justo, o que belo unicamente Igualdade. Amigos com amigos, Cidades com cidades tal virtude quem as une sempre em paz, em guerra, E conserva as famlias em sossego (1).

    (1) Cf. Eurpides, Phoen.. 535-538.

  • UMA PARFRASE DE 'AS FENCIAS' DE EURPIDES 39

    e insiste na contingncia das riquezas de que no somos senhores, mas simples depositrios:

    s ftuo, se tal cuidas: opulncias So dos Deuses depsitos guardados Em nossas mos; e, quando lhes parece, O que seu tiram, sem que injria faam. E, por isso, um tesouro um vo domnio, Que dura muitas vezes um s dia(l).

    Na discusso sobre estratgia militar, Etocles prev perante seu tio Creonte, a reaco dos Argivos a um ataque inesperado:

    Desordenados fugiro sem tino E iro achar mais vlido inimigo No fundo pego das Dirceias guas (2).

    Outro passo que valer a pena transcrever, diz respeito estrofe do segundo estsimo, qual correspondem, na parfrase portuguesa, trs sries de trs decasslabos, seguidas de outras tantas sries de sete quebrados de redondilha menor. Desta disposio resulta uma agra-dvel variedade rtmica, com certo ar trepidante. a apstrofe ao deus da guerra:

    Insacivel de sangue, o teu deleite s gentes armar, e os festins gratos So gregos esquadres contra Tebanos.

    Jamais c'o Nume De tirso armado Manso apareces, Nem ledo saltas, Vestindo peles Que cervos deram Para o prazer (3).

    (1) Cf. Eurfpides, Phoen., 555-558. (2) Cf. Eurpides, Phoen., 730. (3) Cf. Eurpides, Phoen., 789-793.

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    Bastante feliz tambm a verso do passo em que Tirsias recusa revelar o seu orculo:

    Mas enfim, pois que aos bens os males vencem, nico meio vejo a tantos danos Reparar, e ... Porm, calar-me devo, Pois no posso diz-Io sem perigo, E sem alheia dor... Adeus, Creonte, Eu parto j: que um hei-de ser com muitos, Que sofrerei tambm do Cu as iras, Pois que o Destino assim o determina: E que posso eu fazer para evit-las?

    A figura do adivinho agiganta-se nas palavras grandiloquentes que Creonte lhe dirige:

    No partas, Sacro Vate Venerando: E porque te retiras improviso?(1)

    Os versos relativos antstrofe do terceiro estsimo, nos quais as don-zelas do coro louvam o feito herico de Meneceu, merecem igualmente ser citados, no s pela sua beleza, mas tambm por estarem sujeitos rima, no que constituem a nica excepo em toda a parfrase:

    Mas no choremos mais: de assombro cheias, Raro heri admiramos.

    Que pela Ptria, com serena fronte. Vai ofrecer-se morte,

    Nobremente iludindo ao pai Creonte. Sim; vai, mancebo ilustre, Que nessa aco pasmosa, Ganhas imortal lustre E a Tebas perigosa Vitria hoje dars. Oh, se por este modo To raro, to glorioso, Com jbilo extremoso, De filhos tais ns outras Fssemos tambm mes!(2)

    (1) Cf. Eurpides, Phoen., 889-896. (2) Cf. Eurpides, Phoen., 1054-1051.

  • UMA PARFRASE DE 'AS FENCIAS* DE EURPIDES 41

    Para terminar, atentemos na dcima em que Antgona procura demover o pai de recordar velhas proezas, e se lhe oferece como companheira inseparvel de exlio. No penltimo decasslabo, h um exemplo caracterstico de disjuno gramatical:

    Para que recordares glria antiga. Se dela que te veio tanto dano, Perder olhos, imprio, esposa, filhos, Ptria, e chegar a ser expulso dela, Que antes salvaste de mortais estragos? At onde te espera a cruel morte, Constante eu te acompanho contra o uso Das donzelas reais: caso no fao De mil, com quem criei-me, amigas ternas, Que choraro saudosas minha ausncia (1).

    Bastaro estas transcries, para ficarmos elucidados. Cndido Lusitano, certo, no pode ser considerado um privilegiado das Musas. Mas a verdade que possua, para alm de vastos conhecimentos estticos, uma inegvel sensibilidade potica. Neste aspecto, com razo o considera Hernni Cidade superior a Verney: mais artista que o Barbudinho, de maior permeabilidade formosura c vigor expressivo dos versos (2). Este juzo , sem dvida, confirmado pela fluncia, sobriedade, clareza, poder criador e sentido descritivo que ressumbram da sua parfrase. Pena que esta tenha permanecido na sombra dos arquivos. Seria, pelo tema, uma boa fonte de inspirao ao servio dos poetas lusos. Augusto Gil no precisaria de recorrer a um modelo estrangeiro do sc. XX, para compor as suas Fencias (3). Em suma: a tradio humanstica portuguesa teria ficado considera-velmente enriquecida.

    MANUEL DOS SANTOS ALVES

    (1) Cf. Euripides, Phoen., 1733-1739. (2) Hernni Cidade, Lies de Cultura e Literatura Portuguesas. 2." Volume,

    Coimbra Editora, 51968, p. 172. (3) Cf. M. H. Rocha Pereira, op. cit., pp. 390 sqq.