02 morela edgar a.poe

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  • 8/14/2019 02 Morela Edgar a.poe

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    EDGAR ALLAN POE FICO COMPLETA CONTOS DE TERROR, MISTERIO E MORTE

    MORELA

    Ele mesmo, por si mesmo unicamente, eternamente Um e nicoPLATO: Symposf

    ERA COM SENTIMENTOS de profunda embora singularssima afeio que eu encarava

    minha amiga Morela. Levado a conhec-la por acaso, h muitos anos, minha alma, desdenosso primeiro encontro ardeu em chamas que nunca antes conhecera; no eram, pormas chamas de Eros, e foi amarga e atormentadora para meu esprito a convico crescentede que eu no podia, de modo algum, ouvidar de sua incomum significao, ou regular-lhe a vaga intensidade. Conhecem-nos, porm, e o destino conduziu-nos juntos ao altar;mas nunca falei de paixo ou pensei em amor. Ela, contudo, evitava companhiase,ligando-se s a mim, fazia-me feliz. Maravilhar-se uma felicidade; e uma felicidadesonhar.

    A erudio de Morela era profunda. Asseguro que seus talentos no eram de ordemcomum, sua fora de esprito era gigantesca. Senti-a e, em muitos assuntos, tornei-meseu aluno. Logo, porque verifiquei que, talvez por causa de sua educao, feita emPresburgo, ela me apresentava numerosos desses escritos msticos que usualmente soconsiderados como o simples sedimento da primitiva literatura germnica. Por motivosque eu no podia imaginar eram essas obras o seu estudo favorito e constante. E o fatoque, com o correr do tempo, se tornassem elas tambm o meu pode ser atribudo simples mas eficaz influncia do costume do exemplo.

    Em tudo isso, se no me engano, minha razo tinha pouco a fazer. Minhas convices,ou me desconheo, de modo algum eram conformes a um ideal, nem se podia descobrirqualquer tintura das coisas msticas que eu lia, a menos que esteja grandementeenganado nos meus atos ou nos meus pensamentos.

    Persuadido disso , abandonei-me implicitamente direo de minha esposa e penetrei, decorao resoluto, no labirinto de seus estudos ento... ento, quando, mergulhado naspginas nefastas senti um esprito nefasto acender-se dentro de mim. Morela colocava amo fria sobre a minha e extraa das cinzas de uma filosofia morta algumas palavrasprofundas e singulares, cujo estranho sentido as gravava a fogo em minha memria.

    Santa Maria! Volve o teu olhar to belo, de l dos altos cus, do teu trono sagrado, paraa prece fervente e para o amor singelo que te oferta, da terra, o filho do pecado. Se manh, meio-dia, ou sombrio poente, meu hino em teu louvor tens ouvido, Maria! S,pois, comigo, Me de Deus, eternamente, quer no bem ou no mal, na dor ou na alegria!No tempo que passou, veloz, brilhante, quando nunca nuvem qualquer meu cuescureceu, temeste que me fosse a inconstncia empolgando e guiaste minha alma a ti,

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    para o que teu. Hoje, que o temporal do destino ao passado e sobre o meu presenteespessas sombras lana, fulgure ao menos meu Futuro, iluminado por ti, pelo que teu,na mais doce esperana!

    E ento, hora aps hora, eu me estendia a seu lado, imergindo-me na msica de sua voz,at que, afinal, essa melodia se maculasse de terror; ento caa uma sombra sobre minha

    alma, eu empalidecia, tremia internamente queles sons que no eram da terra. Assim aalegria subitamente se desvanecia no horror e o mais belo se transformava no maishediondo, como o Hinnon se transformou em Geena.

    necessrio fixar o carter exato dessas inquisies que, irrompendo dos volumesmencionados, formaram, por longo tempo, quase que nico objeto de conversao entremim e Morela . Mas os instrudos no que se pode denominar moralidade teolgicafacilmente o concebero e os leigos, de qualquer modo, no o poderiam entender. Oextravagante pantesmo de Fichte; a palingensia modificada de Pitgoras; e, acima detudo, as doutrinas de Identidade, como as impe Schelling, eram esses geralmente osassuntos de discusso que mais beleza apresentavam imaginativa Morela .

    Aquela identidade que se chama pessoal, Locke, penso, define-a com realismo, comoconsistindo na conservao do ser racional. E que por pessoa compreendemos umaessncia inteligente dotada de razo, e desde que h uma conscincia que sempreacompanha o pensamento, ela que nos faz, a todos, sermos o que chamamos nsmesmos, distinguindo-nos por isso de outros pensamentos e dando-nos nossa identidadepessoal. Mas o indivduationis, a noo daquela identidade que, com a morte est ou noperdida para sempre, foi para mim, em todos os tempo questo de intenso interesse, nos por causa da natureza embaraosa e excitante de suas conseqncias como pelamaneira acentuada e agitada com que Morela as mencionava.

    Na verdade, porm, chegara o tempo em que o mistrio da conduta de minha esposa meoprimia como um encantamento. Eu no podia suportar mais o contato de seus dedoslvidos, nem o grave de sua fala musical, nem o brilho de seus olhos melanclicos. E elasabia de tudo isso, porm no me repreendia; consciente de minha fraqueza ou de minhaloucura, e, a sorrir chamava-a Destino.

    Parecia tambm consciente de uma causa, para mim ignota, do crescente alheamento deminha amizade; me dava sinal ou mostra da natureza disso. Era, contudo, mulher efenecia dia a dia. Por fim, uma rubra mancha se fixou, firmemente, na sua face e as veiasazuis de sua fronte plida se tornaram proeminentes; por instantes minha natureza sefundia em piedade mas, a seguir, meu olhar encontrava o brilho de seus olhossignificativos e minha alma enfermava e entontecia, com a vertigem de quem olhasse paradentro de qualquer horrvel e insondvel abismo.

    Poderei dizer ento que ansiava, com desejo intenso e devorador pelo momento da mortede Morela ? Ansiei; mas o frgil esprito agarrou-se sua manso de argila por muitosdias, por muitas semanas, por meses penosos, at que meus nervos torturados obtiveramdomnio sobre meu crebro e me tornei furioso com a com demora e com o corao de uminimigo, amaldioei os dias, as horas e os amargos momentos que pareciam ampliar-secada vez mais, medida que sua delicada vida declinava como as sombras ao do morrerdo dia.

    Numa tarde de outono, porm, quando os ventos silenciavam nos cus, Morela chamoume a seu leito. Sombria nvoa cobria a terra e um resplendor ardia sobre as guas e entreas bastas folhas de outubro na floresta, como se um arco-ris tivesse cado dofirmamento.

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    de semelhana entre a criana e sua me, a melanclica e a morta. E a todo instante setornavam mais negras aquelas sombras de semelhana e mais completas, mais definidas,mais inquietantes e mais terrivelmente espantosas no seu aspecto. Porque no podiadeixar de admitir que o sorriso era igual ao de sua me; mas essa identidade demasiadofeita fazia-me estremecer; no podia deixar de tolerar que seus olhos fossem como os deMorela ; mas eles tambm penetravam vezes nas profundezas de minha alma com a

    mesma intensa e desnorteante expressividade dos de Morela . E no contorno de suafronte elevada, nos cachos de seu cabelo sedoso, nos seus dedos plidos que nelemergulhavam, no timbre musical e triste de sua fala e sobretudo oh! acima de tudo, nasfrases e expresses da morta sobre os lbios da amada e da viva, encontrava eu alimento,um pensamento horrendo e devorador - para um verme que no queria morrer.

    Assim se passaram dois lustros de sua vida, e, contudo, permanecia minha filha semnome sobre a terra. "Minha filha" e meu amor" eram os apelativos usualmente ditadospor minha afeio de pai, e a severa recluso de sua vida impedia qualquer outra relao.

    O nome de Morela acompanhara-a na morte. Da me falara filha; era impossvel falar.De fato, durante o breve de sua existncia, no recebera esta ltima impresses domundo exterior, exceto as que lhe puderam ser proporcionadas pelos estreitos limites deseu retiro. Mas afinal a cerimnia do batismo sentou-se a meu esprito, naquele estado deagitao e enervamento como uma libertao imediata dos terrores do meu destino. E nafonte batismal hesitei na escolha de um nome. E numerosas denominaes de sabedoria ede beleza, de tempos antigos e modernos, de minha e de terras estrangeiras, vieramamontoar-se nos meus com outras tantas lindas denominaes, de nobreza, de ventura,de bondade. Quem me impeliu ento a perturbar a memria da sepultada? Que demniome incitou a suspirar aquele som e simples lembrana sempre fazia fluir, em torrentes, osangue das fontes do corao? Que esprito maligno falou dos recessos minha almaquando, entre aquelas sombrias naves e no silncio da noite, eu sussurrei aos ouvidos dosanto homem as slabas "Morela? Quem, seno o demnio, convulsionou as feies deminha filha e sobre elas espalhou tons de morte, quando, estremecendo ao aquele somquase inaudvel, volveu os olhos lmpidos da terra para o cu e, caindo prostrada sobre asnegras lajes de nosso solu de famlia, respondeu: "Estou aqui!"?

    Distinta, fria e calmamente precisos, esses to poucos e to simples sons penetraram-menos ouvidos e, depois, como chumbo retido, rolaram, sibilantes, dentro do meu crebro.Anos e anos podem-se passar, mas a lembrana daquela poca, nunca. Desconhecia eude fato as flores e a vinha, mas o acnito e o cipreste ensombraram-me noite e dia. E noguardei memria de tempo ou de lugar, e as estrelas da minha sorte sumiram do cu edesde ento a terra se tornou tenebrosa e suas figuras passaram perto de mim comosombras esvoaantes, e entre elas s uma vislumbrava: Morela . Os ventos do firmamentosomente um nome murmuravam aos meus ouvidos e o marulho das ondas sussurra"Morela!" Ela, porm, morreu e com minhas prprias mos levei-a ao tmulo. E ri, umarisada longa e amarga, quando no achei traos da primeira Morela no sepulcro em quedepositei a segunda.