01655_silacc_aproximaçoes cartograficas os bboys do terminal

20
SILACC 2010 Simpósio Ibero Americano “Cidade e cultura: Novas espacialidades e territorialidades urbanas” Título: Aproximações Cartográficas: os b.boys do Terminal Sessão Temática: ST02 Espacialidades e Territórios Híbridos da(na) Contemporaneidade Pensar a produção da cidade contemporânea implica em voltar as atenções para sua riqueza, multiplicidade, inquietação e também buscar alternativas, uma vez que ela apresenta-se como o lugar da sofisticação, mas também da perversidade 1 . Identificar e incluir brechas, fissuras e escapes possíveis na lógica do fazer cidade, dominada pela subjetividade capitalística 2 , são fundamentais para a construção de uma leitura pautada na riqueza da experiência social, onde estes elementos são determinantes na sua produção. Com o intuito de exercitar e debruçar o olhar sobre as amplas possibilidades desse urbano, optamos por buscar escapes em experiências compartilhadas de territorialização, ou seja, apropriações coletivas imbuídas de reivindicações espacializadas que coloquem em xeque a ordem sócio-espacial vigente ditada por uma ideologia hegemônica. Encontrar e captar em tais microprocessos as complexidades referentes às suas possibilidades de realização implica em construir um percurso metodológico que atue como guia e instrumental conceitual, capaz de operacionalizar e assegurar à proposta grau suficiente de liberdade para a apreensão do existir e devir dos movimentos em questão. Apoiando no conceito de cartografia proposto por Deleuze & Guattari (1995), realizamos aproximações cartográficas tomando como ponto de partida o território-base da Região Metropolitana da Grande Vitória ES, no qual desdobraram-se alguns encontros que investimos de sentido e, entre deslocamentos e fixações, aproximamo-nos de territórios e espacialidades reinventadas. Neste artigo nos deteremos nos diálogos possíveis estabelecidos no encontro com os b.boys do Terminal de Laranjeiras. Palavras-chave: cidade, hip hop, escape. 1 SANTOS, 2005 2 GUATTARI e ROLNIK, 2005

Upload: rakel-gomez

Post on 17-Jan-2016

9 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

Artigo do silacc 2011

TRANSCRIPT

Page 1: 01655_Silacc_aproximaçoes Cartograficas Os Bboys Do Terminal

SILACC 2010 – Simpósio Ibero Americano “Cidade e cultura: Novas espacialidades e territorialidades urbanas”

Título: Aproximações Cartográficas: os b.boys do Terminal

Sessão Temática: ST02 – Espacialidades e Territórios Híbridos da(na) Contemporaneidade

Pensar a produção da cidade contemporânea implica em voltar as atenções para sua riqueza,

multiplicidade, inquietação e também buscar alternativas, uma vez que ela apresenta-se como o

lugar da sofisticação, mas também da perversidade1. Identificar e incluir brechas, fissuras e

escapes possíveis na lógica do fazer cidade, dominada pela subjetividade capitalística2, são

fundamentais para a construção de uma leitura pautada na riqueza da experiência social, onde

estes elementos são determinantes na sua produção. Com o intuito de exercitar e debruçar o

olhar sobre as amplas possibilidades desse urbano, optamos por buscar escapes em experiências

compartilhadas de territorialização, ou seja, apropriações coletivas imbuídas de reivindicações

espacializadas que coloquem em xeque a ordem sócio-espacial vigente ditada por uma ideologia

hegemônica. Encontrar e captar em tais microprocessos as complexidades referentes às suas

possibilidades de realização implica em construir um percurso metodológico que atue como guia e

instrumental conceitual, capaz de operacionalizar e assegurar à proposta grau suficiente de

liberdade para a apreensão do existir e devir dos movimentos em questão. Apoiando no conceito

de cartografia proposto por Deleuze & Guattari (1995), realizamos aproximações cartográficas

tomando como ponto de partida o território-base da Região Metropolitana da Grande Vitória – ES,

no qual desdobraram-se alguns encontros que investimos de sentido e, entre deslocamentos e

fixações, aproximamo-nos de territórios e espacialidades reinventadas. Neste artigo nos

deteremos nos diálogos possíveis estabelecidos no encontro com os b.boys do Terminal de

Laranjeiras.

Palavras-chave: cidade, hip hop, escape.

1 SANTOS, 2005

2 GUATTARI e ROLNIK, 2005

Page 2: 01655_Silacc_aproximaçoes Cartograficas Os Bboys Do Terminal

A cidade contemporânea constitui-se em uma multiplicidade de elementos heterogêneos que co-

existem, sobrepõem-se, contaminam-se, movimentam-se e se re-significam a todo o momento.

Territorialidades, temporalidades e velocidades, que se articulam e se agenciam constantemente.

Sobreposição de relações, funções (produtivas, políticas, disciplinares e simbólicas), escalas

(espaciais e temporais/ geográficas e históricas), fluxos e territórios3. Das entradas cabíveis nesse

amplo repertório em busca de algum refinamento que possa resultar na produção de algum

conhecimento sobre a dinâmica da cidade, utilizamos a idéia de escape como fio condutor e

conector deste artigo, através do qual se desdobrará um diálogo possível sobre a cidade que foge,

ao menos parcialmente, da aceitação passiva do papel que foi a ela atribuído pela subjetividade

capitalística4. Essa abordagem faz-se necessária uma vez que a cidade apresenta-se, como

definiu SANTOS5 (2004), como o lugar da sofisticação, mas também da perversidade6.

HAESBAERT (2006b) aponta para as condições de precariedade a que foi relegada grande parte

da humanidade em função de um território convenientemente estruturado para a mais eficiente e

barata reprodução do capital, alicerçada em um modelo político econômico neoliberal. A alienação

do território em suas múltiplas formas é uma das exigências e condições para a produção

capitalista sob a hegemonia do capital financeiro, segundo RIBEIRO (2005). É no sentido de

entender a produção dos espaços perversamente constituídos no interior dessa lógica que

denominaremos escapes as criações e apropriações do urbano imbuídas de reivindicações

espacializadas que coloquem em xeque a ordem sócio-espacial vigente, ditada pela ideologia

hegemônica (seja o mercado imobiliário, o mercado fonográfico, a indústria do entretenimento, as

relações comerciais, entre outras).

Ainda que as alternativas adotadas para se viver na cidade, não partam exclusivamente de uma

postura intencional e ideológica de enfrentamento e muitas vezes nasçam como desejo de

3 Sobre território, cabe esclarecer que utilizaremos em nossas abordagens duas áreas de conhecimento: a geografia e

a filosofia, principalmente através de autores como Rogério Haesbaert, Gilles Deleuze e Félix Guattari. Faz-se

necessária esta observação inicial pelo fato de Haesbaert utilizar como uma de suas referências o pensamento dos

filósofos Deleuze & Guattari. Para eles, o território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma, um conjunto de projetos e representações os quais desembocam uma série de comportamentos e investimentos, nos tempos e espaços sociais, culturais, estéticos e cognitivos (GUATTARI & ROLNIK, 2005). Haesbaert incorpora a produção de subjetividade e os territórios existenciais dos filósofos, porém apresenta uma dimensão espacial e materializada que raramente é incorporada pelos filósofos.

4 GUATTARI e ROLNIK, 2005

5 Milton Santos é uma dos autores principais utilizados como referências na elaboração deste artigo. Em diversos

momentos ensaiaremos uma aproximação entre o pensamento do geógrafo e dos filósofos Deleuze & Guatarri. Ambos inspiram a construção de nosso caminho analítico através de categorizações do espaço. Ainda que Santos tenha em sua base um discurso de cunho marxista e estruturalista, enquanto Deleuze & Guattari destacam-se como teóricos do pós-estruturalismo (ainda que questionáveis tais enquadramentos), é possível encontrar em seus pensamentos possibilidades de diálogo. Sugere-se aqui principalmente uma aproximação de duas das categorias de análise do espaço propostas por SANTOS, o espaço luminoso e o espaço opaco (1994, 1996, 2000) e dos conceitos de espaços lisos e estriados trabalhados por DELEUZE & GUATTARI (1997).

6 SANTOS, 2005

Page 3: 01655_Silacc_aproximaçoes Cartograficas Os Bboys Do Terminal

inserção na lógica vigente, estes processos e movimentos criativos incidem sobre o fazer cidade

como uma fuga possível ao deslocá-lo da invisibilidade naturalizada para a visibilidade indesejada.

Entendemos que exista aí uma ampla gama de possibilidades de realização de escapes, mesmo

em algumas estruturas estabelecidas oficialmente e institucionalmente. Formulam-se apropriações

escapatórias em diferentes dimensões e com variadas intensidades.

A cidade como território produzido apresenta-se nem tão rígida e nem tão controlada, havendo

espaço para a subversão uma vez que os territórios são flexíveis, são movimentos, mesmo que se

encontrem temporariamente estabilizados. Como reação, territórios alternativos se impõem dentro

das ordens sociais majoritárias configurando-se em contra-espaços7 e novos arranjos espaciais

capitaneados por uma base democrática que permite o florescimento da diversidade. A colagem

de forças sociais e lutas políticas ao território marcando trajetos, criando caminhos e

interrompendo os fluxos desejados pelas classes dominantes, elaboram novas territorialidades

(RIBEIRO, 2005). DELEUZE & GUATTARI (1997) também apontam para essa possibilidade de

―revidação‖ voltadando-se ―contra‖ a própria cidade. Para eles, a cidade é o espaço estriado por

excelência, delimitado, instituído pelo aparelho do estado, regrado por medidas métricas,

dimensionais, repartido segundo intervalos assinalados. No entanto, ainda que dominante, essa

força de estriagem propicia a restituição de espaços lisos, que surgem em forma de imensas

favelas. Este espaço liso, que surge nas fissuras da cidade tradicional, subvertendo e rompendo a

lógica da estriagem, é o espaço das multiplicidades não métricas; dos espaços direcionais, não

determinados por pontos, mas por trajetos; ocupados por acontecimentos; espaços de afetos mais

que de propriedades; espaços intensivos, mais que extensivos. Enquanto o espaço tradicional da

cidade é o espaço do progresso, o espaço liso é o espaço do devir, das possibilidades infinitas e

do indeterminado. Estes dois espaços não são, no entanto opostos, e nem formam um dualismo

estrutural embora apresentem naturezas diferentes. A todo o momento estão em comunicação,

contaminam-se, contagiam-se e se metamorfoseiam, ainda que de maneiras distintas, tendo como

resultado misturas que não são necessariamente simétricas e que se dão através de movimentos

inteiramente diferentes de ambos os espaços.

Para Santos a cidade é o lugar da co-presença e da diferença8. Nela, as áreas luminosas são

constituídas ―ao sabor da modernidade‖, enquanto espaços de exatidão, racionalizados,

racionalizadores, organizados, espaços das verticalidades, formadas por pontos distantes uns dos

outros, dotados de uma densidade técnica e informacional que os tornam mais atrativas ao capital

(SANTOS, M., 1994, 2001). As áreas opacas são subespaços onde estas características estão

ausentes. São os espaços do aproximativo, da criatividade, inorgânicos, abertos, onde é possível

7 HAESBAERT, 2006b.

8 SANTOS, 1994.

Page 4: 01655_Silacc_aproximaçoes Cartograficas Os Bboys Do Terminal

a re-invenção e re-apropriação de práticas sociais e afetivas, na busca de um outro futuro9. Para

Santos, são nestes espaços que surgirão outras possibilidades de relações estruturais e sociais

na sociedade, que se darão através de uma revolução que virá ―de baixo‖, invertendo a relação

entre opacidades e luminosidades.

―Para os migrantes e para os pobres de um modo geral, o espaço

‗inorgânico‘, é um aliado da ação, a começar pela ação de pensar,

enquanto a classe média e os ricos estão envolvidos pelas próprias teias

que, para seu conforto, ajudam a tecer: as teias de uma racionalidade

invasora de todos os arcanos da vida, essas regulamentações, esses

caminhos marcados que empobrecem e eliminam a orientação ao futuro.

Por isso, os ‗espaços luminosos‘ da metrópole, espaços da racionalidade,

é que são de fato, os espaços opacos‖. (SANTOS, M.,1994).

Na investigação dos escapes está implícita a urgência de novos protagonistas, principalmente

locais e regionais, virem à tona na cena política. Homens lentos (SANTOS, M., 1994), habitantes

dos espaços opacos da cidade, possuem uma cultura baseada no território, no cotidiano, no

contato de gente com gente. São muitas e diferentes as nuances da experimentação que

permeiam os espaços do urbano se consideramos a multimensionalidade da vida. Lutar contra o

desperdício destas experiências que, em geral, são muito mais variadas do que a tradição

científica e filosófica considera10, é fundamental para que se entenda o discurso proferido tanto

pelos invisibilizados, quanto pelos produtores oficiais de informação e conhecimento.

Aproximação Cartográfica

Captar a complexidade destes microprocessos revolucionários, que têm como traço comum a

recusa a subjetivação capitalística, exigiu a elegêssemos um percurso metodológico que, ao

mesmo tempo, guiasse e instrumentasse conceitual e operacionalmente nossa percepção e

deixasse grau suficiente de liberdade para a apreensão do existir e devir dos escapes

encontrados. Optamos pelas aproximações cartográficas enquanto metodologia baseada nas

cartografias propostas por Deleuze & Guattari (1995). A noção de cartografia que trazem estes

filósofos distingui-se da noção de cartografia comumente compartilhada por geógrafos, arquitetos

e urbanistas: cartografia enquanto representação gráfica de objetos e fenômenos distribuídos

espacialmente na superfície terrestre. A cartografia de Deleuze & Guattari trata-se não de uma

ferramenta, mas de uma prática voltada para a experimentação ancorada no real. É construída de

9 SANTOS, 1999.

10 SANTOS, 2006; 2007

Page 5: 01655_Silacc_aproximaçoes Cartograficas Os Bboys Do Terminal

forma aberta e conectável em todas as suas dimensões, através de suas múltiplas entradas, de

forma tal que não possui como ―produto‖ um mapa estático, como os produzidos pelos

geógrafos11. De acordo com a psicanalista Suely Rolnik (2007), a cartografia é um processo de

construção e desconstrução constante de certos mundos, motivado pelas acelerações e

mudanças repentinas advindas da globalização, dos fenômenos urbanos corriqueiros ou dos

dispositivos de memória individuais ou coletivos. Aqui será explorada enquanto procedimento

metodológico de investigação que possibilita maximizar as possibilidades de entendimento sobre

a criação e produção dos escapes na cidade.

Entre as pistas apontadas por Passos, Kastrup e Escóssia (2009) para a realização da cartografia,

podemos entendê-la como uma possibilidade de investigação que extrapola a oposição entre

pesquisa quantitativa e qualitativa. Como método transversal, atua na desestabilização dos eixos

cartesianos trazendo para a discussão a realidade multiplamente produzida, cartografada como

um mapa móvel, onde o saber é a combinação dos visíveis e dizíveis de um estrato. Será utilizada

aqui como experiência de produção de conhecimento sobre o espaço da cidade enquanto

elaboração de um desenho impreciso que acompanha e se faz ao mesmo tempo em que é

alterado por diversos movimentos. Interessa-nos aqui entender como os escapes se apresentam

no urbano, suas fugas conformadas no território, além das relações que podem ser criadas e

vividas socialmente na urbanidade.

Procedimentos Metodológicos

Entendendo a cartografia como prática12 e a cidade enquanto campo de investigação, iniciamos

uma espécie de rastreio, varredura e exploração do campo perceptivo13 visando a construção do

conhecimento sobre os escapes encontrados entre os constantes deslocamentos que realizamos

enquanto transitamos pela Região Metropolitana da Grande Vitória (ES), construindo assim nosso

território-base. Transitar aparece aqui com um sentido mais amplo do que exclusivamente o do

deslocamento físico da pesquisadora. O território-base como categoria de análise só tem valor

quando vinculado ao uso e aos atores simultaneamente. Nele está implícita a multiplicidade de

formas e conteúdos. Definimos nosso território transitando por um universo de informações

diversificadas, que em diferentes situações forneceram-nos subsídio para incluirmos nesta

aproximação cartográfica grupos, pessoas, lugares, eventos, etc. que extrapolariam a proposta de

11

Não cabe aqui generalizar ou subestimar os mapas produzidos pelos geógrafos. Mas faz-se necessário diferenciá-los da cartografia proposta enquanto um mapa móvel. Mais adiante abordaremos a inclusão de mapas estáticos como elementos que virão a compor a cartografia.

12 PASSOS, ESCÓSSIA, KASTRUP, (orgs ), 2009.

13 KASTRUP, Virgínia. O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo, In PASSOS, ESCÓSSIA,

KASTRUP, (orgs ), 2009.

Page 6: 01655_Silacc_aproximaçoes Cartograficas Os Bboys Do Terminal

um recorte espacial rígido. Através desta primeira aproximação, podemos apontar deferentes

entradas e possibilidades de cartografias sobre o tema.

Encaramos a investigação como um jogo rápido de registro das singularidades a partir de

esquemas, textos e imagens, problematizadas a partir dos encontros durante o percurso da

pesquisa14. ―Rastreamos‖ os escapes pela cidade com a finalidade de construirmos uma

cartografia que não tem a intenção de ser um mapeamento preciso e completo de todas as

iniciativas e atuações direcionadas a produção dos escapes no território, mas sim de capturar e

apontar diferentes entradas e saídas produzidas a partir de singularidades distintas.

A aproximação com os escapes rastreados durante a pesquisa não se deteve a um método

específico ou padrão único. O tipo de experiência e o envolvimento com as pessoas encontradas

no percurso variaram de acordo com cada situação resultando em registros e caracterizações

diferenciadas, mais ou menos intensas. De uma forma geral foi feito um esforço no sentido de

compreender quem são os envolvidos nesses processos, a forma com que alteram a lógica de

apropriação e uso do espaço urbano, seu potencial reivindicativo e produtor destes territórios

alternativos (HAESBAERT, 2006b).

Os encontros com os possíveis escapes foram construindo o percurso, assim como o refinamento

dos contatos estabelecidos. Não nos detivemos na elaboração de uma teoria geral sobre estes

escapes, mas sim na compreensão e acompanhamento destes ―gestos-fios‖ que, segundo Ribeiro

(2005b), costuram no lugar e no cotidiano ―saberes à co-presença, estimulando a superação do

prestígio ainda mantido pelas leituras mecanicistas e funcionalistas da vida urbana‖. Segundo a

autora, portadores de valores compartilhados por determinados grupos sociais, estes gestos

propiciam a criação de lugares onde antes só havia espaço e racionalização. Acionam a

possibilidade de superação da cotidianidade alienada através de sua presença, ainda que

temporariamente. É através da leitura sensível destas práticas sócio-espaciais, imbuídas de um

poder popular, que se coloca em debate a ordem capitalista na cidade.

O registro deste conhecimento produzido na pesquisa norteou-se pelo registro dos percursos: os

lugares transitados (fisicamente ou não); a identificação e localização da dimensão apreensível

dos escapes; a constituição de territórios subjetivos; e o universo singular de cada contato. A

narrativa foi a linguagem escolhida para apresentá-lo, pois permeada por trechos de diálogo,

letras de música, imagens, mapas e esquemas inseridos no texto. Entendemos que a metodologia

14

Isso abrange um intervalo de tempo linear que vai de março de 2007 a dezembro de 2009 (período em que foi

desenvolvida a pesquisa para a dissertação de mestrado), e também outros tempos aqui incluídos através das lembranças ou projeções de futuro construídas durante o contato estabelecido entre a pesquisadora, os sujeitos sociais envolvidos, a cidade e toda sua complexidade e outros fluxos que possam ter atravessado o percurso.

Page 7: 01655_Silacc_aproximaçoes Cartograficas Os Bboys Do Terminal

que experimentamos é pautada na possibilidade de tornar visíveis outras leituras, neste caso,

sobre a produção de cidade.

Registro

Iniciamos nosso percurso partindo do bairro Jardim da Penha15, em Vitória, em direção à

Cariacica, onde a existência do bairro Alice Coutinho, um bairro oriundo de uma ocupação

promovida pelo Movimento Nacional de Luta pela Moradia, já nos era conhecida. A possibilidade

de lê-la como escape fez com que tecêssemos esse território atravessado por encontros que

acabaram por redesenhar o percurso que nos levaria até o bairro de Cariacica. Atravessamos

principalmente os municípios de Vitória, Serra e Cariacica. Os três fazem parte da Região

Metropolitana da Grande Vitória16, juntamente com os municípios de Vila Velha, Viana, Fundão e

Guarapari.

Figura 1 - Mapa das microrregiões do Espírito Santo. Destacada em vermelho a Região Metropolitana da Grande Vitória. Figura 2 - Mapa da Região Metropolitana da Grande Vitória

Fonte: IJSN modificada. Disponível no site www.gov.es.br . Acessado em 20 de dezembro de 2009.

De acordo com dados do IBGE de 2007, residem na Região Metropolitana de Vitória 1.624.837

15

Bairro onde reside a pesquisadora.

16 Instituída pelo poder estadual em 1995.

Page 8: 01655_Silacc_aproximaçoes Cartograficas Os Bboys Do Terminal

dos 3.418241 habitantes do estado17. Esta concentração demográfica juntamente com a

concentração econômica conferem a região a função de centralizadora no que se refere a tomada

de decisões, informações, transações comerciais, financeiras e de prestação de serviços públicos.

De acordo com Abe (1999), o rápido e elevado crescimento da Região Metropolitana transformou

as relações de classes e a estrutura de fracionamento social na Grande Vitória, intensificando a

segregação espacial. Para o autor, ―materializaram-se no espaço urbano metropolitano as

contradições dos interesses econômicos e desestruturaram-se as antigas territorialidades sociais

e políticas‖. A área de ocupação urbana sofreu intensa e desordenada expansão, comprometendo

seu sítio naturalmente frágil. Atualmente, apesar das grandes plantas industriais localizadas nesta

microrregião (entre tais destaca-se também a Chocolates Garoto, em Vila Velha), o setor de

comércio e serviços é o mais significativo da economia regional. Destacam-se os serviços na área

de comércio exterior e distribuição de produtos em larga escala com atuação mais dinâmica na

área de logística do comércio exterior e apoio à economia urbano-industrial.

Nosso percurso atravessa essa configuração urbana. Dentre as diversas possibilidades de

escapes, detivemo-nos ao encontro com 6 situações advindas dos 06 trechos de deslocamentos,

produzidas na/pela cidade que foram se revelando a partir dos estreitamentos estabelecidos

durantes o processo:

Erro! Fonte de referência não encontrada.. Encontro com os muros grafitados,

elemento que conecta todo nosso território, e o movimento hip hop. Atravessamos Vitória e

chegamos em Cariacica onde fizemos uma pausa na Casa da Juventude, no bairro Itacibá.

Durante a pesquisa, realizamos este deslocamento tanto de ônibus quanto de carro.

Erro! Fonte de referência não encontrada.. Descoberta sobre os grupos de rap e

encontro com os b.boys e o movimento hip hop no Terminal de Laranjeiras na Serra, onde

paramos para entender este movimento. Este deslocamento foi realizado de ônibus.

Erro! Fonte de referência não encontrada.. Encontro com protestos de moradores

dos bairros à margem da BR 101- Rodovia do Contorno que conecta a Serra a Cariacica.

Durante a pesquisa, realizamos este deslocamento tanto de ônibus quanto de carro.

Erro! Fonte de referência não encontrada.. Encontro com o comércio informal de

rua, ambulantes e camelôs em Campo Grande, Cariacica, concentrado principalmente na

Av. Expedito Garcia. Este deslocamento foi realizado de ônibus até a chegada em Campo

Grande, e a pé internamente ao bairro.

17

A capital Vtória, aparece como o 4º município mais populoso do Espírito Santo, com 320.156 habitantes. Em 1º está Vila Velha com 413.548; em 2º Serra com 404.688; e em 3º Cariacica com 365.859 habitantes (IBGE, 2007).

Page 9: 01655_Silacc_aproximaçoes Cartograficas Os Bboys Do Terminal

Erro! Fonte de referência não encontrada.. Encontro com a festa religiosa do

Carnaval de Congo que acontece nesta comunidade da área Rural do município de

Cariacica e os devotos de Nossa Senhora da Penha que cultivam a manifestação. Este

deslocamento foi realizado parcialmente de carro e parcialmente de ônibus. O

deslocamento na comunidade de Roda D‘Água durante a festa foi realizado a pé.

Erro! Fonte de referência não encontrada.. Encontro com o bairro Alice Coutinho

originado a partir da ocupação de sem-tetos organizada pelo Movimento Nacional de Luta

pela Moradia, próxima a antiga sede do município de Cariacica. Este deslocamento foi

realizado parcialmente de carro e parcialmente de ônibus. O deslocamento no interior do

bairro Alice Coutinho foi realizado a pé.

Para elencar estes escapes, priorizamos práticas que são reforçadas por uma coletividade, ainda

que não sejam necessariamente realizadas em coletivo. Comunidades e grupos, organizados ou

não, foram abordados sem o intuito de reduzir particularidades, motivações e trajetórias

individuais (estas vêm a assumir papel de destaque na medida em que a pesquisa se refina,

sobretudo no capítulo seguinte). Buscamos entender a forma como se relacionam com o meio

urbano em sua diversidade e mutação através da tessitura de territórios comuns e/ou divergentes

que coexistem e sobrepõem-se na trama da cidade.

Vinculamos a realização dos escapes e aqueles que os produzem às suas reivindicações. O que

reivindicam quando formulam seus escapes? Elencamos inicialmente algumas possibilidades: o

habitar, a visibilidade, o direito ao culto, ao espaço, a voz, escuta e soluções. Estas reivindicações

não se realizam isoladamente ou de forma desarticulada, assim como também os escapes não se

encerram nelas. À maioria dos escapes investigados são somadas várias destas reivindicações

além de outras que por ventura tenham sido deixadas de fora, ou se façam presente apenas em

determinadas situações. Por si só estas reivindicações também não distinguem nem diferenciam a

produção dos escapes de quaisquer outras produções realizadas na cidade. É a forma como se

realizam e sua capacidade de improviso e reinvenção que os diferencia das demais.

Page 10: 01655_Silacc_aproximaçoes Cartograficas Os Bboys Do Terminal

Figura 3 – Esquema dos escapes percorridos na Aproximação cartográfica 01.

Fonte: Figura modificada a partir de imagem de satélite capturada pelo Google Earth (2009).

Page 11: 01655_Silacc_aproximaçoes Cartograficas Os Bboys Do Terminal

Figura 4 - Esquema da relação entre os escapes produzidos, quem o produz, suas reivindicações e localização na cidade.

Ocuparemos-nos neste artigo do encontro com os b.boys do Terminal de Laranjeiras.

B.boys do Terminal

Page 12: 01655_Silacc_aproximaçoes Cartograficas Os Bboys Do Terminal

Figura 5 – Movimento Hip Hop como escape. Esquema do percurso e dos encontros

Partimos de Vitória rumo à Cariacica, município que possui uma população de 356.536 habitantes

e uma área de 260 km2 (IBGE, 2007). Aproximadamente 50% de seu território encontram-se na

Page 13: 01655_Silacc_aproximaçoes Cartograficas Os Bboys Do Terminal

área rural. Sua configuração urbana está vinculada às necessidades e exigências de uma

economia inserida na lógica global do modelo industrial-exportador, onde o deslocamento de

mercadorias em suas rodovias e as necessidades das empresas de logística ditam o ritmo e o

caráter das intervenções urbanas. No processo de intensa urbanização promovido pela vinda de

grandes projetos industriais por que passou o estado a partir da década de 60 (destaca-se no

município a instalação da siderúrgica Belgo Mineira), Cariacica destaca-se por ter absorvido

grande parte da demanda populacional, principalmente a que não foi absorvida pelo mercado

―formal‖. Aliada a seu modelo de expansão urbana tipicamente tentacular – conseqüência de sua

estrutura física norteada pelos grandes eixos viários (BR-101, a BR-262, a ES-080 e as ferrovias

Vitória-Minas e RFFSA-Leopoldina, que cortam a malha urbana) – seu território foi sendo ocupado

através do preenchimento dos vazios intersticiais entre estas estruturas, quase sempre com a

presença de loteamentos ilegais, irregulares e ―invasões‖18.

No município, na margem da ES-080, está localizada A Casa da Juventude de Cariacica 19.

Próxima ao Terminal intermunicipal de Itacibá, fizemos uma pausa e fomos atrás de pistas que

pudessem subsidiar nossa atratividade pelo universo hip hop fomentada pelas paisagens

grafitadas que inundaram nosso percurso neste primeiro deslocamento. Soubemos pelos

coordenadores e funcionários da Casa da existência de alguns grupos de rap no município,

concentrados principalmente nos bairros Jardim Botânico, Castelo Branco, Flexal e Nova Rosa da

Penha. É comum ouvirmos e lermos estes nomes nas manchetes de jornais precedendo alguma

notícia vinculada à violência nas páginas policiais. Em 2006, Cariacica ocupava o 1º lugar no

ranking das cidades mais violentas da Grande Vitória20. De acordo com dados levantados pela

Secretaria de Estado de Segurança Pública (Sesp) a macro-região, que abrange 25 bairros no

entorno de Nova Rosa da Penha e Flexal teve contribuição significativa em crimes ligados

diretamente ao tráfico de drogas. Em 2009, estudo realizado pelo Fundo das Nações Unidas para

a Infância (Unicef), apontou Cariacica como o terceiro lugar na lista dos municípios onde mais se

matam jovens e adolescentes no Brasil21.

São nesses bairros, onde os índices de criminalidade se destacam, que estão localizados os

18

IJSN, 2001.

19 A Casa da Juventude é um projeto do Departamento da Juventude que está vinculado ao gabinete do Prefeito.

Concentra ações e projetos voltados para a juventude sem estar ligada especificamente a nenhuma secretaria. A proposta da Casa é que esta seja um local de apoio aos movimentos da juventude do município, tanto no que diz respeito à disponibilização da sua infra-estrutura (telecentro, auditório, estúdio, salas de reuniões, assessoria de direitos humanos, etc.), quanto na promoção e elaboração de políticas voltadas para a juventude, como a criação do Conselho Municipal da Juventude.

20 ―Nova Rosa da Penha e Flexal elevam mortes em Cariacica‖, reportagem publicada em 07/07/ 2006, no Século

Diário. Disponível em http://www.seculodiario.com.br (acessada em 10 de julho de 2009).

21 ―Seis municípios do ES no ranking das cidades onde mais se mata jovens no país‖, reportagem publicada em

21/07/2009, na Folha Vitória. Disponível em http://www.folhavitoria.com.br (acessada em 10 de julho de 2009)

Page 14: 01655_Silacc_aproximaçoes Cartograficas Os Bboys Do Terminal

grupos citados na Casa da Juventude. Segundo Robson Malacarne, um dos coordenadores da

Casa, em suas apresentações, os grupos estimulam o debate político e social entre os jovens.

Existem no município aproximadamente 6 ou 7 grupos22 que não possuem articulação entre si,

realizando suas atividades isoladamente. Aliás, de acordo com Malacarne, esta característica está

presente na maioria dos movimentos relacionados à juventude em Cariacica, como o basquete de

rua, a capoeira e o funk. São movimentos que se apresentam mais ou menos fortes de acordo

com as regiões em que estão localizados. No entanto, seu nível de articulação ainda é precário.

Os movimentos que se sobressaem são os que possuem uma atuação mais explicitamente

voltada para a política ou alguma ordem religiosa – como a União Cariaciquence dos Estudantes

Secundaristas23 e a Pastoral da Juventude24. Apresentam um nível de organização maior,

mostrando-se mais representativos e articulados. Organizações como a Central Única das

Favelas – CUFA possuem no município uma atuação voltada mais para prestação de serviços e

auxilio na realização de eventos do que propriamente um vetor de articulação dos movimentos da

periferia.

Foi acompanhando a movimentação dos gorros e bonés virados para trás; das correntes presas

aos bolsos dos bermudões; dos tênis estilo ―All Star‖, quase sempre acompanhados de uma

mochila a tira colo, que tomamos um ônibus rumo ao Terminal de Laranjeiras25, na Serra.

Denunciavam a corpografia26 advinda da experiência urbana singular das periferias. Desviamo-

nos momentaneamente do percurso rumo a Alice Coutinho para seguirmos esses b.boys que, em

uma tarde ensolarada de sábado, tomavam esta condução e dirigiam-se ao terminal. O terminal,

comumente utilizado como local de passagem e de baldeação, inusitadamente era o destino final

desses jovens. Para lá se direcionam, todo segundo sábado do mês, centenas deles, oriundos

principalmente das periferias da região metropolitana. O local é palco do ―Encontro de B.Boys e

B.Girls do Terminal‖. O encontro agrega em média 80 a 100 dançarinos e aprendizes que se

22

Esse número é baseado nos registros existentes na Casa da Juventude considerando a participação destes grupos em eventos, seminários, reuniões e conferências realizadas. É provável que existam mais grupos no município além destes.

23 Em fase de re-estruturação, o movimento apóia-se na construção do Centro Federal de Educação Tecnológica do

Espírito Santo - CEFET-ES no município como uma possibilidade de reascender o debate entre os estudantes.

24 Além da já tradicional Pastoral da Juventude, outro grupo tem se mostrado bastante atuante no município, possuindo

inclusive representação no Conselho Municipal da Juventude: o Demolay. O Demolay pode ser entendido como o movimento jovem da Maçonaria e em Cariacica é composto basicamente por filhos de Maçons e alguns convidados. Reúnem-se no Bairro Santa Fé desenvolvendo projetos internos e também em parceria com comunidades, voltados para assistência social.

25 A partir da década de 90, Laranjeiras consolida-se enquanto principal centro de comércio e serviços de acentuada

importância municipal, apresentando estabelecimentos e equipamentos urbanos de abrangência metropolitana, em geral localizados ao longo de eixos viários que apresentam concentração deste tipo de uso. Atualmente tem recebido boa parte da classe média capixaba que não encontra mais muitas opções de empreendimentos residenciais acessíveis na capital.

26 Por corpografia entende-se ―uma cartografia corporal (ou corpo-cartografia, daí corpografia), ou seja, parte da

hipótese de que a experiência urbana fica inscrita, em diversas escalas de temporalidade, no próprio corpo daquele que a experimenta, e dessa forma também o molda, mesmo que involuntariamente (...)‖. (JACQUES, 2007)

Page 15: 01655_Silacc_aproximaçoes Cartograficas Os Bboys Do Terminal

apresentam nas rodas formadas sob a batuta do DJ e do MC, além de centenas de passantes que

ao serem surpreendidos com tal movimentação fazem uma pausa em seus percursos e prestigiam

curiosos a exibição dos jovens por alguns minutos. São diversos os fluxos e vetores atuando

neste movimento múltiplo produzido na/pela periferia – onde já conquistaram seu espaço –

atualizado neste ―não lugar‖ onde são construídas novas possibilidades de agenciamentos e

relações. Para Souza & Rodrigues (2004), a relação entre a periferia e o hip hop é a sua essência,

é a forma que as pessoas que moram em espaços pobres e segregados encontram de fazer

política. São as relações que se estabelecem entre estes indivíduos pelo fato de estarem juntos

em determinado espaço, nesse caso a periferia, que Santos (1996) chama de

transindividualidade. Essa transindividualidade alimenta a criação cultural e artística dos

integrantes do movimento.

O terminal é um importante nó da rede viária urbana. O movimento apropria-se de sua localização

estratégica e sua articulação com as diferentes periferias da Região Metropolitana através do

sistema Transcol27, estruturado a partir de linhas que coletam passageiros dos bairros e os

direcionam aos terminais, de onde partem as linhas de abrangência metropolitana. Quando o hip

hop utiliza-se da potencialidade do terminal e elege-o como o lugar do encontro, realiza nele outro

escape. Apesar de parecer óbvia a característica articuladora destas estruturas urbanas,

percebemos o quão subutilizadas e impessoais são. Apropriando-se delas imprimem aí novos

significados. O hip hop ―carrega‖ a periferia para o centro e reinventa o terminal e se espalha a

partir dele.

Figura 6 - Panfleto de divulgação do Encontro de B-Boys e B-Girls

27

Principal sistema de transporte público da região

Page 16: 01655_Silacc_aproximaçoes Cartograficas Os Bboys Do Terminal

O evento começa assim: chega um grupo carregando a aparelhagem de som, acompanhado em

geral do MC e do DJ – responsáveis por ditar o ritmo e batida das performances dos b.boys. Os

demais dançarinos começam a saltar dos ônibus e agrupam-se em volta da aparelhagem

enquanto fazem exercícios de aquecimentos. Aos poucos a roda vai se fechando e todos estão

ansiosos para começar suas apresentações. Ao som da batida do DJ o MC dá as boas vindas aos

dançarinos, e a roda começa. Nela se vê passos, saltos, rodopios e encenações onde se

misturam disputa, desafio, ―brodagem‖ e solidariedade. É o b.boy que faz um movimento mais

complexo e é aplaudido pelos companheiros; é o iniciante – fruto das oficinas e projetos sociais

que trabalham a cultura hip hop – que é incentivado pelos professores; é o movimento novo,

diferente que é questionado pelos veteranos, gerando um clima de tensão na roda; são as

provocações e respostas dadas às críticas através de sucessivas performances quase sempre

desafiando este ou aquele b.boy causador da discórdia. Os tradicionais freqüentadores, ou

melhor, passantes, do terminal, disputam uma ―janela‖ entre os b.boys da roda e apreciam as

apresentações. No entorno da roda, alguns iniciantes na dança break aproveitam a presença de

seus professores e de dançarinos mais experientes para pedirem dicas e treinarem novos

movimentos. Não vêem a hora de tornarem-se também o centro da atenção e serem admirados

pelos outros b.boys e pelos passantes do terminal.

Fomos atrás de um dos organizadores do encontro, o ―Eduardo B.boy‖ – como se autodenomina

em uma página de relacionamentos na internet –, integrante do grupo de break Ultimate B.Boys.

Através dele soubemos um pouco mais da estória deste evento que existe há 10 anos no terminal.

Inicialmente não possuíam autorização. Quem começou o movimento foi o grupo Vitória Crew

que, articulado com outros grupos, convocavam os demais integrantes do movimento que,

juntamente com seus aparelhos de som, realizavam no terminal suas performances. Não demorou

para que a Companhia de Transportes Urbanos da Grande Vitória - Ceturb proibisse tais

manifestações. Concomitantemente o movimento hip hop conquistava abertura junto aos projetos

sociais da Grande Vitória e através dos cursos, oficinas e workshops de grafite, streetdance,

discotecagem e etc. conquistavam mais adeptos. Apoiados pelos projetos sociais, e sob a

organização do grupo Ultimate B.boys, foi elaborado o projeto do ―Encontro de B.Boys e B.Girls do

Terminal‖ e através dele conseguiram o apoio da Ceturb. Tal apoio consiste apenas no aval para

realização do evento uma vez por mês. Todas as despesas (como o transporte da aparelhagem e

aquisição de equipamento) são bancada pelos Ultimate B.Boys. Eduardo e Alecsandro (o

grafiteiro Alecs Power) queixam-se da falta de subsídio para realização do evento que a cada dia

cresce mais. Sabem da responsabilidade que têm na manutenção do evento, principalmente junto

aos seus alunos. Os dois dão aulas em projetos sociais da Região Metropolitana e sabem o quão

Page 17: 01655_Silacc_aproximaçoes Cartograficas Os Bboys Do Terminal

aguardado é o dia do encontro pelos jovens e crianças das periferias em que trabalham: ―Tem

gente que mata cursinho até para vir aqui. Sabe que é uma vez por mês só‖, conta Eduardo. Ele

acredita que esta parceria dos projetos sociais com o movimento hip hop é fundamental para o

sucesso de iniciativas que têm por premissa resgatar crianças e adolescentes em situação de

risco. Eduardo lembra que desviar esses jovens do mundo das drogas e do crime faz parte da

filosofia do hip hop. Querendo ou não, seus alunos são alertados que, ao aderirem ao movimento

hip hop, estão aderindo a uma postura e um posicionamento que vai além das letras, dos passos

do break, ou dos traços do grafite. Estão aderindo e um estilo de vida. Perguntamos o que leva os

jovens à essa adesão. Instantaneamente Eduardo responde: ―A mídia. Está na mídia. Ele vê que o

cara tá lá na televisão e vê que pode tá lá também‖.

Percorremos mais um pouco o espaço do terminal observando a circulação dos b.boys misturados

aos passageiros dos ônibus que paravam para assistir o movimento. Notamos que são poucas as

meninas do movimento presentes. Em geral estão acompanhadas de namorados e poucas são as

que arriscam alguns movimentos do break ao lado da roda principal. Enquanto isso o DJ chama a

atenção de alguns b.boys que tumultuam a roda, enquanto um rapaz queixa-se de que furtaram

seu celular na mochila enquanto estava entretido aguardando seu momento de entrar na roda. Os

motoristas em horário de descanso procuram um ―buraco‖ na roda para prestigiar a apresentação

e um grupo de crianças, talvez alunos ou iniciantes, dão os primeiros passos na dança.

Decidimos que é hora de voltar para o ponto de onde nos desviamos e optamos por pegar a BR-

101, Rodovia do Contorno, para retornarmos a Cariacica. No caminho, algumas questões não nos

deixaram esquecer do Terminal. Não é irônico que o garoto que teve o celular furtado tivesse

exatamente o estereótipo dos suspeitos desse tipo de furto? Negro, magricelo, jovem, de

bermudão, corrente pendurada, camisa larga e boné pra trás? Lembramos do comentário dele

quando se deu conta do furto, mas que na hora pareceu-nos irrelevante: ―Depois a gente vai lá

reclamar com os ‗caras‘ e eles acham ruim, não acreditam na gente!‖, se referindo aos

seguranças do Terminal. Ainda que almeje ser notado, ser visto, a sua própria imagem, sua

corporeidade28, caricatura do menino da periferia, é uma barreira para que suas queixas e suas

denúncias sejam encaradas com seriedade pelos detentores contextuais do poder, nesse caso, o

segurança do Terminal. No momento, sua visibilidade está relacionada com a imagem de

suspeito. Lembramos de fato semelhante narrado por Faustini (2009), ao se recordar de um

acontecimento de sua adolescência na baixada carioca, quando voltava para casa com seus

amigos. Foram abordados por policiais militares, mas só um deles levou o tapa na cara, o que era

28

―(...) corporalidade ou corporeidade é uma dimensão objetiva que dá conta da forma com que eu me apresento e me vejo, que dá conta também das minhas virtualidades de educação, de riqueza, da minha capacidade de mobilidade, da minha localidade, da minha lugaridade (...)‖ (SANTOS, M. 1996)

Page 18: 01655_Silacc_aproximaçoes Cartograficas Os Bboys Do Terminal

negro. Faustini atribui a sua invisibilidade de branco junto aos policiais a justificativa de não ter

sido também agredido. Estar na mídia é, para o menino do hip hop, o seu devir branco. Sua

possibilidade de ser invisível em situações como a narrada por Faustini e, em outras, ter a

visibilidade dos brancos. O devir branco aqui não se refere exclusivamente à cor da pele, mas a

toda uma série de atribuições e ideais que carrega esse devir majoritário: a do belo, a do bem

sucedido, a do aceito, a do que possui permissão para circular sem ser barrado, a do que pode

cobrar por justiça sem ser ridicularizado, etc. A desconfiança é violenta com os meninos da

periferia. José Junior (2006) também relata um episódio de desconfiança quando foi com um

amigo comer pela primeira vez em um Mc‘Donalds no Rio. A volta pra casa foi surpreendida com

o espancamento dos dois por policiais. Quantas não são as histórias de desconfiança, humilhação

e violência para com estes meninos? O papel de suspeito lhes é comum, assim como a ânsia em

deixar a invisibilidade. O devir escape para estes meninos é a visibilidade dos brancos? Ainda que

incomodados com tal in-conclusão tomamos nosso caminho de volta deixando em aberto a

continuidade dessa discussão.

Considerações

Tentamos através da leitura deste encontro demonstrar a metodologia utilizada e contribuir para a

ampliação do universo de debates sobre as possibilidades de produção da cidade

contemporânea. Procuramos falar de um movimento marginal e dos espaços por onde transitam

estes praticantes ordinários e todos os demais habitantes da cidade. Expusemos alguns conflitos,

diálogos e possibilidades de interações e sociabilidade que vieram a revelar e atualizar questões

banalizadas ou invisibilizados pelo senso comum. Tentamos elaborar registros que falam da vida

cotidiana, dos itinerários percorridos, dos afetos, dos eventos urbanos, do que é passível de

apreensão, ainda que fluido, do simultâneo, do híbrido, do que está à margem, das opacidades.

Enquanto realizamos esta possibilidade de leitura do território e seu conteúdo, construímos uma,

dentre tantas, cartografias possíveis da cidade.

Encontramos também uma enorme quantidade de outras formas e outros conteúdos que

poderiam fazer parte desta ou de tantas outras cartografias. Construindo novas ou atualizando

nem tão novas possibilidades de existência no urbano, os escapes são constituídos pautado em

novas racionalidades ou novas imposições e limites disciplinares sobrecodificados em substituição

aos códigos já desgastados? O que temos de mais claro nesta discussão é a impossibilidade, ou

inviabilidade, de uma classificação rígida no que diz respeito ao seu papel de articulador de novas

formas de produção da cidade. Os escapes constituem um discurso aberto sobre a produção da

cidade, onde não cabem restrições.

Page 19: 01655_Silacc_aproximaçoes Cartograficas Os Bboys Do Terminal

Enquanto método, emaranhamos, desemaranhamos e tecemos algumas tessituras possíveis dos

escapes enquanto potencia e o micro-universo no qual se encontram. Temos por certo que outras

tantas tessituras poderiam ser desenvolvidas, ou mesmo refeitas. Ainda assim, enquanto prática,

enquanto experimento metodológico, entendemos que o aprofundamento e refinamento da

proposta de investigação virá a partir do momento em que novas cartografias sejam praticadas,

comparadas e esta, revisitada.

Referências Bibliográficas

ABE, A. Grande Vitória, E.S.: Crescimento e Metropolização. Tese de Doutorado. USP-SP, 1999.

DE CERTAU, M. A invenção do cotidiano. – Petrópolis: Vozes, 1994.

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs - capitalismo c esquizofrenia, vol. 1, São Paulo, Ed. 34.,1995

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs - capitalismo c esquizofrenia, vol. 1; Tradução de Peter Pál

Pelbart e Janice Caiafa. — São Paulo: Ed. 34, 1995

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs - capitalismo c esquizofrenia, vol. 5 ; Tradução de Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. — São Paulo: Ed. 34, 1997

FAUSTINI, V. Guia afetivo da periferia. – Rio de Janeiro: Aeroplano, 2009.

GUATTARI, F. Caosmose: um novo paradigma estético. – São Paulo: Ed. 34, 1992.

GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografia do desejo, Petrópolis, Vozes. 2005.

HAESBAERT, R. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. – 2ª.

Ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006a.

HAESBAERT, R., Territórios Alternativos, São Paulo: Contexto, 2006b.

INSTITUTO DE APOIO À PESQUISA E AO DESENVOLVIMENTO JONES DOS SANTOS NEVES. Região

Metropolitana da Grande Vitória: Dinâmica Urbana na década de 90. Vitória, 2001.

JACQUES, P. Corpografia Urbana: o corpo enquanto resistência. In: Cadernos PPG-AU/FAUFBA. Ano

V – Número Especial, Resistência em Espaços Opacos. CAPES/COFECUB, 2007.

PASSOS, E.; KASTRUP, V. ESCÓSSIA, L. (orgs). Pistas do Método da Cartografia: Pesquisa-

intervenção e produção de subjetividade. – Porto Alegre: Sulinas, 2009.

RIBEIRO, A. Outros territórios, outros mapas. OSAL Ano V Nº 16 ENERO-ABRIL 2005a.

RIBEIRO, A. Sociabilidade Hoje: leitura da experiência urbana. –Caderno CRH, Salvador. V.18. nº 45.

p.411-422. Set/Dez, 2005b.

Page 20: 01655_Silacc_aproximaçoes Cartograficas Os Bboys Do Terminal

ROLNIK, S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. – 7ª Ed. – Porto

Alegre: Sulina; Editora da UFRGS, 2007.

SANTOS, M. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção – 1ª ed. - São Paulo: Hucitec,

1996.

SANTOS, M. O retorno do território. In Territorio y movimentos sociales, OSAL Ano VI, Nº 16, Buenos Aires, CLACSO, 2005.

SANTOS, M. Por uma geografia cidadã: por uma epistemologia da existência. Boletim Gaúcho de

geografia, n.21, 1996.

SANTOS, M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. – 11ª ed. –

Rio de Janeiro: Record, 2000.

SANTOS, M. Técnica, Espaço, Tempo: Globalização e Meio Técnico-Científico Informacional –São

Paulo: Ed. HUCITEC, 1994