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OaprendizéumpratocheioparaosfãsdeHarryPotter,OSenhordosAnéiseoutros clássicos da fantasia. Com referências a jogos de RPG, Pokémon eSkyrim, o romance mescla a magia dos mundos fantásticos com criaturaspoderosasemduelosdetirarofôlego.Fletcheréumórfãode15anose,para sua surpresa, conseguiu invocarumdemôniodoquintonível.Oproblemaéque apenasosnobresdeveriamsercapazesdeconjurarcriaturaseusá-lasnaguerracontraosorcs.Masplebeuscomo Fletcher também podem ser conjuradores, e o garoto consegue umavaganaAcademiaVocans,umaescolademagosquepreparaseusalunosparaoscamposdebatalha.Lá,eleiráenfrentarobullyingdosnobres,mastambémaprenderá feitiços e fará amigos incomuns, como anões e elfos. Além de seprovar digno de uma boa patente na guerra, Fletcher e seu grupo desegregadosprecisamseunirevenceropreconceitoquesofremnadesigualsociedadedeHominum.

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1

Era agora ou nunca. Se Fletcher não abatesse o animal, passaria fomeaquela noite. O crepúsculo se aproximava rapidamente e ele já estavaatrasado. Precisava voltar logo à vila ou se depararia com os portõesfechados.Seissoacontecesse,Fletcherteriaquesubornarosguardascomumdinheiroquenãotinhaoucorreroriscodepassaranoitenafloresta.

O jovem alce tinha acabado de esfregar os chifres num pinheiro alto,raspandooveludomacioqueosrecobriapararevelaraspontasafiadasporbaixo.Pelotamanhoepelaalturadiminutos,Fletcherdiriaquesetratavade um animal de pouca idade exibindo a primeira galhada. Era um beloespécime,compelobrilhosoeolhosluminosos,inteligentes.

Fletcher quase sentiu vergonha de caçar uma criatura tão majestosa,porémjácalculavamentalmenteseuvalor.Opelameespessorenderiaumbom dinheiro quando os peleteiros chegassem, especialmente porque jáerainverno.Dariapelomenosunscincoxelins.Oschifresestavamembomestado, ainda que fossem um tanto pequenos, e renderiam talvez quatroxelins, comsorte.Era a carne, entretanto, queo rapazdesejavaacimadetudo,decorvermelhaesaborintenso,pingandogorduranofogo.

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Uma névoa densa se espalhava no ar, pesada, cobrindo Fletcher comuma fina camada de orvalho. A floresta estava anormalmente quieta.Geralmente, o vento agitaria os galhos, permitindo que o rapaz seesgueirassepelamatasemserouvido.Naquelemomento,noentanto,elemalsepermitiarespirar.

Fletcherpegouoarcoepreparouumaflecha.Eraoseumelhorprojétil,comhasteretaecerteira,ealetasfeitasdeboaspenasdeganso,emvezdasplumasbaratasdeperuqueelecompravanomercado. Inspiroude leveepuxouacorda.Estavaescorregadiaemseusdedos;omeninoauntaracomgorduradegansoparaprotegê-ladaumidadedoar.

A ponta entrava e saía do campo de visão do caçador enquanto elemirava no alce. Fletcher estava agachado a uns bons dez metros dedistância,escondidonagramaalta.Eraumtirodifícil,masafaltadeventotambémtinhalásuasvantagens.Nadaderajadasparadesviaraflechadeseucaminho.

O rapaz expirou e disparou em um único movimento fluido,incorporandoomomentodeimobilidadedecorpoealmaconformetinhaaprendidopelaexperiênciaamargaefaminta.Ouviuovibrarsecodacordaeentãoobaquedaflechaatingindooalvo.

Foraumbelotiro,perfurandooalcenopeito,atravésdepulmõesedocoração.Oanimaldesaboue entrouemconvulsão,debatendo-seno solo.Oscascosescavavamumatatuagemnaterracomseusespamosdemorte.

Fletcherdisparouemdireçãoàpresaesacouumafacadeesfolamentodabainhafinaemsuacoxa,masoalceestavamortoantesqueoalcançasse.Umabatebome limpo, issoqueBerdon lhediria.Masmatarera sempreuma sujeira. A espuma sangrenta que borbulhava da boca do animalatestavaofato.

Fletcherremoveua flechacomcuidadoe ficou felizaoverqueahastenãotinhasepartidonemapontadesílexse lascadonascostelasdoalce.Mesmo que seu nome, Fletcher, significasse “aquele que faz flechas”, o

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rapaz se frustrava com o longo tempo que levava amarrando setas. Elepreferia o serviçoqueBerdonocasionalmente lhepassava, demartelar emoldar ferro na forja. Talvez fosse pelo calor, ou pela forma como seusmúsculosdoíamdeliciosamentedepoisdeumlongodiadetrabalhoárduo.Ou talvez fossemasmoedasquepesavamemseusbolsosquandoeleerapagoapósaentrega.

O jovem alce era pesado, mas a vila não estava longe. As galhadasserviambemcomoalças,eacarcaçadeslizavacomfacilidadesobrearelvamolhada.Aúnicapreocupaçãoagoraseriamoslobosouosgatosselvagens.Não era raro que eles roubassem a refeição ou atémesmo a vida de umcaçadorquelevavaapresaparacasa.

OrapazestavacaçandonacristadasmontanhasDentesdeUrso,assimchamada por seus distintos picos gêmeos, que se assemelhavam a doiscaninos.Avilaficavanacristaacidentadaentreosdois,eoúnicocaminhoaté lá era uma trilha íngreme e rochosa, bem à vista dos portões. Umagrossapaliçadademadeiracercavaavila,equipadacompequenas torresdevigiaa intervalosregulares.Avilanãoeraatacadahaviamuitotempo;apenasumaveznosquinzeanosdesdeonascimentodeFletcher.Mesmoentão,foraapenasumpequenobandodeladrões,emvezdeumaincursãodosorcs,algomuitoimprováveltãolongeaonortedasselvas.Apesardisso,oconselhodavila levavaasegurançamuitoasério,eentrarapósononosinoerasempreumpesadeloparaosretardatários.

Fletchermanobrouacarcaçadoanimalatéarelvagrossaquecresciaaoladodatrilharochosa.Nãoqueriadanificaropelame,apartemaisvaliosado alce. Pele de animais era um dos poucos recursos que a vila tinha aoferecer,edaíelatirouseunome:Pelego.

Asubidaeraduraeocaminho,traiçoeiroaospés,aindamaisnoescuro.O sol já tinha desaparecido atrás da crista, e Fletcher sabia que o sinosoaria a qualquer minuto. O rapaz trincou os dentes e se apressou,tropeçandoepraguejandoaoarranharosjoelhosnocascalho.

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O desânimo tomou seu coração ao alcançar os portões principais. Jáestavamfechados,comoslampiõesaoaltoacesosparaavigílianoturna.Osguardaspreguiçosostinhamfechadomaiscedo,ansiosospelabebedeiranatavernadavila.

—Seuspalermaspreguiçosos!Ononosinoaindanemtocou.—Fletcherpraguejouesoltouagalhadadoalcenochão.—Medeixementrar!Eunãovou dormir aqui fora só porque vocês não podem esperar para encher acara.—Elechutouoportãocomforça.

— Ora, ora, Fletcher, dá para falar mais baixo? Tem gente de bemdormindoaquidentro.—Eraumavozvindadoalto.Didric.Oguarda sedebruçousobreoparapeitoacimadeFletcher,comagrandecararedondasorrindomaldosamente.

O rapaz fez uma careta. De todos os guardas que poderiam estar deserviçohoje,tinhaqueserDidricCavell,opiordobando.Eletinha15anos,amesmaidadedeFletcher,masseachavaadulto.Elesnãosegostavam.Oguarda era um valentão, sempre procurando uma desculpa para exercersuaautoridade.

—Eudispenseimaiscedooturnododia.Vejabem,levomeusdeveresmuito a sério. Não podemos vacilar, considerando que os mercadoreschegarão amanhã. Nunca se sabe que tipo de ralé fica se esgueirando aífora.—Eleriudaprópriaprovocação.

—Medeixeentrar,Didric.Vocêsabetãobemquantoeuqueosportõesdeveriam ficar abertos até o nono sino!— exclamou Fletcher. Enquantofalava,ouviuosinocomeçarseudobrarreverberante,ecoandofracamentenosvalesabaixo.

— O que foi que você disse? Não consigo escutar — gritou Didric,levandoumadasmãosàorelhadeformateatral.

—Eu faleiparavocêmedeixarentrar, seupaspalho. Istoé ilegal!Vouser obrigado a te denunciar se não abrir os portões agora mesmo! —berrouorapaz,furiosocomorostopálidosobreapaliçada.

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—Bem,vocêpoderiamuitobemfazerisso,eeucertamentenãonegariaoseudireitodefazê-lo.Muitoprovavelmente,nósdoisseríamospunidos,eissonãofariabemaninguém.Então,porquenãofazemosumacordo?Vocêmedáessealce,eeulhepoupooaborrecimentodedormirnaflorestaestanoite.

— Pode enfiar no seu rabo, babaca — retrucou Fletcher, sem poderacreditar.AtéparaDidric,issoeraumachantagemdescaradademais.

—Vamoslá,Fletcher,sejarazoável.Osloboseosgatosselvagensvirãorondar, nem uma fogueiramuito forte osmanterá afastados no inverno.Você poderá dar no pé quando eles chegarem, ou ficar aqui e servir deaperitivo.Dequalquermaneira,mesmosevocêduraratéoamanhecer,vaientrarporestesportõesdemãosabanando.Medeixeajudarvocê.—AvozdeDidriceraquaseamistosa,comoseestivessefazendoumfavor.

O rosto de Fletcher ardia, vermelho. Isso ia muito além de qualquercoisaqueelejátivessepassado.AinjustiçaeracomumemPelego,eorapazaceitarahaviamuitoque,nummundodeprivilegiadosedesfavorecidos,elecertamente fazia parte da segunda categoria. Mas agora esse molequemimado,aindaporcimafilhodeumdoshomensmaisricosdavila,oestavaroubando.

—Éassim,então?—indagouFletcher,numtombaixoefurioso.—Vocêseachamuitoesperto,nãoacha?

— É só a conclusão lógica de uma situação na qual calhei de ser obeneficiário—argumentouDidric,afastandoafranjaloiradosolhos.

Todos sabiam que o rapaz recebia aulas particulares, e ostentava suaeducaçãoatravésda fala floreada.Seupai tinhaesperançasdequeDidricum dia se tornasse juiz, possivelmente em um tribunal de alguma dasmaiorescidadesdeHominum.

— Você esqueceu uma coisa — grunhiu Fletcher. — Que eu prefiromuitomaisdormirnomatoadeixarvocêroubarminhapresa.

—Hah!Achoquevoupagarparaverseublefe.Tenhoumalonganoite

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pelafrente.Vaiserdivertidoassistirenquantovocêtentarechaçaroslobos.—Didricriu.

Fletcher sabia que Didric o estava provocando, mas isso não fez seusanguefervermenos.Orapazsuprimiuaraiva,mascontinuoufuriosonofundodamente.

—Eunãovoutedaroalce.Sóapelejávaleunscincoxelins,eacarnevai render mais uns três. Se me deixar entrar, eu esqueço de denunciarvocê. Podemos deixar essa confusão toda para trás — sugeriu Fletcher,engolindooorgulhocomdificuldade.

— Vamos fazer assim: não posso sair dessa demãos vazias; isso nãoseria justo,seria?Mas,comoestoumesentindogeneroso,sevocêmederesseschifresqueporacasodeixoudemencionar,euencerrooassunto,enósdoisconseguimosoquequeremos.

Fletcher estremeceu com o descaramento da sugestão. Resistiu poralgunsmomentos, então cedeu. Uma noite na própria cama valia quatroxelins,eparaDidricaquilonãopassariadeunstrocados.Orapazgrunhiuesacouafacadeesfolamento.Eraafiadíssima,masnãotinhasidofeitaparacortar chifres. Ele odiava ser forçado a mutilar o alce, mas teria quedecapitá-lo.

Umminutomaistarde,depoisdeserrarasvértebras,tinhaacabeçanasmãos,pingandosanguenosmocassins.Fletcherfezumacaretaeaergueuparaqueoguardaavisse.

—Muito bem, Didric. Venha buscar— chamou Fletcher, brandindo otroféugrotesco.

—Jogueaquiparacima—respondeuDidric.—Nãoconfioquevocêvámeentregardepois.

—Oquê?—retrucouorapaz,incrédulo.— Jogue para mim, ou nada de acordo. Não estou com paciência de

tomarissodevocêeficarcomouniformetodoensanguentado—ameaçouDidric.

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Fletchergrunhiueaatirouparaoalto,lambuzandoaprópriatúnicacomsangue.AcabeçavoouporsobreDidricecaiunoparapeito.Oguardanãofezmençãodepegá-la.

—Foimuitobomfazernegócioscomvocê,Fletcher.Vejovocêamanhã.Esperoquesedivirtaacampandonamata—disseele,animado.

—Espera!—berrouogaroto.—Equantoaonossoacordo?— Eumantiveminha parte no trato, Fletcher. Disse que encerraria o

assunto,equenósdoisconseguiríamosoquequeríamos.Evocêdissehápouco que preferiria dormir nomato amedar o seu alce. Então, aí está,você recebe o que prefere, e eu fico com o que quero. Você deveriarealmente prestar mais atenção aos termos e condições de qualquercontrato, Fletcher. É aprimeira liçãoqueum juiz aprende.—O rostodoguardacomeçouasumiratrásdoparapeito.

—Essenãofoinossoacordo!Medeixaentrar,seuvermezinho!—rugiuFletcher,chutandooportão.

—Não,não,minhacamaestámeesperandoemcasa.Nãopossodizeromesmodasua,porém.—Didricriaenquantosevirava.

—Vocêestádeguardaestanoite, nãopode irpara casa!—gritoudevoltaorapaz.SeDidricabandonasseoserviço,Fletcherpoderiasevingardelatandoa falta.Elenunca tinhaseconsideradoumdedo-duro,masporDidricabririaumaexceção.

— Ah, não estou de guarda hoje. — O grito de Didric soou baixoconformeeledesciaosdegrausdapaliçada.—Eununcadissequeestava.FaleiaJakovqueficariadeolhoenquantoeleusavaalatrina.Deveestardevoltaaqualquerminuto.

Fletcher cerrou os punhos, quase incapaz de compreender a realdimensãodogolpedeDidric.Contemplouacarcaçadecapitadaaoladodosmocassinsarruinados.Enquantoa fúriasubiacomobileàsuagarganta,orapaztinhasóumpensamento:issonãoacabariaali.Nememummilhãodeanos.

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2

—Saiadessacama,Fletcher.Esteéoúnicodiadoanoemqueeurealmentepreciso de você acordado na hora certa.Não posso cuidar da barraca nafeiraeferrarcavalosaomesmotempo.—OrostoavermelhadodeBerdonsurgiuassimqueFletcherabriuosolhos.

O rapaz grunhiu e puxou os cobertores sobre a cabeça. Jakov o tinhafeitoesperardoladodeforaporumahoraantesdedeixá-loentrar,comacondiçãodequeFletcher lhepagasseumdrinquedapróximavezqueosdoisestivessemnataverna.

Antesquepudesse sedeitar,Fletcher tevedeestripareesfolaroalce,alémdecortaracarneependurá-la juntoà lareiraparasecar.Orapazsepermitiu apenas uma única fatia suculenta, assada por alguns poucosminutosnofogo,antesqueeleperdesseapaciênciaedevorassetudo.Noinvernoerasempremelhorsalgaresecaracarneparamaistarde;Fletchergeralmentenãotinhacomosaberquandofariaapróximarefeição.

—Agora,Fletcher!Eváselavar.Vocêestáfedendocomoumporco.Nãoquero que afaste os clientes. Ninguém vai querer comprar de umvagabundo.—Berdonarrancouascobertasesaiudominúsculoquartodo

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aprendiz,nosfundosdaforja.Orapazestremeceucomaperdadoscobertoresesesentou.Oquarto

estavamaisquentedoqueeleesperava.Berdonprovavelmentepassaraanoite todana forjaardente,sepreparandoparaodiade feira.Fletcher jáaprenderahaviamuitotempocomosemanteradormecidosoboretinirdemetal, o rugido dos foles e o chiado das armas incandescentes sendotemperadas.

Eleatravessoupenosamenteasaladaforjaatéopequenopoçodoladodefora,doqualBerdoncostumavatiraraáguadetêmpera.Puxouobaldee,apósumúnicoinstantedehesitação,despejouaáguageladanacabeça.Atúnica e as calças também se encharcaram,mas, considerandoque aindaestavamcobertasdosanguedanoiteanterior,issodeverialhesfazeralgumbem.Depoisdeváriosoutrosbaldeseumaesfregadaenérgicacompedra-pomes,Fletcherestavadevoltaà forja, tremendodefrioecomosbraçoscruzados.

—Venhacá,deixe-medarumaolhadaemvocê.Berdon estava parado à entrada do próprio quarto, com os longos

cabelosruivosiluminadospelalareira.Eradelongeomaiorhomemdavila,e as longas horas martelando o metal na forja lhe concederam ombroslargoseumpeitoralsólidocomoumbarril.ElefaziacomqueFletcher,umrapazpequenoemagroparaaidade,parecesseaindamenor.

—Bemcomoeupensava.Vocêprecisasebarbear.MinhatiaGerlatinhaumbigodemaisgrossoqueesse.Livre-sedessapenugemralaatéquevocêtenhaumdeverdade,comoomeu.

OsolhosdeBerdonbrilhavamenquantoeletorciaaspontasdoprópriobigode ruivo que se eriçava, espesso, acima da barba grisalha. Fletchersabiaqueo ferreiro tinha razão.Hojeosmercadoresviriamàvila, e elesfrequentemente traziam as filhas, meninas da cidade grande com longassaias plissadas e madeixas cacheadas. Mesmo que o rapaz já soubesse,graças à amarga experiência, que elas torceriam o nariz quando o

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avistassem,nãofariamalalgumseestivesseapresentável.— Vamos lá. Enquanto se barbeia, vou separar a roupa que você vai

vestir hoje. E nada de reclamar! Quanto mais profissional você parecer,melhornossamercadoriaparecerá.

Fletcher saiu novamente para o frio congelante. A forja ficava bem aoladodosportõesdavila, cujapaliçadademadeira terminavaamenosdeummetrodaparededos fundosdo seuquarto.Haviaumespelho eumapequena bacia largados ali perto. Fletcher sacou a faca de esfolamento eaparouapenugem,antesdeinspecionaroprópriorostonoespelho.

Eleerapálido,oquenãoerasurpreendente, jáqueestavatãoaonortede Hominum. Os verões eram curtos em Pelego, onde o garoto passavaalgumas curtas, mas divertidas, semanas com os outros meninos nafloresta,pescandotrutasnoscórregoseassandoavelãsnafogueira.EraaúnicaépocanaqualFletchernãosesentiaumforasteiro.

A expressão dele era séria, com maçãs do rosto definidas e olhoscastanho-escurosumtantoencovados.Ocabeloeraumdensoemaranhadonegro, que Berdon era obrigado a literalmente tosar quando ficavaselvagem demais. Fletcher sabia que não era feio, mas também nãoexatamentebelosecomparadoaosmeninosmaisricos,bemalimentados,de cabelos loiros e bochechas coradas da vila. Cabelos escuros eramincomunsnosassentamentosdonorte,porém,tendosidoabandonadoaosportõesquandoerasóumbebê,Fletchernãoficavasurpresoaonotarquenão se parecia em nada com os outros. Era só mais uma coisa que oseparavadoresto.

Berdon tinha deixado uma túnica azul-clara e calças verde-limão nacamadorapaz.Fletcherempalideceuperanteaquelascores,masengoliuoscomentáriosquandopercebeuaadvertêncianoolhardeBerdon.Asroupasnão pareceriam estranhas num dia de feira. Os mercadores eramconhecidospelostrajesextravagantes.

—Voudeixarvocêsevestir—comentouBerdoncomumacurtarisada,

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enquantosaíadoquarto.Fletcher sabia que as provocações do ferreiro eram sua maneira de

demonstrarcarinho,entãoelasnãooincomodavam.Orapaznuncaforadotipo tagarela, preferindo a companhia de si mesmo e dos própriospensamentos. Berdon sempre respeitara sua privacidade, desde que omenino começara a falar. Era um relacionamento estranho, o solteirãorústicoebondosocomseuaprendiz introvertido,porémelesconseguiamfazer dar certo. Fletcher sempre seria grato por Berdon tê-lo acolhidoquandoninguémmaisoquis.

Omeninotinhasidoabandonadosemnada,nemmesmoumacestaoutrouxa.Apenasumbebênunaneve,berrandoaplenospulmõesdiantedosportões. Os ricos esnobes não acolheriam a criança abandonada, e ospobresnãotinhamcondiçãode fazê-lo.Aqueleerao invernomaisseverodahistóriadePelego,eacomidaeraescassa.Nofim,Berdonseoferecerapara ficar com o menino, já que tinha sido ele quem o encontrara emprimeiro lugar. O ferreiro não era rico, mas não tinha outras bocas aalimentar nem dependia das estações para trabalhar, então era a pessoaidealemváriosaspectos.

Fletchernutriaumódioprofundopelamãe,mesmoquenãofizesseideiadequemelafosse.Quetipodepessoadeixariaseubebênuparamorrernaneve? O menino sempre se perguntava se não teria sido uma garota dePelego, incapazou indispostaacriá-lo.Àsvezesvasculhavaos rostosdasmulheresaoseuredor,comparandosuasfeiçõesàspróprias.Nãosabiaporquesedavaataltrabalho;nenhumadelassepareciaemnadacomele.

A barraca de Fletcher, carregada de espadas e adagas brilhantes, jáestavamontadajuntoàestradaprincipal,queiadoportãoatéosfundosdavila.Enãoeraaúnica.Pelocaminhohaviaoutras,lotadasdecarnesepelos.Outrasmercadoriastambémestavamàmostra:móveisconstruídoscomosaltos pinheiros que cresciamnoDente deUrso e flores damontanha, depétalas prateadas, em jarros para os jardins das ricas donas de casa da

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cidade.Couro era outro produto famosodePelego, cujas jaquetas e os gibões

eram valorizados acima de todas as outras pela qualidade do corte e dacostura.Fletcherestavadeolhonumajaquetaemparticular.Orapaztinhavendido quase todas as peles que conseguira naquele ano a caçadores, eforacapazdeeconomizarmaisdetrezentosxelinsparaessacompra.Eleaviu penduradamais adiante,mesmoque Janet—amercadora que tinhapassado várias semanas fazendo o casaco— tivesse lhe dito que ele sópoderia comprar pelos trezentos xelins se ninguém fizesse uma ofertamelhoratéofimdodia.

A jaqueta era perfeita. Forrada com pelo ultrafelpudo de lebre damontanha,macioecinzento,salpicadodecastanho.Ocouropropriamenteditoeradeummognoprofundo,robustoeimaculado.Eraàprovad’águaenão mancharia fácil, nem se rasgaria quando Fletcher perseguisse umapresa por entre os espinheiros da floresta. O rapaz já se via vestindo ocasaco; agachado na chuva, bem aquecido e camuflado com uma flechapreparadanoarco.

Berdon estava sentado atrás dele, diante da forja, ao lado de umabigorna e uma pilha de ferraduras.Mesmo que suas armas e armadurasfossemdealtaqualidade,eletinhaaprendidoquehaviamuitodinheiroaseganhar ferrandooscavalosdecargadosmercadoresexaustos, cuja longajornada pelas vilas remotas ao longo do Dente de Urso tinha apenascomeçado.

No último ano que osmercadores apareceram, Fletcher passara o diainteiroocupado,atémesmoafiandoasespadasdepoisqueabarracaficaravazia. Tinha sido um ótimo ano para se vender armas. O Império deHominum havia declarado guerra numa nova frente ao norte dasmontanhasdoDentedeUrso.Osclãsélficostinhamserecusadoapagaroimposto anual, dinheiro que o Império de Hominum exigia em troca daproteçãocontraas tribosórquicasdasselvasdosul, ládo ladoopostodo

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país.O impériodeclararaguerrapara cobrar asdívidas, eosmercadorestemiamgruposdeelfossaqueadores.Nofim,acabousendoumaguerradeprincípioscomalgumasescaramuçasenadamais,eacabounumacordodecavalheiros,acertandoqueoconflitonãoseagravaria.HaviaumacoisanaqualtantoHominumquantoosclãsélficosconcordavamimplicitamente:osorcseramoverdadeiroinimigo.

—Seráqueeuvouter tempodedarumaolhadana feiraesteano?—perguntouFletcher.

—Achoquesim.Nãohámuitademandaporarmasnovasdestavez.AsnovastropasdoDentedeUrsopodemsercompostasdevelhosealeijados,mas acho que osmercadores acreditam que a presença dosmilitares vádesencorajar os salteadores a vaguear por estas bandas e atacar seuscomboios.Opioréqueprovavelmenteestãocertos;nãoachoqueterãodese defendermuito este ano.Não faremosmuitos negócios com eles.Mas,pelomenos,sabemosqueaindahánecessidadedosmeusserviçosdapartedosmilitares,depoisdasuavisitaàlinhadefrentenomêspassado.

Fletcherestremeceucomalembrançadajornadasobreamontanhaatéo fortemaispróximo.A linhade frente eraum lugar tenebroso, cheiodehomenscomolharesvazios,esperandopelofimdeseuperíododeserviço.Afrenteélficaeraolixãoondeeramdespejadososhomensqueoexércitonãoqueriamais,asbarrigasvaziasincapazesdelutar.

Fricção. Era assim que alguns soldados explicavam. Alguns aconsideravamumabênção,longedoshorroresdastrincheirasnaselva.Oshomens morriam aos milhares na frente órquica, suas cabeças eramtomadascomotroféuseabandonadasemestacasàbeiradamata.Osorcseram uma raça selvagem e brutal, criaturas de trevas com intençõesimplacáveisesádicas.

Porém,haviaumtipodiferentedehorrornafronteiracomoselfos:umadegradação constante. Inanição lenta e crescente pela ração insuficiente.Exercíciossemfimaplicadosporsargentoscansadosquenãosabiammais

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o que fazer. Generais tacanhos que permaneciam em seus gabinetesaquecidosenquantoseushomenstremiamemseuscatres.

O intendente estivera relutante em comprar qualquer coisa, mas eleprecisava cumprir a quota, e as linhas de suprimentos sobre o Dente deUrso tinham se reduzido a um fiapo haviamuito, devido ao aumento dademanda na frente órquica. O fardo de espadas que Fletcher estiveracarregando nas costas desde aquelamanhã fora vendido pormuitomaisdinheiro do que valia, deixando a bolsa do garoto pesada com xelins deprata,aindaqueconsideravelmentemaislevequeantes.Setivessetrazidomosquetes,teriasidopagocomsoberanosdeouro.Berdonestavatorcendoparaqueosmercadorestrocassemarmasde fogoporespadas.Se fosseocaso,elepoderiarevenderosmosquetesaointendentenapróximaestação.

Naquelanoite,enquanto jaziadeitadonobelicheque lheemprestaramno alojamentodoquartel, esperando amanhãpara quepudesse voltar aPelego,Fletcherdecidiuque,sealgumdiasealistassenoexército,jamaissepermitiriaacabarnumlugarcomoaquele.

—Você,garoto.Tiresuabarracadafrentedosportões.Vaibloquearocaminho dos mercadores — ralhou uma voz imperiosa, interrompendoseuspensamentos.

EraopaideDidric,Caspar;umhomemaltoemagrovestidocomroupascaras de veludo, costuradas a mão com tecido púrpura bordadodelicadamentecomouro.EncaravaFletchercomosesuameraexistênciaoofendesse.Didricseescondiaatrásdele,comumsorrisonorostoeocabeloloiro emplastradode cera, divididopara o lado. Fletcher olhou a barracavizinha,consideravelmentemaispróximadaestradaqueadele.

— Não vou mandar de novo. Tire agora, ou chamarei os guardas —mandouCaspar,comrispidez.FletcherolhouparaBerdon,queergueuosombroslargoselhedeuumacenodecabeça.Nofimdascontas,nãofariaamenordiferença.Sealguémprecisassedearmas,conseguiriaencontrá-los.

Didricpiscouumolhoe fezumgestode“xô”.Fletcher ficouvermelho,

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mas começou a semexer para cumprir a ordem. A hora de Didric aindachegaria,masopaidoguardaeraumhomemincrivelmentepoderoso.Eraagiotaetinhaavilaquaseinteiranobolso.Quandoumbebêprecisavaderemédio da cidade, Caspar estava lá. Quando uma temporada de caça iamal, Caspar estava lá. Comopoderiaum camponêsquemal era capazdeassinaropróprionomecompreenderoconceitodejuroscompostosouosnúmeroscomplexosescritosacima?Nofim,todosdescobriamqueopreçodaprópriasalvaçãoeramuitomaiordoqueelespoderiampagar.FletcherodiavaqueCaspar fosse reverenciadopor tanta gentena vila, já quenãopassavadeumvigarista.

Enquanto Fletcher lutava para puxar a barraca, derrubando váriasadagascuidadosamentepolidasnaterra,osinodavilacomeçouasoar.Osmercadorestinhamchegado!

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3

A feira começou, comode costume, como rangerde rodaseoestalardechicotes.Atrilhaencostaacimaerairregulareíngreme,porémaindaassimosmercadores forçavam seus cavalos ao limite no trecho final, ansiososparapegarosmelhorespontosnofimdaestradaprincipaldavila.Aquelesquechegavamporúltimoinevitavelmenteacabavampertodoportão,longedomovimentodospedestresquevagavampelointerior.

Casparestavaparadonaentrada,chamando-oscomacenos,sorrindoeconcordandocomacabeçaaoscocheirosdoscarroções lotadosconformeelesentravampelosportões.Fletcherpercebiacomooscavalostinhamseesforçadonessajornada;seusflancosbrilhavamcomumacamadadesuore os olhos estavam selvagens de exaustão. O rapaz abriu um sorrisoculpado com o estado dos animais, sabendo que Berdon se manteriaocupado hoje. Fletcher esperava que eles tivessem ferraduras suficientesparatodos.

Apósapassagemdoúltimocarroção,doishomenscompesadosbigodesloirosequepesentraramtrotandonavila.Seuscavalosnãoeramasbestasde cargaquepuxavamos veículosdo comboio,mas corcéis pesados com

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flancoslargosecascosdotamanhodepratos.Elesbalançaramasrédeasaopassar da trilha de terra aos paralelepípedos irregulares. Fletcher ouviuBerdonpraguejaratrásefezumacaretadesolidariedade.

Os uniformes negros lustrosos com botões de latão os identificavamcomo Pinkertons— homens da lei da cidade grande. Os mosquetes quetraziamnasmãosnãodeixavamdúvidaalguma.Fletcherolhouderelancepara os porretes com tachas demetal embainhados nas selas. Poderiamquebrarbraçosepernassemdificuldades,eofariamsemescrúpulos,poisosPinkertonssórespondiamaoprópriorei.Fletchernãofaziaideiadeporqueestavamescoltandoocomboio,masapresençadosdoissignificavaquehaveria pouca necessidade de proteção no caminho. As vendas em suabarracaseriamescassasnaqueledia.

Os dois homens poderiam ser irmãos de tão parecidos, com cabelosloirosencaracoladoseolhoscinzentosefrios.Elesdesmontaram,eomaisaltodaduplacaminhouatéFletcher,levandoomosquetecasualmentenasmãos.

— Garoto, leve nossos cavalos ao estábulo da vila e lhes dê água ecomida — comandou com voz severa. Fletcher o encarou boquiaberto,espantadocomaordemtãodireta.Ohomemindicouoscavalosenquantoogarotocontinuavaparado,nãoquerendodeixarabarracasozinha.

—Não perca tempo com essemoleque, ele émeio lerdo— interveioCaspar.—Nósnão temosumestábulodavila.Meu filhovai tomarcontadosseuscavalos.Didric,leve-osaosnossosestábulosparticularesemandeocavalariçodedicaraelesumaatençãoespecial.

—Mas,pai,euqueria...—começouDidric,comvozlisonjeira.—Váagora,enãodemore!—interrompeuopai.Didriccorouelançou

um olhar furioso a Fletcher antes de pegar as rédeas dos dois cavalos eguiá-lospelarua.

— Então, o que os traz a Pelego? Não vemos nenhuma cara nova hásemanas, se estiverem perseguindo foras-da-lei — contou Caspar,

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estendendoamão.OPinkertonmaisaltoapertou-lheamãocomrelutância, forçadoaser

educadoagoraqueseucavaloestavasoboscuidadosdeCaspar.— Nossos assuntos são com o exército na fronteira élfica. O rei

expressouodesejoderecrutarcriminososàstropase,aofazê-lo,darbaixaemsuassentençasdeprisão.Estamos investigandoseosgeneraisseriamreceptivosaisso,emnomedeSuaMajestade.

—Fascinante.É claroque sabíamosqueosalistamentos se reduziramrecentemente, mas isso muito me surpreende. Que solução elegante aoproblema — elogiou Caspar, com um sorriso duro. — Quem sabepoderíamosconversarsobreoassuntoduranteojantar,comumpoucodeconhaque?Cáentrenós,aestalagemlocaléimunda,eficaríamosfelizesemlhesoferecercamasconfortáveisdepoisdasualongajornada.

—Ficaríamosagradecidos.ViemosdeCorcillumenãodormimosnumacama limpa há quase uma semana — admitiu o Pinkerton, tirando ochapéu.

—Entãovamoslhesprepararumbanhoeumdesjejumquentinho.Meunome é Caspar Cavell, e sou uma espécie de conselheiro da vila... —continuouoagiota,guiandoosdoishomensruaabaixo.

Fletcher considerou as notícias enquanto as vozes se afastavam.Criminosos sendo recrutados nas forças armadas era algo que ele jamaistinhaconsiderado.Muitosrumoresafirmavamqueorecrutamentoforçadode todos os jovens era iminente, o que o empolgava e preocupavaigualmente. O alistamento obrigatório havia sido implementado naSegundaGuerraÓrquica, séculos antes. Aquela guerra foramotivada porbandosdeorcssaqueadoresqueroubavamgadoemassacravamosaldeõesdo nascente Império de Hominum. Centenas de vilas acabaramexterminadas antes que os orcs fossem, enfim, rechaçados de volta àsselvas.

Desta vez fora Hominum que iniciara as hostilidades, ao devastar as

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florestas dos orcs para alimentar a revolução industrial que acabara decomeçar.Seteanoshaviamsepassado,eaguerranãodemonstravasinaisdequeterminariatãocedo.

—Seeupudesseforjaraquelesmosquetes,nãoprecisariasequerabrirabarraca— resmungouBerdon atrás domenino. Fletcher concordou comum aceno de cabeça. Mosquetes, produzidos pelos artífices anões queviviamnasentranhasdeCorcillum,estavamemaltademandanalinhadefrente. As técnicas empregadas na criaçãodos canos retos emecanismoseramsegredosmuitobemprotegidospeloszelososanões.Eraumnegóciolucrativo, ainda que a tecnologia só tivesse sido implementada peloexércitorecentemente.Antesosorcspodiamsercapazesderesistiraumasaraivadadeflechasembatalha,masumabarragemdefogodemosquetetinhamuitomaispoderparatravarseuavanço.

Foi então que Fletcher percebeu um último viajante entrando pelosportões.Eraumsoldadoveterano,comcabelosgrisalhosebarbaporfazer.Vestia um uniforme branco e vermelho de tecido esfarrapado e gasto,manchado com lama e poeira da viagem. Muitos dos botões de latão datúnica estavam ausentes ou pendurados, soltos. O homem estavadesarmado,algoincomumaummembrodeumcomboiodemercadores,eaindamaisestranhoparaumsoldado.

O veterano não tinha cavalo ou carroça; em vez disso conduzia umamulasobrecarregadacomalforjes.Asbotasquecalçavaestavamemestadolastimável, com solas gastas e furadas, balançando soltas a cada passocambaleante que ele dava. Fletcher observou enquanto o sujeito seinstalava no espaço diretamente oposto a ele do outro lado da estrada,amarrandoamulanahastedabarracavizinhaelançandoumolharseveroaovendedorantesqueelepudesseprotestar.

O soldado descarregou os alforjes, abrindo uma lona de pano eorganizandováriosobjetossobreela.Provavelmenteestariaacaminhodafrente élfica, transferido do sul por ser velho demais para o combate,

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porém demasiado incompetente para ser promovido a oficial. Como sepudesse sentir oolhardomenino, o velho se endireitoue sorriuperantesuacuriosidade,exibindoumabocacommuitosdentesausentes.

Fletcher esticou o pescoço para dar uma olhadamelhor no soldado, earregalouosolhosaoveroqueestavaàvenda.Haviaenormespontasdeflechadesílexdotamanhodamãodeumhomem,combordasserrilhadaspara criar farpas que se prenderiamà carne. Colares feitos de fileiras dedentes e orelhas dissecadas foram desembaraçados e expostos como osmaisdelicadospingentes.Umchifrederinocerontecomumaponteiradeferro foidestacadoà frenteda coleção.Apeçaprincipal eraumaenormecaveiradeorc,duasvezesmaiorqueadeumhomem.Tinhasidopolidaebranqueada pelo sol da selva, com um cenho largo se projetando de umjeitobizarrosobreasórbitasoculares.Oscaninosinferioreserammaioresdo que Fletcher imaginara, estendendo-se como presas de uns 8centímetros de comprimento. Eram suvenires da frente de batalha,vendidos como curiosidades às cidades do norte, distantes de onde averdadeiraguerraacontecia.

OmeninosevirouelançouumolharpidãoaBerdon,quetambémtinhavisto as mercadorias do recém-chegado. O ferreiro balançou a cabeça eindicou a própria barraca com um aceno. Fletcher suspirou e voltou aatençãoàarrumaçãodosprodutos.Seriaumdialongoeinfrutífero.

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4

Uma pequena multidão se reuniu em volta do soldado. Era compostaprincipalmentedecrianças,mastambémseviamalgunsguardasquenãotinhamnadaparatrocarnemdinheiroparagastar.

— Venham ver, todos vocês! Tudo que se encontra aqui são artigosgenuínos,coisaséria.Cadaitemtemumahistóriadecongelarosangue,quefarávocêagradeceràsuaestrela-guiaporvivernonorte—gritouelecomosfloreiosdeumvendedordefrutas,jogandoumapontadelançaaoareapegandohabilidosamenteentreosdedos.

—Talvezvocêsseinteressempelatangadeumgremlinouumarganelde nariz de orc? Você, meu senhor, o que me diz?— indagou ele a ummenininhocomumdedofirmementecravadononariz,quecertamentenãosequalificavaaserchamadode“meusenhor”.

—Quequeéumgremlin?—perguntouomenino,arregalandoosolhos.— Os gremlins são escravos dos orcs. Poderiam ser comparados ao

escudeirodeumdos cavaleirosdosvelhos tempos, cuidandode todas asnecessidades domestre. Não são grandes guerreiros; foram criados paraseremservos.Etambémpelofatodequemalchegamàalturadojoelhode

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umhomem—explicouele,demonstrandocomamão.Fletcherespiouogestocominteresserenovado.Amaioriadaspessoas

tinhaalgumanoçãodoqueeraumgremlin,mesmotãoaonorte.Eleserambípedes,comoosorcs,masnãovestiamnadaalémdetraposeretalhosaoredor da cintura. As grandes orelhas de morcego e compridos narizestortos eram muito característicos, assim como os dedos longos e ágeis,ótimosparatirarlesmasdascascaseinsetosdetroncospodres.Gremlinstinham pele cinzenta, assim como os orcs, e seus olhos eram grandes eesbugalhados,compupilasconsideráveis.

— Onde você arranjou essas coisas todas? — questionou o menino,ajoelhando-separavermelhoroquehaviadisponível.

—Eu as tirei dosmortos,meumenino. Elesnãoprecisammaisdelas,não no lugar aonde estão indo. É o meu jeito de trazer um gostinho daguerraaquiparaonorte.

—Vocêestáacaminhodafrenteélfica?—perguntouumguarda.Fletcher viu que era Jakov, e se escondeu atrás da barraca. Se ele o

notasse, poderia cobrar o preço do drinque que Fletcher tinha lheprometido.Orapazprecisavadetodoodinheiroquetinhaparacomprarajaqueta.

— Estou, realmente, mas não por ser um saco de ossos inúteis, não,senhor.Eufuioúnicosobreviventedomeuesquadrão.Fomospegosnumataque noturno durante uma missão de reconhecimento. Não tivemoschance. — Sua voz trazia um indício de tristeza, porém Fletcher nãoconseguiudetectarseeragenuíno.

— O que aconteceu? — insistiu Jakov, com um tom carregado dedescrençaenquantomediaovelhodecimaabaixo.

—Prefironãodizer.Nãoéumamemóriafeliz—murmurouosoldado,evitando o olhar de Jakov. Ele baixou a cabeça com tristeza aparente. Amultidãovaiouecomeçouasedispersar,tomando-opormentiroso.

— Tudo bem, tudo bem! — gritou o soldado ao ver os clientes

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escapando. Aquela provavelmente seria sua última parada antes dealcançarafrenteélfica,eeleteriadificuldadesemvenderosprodutosaossoldados;muitosdelesjáseriammuitofamiliarescomositensqueteriaaoferecer.—Tínhamosordensdefazeroreconhecimentodapróximalinhade frente— começou ele, conforme amultidão se virava de volta.—Aslinhasestavamavançandodenovo.Vejambem,amataatrásdenóstinhasidotodaesvaziada,eprecisávamosmoverastrincheirasadiante.

Osoldadopassouafalarcommaisconfiança,eFletcherpôdeverqueeleeraumcontadordehistóriasnato.

—Estavamaisescuroqueumsacocheiodegatospretosnaquelanoite,mal tinha uma lasca de lua para iluminar nosso caminho. Vou te falar,fizemosmais barulho que um rinoceronte nervoso ao abrirmos caminhopelamata fechada. Foi ummilagre ter levadomais de dezminutos parasermosnotados—continuouele,comolhosnubladoscomoseeleestivesseládenovo.

—Vamos logocomisso!—gritouumdosmeninosno fundo,masseucomentário foi recebido com olhares feios e sussurros de “shhh” damultidãoqueescutava,atenta.

—Nossomagodebatalhaianafrente.Odemôniodeletinhaboavisãonoturna,oqueajudavaumpouco;mas,mesmoassim,agentetinhaquedarduroparanãodispararosmosquetes semquerer, e aindamaisparanãotropeçarecair.Umamissãosuicidacomonuncavi.Umdesperdíciodebonshomens, com toda certeza— prosseguiu o soldado, girando a ponta delançaentreosdedos.

—Elesmandaramumconjuradorcomvocês?Issosiméumdesperdício.Acheiqueagentesótinhaalgumascentenasdeles?—indagouJakov,cujoceticismoforasubstituídoporfascinação.

— A missão era importante, mesmo que fosse equivocada. Eu não oconheciamuito bem,mas com certeza era um camarada bem agradável,mesmoquedefinitivamentenãofosseumconjuradormuitopoderoso.Era

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fascinado pelos xamãs orcs, sempre perguntando aos soldados o que agentesabiasobreeleseseusdemônios.Estavaconstantementerabiscandoedesenhandoemseulivro,investigandoosresquíciosdasaldeiasórquicaspelasquais a gentepassava, copiando as runaspintadasnasparedesdascabanas.

O soldado deve ter percebido as expressões que começavam a sedispersarconformeelesaíadoassuntoprincipal,entãoseapressou:

—Dequalquermaneira,nãodemoroumuitoatéquenosperdêssemos,pois as poucas estrelas que tínhamos usado para nos orientar foramcobertaspelasnuvensdechuva.Nossodestino foi seladoquandoagaroacomeçou.Vocêjátentoudispararummosquetecompólvoramolhada?Eraumdesastreatrásdooutro.

Osoldado largouapontade lançanopanoecerrouospunhosunidoscomemoção.

—Aarmafavoritadoorcéalançadearremesso.Quandoumadelasteatinge,tejogalongecomoumabaladecanhão,teprendendonochão;issoseelanãoteatravessarcompletamenteesecravarnohomemdetrás.Elasassoviaram por entre as árvores e nos arrancaram da terra como se omundo tivesse tombado de lado. Nem chegamos a ver quem estavaatirando, mas metade dos homens tinha morrido depois da primeirasaraivada,eeunãoquis ficarporpertoparaverasegunda.Oconjuradorsaiu correndo, e eu o segui. Se tinha alguém capaz de escapar no meiodaquelaconfusãodosdiabos,eraele.Disparamosempânico,seguindooschilreiosdodemôniodele.

—Que tipodedemônioera?—perguntou Jakov, comasmãosunidasematençãototal.

—Eununcativeumaboachancedeolharobichonoescuro.Pareciaumbesourovoadoreerafeiocomoodiabo,maseulhesougrato;semele,euseriaumhomemmorto.Nofim,oconjuradortropeçouecaiu,eviqueumalançaotinhaatingidonumladodocorpo.Osujeitoestavasangrandocomo

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um porco abatido. Não haviamuito que eu pudesse fazer por ele,mas omaldito demônio não fugiria sem o mestre, então tive que pegá-lo ecarregá-lo comigo. O pobre coitado deve ter morrido antes que a gentealcançasseastrincheiras,masodemôniomeguioudevoltamesmoassim.O vermezinho não saiu de perto do mago quando eu trouxe o corpo devolta.Fuijulgadopordeserção,maseudisseaelesqueestavacarregandooferidoequeorestodatropaficouparatráseseperdeu.Elesnãosabiamoque fazer comigo, commeu esquadrãomorto e aminha idade avançada,então,no fim,memandarampronorte.Meuúnico consolo foi abolsadoconjurador,cheiadealgunsdostesourosquevocêsveemdiantedesi.Masissonãofoiomelhordetudo...—Elevasculhouosalforjesaosseuspése,derepente,Fletcherpercebeuqueaqueleeraoclímaxdacenatoda.Talvezfosse isso que o soldado fizesse em todas as cidades, fisgando-os com ahistória,depoisexibindooitemmaiscaro.

Porém, o que o soldado removeu com um floreio não foi a cabeçaencolhidadodemônioouocorpoempalhadoqueomeninoesperava.Eraum livro, encapado em couro castanho pesado e compáginas grossas depergaminho.Eraolivrodoconjurador!

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5

Se o soldado tinha esperado impressionar a plateia, decepcionou-se. Amaioriadeuumaolhadaambivalenteehouveatéalgunsresmungos.NumapequenaviladecaçadorescomoPelego,ahabilidadedelerficavabemnofim da lista de prioridades. Muitos dos aldeões teriam dificuldades empassardaprimeirapágina,quantomaisdesbravarolivrãointeiro.Fletcher,poroutrolado,foraencarregadodasfinançasdeBerdon,oqueexigiaquesoubesseleredominasseaaritmética.Asmuitaslongashorasqueorapazpassarasuandocomtodososnúmerose letras lhecustaramumpreciosotempo de brincadeiras com as outras crianças,mas ele tinha orgulho daprópria educação e estava certo de que era pelomenos tão culto quantoDidric,senãomais.

O soldado sorria enquanto brandia o livro, erguendo-o sob a luzacinzentadadoinvernoefolheandoaspáginas,oferecendoaFletcherumaespiadasedutoradaletramanuscritaedosesboçosintrincados.

—Oquemaisvocêtem?—indagouJakov,comadecepçãobemclaranavoz.

— Muita coisa! Só que mais nada supera isso aqui, se vocês me

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permitirem explicar. Deixem-me demonstrar, antes que a gente passe aopróximoitem—implorouosoldado.

A plateia, mesmo que desprovida de interesse pelo livro, nãodesperdiçaria entretenimento gratuito. Houve acenos de concordância ecomentáriosdeincentivo,eosoldadoabriuumsorrisodesdentado.Saltoupara cima de um caixote vazio da barraca vizinha e chamou a multidãomais para perto, erguendo o tomo sobre a cabeça, onde todos pudessemver.

—Essemagodebatalhaeradapatentemaisbaixaqueumconjuradorpodeter,umsegundo-tenentedeumregimentoquenemtinhaterminadootreinamento.Mesmoassim,ele seofereceuparaaquelamissão fatídica, equando dei uma olhada neste livro, entendi o porquê. O sujeito estavaprocurandoumaarmasecreta,umaformadeconjurarcriaturasnovas.

Osoldadoconquistaraaatençãodetodos,esabiadisso.Fletcherfitavadooutroladodarua,boquiaberto,oquelherendeuumpigarreardeavisodapartedeBerdon.Orapazseendireitoueseocupoudaprópriabarraca,mesmoquejáestivesseimpecavelmentearrumada.

—Osxamãsorcsinvocamtodotipodedemônios,massãoquasetodoscriaturas baixas e fracas, que não são páreo para aquilo que os nossosprópriosconjuradoressãocapazesdetrazer.Porém,nossosconjuradoressó conseguem capturar algumas poucas espécies diferentes do outromundo, com algumas exceções ocasionais. Assim, ainda que os nossosmagossejammuitomaispoderososquequalquerxamãorc,issonosdeixacommenos cordas emnosso arco, digamos assim. E o que essemagodebatalhatentavafazereraencontrarumjeito,usandotécnicasórquicas,deconjurarosdemôniosrealmentepoderosos.

Durantesuanoitenosalojamentosdafrenteélfica,Fletchertinhaouvidorelatos de criaturas horrendas que se esgueiravam pela noite, cortandogargantas adormecidas e escapando ilesos. Feras que saltavam da matacheias de garras, como gatos selvagens, e lutavam até que seus corpos

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estivessemretalhadoscombalasdemosquete.Seessaseramascriaturasfracasdequeosoldadofalava,Fletchernãoqueriaencontrarodemôniodeummagodebatalhaveterano.

—Entãoéparaacreditarmosqueesselivrocontémumsegredoquevaimudar o destino da guerra? Ou que ele traga instruções sobre comoconjurarnossosprópriosdemônios?Talvezelevalhaseupreçoemouro—zombouumavozfamiliar,carregadadesarcasmo.

EraDidric,recém-chegadodosestábulos.Oguardatinhaficadoparadoatrásdabarracaseguinte,foradavistadeFletcher.

— Palavras suas, e não minhas, meu bom senhor — respondeu osoldado,tocandoonarizcomumapiscadelaesperta.

— Seria mais válido investir fundos nas armas lamentáveis do outroladodaruadoquenoseulivro!—DidricsorriuenquantoFletchercoravacomaalfinetada.

Emseguida,ogarotomimadocontornouocaixoteatéafrentedaplateia,descuidadamentechutandoochifrederinoceronteaopassar.

— Por que um conjurador se ofereceria para talmissão, se já tivessedescobertotamanhosegredo?Eporquevocêoestariavendendoaqui,seolivrofossetãovalioso?Quantoàpossibilidadedeeleconterinstruçõesdeconjuro,todosnóssabemosqueapenasaquelesdesanguenobreealgunsoutros sortudos são abençoados com as habilidades necessárias paraconjurar.—Didric fezumacaretadedesprezoenquantoosoldadoficavaboquiaberto de surpresa, mas este se recuperou com agilidadesurpreendente.

— Bem, meu senhor, ele provavelmente estava ansioso para ver umdemônioorcbemdeperto.Nãosouletrado,portantonãoseiqualéovalordolivro,eelemeseriaconfiscadoseeutentassevendê-loaqualquermagodebatalha, já que foi roubadodeumdeles.—Ele abriuosbraços, e seurostoeraaimagemdainocência.

“Obviamente—continuou—,euprovavelmentevouentregá-loquando

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chegar à frente élfica. Mas, se puder faturar alguns xelins adicionais,sabendoqueolivroalcançaráasmãosdeummagodebatalhadequalquermaneira, bem, quem poderia me condenar, depois de eu ter carregadoaquelehomempormetadedaselva?—Osoldadobaixouacabeçaemfalsamodéstia, espiando por entre os cabelos gordurosos. A plateia estavainquieta, semsaber comquemconcordar.Didric certamenteerapopular,especialmentequandoestavasendoperduláriocomodinheirodeCasparna taverna. Porém, o soldado era empolgante, e Fletcher notou que amultidãoqueriaqueahistóriadelefosseverdadeira,mesmoquenofundosoubessemquenãopoderiaser.

NomomentoqueopovocomeçouazombareFletcherabriuumsorrisoparaovalentãoqueperdiaabatalhadeconhecimentocontraumsoldadocomum,Didricreagiu:

—Espere.Vocênãomencionoumaiscedoquetinhadeduzidoofocodosestudosdeleaofolhearolivro?Certamenteteriadelerparaentendertaiscoisas.Vocêéummentiroso.Umafraude,eeudeveriamesmoeramandarchamarosPinkertons.Elespoderiamatéincluirumaacusaçãodedeserçãocontravocêtambém.—Eleriuenquantoosoldadogaguejava.

—Vocêpegoueledejeitoagora—comentouJakov,comamãonocabodaespada.

—Temfigurasnolivro...—balbuciouosoldado,quefoiimediatamentecaladopelosgritosdaplateia,quecomeçavaazombardele.

Didricergueuavozeelevouamão,pedindosilêncio.—Vamosfazeroseguinte.Gosteidojeitodesselivro.Sãoacuriosidade

e a vontade de aprender que me motivam, não o desejo de riquezas—declarou o rapaz, com nobreza, conforme o bordado dourado de suasroupas reluzia ao sol. — Voltarei mais tarde para buscá-lo. Que tal,digamos...quatroxelins?Euporacasovendiumabelagalhadapelomesmopreço ontem à noite — afirmou Didric, lançando um olhar triunfante aFletcher. O filho de Caspar não esperou uma resposta; em vez disso, foi

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emboracheiodesi,seguidoporJakoveamaioriadosclientesdosoldado.Ohomemfuzilouojovemguardacomoolhar,maslogoumaexpressão

de abatimento tomou conta do seu rosto. Sentou-se no caixote com umsuspiro audível, largando o livro no chão, derrotado. Aborrecido com avitóriadeDidric,Fletcherobservouaspáginasqueeramviradaspelabrisa.

Omeninonãosabiacomo,masDidriciriapagarcaronaquelanoite.Deumjeitooudeoutro.

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6

Odiapassoucomuma lentidãoexcruciante.Berdonestavabemocupado,masofedoracredecascosardentesestavacomeçandoaficarinsuportável.Não se passavammais do que algunsminutos antes que umanova pilhamaciadeestercodecavalocaíssenochãoatrásdomenino,piorandooodorexistente.Fletcherfezapenasumavendanaqueledia:umapequenaadagaa um mercador que decidiu encurtar a pechincha para fugir do fedor,gerandoumfaturamentofelizdedozexelinsdeprata.

Osoldadodooutroladodaestradatornou-semaiscalado,masmesmoassimfoimuitobem,vendendoquasetodosositensqueespalharanopanodiante de si. Só restavam algumas poucas bugigangas, além do chifre derinocerontecomponteiradeferroe,éclaro,olivro.Fletcheracreditavanamaior parte da história do soldado, porém suspeitava que o livro nãocontivessenenhumsegredodevalor.Orapaznãoconseguiaentenderporque o homem mentiria; independentemente do que guardasse em suaspáginas, o livro certamente ofereceria um vislumbre fascinante da vidasecretadosmagosdebatalha.Sóissojáseriaumprêmiovalioso,eFletcherjá estaria negociando um preço pelo tomo se não quisesse tanto aquela

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jaquetadecouro.Enquanto o rapaz encarava o livro, o soldado notou seu olhar e lhe

lançouumsorrisoastucioso.Percebendoquenãohaviamaiscompradoresem potencial por perto, ele atravessou a estrada casualmente e apontouumadasmelhoresespadasnabarracadeFletcher.

—Quantocusta?—indagouele,erguendo-adosuporteegirando-adeforma profissional. Ela zumbia no ar como uma libélula. A destreza e avelocidadedohomemeramespantosas,considerandooscabelosgrisalhoseorostoenrugado.

— Trinta xelins, mas a bainha que vem junto custa mais sete —respondeuFletcher,ignorandooreluzirdalâminaquegiravaeprestandoatençãonaoutramãodosoldado.Omeninoconheciatodosostruques,eocomportamento do soldado o lembrava um dos clássicos. Redirecione oolharfazendoumalvoroçocomumprodutomaiscaro,entãosurrupieumitem menor, como uma adaga, para um bolso profundo enquanto ovendedorestádistraído.O soldadobateuosnósdosdedosnamesaparatrazeraatençãodeFletcherdevoltaaoitememquestão.

— Vou ficar com ela. Tem um bom equilíbrio e um belo fio de corte.Nadadessasbobagensdeesgrimaqueosoficiaisgostamtanto.Vocêachaqueestocarumorcvaidetê-loantesqueelelhearranqueacabeça?Équenemespetarumlobocomumpalito.Euaprendirápido:vocêdesfereumgolpenaspernasdeumorceele cai comoqualquerhomem.Nãoqueeuprecisedeumaespadadecenteparaafrentedonorte,masédifícilselivrardosvelhoshábitos.

Ele pontuou a última frase cravando a espada na terra, em seguidapuxandoabolsadedinheiroecomeçandoacontar.Fletcherpegouabainhaatrás da barraca, uma peça simples mas de qualidade, feita com umamolduradecarvalhoembrulhadaemcourocru.

— Eles não pechincham lá de onde você vem?— indagou o menino,depoisdereceberodinheiro.

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—Claroquesim.Eusónãogosteidojeitoqueaquelebastardinhofaloudasuabarraca.Oinimigodomeuinimigoémeuamigo,nãoéesseoditado?Queriaqueoselfospensassemassim.Comelesseriaalgodotipo:oinimigodo meu inimigo está vulnerável, então vamos esfaqueá-lo pelas costasenquantoelenãoestiverolhando—resmungouosoldado.

Fletcher continuou calado, semquerer semeter numa conversa sobrepolítica. Havia muita gente solidária à causa élfica, e uma discussãoacalorada sobre o assunto poderia afastar alguns dos mercadores quetinhamvindoferraroscavalos.

—Euestavacurtindosuahistóriaantesdeelechegar.Esperoquenãoseofenda com a pergunta, mas tinha alguma parte que era verdade? —Fletcher olhou nos olhos do homem, desafiando-o amentir. O soldado ofitou por um momento, em seguida relaxou visivelmente e abriu umsorriso.

—Euposso ter... enfeitadoumpouco. Li algumaspartesdo livro,masnãosoumuitobomdeleitura,entãosófolheei.Peloqueconseguientender,eleestavaestudandoosorcs,tentandoaprendercomeles.Tinhasímbolosórquicospor todosos lados, e divagações semitraduzidas sobreos clãs eancestraisdeles.Tambémhaviaunsrascunhosdedemônios,emuitobons,por sinal.Ocaraeraumbomdesenhista,mesmoquenão fosseomelhordosconjuradores.

Osoldadodeudeombrosepegouumaadagadabarraca,usando-aparalimparaterrasobasunhas.

— Uma pena, de qualquer jeito. Achei que seria bom desovar o livroaqui.Vouterquevenderbaratonafronteiraélfica.Temunssoldadosquesão loucos pelos magos de batalha, mas nenhum deles tem um tostão.Talvez eu o venda para vários deles, página por página. — Ele pareceugostar da ideia e assentiu para simesmo, como se o problema estivesseresolvido.

— E quanto a Didric? O pai dele é poderoso, e os Pinkertons estão

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ficandonacasadeles!SeforasuapalavracontraadeDidric,nãoseiparaqueladoacordavaiarrebentar—acautelouFletcher.

—Bah!Jáencareicoisamuitopiorqueumpirralhonascidoemberçodebronze.Não,essesdoispoliciaisjámeviramtentandovenderolivroantes,e nunca falaram bulhufas. Eles gostam de soldados, esses rapazesPinkertons, acham que a gente é farinha domesmo saco,mesmo que ospoliciais só façam bater nos anões que olham feio para eles. Bote umPinkerton diante de um orc e você terá o que esses cavalos andaramlargando aí no chão atrás de você nestas últimas horas — afirmou osoldado,franzindoonariz.

— Bem, só não me deixe perder o que vai acontecer quando Didricvoltarparabuscarolivro.Queromuitoveracaradelequandovocêmandá-lopastar.—Fletcheresfregouasmãoscomalegria.

Aquiloseriadivertido.

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7

O sol estava começando a se pôr, e o humor do soldado ficava cada vezmelhor conforme faturava uma pequena fortuna na sua barracaimprovisada.Nãorestavamaisnada,excetoolivro,deixadocomotimismono centro do pano aos seus pés. Ao longo do dia, o soldado exaltava asvirtudesdosprodutosdeFletcher semprequeum cliente inspecionava abarraca. Graças a todos os elogios, o rapaz acabou vendendo mais duasadagaseumadasespadasmaisbaratasaumbompreço.Osaldododianãotinhasidoassimtãoruim,afinal,eFletchermalpodiaesperarparabotarasmãosnajaquetadecouro.

—Talvezpudéssemostomarumdrinquenatavernadepoisdissoparacomemorarnossaboasorte—sugeriuosoldado,enquantoatravessavaaestradanovamente.

—Atavernapareceumaboaideia,sevocêmedeixarfazerumaparadarápidaantes.Tenhoquecomprarumacoisa—respondeuFletchercomumsorriso,erguendoumabolsapesadaechacoalhandoparaooutrover.

—Issoaíéparaolivro?—indagouosoldadomeioquebrincando,mascomumtoquedeesperançanavoz.

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—Não,apesardeque,honestamente,seeutivessedinheirosobrando,eu lhe fariaumaoferta justapor ele.Mas temuma jaquetaqueeuqueromuito,etenhoodinheirocontado.Estabarracaédomeu...mestre,Berdon,entãooqueganhamoshojevaiparaele.

Aosomdopróprionome,Berdonergueuoolhardocascodecavaloquesegurava nas enormesmãos e lançou um aceno respeitoso de cabeça aosoldadoantesdevoltaraotrabalho.

—MeunomeéFletcher,eoseu?—perguntouFletcher,estendendoamão.

—MeunomedefamíliaéRotherham,masmeusamigosmechamamdeRotter—respondeuele,segurandoamãodeFletchercomumapalmaduracomocouro.Oapertodemãolhepareceufirmeehonesto.Berdonsemprefalara que dava para dizermuita coisa sobre uma pessoa pelo aperto demão.

—Vocêestáliberado,Fletcher.Trabalhoubemhoje—disseBerdon.—Euguardoabarracasozinho.

— Tem certeza? — indagou o aprendiz, ansioso para se afastar doscavaloseescutarashistóriasdeguerradosoldadonocalordataverna.

—Caia fora daqui antes que eumude de ideia— retrucou o ferreiro,acimadochiadodocasco.

A barraca de couros não ficava muito longe, e Fletcher sentiu umaprofunda decepção ao notar que a jaqueta que queria não estavamais àmostra.ElecorreuàfrentedeRotherhamruaabaixo,comaesperançadeque a peça tivesse sido guardada por engano. Janet olhou para o rapazenquanto contava o lucro do dia; uma bela pilha de xelins de prata esoberanosdeouroquecobriucomosbraços.

— Eu sei o que você vai me perguntar, Fletcher, mas temo que vocêestejasemsorte.Vendiajaquetafazumahora.Nãosepreocupe,porém.Eusei que a venda será garantida, então começarei a fazer outraimediatamente.Vaificarprontaemalgumassemanas.

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Fletchercerrouospunhosdefrustração,masconcordoucomacabeça.Eleteriadeserpaciente.

—Vamoslá,garoto.Eutepagoumdrinque.Amanhãseráoutrodia.—Rotherham lhe deu tapinhas nos ombros. Fletcher empurrou odesapontamentoparaescanteioeforçouumsorriso.

— A temporada de caça está quase no fim — comentou o menino,espantandoafrustraçãocomargumentos.—Eunãoteriamuitosdiasparausar a jaqueta neste inverno, de qualquer jeito, porque estarei na forjaquente preparandominha próxima viagem à frente élfica. Eles precisamdesesperadamentedenovasarmasparacumprirascotas.

—Nãoqueagenteváusá-las.—Rotherhamriu.A taverna estava barulhenta e lotada de aldeões e mercadores que

celebravam o fim da feira. Apesar disso, Fletcher e Rotherham abriramcaminhoatéumcanto, cadaumcomumagrandecaneca, conseguindodealgumaformamanteramaiorpartedacervejadentrodorecipiente,longedopisodemadeirajágrudentodedrinquesderramados.Elessesentaramnum nicho com dois bancos e uma mesa bamba, onde estava maissilenciosoeelespoderiamouvirumaooutro.

—Vocêseimportaseeuperguntarsobreaguerra,ouéumassuntoquevocê prefere evitar?— indagou o rapaz, lembrando-se da emoção que ohomem tinha demonstrado ao recontar a noite em que perdera oscamaradasnafloresta.

—Demaneiraalguma,Fletcher.Étudooqueeufiznasúltimasdécadas,provavelmentenãotenhomaissobreoquefalar—respondeuRotherham,fortificando-secomumlongogole.Acervejadesceupeloqueixogrisalho,eohomemestalouoslábiosesuspirou.

—Ouvimosrumoresdequeaguerranãovaibemparanós.Queosorcsestãosetornandomaisousados,maisorganizados.Porqueissoacontece?—perguntouFletcher,mantendoavozbaixa.Opessimismoemrelaçãoàguerra era considerado pouco patriótico, talvez até uma traição. Isso era

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umdosmuitosmotivosparaqueasnotíciasdafrenteórquicaviajassemtãolentamenteatéPelego.

—Sópossorespondercommaisrumores,masprovavelmentedefontesmelhoresqueassuas.—Eleseinclinouparaafrente,chegandotãopertoqueFletchersentiuobafodecerveja.—Temumorcunindoastribossobuma bandeira, liderando-os como chefe de guerra. Não sabemos muitosobre ele, além do fato de ser albino e o maior orc já visto. As tribosacreditamqueeleéalgumtipodemessias,enviadoparasalvá-losdagente,entãooseguemsemquestionamento.Queagentesaiba,sóhouveumoutroorcdesses,nostemposdaPrimeiraGuerraÓrquica,doismilanosatrás.Éporcausadessealbinoqueosxamãsorcscompartilhamseuconhecimentoepoder,paraassimmandarondasemaisondasdedemônioscontranóselançarbolasdefogonocéuparanosbombardearànoite.

Os olhos de Fletcher se arregalaram conforme Rotherham falava, acerveja já esquecida. As coisas estavampiores do que ele tinha pensado.Não era de se espantar que perdões estivessem sendo trocados peloalistamentodecriminosos.

—Às vezes eles rompem as linhas e grupos de saqueadores avançambastante em Hominum. Nossas patrulhas sempre os pegam no fim, masnunca rápido o bastante. Já vi muitas vilas completamente incendiadas,semmaisnadaalémdeossosecinzas.—Rotherhamagoraestavaatodovapor, cuspindocervejaacadagole.—Elesse livramdeveteranoscomoeu,colocamummosquetenasmãosdeummeninoedizemaelequeéumsoldado. Você deveria ver o que acontece quando os orcs investem comforçatotal.Seosrapazesforemsortudos,disparamumasalvaeentãodãomeia-volta e correm. É uma maldita desgraça! — gritou ele, batendo acanecanamesa.—Garotosdemaisestãomorrendo,eétudoculpadorei.Foi Hominum que transformou a incursão ocasional numa guerra paravaler. Quando rei Harold recebeu o trono do pai, ele começou a fazerpressão contra as selvas, mandando homens para cortar as árvores e

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escavaraterra.Rotherham fezumapausae fitouo fundodacaneca.Tomouum longo

goleevoltouafalar:— Vou te contar uma coisa. Se não fossem os conjuradores, a gente

estariacomsériosproblemas.Elessãounscamaradasmeiocheiosdesi,seacham os tais,mas a gente precisa delesmais do que de qualquer outracoisa.Osdemôniosdelesficamdeolhonasfronteirasenosavisamquandoumataqueestáchegando,eumdemôniodosgrandeséaúnicacoisacapazdedeterumrinocerontedeguerra,aforaumcanhãoouumasalvadecemmosquetes.Quandochovemasbolasdefogo,osmagosdebatalhaerguemumescudosobreaslinhasdefrente.Eleiluminaocéucomoumdomodevidro brilhante. O escudo leva uma surra e fica todo rachado durante anoite,masopiorqueacontececomagenteéumanoitedesonoruim.—Rotherham tomoumais um pouco da caneca e a ergueu num brinde.—Deusabençoeaquelespalhaçosengomadinhos.

Eledeuum tapano joelhoevirouo restantedo líquido.Assimque selevantou para ir até o balcão comprar mais cerveja, a mão pesada dealguémoempurroudevoltaaobanco.

— Ora, ora. Mas que coisa mais previsível, vocês dois se tornaremamigos.Elesrealmentedizemqueascobrasviajamempares—comentouDidric,comumsorrisosarcástico.

Jakov tirouamãodoombrodeRotherhame fezgestosexageradosdelimparamãonascalças,oquefezDidricdarumarisadinha.Ambosvestiamseus uniformes de guarda, cota de malha pesada sob um tabardoalaranjadodamesmacordastochasnataverna.

—Acreditoquetivéssemosumacompracombinadapreviamente.Aquiestãoosquatroxelins,conformeacordado.Maisdoquevocêmerece,masprecisamossempresercaridososcomaquelesmenosafortunadosquenós.Nãoémesmo,Jakov?—indagouDidric,jogandoasmoedasnamesa.

Jakovriueconcordoucomacabeça.Fletcherfungou;oguardamaltinha

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maisdinheirodoqueele,eeratãomalnascidoquantopossível.Seurostoestava vermelho de embriaguez, e Fletcher suspeitou que Didric tivesseamaciadoocolegacomcervejaanoiteinteiraparaconquistá-loàsuacausa.NãoqueJakovprecisassedemuitapersuasão;ohomemvenderiaaprópriamãeporalgunsxelins.

Rotherham não fez menção de recolher as moedas. Em vez disso,encarouDidricatéqueogarotoseajeitou,desconfortável.

—Vamoslá.Umacordoéumacordo.Nãoéculpaminhaquevocêsejaumafraude.Temsortedenãoestaracorrentado,acaminhodeumacortemarcial por deserção— continuou Didric, protegendo-se atrás do outroguarda.

ArealidadedasituaçãocomeçouaficarclaraparaFletcher,eomeninoadquiriu uma nova percepção de Jakov. Ele era um sujeito grande, pelomenos uns 30 centímetros mais alto que Rotherham, e quase tãomusculoso quanto Berdon. Não tinha sido contratado como guarda pelainteligência,semdúvida.

Mesmo Didric era meia cabeça mais alto que Fletcher, e seu corporechonchudotinhaodobrodalarguradoesguioajudantedeferreiro.

Rotherhamcontinuouaencarar,desconcertandoFletchercomseuolharde aço ainda cravado na cara gorducha de Didric. A tensão no recintoaumentoumaisalgunsgrausquandoJakovlevouamãoaocabodaespada.

—Olhenabolsadele.Provavelmenteestálá—ordenouDidric,massuavoztraziaumtoquedeincerteza.

Quando Jakov fez menção de pegar a bolsa, Rotherham se levantousubitamente, assustando o par de guardas, que deu um passo atrás.Fletcher se levantou junto, com os punhos cerrados. Seu pulso estavaacelerado,eeleouviaoprópriocoraçãovibrando, conformeaadrenalinatomava conta de seu corpo. Sentiu umapontadade satisfação quando assobrancelhasdeDidricseergueramemalertacomaconfrontação.

— Se você vai desembainhar essa espada, é melhor saber usá-la —

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rosnou Rotherham, com a própria mão apoiada no cabo da espada quetinhacompradodeFletcher.

Didricempalideceuaovê-la.Eletinhanotadoqueosoldadonãoportavaarmasnomercado,eclaramentenãoesperavaqueestivessearmadoagora.Seusolhosdardejaram furtivamente entre Jakov e o velho.Numa lutadeespadas,osoldadoteriaavantagem.

—Semarmas—declarouDidric,desatandoaespadaeadeixandocairnochão.Jakovoimitou.

—É,nadadearmas—concordouFletcher,erguendoospunhos.—Eulembro como você estava preocupado em não sujar o seu uniforme desangue.

Rotherhamgrunhiuemconcordânciaedeixouabainhanamesa.—Fazumbomtempodesdeaúltimavezquememetinumaboaevelha

brigadetaverna—declarouele,divertido,catandoacanecadeFletcherelevando-aaoslábios.

—Lutesujoebatanacara.Regrasdecavalheirossãoparacavalheiros—murmurouRotherhampelocantodaboca,ecomissoelegirouejogoucervejanosolhosdeJakov,cegando-o.Rápidocomoumraio,mergulhouojoelhonavirilhadobrutamontese,noqueoguardasecurvou,Rotherhamlhedeuumacabeçadanonariz,provocandoumestalo.

EntãoFletcherestavanomeiodaconfusão,socandoacararedondadeDidric.Oalvoerafácil,eoprimeirogolpeamassouonariz,espirrandoalgovermelhocomoumtomatemadurodemais.Oaprendizde ferreirosentiuumaexplosãodedornopunho,masaignorou,usandooimpulsoparadaruma ombrada no peito de Didric e lançá-lo ao chão. Isso foi um erro.Quandoalutapassouparaochão,ojovemguardaconseguiuusarseupeso,que émaior, como vantagem. Passou umbraço carnudo pelo pescoço deFletchereaplicoupressão.Avisãodomeninoescureceuesuaconsciênciacomeçouaseesvair.Numúltimoesforço,elecravouosdentesnapelenuadopulsodeDidric,tãofortequesentiuosossosraspando.Umguinchode

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dorsoouemseuouvido,eobraçorecuou.OalíviodeixouFletcher tontoenquanto ele ofegava como um peixe encalhado na praia. Acertou umacotoveladanabarrigablindadadeDidriceentãogirou,ficandodecócoras.

Quase imediatamente, Didric estava em cima dele de novo, tentandoachatá-lo no chão. Desta vez, Fletcher estava preparado, puxando namesmadireçãoqueooutroempurroueusandooimpulsodomeninogordopararolarparacimadele.Entãoseusdedosestavamapertandoagargantade Didric, sufocando-o com toda força que asmãos continham. O jovemguardaestapeouopescoço,entãolevouamãoaolado.

— Cuidado! — gritou Rotherham, e Fletcher pulou para trás bem atempo.Umaadagacurvacortousuatúnicaazuleumcortefeitolinhaardeuem sua barriga. Gotas de sangue brotaram e mancharam o tecido devermelho, mas o rapaz sentiu que era apenas um arranhão. Didric selevantoudequalquerjeitoegolpeoudenovo,masFletchertinharecuado.

EntãoRotherhamestava lá, coma espada tocandoabasedopomodeadãodeDidric.

— O que aconteceu com “um acordo é um acordo”? — grunhiuRotherham,avançandodemodoqueDidric tevequecambalearpara trássobreocorpoinconscientedeJakov.

Fletcherpercebeuquea taverna inteiraestavaassistindo.Oúnicosomeram os engasgos estridentes deDidric enquanto este tentava falar, semquenenhumapalavralhesaíssedaboca.

—Oquevocêmediz,Fletcher?Vamos fazer comeleoqueele tentoufazer com você? Suas tripas estariam espalhadas no chão se eu não otivesse visto pegando aquela adaga — proclamou Rotherham, para quetodaaplateiapudesseouvir.Destavez,osmurmúriosestavamfirmementedoladodosoldado.

—Não,achoquenão,Rotherham.Precisamossempresercaridososcomaqueles menos afortunados que nós. — As palavras de Fletcher saíramencharcadas de desdém enquanto ele baixava a espada de Rotherham.

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Antes mesmo que as palavras tivessem terminado de deixar a boca domenino, Didric já tinha corrido à porta, largando tanto Jakov quanto suaespadaesquecidosnochão.

Oshomensnatavernaergueramasvozesemdesprezoquandoaportabateuatrásdoguarda,quefugiuapressado.Arisadalogobrotouconformeodivertimentorecomeçava.

—Vamos—disseFletcheraRotherham,ospensamentos trôpegosdealívio.—Vou fazer uma cama para você na nossa forja. Você não estaráseguroemnenhumoutrolugarestanoite.

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8

Fletcherabriuosolhosesearrependeuimediatamente.Aluzcinzentaqueentrava pela janela aberta era de uma luminosidade cegante. O rapaz sesentou, tremendo, e cambaleou para fechá-la; a respiração saindo embaforadas no ar gelado. Provavelmente tinha deixado a janela aberta emseuestadodeembriaguez.

Omeninopiscouparaoquartoescuro,masnãoviuosoldado.Apenasapilha de peles que tinha ajeitado para ele no canto. Sentindo o medocrescer, Fletcher saiu e viu que amula de Rotherham tinha sumido; nãohaviasinaldeleemlugaralgum.

—Finalmenteacordou,é?—perguntouBerdondetrásdele,comavozrepleta de desaprovação. Estava parado junto à forja com os braçoscruzadoseumaexpressãoperplexanorosto.

Fletcherassentiu,incapazdefalaraosentiraprimeiraondadenáusea.Elenuncamaisiabebernavida.

—Osoldadomeinformoudoseventosdanoitepassadaantesdepartir.Nãopossodizerqueaprovobrigas,emuitomenosessafacadaquevocêsónão levouporumtriz,mas fico felizporvocêterdadoumaliçãonaquele

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seboso—disseBerdoncomumsorrisopesaroso.Elebagunçouocabelodeseu aprendiz com afeto rude, fazendo a cabeça do menino balançar,entontecida.Fletchersentiuaânsiachegandoecorreuparaoladodefora,despejandooconteúdodoestômagonosparalelepípedos.

— Bem feito! Que lhe sirva de lição — gritou o ferreiro do lado dedentro,rindoentredentesdoinfortúniodomenino.—Esperesóatévocêprovar os destilados. Na manhã seguinte, você vai lembrar do que estápassandoagoraesentirsaudades.

Fletchergrunhiuetossiu,natentativadetirarogostoamargodeácidoda garganta, então cambaleou até a forja. Juntou as peles que tinhamservido de cama improvisada a Rotherham e desabou no catre do seuquarto.

—Achoquejáboteitudoparafora—comentouomenino,limpandoabocacomascostasdamão.

—É, você deixou uma bela refeição para os ratos—disse Berdon daforja.—Voufritarumassalsichasdeporcoparavocêebuscaráguageladanopoço.

Fletchersesentiumalsódepensaremcomida,masdecidiuquelhefariabem. Rolou na cama para voltar a dormir e ficou deitado no calorreconfortante das peles por um tempo. O chiado das salsichas fritandocomeçouasoar,eorapazseajeitou,tentandoficarconfortável.

Haviaalgoembaixodele,cutucando-lheoflanco.Fletcherenfiouamãonaspelesepuxouoobjeto.

Um saco tinha sido deixado entre as peles de Rotherham, com umpedaçodepergaminhopresodoladodefora.Fletchersoltou-oeespremeuosolhosparadecifrarosgarranchosquaseilegíveis.

O soldado não tinhamentido quando disse que não era lámuito bomcomas letras,masFletcherentendeuanota razoavelmentebem.Ovelhomalandro tinha escapulido de manhã, mas deixara um presente dedespedida. Fletcher não se incomodou. Tinha certeza de poderia ver

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Rotherhamembreve,mesmoquenão soubessebemoquepoderia fazercomumatangadegremlin,sefosseesseopresente.

Fletcher abriu o cordão da bolsinha e sua mão sentiu algo rígido eretangular.Nãopoderiaser...poderia?Eledespejouoconteúdodosacoeexclamoudeespanto,segurandooobjetocomambasasmãos.Eraolivrodoconjurador!

Orapaztocouocouromarrommacio,traçandocomapontadosdedosopentagramaentalhadonacapa.Símbolosestranhosestavamgravadosnasextremidades da estrela, cada um mais bizarro que o anterior. Fletcherfolheouaspáginas,descobrindocadacentímetropreenchidocomcaligrafiaelegante, interrompida intermitentemente com rascunhos de símbolos ecriaturas estranhas que omenino não conseguia reconhecer. O livro eragrossocomoumlingotedeferro,epesavamaisoumenosomesmo.Levariamesesparalertudoaquilo.

OsomdeBerdoncolocandocomidanopratochegouaosseusouvidos,eeleseapressouemesconderolivrodebaixodaspeles.

Berdontrouxeassalsichaseascolocounacamacomcuidadoexagerado.

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Fletcherpercebeuqueestavamperfeitamentedouradasemtodososlados,etemperadascomsalderochaepimenta-do-reinomoída.

— Mande isso para dentro. Você vai se sentir melhor rapidinho. —Berdonlhedeuumsorrisosolidárioesaiudoquarto,fechandoaporta.

Apesardocheirodeliciosoquepreenchiaoaposento,Fletcher ignorouassalsichaserecuperouolivrodoesconderijo.

Uma única página caiu bem do fim do livro, de um papel feito de umtecidoestranhoesimilaracouro,diferentedoresto.Fletcherabriuotomonolugardeondeopapeltinhacaídoeleuaspalavrasaliescritas:

Completamos no dia de hoje exatamente um ano desde quelorde Etherington ordenou que minha pesquisa começasse,porémnãoestounemumpoucomaispertodedescobrirumnovocaminhoatéoéter.Ospentagramasusadospelosxamãsorcs têmchavesdiferentesdasnossas, disso eu agora tenhocerteza. Porém, eles cobrem seus rastros com regularidadesurpreendente. Ainda não consegui recriá-los com sucesso,masestoucertodeque,seeumeaventuraremterrenoaindanãomaculadopelotoquedeHominum,pistasdesuanaturezapoderãoserdescobertas.Devoportantoempreendertodososesforços possíveis para avançar além das linhas de frente,onde poderei ver um orc executando um conjuro e, talvez,obter um vislumbre de seus pentagramas. É essencialdescobrirquechaveselesutilizam,eemqualordem.Hoje minha busca finalmente rendeu frutos, mas não do

tipoque eu esperava.Nasminhas escavaçõesdos resquíciosde um velho acampamento órquico, descobri umencantamento entalhado num pergaminho feito de pelehumana. Encontrei uma surpreendente alegria em suatradução; a linguagem órquica é muito brutal em suaexpressão,mashánelaumabelezaselvagemquenãoconsigoexplicar.Suspeitoqueopergaminhoconcedaumdemônioaoadepto

que o ler. Muito provavelmente será um diabrete de nível

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baixo,umpresentedeumxamãmaisvelhoaoseuaprendiz,para iniciá-lo no aprendizado da arte das trevas. Será umarara oportunidade de examinar um demônio de uma regiãodiferente do éter. Talvez, através de um escrutínio maiscuidadoso,essediabretemeindiqueadireçãocerta.Comcadafracasso minha determinação cresce, porém não consigoafastarasensaçãodequeminhamissãosejapercebidapelosmeus colegas como um esforço inútil. Mesmo que meudemônio seja fraco, eu provarei aos opositores que tenhotantodireitodeserumoficialquantoaquelesdesangueazul.Agoraprecisopartir,poismeucomandantemeconvocouà

suabarraca.Talvezessasejaminhaprimeiraoportunidadedepenetraremterritórioinimigo.

Estasúltimaspalavrasestavamescritasnumrabisco irregular, comoseoautorestivessecompressa.Eraclaramentealgumtipodediário.Fletcherfolheouatéocomeçoparaversehaviaumnome,e láestava; inscritoemletrasdouradasviam-seaspalavrasODiáriodeJamesBaker.

Fletcherreconheceuosobrenomecomum.Ohomemdeveriatersidoumdos raros camponeses com a habilidade de conjurar, uma ocorrênciadescoberta puramente por acaso quando um cavalariço intrometido liaalgumacoisaquenãodeveriaeconjuravaumdemônioporacidente.Comessa revelação, amaioria dos rapazes e garotas da idadede Fletcher nascidades grandes passaram a ser testados embusca deminúsculos traçosdashabilidadesnecessáriasparasecontrolarumdemônio.MasPelegoerapequenaeisoladademaisparamerecerumavisitadaInquisição.

Eleinspecionouafolhasolta,fazendoumacaretaaoperceberdoqueomaterialerafeito.Runasbárbarasamarcavam,comacaligrafiaelegantedoconjuradorabaixoensinandoapronúnciafonética.

Fletchersorriuecomeçouacomerassalsichas, saboreandocada fatia.Eradifícil evitarqueseusolhosvoltassemàpáginahorrenda.Ele sabiaoqueiriatentarfazernaquelanoite...

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9

Fletchernãosabiabemporquetinhasedadoaotrabalhodeseesgueiraratéocemitério.Nãoeracomosealgumacoisa fosserealmenteacontecer,afinal.Paracomeçar,elesabiaqueamaioriadoscamponesesdescobertoscomoadeptosexibiapequenossinaisdehabilidadesespeciaismesmoantesdeserencontrado,comoopoderdemoverpequenosobjetosoumesmodecriarumafagulha.Orapazestavacertodequeacoisamaispróximaqueeletinhadeumahabilidadeespecialeraotalentodeenrolaralíngua.

Mesmoassim,eraumaatividadeempolgante,etalvez,depoisdeterlidoo encantamento, Fletcher pudesse vender o pergaminho na sua próximaviagem à frente élfica sem o arrependimento de não ter tentado. Eleencontraria Rotherham e dividiria os lucros com ele, é claro. Afinal decontas, tinha sido um presente generoso e, no fundo, era Fletcher quemestavaemdívidacomosoldado,enãoocontrário.

O rapaz se sentou numa lápide partida e pousou o livro aberto numvelhotocodeárvorelogoadiante.Tinhaficadoemdúvidaquantoatrazerolivro ou deixá-lo em casa. Didric e seus capangas poderiam invadir aferraria enquanto ele estivesse fora, ou o assaltar se o encontrassem a

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caminho do cemitério. No fim, o trouxera simplesmente porque odiariaperdê-lodevista.

O pergaminho tinha textura de couro, e Fletcher percebeu, em ummomento de horror, que os símbolos provavelmente haviam sidoentalhadosnacarnedavítima,paracicatrizarantesqueelafosseesfoladaviva. O rapaz estremeceu com o pensamento apavorante, e resolveusegurar o documento com omínimo de dedos possível. A superfície erasurpreendentementesecaepoeirenta.

Aspalavrasnopergaminhonãopassavamdeumalistadesílabas,maisalgumtipodedórémimusicalquequalquerformadelinguagemórquica.Dequalquermaneira,omeninonãofaziaideiadequallínguaerausadaemconjuros; talvezosorcs tivessemtraduzidooqueeleestavaprestesa lerpara a escrita de seu próprio povo a partir de alguma outra linguagemcompletamente diferente. Alémdisso, JamesBaker tinha escrito que estedemônio já tinha sido capturado por um xamã e, de alguma forma,“presenteado”.Quempoderiasaberoqueissoacarretava?Aindaassim,eleleria as palavras, então voltaria à cama quente, feliz ao saber que tinhatentado.

—Dirahgomailofalogorahlo...—começouele,sentindo-seumtantoridículo e feliz porque ninguém o assistia, exceto talvez os fantasmas depessoashaviamuitomortas.

AspalavrasfluíramdalínguadeFletchercomoseeleasconhecessedecor,eelenãopoderiamaispararnemsequisesse,tãograndeeraoimpulsode pronunciá-las alto e claro. Uma sensação impetuosa e inebriante seespalhoupor seu corpo comoum cobertor quentinho, só que, emvezdanévoatrazidapelacerveja,omeninosentiaumaclarezaperfeita,comoseestivessecontemplandoaságuasplácidasdeumlagomontanhês.NamentedeFletcher,aspalavraserammaiscomoumaequaçãomística,cadaumaserepetindo em ciclos variáveis que eram quase melodiosos em suapronúncia.

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—Failosoneidiroh…Aspalavrasseguiammonótonas,quaseumzumbidoimplacável,atéque

ele finalmente chegou à última linha. Ao articular as palavras finais,Fletcher sentiu a mente se deslocar de uma forma que ele reconhecia.Aquelasensaçãodeagudezaafiadacomoumanavalhaqueexperimentavaquandosoltavaaflecha,sóqueduasvezesmaisfortedoquejamaissentira.As coresdomundo se tornaramvívidas, quase iridescentes.Aspequenasflores de inverno que cresciam por entre os túmulos pareciam quaseincandescercomluzetérea,detãobrilhantesqueestavamemsuavisão.

O coração do menino trovejava no peito, e ele sentiu um puxão namente,nocomeçohesitante,depoisinsistenteetãopoderosoqueFletchercaiudejoelhos.

Aoergueracabeça,elepercebeuqueacapadolivrocintilava.Seusolhosse arregalaram ao ver as linhas do pentagrama se acenderem, a estreladentro do círculo tremulante com um brilho arroxeado. Então, como setivesse estado ali desde o começo, um orbe de luz azul apareceu algunscentímetros acima do símbolo. Inicialmente não passava do pontinho deum vagalume, chegando ao tamanho de um pedregulho em poucossegundos. Pairou ali, tão brilhante que Fletcher foi obrigado a desviar osolhos e cobri-los com as mãos conforme a claridade se intensificava atéuma esfera ardente, luminosa como o sol. Um rugir como das chamasatiçadasna forjadeBerdonchegavamaseusouvidos, lançandoondasdedorpelacabeça.

Depois do que pareceram horas, tudo cessou. Na escuridão e silênciosúbitos, Fletcher achouque estavamorto. Ele se ajoelhou coma testa naterra macia, inspirando grandes golfadas do cheiro de grama para seconvencerdequeaindaestavalá,mesmoqueoaragoraestivessemarcadopor um odor sulfúrico que o rapaz não reconhecia. Foi só o soar de umtrinadosuavequefezFletcherergueracabeça.

Haviaumdemônioagachadonummorretedegramaa60centímetros

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do livro, sentado sobre as patas traseiras. A cauda chicoteava atrás delecomoorabodeumgatodomato,easgarrasseguravamosrestosdealgonegro e brilhoso, algum tipo de diabrete com forma de inseto do outromundo. O ser roía o besouro-demônio como um esquilo a uma noz,esmigalhandoeescavandoacarapaça.

Acriaturatinhamaisoumenosotamanhodeumfurão,comumcorposimilarmente ágil e flexível emembros longos o bastante para que fossecapazdeavançarcomoumlobodamontanha,emvezdecorreraospoucoscomoumlagarto.Suapelelisaeradeumvermelhoprofundo,acordeumbomvinhotinto.Osolhoseramgrandeseredondoscomoosdeumacoruja,ferozmente inteligentes e da cor de âmbar bruto. Para a surpresa deFletcher, o demônio não tinha dentes de verdade; seu focinho terminavanumapontaafiada,quasecomoobicodeumatartarugadorio.Eleousouparaabocanharorestodobesouroantesdevoltarsuaatençãoaomenino.

Fletcher empalideceu e se arrastou para trás, encostando-se na lápidepartida. Por sua vez, a criatura guinchou e se escondeu detrás do toco,saltandosinuosamenteenquantoacaudabalançavadeum ladoaooutro.Fletchernotouumferrãoafiadonaextremidade,comoumapontadeflechaentalhada em osso de cervo. O cemitério estava quieto, nem uma brisaousavaromperosilêncioqueseassentarasobreomundodeFletchercomoumacoberta.

Aesferaamareladoolhodacriaturaespioudesconfiadasobreabeiradotoco. Quando os olhares de ambos se encontraram, Fletcher sentiu algoestranho no limite da consciência, uma identidade distinta que pareciaestar conectada a ele de alguma forma. O menino sentiu uma intensacuriosidade, irresistível em sua insistência, mesmo enquanto estavadominado pela vontade de fugir. Ele inspirou mais uma vez de maneirafundaesoluçante,esepreparouparacorrer.

Subitamente,odemôniodisparouporsobreotoconumsaltolânguido,pousando no peito arfante de Fletcher. Ele fitou o menino, inclinando a

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cabeça para o lado como se lhe examinasse o rosto. Fletcher segurou arespiração quando a criatura chilreou incompreensivelmente e lhe deutapinhascomapatadafrente.Orapazficoualisentado,paralisado.

Maisumavezacriaturatrinouparaele.Então,paraohorrordeFletcher,ela continuou a escalada, cada garra perfurando o tecido da camisa. Odemônioseenrolounopescoçodorapazcomoumacobra,eapelecoriáceade sua barriga era lisa e quente. A cauda chicoteou diante do rosto deFletcher, continuandoomovimentoecircundando-lheanuca.Oaprendizde ferreirosentiaa respiraçãoquentedosernaorelha, cientedequeeleiriaesganá-lonaquele instante;umamortedolorosaqueDidric já tentaralhe conceder. Pelomenos eles não teriamque transportar seu corpo pormuito tempo para o enterro, pensou com morbidez. Quando a pressãocomeçou,Fletcherfechouosolhos,rezandoparaquefosserápido.

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Osminutos se passaramna velocidade de uma lesma. O terceiro sino damadrugada já devia ter tocado, e só faltavam algumas horas para aalvorada.Fletcherestavacomeçandoasentirfrio,masresistiaàcompulsãodetremerpormedodesobressaltarodiabrete.Rajadasgêmeasdevaporseerguiamasuaesquerdacomcadaexpiraçãodasnarinasdodemônio.Opeitoavermelhadosubiaedescianumritmocontínuo,eFletcherouviaumsussurrosuavequandoarespiraçãoquentelhefaziacócegasnaorelha.Eraquase como se... o demônio estivesse dormindo! Como tal coisa poderiaacontecer,elenãosabia,masestavafelizemaindasercapazderespirar.

QuandoFletcher tentou tirara criaturadopescoço,ela rosnouemseusonoeseapertoumais,asgarrassegurando-lhecomforçapertodajugular.Fletcher removeuosdedose ela relaxoudenovo, chilreando contente.Ofazia lembrar de um dos gatos da vila, que entrava escondido em seuquartoduranteasnevascasesenegavaadeixarocalordocolodeFletcher,sibilando quando ele tentava se levantar. O diabrete era uma coisinhamuitopossessiva.

Fletcher se levantou e andou até o livro, mantendo o pescoço rígido,

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comoseequilibrasseuma jarrad’águasobreacabeça.Agachando-secomdificuldade,pegouotomo,guardouopergaminhoemmeioàspáginaseosegurou contra o peito. Se quisesse comandar aquele demônio, entãoprovavelmenteprecisariadaquelaspáginas.

Foientãoqueouviu:osomdevozesaltasefuriosas.Fletchersevirouedetectou luzes tremeluzentes no fim do cemitério, aproximando-se cadavezmais.Comoelesohaviamencontrado?Talvezumdosaldeõestivesseouvido o barulho ou visto a luz do orbe mais cedo. Isso seriasurpreendente, porém o rapaz escolhera o cemitério exatamente porqueficava localizado num pequeno afloramento ao norte da vila principal,acessível apenas por uma trilha traiçoeira e a quase 800 metros daresidênciamaispróxima.

Fletcher vasculhou os arredores como olhar, tomado pelo pânico, atéacharummausoléuemruínasnocantodocemitério.Erado tamanhodeuma cabana pequena, cercado por colunas ornadas e enfeitado comentalhes de flores, apesar da chuva ter erodido os detalhesmuito tempoantes.Omeninoseesgueirouatéeleeseagachouparapassarpelaaberturabaixa,submergindonastrevaseseescondendoatrásdeumblocodepedraque cobria a cripta bem no fundo da câmara. Fletcher sabia que umossuário muito antigo jazia a menos de 1 metro abaixo dele, onde asossadasdealdeõesdegeraçõespassadaseramempilhadascomolenhadefogueira.

Eleseescondeubematempo,poisobrilhodeumatochaacesatingiuochãodiantedoseuesconderijoalgunssegundosdepois.

—Estoucomeçandoaacharquevocênostrouxeemumabuscadetolos,vagueando por este cemitério — acusou a voz de Didric, carregada defrustração.

—Estoulhedizendo,euviomolequesaindopeloportãodosfundosdavila.—FletcherreconheceuavozcomosendodeCalista,umaguardamaisnovaeumadascompanheirasdebebedeirasdeDidric.Elaeraumagarota

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séria, comuma tendência ao sadismoquase tão gravequanto a do outroguarda.

—Certamente você pode compreender o absurdo desta situação. Queele estivesse vagueando pelo cemitério, dentre tantos outros lugares, nomeio da noite. Ele nem tem família; quem afinal estaria visitando? —zombouDidric.

—Elesópodeestaraqui,Didric.Conferimosospomareseosarmazéns,eomolequenãoestáemnenhumdosdois.Esteéoúnicooutropontoaonortedavila—afirmouCalista.

—Bem,vasculhetudo.Talvezeleestejaporaí,seesgueirandoportrásdelápides.Vamoslá,vocêtambém,Jakov.Nãoestoutepagandoparaficaraíparado—comandouDidric.

Jakov grunhiu, e Fletcher se agachou ao ver o homem passar pelomausoléu, com uma longa sombra sendo lançada adiante pela tocha deDidric.

Acoisaestavafeia.FletcherpoderiaenfrentarDidriceCalista,mascomJakov... a única opção seria tentar escapar. Mesmo assim, a nova guardatinha sido contratada pelo seu físico atlético, e Fletcher não sabia sepoderia correr mais que ela, ainda mais com um demônio imprevisívelenrolado no pescoço. Ainda bem que Didric parecia ser o único do triocarregandoumatocha.Fletcherpoderiadespistá-losnaescuridão.

Elesedeitounochãofriodemármoreeesperou,torcendoparaqueelesfossememboraantesdeverificaromausoléu.Pareciaumlugaróbvioondese procurar, mas provavelmente tinha parecido vazio à primeira vista,considerandoqueFletcherseesconderaatrásdacoberturadepedra.AluzdatochadoladodeforaenfraqueciaconformeDidricseafastava,descendoas fileiras de túmulos, e uma chuva forte começou a batucar no telhado.Fletcher se permitiu relaxar; eles não procurariam por muito temponaqueletemporal.

Otetorachadocomeçouavazar,eumfiofinodeáguasederramouao

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seu lado. Fletcher se afastou um pouco da poça crescente e tentou semanter calmo, uma tarefa difícil quando ele sabia quem estava lá foraprocurando por ele. Torceu para que os animais que ele caçava não sesentissemassimquandoeleosperseguiapelafloresta.

Bemquandoachouquetinhaescapado,Fletcherpercebeuastrevasaoseu redor recuando à medida que a luz da tocha se aproximava. Didricestavavoltando!Orapazouviuumpraguejarquandooperseguidorentrouno mausoléu, e prendeu a respiração quando Didric torceu o manto. Atocha engasgou por conta da chuva e finalmente morreu, lançando oaposento nas trevas. Didric xingou violentamente. Alguns momentosdepois, Jakov e Calista chegaram, ambos igualmente bocas-sujas emolhados.

—Eufaleiquevocêspoderiamparardeprocurar?—grunhiuDidricnoescuro,soandoresignado.

—Elenãoestáaqui.Deveterdadomeia-voltaquandofuibuscarvocês—disseCalista,comavozrepletadeinfelicidade.

— Não achem que serão pagos por isto — cuspiu Didric. — SemFletcher,semdinheiro.

—Masagentetáensopado!—choramingouJakov,batendoosdentes.— Ah, cresça, por favor. Estamos todos molhados. Aquele ordinário

podeterescapado,masissosósignificaqueacoisavaificaraindapiorparaelequandooalcançarmos.Venham,vamossairdaqui.

Fletchersoltouumsuspirosilenciosodealívioquandoospassosdotrioecoaramparaforadacâmara.Então,quandoachavaqueaprovaçãotinhaacabado, o demônio se mexeu. Ele bocejou com um miado alto e sedesenrolou do pescoço. Depois de uma lambida afetuosa no rosto deFletcher, o bicho se deixou cair para o colo domenino e se espreguiçou,langoroso.

—Oquefoiisso?—sibilouDidric.Droga.

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Fletcher se levantou e endireitou os ombros, derrubando o diabrete nochão. Este ganiu em protesto e disparou para um canto dos fundos domausoléu.

— É você, Fletcher? — indagou Didric, estreitando os olhos paraenxergarnas trevas.A entrada era a única parte da câmara visível sob otênueluar,entãoFletcherprovavelmentenãopassavadeumvultoescuronassombras.Didriccomeçouaavançaremsuadireção.

—O que você quer, Didric? Já não passou da sua hora de dormir?—perguntou Fletcher, com a voz carregada de uma confiança que ele nãosentia.EramelhorseanunciaragoradoquepermitirqueDidricchegassemaispertoparainvestigar.Elequeriamanteralápideentreosdois.

—Oordinárioestáaqui!—gritouDidric,desnecessariamente; JakoveCalista já estavam ao seu lado. As silhuetas negras do trio estavam bemmarcadascontraocemitérioaoluar,dandoaFletcherapequenavantagemde saber exatamente a posição dos três.Mas o fato de que eles estavambloqueandoasaídadefinitivamentenãoajudava.

— Pego como um rato na ratoeira! — exclamou Didric com alegria

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sádica.—Ondeestásuaespertezatodaagora,Fletchy?— Vejo que você trouxe as duas babás junto — comentou Fletcher,

fazendoumesforçohercúleoparapensaremalgumjeitodefugir.—Trêscontraum,é?Porquevocênãomeenfrentacomoumhomem?Ah,esperaaí...agentejátentouisso.

—Cale a boca!— explodiuDidric.—Vocême pegou de surpresa. Setivessesidoumalutajusta,euteriafeitopicadinhodevocê.—Avozdeleestava tensa, com orgulho ferido e raiva. Fletcher sabia que sua únicaescapatóriaseriaenfrentarDidricumcontraum.

— Então lute comigo agora. Deixe Jakov e Calista verem o que teriaacontecidosenãofossedesurpresa—retrucouFletcher,comomáximodeconvicçãoqueconseguiajuntar.Cerrouospunhosedeuumpassoàfrente.Houvesilêncioporummomento,seguidodeumarisada.

—Ah,não,Fletcher,euseioquevocêestátentandofazer.—Didricriu.—Nãovoulutarcomvocêhoje.—Ogargalharecooupelacâmara,fazendoumarrepiocorrerpelaespinhadogaroto.

—Tudo bem, não lute comigo. Vamos acabar logo com essa briga. Eutenhomaisoquefazer—desafiouFletcher,acimadarisadadeDidric.

O rapaz passou a mão pela borda da pedra que cobria a entrada dacriptaabaixo,calculandofreneticamente.Elesabiaquehaviaoutraentradaparaascatacumbassubterrâneas,numacapelaabandonada logonasaídadocemitério.Seeleconseguissedealguma formaabriraquelapassagem,talvezconseguisseescaparporali.Sentiuarachaduraabaixoquelhediziaqueumalajepesadaselavaaentrada.Eraumapossibilidaderemota,masele teria que afastar a tampa muito lentamente para que os outros nãopercebessem.AindabemqueDidric era apaixonadopelo somdaprópriavoz.

Quando JakoveCalista se juntaramà risada, Fletcher empurroua lajeum pouquinho para trás, estremecendo ao ouvir o arranhar de pedracontrapedra.Aquilodemorariamaisdoqueeleesperava.

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—Seuidiota,tambémnãoestamosaquiparalhedarsurranenhuma—afirmouDidricrindo,malsecontendodefelicidade.—Não,estamosaquiparamatarvocê,Fletcher.Vocêfezumaboaescolhavindoaumcemitérioestanoite.Esconderseucorpovaiserfácil.

O sanguedeFletcher congelouquandoouviuo somdeespadas sendodesembainhadas.Trincouosdentesefezforça,empurrandoalajepormaisoutropardecentímetros,masaindanãoerasuficiente.Precisariademaistempo.

—Mematar?ComosPinkertonsnacidade?Vocêémaisidiotadoqueeupensava. Berdon sabe onde estou, ele irá direto falar com eles se eu nãoestiveremcasaembreve—blefou.

Didricoignorouedeumeiopassoàfrente.Fletchercontinuoutentando:—Metade da vila viu nossa briga ontem à noite. Vocês vão passar o

restodassuasvidasnaprisãoporcontadeumadiscussãoquesócomeçouhádoisdias?—indagouemvozalta,tentandoabafarorilhardaspedrasaoempurrá-lapormaisalgunscentímetros.Didricfezumapausaeriu.

—Ah,Fletcher.MeuqueridopaitemosPinkertonscomendonapalmadamão.Elesprefeririamprenderumaooutroaprendero filhodonovoparceirodenegóciosdeles—afirmouDidric,despreocupado.

Fletcherparouetentoupensar.Parceirodenegócios?Doquediaboseleestavafalando?

—De fato, talvez eu lhe conteoqueocorreuno jantar algumashorasatrás,paraquevocêfiquesabendooquevaiacontecercomsuaqueridaviladepoisquevocêestiver a setepalmos—continuouDidric, bloqueandoapassagem de Jakov e Calista com os braços quando eles começaram aavançar.—Evocês vão aprenderporque ficar aomeu lado farábemàssuascarreiras.

— Vamos lá, então. Me esclareça, por favor — zombou Fletcher,empurrando a laje de pedra o bastante para que houvesse algum espaço

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aberto. O menino captou uma baforada de ar preso na cripta abaixo,envelhecidocomoumpergaminhoantigo.

—Comoeuseimuitobemqueaquelesoldado fraudulento lhecontou,criminososcondenadosserãoalistadosobrigatoriamentenoexército.Umapéssimaideia,naminhaopinião,masondeoutrosveemburrice,meupaivêoportunidades — gabou-se Didric, apoiando-se na espada. — Osprisioneirosserãotransportadosdedia,dormindonaprisãodecadacidadeànoite,ondeestarãosãosesalvos.Porém,quandoalcançaremacidadedeBoreas,amaissetentrional,aindafaltarãomaisdoisdiasdeviagematéaslinhasde frenteélficas. Issosignificaqueterãodepernoitarna floresta,oquenãoénadaideal.Ora,qualquerbandodemalfeitorespoderiaatacarocomboionomeiodanoite,enãohaveriacelasdecadeiaparaevitarqueosprisioneirosfugissem.MasvocêsabeoqueficaentreBoreaseafronteira?NossabelaviladePelego,éclaro.

FletcherestavaficandofartodotompretensiosodeDidric,mastambémsabiaqueaprópriavidadependiadajactânciadomenino.

—Edaí?Elesnãopodemficaraqui.Épequenodemais.Oquevocêsvãofazer,alugaralgunsdosquartosvaziosnasuacasa?—indagouFletcher.

Eleconseguiuenfiarasmãosnoespaçovazioeagarrarapartedebaixoda tampa de pedra, conseguindo dessa forma uma alavancagem. Poderiajogaratampaparalongeemumúnicomovimentoemergulharnoburaco,maspreferiaesperaratéDidricestarcomafalaçãoatodaeconseguirumavantagemsilenciosana corrida.Eleprovavelmenteprecisariadela,poisalajequecobriaaoutrasaídadacriptatambémteriadeserremovida.

— Você não entendeu o plano, como eu sabia que iria acontecer! —exclamou Didric com irritação exagerada. — Vamos cobrar nossosempréstimos, Fletcher. Confiscar as casas de todo mundo e transformarestavila inteiranumaprisão. Imagine só, exigiromesmopreçoqueumaestalagemdeluxoenquantoservimosgrudeeoferecemoscamasdepalha.Lotação esgotada todas as noites, todos os pagamentos garantidos pelo

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Tesourodorei.Pensenos lucros!Nossosguardasexcedentesse tornarãooscarcereiroseaspaliçadasmanterãopessoasdentro,enãofora!E,seumprisioneiro escapar, os lobos o comerão, isso se ele não se perder nafloresta. Os Pinkertons já assinaram o acordo.Mesmo que a lei não sigaadiante, nossa prisão será a mais segura e remota jamais construída,distantedopovodebemdascidades.

Levoualgunssegundosparaentenderem.Obelolardeles,comcentenasde gerações de idade, transformado numa prisão. Amaioria dos aldeõesteria suascasasconfiscadas, incapazesdequitarasdívidasqueeramdezvezes maiores do que o valor originalmente emprestado. Era horríveldemais até para se contemplar, porém Fletcher se ateve a uma últimaesperança,umproblemagritantequeCaspardeviaterdeixadodenotar.

—Nunca vai dar certo,Didric. A frente élfica nãoprecisa de recrutas.Elesmandamorefugoláemcimaparaqueespereaaposentadoria.EnemessaralévisitaPelego.Preferemviajaranoitetodaouacamparnaflorestaparanãoterquepagarumaestalagem—apontouFletcher,empurrandoalajeobastanteparaquepudessedescerpelafresta.Masorapazesperou...precisavasabermais.Osaldeõestinhamqueseravisados.

— Você não é tão burro assim afinal, Fletchy. Mas está enganado.Fatalmenteenganado.—Didricriucomapiadinhaebrandiuaespadadeformaameaçadora.—Vejabem,afrenteélficaéolugarperfeitoparaumcampo de treinamento. Preparar criminosos para a guerra num lugarrelativamente seguro, com guerreiros experientes para lhes ensinar, edepois despachá-los para o sul quando estiverem prontos. Não, Fletchy,perfeito. Mas tem uma coisa que eu não lhe contei. Acho que você vaigostar.—Didric fezumapausa,esperandoqueooutro lheperguntasseoqueera.

Fletchersedesesperou.Éclaro,seosprisioneirosfossemdiretoàfrenteórquica, seria o caos. O exército do rei não poderia lutar uma guerra etentar contermilharesde criminosos recém-libertados aomesmo tempo.

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Sehouvesseumarevolta,ossoldadosacabariamlutandoemduasfrentes.Melhor ensinar disciplina aos novos recrutas e doutriná-los ali no norteantesdemandá-losreforçarasforçasassediadasdeHominumaosul.

— O que é, Didric? — rosnou Fletcher. Ele poderia sentir a raivaborbulhando,cáusticaequentenoseupeito.AfamíliadeDidriceracomoumbandodecarrapatos, sugandoavidadePelego.Eagoraelesestavaminfectandoavilatambém.

— Bem antes que o acordo fosse fechado, eu me lembrei de você,Fletchy.Devocêedaqueleimensoimbecil,Berdon.Aviseimeupaiqueosnovos recrutas precisariam de equipamento, então sugeri uma soluçãobastanteelegante.FoiaíqueosPinkertonsfizeramumadendoaocontrato,concedendoanós os direitos exclusivos de venda aos novos alistados nafrente élfica. Somente armas e armaduras comercializadas pela minhafamília poderão ser compradas pelos intendentes. Começaremos a trazerarmasdeBoreasnasemanaquevem,epodeconfiaremmimquandoeulhedigo que, nas quantidades que vamos comprar, nossos preços serão ametade do que Berdon está cobrando. Então, veja bem, enquanto aqueleidiotaruivoestiverde lutopelasuamorte, tambémficarásemumtostão.Quem sabe, talvez deixemos que ele trabalhe como cavalariço. É só paraissoqueeleserve,afinal.

Mesmonastrevas,FletcherconseguiaverosorrisosatisfeitonorostodeDidric. A raiva ardia no peito do rapaz como a fornalha de Berdon,acelerando-lhe o coração até que ele quase ouvisse o sangue correndopelas orelhas. O ódio estremecia seu corpo, cada batida do coraçãopulsando nas têmporas. Ele nunca quismatar ninguém antes,mas agoraentendiaacompulsão.Didricprecisavamorrer.

Aopensarnaquilo,Fletchersentiualigaçãoentresimesmoeodiabrete,como se o bicho fosse uma imensa aranha pendurada num fio de teia. Araivafluiupelaconexãocomumaferocidadepotente,eomeninosentiuaconsciênciadodemônioserpreenchidacomaprópriaintenção.Didricera

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uminimigo,umaameaça.—Nadaadizer?Istonãofoitãosatisfatórioquantoacheiqueseria.—

Didric suspirou e olhou os demais, ao erguer a espada deu um passo àfrente.—Certo...vamosmatá-lo.

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12

No instante em que as palavras deixaram os lábios de Didric, o diabretesaltoudastrevas.Eleguinchouaocravarasgarrasnorostodomeninorico,arranhandoe rasgando.Didricdeuumberro e largou a espada, que caiucom um estrépito enquanto o garoto girava pela câmara como umpossuído.

—Tiraisso,tiraisso!—uivouele,osangueescorrendoemabundânciapelorosto.

JakoveCalistabateramnodiabretecomospunhos, tentandonãoferirDidric.ComcadasocoFletchersentiaumclarãotênuededornoslimitesdaconsciência,masodemôniosemanteveagarradocomobstinação,urrandode raiva. A ira de Fletcher continuava radiando dele como um fogocrepitante,enchendoopeitodefúriajusticeira.Aoápicedetalsentimento,omeninoteveaquelemomentodeclarezamaisumavez,eosanguenegrodeDidricsetornouvermelho-rubinavisão.

Odiabretesecalou,emseguidaabriuabocatãolargamentequantoumacobra.Fogolíquidoirrompeudabocarradacriatura,fluindosobrealateraldo rosto de Didric e incendiando-lhe o cabelo. Um incandescer

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sobrenatural e alaranjado clareava a caverna enquanto Didric desabava,seugritoengasgadointerrompidoquandoacabeçasechocoucontraopisode mármore. Jakov e Calista se ajoelharam e bateram nas chamastremeluzentes,tentandoapagá-lasegritandoonomedeDidric.Odiabretesaltou para os braços de Fletcher, que se deixou cair na cripta abaixo ecorreu em direção à saída; o coração batia no peito como um pássaroengaiolado.

Estava negro como breu lá embaixo, o ar morto e gelado. O meninocorreusemparar,mergulhandonasprofundezasdaterra.Prendendocomforça o livro debaixo do braço, Fletcher sentiu amão tocar empilhas deossos ao tatear pelas trevas em busca do caminho; pilhas contidas porarameenferrujadoeséculosdepoeira.Elederrubouumcrâniodaalcovaaoengancharodedonaórbitavazia.Acaveiraquicoucorredorabaixoeseestilhaçou em fragmentos grotescos. Fletcher esmigalhou os cacos aoavançar aos trancos e barrancos, desesperado para sair dali. O ar eraabafado, e Fletcher sentia-se sufocar com cada respiração carregada depoeira. O demônio não estava ajudando em nada, cravando as garras notecidodacamisaefungandodedesconforto.

Depoisdoquepareceuumaeternidade,Fletcherbateucomacaneladeformadolorosanumabordadepedra.Tateouadianteedescobriuoutra.Oalívio o inundou quando ele percebeu que tinha encontrado o que sópoderiaseraescadaparaacapela.Estendeuamãoparaoaltoesentiuasuperfície lisadeoutra lajedepedra.Comumesforçocolossal,Fletcheraempurrouparacimaeparaolado,jogando-anochãocomumestrondo.

O brilho fraco da lua lhe pareceu glorioso ao entrar pelas janelasquebradas da capela, banhando Fletcher em prata. O menino engoliugolfadasdearfresco,felizemestarlivredaquelaarmadilhamortal.Porém,mesmoenquantocomeçavaarelaxar,lembrou-sedoquetinhaacontecido.PrecisavavoltaraBerdonomaisrápidopossível;oferreirosaberiaoquefazer.

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Fletchercorreupelaescuridão,usandooluarparaseorientarpelatrilhade cabras. Tinha certeza de que os outros estariam logo atrás,provavelmentecarregandoDidric.Eleterianomáximodezminutosantesqueanotíciaseespalhasse.Seosguardasouvissemqueumdosseustinhasido atacado, independentemente das circunstâncias, era improvável queFletchervivesseobastanteparairajulgamento.E,mesmoseofizesse,comas conexões de Caspar ele jamais teria uma chance justa; as únicas duastestemunhasnãoseincomodariamemmentir.

Avilaestavaquietacomoumasombra;todosdormiamemsuascamas.Ao se aproximar correndo dos portões principais, Fletcher ficouimensamente feliz aonotarque a casadoportão acimaestava vazia.Umdosagressoresdeviaterabandonadoseuturnoparacaçá-lo.

A forja estava iluminada pelo incandescer suave dos carvões, quesoltavam uma leve fumaça enquanto queimavam. Berdon estavaadormecido na cadeira de vime, exatamente na mesma posição em queFletcherodeixaraaoseesgueirarparafora.

Não havia tempo a perder; o menino precisava escapar. A ideia deabandonarPelegooferiaatéaalma,seucoraçãoseapertavasódepensar.Porummomento,Fletcherentreviuavidadevagabundoqueoaguardava,vagandodevilaemvila,mendigandopor sobras.Balançoua cabeçaparaafastartaispensamentos.Umacoisadecadavez.

Comocoraçãopesado,FletcherchacoalhouBerdonparaacordá-lo.—Oquefoi?—indagouoferreirocomavozarrastada,dandoumtapa

nasmãosdeFletcher.—Estoudormindo.Meacordaamanhã.—Fletcherochacoalhoudenovo,destavezcommaisforça.

— Acorda! Preciso de ajuda. Não temos muito tempo — insistiu omenino.—Vamoslá!

Berdon ergueu o olhar, levando um susto quando o diabrete curiosopuloudoombrodeFletcherparaseupeito.

— O que diabos é isso? — gritou, inclinando-se para o mais longe

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possível. O demônio grasnou com o barulho e deu um tapa poucoconvincentenabarbadeBerdon.

—Éumalongahistória,maseuvouterqueabreviar.Vocêprecisasaberqueeusereiobrigadoasumirdavilaporumtempo—começouFletcher,pegando o diabrete e o colocando no ombro. O bicho se enrodilhou nopescoçodomeninoesoltouumronronarsuave.

Fletcherexplicoutudoomaisrápidopossível,omitindoosdetalhesmasseassegurandodequeBerdoncompreendessetodososfatos.

Aorelataroacontecido,Fletcherpercebeucomotinhasidoidiotadeiraocemitériopassandopelocentrodavila,ondequalquerumpoderiavê-lo.Ao terminar, ficou ali parado, rígido, tentando recuperar o fôlego ebaixandoacabeçaenvergonhadoenquantoBerdoncorriadeumladoparaooutro,acendendoumatochaearrumandocoisasnumabolsadecouro.Oferreirosófezumapergunta:

—Eleestámorto?—indagou,olhandonosolhosdeFletcher.—Eu...nãosei.Elebateuacabeçabemforte.Sejaoquefor,seurostovai

ficarbemqueimado.Vãodizerqueeuoataqueicomumatocha;queoatraíatéocemitérioedepoistenteimatá-lo.Eudecepcioneivocê,Berdon,fuiumidiota— chorou Fletcher. As lágrimas se acumularam nos olhos quandoBerdon lhe entregou uma bolsa grande, a mesma em que ele levara asespadasà frente élfica. Jogouo livrono fundo comumsoluço,desejandoquenuncativessechegadoàssuasmãos.Odesesperopareciaesmagarseucoração comoum torno.O homenzarrãopousou asmãosnos ombros deFletchereseguroucomforça,lançandoodemônioaochão.

— Fletcher, sei que nunca lhe disse isso, mas você não é nem meuaprendiz nem um fardo. Você é meu filho, Fletcher, mesmo que nãotenhamos omesmo sangue. Estou orgulhoso de você;mais orgulhoso doquenunca.Vocêfoideterminadoesedefendeu,enãotemnadadoqueseenvergonhar. — Berdon o envolveu num abraço de urso, e o meninoenterrou o rosto no ombro do ferreiro, soluçando. — Tenho alguns

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presentesparavocê—anunciouBerdon,enxugandolágrimasdorosto.Ele desapareceu no próprio quarto e voltou com dois grandes

embrulhos. Meteu os dois na bolsa de Fletcher e lhe deu um sorrisoforçado.

— Eu ia lhe dar essas coisas no seu décimo sexto aniversário, mas émelhorqueas recebaagora.Abraquandoestiverbem longedaqui.Ah, evocêvaiprecisardeproteção.Tomeisto.

Haviaumcavaletedearmasnaparedeoposta.Berdonselecionouumaespada curvados fundos, onde ficavamos itensmais raros. Ele a ergueucontraaluz.

Eraumapeçaestranha,queFletchernuncaviraantes.Oprimeiroterçoda lâmina era como o de qualquer espada, uma empunhadura de couroseguidadedezcentímetrosdeaçoafiado.Masaparteseguintedaespadase curvava num crescente, como uma foice. No fim da curva a espadacontinuavacomumapontaagudanovamente.

— Você não recebeu treinamento formal, então se você se meter emencrencas...bem..nemvamospensarnisso.Estaespada-foiceéumaarmaimprevisível. Inimigosnãovãosabercomoapararseusgolpes.Vocêpodeprenderalâminadelesnacurvadafoice,entãoavançaralémdaguardaegolpear como gume traseiro.Aponta é longaobastantepara estocadas,entãonãotenhamedodeusá-laassimtambém.

Berdondemonstrou,cortandooarparabaixoeparaolado,emseguidatrazendo o gume de trás para cima até a altura da cabeça e estocandoviolentamente.

—Abordaexteriordafoiceécurvacomoumaboacabeçademachado.Vocêpodeusá-lapararacharumescudoouatéparaderrubarumaárvore,seprecisar,muitomelhordoquequalqueroutro tipodeespada.Dáparasepararacabeçadeumhomemdosseusombroscomumbomgolpe.

Berdon entregou a arma a Fletcher, que a prendeu às costas da bolsacomumcintodecouro.

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—Mantenhaaespadaoleadaeforadaumidade.Porcausadoformato,elanãoencaixaembainhasconvencionais.Vocêvai terquemandar fazeruma,quandotiverachance.Digaaoferreiroqueéumkhopeshdetamanhopadrão,eelesaberáfazeruma,seconheceroofício—explicouBerdon.

— Obrigado. Vou fazer isso — respondeu Fletcher agradecido,acariciandoopomodecouro.

— Quanto ao demônio, mantenha-o escondido — instruiu Berdon,fitandoosolhosdeâmbardodiabrete.—Vocênuncapassariapornobre,nemdeveriatentar.MesmoqueapessoanãotenhaouvidofalaremDidric,émelhornãochamaratenção.

Fletcher segurouodemônionosbraçoseoexaminou,perguntando-secomoexatamentepoderiamanteracriaturaindisciplinadaforadevista.

Subitamente,ossinoscomeçaramatocar,osommetálicoreverberandopelas ruas. Mesmo com o clamor dos sinos, Fletcher podia ouvir gritosdistantesruaacima.

—Vá!Masnãoparaafrenteélfica,éparaláqueesperamquevocêfuja.Váparao sul,paraCorcillum.Voubarraraportada forja, fazer comquepensemque você ainda está aqui. Vou contê-los omáximo que puder—afirmouBerdon,empurrandoomeninoparaforadaforja,paraoarfriodanoite.—Adeus,filho.

Fletcher olhou pela última vez o amigo,mentor e pai, uma silhueta àporta. Então ela se fechou e ele estava sozinhonomundo, apenas com acriaturaadormecidaaoredordopescoço.Umfugitivo.

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13

Doisdiassepassaram.Doisdiasemfuga, fazendoerefazendoocaminhoparadeixartrilhasfalsas.Semcomer,semdormir;sóbebendoáguaquandovadeavapeloscórregosdamontanha,tentandodespistarocheiroeevitarpegadas.Semprequeparavaparadescansar,ouviaos latidosdoscãesdecaçaaolonge.

Ànoite,Fletcherescalavaatéotopodeumaárvorealtaparaconferiradireção usando as constelações do céu. Ao fazê-lo, via o cintilar dasfogueiras dos acampamentos nos vales acima. A guarda inteira da vila eprovavelmente a maioria dos caçadores o perseguiam. O pai de Didric,Caspar,deviateroferecidoumarecompensaenormepelasuacabeça.

Agora, na terceira noite, omenino via apenas pontinhosminúsculos ameio caminho montanha acima. Eles tinham dado meia-volta, perdido atrilha.Fletchersoltouumsuspiroaliviadoecomeçoualongadescidaatéochão, tomandocuidadoparanãoperderoequilíbrio.Qualquer ferimento,mesmoumtornozelotorcido,poderiasignificaramorte.

Orapaznãosepermitiuficarmuitocomplacente.LordeFaversham,umnobre poderoso, era proprietário da maior parte das terras nos

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contrafortesdoDentedoUrso.Eleeraconhecidopormandarospróprioshomens patrulharem a floresta em busca de caçadores clandestinos.Fletcher teria dificuldades em explicar a eles por que estava viajandosozinho,tãodistantedastrilhassegurasdamontanha.

O demônio sibilou com irritação ao ser incomodado quando Fletcherpulouparaochão.Odiabretetinhaficadonaposiçãocostumeiraaoredordo pescoço domenino desde que tinham deixado a vila. Fletcher estavafelizpor isso.Tiverao corpo frio e encharcadopor tempodemais,masafornalhanabarrigadodemôniomantinhapelomenosseusombrosenucaquentes.

Fletcherolhouemvoltaedecidiuqueabasedocarvalhoeraumlugartão bom quanto qualquer outro para montar acampamento. O solo eraplanoecobertoemmusgomacio.Acopadaárvoreoprotegeriadopiorsealgumachuvacaíssee,pormaisquefossetardedemaisparaconstruirumabrigo, havia galhos mortos mais que suficientes nos arredores para sefazerumapequenafogueira.

O rapaz montou uma pilha de gravetinhos e aparas, então usou umapederneiraeoaçodalâminaparalançarfagulhas.

—Vocênãopoderiameemprestarumpoucodaquelefogoagora,né?—perguntouFletcheraodemônio,asfolhasúmidasignorandoasfagulhas.

Odiabretesedesenrolouaosomdavozdomenino,descendopelobraçodeleatéochão.Acriaturabocejoueoencarou,curioso,inclinandoacabeçaparaoladocomoumcachorrinhoconfuso.

— Vamos lá, deve ter algum jeito de a gente se comunicar — disseFletcher, curvando os dedos sob o queixo do diabrete e dando umacoçadinha.Odemôniochilreoueesfregouacabeçanamãodomenino.Comcada esfregada, Fletcher sentia uma pontada de satisfação profunda nolimiar da consciência, como uma comichão sendo coçada. — Fogo! —anunciouFletcher,apontandoapilhademadeira.

Odemôniolatiuegirou.

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—Shhh!—exclamouogaroto,atravessadoporumlampejodemedo.Osbaixios das montanhas eram notórios pelos lobos que os habitavam.Fletcherjátinhaouvidoosuivosaolonge.Osdoishaviamsidosortudosemtê-losevitadoatéentão.

O diabrete se calou e se encolheu, rastejando por entre as pernas dorapaz.Eletinhaentendido?Fletchersesentoudepernascruzadasnochãoúmido,estremecendoaomolharacalça.Fechouosolhosefezumesforçode memória, tentando lembrar se Rotherham tinha mencionado algumacoisa em suas histórias sobre como os conjuradores controlavam osdemônios.

Ao fazê-lo, sentiu a consciência do demônio, tão confusa, assustada esolitáriaquantoaprópria.Elemandouumaondadeconfortoaobichinhoesentiu o diabrete enrijecer, então relaxar, com o medo e a solidãosubstituídosporsimplescansaçoefome.FoiaíqueFletcherpercebeu:elenãoentendiaaspalavras,massentiasuasemoções!

Fletcher mandou ao demônio uma sensação de frio, mas o bichosimplesmente trilou em desconforto e se enrolou na perna do rapaz.Considerando como o corpo do diabrete era quente, Fletcher suspeitavaqueelenãosesentiriamuitoàvontadecomqualquertemperaturaquenãofosse calor. Talvez... uma imagem? Ele imaginou fogo, trazendo de voltamemóriasdafornalhaquentenaforjadeBerdon.

Odiabretetrinouepiscouosolhosambarinoseredondosparaorapaz.Talvez aquela imagem fizesse a criaturinha lembrar de casa. Fletcheresfregou as mãos, frustrado; aquilo seria mais difícil do que tinhaimaginado.Elesecurvouepuxouocasacopuído.

—Seeutivesseconseguidocompraraquelajaquetanomercado,agentenemprecisariadefogo—grunhiuFletcher.

Omeninoencarouapilhademadeira,desejandoqueelaqueimasse.Semaviso, uma labareda foi disparada do colo dele, incendiando a madeiraúmidaetransformando-anumafogueiracrepitante.

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— Sua coisinha esperta!— comemorou Fletcher, puxando o diabreteparapertoeabraçando-ocomforça.

Orapazjápodiasentirocalorvoltandoaosbraçosepernasgelados.Elesorriu conforme a luz agradável do fogo lhe trouxe de volta memóriasqueridasdaforjadeBerdon.

— Isso me lembrou de uma coisa — comentou Fletcher, soltando odemônio no colo e remexendo a bolsa. Com a perseguição constante, elequasetinhaseesquecidodospresentesdeBerdon.Pegouomaiordosdoisembrulhoseorasgou,commãosaindadesajeitadasporcausadofrio.

Eraumarco,laqueadocomverniztransparenteeencordoadocomumaexcelente trança de couro cru condicionado. A madeira era entalhadaintrincadamente, as duasmetades se curvando para dentro e então parafora nas pontas, fornecendo mais força ao disparo. A madeira era teixo,uma lenha caraqueBerdondevia ter compradodeummercadorno anoanterior;elanãocrescianasmontanhas.Oferreirotinhatratadoetingidoamadeira para que o arco pálido se tornasse cinzento, evitando quechamasse a atenção quando o caçador estivesse escondido nas sombras.Eraumaarmabelaevaliosa,dotipoqueummestrecaçadorpagariaumafortunaparapossuir.FletchersorriueolhouparaotopodoDentedeUrso,agradecendo silenciosamente a Berdon. Devia ter levado meses paraproduziroarco,trabalhandoemsegredoquandoFletchersaíaparacaçar.Haviaatéumaaljavadelgadadeboas flechasdepenasdeganso.Orapazprovavelmente conseguiria caçar uma lebre da montanha na manhãseguinte.

Comesse pensamento, o estômagode Fletcher roncou. Pôs o segundopresentedeladoeremexeunofundodabolsa,puxandoumpacotepesado,embrulhadoempapelmarrom.AbriuestecommaiscuidadoesorriuaoveracarneressecadadoalcequeDidrictentararoubar.Colocoualgumastirasnofogoparaaquecê-las,depoispassououtraparaodemônio.

A criatura farejou a carne cautelosamente, em seguida deu o bote e a

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abocanhou.Ergueuacabeçaparatráseengoliuopedaçointeirodeumasóvezcomoumfalcão.

—Quasearrancoumeusdedos,hein?—comentouFletcherenquantooaromadecervoassadoflutuavasobsuasnarinas.

O rapaz enfiou a mão na bolsa para ver que outros alimentosencontraria.Sentiualgoquetilintavaepuxouumapesadabolsademoedas.

—Ah,Berdon,vocênãodeveria—murmurouFletcher,espantado.Não deveria, mas fez. Pelo que Fletcher podia ver, eram mais de mil

xelins,quasedoismesesdo faturamentodeBerdon.Mesmosabendoqueseu ganha-pão logo estaria correndo risco, o homem lhe dera uma belaporçãodesuaseconomias.Fletcherquasedesejoupodervoltaredevolver,então se lembrou dos trezentos xelins que tinha economizado para ajaqueta,aindaesquecidosnoseuquarto.Omeninotinhaesperançasdequeo ferreiro encontrasse a quantia, e o resto das posses de Fletcherprovavelmentetambémlherenderiamalgumdinheiro.

—O quemais vocême deu...— sussurrou Fletcher. Pegou o segundopresente e chacoalhou, sentindo algo macio e leve. Havia um bilhetealfinetadoaopacote,queFletcherarrancoueleuaotremeluzirdafogueira.

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AslágrimaspingaramnacartaquandoFletcheradobrou,comocoraçãocheiodesaudadesdecasa.Eleabriuoembrulhoesoluçouaoverajaquetaquequeria,enterrandoasmãosnoforromacio.

—Vocêfoiumpaimelhorparamimdoquemeupaiverdadeirojamaispoderia ter sido — sussurrou Fletcher, olhando para as montanhas. Dealguma forma, as palavras que ele tinha deixado não ditas ao longo dosanoseramdoquemaissearrependia.

OdemôniocomeçouamiarcomaangústiadeFletcher,lambendo-lheosdedosemsolidariedade.Orapazlhedeutapinhascarinhososnacabeçaeseaproximou do fogo, permitindo-se alguns minutos de tristeza. Entãoenxugouaslágrimas,vestiuajaquetaepuxouocapuzsobreacabeça.Comocoraçãocheiodedeterminação,eleiriaconstruirumanovavida,umadaqualBerdonseorgulharia.EleiriachegaraCorcillum.

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Atavernafediaahomenssembanhoecervejachoca,masFletchersupunhaqueelemesmotambémnãodeveriaestarexalandoumperfumederosas.Duas semanas viajando numa carroça cheia de ovelhas faria isso comqualquer um. O único ar fresco que respirara nesse tempo todo foraquando saíra para comprar pão barato e fatias grossas de porco salgadodosnativos.Orapaztiverasorte;ocarroceironãofeznenhumapergunta,sócobraracincoxelinsepediraqueFletcher limpasseoesterco todavezqueelesparassem.

AgoraomeninoestavasentadonocantodeumadastavernasbaratasdeCorcillum,saboreandocordeiroquenteecaldodebatata.Maltinhaolhadoacidade,preferindoentrardiretonaprimeiratavernaquevira.Estanoiteelepagariaporumquartoepediriaumbanhoquente;aexploraçãopoderiaesperaratéodiaseguinte.Tinhaasensaçãodequeofedordeovelhastinhaseentranhadopermanentementenasuapele.Atémesmoodiabreteestavarelutante em se aventurar para fora do seu esconderijo de costume nasdobras do capuz do rapaz. No fim, Fletcher teve que suborná-lo com oúltimo pedaço de porco salgado, alimentando o bicho até que ele

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adormecesse.Aindaassim,acriaturinhatinhafeitocomquealongaeescurajornada

fossesuportável,aconchegando-senocolodomeninoparadormirnofrioda noite. Fletcher compartilhava das suas sensações de calor econtentamento,mesmoenquantotremianapalhasujadacarroça.

—Umxelim—anunciouumavozdemulheracimadele.Umagarçoneteestendeu a mão gordurosa, apontando a comida com a outra. Fletcherprocurounabolsaepuxouopesadosacodemoedas,colocandoumxelimnos dedos ansiosos damulher.— Sem gorjeta? Com essa prata toda?—guinchouela,afastando-seemseguidaeatraindoolharesdeoutrosclientesdataverna.Trêssujeitosdurõesemparticularprestaramatenção.Vestiamroupassujas,eoscabeloscaíamemmechasgordurosassobreseusrostos.Fletcherfezumacaretaeguardouodinheiro.

Elesnuncaprecisavamdetostõeslánasmontanhas.Tudotinhapreçosemxelins;tostõescomplicavamascoisas.Eramcemtostõesdecobreparaumxelimdeprata, e cincoxelinsparaumsoberanodeouronasgrandescidadesdeHominum,masabolsadeFletchersócontinhaprata.Elepediriatroco ao pagar pelo quarto, para que isso não acontecesse de novo. Erafrustrantecometerumerrotãoóbvio,masnãopoderiadarumagorjetadomesmovalordarefeição,né?

Outro homem, sentado atrás dos três vagabundos, ainda encaravaFletcher.Erabonito,masassustador,ostraçosbemdefinidosmarcadosporumacicatrizqueseestendiadocentrodasobrancelhadiretaatéocantodaboca,deixandoumolhocegoeleitosonocaminho.Tinhaumbigodefinoecabelos negros encaracolados, amarrados com um nó na nuca. Seuuniformelheidentificavacomoalgumtipodeoficial;umalongacasacaazulcomlapelasvermelhasebotõesdourados.Fletcherviuumchapéutricornepretosobreobaràfrentedohomem.

Fletcher se encolheunas sombras epuxouo capuzpara cobrirmaisorosto. O demônio se ajeitou e resmungou em seu ouvido, infeliz em ser

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mantido no escuro por tanto tempo. O capuz era um ótimo esconderijo,especialmentequandoomeninoerguiaocolarinhodacamisa,masaformacomoooficialoencaravaeradesconcertante.

Orapazengoliuorestodocaldoeenfiounobolsoopãoquevierajunto,para dar ao demônio mais tarde. Talvez fosse melhor ficar em outrataverna,longedetodosquetinhamvistoopesodesuabolsa.

Baixouacabeçaesaiuparaaruadeparalelepípedos,afastando-secompressa e olhando por sobre o ombro. Não parecia haver ninguém oseguindo.Depoisdemaisalgunspassos,Fletcherpassoudeumacorridaauma caminhada, mantendo em mente a necessidade de encontrar outraestalagem.Logoocrepúsculooalcançaria,eelenãogostavanadadaideiadedormirnaruanaquelanoite.

Fletcher já se maravilhava com os prédios altos, alguns commais dequatroandaresdealtura.Quasetodostinhamumalojanotérreo,vendendoumamiríadedeprodutosquefaziamomeninosecoçarparapegarabolsadedinheirooutravez.

Haviaaçougueirosdecaravermelhaemlojasdecoradascomfieirasdelinguiças, ensanguentando-se até os cotovelos conforme acutilavamenormes peças de carne. Um carpinteiro dava os retoques finais a umapernadecadeiracomentalhesmagníficos,comoumaárvoreenlaçadaemhera.Umaperfumariaexalavaumaromasedutordeágua-de-colônia,suasprateleirasdevidronavitrinelotadasdegarrafinhasdelicadasecoloridas.

Fletchertropicouparaocantodaestradaquandoumacarruagemparouà frente,deixandosairduasmeninas com lindoscabelos cuidadosamentecacheados e lábios pintados como pétalas de rosas vermelhas. As duasentraram na perfumaria com o farfalhar das saias e anáguas, deixandoFletcherboquiaberto.Omeninosorriuebalançouacabeça.

—Nãoéparaoseubico,Fletcher—murmurouparasi,continuandoacaminhada.

Seus olhos foram atraídos pelo brilho do metal. Uma loja de armas

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reluzia com piques, espadas e machados, mas não foram eles quechamaram sua atenção. Foram as armas de fogo, cintilantes nos estojosforrados em veludo expostos num estande à frente da loja. As coronhaseramentalhadasetingidasemvermelho,comcadaumdoscanosgravadocomcavalosagalope.

— Quanto custam? — perguntou ao vendedor, olhos fixos numbelíssimopardepistolasdeduelo.

— Caras demais para ti, guri; essas armas são para oficiais. Mesmoassim,sãomuitobelas,nãosão?—respondeuumavozgrave.

Fletcher ergueu o olhar e piscou, surpreso. Era um anão, disso tinhacerteza. Ele estava de pé sobre um longo banco, demodo que seu olharestavaàmesmaalturadodeFletcher,massemisso,baterianabarrigadomenino.

—Éclaro,eujádeveriasaber.Nuncavinadamaisbonito.Vocêqueasfez?— indagou Fletcher, tentando não encarar. Anões não eram comunsforadeCorcillum,eomeninojamaisviraumdeles.

—Não,eusóvendo.Aindasou iniciante.Talvezumdia,quemsabe—explicouoanão.

Fletcherseperguntoucomooanãopoderiaaindaserummeroaprendiz.Elepareciamuitomaisvelhoqueorapaz,combarbaebigodeespessos.AcordabarbalembravaFletcherdadeBerdon,masosfioserammuitomaisgrossos e longos, trançados e entremeados commiçangas. Os cachos doanãoeramigualmentelongos,chegandoàmetadedascostasnumrabodecavalopresoporumatiradecouro.

—Estariamseusmestresprocurandopornovosaprendizes?Eutenhomuitaexperiêncianaforja,eprecisodetrabalho—inquiriuFletcher,comesperança na voz. Afinal de contas, o que mais ele poderia fazer paraganhardinheironaquelacidadetãocara?OanãoolhouparaFletchercomoseogarotofosseburro,masdepoissuaexpressãosesuavizou.

—Vocênão édestasbandas, é?—questionou, comumsorriso triste.

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Fletcher balançou a cabeça negativamente. — Não vamos contratarhumano nenhum, não enquanto não tivermos osmesmos direitos, e nãoenquantoossegredosdasarmasdefogoaindaforemnossos.Nadacontravocê,pessoalmente.Vocêpareceumgurideboaíndole—afirmouoanão,solidário.—Melhor que vá a um dos ferreiros humanos,mesmo que sóhajaalgunspoucos.Elesvãobemdenegócios;hámuitossoldadosquesenegama comprardos anões.Masouvi quenão andamcontratando estesdias;hácandidatosdemais.

Fletchersentiuocoraçãoapertar.Ferrariaeraaúnicaprofissãoqueeleconhecia, e já era velho demais para se tornar aprendiz em outro ofício.Tambémnãohavia florestaspróximasàcidadeondeelepudessecaçar,anãoserqueasselvasnafronteirameridionalcontassem.

—Que direitos lhes são negados? Sei que o rei concedeu o direito dealistamentonoexércitonoanopassado—perguntouFletcher,suprimindoodesapontamento.

—Há,temmuitos.Aleiditandoonúmerodefilhosquepodemosteracadaanoéamaisirritante.Sópodemosteramesmaquantidadedebebêsqueonúmerodeanõesquemorreramnoanoanterior.Considerandoquepodemos viver quase o dobro que vocês humanos, o resultado é só umpunhado. Quanto ao direito de entrar para as forças armadas, sim, é umpassonadireçãocerta.Oreiéumbomsujeito,maselesabequeseupovonãoconfiaemnós,especialmenteoexército,graçasàsrevoltasenânicasdeuns oitenta anos atrás. A ideia é que, uma vez que provarmos nossalealdadeaoderramarsangueaoladodossoldados,bem,aíoreivaireveras leis, nos concedendo cidadania plena. Mas, até que esse momentochegue,éassimquetemqueser.—Avozdoanãotinhaumtoquederaiva,eeledeuascostas,comosedominadopelaemoção,remexendonumacaixaatrásdesi.

FletcherselembroudodesprezodosoutrosaldeõesemPelegoquandofoi anunciado que os anões lutariam no exército de Hominum. Jakov

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brincaraqueelesmalesbarrariamnasbolasdelesepassassempordebaixodassuaspernas.Osbraçosdesteanãorobustoerammaisgrossosqueascoxas da maioria dos homens, e seu peito largo e forte refletia a voztrovejante. Se Jakov enfrentasse este anão, Fletcher sabia bem em quemapostaria.Osanõesdariamaliadosformidáveis,semdúvida.

— Você sabe de algum lugar barato e seguro para ficar por aqui?—indagouFletcher,tentandomudardeassunto.

Oanãoseviroudevoltaelheentregoualgo,fechandoamãodomeninosobreoobjetoantesquealguémvisse.

—Temum lugar nãomuito longe daqui. É uma taverna amistosa aosanões, chamadaBigorna.Talvez alguémpossaachar algum trabalhoparavocê por lá. Diga que Athol mandou você. Pegue a terceira à direitadescendoarua;nãotemcomoerrar.

O anão lhe deu um sorriso encorajador e se virou para outro cliente,deixando Fletcher segurando um quadrado de papel com uma bigornaimpressanocentro.Fletchersorriueseguiunadireçãoindicadapeloanão,entãolembrouquenãotinhaagradecido.

Ao se virar, travou olhares com os homens maltrapilhos da taverna,cujosrostosse iluminaramaoreconhecê-lo.O trioavançounadireçãodeFletcher, que começou a correr. As pessoas olharam conforme o rapazdisparavapela rua lotada, ganhandoum tapana orelha ao esbarrar numhomembem-vestido,acompanhadodeumajovemdama.

Quando Fletcher estava prestes a alcançar a esquina que levava àtaverna,aruaficoubloqueadaporduascarruagens,cujoscavalosgiravame relinchavam enquanto os condutores gritavam um com o outro.Amaldiçoando a própria sorte, Fletcher foi forçado a virar numbeco. Elecorreu rua adentro, feliz empelomenos estar livre dasmultidões. A ruaestava vazia e as lojas, nos dois lados, já fechadas para a noite. EntãoFletcher parou de repente, com o coração acelerado. Era um beco semsaída.

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Fletcher usou o tempo que tinha antes da chegada dos ladrões paraconvencerodemônioasubirnoseuombro.Odiabretecravouasgarrasnocourodajaqueta,sentindoaagitaçãodomenino.

—Fiquepreparado,amigo;achoqueacoisavaificarfeia—murmurouFletcher, preparando uma flecha no arco e se ajoelhando para mirarmelhor. Os três viraram a esquina e pararam, encarando o menino. —Caiamforaoumetoestaflechanoseuolho.Nãotenhoomenorproblemaemacabarcomumladrão—gritouFletcher,espiandoomaiordostrêsporcima da flecha. Seu alvo sorriu, mostrando uma boca cheia de dentesamarelados.

— É, não duvido não. Mas, veja só, a gente não é exatamente ladrão;estamosmaispara cortadoresdegarganta, seéque cêmeentende.—Ohomemfezumacaretadedesprezoeergueuumalâminacurva.—Sópassaabolsadedinheiroqueagentecaifora,semcrise.

Ele deu alguns passos à frente, ficando a três metros de Fletcher. Odemônio sibilou e soprou rajadas gêmeas de chamas das narinas, queflamejaram a centímetros do rosto do homem, fazendo com que ele

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cambaleassedevoltaatéosoutros.—Nãoestoudebrincadeira.Caiamfora,ouvocêsvãosearrepender!—

gritouFletcherdenovo,avoztremendo.Eleolhouascasasvaziasaoredor.Por que ninguém tinha ouvido? Alguémprecisava chamar os Pinkertons.Quedesgraçaseriachegartãolongesóparamorrernumbecoimundonaprimeiranoite.

—Ah,umconjurador.TuéumdosaprendizesdaAcademiaVocans,né?Já não passou um pouco da sua hora de dormir? — zombou o ladrão,limpandoasroupascomasmãos.

—Suma!—exclamouFletcher,percebendoqueodemôniosópoderiacuspir fogo até uma determinada distância. Ele não queria testar esseslimitesnaquelanoite.

—Muito bem, tu jámostrouo seu, agoramedeixamostrar omeu—retrucou o homem, em seguida sacando uma pistola e apontando para opeitodeFletcher.Orapazquasedisparouaflechaalimesmo,masperdeuamiraquandooassaltanteavançounovamente.—Agora,qualquetuachaque émais rápido, a pistola ou esse teu arco?— inquiriu o homem comconfiançagenuína.Fletcheravaliouaarmadefogo.Eraumacoisafeia,commetalenferrujadoeocanorachadoegasto.

—Nãomeparecemuitoprecisa—comentouorapaz,recuando.—É,tutemrazão.Mas,digamosqueelaerre,etumetaaquelaflechano

meuolho?Meusdoisamigosaquivãopartirpracimadetutodoscheiosdefacae tecortardeorelhaaorelha.Agentepodemorreraqui,ou tupodefacilitar o serviço e darpra gente o que a gentequer.Não temnadaquefeitiçooudemôniopossamfazercontraumabala,conjurador—afirmouohomem,comvozconstanteeconfiante.AlgumacoisadiziaaFletcherqueaquelesujeitojátinhafeitoaquelejogoantes.

—Prefirocorrermeusriscos—retrucouFletcher,disparandoaflecha.Apistolacuspiufumaçacomumestrondo,eorapazouviuobaquedeumimpacto próximo ao peito. Um clarão de luz atravessar sua visão, porém

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Fletchernãosentiudoralguma;talvezestaparteviessedepois.Osguinchosdo demônio lhe soaram nos ouvidos enquanto ele desabava ao chão,sorrindocruelmenteaoveroassaltantecaircomumaflechanocrânio.Osdois homens atrás do bandido ficaramparalisados; não tinham esperadoqueFletchercumprisseaameaça.

— Errado, na verdade— afirmou uma voz elegante das sombras nofundodobeco.—Hámuito que a feitiçaria pode fazer. Como erguer umescudo,porexemplo.

O oficial de rosto marcado que Fletcher vira na taverna emergiu,caminhando por entre os dois homens que ainda restavam. Um rosnadosoou das trevas detrás dele, tão alto que Fletcher quase o sentiureverberandonopeito.

—Eucorreria,sefossevocês—aconselhouooficial.Semolhardenovo,oshomens sevirarame saíramcorrendopela esquina.PeloqueFletcherescutou,elesnãoforammuitolonge.Umsegundorosnadoaltoecoouforadeseucampodevisão,seguidodegritosquelogosetornaramumhorrívelsomgorgolejante.

Fletchercobriuorostocomasmãoserespiroufundo,quasesoluçando,repetidasvezes.Aquelatinhasidoporpouco.

—Aqui—disse o oficial, estendendo amão.—Você não está ferido;meuescudocuidoudisso.

Fletcheraceitouaajudaefoipostodepépelamãosurpreendentementemaciadohomem.Apalpouopeito,semencontrarferimentos.Emvezdisso,uma rachadura luminosa parecia pairar no ar diante dele, como gelopartidonumlagoopaco.Estavaembebidanumovalgrandee translúcido,queflutuavaàsuafrente.Maleraperceptívelaolhonu.Mesmoquandoorapazestendeuamãopara tocá-lo,oescudodesapareceu.Fletchernotouqueabalatinhacaídonochão,aformaredondaachatadapeloimpacto.

—Siga-me—chamouooficial, seguindosemolharpara trás.Fletcherfezumapausaporummomento,entãodeudeombros.Ohomemtinhalhe

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salvadoavida;orapaznãoiriaquestionarsuasintenções.OdiabreteescalouascostasdeFletchereseenfiounocapuzenquantoo

menino seguia o oficial, exausto com a adrenalina do combate. Fletcherficoufeliz,poisooficialvinhafitandoodemôniointensamente.

— Sacarissa!— gritou o oficial. Uma sombra se separou das trevas eesfregouofocinhonamãodomestre.Estesoltouum“tsc”denojoquandoonarizdacriaturaensanguentouseusdedos.Emseguida,puxouumlençodobolsoelimpouamãometiculosamente.Fletcherarriscouumaolhadelanodemônioeviuumacriaturadeaspectocaninocomquatroolhos;umparnormaleoutromenor,unstrêscentímetrosmaisatrás.Entretanto,aspataserammaisfelinasquecaninas,comgarrasdemaisdedoiscentímetrosdecomprimento, cobertasde sangue.Opeloeranegrocomoumanoite semestrelas, com uma juba espessa que corria ao longo da espinha até umacaudafelpudaquelembrouaFletcherumaraposa.Eratãograndequantoumcavalopequeno;seudorsobatianaalturadopeitodorapaz.Eletinhaimaginadoqueosoutrosdemôniosfossemdomesmotamanhoqueodele,porémeste era grandeobastantepara servir demontaria.Os flancosdaenormecriaturaondulavamcommúsculosconformeelaespreitavaaoseulado,fazendoFletcherquaseterpenadoshomensquetinhammorridoemsuasgarras.

Ele e o oficial caminharam em silêncio. Fletcher considerou o homemalto ao seu lado. Era um sujeito de rosto severo porém bonito,provavelmentenosseus30anos.Acicatrizdeguerraque lheadornavaaface preenchia a imaginação de Fletcher com imagens de batalhasacirradas,comflechassobrevoandooscombatentes.

As ruas já estavam começando a se esvaziar, e,mesmoque a criaturaatraíssealgunsolharesfurtivos,eleslogoseviramsozinhosaosairdaviaprincipalevirarnumaruavazia.

—Quetipodedemônioéesse?—perguntouFletcher,paraquebrarosilêncio.

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—Um Canídeo. Se você prestasse atenção nas aulas, saberia disso. Éprovavelmenteoprimeirodemônioqueelesapresentam,Deussabequeéo mais comum. Então... você é um gazeteiro e um aluno relapso! Euexpulsaria você sumariamente senãoprecisássemosde todosos adeptosquepudermosencontrar,nãoimportandoquãoineptosforem.

—Eunãosoudaescola.Sóchegueinacidadeestamanhã!—retrucouFletcher,indignado.Ooficialparoucompletamenteesevirouparaencará-lo.Oolhoturvoeimplacáveldohomemsefixounorapazporummomento,antesquecontinuasse:

— Nossos Inquisidores disseram que todos os plebeus identificadoscomoadeptosnostesteschegaramàescolasemanapassada—afirmouooficial.—Sevocênãoéumdeles, entãoquemé?Umnobre?Equem lhedeuessedemônio?

— Ninguém me deu o demônio. Eu o conjurei sozinho — explicouFletcher,confuso.

— Ah, então você é ummentiroso— disse o oficial, como se tivessefinalmenteentendido,econtinuouandando.

—Nãosou,não!—grunhiuFletcher,segurandoohomempelacaudadacasaca.

Numinstanteooficialtinhaorapazcontraaparede,segurando-opelocangote. O diabrete sibilou, mas um único rosnado de advertência deSacarissaocalou.

—Nuncamaisousemetocardenovo,seumolequearrogante.Acabeidesalvarsuavidaevocêentãodecidemecontarumamentiraabsurda.Todomundo sabe que os conjuradores precisam receber um demônio depresentedealguémparapodercapturaropróprio.Ora, logovocêvaimedizer que entrou no éter pessoalmente e colheu um demônio como umafrutanopé.Agoramediga,qualconjuradorlhedeuodemônio?

Fletcher chutou o ar, sufocando com a traqueia esmagada. Um nomeflutuouespontaneamenteemsuacabeça.

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— James Baker — conseguiu dizer, arfando e batendo nas mãos dooficial. O homem o soltou e alisou amassos imaginários no própriouniforme.

—Perdoe-me, deixei que a raivame dominasse—desculpou-se, comuma expressão cheia de arrependimento ao ver asmarcas que os dedosdeixaramnopescoçodeFletcher.—Aguerracobraumpreçocarodemaisdenossasmentes.Deixe-mefazeralgoparacompensarmeusatos.Voulhereservar um quarto na minha taverna e mandá-lo à Academia Vocansamanhãnumadascarroçasdesuprimentos.MeunomeéArcturo,eoseu?—Eleestendeuamão.

Fletcher aceitou o cumprimento, a violência esquecidainstantaneamentecomamençãoàacademia.Suareputaçãoeralendária;ocampo de treinamento dos magos de batalha desde a fundação deHominum.Oqueacontecialádentroeraumsegredomuitobemguardado,até mesmo dos soldados que lutavam ao lado dos magos. O convite deArcturoiamuitoalémdequalquercoisaqueFletchertivessesonhadoparasieseudemônio.

— Fletcher. Não se preocupe; eu teria algo bem pior que um pescoçoroxosenãofosseporvocê.Aformacomorecebimeudemônioéumtantocomplexa, e foi por isso que fiquei confuso com sua pergunta. Explicareitudoestanoite,sevocêmedeixar—respondeuFletcher,estremecendoaoesfregaragarganta.

—Sim,vocêpodemecontarduranteumjantareumdrinque.Porminhaconta, é claro. Se me recordo bem, James Baker não foi um conjuradormuitopoderoso,entãocapturarumrarodemônioSalamandracomooseucertamenteestariaalémdaspossibilidadesdele.Eudesconfioqueeleteriaficado com a criatura para si mesmo, se tivesse conseguido uma —raciocinouArcturo,seguindoruaabaixo.

—Éissoqueeleé?—perguntou,olhandooprópriodemônio.OrapazsorriuaoverArcturoentrarnumaestalagemdeaparênciacara,sentindoo

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cheiro revelador de comida sendo preparada. Naquela noite ele iria seempanturrardecomidaeafogarosproblemasnumbanhoquente.Então,nodiaseguinte,partiriaàacademia!

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FletchernãodescobriumuitasoutrascoisascomArcturonaquelanoite.Ooficial fora fiel à palavra, comprando-lhe um filé e uma torta de rim eescutando a história domenino, que deixou de fora a parte de Didric, éclaro. Assim que Fletcher terminou de falar, Arcturo pediu licença edesapareceunosprópriosaposentos.Orapaznãoseimportou;tomouumbanho fumegante, de barriga cheia, e dormiu em lençóis de seda. Até odiabretesefartoucomcarnemoídafresca,devorando-aemsegundosparalogodepoisempurraropotecomofocinho,pedindomais.SeArcturotinhacomo pagar por tanto luxo, então certamente a vida de conjurador nãopoderiaserassimtãoruim.

Pela manhã, Fletcher foi acordado por um sujeito impaciente, queafirmavatersidoinstruídoalevaromeninoàacademia.QuandoFletcherchegouàrua,ohomemgesticulouparaqueseapressasseasubiraobancodocarona,oueleseatrasariaparaaentregamatinaldefrutaselegumes.

A jornada levou mais de duas horas, mas o carroceiro evitou astentativasdeFletcherdecomeçarumaconversafiada,seurostocontraídode preocupação com o trânsito na estrada. Em vez de bater papo, então,

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Fletcher passou o tempo permitindo que o diabrete ficasse encarapitadoorgulhosamente em seu ombro, sorrindo aos olhares curiosos que lhelançavam ao passar. Após presenciar Arcturo permitindo que Sacarissaandasse abertamente pelas ruas, o rapaz deixou de vermotivo para nãofazeromesmo.

Tentou visualizar como seria Vocans, mas sabia tão pouco sobre aacademiaqueamente imaginava lugares tãovariadosquantoumpaláciosuntuosoouumcampodetreinamentopararecrutasnovatos,desprovidode confortos. De um jeito ou de outro, sua empolgação crescia com cadagirodasrodasdacarroça.

Finalmente, chegaram à fronteira com a selva do sul, o estrondo decanhões ecoando a distância. Onde antes a estrada de terra em que elesviajavam era cercada de campos verdes, ali a paisagem era recoberta deervasdaninhasemarcadacomcraterasprofundas;indíciosdequeaguerrajápassarapelolugar.

— Lá está a Cidadela— anunciou o carroceiro, quebrando o silêncio.Apontou a sombra turva do que parecia ser uma montanha adiante,obscurecidaporumaneblinaespessaquepairavanoar.Acarroçaentrounuma fila atrás de outras, que iam entregar barris pesados de pólvora ecaixotescheiosdebalasdechumbo.

—OqueéaCidadela?Éondemoraorei?—perguntouFletcher.—Não,garoto.ÉondeficaaAcademiaVocans.Oreivivecomopainum

palácioluxuosonocentrodeCorcillum—respondeuocondutor,lançandoumolhar curiosoparao rapaz.MasFletchernãoestavaouvindo.Emvezdisso, contemplavaboquiaberto conformeanévoaeradissipadaporumaforterajadadevento.

O castelo era grande como um dos picos do Dente de Urso. O prédioprincipaleraumcubogigante,feitodeblocosdegranitomarmorizado,comvarandasesacadasemcamadasnaslaterais,comodecoraçõesnumbolodecasamento.Haviaquatrotorresredondasemcadaquina,cadaumacomum

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topoplano e ameado, estendendo-sedezenasdemetrosno céu acimadaestrutura principal. Um fosso profundo de água negra e turva cercava ocastelo, com seismetros de largura emargens íngremes de cada lado. Apontelevadiçatinhasidobaixada,mastodososcarroçõespassavamdiretoporela,seguindoemdireçãoàcanhonadaqueaindaretumbavaaolonge.

Conforme eles se aproximaram da Cidadela, Fletcher percebeu que asmuralhasestavamcompletamenterecobertasdeheraetingidascomlíquene musgo. Deviam ter sido construídas séculos atrás. As tábuas da pontelevadiça rangiam perigosamente enquanto o carroceiro incentivava oscavalos assustados a seguir em frente, mas todos chegaram inteiros aooutrolado.

O pátio ficava à sombra das quatro muralhas que o cercavam, comapenasumpequenoquadradodecéuoferecendoluz,váriosandaresacima.Aáreaeradominadaporumsemicírculodedegrausquelevavamaumpardepesadasportasdemadeira:aentradadocastelo.

Assim que os cascos dos cavalos estalaram nos paralelepípedos, umsujeitogordodeavental, comumrostovermelhoe inchado, emergiudassombras. Era seguido por dois assistentes de aparência nervosa quecomeçaramadescarregaracarroçaapressadamente.

—Atrasado,comosempre.Vouterumaconversinhacomointendentesobre arranjar um novo fornecedor, se isto voltar a acontecer. Agora sóteremosmeia hora para preparar e servir o café damanhã—afirmou ohomemgordo,puxandooscordõesdoaventalcomdedosrechonchudos.

—Nãofoiculpaminha,Sr.Mayweather.Umoficialmeobrigouatrazereste aprendiz, o queme tiroumeia hora domeu caminho. Aqui,menino,conteparaele—balbuciouocarroceiro,cutucandoFletchernascostas.Orapaz fez que sim coma cabeça, atordoado, percebendo finalmente ondetinhachegado.

— Muito bem, então. Vou deixar passar desta vez, mas você está naminha lista — retrucou Mayweather enquanto lançava um olhar de

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avaliaçãoaFletchereoutroaindamaislongoaodemônio.Orapazdesmontouenquantoasúltimasfrutaselegumeseramretirados

da carroça, e ficouali parado semsaberdireitooque fazer.O carroceiropartiusemolharparatrás,ansiosoemseguircomarotaepegarapróximacarga.

— Você sabe aonde vai, rapaz?— indagouMayweather asperamente,masnão semalgumagentileza.—Vocênãoéumnobre, isso éóbvio.Osplebeusjáestãoaquiháumasemana,e,aestaaltura,eujáconheçotodososalunosdosegundoano.Vocêdevesernovo.Recusouaofertadevirparacáeentãomudoudeideia?

—Arcturomemandou...—respondeuFletcher, semsaberbemoquedizer.

—Ahh, entendi.Vocêdeve serumcasoespecial, então. Já temosmaisdoisdessesláemcima—afirmouMayweather,comvozbaixaemisteriosa.— Se bem que eles são um pouquinhomais estranhos que você, isso eugaranto.

Depois,continuou:—Nãorecebemosmuitosaprendizestrazidospessoalmentepormagos

de batalha. — Aproximou-se para espiar o diabrete de Fletcher. —Geralmente são os Inquisidores que encontram os dotados e os trazempara cá. Magos de batalha raramente alistam adeptos pessoalmente,porque issosignificaqueeles terãodedarumdosprópriosdemôniosaonovato.Elesprecisamdecadademônioquepuderemencontrarna frentedebatalha.PareceestranhoqueArcturo lhe concedaumrarocomoesse,porém.Nuncaviumdessetipo!

— Tem alguém a quem eu precise me apresentar? — perguntouFletcher,ansiosoparaseafastarantesqueMayweatheroesquadrinhasseainda mais. Quanto mais gente soubesse como Fletcher se tornara umconjurador,maiorachancedanotíciadeseuparadeiroalcançarPelego.

—Vocêestácomsorte.Oprimeirodiavaiseramanhã,entãonãoperdeu

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muita coisa— explicouMayweather.—Os candidatos nobres ainda vãochegar;elescostumampassarasemanapréviaemCorcillum,onde lhesémaisconfortável.Quantoaosprofessores,voltarãodaslinhasdefrentepelamanhã,entãoémelhorquevocêváfalarcomoreitor.Éoúnicomagodebatalhaquenãopassametadedoanonaguerra.Sigadiretoemfrentepelasportasprincipaiseumdosfuncionáriosvai lheexplicarondeencontrá-lo.Agora, se vocêmedá licença, eu tenhoumcafédamanhã apreparar.—Mayweatherdeumeia-voltaeseafastou,bamboleante.

Apesar de ter o demônio aninhado ao redor de sua garganta, Fletchernãosesentiapartedaquelelugar.Aspedrasantigastransmitiamopulênciaehistória.Nãoeraparaobicodele.

Fletcher subiu as largas escadas e empurrou as portas duplas.Melhorencontraroreitorantesqueocafédamanhãfosseservido;elepoderiaseapresentaraosoutrosalunosdurantearefeiçãomatinal.Nãopretendiaserumlobosolitáriodenovo.

Entrou num enorme átrio com escadarias gêmeas espiraladas àesquerda e à direita, com paradas em cada andar. Fletcher contou cincoandaresnototal,cadaumprotegidoporumcorrimãodemetal.Otetoerasuportadoporpesadasvigasdecarvalho;escorasimensasqueseguravamaspedrasacimanolugar.Umdomodevidronotetopermitiaqueumpilarde luz descesse ao centro do aposento, suplementado pelas tochascrepitantes nas paredes. No extremo oposto do salão havia outro par deportas demadeira,mas foi o arco acima delas que chamou a atenção deFletcher. A pedra estava entalhada com centenas de demônios, cada ummaisimpressionantequeooutro.Aatençãoaodetalheeraextraordinária,eosolhosdecadacriaturaeramfeitosdegemascoloridasquefaiscavamàluz.

Eraumespaço imenso,quaseextravaganteemsuaarquitetura.Opisodemármoreestavasendopolidoporumjovemcriado;elelançouumolharcansadoaFletcher,queandavacombotassujassobreochãomolhado.

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—Seráquevocêpoderiame indicaro caminhoatéo reitor?—pediuFletcher,tentandonãoolharparatrás,paraaspegadasquedeixara.

—Vocêvaiseperderseeunãolhemostrarocaminho—respondeuocriado,comumsuspiro.—Venha.Tenhomuitotrabalhoafazerantesqueosnobrescheguem,entãonãoenrole.

—Obrigado.MeunomeéFletcher, e o seu?— indagou, estendendo amão. O criado o encarou, surpreso, e aceitou o cumprimento com umsorrisocontente.

—Sendomuitosincero,nenhumestudantenuncatinhameperguntadoisso — comentou o criado. — Jeffrey é o meu nome, obrigado porperguntar. Se você vier rápido, eu lhe mostro seus aposentos e depoisrecolhoqualquerroupaquequeiraqueseja lavada.Comseuperdão,maspelo cheiro dos seus trajes, acho que precisa. — Fletcher corou, masagradeceu do mesmo jeito. Ainda que tivesse tomado banho na noitepassada,tinhaseesquecidodequeasroupasaindacheiravamaovelha.

Jeffreyolevouatéoprimeiroandarnoladolesteeporumcorredoremfrenteàescadaria.Asparedeseramdecoradascomarmadurascompletasecavaletesdepiqueseespadas, resquíciosdaúltimaguerra.Acada tantospassoselespassavamporumapinturailustrandoalgumabatalhaantiga,daqual Fletcher era obrigado a desgrudar os olhos toda vez, pois Jeffrey oapressava.

Passaram por uma vasta coleção de grandes estantes de vidroabarrotadasdejarroscomumlíquidoverdepálido.Cadaumdelescontinhaumpequenodemônio,suspensoseternamenteemseuinterior.

Finalmente,Jeffreyreduziuopasso.Ocriadoapontouparaumaenormeclava pendurada na parede. Era cravejada de rochas afiadas, cada umadelasdotamanhoeformatodeumapontadeflecha.

— Essa era a maça de guerra do orc chefe da tribo Amanye, tomadacomotroféunabatalhadaPonteWatford.Foioreitorquemoderrotou—anunciouJeffrey,comorgulho.—Umgrandehomem,nossoreitor.Severo

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como um juiz, porém. Tome cuidado com ele: olhe nos olhos e não dêrespostasmalcriadas.Eleodeiaosfracoseosinsolentesemigualmedida.

Com essas palavras, Jeffrey parou diante de uma pesada porta demadeiraebateucomopunho.

—Entre!—gritouumavozretumbantedooutrolado.

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17

O gabinete era quente e abafado em comparação aos corredores. Umalabareda crepitava no canto do aposento escuro, cuspindo fagulhas queeramsugadaspelotubodachaminé.

—Feche amaldita porta! Está congelando lá fora!— ribombou a voznovamente. Fletcher saltou para obedecer enquanto percebia uma figurasentadaaumagrandeescrivaninhademadeiranocentrodasala.—Vamosdarumaolhadaemvocê;vamos,aproxime-se.Etireessecapuz;nãosabequeérudecobriracabeçadentrodelugaresfechados?

Fletcher se aproximou com pressa e puxou o capuz, revelando odemônioquealitinhaserefugiadoassimquechegaramàCidadela.

Afigurapigarreoueriscouumfósforo,acendendoumlampiãonaquinadaescrivaninha.Obrilhorevelouumhomemquemaispareciaumamorsa,comumenormebigodebrancoesuíçascheias,quedominavam-lheorosto.

—Oravejam,esseéumdemôniobemraroquevocê temaí!Sóviumdesses, e não foi do nosso lado. — O homem catou uns óculos naescrivaninha e espiou o diabrete. Assustada com o olhar, a criatura seafastou, fazendo o reitor dar uma risada. — São coisinhas frágeis, mas

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poderosas. Quem lhe deu este? Eu deveria ser informado toda vez quealguémconseguisseconjurarumdemônioforadasespéciesdecostume—estrondouoreitor.

—Arcturomemandou—disseFletcher,naesperançadequearespostafossesuficiente.

—Vocêoimpressionou,foi?Fazumbomtempodesdeaúltimavezqueum aprendiz foi enviado por ummago de batalha; dois anos, se nãomeengano.Vocêésortudo,sabe.Amaioriadosplebeusrecebedemôniosmaisfracos para começar. Um Caruncho, geralmente. Eles são mais fáceis decapturar, e, quando precisamos de um novo, um mago de batalha éescolhidoaleatoriamenteparaprovê-lo.Atarefanãoosdeixanumhumormuitogeneroso, infelizmente.Nãoéomelhorsistema,maséoúnicoquetemos. De qualquer maneira, eu vou ter uma conversinha com Arcturosobreisso.

Fletcher fezquesimcomacabeça,sempalavras,oque lherendeuumolharseveroporpartedoreitor.

— Aqui não tem essa coisa de assentir. Você diz “Sim, senhor, reitorCipião!”—exclamouohomem.

—Sim,senhor,reitorCipião!—repetiuFletcher,endireitando-se.—Ótimo.Agora,oquevocêquer?— indagouCipião, sereclinandona

poltrona.— Quero me alistar, senhor; aprender a ser um mago de batalha —

respondeuFletcher.—Bem,você jáestáaqui,nãoestá?Enfim,encerramosaconversapor

aqui. Amatrícula é amanhã, você pode oficializar tudo então— concluiuCipião, dispensando-o com um aceno. Fletcher saiu, pasmo. Tomou ocuidadodefecharaportadepoisdepassar,destavez.Tinhasidotudotãofácil. De alguma forma, tudo estava se encaixando perfeitamente; a sorteestiveraaoladodele,paravariar.

Jeffreylheaguardavadooutrolado,umaexpressãoansiosanorosto.

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—Tudobem?—perguntouele,levandoFletcherdevoltaàescadaria.—Mais que bem. Eleme deixou ficar— respondeu Fletcher com um

sorriso.— Não me surpreende. Precisamos de todos os conjuradores que

pudermos encontrar, e por isso começamos a fazer todas as mudanças.Garotas, plebeus, e até... bem... você verá. Não cabe a mim comentar—murmurou Jeffrey. Fletcher decidiu não insistir, preferindo se concentraremnãopisaremfalsonaescadaescura.

— Não tem muitas lareiras acesas ou tochas por aqui — observouFletcherenquantoelesescalavamosíngremesdegraus.

— Não, e o orçamento já está no limite mesmo sem elas. Quando osnobres chegarem, aí aqueceremos o prédio. Tudo tem que estar perfeitoparaelesoureclamamcomospais.Metadedelesnãopassadejanotinhasmimados,masnãomeentendamal, alguns sãocamaradasbemdecentes.—Jeffreyestavaofegante,e fezumapausaquandochegaramaoquintoeúltimo andar. Fletcher notou que o garoto era aindamaismagro que elemesmo,comcabeloscastanho-escurosquecontrastavamfortementecomapelepálida,quasechegandoaparecerdoentia.

—Está tudocertocomvocê?Nãomeparecemuitobem—perguntouFletcher. O outro rapaz tossiu e depois respirou de forma profunda eruidosa.

—Eutenhoumaasmaterrível,porissoelesnãomedeixammealistar.Masqueroajudarmeupaís,entãotrabalhoaqui.Vouficarbem,sóprecisodeumsegundo—explicouJeffrey,ofegando.

Fletcher sentiaum respeito crescentepelo rapaz. Elenunca se sentiraparticularmente patriótico, sendoPelego tão distante de qualquer cidadeprincipal,masadmiravaessacaracterísticanosoutros.

—NãoviodemôniodeCipião.Quetipoeletem?—perguntouFletcher,reiniciandoopapoquandoJeffreyvoltouarespirarnormalmente.

—Elenãotemmais. Já teveumFelídeo,masodemôniomorreuantes

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que o reitor se aposentasse. Dizem que a perda o deixou com o coraçãopartido.AgoraelesódáaulaeadministraaCidadela—contouJeffrey.

Fletcher se perguntou como seria um Felídeo. Algum tipo de gato,talvez?

Elescaminharamporcorredoressombriosatéaquinadocastelo,ondeoutraescadariaespiralavaparaoalto.Jeffreyaespioucomapreensão.

—Nãosepreocupe,eumevirodaquiemdiante.Ésóvocêmedizerparaondeir—sugeriuFletcher.

—GraçasaDeus.Vocênãotemcomoerrar;osalojamentosdosplebeusficambemnotopodatorresudeste.Voumandaralguémbuscarasroupassujas mais tarde; por enquanto, tem um uniforme de reserva em cadaquarto. Experimente um ou dois e veja qual serve. Você não quer ficarconhecidocomo“ofedorento”noseuprimeirodia—aconselhouJeffrey,jáseafastandoapressadamente.

Fletcher resistiu à tentação de gritar a pergunta que tinha surgidoespontaneamente em sua cabeça:Por que os plebeus tinham alojamentosseparados? O menino deu de ombros e começou a longa jornada escadacima, sabendo que, pelo que tinha visto do lado de fora, seria uma beladistância.

Em intervalos regulares a escadaria se abria em câmaras largas eredondas, cada uma cheia de escrivaninhas, cadeiras e bancos velhos,dentre outras quinquilharias. O vento entrava assoviando pelas seteirasnas paredes, gelando Fletcher até o osso e fazendo-lhe puxar o capuz devoltaparaacabeça.Eleesperavaqueestivessemaisquentenotopo.

Aosubiroquelhepareciaseromilésimodegrau,orapazouviuumavozdemeninoacima.

—Esperemaí,éumdoscriados.Achoquevãonoschamarparaocafédamanhã!—A voz domenino o lembrava Pelego; um sotaque parecidoqueindicavaqueelecresceranocampo.

— Estou morta de fome! Espero que não nos obriguem a comer em

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silêncioquenemdaúltimavez!—exclamouumavozdemenina.—Nem, foi só porque o velho rabugento do Cipião estava lá que eles

queriam que ficássemos quietos, mas ele reclamou tanto do frio que euduvidoquefaçaodesjejumnacantinadenovo—respondeuomenino.

Fletchercontournouacurvadaescadaechegounumgrandeaposento,quaseesbarrandoemumgarotocomcabelos loiro-claroseapelecoradadosnortistas.

— Opa, desculpe, colega. Acho que falei cedo demais. Aqui, me deixaajudarcomasmalas—disseomenino,pegandoabolsadeFletcher.

Este tirou a alça e deixouque o outro levasse a bagagemaumamesalonganomeiodosalão.

—RoryCooper, aoseudispor—disseomenino,apertandoamãodeFletcher.—Bem-vindoànossahumildemorada.

Eraumacâmararedondacomtetoaltoeduasgrandesportasdosdoislados da parede oposta. Pinturas de magos de batalha e seus demôniosdecoravamasparedes,comexpressõesseverasedesaprovadoras.Fletcherfezumacaretaquandooventoencanadodasseteirassoproupelosalão.

Umagarotalinda,comluminososolhosverdes,sorriuparaFletcheremmeioaummontedesardasecabelosruivosselvagens.Umdemônioazul,parecidocomumbesouro,bateuasasasnamesadiantedela.Outrodesses,comuma carapaça verde iridescente, pairava ao lado da cabeça deRory,preenchendoosalãocomumzumbidosuave.

OsdemônioserammaioresquequalquerinsetoqueFletcherjávira,tãograndesquemalcaberiamnamão.Tinhampinçasdeaparênciaferoz,comumacarapaçablindadaquebrilhavacomometalescovado.OdemôniodeFletchersemexeudentrodocapuzàpresençadeles,masnãoseinteressouosuficienteparasairdoesconderijo.

—MeunomeéGenevieveLeatherby.Eoseu?—perguntouamenina,lançandoumsorrisodeboas-vindas.

—Fletcher.Éumprazer conhecê-los. São sóvocêsdois?Euacheique

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haveria mais de nós... plebeus— indagou Fletcher, hesitando ao usar apalavra.

—Temmaisdenósnoandardebaixo,esperandonosalãodecafédamanhã, e os alunos do segundo ano comem depois de nós, então aindaestãodormindo.Decidimosesperaratéqueoscriadosviessemnoschamar,porqueohoráriodo cafénão foimuito consistente até agora—explicouGenevieve, pensativa. — Achei que haveria mais estudantes também,quando cheguei aqui.Mas só há cinco de nós no primeiro ano, incluindovocê. Acho que eu não deveria estar surpresa, pois foi a falta deconjuradores o motivo principal de eles terem deixado mulheres sealistaremnoexércitohátantosanos...

—Temsete,sevocêcontarosoutrosdois—interveioRory.—Ouvimosasvozesdelesontemànoite,masaindanãosaíramdosquartos.Nãosabemquantadiversãoestãoperdendo—comentouelecomumsorrisolargo.—Elesvãoserender.Todomundoacabameamando.

— Deixa de ser metido, você é muito besta e irritante, isso sim —provocouGenevieve, empurrando-ode formabrincalhona.RorydeuumapiscadelamarotaparaFletchereapontouaportamaisdistante.—Porquevocê não se apresenta? Talvez perguntar se eles querem vir tomar caféconosco.

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18

Fletcherempurrouaportaesedeparoucomumcorredorcurto,comumafileira de portas de cada lado. A porta de entrada bateu atrás dele,empurrada por uma rajada de vento vindo de uma seteira no fim docorredor.Fletcherfranziuocenhoaovê-la;aqueleseriauminvernolongoegélidoseaquilocontinuasseassim.

Orapazouviumovimentonoquartomaispróximoebateu,naesperançadequenão estivesse acordandoninguém.Aporta se abriu ao seu toque,talvezsopradapelovento.

—Olá?—chamou,empurrando-a.Subitamenteseviucaídodecostasnochão,comdentescheiosdebaba

mordendo o ar logo acima de si enquanto um peso enorme o prendia.Fletcher conseguiu segurar a criatura pela garganta, mas precisou usartoda a sua força para evitar que as presas dela se fechassem no seupescoço. Enquanto a saliva do bicho pingava no rosto do rapaz, seudiabrete guinchou e atacou o focinho do monstro com as garras, mas oúnicoefeitofoifazeracriaturaganirdedorcomcadarilhardedentes.

—Chega,Sariel!Eleaprendeualição—disseumavozmelodiosavinda

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de cima. Imediatamente, a criatura interrompeu o ataque e se sentou nopeito de Fletcher. Ainda indefeso, o rapaz espiou seu algoz, e viu umCanídeo quase tão grande quanto Sacarissa: do tamanho de um pôneipequeno. Porém, enquanto a pelagemdo Canídio de Arcturo era negra ecrespa,este tinhapelos loiroseencaracoladoscomoasmadeixasdeumadamadeCorcillum.Ofocinhotambémeramais longoerefinado,comumnarizpretoeúmidoqueofarejava.

— Tire esse bicho demim!— conseguiu exclamar Fletcher por entredentescerrados.Eracomoseumaárvoretivessecaídoemcimadeleelheesmagasseopeito.

Acriaturadesceudecimadorapazesesentouofeganteatrásdaporta,comosquatroolhosmalévolosaindafixadosemseurosto.

—Vouescreverumacartaaoschefesdosclãssobre isto!Fuicolocadacomosplebeusnumquartomenoremenos confortávelqueumaceladecadeia,quefoiobviamenteinvadidoporumjovemrufiãologonaprimeiramanhã.QuandomederamSariel,comeceiapensarqueestivessemlevandonossasnegociaçõesdepazasério.Agoraseiqueestavaenganada—ralhouavoz,carregadadeamargoreraiva.

Fletchersesentouecontemplouadonadavoz,estonteadopelosangueque lhevoltavaàcabeça.Omeninoarregalouosolhosaonotaras longasorelhas em forma de diamante que despontavam por entre os cabelosprateados.Umrostodelicadooencaravacomgrandesolhosdacordeumcéuazullímpido.Estavamcarregadosdedesconfiançaepareciamquaseàbeira das lágrimas. Fletcher estava conversando comuma pálidameninaelfa,vestidacomumacamisolarendada.

Orapazdesviouoolharevirouorosto,falandoemdefesaprópria:—Calmalá,eusóqueriadizeroi.Nãoquisassustarvocê.—Meassustar?Nãoestouassustada,estoufuriosa!Ninguémlheavisou

queesteeraoalojamentodasmeninas?Vocênãotempermissãodeentraraqui — gritou a elfa como uma banshee, batendo a porta na cara de

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Fletcher.Elexingouaprópriaestupidez.—Seuidiota—murmurouasimesmo.— Parece que não foi muito bem— comentou Rory atrás dele, uma

expressão de solidariedade no rosto ao espiar pela porta que levava aosalãocomum.Fletchersesentiaumidiota.

—Por que você nãome avisou que aqueles eram os alojamentos dasmeninas? — estourou Fletcher, ficando vermelho ao voltar ao salãoprincipal.

—Eunãosabia,juro!Achoquefazsentido,né,agoraquepensomelhor,comGenevievenesteladoeumquartosobrandodooutro...—disseRoryatrásdele.

— Tudo bem. Só não esqueça de ficar mais esperto antes das aulascomeçarem, ou vai fazer a gente passar vergonha diante dos nobres —afirmou o rapaz, arrependendo-se de suas palavras imediatamente. AexpressãoanimadadeRorydesapareceu,eFletcherrespiroufundo.—Foimal, não foi culpa sua. Não é todo dia que sobrevivo a um ataque deCanídeo. — Forçou um sorriso e deu tapinhas amistosos nas costas deRory.—Vocêestavadizendoalgumacoisasobreumquartosobrando?

—Sim!Jáquevocêfoioúltimoachegar,osmelhoresquartosjáforamocupados.Deiumaolhadaquandocheguei,enãoégrandecoisa.

Eles entraram num corredor quase idêntico, exceto por uma portaadicional que tinha sido construída bem ao final. Parecia uma decisãotardia, mais um armário de limpeza reformado do que um quarto deverdade.

MasoladodedentroeramaisespaçosodoqueFletchertinhaesperado,comumacamadeaparênciaconfortável,umguarda-roupagrandeeumaescrivaninhapequena.Omeninofezumacaretaàseteiraabertanaparede;teriade tampá-ladepois.Haviaumuniformedobradonopédacama,umjaquetãoazul-marinhocomduasfileirasdebotõesecalçasdamesmacor.Fletcherergueuotrajeegemeu.Estavapuídoerasgado,comosbotõesde

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latão tão frouxosqueumdeles estavapenduradoquase três centímetrosabaixodolugarcerto.

— Não se preocupe, posso dar uma olhada nessa jaqueta para vocêdepoisdocafé.Minhamãeeracostureira—disseGenevieve,daporta.

—Obrigado—respondeuFletcher,mesmosemsaberseseriapossíveldefatosalvarouniforme.

— Então, como era a menina? — inquiriu Genevieve, com olhosfaiscantesdecuriosidade.—Eraumasulista,quenemeu?

—Elaera...nãoseidizerexatamente—despistouFletcher,evitandoapergunta. Agora que já tinha arruinado a manhã da garota, não queriacomeçar a fofocar sobre ela também.Melhor deixar que se apresentasseaos outros à sua própria maneira. A mente do rapaz ainda estavaprocessando a presença de uma elfa na Cidadela. Eles não eram osinimigos?

Ospensamentosforaminterrompidospelosurgimentododiabrete,quepuloudocapuzparainspecionaranovamorada.Odemoniozinhoderrubououniformeno chão comuma chicoteadado rabo, em seguida cantaroloufeliz ao rolar de costas e se esfregar no tecido áspero.Rory arregalouosolhoseFletchersorriuconsigomesmo.

—OqueéumCanídeo?—ponderouRoryemvozaltaenquantoosdoisvoltavam à câmara principal. Logo foram seguidos pelo diabrete, queescalou até o ombro de Fletcher e vasculhou o ambiente com um olharprotetor.

— Você logo vai descobrir. Não são fáceis de descobrir. Se os seusCarunchos são demônios-besouros, então eu diria que um Canídeo é umdemônio-cachorro,seéqueissofazsentido—explicouFletcherorgulhoso,felizemfinalmentesabermaissobreconjuraçãodoqueoutrapessoa.

— Nossos demônios são chamados de Carunchos? — indagouGenevieve,estendendoapalmaedeixandoobesouroazulpousaremsuamão.

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— Não tenho certeza; ouvi o reitor usar essa palavra — respondeuFletcher,sentando-seàmesa.

—Ah,bem,euchamoomeudeMalaqui.Comoemmalaquita.Sabe,porcausa da cor — decidiu Rory, deixando o besouro verde lhe subir pelobraço.

—AminhasechamaAzura—declarouGenevieve,erguendoodemôniocontra uma das tochas para que Fletcher pudesse ver o azul cerúleo dacarapaça. O rapaz fez uma pausa, sentindo-se constrangido enquanto osdoisoencaravamcomexpectativa.

— Como o seu se chama?— perguntou Rory, como se Fletcher fosselerdo.

— Eu... Eu não tive bem uma chance de escolher um nome, ainda—murmurouemresposta,envergonhado.—MasseiqueeleéumdemônioSalamandra.Talvezvocêspossammeajudaraescolherumnomeduranteocafédamanhã.

—Éclaro!Eletemumacor linda;seiqueagenteconseguepensaremalgumacoisa!—exclamouRory.

— Será que a gente poderia evitar as cores? — sugeriu Fletcher, naesperança de escolher um nomemais original.— Ele é um demônio defogo.Talvezpossamosusarisso.

Antes que Rory pudesse responder, uma governanta de aparênciasevera entrou no aposento com um cesto pesado de lençóis e roupas decama.

—Foradaqui,todomundo!Precisoarrumaroalojamento.Vocêspodemesperarláembaixocomosoutrosemvezdesemeterememencrencasaquiemcima—ralhouela,enxotando-osparaasescadas.

— Será que a gente deveria avisar os outros dois? — perguntouGenevieve,olhandodevoltaparacimaenquantoelesdesciam.

— Não — retrucou Fletcher, na esperança de evitar a elfa por pelomenosmaisalgunsminutos.—Agovernantavaiavisá-losquandochegar

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aosquartosdeles.Osoutrosderamdeombroseoguiarampelo longocaminhocorredor

abaixo,sugerindonomes.OdiabretedeFletchervoltouadormircomumbocejo, alheio ao debate. O rapaz estava começando a se perguntar seestariapermitindoqueodemônioficassepreguiçosoenquantoobservavaMalaquieAzuraesvoaçandoaoredordascabeçasdosdonos.

Eles finalmente chegaram ao térreo, e Fletcher foi guiado pelo átrio,balbuciando um pedido de desculpas silencioso para Jeffrey, que aindaestavapolindoochãoemqueotriopisava.Omeninorevirouosolhoscomumsorrisotristeevoltouaotrabalho.

Elesatravessaramopardegrandesportasqueficavadoladoopostodaentradaprincipalnoátrio.O teto tornou-se substancialmentemaisbaixo,porém ainda assim era um espaço enorme em que os passos do trioecoavam.Grandescandelabrosapagadospendiamemintervalosregularessobretrêsfileirasdelongasmesasebancosdepedra.Ocentrodoaposentoera dominado pela estátua de um homem barbudo vestindo armaduraelaborada,esculpidacomumaatençãoespantosaaosdetalhes.

Fletcher ficou surpreso ao ver apenas dois meninos sentados ali,engolindo com prazer colheradas de mingau de aveia. Um tinha cabelosnegrosepelemorena;provavelmentevinhadeumadasvilasnoslimitesdodeserto de Akhad, no leste de Hominum. Era bonito, com queixo bemdefinidoeolhoscheiosdevidaemolduradosporlongoscílios.

O outro rapaz era gorducho, com cabelos castanhos bem curtos e umrostoamistosoecorado.Osdoisacenaramparaeleenquantoumcriadolheentregavaumabandejademingau,geleiaepãoquente.AssimqueFletchersesentou,osdoisseapresentaram;omeninogordinhosechamavaAtlaseooutro,Serafim.

— São só vocês dois? Cadê os alunos do segundo ano? — indagouFletcher,confuso.

— Nós comemos antes deles, graças aos céus! — resmungou Atlas,

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abandonandoacolherparasorveromingaupelabeiradadatigela.—Elesprecisamdosonoadicional,considerandoodesgastedaslições

mais...práticas—explicouSerafim,observandoAtlascomumaexpressãoperplexa. — Eles fazem até excursões semanais à fronteira. Mal possoesperarparaestarnolugardeles.

—Esperesóatévocêtervistocomosãoascoisasporlá—murmurouGenevieve, com um tom de tristeza na voz. Fletcher percebeu e decidiumudardeassunto.Eleconheciaosuficientesobreaslinhasdefrenteparaser capazdededuzir que ameninaprovavelmentehaviaperdido alguémpróximo.Talvezfosseumaórfã,comoele.

—Cadêosseusdemônios?VocêsreceberamCarunchoscomoosoutros?—Fletcherestavadesesperadoparavermaisdemônios.

— Não, nada ainda — respondeu Atlas, com um toque de inveja. —Ainda estamos esperando. Disseram que os professores vão nos dar osnossosamanhã.Elessótinhamdoisnodiaquetodosnóschegamos.

—Foimelhorassim—comentouSerafim,meioparasimesmo.—ElesmeperguntaramseeuqueriaficarcomumdosCarunchosouesperar.Fizomeudeverdecasa,faleicomalgunsdoscriados.OsCarunchossãoosmaisfracos.Émelhoresperarpelachancedeconseguirumacriaturamelhor.

Fletcherficouintrigadocomamençãoademôniosmelhores.Tentouselembrar do que tinha visto de relance nas pinturas e esculturas pelocastelo.SeaomenosJeffreynãoestivessecomtantapressanaquelahora...De qualquermaneira, ele teria tempo o bastante para esse tipo de coisamaistarde.

—Poiseunãoteriafeitonadadiferente—retrucouRory,nadefensiva.—NãotrocariaMalaquipornada.

Serafimergueuasmãos,comoseestivesseserendendo.— Não quis ofender. Tenho certeza de que vou ter os mesmos

sentimentos em relação ao meu demônio quando recebê-lo, seja ele umCarunchoouqualqueroutrotipo.

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Rorygrunhiuevoltouàrefeição.—Queoutrostiposdedemôniovocêconhece?Sóouvifalardequatro—

perguntou Fletcher a Serafim, que parecia ser omais bem informado dogrupo. Mas antes que o belo rapaz pudesse responder, Atlas ofegou deespanto. Um anão tinha entrado no refeitório... e trazia um demônioconsigo.

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19

OanãotinhaumaaparênciamuitosemelhanteàdeAthol,combarbaruivae um corpo atarracado e troncudo. Encarou os outros estudantes pordebaixodasgrossassobrancelhas,entãoaceitouumabandejadasmãosdeumcriadonervoso.MesmoqueFletchertivessecertezadequeoanãoeraafonte da fascinação de todos os outros, ele estava mais interessado nodemônioqueoseguia.

Com 1,20 metro de altura, a criatura teria a forma de uma criançapequena,nãofossepelasilhuetaatarracadaeosmembrosrobustos.Porém,omaisfascinanteeraasuacoloração.Acriaturapareciaserfeitaderochamalformada, um efeito tornado aindamais impressionante pelomusgo elíquen que cresciam em sua superfície. As mãos eram como luvas decozinha, com um grosso polegar opositor que poderia ser usado parasegurarcoisas.Comcadamovimentododemônio,Fletcherouviaoraspartediosodepedracontrapedra.

Enquantoosplebeusofitavam,odemônioseviroueosencaroudevoltacomumpardeolhinhosnegrosprofundos.

—UmGolem!Estes sãodifíceis de capturar.Os criados contaramque

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eles crescem com o tempo, então você precisa pegá-los ainda jovens—sussurrouSerafim.—Esperoqueeuganheumdeles.

—Poucoprovável—retrucouAtlas.—ElesdevemterdadooGolemaele como um favor ao Conselho Enânico, um gesto de boa vontadeenquantoosanõessão incorporadosaoexército.Não tinhame tocadodequeelestinhamsidoaceitosemtodososníveisdoserviço.Deussabecomoelesiriamcavalgarseentrassemparaacavalaria;aquelasperninhascurtasmalconseguiriamsegurarosflancosdeumcavalo.

Atlas riu com a imagem. Fletcher o ignorou, fitando o anão sentadoencurvadoesozinho.Orapazselevantou.

— O que você está fazendo? — sibilou Rory, agarrando a manga deFletcher.

—Voumeapresentaraele—explicouooutro.—Vocênãoviucomoelenosolhou?Achoqueprefereficarsozinho—

gaguejouGenevieve.Fletcher se soltou do aperto de Rory, ignorando os outros. Ele tinha

reconhecidoa expressãode ressentimentono rostodoanãoquandoesteentrara.Oprópriorapaztinhasentidoaquiloeváriasvezesantes,quandoeramarginalizadopelasoutrascriançasdePelego.

Quando o menino se aproximou da mesa, o Golem ribombouameaçadoramente, a cara rochosa seabrindopara revelarumaboca semdentes.Apreensivo,oanãosevirouaoouviroruído.

—MeunomeéFletcher.—Eleestendeuamãoparaoanão.—Otelo.Oquevocêquer?—perguntou,ignorandoocumprimento.— Prazer em conhecê-lo. Por que não se senta conosco? Tem muito

espaçosobrando—sugeriuFletcher.Oanãoolhouparaosoutros,queosencaravamdaoutramesacomexpressõesdereceio.

— Estou bem aqui. Obrigado pelo esforço,mas sei que não sou bem-vindo—resmungouoanão,sevoltandoparasuarefeição.Fletcherdecidiufazerumaúltimatentativa.

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—Éclaroqueébem-vindo!Vocêvai lutar contraosorcs assimcomotodosnós.

—Você não entendeu. Não sou nada além de um gesto simbólico. OsgeneraisdeHominumnãopretendemdeixarqueentremosparaasforçasarmadas para valer. Eles mandam a maior parte dos nossos recrutas àfrente élfica para apodrecer com o refugo. O rei teve boas intenções aoforçá-losanosaceitar,masaindasãoosgeneraisquedecidemoquefazerconosco. Como vamos mudar a opinião deles se eles não nos deixaremlutar?—murmurouOtelo,paraquesóFletcherpudesseouvir.

—Vocansrecebeumeninaseplebeustambém.Defato,todomundoquevocê vê aqui é plebeu. Os nobres vão chegar amanhã — respondeuFletcher,abrindoocoraçãoaoanão infeliz.Elepausouporummomento,entãoseinclinoumaisparapertodoanãoesussurrou:—Elesprecisamdeadeptos,nãoimportadeondeelesvenham.Tematéumaelfa!Nãoachoquea divisão demagos de batalha sejamuito seletiva, desde que você possalutar.

Otelo sorriu com tristezaparaFletcher. Em seguida, pegou amãoquelheforaoferecidaeaapertou.

— Eu sei sobre a elfa. Nós tivemos uma... conversa interessanteenquanto esperávamos para ganhar nossos demônios. De qualquermaneira,esperoquevocêestejacerto.Lamentopelaminhagrosseria;devotersoadopretensiosamenteinsensível—disseOtelo,pegandoabandeja.

—Nãosepreocupe.Conhecioutroanãoontem,eeletinhaumaopiniãomuito parecida com a sua. Ele me deu uma coisa — contou Fletcher,puxandodobolsoocartãoquetinhaganhado.

—Guarde isso agora!— sibilou o anão emvozbaixa assimque viu ocartão.Fletcherometeudevoltanascalças.Qualeraoproblema?

Elessesentaramàmesacomosoutros,aconversalogosendoabafadacomachegadadoanão.Fletcherapresentoutodos.

—Bomdia—saudouOtelo,desajeitado,acenandocomacabeçapara

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cadaum.Eles acenaramdevolta emsilêncio.Depoisde alguns instantes,Rorycomeçouafalar.Fletchertinhaaimpressãodequeomeninoodiavasilênciosconstrangedores.

—Olha,voutecontar,euqueriapoderdeixarcrescerumbigodedesses.Vocêsempreteveum?—indagouRory,passandoamãonorostoliso.

— Se quer saber se nascemos barbudos, a resposta é não— explicouOtelo, abrindo um sorriso irônico.—Nós acreditamos que cortar nossospelos e cabelos é um pecado contra o Criador. Fomos feitos exatamentecomo ele queria que fôssemos. Se ele nos deu pelos, então temos quemantê-los.

—Entãoporquevocêsnãodeixamasunhascresceremtambém?Parecemaluquice para mim— retrucou Atlas bruscamente, apontando para osdedosatarracadosmascomunhasbemaparadasdeOtelo.

—Atlas!—ralhouGenevieve.—Tudobem,éumapergunta justa.Consideramosapartecinzentada

unhamortae,portanto,nãomaispartedenós.Claroqueissotudoévistomais como tradição do que crença religiosa hoje em dia: muitos anõesaparamabarbaeoscabelos;algunsdosmaisjovensatéaspintam.Issoéconhecimento comum em Corcillum. De onde vocês vêm? — perguntouOtelonumavozcontrolada.

—Soudeumaviladooeste,pertodomarVesaniano—respondeuAtlas.—VocêénativodeCorcillum?

Otelofezumapausa,parecendoconfuso.Serafimrespondeuporele.—Osanõesjáestavamaquiantesqueoprimeirohomempisassenestas

terras.Elesderrubaramasflorestas,aplainaramosvales,desviaramosriose até mesmo plantaram os grandes marcos de pedra que mapeiam oterritóriodeHominum.

Otelo sorriu, como se impressionado pelo conhecimento que o jovemplebeutinhadoseupovo.

— A humanidade chegou aqui dois mil anos atrás, depois de

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completarem a longa jornada através do deserto de Akhad— continuouSerafim,encorajadopelaatençãototaldosoutros.—Corcillumeraacapitalenânica, então nós viemos morar com eles, trabalhando e comerciando.Masumadoençaterrívelvarreuacidade,etemumefeitoparticularmenteforte contra os anões. Logo depois, nosso primeiro rei assumiu o poder,com ajuda daqueles que hoje são as famílias nobres. Eram um pequenogrupodeconjuradoresquecomandavamdemôniospoderosos,muitomaisfortes que as criaturas controladas pelos conjuradores modernos. É porissoquetodaarealezaeanobrezasãocapazesdeconjurar;elesherdaramashabilidadesdeseusancestrais.

—Épor isso tambémquenósnosrebelamoscomtanta frequência—acrescentou Otelo em voz baixa. — Um ato imensamente tolo,considerandoquesomostãopoucosenãotemosconjuradores.Nuncanosrecuperamosemnúmerosdepoisdapeste,graçasà leibaixadasobrenóspelosancestraisdoseurei.Temosquevivernosguetosesópodemosterumnúmerolimitadodefilhosporano.Nãopodemosnemternossaprópriaterra. A realeza diz que somos os responsáveis pelo nosso próprioinfortúnio,depoisdetantasrebeliões.

Umclimasombriobaixousobreosoutros,masFletchersentiaraiva,amesmaraivaquelheforaprovocadapelasinjustiçasdeDidric.Aquiloera...desumano!Ahipocrisiadasituaçãooenojava.Então tinhasidodissoqueAthol falara. Altas abriu a boca novamente, com uma expressão dediscordâncianorosto.

— Então, Serafim, você disse que fez o dever de casa — interveioFletcher,antesqueAtlaspudessecomeçarumadiscussão.—Conte-nosumpoucosobreoquedevemosesperaraolongodospróximosmeses.

Serafimseinclinouparaafrenteechamoutodomundomaisparaperto,sorrindocomaoportunidadedemostraroquantotinhaaprendido.

—Elessãomuitojustosaqui.Aspatentessãoconferidasdeacordocomo mérito, então quanto melhor for o seu desempenho nas provas e nos

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desafios,maisaltaasuapatentedeoficialquandoseformar.Oproblemaéquenós, plebeus, já saímos emdesvantagemnessadisputa.Osdemôniosque recebemos não são particularmente fortes, enquanto os nobresganham as criaturas dos pais, que se esforçam mais em capturar serespoderososparaosfilhos.Algunssãoatéafortunadosobastantedereceberumdos demônios particulares da família,mas isso é raro.Não seimuitosobreodemôniodeFletcher,nuncaviumdessesantes.Mas,Otelo,oseuserá muito poderoso quando estiver completamente crescido, pelo queouvidosGolens.

—Então...nóssempre teremossóosnossosCarunchos?—perguntouGenevieve,confusa.

—Nãonecessariamente— respondeu Serafim.—Épossível capturaroutrodemôniomaispoderosonoéter e acrescentá-lo ao seu rol.Não seimuitosobrecomoissoéfeito,eaparentementeémaisdifícileperigosodese fazer com demônios mais fracos. Estou torcendo para ganhar algomelhor que um Caruncho. Eles são ótimos batedores e têm ferrões bemfortes, mas seus níveis de mana são bem baixos, e fisicamente não sãopáreosnemparaumfilhotedeCanídeo.

—Entendi—disseGenevieve, parecendoumpoucomenosorgulhosade Azura enquanto a criatura decolava e esvoaçava pelo salão. Todosobservaram o bicho pousar na enorme estátua no centro do salão,caminhandoatéoolhodepedradohomem.

—Queméessecara,afinal?—perguntouFletcheratodosàmesa.—Essaeusei—respondeuOtelo,apontandoaplacasobaestátua.—É

Ignácio,obraçodireitodoreiCorwinefundadordaAcademiaVocans,notempoemqueelanãopassavadeumabarracanumcampo.ElemorreunaPrimeira Guerra Órquica uns dois mil anos atrás, mas lhe atribuem omérito de ter liderado a carga suicida que rompeu as fileiras dos orcs eacaboulevandoàderrotadeles.

—Éisso!—exclamouFletcheremvozbaixa,olhandoparaodiabrete.A

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criaturatinhadescidopelobraçododonoeestava lambendocomalegriaosrestosdemingaunatigela.

—Oquefoi?—indagouRory.—Ignácio.Assimquevoubatizarmeudemônio.

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20

Ao fim do café da manhã, os outros decidiram voltar aos quartos paradormirmaisumpouco,masFletcherodiavaaideiadeficarsentadonofrio.A conversa que tinha se desenrolado durante a refeição fizera o rapazperceberquãopoucoelesabiasobreaquelelugar.FletcherprecisavaacharJeffrey.SeSerafimtinhaaprendidotantosobreaCidadelacomoscriados,eletambémextrairiaomáximodeinformaçõesquepudessedaquelafonte.Fletcherestavacomsorte;Jeffreyaindaestavapolindoochãodoátrio.

—SeriamuitoabusoseeupedisseavocêparamemostraraCidadeladenovo?Nãofazmuitosentidovocêlimparopisoagora,jáquevaificarsujode novo quando os alunos do segundo ano descerem para o café —argumentouFletchercomocriado,quejápareciacansado.

—SóestoupolindoochãoparaqueoSr.Mayweathernãogritecomigo.Seeupuderdizerqueestavaguiandoumaprendizpelocastelo,entãoestouliberado!Vamossópegarlevenasescadasdestavez—respondeuJeffrey,sorrindo.—Oquevocêgostariadever?

—Tudo!—retrucouFletcher.—Tenhoodiainteiro.— Então eu também tenho. — Jeffrey estava animado. — Vamos

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começarpelasaladeconjuração.Asalaficavanomesmoandar,naalaoriental.Asgrandesportasdeaço

eramdifíceisdeabrir,eorangerdasdobradiçasenferrujadasecooupeloátrio. Jeffrey pegou uma tocha num suporte do lado de fora e levou oaprendiz para dentro, iluminando o caminho com a chama alaranjada etremeluzente.Assolasdasbotaspareciamgrudarnopisoque,sobexamemaispróximo,mostrou-sefeitodepesadastirasdecouro.Haviaumgrandepentagramapintadonomeiodoaposento, o epicentrodeumaespiraldeestrelas gradualmente menores. Cada uma era cercada pelos mesmossímbolosestranhosqueFletchertinhavistonolivrodoconjurador.TalvezfossemaquelasaschavessobreasquaisJamesBakertinhaescrito?

—Porquecouro?—perguntouFletcher.— Os pentagramas e símbolos precisam ser desenhados em algo

orgânico, ou não funcionam. Nós usávamos madeira, mas ela semprequeimavaeprecisavasersubstituída.Oreitordecidiuquecouroeraumaideia melhor. Vem funcionando bem até agora; ele fica fumegando eesbraseandoumpouco,eocheiroéhorrível,masmesmoassimémelhordoquecorreroriscodeumincêndiotodavezqueumdosdemôniosentranoéter.

—Eunãofaziaideia!—exclamouFletcher,examinandoumafileiradeaventaisdecouropenduradosemganchosaoladodaporta.

—Nãoseimuitomaissobreesteaposento.Seriamelhorvocêperguntaraumdosalunosdosegundoano,maseunãoperderiatempo.Acompetiçãoporpatenteséferoz,eelesnãogostamdeajudaroscalouros.Assimevitamquevocêroubeumapromoçãoquepoderiatersidodeles.Odeioessejeitodepensar,maso reitordissequeas coisas sãobrutalmente competitivasnas linhas de frente, então por que não dar um gostinho disso aosaprendizesaqui?

Jeffreyficoupelaporta,recusando-seaexplorarosalão.—Vamos.Esselugarmedáarrepios—murmurou.

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OcriadolevouFletcheraocorredoreosdoissubiramaosegundoandardaalaoriental.

— Esta é a biblioteca. — Jeffrey empurrou a primeira porta. — Meperdoepornãoentrar.Apoeiraéterrívelparaaminhaasma.

Oaposentopareciatãoprofundoelongoquantooátrioeraalto.Haviafileirasemaisfileirasdeestantesdelivrosalinhadasnasparedes,cheiasdetomos ainda mais grossos do que aquele escondido no fundo da bolsadeixadaporFletchernoalojamento.Longasmesasseestendiamentrecadaestante, com velas apagadas dispostas a intervalos regulares sobre seustampos.

—Hámilharesdeensaiosetextosteóricosescritospelosconjuradoresde outrora. A maioria é de diários, com datas espalhadas ao longo dosúltimos mil anos, mais ou menos. Este lugar não é muito usado,considerandoquejátemtantotrabalhoaserfeito,mesmosemasleiturasextras. Mas alguns alunos vêm aqui em busca de dicas e truques,geralmenteosplebeusquenãotêmdinheiroparagastaremCorcillumnosfins de semana— explicou Jeffrey, encostado à porta. — Eles precisamcorreratrásdequalquermaneira;osnobressemprechegamsabendomaisqueeles,tendocrescidocomodometal.

— Fascinante — comentou Fletcher, espiando as pilhas de livros. —Estou surpreso que esta biblioteca seja usada tão raramente.Deve haverumverdadeirotesourodeconhecimentoporaqui.

Jeffreydeudeombrosefechouaporta.—Eunãosaberiadizer,masachoqueoensinonestaescolase tornou

muito mais prático, por necessidade. Simplesmente não há mais tempoparapesquisaseexperimentos;elessóseimportamemdespacharvocêsàlinhadefrenteomaisrápidopossível.

Aosaíremdosaposentos,Fletcherviuumgrupodemeninosemeninaspassandopelocorredor.

—Essessãoosalunosdosegundoano—contou Jeffrey, indicando-os

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comumacenoda cabeça.—Tiveramumanomuitodifícil.A competiçãopor patentes está mais feroz do que nunca. Agora que os criminososprovavelmente serão alistados no exército, além dos anões, esses novosbatalhões vão precisar de oficiais. E os alunos que não tiverem um bomdesempenho, serãoescolhidospara liderar essas tropas emcombate... ouvãoapodrecercomelesna frenteélfica.—Fletchernãoachavaqueseriatãoruimlideraranõesemcombate,masnãopretendiacomeçarumdebatecomJeffrey;nãoenquantoaindatinhatantoaaprender.

O rapaz fitou os alunos veteranos conforme eles desciam as escadasescuras,semdemônios.Pequenasesferasdeluzflutuavamaoredordesuascabeçascomovaga-lumes,emitindoumbrilhoazuletéreo.

—O que são aquelas luzes? E cadê os demônios deles?— perguntouFletcher conformeelee Jeffreyos seguiamescadaabaixo.Osveteranosoignoraram,esfregandoosolhosemurmurandoentresi.

—Demôniosnãosãopermitidosforadosalojamentosedasaulas.Elesvãoteexplicaressascoisasassimquetodososcalourostiveremchegado.Apesardeeunão fazeramenor ideiadeaondeosdemôniosvãoquandonãoestãocomseusconjuradores.Quantoàsluzes,sãochamadasdefogos-fátuos.Éumadasprimeirashabilidadesqueensinamaosaprendizes,acho.Em alguns dias vocês todos estarão fazendo essas coisas zanzarem paracimaeparabaixo.

—Malpossoesperar—comentouFletcher,espiandoasbolinhasazuisdeluzenquantoelasflutuavamsemdestinopeloátrio.—Nãomeespantaquesóhajaumavelanosnossosaposentos.

Jeffrey o arrastou do átrio, descendo por uma escadaria ao lado daentradadasaladeconjuração.

— O castelo é enorme, mas a maioria dos aposentos é usada comoacomodação para os nobres, professores e criados. O resto fica vazio ouservecomodepósito,excetoporalgumassalasdeaula—explicouJeffreyenquantoospassosdeambosecoavampelosdegrausescuros.

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Quando chegaram ao final das escadas, a primeira coisa que Fletcherpercebeu foi uma sequência de grilhões incorporados às paredes de umlongoeúmidocorredorqueseestendiapelastrevas.Aoatravessarolocal,o rapaz viu dúzias de celas de prisão apertadas e sem janelas, com nomáximo1metrodelargura.

—Quelugaréeste?—indagouFletcher,horrorizado.Ascondiçõesparaaspessoasaprisionadasdaquelejeitoteriamsidoinsuportáveis.

—EstapartedaCidadelafoiconstruídanoprimeiroanodaguerra,oitoanosatrás,paraosdesertores.Nãosabíamosoqueesperar,entãosempreque as tropas eram enviadas para as linhas de frente, nós nosassegurávamosdequedormissemaquiembaixonanoiteanterior.Assim,elessaberiamoqueosaguardavasefugissemporcovardia.Sórecebemosalgumas poucas dúzias de prisioneiros nos primeiros dois anos, ou pelomenos é o que me dizem. Hoje em dia, desertores são simplesmenteaçoitados quando são pegos e mandados de volta à guerra. — Jeffreypassouamãopelasbarrasdeferroenquantofalava.Fletcherestremeceueoseguiupelolongocorredor.

Ficou surpreso quando o túnel claustrofóbico se abriu num aposentoenorme.Tinhaoformatodointeriordeumcoliseu,comanéisconcêntricosde escadas que também serviam como assentos, circundando uma áreacompiso de areia. Fletcher estimou que poderia facilmente receber umaaudiênciadequinhentaspessoas.

— O que diabos isto está fazendo aqui? — indagou. Certamente nãopoderia haver nenhuma explicação para uma arena gladiatória comoaquelanoporãodaCidadela.

—Oque você acha,menino?—veio uma voz roufenha atrás dele.—Execuções, para isso que ela está aqui. Para dar alento aos soldados eaprendizes, sempre que capturássemos um orc, ao verem o monstromorrercomoqualqueroutracriatura.

Fletcher e Jeffrey giraram, deparando-se com um homem grisalho e

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quase banguela, apoiado num cajado. Ele não tinha o pé nem a mãodireitos, substituídos por uma perna de pau grossa e um ganchoterrivelmente afiado. Ainda mais estranha era sua armadura de cota demalha do exército antigo, resplandecente no verde-escuro e prateado deumadasvelhascasasnobres.

—Éclaroquenuncafoiusado—disse.—Queméquejáouviufalardeumorcsendocapturadovivo!

Elegargalhouconsigomesmoeestendeuamãoesquerda,queFletcherapertou.

—Capturamosalgunsgremlins,masvê-losseencolher,tremendonumcantoemijandonastangasnãoeramuitogratificante.Elesprovavelmentetêm uma rixa mais séria com os orcs do que a gente, já que sãoescravizados e tal — contou o homem, mancando pela arena. — Bem,vamos lá, vamos ver o que você é capaz de fazer com esse khopesh. Fazmuito tempo que não vejo um desses— chamou, brandindo o cajado eapontandoparaaespadadeFletcher.—Possoterperdidominhamãoboana guerra, mas ainda posso lhe ensinar uma ou duas coisinhas com aesquerda.Diabos,eutenhoquepoder;éomeutrabalho,nãoé?

—Quemdiaboséessecara?—sussurrouFletcher,perguntando-sequetipode loucoescolheriapassarseutempolivrenasmasmorras. Jeffreyseinclinouemurmuroudevolta:

—EsseéSirCaulder.Éomestred’armas!SirCaulder riscouuma linhanaareiacomocajadoechamouFletcher

maisparaperto.—Vamoslá.Possoserumaleijado,mastenhomaisoquefazer.Fletcher pulou para a arena e avançou até o mestre, pedindo

mentalmente a Ignácio que ficasse ao lado de Jeffrey. Sir Caulder piscouparaeleeergueuoganchonumasaudaçãodebrincadeira.

—Sei reconhecer um futuro oficial quando o vejo,mas será que vocêlutacomoum?

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— Não quero machucar o senhor. Esta espada é afiada — avisouFletcher,soltandoaarmadocintoeerguendoparaqueovelhoavisse.Eraa primeira vez que ele realmente empunhava aquela arma nas mãos. Aespadaeramuitomaispesadadoqueeleesperava.

—Sim,possoservelho,mascomaidadevemaexperiência.Estecajadoaquiéduasvezesmaisperigosonaminhamãoúnicadoqueessekhopeshénassuasduas.

Fletcherduvidou.Ohomemeramagrocomoumavassoura,etinhamaisoumenosamesmaaltura,também.Orapazbrandiuaarmaemsuadireçãosemmuitaconvicção,mirandodeformaanãoacertarnada.SirCauldernãosemoveuparasedefender,deixandoaespadacortaroarinofensivamentediantedoseupeito.

— Muito bem, garoto, chega de brincadeira! — exclamou o mestred’armas.

O cajado zuniu pelo ar, acertando a cabeça de Fletcher num golpedoloroso.Orapazgritouelevouamãoàorelha,sentindoosangueescorrerquentepelanuca.

— Vamos lá, essa espada não conseguiria nem perfurar esta cota demalha—provocouovelhocomalegria,saltitandodiantedeFletchercomoumbode.

— Eu não estava pronto — rosnou Fletcher, em seguida estocandocontraoestômagodeSirCauldercomasmãos.Ocajadodesceucomoummartelo,batendotãofortenaespadaqueestasecravounaareia.Fletcherfoi recompensado com outra pancada no rosto, que deixou uma marcalarga.

— Isso não vai ficar bonito amanhã. — Sir Caulder riu, espetando abarriga de Fletcher e fazendo o menino cambalear.— Veja, Jeffrey, elescarregamessasespadasporaícomosefossemenfeites.Escutebemoquevoudizer:quandoumorcinvestecontravocêdentrodamata,nãoachequeuma bala demosquete vai detê-lo. Ele vai palitar os dentes com as suas

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costelas antes mesmo de perceber que levou um tiro — reclamou,pontuandocadapalavracomumacutucadadocajado.

A paciência de Fletcher acabou. Ele girou o khopesh num arco largo,pegandoocajadonacurvaeafastando-oparaolado.EmseguidainvestiusobaguardadeSirCaulder,derrubandoohomemcomumgolpedoombroparacairporcimadele.

Antes que um grito de triunfo pudesse deixar os lábios do rapaz, osjoelhosdeSirCauldertesouraramaoredordopescoçodele,esganandoaspalavras.ApernadepaubateunanucadeFletcher,quelargouaespadaetentousepararaspernasdovelhoguerreiro,masestaseramcomobarrasgêmeas de aço. O homem apertou mais, até que a visão de Fletcher seturvou.Omundo,então,desapareceunastrevas.

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21

Quandosuaconsciênciavoltou,FletcherpôdeescutarossibilosdeIgnácio.Abriu os olhos e viu Jeffrey e Sir Caulder o observandodooutro ladodaarena.SirCaulderpraguejavahorrivelmenteehaviaumodordequeimadonoar.

—Malditosdemônios,deveriamsertodosfuzilados.Éumcombatebomesólidoquemataosorcs,nãoessasabominações—resmungouovelho,cutucandoumpedaçodepanoenegrecidonopeitodasobreveste.IgnáciodeviatercuspidofogonelequandoFletcherdesmaiou.

Orapazesfregouagargantamachucada,aborrecido,esesentou.Porqueseráquetantagentequeriaesganá-lo?AtéIgnáciogostavadeseenrolaremseupescoço.

—Osenhorseesqueceudeumacoisa—grasnouFletcher.—Osxamãsorcstêmodobrodonúmerodessasabominações,comoosenhorchamou.Achamesmoqueobomesólidocombatevaiderrotá-lastambém?Porquedaraulaaquiseosenhorosodeiatanto?

SirCaulder e Jeffrey atravessarama arena até ele, parandode vez emquandoparaocasodeIgnácioatacardenovo.Fletcheracalmouodiabrete

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compensamentostranquilizantesepegouokhopesh,reatando-oaocinto.—Medesculpe,guri.Euestavasódesabafando.Estasobrevesteerameu

velho uniforme. É tudo que me resta dos velhos tempos — contou SirCaulder,chutandoareiacomapernadepau.

—Bem, é culpaminha também. Eu deveria ter avisado a Ignácio queestaeraumalutadebrincadeira,apesardeacharquefugimosumpoucoàpartedabrincadeira. Lamento pelo seu uniforme. Posso lhe comprar umnovo?—perguntouFletcher.

—Não.EulutavasobosRaleigh—respondeuSirCaulder,comoseissoexplicassetudo.

—OsRaleigh?—indagouFletcher.—Elessãoumafamílianobre?—Sim,issomesmo.Nãomais,porém—murmurouSirCaulder.Orapaz

notouadornoolhardohomem,masnãoconseguiuconteracuriosidade.—Porquê?Elescaíramemdesgraçacomorei?—perguntouFletcher.

Elenuncatinhaouvidofalarnessetipodecoisaacontecendoantes,sebemque Pelego ficava tão longe das maquinações da classe superior deHominum que isso poderia ser uma ocorrência cotidiana, até onde elesabia.

— Não, nada do tipo, seu idiota! Eu servi ao lorde Edmund Raleigh,muitotempoantesdaguerra.Eleeraumdosnobrescompropriedadesnafronteirasul,entãonossas terraseramconstantementeatacadaspororcssaqueadores.Naqueles tempos, o exército estava concentradodemais emmanterosanõessobcontroleparanosmandarajuda,então,comopartedaguarda de Raleigh, tínhamos que lidar com o problema sozinhos. LordeRaleigh era um bom homem e um amigo próximo do rei, então não vápensarqueelenãoera!—ralhouSirCaulder.

— Eu não quis ofender— atalhou Fletcher, tentando ser educado.—MasnãoentendocomoosRaleighperderamopoder.

—Foramosorcs,moleque.Elesquesãoosculpados.Vieramnacaladadanoite,seesgueirandopelogadoepelosgrãosetudomaisqueosmeus

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rapazes estavam protegendo. Nós achávamos que era isso que elesqueriam, então por que proteger qualquer outra coisa? — explicou eleamargamente, cerrandoospunhos comamemória.—Elesmassacraramtodo mundo na mansão da família Raleigh: as mulheres, as crianças.Quando ficamos sabendo, eles já tinham ido embora, levando os mortoscomotroféuseamarrandooscorposnasárvoresdafronteiradoterritórioórquico. Lorde Raleigh resistiu terrivelmente. O Canídeo delematou trêsorcs antes que eles abrissem a barriga do demônio e o deixassemsangrandoparamorrer.Euacabei como sofrimentodele,pobrecriatura.Então não fique pensando também que eu tenho alguma coisa contraconjuradores!

Sir Caulder estremeceu com a memória, então foi até os degraus daarena,paraumaportaabertanaparede.

—Vocênãoéummau lutador,masvaiprecisar aprender a enfrentarum orc. Aquela ombrada não teria nenhum efeito, e você estariaenfrentandoclavasemachadospesados,nãoarmasdeprecisão.Venhameverdenovo,eeulheensinareicomo—disseosoldadodaporta,entrandoemseguidacomumgrunhidosatisfeito.

Jeffrey levou Fletcher até a entrada e ergueu a tocha até o rosto doamigoparapodervê-lomelhor à luz fraca. Ignácio subiuatéoombrodorapazeronronoucomavisãodachama.

—Elerealmentecaprichounasuacara.Essemachucadoestáinchandoferozmente—comentouJeffrey.

— Nem dói tanto assim. — Fletcher tocou a ferida no rosto eestremeceu.

Osdoisvoltaramcaladosaoátrio,ponderandoahistóriadeSirCaulderenquantosubiamalongaescadaria.

—O tour acabou— gemeu Jeffrey ao emergirem no átrio.— Precisovoltaraotrabalhoagora.

—Você já sabia de Sir Caulder e os Raleigh?—perguntou Fletcher a

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Jeffreyquandoocriadovoltoualimparopiso.—EuouvifalardosRaleigh,masnãofaziaideiadequeSirCauldertinha

servidoàcasadeles.OqueseiéquefoioincidenteRaleighquedeuinícioàguerra.OreieosnobrescomeçaramaexpandirasfronteirasdeHominumem retaliação, cortando as árvores e devastando as aldeias órquicas anoapósano.Mas foi sóquandooorcalbino começouaunir as tribosqueoconflito virouumaguerrade verdade— respondeu Jeffrey, esfregandoochão.

—Nãoconsigoentendercomonuncaouviissoantes.—Fletchercoçouacabeça. Aparentemente, viver tão longe ao norte de Corcillum tinhalimitadosuaeducaçãosobreapolíticadomundoemgeral.

—Vocênão teriacomo.Foi tudoacobertadoemantidoemsegredo.Orei não gostaria que os plebeus descobrissem que uma linhagem nobrepodeserextintaassim,deumahoraparaoutra.Ésóporqueosfilhosdosnobresvêmparacáqueeuescuteiahistória;SirCauldernuncamencionounadadissoantes—explicouJeffrey.

— Ele devia gostar muito daquele uniforme — observou Fletcher,afagandoacabeçadeIgnácio.

—Falandonisso,nãoacreditoquesuasroupasaindanãoforamlavadas!Estava meio nauseante naquele corredor apertado lá embaixo, Fletcher.Volte ao alojamento, e eumandarei alguémbuscar suas roupas e levá-loaosbanhos.Sério.

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22

Aluaestavacheiaeresplandecentenocéusemnuvens.Fletchertremeuepuxouocolarinhodouniforme;eraaúnicaroupaquenãoforalevadaparaserlavada.Aindaassim,eletinhaquevestiralgo;estavagélidonoquarto,eocobertoresfarrapadonacamanãoajudavaemnadaamantê-loaquecido.Ele se inclinou para fora da janela sem vidro para o ar frio da noite,pensandonodiaquetinhasepassado.

Aelfatinhaficadonopróprioquarto,oqueestavaótimoparaFletcher.Orestodogruposemanteveanimadonoalmoçoenojantar,ansiosopelodia seguinte e pelasmaravilhas que este traria. Fletcher notou que tinhagostadodacompanhiadosoutros,aindaquea tensãoentreAtlaseOtelotivesseconferidoumsutil tomde tensãoaumanoite feliz.Fletcher tinhasimpatizado especialmente comSerafim, cujo carisma e dompara contarhistórias tinham deixado todos atentos a cada palavra sua. A atitudedespreocupada de Rory também conquistou sua afeição, e, mesmo quetodososesforçosdelaparasalvarouniformedorapaztenhamsidoemvão,FletcherdescobriuqueGenevieveeraumapessoagenerosacomumsensodehumorsurpreendentementeseco.

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Eraestranhosaberquetodoselesestariamarriscandoavidanasselvasquentes do sul em alguns poucos anos. Por mais que Fletcher tentasseevitar pensar no assunto, os outros estavam ansiosos pelo combate.Genevieveeraaúnicaquenãoostentavaabertamentesuavontadedelutar,mesmo que falasse dos orcs com uma fúria sombria que escondia suatrágicaexperiência.

Fletchersabiaquedeveriadormir,massesentiaeufóricodemaisparaisso. Até Ignácio, geralmente tão preguiçoso, parecia contagiado pelaagitaçãododono,perseguindoaprópriacaudanaescuridãodoquarto.

OrapazestendeuavelaparaqueIgnácioaacendesse,entãosaiuparaasalacomum.Aochegar,viuumaluzdevelaquesumiapelaescadaria,comosomdepassosapressadosecoandoabaixo.

—Venha,Ignácio;parecequenãosomososúnicoscomdificuldadeparadormir—comentouFletcher.Sefossepassaranoiteemclaro,seriamuitomelhorfazê-loacompanhado.

Os corredores ficavam sinistros à noite, com correntes de ar gélidassibilandopelasseteirasquesalpicavamasparedesexterioresdocastelo.AchamadaveladeFletchertremeluziacomcadarajada,atéqueeletevedeprotegê-lacomamãoparaquenãoseapagasse.

—Eubemgostariadeumadaquelasluzesvoadorasnumahoradestas,né,Ignácio?—sussurrouorapaz.

As sombras semoviam de forma bizarra conforme omenino descia ocorredor, as fendasnegrasdos visoresde cada armadura fitando-o à suapassagem.

Parecia estranho que a pessoa adiante, fosse quem fosse, estivesse semovendotãorápido,maiscomoumacorridadoqueumpasseionoturno.Fletcherseapressouemacompanhar,motivadoporumacuriosidademaisfortequeseubomsenso.Mesmoaoalcançaroátrio,omeninosóconseguiuveruma luz fracaeo sibilarde tecido conformea silhuetaescapavapelaentradaprincipal.

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OpátioestavasilenciosocomoumtúmuloeduasvezesmaisassustadorquandoFletcherpôsospésdoladodefora,masnãohaviasinaldapessoamisteriosa. Ele caminhou até a ponte levadiça e espiou a estrada,procurando pela luz da vela. Enquanto contemplava a escuridão turva,começouaouvirabatidarítmicadecascosnaestrada,vindonadireçãodaCidadela.

Fletchercorreuparaumapequenasaletaconstruídanaguaritadapontelevadiça,apagandoaprópriavelacomumsoproeseespremendocontraafria parede de pedra. Quem quer que fosse, o rapaz não queria que aprimeiraimpressãoqueapessoativessedelefossedealguémquegostavadeseesgueirarporaínacaladadanoite.

Ele conteve a empolgação de Ignácio, pressionando-o sobre anecessidade de silêncio com um pensamento severo. Lembrou-se do quetinha acontecido da última vez emque estivera numa sala fria de pedra,escondido nas trevas. Com essa memória, o demônio reagiu comconcordânciaeatéumtoquedoquepareciaserarrependimento.FletchersorriuedeuumacoçadinhanoqueixodeIgnácio.Odiabreteentendiamaisdoqueelepensava!

O ruído de rodas em movimento e o estalo de chicotes anunciou achegadadascarruagens,queribombaramaocruzaravelhapontelevadiça.Fletcher espiou por uma rachadura na pedra do aposento, cruzando osbraços com força por conta do frio. Seriam os nobres? Talvez um dosprofessores,chegandocedo?

Aproximaram-seduascarruagens,ambasfloreadamentedecoradascomornamentos dourados e iluminadas por tochas crepitantes. Dois homensmontavamnotopodecadauma,vestindouniformesescuroscombotõesdelatãoequepesquelembraramaFletcherotrajedosPinkertons.Osquatroportavam bacamartes pesados nas mãos, prontos para disparar emqualquerumquetentasseemboscarocomboio.Cargapreciosa,defato.

As portinholas se abriram e vários vultos desceram, vestindo versões

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perfeitamentetalhadaseajustadasdouniformedeVocans.Àluzfracadastochas,eradifícil identificarseusrostos,masumdosmaispróximosficoubemàvista.

—Ah,céus!—exclamoueleaosoutros,numavozeleganteearrastada.—Eusabiaqueestelugartinhacaídoemdecadência,masnãoachavaquetinhachegadoaníveltãobaixo.

—Vocêviuoestadodascoisas,Tarquin?—indagouumamenina,dassombras.—Estouespantadaportermosconseguidoatravessaraponte.

Tarquin era um rapaz bonito com maçãs do rosto bem definidas ecabelos loiros angelicais, que caíam em cachos até a nuca. Porém, seusolhos azuis acinzentados pareciam a Fletcher tão duros e cruéis quantotantosoutrosqueviraantes.

—Éissoqueacontecequandovocêdeixaaraléentrar—declarouelecom uma expressão de desdém. — Os padrões estão decaindo. Tenhocertezadeque,quandopapaiesteveaqui,estelugareraodobrodoqueéagora.

—Aindaassim,aomenososplebeuspodemficarcomospostosquenãoquisermos—sugeriuamenina,foradocampodevisãodeFletcher.

— Sim, bem, esse é o lado bom — concordou Tarquin, num tomentediado.— Os plebeus podem ficar com os criminosos e se, deus nosacuda, eles permitirem que os anões sirvam como oficiais, então podemcomandar os meios-homens também. Manter todos nos seus devidoslugares,esseéojeitocerto.Cadaumondedeveriaestar.

Uma garota saiu da penumbra e parou ao lado do jovem nobre,estreitandoosolhosparaespiaraaltaCidadeladiantedeles.Elapoderiatersido gêmea de Tarquin, com maçãs do rosto angulosas e madeixas dequerubimarrumadasemdelicadoscachinhosloiros.

— Isto é uma desgraça. Como é que pode, cada criança nobre emHominumserforçadaaviveraquipordoisanos?—perguntouelaemvozalta,ajeitandoumcachoerranteatrásdaorelha.

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—Carairmã,éporissoqueestamosaqui.OsForsythnãobotamopéemVocansdesdequenossopaise formou.Vamosmostraraeste lugarcomonobresdeverdadedevemser tratados—respondeuTarquin.—Falandonisso,ondeestãooscriados?Quetalvocêirlábuscá-los,hein,Isadora?—brincouele,empurrandoairmãnadireçãodaentrada.

—Ugh!Euprefiroterminhacabeçaraspadaapassarumsegundonosalojamentosdacriadagem!—exclamouela.

Com essas palavras, a porta lateral se abriu e Mayweather, Jeffrey evários outros criados saíram cambaleando, muitos ainda esfregando osolhosdesono.

—Mildesculpaspelonossoatraso,milorde—disseMayweather,numtom humilde. — Tínhamos pensado que os senhores chegariam pelamanhã,jáquenãochegaramatéodécimoprimeirosino.

—Sim,bem,decidimosqueosbaresdeCorcillumeram lugaresmuitomais interessantesparaseestarànoitedoqueeste... estabelecimento—respondeu Tarquin gelidamente, apontando em seguida para Jeffrey. —Você, moleque, leve as malas aos meus aposentos, mas com cuidado. Oconteúdonelasvalemaisdoquevocêganharánasuavidainteira.

Jeffrey se apressouemobedecer, fazendoumamesuradesajeitadaaosdoisnobresdecabelosdouradosaopassar.

—Permita-melevá-loaosseusalojamentos,milorde.Sigam-me,osdois— disse Mayweather ao grupo, subindo os degraus com dificuldadeenquantoosservosdescarregavamascarruagens.Fletcherteveumrelancedos dois nobres que seguiamMayweather, e então a vista foi bloqueadapelasduascarruagensgirandoesaindodopátio,trovejantes.

LogoFletcherestavasozinhodenovo,enojadocomoquetinhaacabadode ver. Ele tinha sempre imaginado os nobres como sendo generosos ejustos,liderandoosprópriossoldadosparalutarnaguerraecedendoseusfilhosadolescentesparaque servissemcomomagosdebatalha.Ele sabiaquemuitosnobresemidademilitararriscavamasvidastodososdiasnas

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linhasdefrente,deixandoasfamíliasemcasa.Masoqueviranaquelesdoismolequesmimadoseraocompletoopostodoqueesperava.Fletchertorceupara que nem todos os aprendizes de berço nobre fossem como aquelesdoisespécimesqueacabaradeencontrar.

Fletcher esperou alguns minutos e saiu sorrateiramente da guarita,voltando à entrada principal pelas sombras da muralha do pátio. Logoantesdepassarporumfeixedeluar,ouviuorangerdapontelevadiçaatrásdesi.

Giroubematempodeverumvultodiantedelasumirdevista,correndoestradaabaixo.Umvultocomlongoscabelosruivos.

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23

Osnobreschegaramatrasadosparaocafédamanhã,sentando-sedoladooposto do refeitório e ignorando completamente o grupo de plebeus.Tarquin e Isadora lideravam o cortejo, tendo claramente se estabelecidocomolíderes.Poroutrolado,ostapinhascasuaisnascostasegargalhadasfizeramFletcherconcluirqueamaioriadosnobresjáseconhecia.

—Porqueestãonosignorando?—perguntouAtlas,olhandoporsobreo ombro quando os nobres começaram a fazer comentários em voz altasobreabaixaqualidadedacomida.

— Isso é normal — afirmou Serafim. — Os nobres sempre ficamseparadosdosplebeus.Eubisbilhoteiumdosquartosdelesoutrodia.Édotamanhodonossoalojamentointeiroemaisumpouco!

—Nãoachoquedeveria serassim—comentouRory.—Vamosviverjuntospelospróximosdoisanos,nãoé?Sótemcincodeles.Certamentevãoficarentediadoscomacompanhiaumdooutro.

— Duvido — opinou Fletcher. — Um dos criados me contou que osnobres frequentementepassamseutempo livreemCorcillum.Somosnósquevamosficarnestecastelosemternadaparafazer.Nossamelhoropção

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vaiserfazeramizadecomalgunsdosplebeusmaisvelhos.Enquantodiziaisso,umadúziadeveteranoscomeçouaentrarnosalão,

conversandoemvozalta.Elessesepararamemdoisgruposesesentaramem mesas diferentes, mas, ao contrário dos calouros, as duas turmaspareciamconversarentresisemnenhumahostilidadeperceptível.Mesmoassim, julgando pela qualidade dos uniformes, Fletcher suspeitava que adivisãodemesaseraentrenobreseplebeustambém.

— Eles desceram cedo para o café da manhã — comentou Serafimenquanto de duas mesas veteranos os olhavam de cima a baixo, comatenção especial dedicada a Otelo. Um deles cutucou o outro e apontoupara Ignácio e o Golem, que Otelo tinha batizado de Salomão. O anão seajeitouebaixouacabeçasobrearefeição,constrangidopelosolhares.

—Euqueriaquepudéssemostomarcafédamanhãnomesmohorárioque eles todos os dias. Tem espaço suficiente aqui para centenas de nóscomermos — bocejou Genevieve, apoiando a cabeça nas mãos. Fletcherfitou seus cabelos ruivos comdesconfiança. Seria elao vultoqueele virasaindodaCidadelananoiteanterior?

Quando os criados terminaram de servir o café aos recém-chegados,todosnorefeitóriosubitamentesecalaram.Erguendooolhardarefeição,Fletcher viu o reitor entrando no salão, seguido por dois homens e umamulherquevestiamuniformesdeoficiais.Comumsobressalto,reconheceuum deles como Arcturo, com o olho branco fitando resoluto adiante. Ohomem não deu sinais de tê-lo reconhecido. A menina elfa entrou logoatrás, causando um rebuliço no refeitório. Ela caminhou com a cabeçaerguida até um assento afastado da mesa dos plebeus. Seu Canídeo seenrodilhousobacadeira,acaudapeludaseesticandoenquantoacriaturaolhavapelasala,protetora.

Osquatrooficiaisficaramparadoscombraçoscruzadoseencararamosalãoatéfazer-sesilêncioabsoluto.

—Bem-vindosàCidadela!Imaginoquetodosjátenhamseinstalado—

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anunciou o reitor Cipião asperamente por entre as cerdas de seu grossobigode.— Vocês têm o privilégio de ser parte damenor emais recentegeraçãodeestudantesaagraciarossalõesdaAcademiaVocans.—Fletcherolhou em volta, contando. Eram doze veteranos, o mesmo número doscalouros.—NossastradiçõesdatamdesdeoprimeiroreideHominum,hámais de dois mil anos — continuou Cipião. — E, mesmo que sejamospoucos, os magos de batalha graduados por esta instituição seguemservindocomoosmelhoresoficiaisdasforçasarmadas,sejasobocomandodoreiousobabandeiradeumadenossasgrandescasasnobres.

Fletcher viu Tarquin se inclinar e sussurrar com Isadora, cuja risadatilintanteecoouportodorefeitório.Elenãofoioúnicoaperceber.OrostodeCipiãoficouvermelhoderaiva,eoreitorapontouparaojovemnobre.

—Vocêaí,levante-se!Nãovoutolerargrosseiradeninguém,sejanobreounão!Levante-se,estoudizendo,eseapresente.

Tarquin se levantou, porém não parecia abalado pela raiva do reitor.Cravouospolegaresnosbolsosdascalçasefalounumavozclara:

—Meu nome é Tarquin, herdeiro do Ducado de Pollentia.Meu pai, oduqueZachariasForsyth,éogeneraldosFuriososdeForsyth.—Elesorriuquandoosveteranoscomeçaramamurmuraraoreconhecerosobrenome.ClaramenteopaideTarquineraumdosnobresmaisantigosepoderososdeHominum.FletcherreconheceuonomePollentia;umaextensãodeterragrandeefértilquecorriadomardeVesanaocentrodeHominum.

Cipiãopermaneceucalado,encarandoTarquincomexpectativaporsobassobrancelhasbrancasefartas.Ojovemnobreesperoualgunsmomentosatéosilênciorecobrirpesadamenteosalão.Finalmente,falou:

—Peçodesculpasporminhagrosseria.Estavasódizendoàminhairmãqueestou...orgulhosoemfazerpartedestagrandeinstituição.

— É só por respeito ao seu pai que nãomando você de volta ao seuquarto,comoumacriança—resmungouCipião.—Sente-seefiquedebocacaladaatéqueeutenhaterminadodefalar.

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Tarquin inclinou a cabeça comumsorriso e se sentou, inabaladopelodiálogo. Fletcher não sabia bem se era confiança ou arrogância queconcediaaorapazaquelaatitudedestemida,masdesconfiavadequeeraasegunda. Cipião encarou Tarquin por mais algum tempo, em seguida sevirouaostrêsoficiais.

—Estessãoseustrêsprofessores;majorGoodwineoscapitãesArcturoe Lovett. Vocês os tratarão com o devido respeito e lembrarão que,enquantoelesestãoaquieducandovocês,bonshomensnaslinhasdefrentesofremsemsualiderançaouproteção.

Fletcherexaminouosdoisprofessoresqueaindanãotinhaconhecido.AcapitãLovetteraumamulherdecabelosnegroscomoumcorvo,olhosfrioseaparênciasevera.Porém,quandoelasorriuaosaprendizesnomomentoemqueseunomefoianunciado,seurostoperdeutodaaaspereza.OmajorGoodwin parecia ser quase tão velho quanto Cipião, com uma silhuetagrande e corpulenta e um espesso cavanhaque branco. Usava óculos dearmaçãodourada,apoiadosnumnarizvermelhoqueindicavaumgostoporbebidasdestiladas.

—Agora, vocêsveteranosdevemestar seperguntandoporque foramchamadostãocedo—anunciouCipião,fazendocomqueossegundanistasentediados se endireitassem nos assentos.—Tenho um anúncio que dizrespeito a todos vocês. Tomamos uma decisão que pode não serparticularmentepopular,masfoitomadaporquestãodenecessidade.Nasprovas finais e nos torneios deste ano, tanto os calouros quanto osveteranosparticiparão.Sequaisquercalourosdemonstraremaltospadrõesde qualidade, então também receberão uma patente e serão enviados àslinhasdefrenteumanomaiscedo,ondefazemumafaltaterrível.

Um tumulto imediato se iniciou, mas foi encerrado com um berro deCipião.Eleergueuumadasmãosparaoburburinhoqueseseguiu.

— Entendo que isso aumente a competição pelas poucas patentes dealtonível oferecidas a vocêsdo segundoano.Venho lembrar-lhesdeque

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vocêscomeçaramatreinarcomumanodevantagem.Seforemderrotadosporumdoscalouros,entãonãomerecempatentenenhuma.

Fletcher franziu o cenho com o anúncio. Lá se ia qualquer chance defazeramizadecomosplebeusmaisvelhos.

— Quanto aos primeiranistas, vocês devem estar preocupados emreceber patentes e postos ruins este ano, quando poderiam conquistarcoisa melhor se ficassem para o próximo ano. Para contrabalançar essapossibilidade,vocês só receberãopostosdeprimeira-tenênciaoumelhor,comumaescolhaopcionaldeumasegunda-tenênciamenosprestigiosa,seassimpreferirem.Ovencedordotorneioreceberáumacapitania,apatentemaisaltaqueummagodebatalhanovatopodeconquistar.

Issogeroumaisburburinhodamesadosveteranos.Fletchersuspeitavaque eles ficariam felizes com a participação dos calouros se estespreenchessemtodasaspatentesdesegundo-tenente,amaiscomumemaisbaixadetodas.

— O rei ofereceu um incentivo adicional ao torneio deste ano. Ovencedor tambémreceberáumlugarnoconselhoreal,e teráodireitodevotaremquestõesdeEstado.SuaMajestadedeseja terumrepresentantedapróximageraçãodemagosdebatalha.Seumapatentedealtooficialnãomotivar vocês, sei que isso o fará— declarou Cipião, olhando de formasoleneparatodos.

FletcherviuOtelocerrarospunhosenquantoCipiãofalava.Seissoforamotivado pelo assento no conselho, a patente ou ambos, Fletcher nãosaberia dizer. Tarquin e Isadora estavamespecialmente inflamadospelasrevelaçõesdeCipião,sussurrandocomempolgaçãoapesardeumolhardeadvertênciadeArcturo.

— Em quais divisões serão concedidas as patentes? Os calouros vãocorrer o mesmo risco de serem postos nos batalhões de anões oucriminosos?—indagouumveteranoplebeualto,levantando-se.

Oteloseeriçoucomainsinuação,masCipiãofalouprimeiro.

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—Vocês irãoparaqualquerdiabodedivisãoemque forem lotados!Enão fale fora de hora!— rugiu o reitor. O menino se sentou apressado,apesar dos murmúrios insatisfeitos com a resposta. Cipião pareceuapiedar-se ao ver os rostos cabisbaixos que o encaravam por todorefeitório.—Eles terão asmesmas chances que vocês. É tudoquepossodizersobreesseassunto—acrescentou.

Umamãodelicadaseergueunoar,agitandoosdedinhosparachamaratenção.Cipiãorevirouosolhoseassentiuirritadocomacabeça.Isadoraselevantouefezumamesuradelicada.

—Peçolicençaporterinterrompido,senhorreitorCipião,masoqueelaestáfazendoaqui?—inquiriuajovem,apontandoumdedoacusadoràelfa.

—Esseeraomeuanúncioseguinte—afirmouCipião,caminhandoatéameninadecabelosprateados.—AsconferênciasdepazentreosenviadosdeHominumeosvárioschefesdeclãsélficosforamumlongoesforço,masrecentemente alcançamos um avanço importante. Em vez de pagar oimposto,oselfosplanejamse juntarà lutapessoalmente,mandandoseuspróprios guerreiros para serem treinados como soldados, assim comofizeramosanões.

Comestaúltimamenção,CipiãolançouumacenodecabeçarespeitosoaOtelo,quedevolveuogestoigualmente.

— Porém, ainda resta muita desconfiança, como era de esperar —continuouCipião,voltandoàentradaparasereuniraosoutrosprofessores.—Então,numatodeboa-fé,afilhadeumdoschefesfoienviadaparasertreinadacomomagadebatalha,aprimeirademuitoselfosque,esperamos,serãoincorporadosàsnossasforçasarmadasaolongodospróximosanos.

Eledeuumsorrisoforçadoàelfa.—SeunomeéSylvaArkenia,evocêsdevemacolhê-ladamelhorforma

possível.Nuncafomosrealmenteinimigosdoselfos,mesmoquetenhamosnossentidoassim.Vamosesperarqueeste sejaoprimeiropassodeumalongaefrutíferaaliança.

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OrostodeSylvapermaneceuimpassível,masFletchernotouacaudadeSariel balançando sob amesa. Ele se espantou com a coragem da jovemmenina,quedeixouopaíseolarparalutarnumaguerraquenãoeradela,dentrepessoasquenãoconfiavamnoseupovo.Enquantoeleplanejavaseupedidodedesculpas,avozdeCipiãoseergueunovamente.

—Enfim,todosdispensados.Asaulascomeçamemalgunsminutos.Ah,eFletcher—disseele,virando-separaorapaz.—Venhamevernomeugabinete.Imediatamente.

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24

OgabinetedeCipiãoestavatãoquentequantonodiaanterior,masdessavezaspersianasdasjanelastinhamsidoabertas,deixandoumfachodeluzcortar o ar entre Fletcher e a escrivaninha do reitor. O homem vinhaencarandoFletcherporsobreosdedosunidospeloúltimominuto,eestejáestavacomeçandoasesentirconstrangido.

—Porquevocêmentiuparamim,menino?—perguntouCipião,comoolhardardejandoentreIgnácioeorostodeFletcher.

—Eunãotiveaintenção—respondeuFletchereentão,depoisdeummomento,acrescentou:—,senhorreitorCipião.

— Perguntei onde você tinha conseguido esse demônio, e você merespondeuqueArcturotinhamandadovocê.Achouqueissoresponderiaàminha pergunta? Achou mesmo que o que disse não tinha certasimplicações?Não achou que eu descobriria a verdade depois que falassecom Arcturo? — A voz de Cipião era calma e composta, um contrasteprofundo com o homem exaltado que Fletcher vira no refeitório poucosminutosantes.Elenãosabiabemqualversãopreferia.

—Eu...nãoseiporquedisseaquilo.EraverdadequeArcturotinhame

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mandado,masentendioqueosenhorquisdizer.Foierradodaminhapartementir. Eu só queria muito ter permissão para estudar aqui. Peçodesculpas,senhor.

Fletcher baixou a cabeça, sentindo-se um idiota. Se ele simplesmentetivesse dito a verdade, poderia estar numa aula com Arcturo agora,aprendendoafazerfogos-fátuos.Emvezdisso,corriaoriscodeserexpulsodeVocans no primeiro dia, por termentido a umoficial superior. Cipiãopigarreou com o que Fletcher torcia que fosse aprovação, e depois ochamouatéaescrivaninha.

—Tenhoculpanistotambém.Eudeveriaterinvestigadomelhor.Afinalde contas, pesquisar como capturar novas espécies de demônios é umatarefa conferida a todos os magos de batalha. Presumi que você nãoconheceria a magnitude das implicações representadas pela suaSalamandra...Andopresumindodemais, ultimamente—admitiuo reitor,comum suspiro.—Arcturome explicou comovocê se deparou com seudemônio... umpergaminhode conjuraçãodeumxamãorc, quempoderiaimaginar. Suspeito que a minha frustração tenha derivado do meudesapontamento como fato de não termos feito umadescoberta; apenastivemossorte.Entretanto,devopediravocêquedeixeolivroqueArcturomencionou com a bibliotecária, para que ela possa examiná-lo e extrairdelequalquerconhecimentonovo.JamesBakereraobviamenteumhomemdesegredos.

Fletcheraguardounumsilêncioesperançosoenquantoovelhoguerreirooexaminava.Finalmente,Cipiãopuxouumafolhadepapeleacolocounaescrivaninha,diantedele.

—Este é o compromisso que todos os oficiais cadetes têmde assinarantesdesealistarnas forçasarmadasdeHominum.Umavezqueestiverassinado, você será oficialmente um soldado estudante desta academia,trabalhando sob a autoridadede SuaMajestade. Sua renda anual serádemil xelins, descontados alojamento, refeições e custos de instrução. Está

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tudo aí escrito. Escreva seu nome e saia já daqui. — Ele estendeu umagrandepenaaFletcher,querabiscouonomenalinhapontilhadaembaixo,comocoraçãocheiodealegria.

—Nadadesobrenome?—indagouCipião,espiandoaassinatura.—Eununcarecebium—murmurouFletcher,umpoucoenvergonhado.— Bem, escreva alguma coisa. Oficiais são conhecidos pelos

sobrenomes, não pelo primeiro nome — afirmou Cipião, indicando oespaço vazio ao lado do nome de Fletcher. O sobrenome de Berdon eraWulf,entãoFletcheroescreveu.

— Para o átrio, cadeteWulf. Seu padrinho de academia está dando aprimeira aula, e você já está cinco minutos atrasado — disse Cipião,oferecendo-lheumrarosorriso.

Quando Fletcher chegou ao átrio, o salão estava pontilhado com fogos-fátuos errantes, orbes que flutuavam pelo ar como vagalumes. Sob abrilhanteluzturquesa,eleviuosnobresrindoecriandoumabolinhaatrásdaoutracomosdedos,competindoparaverquemconseguiafazeramaior.Otelo,GenevieveeRoryeramosúnicosplebeusali, afastadosdosnobresnumsilêncioinfeliz.

— Isso foi rápido. É tão fácil assim?— indagou Fletcher, observandoenquantoTarquincriavaumabolade luzdotamanhodeumpunho,paragrandeespantodosoutrosnobres.

—Não,agentenemviucomosefazainda.Sóqueofatodeseremfilhosdeconjuradoresfazcomqueosnobresjásaibamumaouduascoisinhas—sussurrouRory,comumaexpressãodedesapontamentoeinveja.

Arcturoestavaparadonomeiodoaposento,observandoosnobrescomolharimpassível.Estalouosdedos,etodososorbesseapagaram,lançandoosalãonumaescuridãoabsoluta.Oátriose iluminoudenovolentamentequando um pequeno fogo-fátuo surgiu no dedo de Arcturo. Delicadosfilamentos azuis brotavamdas pontas dos dedos dele e pulsavampara aluz,seexpandindonumaesferadotamanhodacabeçadeumhomem.Elea

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soltouacimadesi,ondeelaflutuou,imóvel,comoseestivessesuspensadoteto.Osalãoficouimediatamentepreenchidoporumaluzazulcalorosa.

—Nãopediquevocêsdemonstrassem;pergunteisealgumdevocêsjáeraversadonatécnica.Claramente,seuspaisnobresjálhesensinaramessetruque. Assim sendo, vocês podem sair, se quiserem. Suas tabelas dehorários estarão aguardando em suas camas. Sugiro que asmemorizem.Atrasossãoinaceitáveis.—ArcturolançouumolharsignificativoaFletchercomessaspalavras.

—Eusabiaqueestaaula ia serumapiada.Vamos,Penélope,deixeosamadores brincarem de correr atrás — zombou Isadora. Outra meninanobre, com cabelos escuros e enormes olhos castanho-claros, assentiudepois de um momento de hesitação. Isadora saiu altiva, seguida pelamenina,quelançouumolhardedesculpasaArcturoporsobreoombro.

Tarquinasseguiucalmamente,acompanhadopelosdoisoutrosnobres:ummeninograndedecabeloscompletamentenegros,compeletãoescuraquantoadeSerafim,eumrapazmaismagrocomcabelosdeumcastanhomortiçoerostodeanjinho.QuandoTarquinpassou,olhouparaouniformeesfarrapado e mal-ajustado de Fletcher e o rosto cheio de hematomas.Franziuonarizdenojoeseguiuemfrente.Fletcherestavabem-humoradodemaisparaseaborrecercomaquilonaquelemomento.

— Deixem que partam — afirmou Arcturo, uma vez que os nobresestavam fora do alcance de sua voz. — Eles ainda não aprenderam acontrolarosmovimentosde seus fogos-fátuos.Napróximaaula, elesqueestarão brincando de correr atrás. Os princípios dos fogos seguem osmesmosprincípiosdetodolançamentodemagia.

Elesevirouparaosplebeuselheslançouumlongoolhardeavaliação.— A primeira lição é muito importante; vocês descobrirão que todos

têmcapacidadesdiferentesdefeitiçaria.Seusdemôniossãoafontedetodooseumana,eespécie,experiênciaeidadedeledeterminarãoquantomanaeletemequãorápidoserecarrega.

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Mana. Essa fora a palavra que Serafim tinha usado ontem. Fletcherdeduziu que significava algum tipo de energia, usada para alimentarfeitiços. AgoraArcturo vinha na direção deles, o fogo-fátuo acima de suacabeçasemovendonomesmoritmo.Soboluziretéreo,acicatrizdooficialpareciamaisaterrorizantequenunca.

— Com licença, onde estão Serafim e Atlas? — perguntou Fletcher,entrando na frente de Genevieve e Rory para que Arcturo finalmente opercebesse.

—Senhor—corrigiuoprofessor.—Senhor—repetiuFletcher,exasperado.— Suspeito que tenham ido recolher seus demônios. Já que eu decidi

patrocinarvocê,masnão lhedeiumdosmeusdemônios,oreitordecidiuqueseriajustoseeufornecesseumdiabreteaumdosoutrosplebeus.Euocaptureiontem,numaoperaçãodemuitoriscoparaSacarissa.Esperoquevocêvalhaosacrifício—comentouelecomumanotadearrependimentonavoz,paradesencorajamentodeFletcher.

—Issosignificaqueeraumdemôniopoderoso,senhor?—sondouRoryenquantoFletchersentiaodesânimocrescer.

—Nãonecessariamente.Eleoserácomotempo,maserararodemaisparaqueeuodeixasseescapar.Umdosseusamigosterágrandesorteemrecebê-lo. Nunca tinha visto um deles antes. Agora, chega de perguntas.Sentem-senochãoefechemosolhos.

Os alunos obedeceram, e os passos de Arcturo ecoaram conforme eleandavaàscostasdogrupo.

—Deixemsuasmentesseesvaziarem.Escutemapenasosomdaminhavoz.

Fletcher tentou acalmar o bater empolgadode seu coração, prestandoatençãonaspalavrasdeArcturo.Avozdocapitãoeramelíflua,envolvendo-ocomoumabrisamorna.

— Estabeleça uma conexão com seu demônio, sinta a ligação entre

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vocês.Aja comdelicadeza.Estaprovavelmente será aprimeiravezqueoalcançará. Não se preocupe se tiver dificuldade em achá-lo no começo;quantomaispraticar,maisfácilficará.

Fletcherseguiuasinstruções,buscandoaoutraconsciênciaquepareciaflutuarno limiteda suamente. Sentiu apsiquedodemônio e, ao tocá-la,Ignácio se remexeu, desconfortável, no pescoço dele. Aquele não era opulso de emoção que Fletcher tinha lhe mandado antes, mas algocompletamentediferente.

— Quando você o segurar, sentirá o mana do demônio fluir. Tome aenergiaea focalize todapelodedo indicadorda suamãodominante.Porenquanto,ésóissoquevocêprecisafazer.

Fletcher sentiu aquela sensação de clareza se espalhar pelo seu corpomaisumavez,aindamais fortedoquequandoeleevocaraodemônionocemitério.Elaotrespassou,violentacomoumfuracão,eelepercebeuqueseucorpotremia.

— Pelo seu dedo, Fletcher! Você está tomandomuito! Controle-se!—gritouArcturo.Avozdelesoavamuitodistante.

Fletcher inspirou fundo e exalou pelo nariz, erguendo o dedo ecanalizandoacorrenteparaele.Aofazê-lo,odedoformigou,passando-lheuma sensação tanto de calor ardente quanto de frio congelante, tudo aomesmotempo.Aescuridãodetrásdaspálpebrassetornouumazulfraco.

—Abra os olhos, Fletcher— comandouArcturo, colocando amão noombro dele para estabilizá-lo. Omenino percebeu que estava respirandoforteeseacalmou,emseguidaabriuosolhoscomreceio.

A ponta do dedo dele incandescia num azul tão brilhante que quasechegavaaserbranco.Nomomentoemquemoveuodedo,deixouumrastrodeluznoar,comoapós-imagemdeumabrasaardentebrandidanoescuro.

—Eudissepelo seudedo,Fletcher,nãoparaele—exclamouArcturo,mashaviaumlevetomdeorgulhoemsuavoz.

—Vou ficar bem?— indagou o garoto, horrorizado enquanto traçava

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um oito de luz no ar. Os outros agora já tinham aberto os olhos, tendoobviamente levadomuitomaistempoqueFletcherparacanalizaromanadosseusdemônios.Emvezdedeixarqueissolhesubisseàcabeça,orapazserelembroudequepassaraalgunsdiasamaiscomseudemôniodoqueeles.

—Vocêconseguiu fazeralgoque só iriamosmencionardaquiaváriasaulas;aartedeentalhar.Observemcomatenção.

Arcturoergueuoprópriodedoeapontabrilhou,azul.Eledesenhouumestranho símbolo triangular, feito de linhas serrilhadas. Moveu o dedoaleatoriamentediantedosalunos,eosímbolooseguiu,comoseestivessepreso a uma moldura invisível. Assim que começou a sumir, Arcturodisparou filamentos de fogo-fátuo pelo espaço entre o dedo e o símbolo.Porém, quando os fios passaram pelas marcas, uma torrente de filetesfantasmagóricoseopacosemergiram,formandoumescudocirculardiantedele,queFletcherreconheceucomoomesmoquesalvarasuavidamerosdoisdiasantesnasruasdeCorcillum.

—Quando usamosmana sem um símbolo, ele se torna nada além defogo-fátuo, também conhecido comomana cru.Mas quando você entalhaumsímboloecanalizaseumanaporele,osaspectosmaisúteisdacaixadeferramentas domago de batalha se tornam disponíveis. Não é fácil; levatempoepráticaparasecriarumescudocomoomeu,emvezdeumamassadisforme.Atémesmooatodeformarumaboladefogo-fátuoexigiráalgumtempoatéquevocêsodominem.

OdedodeFletcher se apagoudevolta ao cor-de-rosa, e eleo abraçoucontraopeito.Ignácioronronouesaltouparaochão.Odemôniolambeuodedo do dono com uma língua triangular que era surpreendentementemacia,aliviandooformigamentoestranhonapontadodedo.

—Então, o quenósperdemos?—A voz alegre de Serafim soou atrásdeles

FletcherseviroueviuSerafim,AtlaseacapitãLovettsaindodosalãode

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conjuração.Acompanhadosporseusdemônios.Serafim sorria como um louco, em total felicidade. Seu demônio

caminhava ao seu lado, com um passo desajeitado e um tamanho quefizeramFletcherpensarnum texugo supercrescido.Porém, era ali queassemelhanças terminavam.A criatura era cobertadeumapele ásperaquepareciacascadeárvore,comumacamadadebolorsalpicadaemcima.Umacristaespessadeespinhoscorriapelacolunadorsal,cadaumcomunstrêscentímetros de comprimento e afiados como uma faca de cirurgião.Lembrava Fletcher de um arbusto de tojo, espetos verdes brutais queperfuravamapelecomfacilidade.

— O que que é isso!? — exclamou Rory maravilhado enquanto odemôniocorriaàfrentedosoutrosefarejavaasbotasdeArcturo,aquemreconhecia. O focinho curto de pug se abriu para revelar uma bocaestranha,cheiadeplacas.Fletchernotouosrestosmastigadosdefolhasládentro,logoengolidoscomaajudadeumalínguamarromcoriácea.

—ÉumCascanho—respondeuArcturo.—Sãomestresdacamuflagem,porissoétãoraroencontrarumdeles.Vocêterádificuldadesemalimentá-lo;elesprecisamcomerpelomenosmeioquilodefolhastodososdias.Mastenho certeza de que omajor Goodwin vai ensinar tudo isso a você nasaulasdedemonologia.

Arcturoolhouodemônio comemoçõesambivalentes, entãoacariciou-lhe a cabeça com alguma relutância. Serafim alcançou os dois e deu umsorrisodegratidãoaoprofessor.

—Eu teria realmente amado ficar comeleparamime capturaroutrodemônioparavocê,Serafim,masobichoardilosodeixouSacarissacheiadeespinhosquandoelaseaproximou.Elaficouferidademaisparafazerumasegunda jornadapeloéter.Apobregarotaquasenãoconseguiusegurá-lodepoisqueoarrastoupeloportal.Maltivetempoparaexecutaroritualdearreamento.Étardedemaisparacapturaroutroagora.Desejo-lhetudodebomaoseulado.

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— Muitíssimo obrigado, senhor! — exclamou Serafim, agarrando odemônionumabraçoefazendoumacaretacomopeso.—Osenhornãofazideiadoquantoissosignificaparamim.Vouchamá-lodeFarpa.

Atlas tinha ficado para trás, com um sorriso estampado no rosto. Seudemônio era do tamanho de um cachorro grande, com pelo grosso eeriçado, e dois incisivos afiados que se salientavam à frente da boca.Parecia uma enorme lontra dentuça, exceto por uma cauda de rato comumabolaespinhentanaponta,noformatodeumamaça-estrela.Acriaturaera incrivelmenteágil,praticamente fluindopelochãoenquantocirculavaospésdeAtlas.

—OmeuéumLutra.ChameieledeBarba,porcausadopelo!— Barba— repetiu Arcturo.— Talvez sejamelhor pensar um pouco

maissobreisso.Nãoéum...nometradicionalparademônios.PorquenãoBárbaro?Conheçopelomenosmaisumqueatendeaessenome.

—Perfeito!—concordouAtlas,agarrandoobichonosbraços.AcapitãLovett tinhavoltadoparaasaladeconjuração,masnãoantes

queFletcherespiasseumrelancedepenascastanhasenquantoaportasefechava. Ele imaginou o que poderia ser. Aparentemente, havia maisespéciesdedemôniosdisponíveisaosevocadoresdeHominumdoqueeletinhapensado.

QuandoArcturopegoufôlegoparacontinuaralição,Fletcherlevantouamão.Haviaumacoisaqueeleprecisavasaber.

— Onde está Sacarissa agora, senhor? E onde estão os demônios dosnobres? Estão todos sentados nos quartos, esperando pelos donos? —perguntouFletcher,suacuriosidadetendofinalmentealcançadoopontodeebulição.

— Você sabe o que é infusão? — inquiriu Arcturo, fitando-oatentamente.Fletcherfezquenãocomacabeça.

—Infusãoéquandoumconjuradorabsorveumdemônioparadentrodesi,permitindoqueacriaturadescanseesecure.Oconjuradoraindapode

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se comunicar comodemônio, atémesmousarmana,maso ser continuadentro dele, fora do caminho. Quando as lanças dos orcs chovem ao seuredor,a infusãoéamelhordefesaparaoseudemônio.VocêaprenderáoprocedimentonaaulacomacapitãLovettamanhã.Eumeespecializoemfeitiçaria,entãonãocabeamimensinarainfusão.Estarespostalhebasta?

—Sim,senhor.Muitoobrigado.EnquantoArcturoseviravaecomeçavaaentalharoutrosímbolonoar,

FletcherlevouamãoaoombroeacariciouIgnácio.Podiasentiracarneeosossossobaspontasdosdedos.Infusão.Elesóiaacreditarquandovisse.

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25

O grupo estava animado ao deixar a aula, todos risonhos e sorridentesenquanto subiam as escadas. Fletcher, Otelo e Serafim haviam sido osúnicos a conseguir criar fogos-fátuos; pequenos mas funcionais, queflutuavam junto aos seus ombros. Os outros tinham conseguido projetarum filamento de luz azul,mas foram incapazes de encontrar o foco paraformar a bola. Apesar disso, o primeiro gostinho de feitiçaria tinha lhesdeixadoeufóricos,eRoryeGenevievenãoeramdotipoquesentia invejados amigos. Até mesmo Atlas esfregava a cabeça de Bárbaro com umimensosorrisoestampadonorosto.

— Vou praticar controle de fogo-fátuo no meu quarto — anunciouSerafim,quandoeleschegaramaoalojamento.—Conseguiempurraraluzdeumladoparaooutro,mas jamaisvouconseguir fazerela ficarparadacomoArcturofez!

Ele desapareceu no corredor dosmeninos, com Farpa logo atrás. Nãohavia sinal de Sylva, desaparecidamais uma vez. Fletcher não sabia bempor que ela tinha recebido permissão para faltar à primeira aula, masestavaansiosoparafazeraspazes.

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— Será que a gente devia ter esperado? — indagou Rory num tommelancólico,contemplandoMalaquisobumnovopontodevista.

—Eu amoAzura do fundo domeu coração,mas não posso deixar depensar que vamos ficar em desvantagemdaqui para a frente. Se Arcturoacha difícil capturar um novo demônio, que esperanças podemos ter?—resmungouGenevieveemconcordância.Fletchernãoconseguiupensaremnadaquepudesseanimarosamigos,porémfoiogeralmentesombrioOteloquemfalouemseguida:

— Vocês podem não conseguir capturar um demônio tão poderosoquanto umCascanho ainda,mas talvez possam capturar outro Caruncho.Vivendotãopertodaslinhasdefrente,agenteescutaalgumascoisassobreos diferentes tipos de magos de batalha. Alguns têm um só demôniopoderosoqueédifícildecontrolar,enquantooutrostêmmuitosdiabretesmenores, como os xamãs orcs fazem. Vocês não prefeririammandar umenxame de Carunchos contra seus inimigos? Talvez até consiga enviarvários deles ao éter e aproveitar sua força combinada para trazer umdemôniomaispoderosodevolta—sugeriuOtelo,coçandooqueixo.

—Ei,émesmo—concordouRory,comumenormesorrisonorosto.—ImaginemsómilMalaquinhos.Issoseriaomáximo!

Serafimvoltouaosalão,brandindoumafolhadepapelnumadasmãoseumpequenosacodepanonaoutra.

—Olhem só isso!— disse ele, colocando o que descobriram ser umatabeladehoráriosnafrentedeles.—Sótrêsdiasporsemanacomhoráriointegraldeaulas,comumtreinoopcionaldecombatenoporãonoquartodia.Orestoéestudolivre!Podemosfazeroquequisermosnessetempo.

Roryriuedeuumtapanamesa,fazendoMalaquieAzurasaíremvoandocomzumbidosrepreensivos.

— Ooops! — exclamou Rory, estendendo a palma para que o insetoaborrecidopousasse,elhedandoumbeijodelevenacarapaçaverde.

—E issonãoé tudo!Elesnospagaramoque restadonossoprimeiro

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mêsdesalário.Quemprecisadeuniversidadequandovocêpodesealistarno exército e serpagopara estudar?—continuouSerafim, balançando abolsa,quetilintou.—Temsessentaxelinsaqui.

—AchoquemerecemosumavisitaaCorcillum!—exclamouGenevieve,cujorostose iluminoucomumsorrisobrilhante.—Issoémaisdoqueaminhamãeganhavanummês,eelatrabalhavaodiainteiro.Vamosdepoisdoalmoço.

— Eu certamente preciso de uma visita a um alfaiate — concordouFletcher,mexendonagolaesfarrapadadacamisa.

—Minha família deve estar preocupada comigo. Eu adoraria ter umachancedecontarparaelesquetenho...algunsamigosaqui.—Otelopuxouabarbatimidamente.

—Estácombinado,então.QuemfoiquedissequenãoteríamosdinheiroparairaCorcillum?Provavelmentevainoscustarosolhosdacarachegarlá, mas valerá a pena— comentou Serafim, correndo de volta para seuquarto.

Passosecoaramnasescadasatrásdeles,seguidosdosomdevozes.—Quempoderiaser?—perguntou-seFletcheremvozalta.—Então,vejasó...elesmelargaramaquicomosplebeus,quandoomeu

sangueétãopuroquantooseu.Éumacompletadesgraça!Tenhocertezadeque,sevocêfalarcomoreitoremmeunome,eupodereimemudarparaamesmaalaquevocê.—EraSylva, seguidapor Isadoraeaoutragarotanobre.

—Ugh,estelugarémenorqueomeubanheiro—fungouameninaloira,franzindoonarizperfeitocomosesentissealgumfedornoaposento.

— Eu sei! Você deveria vermeu quarto. Deixe-memostrá-lo— disseSylva,tentandoarrastaraoutraaoalojamentodasmeninas.Isadoraparoueavaliouogrupo,estreitandoosolhosquandopassaramporOtelo.

—Espereuminstante—disseela,batendoumpédelicado.—Chegouahoradedizeraessesplebeuscomoserãoascoisasesteano.

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Isadora caminhou ao redor do grupo como se fosse um leão damontanha espreitando a presa. Ela exalava uma confiança natural quecolocavaFletchernadefensiva.

—Eisoquevaiacontecer.Vocêsplebeusvãomanterascabeçasbaixasenão vão criar nenhumproblema para os nobres. Quando o torneio desteano começar, vão todos desistir na primeira rodada e deixar que seussuperioresassumamseuslugaresdedireito.Afinaldecontas,sãoosnossosimpostosquesustentamoexércitodorei,etambémpagamospelosnossospróprios batalhões de nobres. É apenas justo que lideremos os soldadospagos por nossas famílias. Vocês não têm direito nem chance de setornaremoficiaisseniores.Simplesmentenãoreceberamacriaçãocorreta.Entãofiquemforadonossocaminhoetalveznóspermitiremosqueumdevocêssirvacomonossotenente.Quetal?

Ela sorriu docemente quando terminou, como se tivesse acabado deelogiá-los.Fletcherfoioprimeiroafalar:

— Parece que vocês estão com medo da competição — afirmou, seespreguiçando com indiferença exagerada. Os outros permaneceramcalados, imaginando o que a menina faria em seguida. Isadora fez umbiquinho, como uma criança mimada; um contraste estranho com adiabinhaconfiantedemerosinstantesatrás.

—Serraronãoéequivalenteaserpoderoso.Lembre-sedisso,Fletcher—sussurounoouvidodele.

Quando ela se endireitou, Serafim voltou ao salão e sorriu ao ver asmeninas.

—Legal,ninguémmeavisouquetínhamosvisitas.Bem-vindasaonossohumildelar!Aindanãofomosapresentados.EusouSerafim.

Isadoralhelançouumolhardepurodesprezo,entãosaiupelaescadaria,ignorandoSylva,queestavaameio caminhodoquarto.Aelfaolhoucomraiva para Fletcher, como se fosse culpa dele, e saiu correndo atrás danobre.Amorenaficouindecisanaentrada,mordendoolábioparaSerafim,

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cujorostoeraumaimagemdeincredulidade.—Lamentoporisso—disseelanumavozquaseinaudível.—Vamos, Penélope!— gritou Isadora, de baixo. Amenina se virou e

partiu,comanucavermelhadevergonha.—Prazeremconhecê-las!—exclamouRoryenquantoeladesaparecia.— O que diabos foi isso? — perguntou Serafim, se largando numa

cadeira.— Ela estava nos avaliando, querendo ver se éramosmolengas. Acho

queseenganou—explicouOtelo,cerrandoospunhosderaiva.—EoqueSylvaestáfazendo,seinsinuandoparaosnobres?—indagou

Genevieve,igualmenteaflita.— Acho que, como filha de um chefe de clã, ela se considera nobre

também — sugeriu Fletcher, cujo pedido de desculpas ainda sendoformuladotinhadesaparecidocompletamentedospensamentos.

Por mais que Isadora e Tarquin parecessem ser a fonte de todaarrogânciadosnobres,pelomenosatéondeFletcherpodiaver,o fatodeSylva ter amarrado o boi na carroça deles não a colocou na sua lista deamigos.

— Vamos lá, juntem suas coisas; vamos pular o almoço e ir paraCorcillumagora—chamouFletcher.

—Ótimaideia.Achoqueperdioapetite—concordouOtelo,balançandoacabeçaeparecendodesapontado.

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26

Uma carruagem até Corcillum teria custado extorsivos seis xelins porpessoa,masOtelosabiadeumacidadeumpoucomaisadiantenaestradaprincipalondeotransportepoderiasairmaisbarato.Depoisdemeiahorade caminhada e mais dez minutos de negociação, o grupo embarcou nacaçamba de uma carroça puxada a cavalo por um xelim cada. Elescompraram uma cesta de maçãs por mais um xelim e a devoraram,curtindoodoceazedumedasfrutas.Nemachuvaquedesabavasobreelesconseguiu desanimar os calouros, que riam e tentavam pegar pingos deáguacomaboca.OLutradeAtlasfoiquemmaiscurtiuachuva, latindoerolandonastábuasmolhadasdacarroça.

Foramdeixadosnaestradaprincipaldacidade,lotadadecomercianteseclientes, apesar do temporal. Conforme o grupo se aglomerava numaesquina,aspessoasolhavamseusdemônioseuniformes,algumassorrindoeacenando,outraspassandoapressadascommedonoolhar.

—Quero iràperfumaria—anunciouGenevieve,aoverduasmeninaspassando com sombrinhas cor-de-rosa. Elas exalavam uma fragrânciaexóticaquefezFletcherlembrardasmontanhas.Seuestômagoserevirou

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quando ele percebeu quão pouco tinha pensado em Berdon nos últimosdias.Precisavaentraremcontatocomopaipara lhe informarqueestavatudobem.

— Eu preciso resolver algumas coisas, mandar algumas mensagens,coisasassim.Otelo,vocêsabedealguémquepossafazerumabainhaparaaminhaespada?—perguntouFletcher.

— Claro... desde que você não se incomode em passar pela casa daminha família no caminho — respondeu o anão, puxando a barba deempolgação.

—Porquenão?Aindanãovisitei obairrodos anões.Temalfaiates látambém?—indagouFletcher.

—OsmelhoresdeHominum—respondeuooutro,comfirmeza.—Bem,alguémtemquevircomigoàperfumaria.Nãopossoirsozinha

—choramingouGenevievequandomaisjovensdamaspassaram.OsolhosdeSerafimseiluminaramaovê-las,eeleseofereceusemhesitação.

—Euvou.Talvezhajaalgumaágua-de-colôniaquemeajudeaderreterocoraçãofriodeIsadora—comentouelecomumapiscadela.

—Rory,vocêvemconoscoouvaicomeles?—perguntouFletcher.—AchoquevoucomGenevieve.Seriainteressanteveroqueelesfazem

com todasas flores.Minhamãecolhe floresdamontanhaeasvendeaosmercadores de perfumes—explicouRory enquanto espiava de canto deolho as meninas bonitas que passavam. Fletcher tinha certeza de que amotivaçãodeRoryerabaseadaemalgomaisqueaartedaperfumaria,masnão o culpava. Fora apenas dois dias antes que ele tinha semaravilhadocomabelezadasjovensdeCorcillumeseusrostospintados.Atlasjátinhacomeçado a perambular rua abaixo,mas Fletcher presumia que o coleganão iria querer visitar o Bairro dos Anões com eles, considerando suaanimosidadeparacomOtelo.

—Nósnosencontramosaquiemcercadeduashoras.Temcarroçasdesobra a caminho da linha de frente por aquela estrada, então podem ir

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emboraseooutrogruposeatrasar—explicouOtelo.Elessesepararameapressaramopassoconformeachuvatorrencialse

intensificava,abrigando-sesobostoldosdaslojasesemantendopróximosdas paredes. Ignácio ronronava no calor seco sob o capuz de FletcherenquantoSalomãoseguiaalgunsmetrosatrás,lutandoparaacompanhá-loscom suas pernas atarracadas. O anão tomara a precaução de trazer umajaquetacomcapuz,masopobreSalomãopareciamiserável,todomolhado.

—Então,oquemaisvocêprecisafazeralémdevisitarumalfaiateeumferreiro?Ouvialgumacoisasobremandarumacarta?—perguntouOtelo,olhandoporsobreoombroparaseassegurardequeSalomãoaindaestavaà vista. Enquanto o anão escolhia o caminho por entre os muitos becosestreitos,Fletcher se tocoudequeele seriaoguiaperfeitoparaajudaromeninoaaproveitarsuavisitaaCorcillumaomáximo.

— Sim, preciso mandar uma carta à frente élfica— contou Fletcher.SeriamelhornãomandarnadadiretamenteaBerdonparaocasodeCaspare Didric interceptarem a comunicação. Talvez, se ele a enviasse aRotherham,entãoosoldadopoderiapassaramensagememsegredo.

— Bem, se é esse o caso, então é melhor mandar da Cidadela. Osmensageirosmilitarespassamporlátodahora.Quantoaoferreiro,acrediteemmimquandolhedigoqueéomelhor.Elecriouistoparamim.

Oteloparoueabriuabolsadecouroquelevavanoombro,puxandoumamachadinhadedentro.Ocaboerafeitodemadeiranegra,endurecidapelofogoeminunciosamenteesculpidaparaseencaixarnocontornodamãodoproprietário.Acabeçadomachadoerafinamasdevastadoramenteafiada,com uma lâmina bem amolada na parte de trás, que resultaria numcontragolpefatal.

—Estaéumamachadinhaenânica.Todososanõesrecebemumanoseudécimo quinto aniversário, para se proteger em sua vida adulta. Foidecretado pelo primeiro dos nossos anciãos santos que todos os anõesadultos teriam de portar uma destas o tempo todo, desde que nossa

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perseguiçãocomeçou,hádoismilanos.Atémesmoasanãspossuemumamara, umapulseira cheia depontas que levamo tempo todonopulso. Éconsideradopartedanossatradição,culturaereligião.Agoravocêentendeaestimaquetenhopelahabilidadedoferreiro.

OsolhosdeFletchersearregalaramquandoeleviuabelaarma.— Posso segurar? — perguntou, ansioso para experimentar a arma.

Talvezelepudessecolocaromesmocaboentalhadonoseukhopesh.Subitamente, soou um apito agudo e o som de pés correndo. Dois

Pinkertons vinham em disparada até eles, com cassetetes em riste epistolasapontadasparaorostodeOtelo.

—Solteisso!Agora!OprimeiroPinkertonsegurouoanãopelagarganta,ergueu-odochãoe

oempurroucontraumaparededetijolos.Ohomemeraumbrutamontes,com uma barba negra eriçada que cobria um rosto feio e esburacado. AmachadinhadeOtelocaiunochãoenquantoelelutavapararespirarcontraosdedosenormesqueapertavamsuatraqueia.

—A gente já não falou que vocês anões não podemportar armas empúblico? Por que vocês não conseguem enfiar isso nessas suas cabeçasduras? Só humanos dispõem desse privilégio! — exclamou o segundoPinkerton numa vozinha aguda. Era um homem alto e magro com umbigodinhofinoecabelosloirosensebados.

—Soltemele!—gritouFletcher,recuperandoavoz.Orapazavançouaomesmo tempoque Ignácio saltouparao chão, sibilandoviolentamente.Odemôniosoprouumarajadadechamasemadvertência.

— Solte-o, Turner — comandou o Pinkerton magro, percebendo operigoearrastandoocassetetepelaparede.

—Tudo bem, sargentoMurphy. Vamos nos divertirmais com ele nascelas,mesmo—grunhiuograndalhão,soltandoOtelo,quecaiu,ofegante,nos paralelepípedos da rua. O homem acertou um pontapé violento noflancodoanão,fazendo-ogritardedor.Comisso,umrugidosobrenatural

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sooudetrásdeFletcher.—Não!—arfouOtelo, erguendo amãoquando seuGolemavançou e

detendo-oapoucosmetrosdeTurner.—Não,Salomão,estátudocerto.Oanãoselevantoucomdificuldade,apoiando-senasparedesenquanto

cambaleavaatrásdeFletcher.—Estátudobem?—perguntouorapaz.OGolemcorreuatéomestre,

ribombandodepreocupação.—Estou bem. Eles jáme fizeram coisa pior antes— grasnou o anão,

dandotapinhasamistososnacabeçadoGolem.Fletcher girou e fez uma careta para os Pinkertons, levando a mão

lentamenteatéokhopesh.Murphyavançouecutucou-lhenopeito.—Quanto a você, pode tirar essa cara demau do rosto— grunhiu o

sargento,erguendooqueixodeFletchercomocassetete.—Porquevocêestádefendendoumanão,afinal?Émelhortomarmaiscuidadocomessassuasamizades.

—Euachoquevocêdeveriaestarmaispreocupadocomo fatode tertentadoprenderumoficialdoexércitodoreiporportarumaarma!Ouvocêesperaqueeleenfrenteosorcsdemãosvazias?—retrucouFletchercomuma confiança que não sentia. Turner brandia o cassetete de um lado aoutro.

—Quemévocêparamedizeroqueeupossoounãoposso fazer?—inquiriuMurphy,apontandoapistolaparaorostodeFletcher.NãohavianadaqueIgnáciopudessefazercontraumabala.Fletcherconsiderousuaschances de sucesso ao lançar um feitiço de escudo pela primeira vez, edesistiudaideia.Melhorlevarumasurradoquearriscaramorte.Omeninopraguejou em voz baixa; aquela era a segunda vez que se encontravaencurraladonasruasdeCorcillumcomumapistolanorosto.

—Oquevocêacaboudedizer?Achoqueelexingouosenhor,sargentoMurphy—rosnouTurner,erguendoaprópriapistola.

— Nada! Eu estava só praguejando pela minha sorte — gaguejou

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Fletcher. Os dois canos eram como um par de olhos de serpente, prontaparaatacar.

—Vocêsnãofazemideiadequemestãoprovocando—grunhiuOtelo,endireitando-se com um estremecer. — Melhor vocês baixarem essaspistolasecaíremforadaquiagora.

— Já chega,Otelo!— sibilou Fletcher.O anãodevia ter enlouquecido!Erafácilparaeleserarrogantequandonãoeraelequemencaravaoscanosdeduaspistolas!

—Esperem só até ele contar aopai sobre vocês. Lorde Forsyth ficarámuitoaborrecidoaosaberqueunsPinkertonspés-rapadosapontaramasarmasparaseu filhoTarquin—continuouOtelo,desabotoandoa jaquetaparamostrarouniformeporbaixo.Fletcher tentounãoparecersurpresodemais,maspordentroestavahorrorizadocomoblefearriscadodoanão.Dequalquermaneira,eratardedemais.EntãoFletcherpercebeuumsinaldehesitaçãonorostodeMurphy.

— Obviamente, vocês estão cientes dos batalhões enânicos sendoformadosna frenteélfica.SeosForsythtiveremque incorporarumdelesemnossas forças,queremos terosmelhoresoficiaisanõesdisponíveis—declarouFletchercomconfiançanavoz,afastandoapistoladeTurnerdoseurosto.—Eagoraencontrovocêsatacandonossomaisnovooficialnarua porque ele está carregando uma arma que lhe foi dada pelo próprioZacariasForsyth?Quaissãoseusnomes?Murphy?Turner?

ApistoladeMurphyvacilou,emseguidasendoapontadaaochão.—Vocênãofalacomoumnobre—acusouMurphy,focalizandooolhar

nabainhaesfarrapadadascalçasdouniformedeFletcher.—Nemsevestecomoumdeles.

— Seu uniforme também ficaria assim se você estivesse lutando naslinhasdefrente.Quantoàminhavoz,sevocêtivessecrescidoemmeioaossoldados rasos, sua linguagem também seria áspera como a minha. Nãopodemos todos ser rapazes almofadinhas como vocês.—Fletcher estava

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pegandoojeitodacoisaagora,masOteloocutucounascostas.Orapazsecontrolou,preocupadoemteridolongedemais.—Agora,sevocêsmedãolicença,vouseguirmeucaminho.Ignácio,venha!—chamou,afastando-seapassos largos rua abaixo. Ele não olhou para trás,mas ouviu o clique dapederneirasendoengatilhada.

—Continue andando— sussurrouOtelo atrás dele.—Eles estão nostestando.

Fletcher seguiu adiante, a cada segundo imaginando uma balairrompendo do seu peito. Assim que eles viraram a esquina, saíramcorrendopelarua,edestavezSalomãomalconseguiuacompanhá-loscomasperninhascurtas.

— Você é um gênio — ofegou Fletcher quando eles estavam a umadistânciasegura.

— Não me agradeça ainda. Na próxima vez em que te encontrarem,provavelmente vão te dar uma surra. Não vão conseguirme reconhecer,todososanõessãoiguaisparaeles.Jáfuipresoduasvezesporessepareelesnemmereconheceram—resfolegouOtelo,agarrandooflancoferido.—Masachoqueelespodemtermequebradoumacostela.

—Aquelesmonstrossádicos!Temosquelevarvocêaummédico.Nãosepreocupecomigo.Eutinhaocapuz levantado,eestavaescuro.Desdequeelesnãovejam IgnácioeSalomãodapróximavezquenosencontrarmos,vaificartudobem.Precisamosaprenderainfundirnossosdemôniosomaisrápido possível. E feitiços de escudo também, por falar nisso— afirmouFletcher.

—Temtodarazão.Bem,vamoslá.OBairroAnãonãoficalongedaqui.Minhamãedeveconseguirfazerumcurativonomeutorso—disseOtelo.Salomão soltou um grunhido gutural quando eles partiram novamente.Claramente, não estava acostumado com tanto exercício.— Vou ter quebotarvocêemforma—ralhouOtelo,pausandoparafazercafunénacabeçarochosadoGolem.

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Elescontinuaramandando,porruasqueficavamcadavezmaisestreitasemaissujas.Eraóbvioqueoslimpadoresnãosedavammaisaotrabalhode passar por ali, não com o Bairro Anão tão perto. Os anões devem terrecebidoapiorpartedacidadeparaviver.

— Por que você foi preso antes?— indagou Fletcher, evitando pisarnummendigoquedormianomeiodarua.

—MeupaiserecusouapagarodinheirodeproteçãoqueosPinkertonslhecobraram.Todososnegóciosdeanõessãoextorquidospelospoliciais,masessesdoissãoospiores.Elesmejogaramnascelasnasduasvezes,atéomeupaipagar.

— Isso é loucura! Como é que eles se safam com isso?— perguntouFletcher.Otelocontinuouandandoemsilêncioeorapazsearrependeudoquedisse.Queperguntaidiota.—Oqueoseupaifaz?Eleéferreiro?Meupai eraum ferreiro—contou, tentando rompero silêncio constrangedorquetinhacriado.

—Meupaiéumdosartíficesquedesenvolveramomosquete—afirmouOtelo, orgulhoso. — Agora que guardamos o segredo da sua criação, osPinkertons pararam de aborrecer os ferreiros anões. Não posso dizer omesmodetodososnegóciosenânicos,porém.Acriaçãodosmosquetesfoio primeiro passo na longa jornada pela igualdade. Nossa entrada para oexércitoéosegundo.Vouterminaroqueomeupaicomeçou.

—VocêdeveseroprimeirooficialanãoemHominum,mesmoqueporenquanto seja só um cadete. Isso émotivo demuito orgulho— afirmouFletcher.

Eleacreditavaemcadapalavra;quantomaisaprendia sobreosanões,maisos respeitava.Ele se empenhariapara emular suadeterminaçãoemmelhoraraprópriasituação.

Oteloparoueapontouadiante.—Bem-vindoaoBairroAnão.

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27

Os prédios altos desapareceram para revelar fileiras e mais fileiras debarracas brancas, lindamente bordadas com formas caleidoscópicas emvermelhoe azul.Gramaverdeprimaveril substituíaosparalelepípedos, ecadapavilhão era cercadode jardins carinhosamentemantidos.As floresdecoresvívidasemanavamperfumesdocesnoar,lembrandoFletcherdosverõesdasuajuventudenasmontanhas.Liberadodosprédiosesquálidos,osoldeinvernolançavaumaluzpálida,masquente,norostodorapaz.

— É lindo — comentou ele, maravilhado pela súbita transformação.Fletcher tinha esperado que o Bairro Anão fosse um lugar paupérrimo emiserável, considerando o nível das construções que o cercavam. Otelosorriu com essas palavras e seguiu mancando, acenando para os anõespróximossentadospelosjardins,conversando.

— Eis o meu lar— disse Otelo, apontando uma barraca próxima.—Minhafamíliainteiramoraali.

—Equantosvocêssão?—indagouFletcher,tentandonãoseincomodarcomosolharesquerecebiadosoutrosanõesaopassar.

—Ah,tempelomenosunstrintadenósemcadabarraca,masanossa

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contémaoficinadomeupai,entãosomossóvinte.Eleprecisadoespaço.Fletcher tentou entender como um grande pavilhão de pano poderia

contervintepessoaseumaoficina.Cadaumdeleseradotamanhodeumgrande celeiromas, amenos que eles dormissem em beliches, não haviacomoissoserverdade.

—Baixeocapuzetireossapatosantesdeentrar.Nanossacultura,issoéeducado—instruiuOtelo.

Fletcherajudouoamigoatirarasbotas;opobreanãotinhacomeçadoaempalidecerporcontadadordoferimento,eabaixar-seeradifícilparaele.Enquanto o rapaz humano, ajoelhado, lutava com os nós grossos doscadarçosdoanão,umasilhuetabaixa comrobesesvoançantes correuatéeles, gritando em choque. Seu rosto era obscurecido por um véu cor-de-rosapresoporumadelicadacorrentedeprata.

—Otelo,oqueaconteceu?—uivouasilhuetanumavozaguda.—Estoubem,Thaissa.Eusóprecisoentrar.Émelhornãodeixarqueos

outros me vejam ferido, ou vão achar que estou sendo maltratado emVocans,oquenãoéocaso.

Thaissaabriuaabadatendaeoscolocouparadentro.Estranhamente,nãoeraoaposentoespremidoqueFletchertinhaesperado.Emvezdisso,opisoeradecoradocomtapetesealmofadas.Nocentro,umgrossocanodemetal se estendia até o topo da barraca, como uma chaminé. Fletcherfinalmente entendeu tudo ao ver a escada em espiral que circundava ocano,descendoterraadentro.Elesviviamnosubterrâneo!

Thaissa, que só poderia ser a irmã de Otelo, continuou a fazer umrebuliçoaoredordoanão,empilhandoalmofadasnochãoparaqueelesereclinasse.

—Vocês têmumbelo lar—comentouFletcherenquantooutra figurasubia as escadas. Ele captou um relance de um rosto com bochechasrosadas e olhos verdes brilhantes antes que a anã soltasse um berro epuxasseumvéusobreorosto.

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—Otelo!—gritouela.—Comovocêpôdetrazervisitassemnosavisar?Eleviumeurosto!

—Estátudobem,mãe;nãoachoquehumanoscontam.Eleémeuamigoeeupeçoqueotratemcomotal.—Otelodesabouparaochãoeagarrouoflanco.

—Vocêestáferido!—exclamouela,correndoatéofilho.—Porfavor,pegueasataduras.OpolicialTurnereosargentoMurphy

me atacaramde novo.Desta vez, acho que podem terme quebrado umacostela.Precisoquevocêpassebandagenspelomeutórax.

Ele falava entrecortadamente, como se respirar fosse doloroso,enquanto tirava a jaqueta e a parte de cima do uniforme. Seus largosombros e peitoral eram cobertos com uma grossa penugem ruivaencaracolada, que também descia até a metade das costas. A pele dosombros estava coberta com uma malha de cicatrizes, mais umademonstraçãodabrutalidadedosPinkertons. Fletcher estremeceu ao vê-las.

AmãedeOtelodesceuasescadascorrendoenquantoThaissaenxugavaa testado irmão comamangada roupa.Ela logovoltou comumrolodelinhoecomeçouaenrolá-locomforçaaoredordopeitodofilho.Oteloseencolhiacomcadavolta,masaguentouestoicamente.Fletcherjápodiaverumhematomanegrocrescendonotóraxdoamigo.

—Otelo, o que você está fazendo aqui de volta tão cedo? Alguémmecontouquetinhalhevistonacidade—disseumavozatrásdeles.

— Estou só sendo remendado, Átila — respondeu Otelo. — OsPinkertonsbateramumpapocomigodenovo.SortequeFletcherestavaláparameajudar.

Havia outro anão parado na entrada. Ele era extremamente parecidocom Otelo; quase idêntico, na verdade. Lançou um olhar de puro ódio aFletchereajudouOteloaselevantar.

— Os humanos nunca vão nos aceitar. Deveríamos abandonar esta

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cidademalditaecriarnossosprópriosassentamentos,longedaqui.Olhesóo que aconteceu com você depois que fraternizou com esse humano—ralhouÁtila.—Vá embora daqui, humano, antes que eu faça omesmo avocê.

ComoseIgnáciopudesseentenderaspalavras,elesaltouparaochãoesibilou,deixandoumafinacolunadefumaçasairdasnarinas.

—Chega!Estou fartoda sua retórica anti-humana!—gritouOtelo.—Nãovoupermitirqueinsultemeuamigonomeuprópriolar.Évocêquemtemqueirembora!—EletossiudedorcomaexplosãoderaivaeseapoiouemFletcher.

Átila lançoumaisumolhar furiosoaorapazeentãopartiudabarraca,resmungandoemvozbaixa.

—Vocêvaiterquedesculparmeuirmãogêmeo.Eletambémpassounoteste,masseuódiopeloseupovo,Fletcher,significaqueele jamaislutaráporHominum,nemmesmocomoummagodebatalha.Nósdoisdesejamosa libertação dos anões, mas é aí que termina nossa concordância —explicouOtelo, infeliz.—Eumepreocupocomele, comoqueécapazdefazer.Malpossolembrarquantasvezesmeentregueiquandoelesemitiamummandadodeprisãonoseunome,esofriaspuniçõesdele.Setivessemtentado prendê-lo, ele poderia ter resistido e lutado de volta, e então omatariam.Oquemaiseupoderiafazeralémdeiremseulugar?

—Estátudobem.Comoeupoderiaculparseuirmãoporsesentirassimdepoisdoquevihoje?Esperoqueeutenhaumachancedemudaraopiniãodeleumdia.Nãosomostodostãoruins.

— Sim, sim, você até que não é tão mau — admitiu Otelo com umsorriso.—EstamostentandomanterÁtilalongedeencrencas,trabalhandocommeupainaoficina.Achoqueémelhorlevarvocêlálogo.Meupaivaidarumaolhadaemsuaespada.ÉomelhorferreiroemtodaHominum.

— O inventor dos mosquetes e pistolas? Não duvido — comentouFletcher, em seguida se lembrando das boas maneiras. — Eu ficaria

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honradosemepermitissemvisitarseular—disseàsduasanãs,curvandoacabeça.

OvéudamãedeOteloescondeusuaexpressão,maselaassentiudepoisdealgunsinstantes.

— Confio no julgamento do meu menino, e fico feliz que ele tenhaencontradoumamigoemVocans.Temíamosqueelepudesseserinfelizporlá.MeunomeéBriss,éumprazerconhecê-lo.

—Eletemmuitosamigos,sousóumdeles—explicouFletcher,dandotapinhasamistososnas costasdeOtelo.—Estouhonradoemconhecê-la,Briss,evocêtambém,Thaissa.

— Devemos parecer muito estranhas para você, com nossos véus—comentouThaissa,comvoztímidaehesitante.—Nãoécomumqueanãsencontremhumanos.Ora,muitosaindapensamqueasanãstêmbarbasesãoidênticasaosanões!

Elariu,eatémesmoBrisssoltouumarisadinhaleveemelódica.—Tenhoqueadmitir,estavameperguntandoporquevocêsosvestem.

Seriarudedaminhaparteperguntar?—inquiriuFletcher.—De forma alguma. Nós os usamos para que os anões se casem por

amor,enãopor luxúria—explicouBriss.—Nossosmaridosnãopodemnos ver até a noite de núpcias, então precisam nos amar por nossaspersonalidades,enãopelasaparências.São tambémumsinalderecatoeprivacidade,demodoquenãoexibimosnossabelezaparaquetodosvejam.Éumprivilégioreservadoaosnossosmaridos...

—Falandoemmarido,preciso levarFletcherparaconversarcommeupaiagoramesmo—interrompeuOtelo,desconcertadocomafranquezadamãe.—Vamos,Fletcher,eleestánoandardebaixo.

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Os degraus se abriam numa câmara, tão larga e alta quanto o pavilhãoacima. O cano no centro continha uma chama que crepitava sobre umagrelha,eascorrentesdearvindasdebaixolançavamfagulhasvelozmentepara o alto. As paredes eramde terra nua, escoradas por fortes vigas decarvalhoquesustentavamoaposento.Pequenoscandelabroscomvelasdecera pendiam do teto, conferindo ao salão uma iluminação alaranjada ecalorosa.Haviaseteportasconstruídasnasparedesdasalaredonda,todasfeitasdeaçosólido.

Eles seguiram descendo até chegar a outra câmara quase idêntica,contendoumamesade jantardepedra.Emvezda lareira, o canoestavaconectadoaoquepareciaserumgrandefornoefornalha.Vasosepanelasdetodosostamanhosestavamempilhadoscontraasparedes.Cadaumerapintadocomintrincadospadrõesflorais.

—Éaquiqueaminhamãepassaamaiorpartedotempo.Elagostadeassar, tanto comida quanto porcelana. Um homem vem comprar osprodutosdelaemgrandequantidadeumavezporsemana,paravendernalojadele.AsdonasdecasadeHominumtorcemosnarizesparaporcelana

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enânica,entãoelefingequesãodefabricaçãoprópria.Faturamosumlucrobem decente — gabou-se Otelo. Fletcher estava impressionado com avelocidadedarecuperaçãodele.Osanõeseramumpovoforte,comcerteza.

Osdoiscontinuaramdescendocadavezmaisfundonaterra,conformeaescadaria se tornava mais estreita e apertada. Fletcher estava feliz queSalomão tivesse se contentado em descansar com Thaissa e Briss; suaspernasatarracadasjamaisdariamcontadaquelesdegraus.

Eles passaram por mais duas câmaras enquanto desciam, cada umamenorqueaanterior.Aprimeiraerarevestidadepedraeestavacheiadevaporresidual,comtubulaçõesdecobrequecirculavamaoredordacolunacentral;algumtipodesauna.

O salão seguinte estava escuro demais para que se visse muita coisa,masFletcherpôdediscernirsilhuetasdepiqueseespadas.Orapazdeduziuquesetratavadeumdepósito,lotadocomasarmasdopaideOtelo.Aessaaltura, a escada ficou tão íngreme que Fletcher quase teve de descerescalando,atrapalhadonapenumbra.

—Peçodesculpaspelasescadas.Foramdesenhadasparadefesa, sabe.Elas descem no sentido horário, então qualquer grupo de homens quetentassemabrircaminholutandoteriamquebatalharcomamãoesquerda,esópoderiamdescerumdecadavez.Umanãosozinhopoderiadefenderestaescadariacontramilinimigos,sefosseumguerreirobomobastante—explicou Otelo, batendo com os nós dos dedos no pilar central queimpediriaumespadachimdestrodeusarsuaespada.

Ele soou oco às bastidas do anão, e Fletcher reconheceu o som de arquenteemseuinterior.

—Os seus lares sempre foram assim?— perguntou, começando a sesentir claustrofóbico conforme o teto baixo começava a raspar em suacabeça.Paraalguémacostumadoaoscéusabertosdoaltodasmontanhas,aquelanãoeraumaexperiênciaconfortável.

— Sim, até onde nossas memórias alcançam. Achamos que antes era

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defesa contra animais selvagens e orcs, mas com o tempo passamos apreferir dormir debaixo da terra. É tão silencioso e pacífico. Tenho queconfessar,andotendoproblemasemdormirnoaltodaquela torre,comoventosoprandonomeuquarto.

— É... eu também — admitiu Fletcher, pensando no vulto na pontelevadiçadanoitepassada.

—Aquiestamos—anunciouoanãoaoalcançarofimdaescada.Haviauma grande porta de aço cercada por rocha, como se tivesse sidoincorporadaaumacamadanaturalderochasubterrânea.

— Mesmo que eles escavassem ao redor do portão, teriam quedesbravar a rocha sólida para entrar. Meu pai valoriza muito suaprivacidade. Há muitas outras oficinas como esta, abrigando as fábricasonde se produzem os mosquetes. Mas esta é especial. Foi aqui que oprimeiromosquetefoicriado.

Elebateuopunhocontraaportacomumribombarrítmico,algumtipode código secreto. Alguns segundos mais tarde, houve uma série deestrondos que indicavam trancas sendo removidas. Por fim, um rostofamiliarabriuaporta.

—Athol!—exclamouFletcher,sorrindoaoveroconhecido.—OpaideOtelo é seumestre? Eu deveria ter adivinhado, por causa daquelas belasarmas.

—Oquevocêestáfazendoaqui?—OrostodeAtholfoitomadoporumaexpressãodesurpresaeconfusão.—EcomOtelo,aindaporcima?

— Ele é meu amigo de Vocans — explicou Otelo, empurrando paraentrarnoaposento.—Euqueroapresentá-loaomeupai.

—Uhtredestáocupadoagora,Otelo.Émelhorvocêvoltaroutrahora—avisouAthol.—Espereaquifora,Fletcher.Nãoachoqueelegostariadasuapresençanaoficina.

Osanõesdesapareceramdoladodedentro,deixandoFletcherespiandopela porta. A oficina estava cheia de ferramentas e pilhas de lingotes de

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metal. Diferentemente da forja de Berdon, tudo estava organizado a umgrauquaseobsessivo.O interiordo salão radiava calor, comoseFletcherestivessecomorostoacentímetrosdeumafogueira.Logoqueficaramforade vista, uma conversa começou a ser murmurada, mas o rapaz nãoconseguiaentenderoqueeraditograçasaorugidoabafadodaschamasdaforja.

—OQUÊ?—trovejouumavoz.—AQUI?Obaquedepassospesadossooupelo salão,eopaideOteloapareceu

diante de Fletcher. O peito nu do anão era muito largo, com braçosmusculososcujaenvergaduraocupavatodaaextensãodaportaenquantoele bloqueava a vista para dentro do aposento. A barba vermelha quependiadoqueixoeradivididanumabifurcaçãoquedesciaemduastrançasatéacintura,eolongobigodeescorridoquaselhealcançavaoestômago.Adensapelugemnopeitocintilavacomosuornoincandesceralaranjadodofogonaforja.

—Atholmecontaquevocêpediutrabalhocomomeuaprendizhámerosdois dias.— A voz retumbante de Uhtred ecoou no espaço apertado daescadaria. — Agora descubro que você está todo amiguinho do meumenino,seenfiandonanossaforja.Nãoconfioemvocê,nemdelonge,tãolonge quanto eu poderia te arremessar. E garanto que eu poderia tearremessaraumaboadistância.

IgnácioseagitounointeriordocapuzdeFletcher,sentindoaameaça.Omenino recuou alguns passos, horrorizado com a implicação. Porém, aomesmotempo,entendeucomoasituaçãopareciasuspeita.

—Eujuro,nãotinhaplanonenhumaoviraqui.Trabalheinonortecomoaprendiz de ferreiro. Tinha acabado de chegar a Corcillum e estavaprocurandoemprego!OteloeeusónosencontramosquandomealisteiemVocans.Precisodeumabainhaparaminhaespada,eseufilhoseofereceuparame levar num ferreiro de confiança. Eu nem sabia que ele vinha deuma família de ferreiros até alguns minutos atrás, nem que Athol

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trabalhavaaqui.Vouesperarláemcima.Minhassincerasdesculpasporterperturbadovocês.

Fletcher fez uma mesura e se virou para partir, mas só chegou aoprimeirodegrauantesqueUhtredpigarreasse.

—Euposso ter... sido apressado.Meu filho é umbom juiz de caráter,assimcomoAthol.Masprecisotestarasuahistóriaprimeiroeversevocêrealmente é um aprendiz. Athol, esconda as ferramentas de produção demosquetese tragaumdosmartelosmenoresparaFletcher.Seele forumespião, melhor descobrir logo, para que possamos tomar as devidasprecauções.Enquantoisso,mostre-meessaespada.Fazumbomtempoquenãovejoumkhopeshdequalidade

Fletcher sacou a armae entregou aUhtred. Elapareciaminúsculanasmãosenormesdoanão,maiscomoumafoiceparapodarfloresdoqueumaarma mortal. O ferreiro tinha quase um metro e meio de altura,praticamenteumgigantedentreosanões.

—Vocêprecisacuidarmelhordisto.Quandofoiaúltimavezquevocêaoleou ou afiou?— indagouUhtred, inspecionando a espadapor todos osângulosàluzfraca.—Umaespadaéumaferramentacomooutraqualquer.Vou lhedeixarumoleadoparaservirdeembrulhoenquantoabainha forpreparada,casoasuahistóriasecomprove.Cuidedassuasarmas, rapaz!Vocêdeixariaseudemôniopassarfome?

— Acho que realmente fui relapso nos últimos tempos — admitiuFletcher, envergonhado. Ele mal dedicara um único pensamento aokhopeshdesdequeorecebera,excetodurantesualutacontraSirCaulder.Mais uma pontada de culpa o atravessou ao pensar em quanto tempo eesforçoBerdondeveterdedicadoàcriaçãodaarma.

— Muito bem. Athol já deve ter preparado tudo — afirmou Uhtred,saindodocaminho.—Vamosverdoquevocêécapaz.

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Fletcher fez uma careta quando o metal vermelho incandescente nabigorna lentamente ficou cinzento de novo. Toda vez que ele removia abarradeaçodaschamasestrondosasda forja,ometalesfriavadepoisdeapenas uma ou duas marteladas do menino. Ele a tinha moldado numagrosseiraestacademetal,nadaparecidacomaadagaquequeriacriar.

—Eisoaçoenânico—comentouOtelo,comumtomdepena.—Émaisduro e afiado que qualquer metal conhecido pelo homem, mas esfriarápido.Vocêprecisateraforçadeumanãoparacausaralgumimpactoneleantesqueendureçadenovo.

— Foi um truque injusto que pregamos em você, Fletcher— admitiuUhtred, não sem gentileza. — Eu sabia que não conseguiria trabalhá-lo.Athol,pegueumpedaçodeferro-gusalánosfundos.

—Pelomenos ele não soube identificar o aço enânico pela aparência,logopercebipelaexpressãodeespanto—comentouAthol.—UmespiãodosmilitaresdeHominumcertamentesaberiaisso.Agoravamosdescobrirseeleeramesmoumaprendiz.

—Esperem—disseFletcher,comumaideiaseformandonacabeça.—

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Achoqueconsigodarumjeitonisso.EletirouIgnáciodopescoçoecutucouobichoparaacordá-lo.Odiabrete

bocejoue coçouo rosto comapata traseira, comoumcachorro.FletchersorriueesperouqueaconsciênciadeIgnáciopassassedeconfusaàclaraconformeacordava.

— Hora de pegar no batente, sua coisinha preguiçosa— provocou orapaz.Entãoeleseconcentrounoaço,desejandoqueficasseincandescentedenovo. Ignácio trinoudeempolgação.Ele respirou fundoe soprouumachamaazuladanometal.

Lenta,masimplacavelmente,ometalficouvermelho,depoisrosado.—Uau...umdessesmeseriamuitoútil—sussurrouUhtred,admirado,

enquantoodemônioinspiravamaisumavezantesdeintensificarachama.Ometaltornou-sequasebranco,enchendoaoficinacomumcheiroacreesulfúrico.

Fletcher desatou a martelar, moldando a adaga com cada impacto.Depoisdoquepareceuumaera,eleacalmouIgnáciocomumpensamento.Exausto, o demônio rastejou de volta ao seu lugar sob o capuz. Fletchertambém se sentia exausto, com o braço doendo da chuvarada demarteladasqueeledespejaranalâmina.

Uhtredusouumatenazparalevaraarmaàluz.Ocaboeraumpunhodemetalsimplescomumpomoredondo,prontoparaserenvolvidoemcouroa fim de que proporcionasse um aperto mais firme à mão. A lâminapropriamenteditaeraumpunhalclássico,longoefinocomopreferiamosassassinos.

—Ondevocêaprendeuafazerumdesses?—indagouOtelo,testandoapontacomodedão.—Nãoéexatamenteumequipamentopadrão.

—Nósvendíamosquasetodosaosmercadores.Elesgostavamdeumaarma fácil de ocultar, para pegar os salteadores de surpresa— explicouFletcher,admirandooprodutodoseutrabalho.Eraumadesuasmelhorespeças.

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—Muitobem,rapaz,vocêestálivre.Nãoécomosetivessedescobertonada de mais, de qualquer maneira. Para compensar minha falta deeducação, vamos lhe fazer a bainha de graça. Você vai ter que deixar alâminaconosco,masareceberádevoltaemalgunsdias.Minhamulhervailhecosturarumnovouniforme,também.Nãovaiserfeitosobmedida,masserámelhor que essa coisa comida por traças que você veste agora.Nãoqueremos que ninguém diga que os companheiros de nosso filho sãovagabundos.Semofensa—afirmouUhtredcomumsorriso.

— Quanto eu lhe devo? — perguntou Fletcher, pegando a bolsa dedinheiro.

— Só esse punhal e sua promessa de que vai tomar conta do meumenino.Vocêpareceserdeumtiporaro,Fletcher.Égentecomovocêqueme dá esperanças de reconciliação entre anões e homens — explicouUhtred.

Achuvacaía fortequandoelesalcançaramopontodeencontro,masnãohaviasinaldosoutros.Otelochutouaparedeenquantoelestremiamdefrionumvãodeporta,planejandooquefazeremseguida.Nãohaviacarroçasàvista,easruasestavampraticamentedesertas.

—Drogadechuva—resmungouOtelo.Eleestavadepéssimohumor,enãosóporcausadotempoedafaltadetransporte.NapressaparaescapardosPinkertons,amachadinhadeOtelotinhaficadonochão.Osrapazesnãoa encontraram ao voltar pelo mesmo caminho. — Droga de Pinkertons,também.Minhacostelaestárígidacomopedra,eperdiumadasmelhorespeças do meu pai — continuou Otelo, estreitando os olhos em meio aodilúvio.

—Lamento,Otelo.Tenhocertezadequeseupaifaráoutraparavocê—disseFletcher,fazendoumacaretadesolidariedade.

— Como você se sentiria se perdesse seu khopesh? — Otelo soavaamargurado,saindoparaarua.

Fletcher não sabia como responder, então ficou de boca fechada. Ele

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seguiu o anão abatido pela chuva. Os dois estavam gelados até os ossosapesardasjaquetas,eFletchersabiaqueajornadadevoltaparacasaseriafriaemiserável.

—AchoquenossamelhoropçãoéapraçaValentius—gritouOteloemmeio aos trovões que retumbavam no ar.— É lá que fica amaioria dosestábulos.

— Tudo bem, vamos lá! Não aguento mais ficar parado — berrouFletcherdevolta,deolhonocéubarulhento.

Elescorrerampelasruasvazias,pisandonaspoçasqueseformavamnocaminho. A cada tantos segundos, a rua era congelada num clarão derelâmpago,seguidodoestrondodotrovão.

—Osraiosestãoperto,Otelo!Deveterumatempestadedeverdadeseformando—gritouFletcher,cujavozquasefoilevadapelovento.

—Quaselá!—berrouOtelodevolta.Finalmenteeleschegaramaumapequenapraçacomumenormetoldo,

que protegia o lugar do pior da chuva. Estava tomada por umamultidãoqueseabrigavadatempestadeeescutavaumhomemnumaplataforma.Elegritava,masFletcherestavacansadodemaisparaouvir.

—Elesleiloamcavalosdaquelepalco,sevocêsentirvontadedecomprarumparamimalgumdia—brincouOtelo,torcendoabarba.

—Hah, talvez um pônei barrigudo; é omáximo que você conseguiriamontar—zombouFletcherdevolta,felizqueoanãotivesserecuperadooânimo.

Enquantoelesvasculhavamolugarembuscadeumacarroça,Fletchercaptouasúltimaspalavrasdodiscursodohomemirado.

—...Eaindaassimoselfosfazemaguerrasearrastar,custandoàsduasnaçõesumpreçomuitomaiordoqueovalordoimposto!Sóque,aoinvésde levar a guerra até eles, nosso rei fala em paz, sem perceber asverdadeiras intenções dos elfos! Eles querem que o nosso reino perca aguerra,vocêsnãopercebem?QuandoHominumcair,oselfosficarãolivres

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paratomarnossasterras!Osorcsnãoasdesejam;elessóqueremnosvermortos. Quando o sangue correr pelas ruas de Corcillum, os elfos seregozijarãocomnossasmortes!

A multidão rugiu em aprovação, agitando os punhos no ar. Fletcherprestouatenção,distraídodesuatarefaimediata.Elenuncatinhavistoumhomemfalartãoabertamentecontraorei,nemcomtantoódiopeloselfos.NemmesmoRotherhamtinhasidotãoveemente.

—Entãooquepodemosfazerquantoaisso?Comoforçaramãodorei?Eudigoavocês!Vamosmarcharatéaembaixadadelesematar cadaumdosdesgraçadosdeorelhaspontudas!—uivouohomem,comumapaixãotãoferventequequasechegavaaumberro.

Desta vez a plateia ficou menos empolgada. Essa sugestão era tãoousada que um silêncio constrangedor recaiu sobre a multidão,acompanhadodemurmúriosperturbados.Ohomemergueuamãocomosepedissesilêncio.

—Ah,eusei,oprimeiropassoésempreomaisdifícil.Masvamosdá-losjuntos. Vamos aproveitar estemomento!— rugiu ele, acompanhado porumpunhadodevivasdamultidão,quecomeçavaase interessarpelasuaretórica.—Mas,primeiro,deixem-memostrarcomosefaz.Grindle,tragaaprisioneira!

Umhomemgordo e careca, combraços tão fortesquantoosdeOtelo,emergiu de uma porta atrás do palco e arrastou uma elfa, que gritavadesesperadamente,atéafrentedaplataforma.Mesmodeondeestava,bemnofinaldogrupo,Fletcherreconheceuavítima.

—Sylva!—gritouele.

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Aturbapulsavadeexcitação,tantoultrajadaquantoempolgada.Ohomemgordobrandiuumaclavanoarcomumfloreio,suscitandomaisgritosdopovo.Fletchercomeçouaabrir caminhoatéa frente,mas foi contidoporOtelo.

—Vamoslá!—chamouFletcher,lutandocontraoapertofirmedoanão.—Não temosnenhumaarma,Fletcher.Precisamosprocurar ajuda!—

retrucouOtelo,enquantoamultidãoaoredordelesseconvulsionava.—Quemvamos chamar, osPinkertons? Senão fizermos alguma coisa

agoramesmo,Sylvavaimorrer—retrucouFletcher,soltandoobraçoeselançandoadiante.

O menino empurrou dando cotoveladas, mas a multidão ficava maisdensaconformeeleseaproximavadopalco.Logoestavasendoesmagadopelamassadecorpos,malcapazdeveracimadascabeçasdaquelesàsuafrente.

— Os elfos são tão ousados que andam por nossas ruas, como se aguerranadasignificasseparaeles!—gritouohomemnopalco.—Grindle,tragaelaatéaquiparaquepossamosmostraratodosoquefazemoscom

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elfosquenãoconhecemseulugardedireito.Amultidãorugiu,algunsafavor,outroscontra.Ohumorcoletivoestava

eletrizado como o relâmpago que iluminava o toldo acima deles,paralisandoseusrostosgritantesacadaclarão.Osolmalacabaradesepôr,eocéuexibiaacorazul-marinhodocrepúsculoinvernal.

— O que está acontecendo? — perguntou Otelo, gritando de trás dorapaz, pulando para tentar ver o que ocorria. Salomão estava abaixadoentreaspernasdodono,grunhindoparaospésquepisoteavamalamaaoredor.

— Eu não sei. Precisamos encontrar um jeito de atravessar essamultidão!—gritouFletcher.Oarestavacarregadocomosomdotrovão,gritosraivososeachuvamartelandoalonaesticadaacima.OgritodeSylvacortou tudo isso, um longo berro de medo irracional que trespassou ocoraçãodeFletcher.

Omeninotrincouosdentesdefrustraçãoetentouavançarnovamente,massóconseguiusemoveralgunscentímetros.

—Otelo,mande Salomão fazer barulho! Se não dá para passar, entãoprecisamosdispersá-los—pediuFletcherporsobreoombro.

Um urro irrompeu de trás dele, um rugido profundamente grave quelembrou a Fletcher um urso das montanhas. As pessoas ao redor sevirarameseafastaram,abrindoumpoucodeespaço.

— Ignácio!— gritou Fletcher, mandando o demônio para seu ombrocomumpensamento.Odiabretedisparouumaforterajadadechamasnoar, assustando o resto da multidão para lhes abrir ainda mais espaço.Quandoumcaminhosefezdisponível,elesselançaramescadaacimaatéopalco.

Fletcher avaliou a cena de relance. A cabeça de Sylva estava sendomantidasobreumtocopelooradorrevoltado,queestavaajoelhadoaoladodaelfaprostrada.Grindletinhaerguidoaclava,prontoparadespedaçaracabeça da vítima. A pobremenina estava vendada; nem chegaria a ver a

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chegadadamorte.Ignácioreagiuinstintivamente,cuspindoumaboladefogoqueatingiuo

homem gordo no alto do ombro, jogando-o para trás. Enquanto o corpoobeso desabava no chão, Otelo saiu em disparada e chutou o orador nacabeça,produzindoumestaloaltoenocauteando-o.

Mais três homens investiram contra o anão, armados de cassetetesmuito parecidos com aqueles usados pelos Pinkertons. Otelo levou umgolpeno rostoedesaboucomoumamarionete comos cordões cortados.Antesqueohomempudessegolpeardenovo,Salomãoosocounaperna,dobrando-adeladocomumbarulhonauseante.OGolemsubiunopeitodohomemedeu-lheumpisão.OestalodascostelassendopartidasrevirouoestômagodeFletcher.

Os outros dois começaram a avançar, brandindo os cassetetes comprática.Fletcherempalideceuedançouparatrásparaganharmaistempo,desejandonãoterdeixadooarconoquarto.Aquiloseriacomplicado.

—Muitobem,Ignácio.Pegueeles—disseFletcher.Odiabretesaltoudoseuombrocomoummorcegoinfernal,umredemoinhodegarrasechamas.Aterrissounorostodohomemmaispróximoesibilou,comofinoespinhonapontadacaudaestocandoapresacomoumferrãodeescorpião.

Antesqueooutrohomempudesseintervir,Fletcheravançou.Assimqueocasseteteveioemsuadireção,orapazcriouumclarãodefogo-fátuonamão, cegandooadversáriocoma luzazul.Chutouohomemnomeiodaspernasedepois lheacertouuma joelhadanonarizquandoelesecurvou.Rotherham tinha razão; lutar como um cavalheiro era coisa paracavalheiros. Ignácio tinha rasgado a cara inteira do outro homem, querolava no chão gemendo de dor enquanto o diabrete lambia seu focinhoensanguentadoalegremente.A inocênciade cachorrinhododemônionãoestavamaislá.

Sylvaestavacompletamenteamarradacomoumembrulhodepresente,mas lutava com selvageria no chão. Salomão estava uivando, enfiando a

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cararochosanabarbadeOtelo.FletcherarrancouavendadeSylva,emseguidamexendonosnóscom

dedos endurecidos pelo frio. As cordas estavam inchadas pela umidade,mas se afrouxaram conforme ele as puxava. O tempo todo a multidãoassistia,comoseelefosseumatornumpalcoeeles,umaplateiapagante.

—Tireelas,tireelas!—gritavaaelfa.Seusolhosestavamviradosparatrás.Comodiaboselatinhasemetidonessasituação?Daúltimavezqueorapazavira,SylvaestavacomIsadora,láemVocans.

EntãooladodasuacabeçaexplodiuemdoreFletcherfoiparaochão,comabrancurada lonaacimapreenchendosuavisão.AhorrendacabeçacarecadeGrindlesurgiueentrouemfoco,comaclavaerguidanovamente.Eraumacoisafeia,disforme,todacheiadenósesulcoscomoumgalhodeárvoremalpodado.

—Traidordaraça—sibilouGrindle.Oombrodeleeraumcaosdepanoecarnequeimados.

OsujeitoseguravaIgnáciopelopescoçocomoseagarrasseumagalinha,com o esporão de cauda do demônio cravado no outro braço, flácido. OcoraçãodeFletcherseencheudeesperançaquandoopeitode Ignácioseencheu, mas nada lhe saiu das narinas exceto um fino fio de fumaça. OgordopousouopénopescoçodeFletcherparaimobilizá-lo,entãocentrouaclavaemsuacabeça.Fletcherfechouosolhoserezouparaquefosseumamorterápida.

Ouviu um grito e então um baque. Um peso caiu sobre seu corpo,pressionandoopeitoeodeixandosemfôlego.AbriuosolhoseviuSylva,segurando um cassetete ensanguentado nas mãos. O homem gordogorgolejavanoouvidodeFletcher.

Eletentouerguerocorpo,maseracomosetentassemoverumaárvore.—Nãoconsigorespirar—ofegouFletchercomaúltimalufadadearem

seuspulmões. Sylva se agachoue tentou empurrar com toda a sua força,mas o corpo mal se mexeu. A pulsação de Fletcher martelava em seus

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ouvidos, errática e frenética. O limiar de sua visão começou a escurecerenquantoeleofegava,capturandopequenaslufadasdear.

EntãoOteloestava lá, cambaleandoatéacenacomsangueescorrendopeloladodorosto.AelfaeoanãoempurraramatéqueFletcherconseguiurespirardenovo,arfadasprofundasesoluçadas,maisdocesquemel.

— Seus monstros! — gritou Sylva, cuspindo contra os espectadoresmudos.

—Vamosdarnopéagora!—exclamouOtelo,olhandoenojadoparaamultidão.

OsdoislevantaramFletcheredesceramosdegrauscambaleantescomotrêsbêbados,quaseincapazesdeficardepé.Destavez,amultidãoseabriuparalhescederumalargapassagem.

Otriotrepidantefugiupelasruasdesertas,todoscastigadospelachuvaquecaíaemondasconformeoventoaumentavaediminuía.Otelopareciaconhecerocaminho,guiando-osporbecosestreitoseruassecundáriasatéchegaremà estradaprincipal que trouxera o grupo a Corcillum. Eles nãofaziam ideia se estavam sendo seguidos. A escuridão os alcançaria aqualquerminuto, porém, coma presençade Sylva, eles nãopoderiamdeforma alguma passar a noite numa taverna. Os três andaram por duashorassemverumaúnicacharreteoucarroça.Sylvanãotrajavanadamaisqueumvestidodeseda,etinhadealgumamaneiraperdidoossapatosaoser capturada. Estava tremendo tão violentamente que quase nãoconseguiupassarosbraçospelasmangasdajaquetadeFletcherquandoeleaofereceu.

—Precisamospararedescansar!—gritouorapazporsobreorugidodo vento e da chuva.Otelo concordou com a cabeça, cansado demais atépara erguer os olhos da estrada. Seu rosto estava totalmente branco, efiletes de água tingida de sangue escorriam pelos lados do seu rosto. Oferimentonacabeçaestavamolhadodemaisparaestancarsozinho.

Milharais verdes se estendiam de ambos os lados ao seu redor, mas

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Fletcherviuumtelhadodemadeiraporsobreasespigas,algumascentenasdemetrosàdireita.

— Por aqui! — gritou ele, puxando-os da estrada. O grupo abriucaminho por entre os longos talos, rompendo os caules frágeis ao pisar.Salomãoianafrente,desesperadoparalevarseumestreaumlugarseguro.

Nãoeranadaalémdeumbarracãometidoabesta, abandonadohaviamuito tempo. Fletcher quase se desesperou por um instante quando viuque estava trancado com uma corrente enferrujada, mas Salomão aarrebentoucomumsoco.

O lado de dentro estava úmido e mofado, cheio de velhos barris defarinha já apodrecida.Mesmo assim, escapar do dilúvio que os castigavaerapuraalegria.

SylvaeOtelodesabaramnochão,juntando-separaaquecerumaooutro.Fletcher bateu a porta ao entrar e desmoronou também. Não fora assimqueeleimaginarasuaviagemaCorcillum.

—Nãosepreocupem,pessoal,vouesquentarvocês. Ignácio,venhacá.—Odiabretedesceupeloseubraçoeolhouparaele,parecendoinfeliz.Opescoço da criaturinha estava com um hematoma vermelho-escuro ondeGrindle o agarrara. Ignácio respirou fundo e soltou uma chama fina, queinfelizmente, no ar úmido, não fez nada além de iluminar o aposentoimerso em trevas. A única luz vinha das rachaduras nas paredes, quetambém deixavam entrar correntes congelantes de ar. Tinha que haveroutro jeito. Se Fletcher não fizesse alguma coisa, eles provavelmentecontraíriamalgumadoençamortal.

Salomão grunhiu e começou a despedaçar alguns barris. Asmãos dosGolemseramcomoluvassemdedosdepedra,masopolegaropositorlhedavadestrezaobastantepararacharastábuaspodresejogá-lasnocentrodoaposento.

— Pare, Salomão, economize sua energia — murmurou Otelo. Odemôniopausouedeuaoanãoumgrunhidodedesculpas.Entãorosnoue

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indicouosbarris,apontandocomasmãosatarracadas.—Ah,tudobem—resmungou Otelo, acenando, derrotado. Salomão continuou trabalhando,agoradeformamaismetódica.Oqueraioseleestavafazendo?

—Ele está fazendouma fogueira!Vamos lá, antesqueSylva entre emchoque! — exclamou Fletcher. A elfa ainda estremecia, abraçando osjoelhos. Omenino não conseguia imaginar como teria sido o dia dela. Aprovaçãoatinhadeixadocomaspontasdasorelhasmarcadaspelovento,avermelhadasdefrio.

Logoapilhademadeiraestavaalta,masFletcherseparouamaiorpartepara mais tarde. Salomão esmigalhou algumas das tábuas em pilhas defarpas, para servir de isca para o fogo, então Ignácio soprou chamasrepetidamente até o fogo pegar. Logo uma luz calorosa preenchia obarracão, e a fumaça subia e saía pelas rachaduras nos cantos do teto. Amadeiraqueimavabemlentamente,comocostumavaacontecercomlenhapodre. Por mais que o fogo deixasse um cheiro de mofo no ar, o frioabandonou vagarosamente os ossos dos três cadetes, e as roupascomeçaramasecaremseuscorpos.Mesmoassim,seriaumalonganoite.

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31

Fletcher acordou num susto e olhou em volta. Otelo cutucava as chamascomumgraveto,aborrecido.Eleestavadepeitonu,comacamisaejaquetasecandoaoladodofogo.

—Eudevo terapagado.Quanto tempodormi?— indagouFletcher, sesentando. Suas roupas ainda estavam úmidas, mas ele decidiu não sedespir.SupôsqueSylvanãoficariafelizcomtalquebradedecoro.Porém,para sua surpresa, ela estava sentada do outro lado do fogo, rasgando abarra do vestido numa longa tira. Ignácio estava enrodilhado ao lado daelfa,comascostasaquecidaspelaschamas.

— Só por alguns minutos, Fletcher — respondeu ela, entregando otecidoaOtelo.—Aqui,usecomobandagemparasuacabeça.Vaiajudaracurar.

— Obrigado— disse o anão, com uma expressão de feliz espanto norosto.—Ficomuitoagradecido.Quepenaquevocêtevequeestragarseuvestido.

—Essaéamenordasminhaspreocupações.Queburriceaminha,acharquepoderiaandarpelasruasdeCorcillumnomeiodaguerraenãosofrer

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asconsequências.—Eporquevocêfoi?—perguntouFletcher,franzindoatesta.— Pensei que estaria segura com os Forsyth. Eles andavam com os

demôniosemplenavista,etodospassavamlongedenós.Emretrospectiva,nãoestousurpresa.—Elatorceuasmãosemfrustração.—Tenhocertezadeque,seumhomemfossepassearnoterritórioélfico,sofreriaumdestinosemelhante.Hágenteracistanosdoisladosdafronteira.

—Aindabemquevocêsesenteassim.Eunãoaculpariaporpensaropiordenóseconvencerseupaiaencerrartodasaschancesdeumaaliançaentre os nossos povos— comentou Fletcher, aproximando-se do fogo eaquecendoasmãosdormentes.

— Não, isso só fortaleceu minha determinação — respondeu Sylva,fitandoaschamas.Ameninaarrogantequeosolharacomonarizempinadotinhadesaparecido.Estapessoaeramuitomaisíntegra.

—Comoassim?—inquiriuFletcher.—Se atémesmoesta guerra falsaque fingimos lutar criou tantoódio

entrenossospovos,oqueumaguerradeverdadenãofaria?—salientouaelfa,empurrandomaislenhaparaafogueira.

—Qual é o sentimento entre os elfos?—perguntouOtelo, tirando asbotas e deixando as meias secarem junto ao fogo crepitante. Salomãoprontamentepegouoscalçadoseosseguroujuntoaofogo.

— Alguns de nós entendem, dizendo que vale a pena se juntar aoshumanosparalutarnosul,seissomantiverosorcslongedosnossoslares.Outros afirmam que eles jamais atacariam tão ao norte, mesmo se oImpériodeHominumcaísse—contouSylva,torcendoonarizparaochulédo anão. — Mas meu pai é um velho chefe de clã. Ele se lembra dashistórias que seu pai lhe contou, dos dias em que os orcs devastavamnossasaldeias,massacrandonossopovoporesporteereunindoascabeçasde nossos guerreiros como troféus. Os elfosmais jovensmal sabem queforamossaqueadoresorcsquenosobrigaramaconstruirnossoslaresnos

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grandes carvalhosdonorteemprimeiro lugar,milharesdeanosatrás.E,mesmo quando o fizemos, isso só os atrapalhou um pouco. Foram osprimeiroshumanosquesealiaramanós,rechaçando-osdevoltaàsselvase patrulhando as fronteiras. Nossa aliança existe desde que os primeiroshomenscruzaramodesertodeAkhad,porém,comotempoeapassagemdasincontáveisgerações,elacaiuemdesuso.

— Nós éramos aliados dos elfos? — indagou Fletcher, seus olhosarregaladosdeincredulidade.

—Estudeiahistóriadenossosdoispovosantesdevirparacánaminhamissãodiplomática.Nós,elfos,podemosviverporduzentosanos,entãoasmemórias dos nossos historiadores sãomais longas que as dos seus. ReiCorwin,oprimeiroreideHominum,liderouumaguerracontraosorcsemnossonome.Foramoselfosqueensinaramaeleeaseupovocomoinvocar,em troca de proteção, criando assim as primeiras casas nobres deHominum.

—Uau.Não fazia ideiadequevocêsparticiparamdacriaçãodonossoimpério — maravilhou-se Fletcher. — Nem de que os elfos foram osprimeirosconjuradores.

—Nemtanto—murmurouSylva.—Osorcsjáconjuravammuitoantesdenós.Masaartedeleseramaisbruta,imatura;pequenosdiabretesenadamais.Ah,seaindafosseassimhoje...

— Tenho uma pergunta — interrompeu Otelo. — Por que você nãotrouxe seu próprio demônio do território élfico? Certamente vocês têmdemôniosporlá,seensinaramoshomensaconjuraremprimeirolugar?

—Essaéumaperguntacomplicadadeseresponder.TivemosumlongoperíododepazdepoisqueoImpériodeHominumfoifundando.Enquantoosanõesserebelavameosorcssaqueavamoreinodoshomens,oselfoscontinuavam em relativa segurança. Assim, nossa necessidade de usardemôniosparadefesapessoaldeixoudeexistir.Éclaroquehouveoutrosfatores. Por exemplo, a invocação de demônios foi banida por um curto

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períodoquatrocentosanosatrás,quandoosduelosficaramnamodaentreosherdeirosdosnossoschefesdeclãs.Nofim,nãohaviamaisdemôniosasetransmitir,poisforamtodosmortosnessesduelosoudevolvidosaoéter.

O estômago de Otelo roncou e Sylva riu; o tom sério do aposento sedesfez.

— Tive uma ideia— anunciou Fletcher, levantando-se. Depois de ummomentodehesitação,elesaiudoabrigo.Trintasegundosdepois,voltoucorrendoaobarracão,maisumavezensopadoatéosossos,massegurandoumabraçadademilho.

Enquantosesentavadenovo,Fletcherpercebeualgonovo.AscostasdeOteloeramtatuadasempreto,umailustraçãodeummartelocruzadocomummachadodebatalha.Oníveldedetalhamentoeraextraordinário.

—Éumabelatatuagem,Otelo.Oquesignifica?—inquiriuele.—Ah, isso.Éumsignoenânico.Sãoasduas ferramentasusadaspelos

anões.Omachadorepresentanossaproezaembatalhaeomartelo,nossahabilidade como artífices. Nunca fui muito fã dessa ideia de tatuagens,porém.Nãoprecisodemarcasnaminhapeleparadizeraomundoquesouumverdadeiroanão—resmungouOtelo.

—Entãoporqueafez?—perguntouSylva,espetandoalgumasespigasdemilhonumforcadoenferrujadoesegurando-osobreaschamas.

—Meuirmãosetatuoucomisso,entãotivequefazeromesmo.Àsvezestenho que levar a culpa no lugar dele. Faz mais sentido se tivermos amesma aparência. Os Pinkertons tiram a sua camisa quando... castigamvocê.

Syvlacontinuou fitandooanãocomumamisturadeespantoehorror,entãoseusolhossearregalaramaopousarnascicatrizesdeOtelo.

— Nós somos gêmeos. Não que os Pinkertons saibam diferenciar osanões,normalmente.Somostodosiguaisparaeles—explicouOtelo.

—Então... vocês sãocomo IsadoraeTarquin,afinal—deduziuela.—Sempremepergunteicomoseriaterumirmãogêmeo.

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—Achei que eles fossemgêmeos,masnão tinha certeza—comentouFletcher,tentandolembrardosdoisnobres.

—Éclaroquesão—afirmouOtelo.—Sãosempreosprimogênitosqueherdam a habilidade de evocar, gêmeos incluídos. Os outros filhos têmchancesmuitomenores,mesmoqueaconteça,àsvezes.Ninguémsabebemoporquê,mas certamenteajudoua consolidaropodernas casasnobres.Filhosefilhasprimogênitosherdamapropriedadeinteira,entãoasterrasnãosãodistribuídasparamúltiplosfilhosnamaioriadoscasos.OsForsythtêmterramaisquesuficienteparadois,porém,issoécerto.

Oanãotirouumaespigademilhodoforcadoemordeucomvoracidade,soprandoosdedos.

— Então me conte, Sylva, o que você estava fazendo em Corcillum?Encontrou Genevieve e os outros na perfumaria?— perguntou Fletcher,tentandoevitarofatodequequasetinhammorridoporcausadela.

—Osnobresmelevaramnumacarruagematéapraça.EntãoIsadoraeTarquinmetrouxeramaobairrodasflores,poisqueriamrosasfrescasparaseusquartos.Euestavacomumlençonacabeçaparacobrirmeuscabeloseorelhas,entãonãopenseiqueteriaproblemas.Masmeusolhosdevemtermedenunciado.Aquelehomemgordo,Grindle, arrancouo xaledaminhacabeça e me arrastou para um beco. Isadora e Tarquin correram aoprimeiro sinal de problemas. Nem olharam para trás. Eu não tinhameucouro de conjuração, então Sariel continuou infundida dentro de mim.Nuncamaiscometereiesseerro.

—Courode conjuração?—perguntouOtelo, terminando suaespiga eestendendo a mão para pegar outra. Sylva afastou-lhe com um tapabrincalhão.

—Guloso!Fletcher,comatambém.Eupercebiquealgunsdevocêsnãodesceramparaoalmoçonacantinamaiscedo,vocêdeveriacomeralgumacoisa.

— Obrigado. Eu só comi uma maçã de almoço — contou Fletcher,

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pegandoumaespigaparasi.Mordeuosgrãosmacios,cadaumexplodindocomdoçurasurpreendenteemsuaboca.

—Umcourodeconjuração—continuouSylva,virando-separaOtelo.—É só um pentagrama, impresso num pedaço quadrado de couro, quemepermiteconjurarSarielseelaestiverinfundidaemmim.Nãoseibemseosseus conjuradores ainda os chamam por esse nome hoje em dia. Osdocumentosqueencontreisobrepráticasdeconjuraçãoerambemantigos.

—EunãoacreditoqueTarquineIsadorafugiram!—exclamouFletcher,abocacheiademilho.

— Essa nem é a pior parte. Os dois estavam com os demônios soltosquando eu fui capturada. Suspeitoque foramas criaturasque chamaramtantaatençãoparanósemprimeirolugar.

—Aquelescovardes—grunhiuOtelo.— E seus demônios veteranos foram herdados da mãe e do pai —

explicouSylva.—Poderiamterderrotadodezvezesonúmerodehomensque me atacaram. Se eu tivesse ficado mais perto dos dois, os sujeitosjamais teriam avançado, mas eu estava um pouco farta da conversinhanarcisistadeles,entãomeafasteiporummomento.—Aelfafezumapausa,mordendodelicadamentesuaespiga.

—Por que você tentou fazer amizade com eles se não os suporta?—indagouFletcher.

—Estouaqui comodiplomata.Comquemvocêachaque seriamelhorfazer amizade se eu quiser promover uma aliança entre os nossos doispovos?Agora eu obviamente sei que amelhormaneira éme tornar umaoficialassimquepossívelecriarfamaembatalha,enãobajularpirralhosmimadossemnenhumpoderreal. Issovai facilitarminhacausa, se todossouberemqueoselfostambémestãodispostosalutar.

—Ah—comentouFletcher. Fazia sentido,poréma forma comoelaotratara antes aindamagoava. Por outro lado, se ele estivesse sozinho emterrashostiscomumfardoderesponsabilidadetãogrande,sersimpático

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talveztambémfosseaúltimadesuaspreocupações.—Certo,melhornosdeitarmos para dormir. Provavelmente vamos levar bronca por termospassado a noite fora, mas não tem como voltarmos andando com essetempo—sugeriuFletcher,seesticandoaoladodofogo.

—Ah,nãosei—respondeuOtelo,enrolandoajaquetanumtravesseiroimprovisadoeserecostandonele.—Nãotemguardasnemnadaassimnaentradada academia. Senós chegarmos antesdas entregas, devemos sercapazesdeentrarescondidossemquealguémnosveja.

Enquanto Sylva se enrodilhava ao lado do fogo e puxava o capuz dajaqueta, um pensamento cruzou a mente de Fletcher: como Otelo sabiadisso?

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—Ondediabosvocêsestavam?—sibilouSerafim.Fletcher,OteloeSylvatinhamacabadodeentrarcambaleantesnasaladeconjuração,juntando-seaos outros omais silenciosamente possível quando os outros estudantespassaram,vindosdoátrio.Otrioestavacomumapéssimaaparência,masnãohavianadaquepudessemfazer.Tinhamchegadoenquantoasentregaseramfeitas,entãosópuderamseesgueirardepoisdocafédamanhã,bemquandoasaulasestavamprestesacomeçar.

— É uma longa história. Contamos mais tarde— sussurrou Fletcher.Isadorasevirouparaverqualeraacomoção,arregalandoosolhosaoverSylva.ElacutucouTarquin,quetambémsevirouelevouumenormesusto.A elfa os encarou, inexpressiva, então se virou para a capitã Lovett, queesperava todos se assentarem.Amulher alta vestia um avental de courosobre seu uniforme de oficial, além de usar grossas luvas do mesmomaterial.

—Vamostrazeralgumaluzaestelugar—disseLovett,soltandováriasbolasdefogo-fátuonoar.AocontráriodeArcturo,elapermitiaqueasluzesflutuassem sem rumo pelo salão, criando uma iluminação clara mais

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fantasmagoricamentemutável.—Então,peloqueeusoube,Arcturodeixouquequemjátivessepraticadofogos-fátuosfosseemboramaiscedoontem.Isso não vai acontecer nas minhas aulas. Meu lema é “a prática leva àperfeição” e, considerando o seu curto tempo aqui, vocês deveriamaproveitarcadasegundosobnossatutela.

Elaandavadeumladoparaooutrodiantedeles,comosolhosseverosesquadrinhando cada um dos rostos. Aquela não era uma pessoa queFletchergostariadeirritar.

—Aprimeiratarefadehojeseráensinar-lhesaartedainfusão.Vejoquealguns de vocês não estão com seus demônios, então presumo que játenhamaprendidoisso.Entretanto,otempoquevocêlevaparalibertarseudemônio de dentro de si pode ser a diferença entre a vida e a morte.Confiememmim,eusei.Aquelesdevocêsqueforamtreinadospelospaisvão praticar nos círculos de conjuração do outro lado da sala. Eu vouconferirseudesempenhomaistarde.

Os nobres se afastaram com expressões arrogantes, falando e rindoentresi.Lovettseparouosalãoemdoiscomumaenormecortina,demodoqueelessaíramdevistadepoisdeatravessarapartiçãocentral.Depoisdealguns momentos, Fletcher viu luzes brilhantes piscando por baixo. Quetipodedemôniososnobrespossuíam?

Sylvaergueuamãoedeuumpassoàfrente.—Aprendisozinha.Seráqueeupoderiaficarcomosoutroseaprender

atécnicacorreta?—indagouaelfa.Lovettespiouovestidorasgadoeoscabelosdesfeitosdelaeergueuuma

sobrancelha.Depoisdeumalongaeseveraencarada,aprofessoracedeu.—Muitobem.Mas,por favor, lembre-sedeque,no futuro,esperoque

você esteja de uniforme— afirmou ela, antes de se voltar ao resto dosplebeus. — Cada um deve pegar um couro de conjuração, além de umaventaldecouro.Devehaverluvaseóculosdeproteçãonocompartimentoabaixo, também.— Ela indicou o fundo do salão, e um dos fogos-fátuos

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disparou até lá e pairou sobre uma fileira de armários embutidos naparede.

—Oqueaconteceucomvocês?—murmurouGenevievepelocantodaboca enquanto eles rumavam ao equipamento. — Esperamos o máximoquepudemos,mastivemosqueirantesqueaúltimacarruagempartisse.

—Perdemosaúltimacarruagemetivemosquevoltarandandoparacáesta manhã — murmurou Fletcher de volta, revirando vários rolos decouro até encontrar um com o pentagrama não muito apagado. Ele nãosabiaseSylvaqueriaqueoincidentesetornassedeconhecimentogeral.

— Vocês foram assaltados no caminho ou coisa assim? — insistiuGenevieve,semacreditarmuito.

—Oquefazvocêacharisso?—retorquiuFletcherenquantovestiaumavental.

—Bem,mesmoignorandoasatadurasnacabeçadeOtelo,vocêestácomum galo do tamanho de um ovo na lateral da cabeça — argumentouGenevieveenquantoelesvoltavam.Orapaztocouatêmporaeestremeceuao perceber que ela tinha razão. Felizmente, a essa altura chegaram devoltaaLovett,queossilencioucomumolhar.

—Ouviquealgunsdevocêstêmseusdemônioshápelomenossetedias.Elesdevemestarbemcansadosagora,entãoseriamelhorvocêsinfundi-losimediatamente, para que possam repousar. Levante a mão quem tiverrecebidoseudemônionasemanaanterior—anunciouLovett.GenevieveeRory ergueram asmãos. Depois de alguns instantes, Fletcher levantou adeletambém.

—Por que a hesitação? Fletcher, não é?— indagou Lovett, indicandoqueorapazdesseumpassoàfrente.

—Estoucommeudemônioháduassemanasemeia—respondeuele.—Issoénormal?

—Não,eledeveestarrealmenteexausto!Vamosdarumaolhadanele—repreendeuela.

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FletcheracordouIgnáciocomumacutucadamental.Odiabretemioudeirritação e saltou para o chão. Olhou em volta e lambeu os beiços. Odemônio devia estar bem faminto agora, depois de torcer o nariz para omilhoassadodanoiteanterior.

—Eleandameiosonolento,mascostumasersempreassim,dequalquermaneira—explicouFletcher, sentindoumapontadadeculpaenquantoodemoniozinhobocejava.

—Uma Salamandra!— exclamou Lovett.—Realmente rara! OmajorGoodwinficarámuitointeressadonela.Nãoésemprequeeletemachancedeexaminarumanovaespéciededemônio.

—Ignáciovaificarbem?—inquiriuFletcher,aindapreocupadocomasupostaexaustão.

—Parece-meque sim— respondeuLovett.—Quantomais poderosoum demônio, mais tempo ele pode sobreviver sem descanso no nossomundo, apesar de levar vários meses antes que o cansaço se tornerealmenteumriscodevida.Eutinhapensadoque,comovocêéumplebeu,seudemônio seria de umadas espéciesmais fracas. Por outro lado, peloque andei ouvindo, vocês parecem ser um grupo bem sortudo. No anopassado, a maioria dos plebeus recebeu Carunchos, mas vocês têm umaLutra,umCascanho,umaSalamandraeumGolem.

—EumCanídeo também!—exclamouSylva,desenrolandoseucouronochão.Fletchersorriu,felizporelaterseincluídonogrupodosplebeus.

Roryarrastouospésecerrouospunhos.— Estou cansado de ouvir como sou azarado em ter Malaqui —

sussurrou,comóbviafrustração.— Por que você não começa, Sylva? Vou confirmar se você estiver

fazendotudocorretamente.Éumatorelativamentesimples,umavezquesesabeoquefazer—sugeriuLovett.

Sylvaseajoelhousemhesitarepousouasmãosenluvadasnotapetinhodecouro.Osóculosseencaixavamde formadesajeitadasobreasorelhas

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pontudas,maselanãoparecia se importar. Fletcher tinha certezadequeelamalpodiaesperarparaestarsobaproteçãodeSarieldenovo,depoisde tudoqueacontecerananoite anterior. Inspirando longae calmante, aelfa encarou o pentagrama até que ele tremeluziu com uma suave luzvioleta.

—Observemcomoelaempurraomanaatravésdasmãos,paraocouroe até o pentagrama. Ela saberá que omomento de empurrar o demôniochegouquandoopentagramaestivercombrilhoconstante.

Aestreladecincopontasincandesciaemluzazul,porémnadaaconteceupor quasemeiominuto. O único som era a respiração ofegante de Sylvaenquantoelaencaravaosímbolo.Então,semaviso,umaformadeCanídeocresceunaqueleespaçovindadonada,expandindo-sedeumpontinhodeluzaumagrandesilhuetabrilhanteemmeiosegundo.Ovultobrilhouembranco,entãoacordesvaneceueSarielapareceusobreopentagrama.

Os olhos dela se focalizaram em Sylva, então o Canídeo saltou para amestra,derrubando-a.Odemôniolambeuorostodadonaeuivou.FletcherseperguntouseSarielestavacientedetudoquetinhaacontecidoàSylvananoiteanterior.Talvezfosseapenassaudade.

— Obviamente seu demônio precisa de um pouco de disciplina etreinamento,masbomtrabalhomesmoassim!Vouconjurarmeudemônio,Lisandro, para demonstrar como infundir. Afastem-se, por favor! —anunciouLovett.SylvaeSarielsemoveramparaolado,eorestodogruporecuou vários passos.— Quantomaior for o seu demônio, mais difícil ainvocação. É claro que, no campo de batalha, vocês não poderão usarequipamentodeproteção,masémelhortomarprecauçõessemprequeforpossível... especialmentecomaprendizessemtreinamentocomovocês—explicou Lovett, se ajoelhando no canto do couro de conjuração. — Omotivo principal para toda essa proteção é o uso de pentagramaschaveados,masnãovamosfalardissoatémaistarde.

Elapescouumpardeóculosdeproteçãocomlentesescuraseumboné

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decourodeumbolsodoaventaleosvestiucomfirmeza.O pentagrama se acendeu de novo, lançando fagulhas brancas que

queimavamnocouroaoredor.Umorbebrancoapareceusobreasuperfíciee, para o espanto de Fletcher, um demônio se formou em apenas algunssegundos.Acriaturatinhaocorpo,acaudaeaspatastraseirasdeumleão,sóquea cabeça, as asas e garrasdianteiras eramcomoasdeumaáguia.Tinha o tamanho de um cavalo, compenas castanhas amareladas que semesclavamcomopelodouradodametadeposteriordacriatura.

—Eutambémfuiabençoadacomumdemônioraro,umGrifo.Masnãoorecebidepresente.Eu comecei comumCaruncho, assimcomoalgunsdevocês. Não deixem que seus começos humildes os desencorajem.Carunchossãocriaturasferozmentefiéis,evocêspodemcomandarváriosdelesaomesmotempo.Lisandroexigetodaaminhaconcentraçãosóparamantê-lo sob controle. O major Goodwin vai lhes ensinar mais sobrecontrolededemôniosnasaulasdedemonologia.

Genevievesorriue levouAzuraatéos lábios,beijandoacarapaçaazul-cobaltodobesouro.

— Isso significa que a senhora era plebeia também?— indagouRory,incapazdetirarosolhosdamajestosacriatura.

—Não...maseuestavapresentequandoosprimeirosplebeuschegaramemVocans.SouaterceirafilhadosLovettdeCalgary,umpequenofeudononortedeHominum.Porumaestranhacoincidência,meupaifoiabençoadocomváriosfilhosadeptos.Eueraamaisnova,entãorecebiodemôniomaisfraco.Ficofelizqueeletenhafeitoisso,porém.Senão,eujamaisteriameespecializado em captura demoníaca. Todos vocês podem possuir umdemônio poderoso como este, desde que trabalhem bastante. — ElaabraçouLisandro,queesfregouobicoemseupeitocomafeição.OsolhosdoGrifoeramdeumâmbarprofundo, grandese inteligentes comoosdeumacoruja.Elessaltaramdealunoemalunocomcuriosidade, finalmentepousando em Ignácio com atenção especial. — Agora, vou demonstrar

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comoinfundir.Épraticamenteoprocedimentoreverso.Opentagramatemqueestarapontandodiretamenteparaodemônioenãopodeestarmuitolonge. É por isso que fazemos com que eles fiquem nos couros deconjuração. Entretanto, se Lisandro pairasse vários metros acima dopentagrama,euaindaassimconseguiriainfundi-lo.

Lovettseajoelhouepôsasmãosnocouromaisumavez,acendendoopentagrama.

— Você primeiro precisa empurrar mana para o pentagrama. Logosentiráumobstáculoentreaconsciênciadoseudemônioeasua.Umavezquealcançaressasensação,puxeodemônioatravésdela...—AcapitãarfoucomoesforçoeLisandrobrilhou,emseguidasedissipandoemfiosdeluzbrancaquefluíramparaassuasmãos.—Eissoétudo—anunciouLovett,comatestamolhadadesuor.

Elesaplaudiramsuahabilidade,masFletcher ficoucheiodeapreensãoquandoaprofessoravoltouosolhosdeaçoparaele.

— Fletcher, você tenta primeiro, pois o seu demônio é o que maisprecisa de descanso. Arcturo me contou que você é particularmentetalentosocomfeitiçaria.Vamosverseomesmoéverdadeparaa infusão.—Lovettapontouparaochãodiantedele.

Fletcher lentamente desenrolou seu tapete de conjuração e mandouIgnáciosubirsobreele.Odemôniosentouesoltouumchilreionervosoaosentiraansiedadedodono.Orapazfezconformeinstruído,canalizandoomanaparaocouroatravésdasmãos.Opentagramaseacendeunumvioletaardente,constanteeestável.

— Você está sentindo, Fletcher? — indagou Lovett, pousando a mãofirmeetranquilizantenoombrodoaprendiz.

— Sim, estou — grunhiu ele de volta, entre dentes. Naquele estadocarregado demana, a luz era quase cegante, preenchendo seu campo devisãocomaestrelareluzente.

— Puxe-o pela barreira. Você pode ter um pouco de dificuldade no

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começo,masénormalna suaprimeira infusão.—AvozdeLovett soavacomoseviessedemuitolonge.

O mana pulsava pelas veias do rapaz com cada batida do coração,trovejando em seus ouvidos. Sua ligação com Ignácio estava bloqueada.Fletcher alcançou e agarrou a mente do demônio e, com um esforçocolossal,puxou-oparadentro.Porummomento,fezforça,sibilandoentredentes cerrados. Era como se Ignácio estivessepreso auma teia elástica.Depois do que pareceu uma eternidade, houve um estalo gentil e aconsciência do demônio se fundiu com a do garoto. Era como se deixarsubmergirnumbanhomorno.

—Muitobem,Fletcher!Vocêpodedescansaragora—sussurrouLovettnoouvidodele.

Fletcherencostouacabeçanocouromacio,inspirandofundorepetidasvezes. Ele ouvia os outros batendo palmas e bradando sons incoerentes.Sua mente estava cheia de felicidade e clareza extraordinárias, como seestivessecompletamenteentorpecido.

—O que Fletcher está sentindo agora é a euforia temporária causadapelafusãodeduasconsciências.Seudemônioestádentrodele,porémelemalficaráconscientedapresençadacriaturaapósalgunsminutos.IgnácioverátudoqueFletchervê,mesmoquesóentendamuitopouco.Issopodeser extremamente útil se vocês precisarem conjurar no meio de umabatalha, pois os demônios estarão preparados para a situação assim quereaparecerem—ensinouLovett,andandodeumladoaooutrodiantedele.—Algunsinvocadoresexperimentamclarõesdememóriasdemoníacasnosmesesapósaprimeirainfusãodeseusdemônios.Issotambémvaipassar,mas é uma parte importante de como aprendemos sobre o éter. Seacontecer com vocês, não deixem de registrar cada detalhe e transmitirtudo a mim e ao major Goodwin. Precisamos de cada migalha deinformaçãoquepudermosjuntarsobreavidadosdemônios—continuouela.

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Fletcherselevantoucomdificuldadeevoltouparajuntodosoutros,coma cabeça ainda girando. Serafim lhe deu tapas amistosos nas costas, comumsorrisoinvejosonorosto.

—Muitobem.Parecequevocêémeumaiorconcorrente—sussurrouele.

— Ou não. Acho que aquilo quase me matou— respondeu Fletcher,sentindoo calor agradável de Ignáciodentrode si. Era estranho; elemalconseguiadistinguiraconsciênciadeIgnáciodaprópria.Ofilamentonãoosconectavamais;osdois fluíamumparaooutrocomooencontrodedoisrios.

Otelo lhe lançouumsorrisoencorajadoreatémesmoSylvaotocoudeleve no braço antes de voltar sua atenção para Sariel. A elfa enterrou orosto e as mãos no pelo dourado do demônio, agarrando-se ao Canídeocomosesuavidadependessedela.FletchersuspeitouquesepassariaumlongotempoantesqueelaquisesseinfundirSarieldenovo.

—Agora,OteloeFletcher,vamosdarumaolhadanessassuascabeças—disseLovett,chamandoosdoisàfrente.Umavezqueestavamdiantedela,aprofessorasussurrou:—Temalgumacoisaquevocês,rapazes,precisemmecontar?VocêseSylvaparecemtervindodaguerra,eeuseibemcomoaguerraé.

—Não foi nada que não pudéssemos resolver— assegurou Fletcher,olhandoparaOteloembuscadeapoio.

—Nóscuidamosdetudo—concordouoanão.Lovett encarou os dois por um momento antes de inclinar a cabeça,

cedendo.— Bem, se vocês mudarem de ideia, podem vir falar comigo —

murmurou ela, encarando os três. — Vocês não precisam lutar suasbatalhassozinhos.

Entãodeuumpassoatráseergueuavoz:— Venham cá, todos vocês. Vou usar o feitiço de cura; é uma boa

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oportunidadeparavocêsobservarem.O resto dos plebeus se aproximou, tagarelando empolgados com a

chancedeveroutrofeitiço.Otelotirouaatadura,revelandoumcortefeionatêmpora.

Fletcherestremeceucomavisão.Elenãotinhase tocadodaseriedadedoferimento.

— Observem com muita atenção — anunciou Lovett. A professoraentalhou um símbolo no formato de um coração no ar com fogo-fátuo,depoisoapontouparaomachucadodeOtelo.—Ofeitiçodecuraéperfeitopara cortes, hematomas e até ferimentos internos, mas não tem efeitoalgum contra venenos e doenças— continuou, franzindo o cenho ao seconcentrar.—Requermuitomana e leva algum tempopara se executar,especialmenteemferimentosmaisprofundos.

Ela exalou, e luz dourada fluiu do símbolo à cabeça de Otelo. Nadaaconteceu por alguns segundos. Enfim, para o espanto de Fletcher, oferimentocomeçouasefecharsozinho,selandoasimesmoatéapeleficarcompletamentecurada,deixandonadaalémdeumacrostadesangueseco.

O grupo bateu palmas, comemorando o feito. Lovett voltou o olhar àtestadeFletcher,masbalançouacabeça.

—Você vai ter que deixar essemachucado sarar sozinho, Fletcher—explicouaprofessora,apontandooinchaço.—Podehaverumafratura,eofeitiço de cura pode fazer com que os ossos se fundam de maneiraincorreta, deixando você permanentemente desfigurado. Melhor nãoarriscar.

Fletcherassentiu,tocandoogalocomumestremecimento.— Certo, vamos treinar o resto de vocês. Uma vez que tiverem

dominadoainfusão,poderemospassarparaapartedivertida!—exclamouLovett,batendopalmas.

— O que acontece nessa parte?— indagou Rory enquanto, abaixado,desenrolavaocourodeconjuração.

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Lovetttirouosóculosesorriumisteriosamente.—Vamosentrarnoéter.

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33

A lição seguinte foidadapelomajorGoodwin,umsujeito idoso, falastrãomassevero,comumnarizvermelhoeumcavanhaquebrancoeriçado.Elecaminhavapelasaladeaula,desafiandoseufísicocorpulento.

—Ademonologiaéessencialnosuportedesuafeitiçariaetrabalhoeméter. Diz respeito a identificação, compreensão e criação de todos osdemônios,alémdoestudodageografiaedadiversidadedoéter.Issoincluioimpactodemoníaconosníveisdemanaenarealizaçãodoconjurador.—Elefalavaemexplosõescurtasquecobriamaprimeirafiladenobrescomcuspe.FletcherficavafelizemverqueTarquinestavadiretamentenalinhade fogoeque, julgandopelaexpressãodenojoemseurosto,orapaznãogostavadeserbanhadoemsaliva.

Infelizmente,osorrisodeFletcheratraiuaatençãodeGoodwin.—Você,garoto,oqueéarealizaçãodeumconjurador?—inquiriuele,

apontandoparaFletcher.—Hum...asatisfaçãodele?—sugeriuorapaz.Nãoeraóbvio?—Umarespostarisível.Arealizaçãodeumconjuradorérelacionadaa

quantos demônios ele é capaz de controlar. Eu tinha esperança de que

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alguémafortunadoobastanteparaserpresenteadocomumdemônioraroinvestissealgumtempopesquisandosobreoassuntoantesdasuaprimeiralição. Obviamente, eu estava enganado. Uma pena— lamentouGoodwin,balançandoacabeça.

Fletchersentiuorostoarderdevergonha.Isadorasevirouelhelançouumsorrisinhozombeteirodafileiradebaixo.

— Será que alguém que se preparou poderia explicar? Que tal você,Malik?—perguntouGoodwin.

—Senhor,todososconjuradoresnascemcomcapacidadesvariadasdeabsorção de energia demoníaca — respondeu um nobre alto, de peleescura.—Por exemplo, a capitã Lovett só tem capacidadepara atrelar econtrolar um Grifo e um Caruncho. Outro conjurador pode ser capaz deatrelarecontrolardoisGrifos,casotenhaumnívelderealizaçãomaisaltodoqueela.

— Correto. O velho rei Alfric tem nível de uma centena, o mais altojamais registrado desde que começamos a classificar demônios. UsandomaisumavezoexemplodacapitãLovett,sabemosqueelatemumnívelderealização de onze, dado que seu Grifo é um demônio classe dez, e seuCaruncho,classeum.Oquemais?

—Osníveisderealizaçãopodemmelhorar—acrescentouMalikdepoisdeumapausa.

—Como?—Eunãosei,senhor.Goodwinfungoulongamente,comirritação.— Insuficiente. A resposta é que os níveis crescem naturalmente em

velocidades diferentes para cada conjurador com a passagem do tempo.Esseprocessopodeseraceleradopelotrabalhodurodoconjurador.LovettnãonasceucomumnívelderealizaçãosuficienteparaatrelarecontrolarumGrifo.Elatevequeseesforçarmuitoparaalcançá-lopelousoconstantede feitiçaria, visitasaoétere combateeatrelamento frequentedeoutros

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demônios.Algunsconjuradorespassamsuasvidasinteirascomumnívelderealizaçãodenãomaisquecinco,enquantooutroscomeçamemcincoeseesforçam até chegar a vinte ou mais. Bem, por que vocês não estãoanotandotudoisso?—gritouGoodwin,lançandoperdigotossobreaturma.

Os outros pegaram pergaminhos nas bolsas e começaram a escreverfuriosamente. Fletcher fitou as mãos, infeliz, percebendo que não tinhaonde anotar. Todos os outros ficaram sabendo que viriam a Vocanssemanasantesetrouxeramosmateriaisnecessários,masFletchertinhaseesquecidodecompraralgumascoisasnospoucosdiasemqueestiveralá.GoodwinseirritouaonotarainatividadedeFletcher.

—Fletcher,nãoé?—rosnouele.—Sim,senhor—respondeuorapaz,baixandoacabeçaenvergonhado.—Enquanto os outros estão ocupados aprendendo, talvez você possa

medizeroqueaconteceaumdemôniodepoisqueseuconjuradormorre?Fletcher contemplou a questão, ansioso para se redimir, mesmo que

fossepordeduções.Elesabiaquedemôniosmortoseramfrequentementepreservados em jarros e vendidos como curiosidades. Mas certamentealgumacoisatinhaqueacontecerquandooconjuradormorriaedeixavaodemônio desatrelado... a não ser que a pergunta fosse uma pegadinha?Fletcher se lembrou da história de Rotherham sobre Baker e o demônioquenãooabandonava,mesmonamorte.Talvezfosseumtruque.

—Nada, senhor— respondeu Fletcher, confiante. Porém, seu coraçãoafundou ao ver Tarquin sorrir. Sabia que tinha errado antes mesmo deGoodwinabriraboca.

— Ridículo. Você não sabe absolutamente nada sobre demônios?Quandoumconjuradormorre, seudemôniopermaneceemnossomundoporapenasalgumashoras,antesdeserreabsorvidodevoltapeloéter.Paraficarvivononossomundo,eleprecisaestaratrelado.Éessaconexãoqueosmantém aqui. Caso contrário, eles simplesmente desvanecerão. Ou vocêachou que havia demônios selvagens correndo por aí?—Goodwin falou

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bem alto para que todos ouvissem, e a reação geral foi um aumentogeneralizadonaintensidadedasanotações.Desgostoso,oprofessordeuascostasaomeninoefoiatéaparedeatrásdesi.Haviaváriosroloslongosdepergaminhoencostadosali,dosquaiselepegouum,desenrolouefixounaparede. Era umdiagramadetalhado de umCaruncho empreto e branco,comvárias estatísticas e números abaixo.—Hoje vamos aprender sobreCarunchos,onívelmaisbaixodedemônio,aforaseusváriosoutrosprimosna base da cadeia alimentar, os quais não vale a pena capturar. Sei quetemos dois deles aqui hoje, especificamente Escaravelhos, os maispoderosos da família Caruncho. Fracos em mana, tamanho e força, masúteiscomobatedores.Muitobonsemdistrairoinimigoduranteumaluta,especialmente se atacarem os olhos. Genevieve e Rory possuemEscaravelhos juvenis,mas emalgunsmeses vãodesenvolver ferrões, quepodemcausarparalisia debaixonível e umadornada insignificante.Umenxamededezferrõespodematarumorctouro,portantonãosubestimemopoderdoveneno.

—Fantástico!—exclamouRoryemvozalta,emseguidacobriuabocacomasmãos.Todosriram,excetoGoodwin,quefungoucomirritação.

Aliçãocontinuounesseestiloporváriashoras,listandoinúmerosdadosediscutindooshábitosdealimentaçãoecriaçãodoEscaravelho.Fletcherobservou deprimido enquanto páginas e mais páginas de anotações seempilhavamnascarteirasdosoutros,atéqueOteloocutucoucomopéesussurrou:

—Nãosepreocupe,vocêpodecopiarminhasanotaçõesmaistarde.Durante o almoço, Fletcher conseguiu pegar umapena emprestada de

Roryeummaçodepergaminhos comGenevieve, agoraestavamaisbempreparadoparaasegundametadedaaula.Entretanto,quandovoltaram,orapaz se surpreendeu ao encontrar Cipião esperando por eles na sala deaula,comumaexpressãodeimpaciêncianorosto.

—Fletcher, vá seapresentarnabiblioteca.Vocêaindanãoentregouo

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livro de James Baker, apesar de ter recebido ordens de levá-lo àbibliotecáriaháváriosdias—ralhouele,irritado.—MajorGoodwin,vocêseincomoda?

— Não com esse cadete — resmungou Goodwin. — Ele foi umadecepção.

Cipião ergueu as sobrancelhas para Fletcher mas não disse nada. Orapaz juntou seus pertences, corado de humilhação. Ele tinha mesmocausadoumaimpressãotãoruim?

— Caramba, eles levam os livros atrasados a sério mesmo nessabibliotecadaqui,hein?—murmurouRorynoseuouvido.

—Encontrovocêlá.Nãoseesqueçadelevarolivro—instruiuCipiãoaFletcher,saindosemolharparatrás.

O garoto correu escada acima, amaldiçoando seus esquecimentos. EletinhaesquecidodeescreverparaBerdon,de entregaro livroe, acimadetudo,deexaminá-lo.

Fletcherlembrouasimesmoquenacarroçadeovelhasestiveraescurodemaisparaconseguir ler,umfatoqueoaborrecerabastante.Tinhasidoumajornadaincrivelmentequenteefétidasemnadaparasedistrairalémdos próprios pensamentos. Mesmo assim, Fletcher definitivamente tinhatidotempodelê-lonanoiteanterior.

Depoisdecorreratéotopodatorre,recolherolivroedescerdevoltaàbiblioteca, Fletcher estava ofegante. Apoiou-se na parede e tentou serecompor. Não queria piorar aindamais a opinião que Cipião tinha dele,chegandoaolocaltodosuadoeatrapalhado.

— O que você está esperando, Fletcher, já para dentro! — vociferouCipiãoatrásdele,fazendoomeninopular.Oreitorpôsamãonoombrodoalunoeoconduziuparaointeriordoaposento.

Os dois entraram na biblioteca juntos, e o cheiro bolorento de livrosvelhostrouxememóriasdacriptadePelegodevoltaàmentedeFletcher.Aquilotudotinhamesmoacontecidohaviamerassemanas?

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— Ah, aqui está você. Tenho de admitir que estava antecipando estemomento.Obrigadaportê-lotrazido,reitorCipião—disseumavozvindadetrásdasprateleiras.Momentosdepois,umamulherdemeia-idadecomcabelos loiros encaracolados e óculos de armação dourada emergiu dasestantesdelivros.Elatinhaumaaparênciadematronaeumrostosincero.

—EstaéadamaRoseFairhaven,abibliotecáriaeenfermeiradeVocans.Elajáestáconoscohámuitotempo—murmurouCipião.

—Oraora,reitor,vocêmefazparecerumavelhinha.Nãofazassimtantotempo!Bem,deixe-meverotomo.Vamosdarumaolhada.

Elachamouosdoisatéumamesabaixailuminadaporumainfinidadedevelasbruxuleantes.

— Coloque-o aqui onde todos podemos ver. Arcturo me explicou aorigem do livro. Eu me lembro de James Baker. Rapaz calado, sempredesenhando. Tinha o coração de um artista, não de um guerreiro. Nãonasceupara ser soldado. Lamento saber oque aconteceu comele.—Elasuspirouesesentouàmesa.

Fletcherpousouolivroeosdoissejuntaramàbibliotecária,inclinando-separamaispertoenquantoelafolheavaotomocomumarexperiente.

—Istoéincrível!—exclamouadamaFairhaven.As páginas estavam cheias de esboços intrincados de demônios com

uma caligrafia fina e elegante abaixo. O nível de detalhamento eraextraordinário, com estatísticas e medidas muito semelhantes aopergaminhodeCarunchousadopelomajorGoodwinparadaraula.

— Ele estava estudando demônios da parte órquica do éter, suafisiologia e características. Provavelmente dissecava quaisquer demôniosórquicospreservadosnosquaisconseguiacolocarasmãos!Éexatamentedisto que precisamos para nossos arquivos. A maioria dos magos debatalha parece ter esquecido um dos ditos mais importantes de umsoldado:conheçaseu inimigo. Talvez agora, queestá tudo registrado, elescomecemalevarissomaisasério.

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Fletchersorriu,felizporfinalmentetersidocapazdecontribuir,mesmoindiretamente.

— São notícias excelentes, dama Fairhaven, mesmo que eu tivesseesperançasdequeo livronosdessemais informações sobre comoBakerencontrou o pergaminho de conjuração da Salamandra de Fletcher —comentouCipião,comumtoquededecepçãonavoz.

—Naverdade,damaFairhaven,seasenhoraolharnofinal,devehaveralguma coisa sobre esse assunto. Acho que Baker esteve escrevendo umdiáriopertodofim—sugeriuFletcher.

Ela passou as páginas até chegar às últimas, onde os diagramasterminavameasfolhasestavamcobertasdelinhasdetexto.

— Esperem, o que é isso? — indagou a dama Fairhaven, puxando opergaminhodeconjuraçãocoriáceoeoexaminandoàluz.

—Eu...nãotocarianissosefosseasenhora—gaguejouFletcher.— Sei do que isto é feito, Fletcher — retrucou a bibliotecária,

manuseando omaterial com fascinação.— Já vi um destes,muitos anosatrás. Inscreverumpergaminhopormeiodaescarificaçãodapeledeuminimigoeraométodo costumeirodosvelhos xamãsorcsparapresenteardemôniosaosaprendizes.Nãoétãocomumnosdiasdehoje,porém.VamosveroqueBakertinhaadizersobreoassunto.

Os olhos dela esquadrinharam as páginas enquanto Fletcher e Cipiãoesperavam pacientemente. A dama Fairhaven parecia estar lendo numavelocidade incrível, mas, bem, ela era uma bibliotecária, afinal. Poucotempodepois,fechouolivroeopôsdelado.

—Pobre James— comentou, balançando a cabeça.—Ele estava bemdeprimidopertodofim;ninguémlevavaapesquisadeleasério.Osoutrosmagosdebatalhanãoorespeitavamporqueeleeraumconjurador fraco.Fora amaldiçoado com um nível de realização três, pobre coitado.Desconfio que sua malfadada missão floresta adentro foi uma tentativadesesperadadeencontrarumxamãorc e, de alguma forma,descobrir as

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chavesqueelesusam.—Insensatezdapartedele—escarneceuCipião, lançandoasmãosao

ar. — Os xamãs orcs sabem que queremos descobrir quais chaves elesusam, então nunca entram no éter perto das linhas de frente. Agoramecontesobreessepergaminho.Eleéomotivodetodoesserebuliço,afinal.

—Dizaquiqueeleencontrouoroloenterradonumvelhoacampamentoórquico. Num trecho mais anterior do diário, ele conta que encontroumuitosossosnomesmosítio, tantodehumanosquantodeorcs.Suspeitoqueoacampamentodosorcstenhasidoatacadonomeiodacerimôniadeconcessão de demônio, e o rolo de pergaminho foi enterrado numa valacomum.Oshomensquesepultaramoscorposprovavelmentenãosabiamdesuaimportância—explicouadamaFairhaven,acariciandoodocumentocomfascinaçãomórbida.

—Inútil!—resmungouCipião,comavozcheiadedesapontamento.—Uma mera coincidência. Duvido que encontraremos quaisquer outrospergaminhosescavandoessesossosvelhos.Façaumacópiadolivrosemodiárioeomandeaosmagosdebatalha.

— Sim, senhor, começarei esta noite. Se bem que devo precisarcontrataralgunsescribasparacopiarasilustraçõesdireito—respondeuadamaFairhaven,folheandoolivrodistraidamente.

—Podecontratar.Pelomenosalgumbemadveiodetudoisso—disseCipiãoenquantosaíadabiblioteca.—Alémdasuapresençaaqui,éclaro,Fletcher—acrescentou,docorredor.

Fletcherfitouolivrocomcobiça.Nãopodiaacreditarquetinhadeixadopara lê-lo tão tarde, por maior que fosse. A dama Fairhaven continuoupassandoaspáginas e, quandoFletcher se endireitou, ela ergueuo olharparaele,comosetivesseseesquecidodesuapresença.

—Por favor,medesculpe,Fletcher,équeestoutão fascinadaporestelivro.Muitíssimoobrigadaportê-lotrazido.Temoquetereiqueficarcomeleatéquecópias suficientes tenhamsido feitas,oquedeve levaralguns

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meses.Vocêpoderáficarcomeledepoisdisso.

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34

Fletcher tinha esperado poder ver quais eram os demônios dos nobresquandoLovettfinalmentedecidiuquetodososplebeustinhamdominadoainfusão. Infelizmente, ela sempremandavaqueelesos infundissemantesdeabriracortina.

O menino ficara surpreso ao ver que Rory e Genevieve tiveramfacilidade com a infusão, enquanto Serafim, Otelo e Atlas precisaram devárias tentativas para dominar a arte. Fazia muito sentido pois, quantomaispoderosoodemônio,maisdifícilerainfundi-lo.

Conformeasliçõesprogrediam,Fletchercomeçouaavaliarseuscolegas.Osnobreseramversados,maspreguiçosos,satisfeitoscomosníveisatuaisdehabilidadeecomplacentesnoaprendizado.

Emcontrapartida,osplebeusaprendiamnumritmo feroz, absorvendocadamigalhadeinformaçãoqueencontravam.Infelizmente,apráticaeraomelhor professor tanto na feitiçaria quanto na infusão, e portanto oprogressoeralento.

Ainda assim, havia vários alunos se destacando dentre os amigos deFletcher. Sylva e Otelo eram naturalmente talentosos, recebendo

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comentáriospositivosdosprofessoresemquasetodasaslições.Omesmoacontecia nas aulas de demonologia, mais teóricas. O par praticamentevivia na biblioteca, buscando conhecimento oculto em tomos antigos.FletcheraprendiaquasetantocomelesquantocomomajorGoodwin.

Quanto aos plebeus humanos, Fletcher e Serafim lideravam o grupo,maisporpuroesforçodoqueporumdomnatural.Osoutrostinhamcriadoo costume de tirar os fins de semana de folga em Corcillum, comprandopresentesenecessidadesemandando-osàsfamílias.AfamíliadeSerafimparecia já ser abastada e ele visitara a capital nopassado, entãopreferiapassarseutempoestudandocomFletcher.

Eraumjovemdebomcarátercomumsensodehumordesavergonhadoque lhe rendiamuitosolharesdesaprovadoresdeSylvaeOteloenquantoestesliamnosilênciopoeirentodabiblioteca.

—Todosjuntosaquinomeio,pessoal—gritouLovett,tirandoFletcherdeseusdevaneios.

Quatrocriadostinhamlevadoumamesaredondadepedraaocentrodoaposento. Estava coberta com um lençol branco, mas Fletcher via umagrande elevação convexa nomeio. Todos conseguiram lugar em volta damesa,apesardeterficadoapertado.IsadorafezumacaretaquandoAtlas,todosuado,espremeu-seaoseulado.Amenina,comumgestonítido,levouumlençorendadoaonariz.

—Desculpa—murmurouAtlas,envergonhado.Lovett deixou seu lugar à mesa e se ajoelhou ao lado do maior

pentagramanocentrodasala.Aocontráriodoscourosdeconjuraçãoqueeles vinham usando, esta estrela de cinco pontas estava cercada pelasestranhas chaves que tinham sido gravadas na capa do livro de JamesBaker.

— Jamais usem um pentagrama chaveado sem a presença de umprofessor,entenderam?—grunhiuela,apontandoparaaestreladiantedesi.— Quebrar essa regra émotivo para expulsão imediata. Vocês foram

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avisados!Os estudantes assentiram calados enquanto ela energizava o

pentagrama, cujas linhas crepitavam compoder e cuspiam fagulhas paratodos os lados.Desta vez, Lovett permaneceude cabeça baixa por váriosminutos,seurostocontorcidodeconcentração.Opentagramapulsavacomum zumbido volátil, tremeluzindo como o cantarolar incessante de umlouco.

—Caramba,seLovettdemoratantotempo,nãoachoqueeuconseguiriausar umpentagrama chaveado nem se quisesse— sussurrou Serafim aoladodeFletcher.—EumalconsigoinfundirFarpasemquasedesmaiar.

—Não se preocupe. Tenho certeza de que, com a prática, nós vamosconseguir—murmurouFletcherdevolta.

Finalmente,umaesferaseexpandiunocentrodaestrelaesemantevepairandono ar comoum fraco sol azul. Lovett ofegou e então passou dejoelhosparaopróximopentagrama.Comumtoquesuave,elalibertouumdemônioacimadele.

—UmCaruncho!—sussurrouGenevieveaRory.Lovettouviueseviroucomumsorrisocansado.

— Isso mesmo. Eles são os melhores batedores, sempre necessáriosquandocaçamosnoéter.Valenséoprimeirodemônioqueeutive.Semele,não teria conseguido capturar Lisandro, nemqualquer umdos demôniosqueeu tiveantesdele,naverdade.—Elavoltouàmesaepousouamãosobreopanobrancoqueacobria.Naoutramão,seguravaumalongatirade couro que se conectava à base do pentagrama chaveado. Fletchersuspeitavaqueserviaparamanteromanafluindo.—Estouprestesalhesmostraroequipamentomaiscarodaacademia inteira.Não toquem.Nemsequer respirem nele. Apenas observem — sibilou Lovett, olhando nosolhos de cada um até que todos estivessem assentindo. Com esse avisofinal,elaarrancouolençolerevelouoquehaviaabaixo.

Umaenormegemaestavamontadanumasuperfíciedemármorebranco.

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Ocristaleralímpidocomoumanascenteesuacoreradoroxoprofundodaurzeselvagem.

— Esta gema é um tipomuito raro de cristal chamado Corundum—explicouLovett.—Eleseformaemquasetodasascores,masumapeçatãograndeetransparenteassiméincrivelmentedifícildeseencontrar.Nósaschamamosdepedrasdevisão,porémestagemaemparticularéconhecidacomooOculus.Vamosfornecer-lhesumapeçasevocêsnãotiveremmeiosde comprar uma para si, apesar de que vocês poderão notar que aqualidadeeotamanhodasgemasdaacademiasãobem...limitadas.

LovettchamouValenscomumgesto,eacriaturinhaesvoaçousobreascabeças dos alunos, pousando na gema. Diferentemente de Malaqui eAzura, a carapaça desse Caruncho era de ummarrom-escuro sem graça.Comoseelapudesse leramentedeFletcher,Lovettsorriuastutamenteeacariciouacarapaçadobesourodemônio.

—Valensémuitoapropriadoparasuasfunções.Elenãoficabonitonomeuombro,masserámaisdifícildesedetectarseacabartopandocomumdemôniofamintolánoéter.

Fletcher teve uma rápida lembrança de Ignácio comendo um besouromarrom quando ele o conjurou pela primeira vez,mas aquele eramuitomenorquequalquerumdosCarunchosqueo rapazvira.Talvez fossedeumaespéciediferente.

—Certo,vamosbotaressecirconaestrada.Vocêsprecisamempurrarmanaatravésdodemônioparaapedra,assim—explicouela,pousandoamãolivresobreValens.

Agemasetornounegra.Quandoacapitãafastouamão,acormudoudenovo. Inicialmente, Fletcher pensou que a gema tinha se tornado umespelho, pois se viu fitando a imagem do próprio rosto. Porém, logo aimagemsetransformounadeSerafim.

—VocêsagoraestãoenxergandopelosolhosdeValens.Éumatécnicaquechamamosdecristalomancia,muitoútilpara fazerreconhecimentoe

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controlarseudemônioadistância.Nósjápodemossentirospensamentosdenossosdemônios.Agorapodemosveroqueelesestãovendonocristal.É essencial verificar o que há do outro lado do portal através do seudemônio menos importante antes de entrar no éter. Se houver algoperigosodoladodeláquandoeleatravessar,seráValenscorrendooriscoem vez de Lisandro. Como um Caruncho émenor emais ágil, é tambémmenorachancedesernotadoepodeescaparcommaisfacilidade.

AimagemtremeuquandoValenszumbiunoarepairoulogoemfrenteao orbe azul que girava. Lovett estalou a língua e, com isso, o demôniodisparouluzadentrocomoumtirodemosquete.

AprimeiracoisaqueFletcherviunapedrafoiochãotingidodevermelho.Grãos finos de poeira ferruginosa rodopiavam acima, transformados empequenos torvelinhos por um vento feroz. O céu era do alaranjado daaurora, sóquenão continhanenhumcalor, nemhavianeleuma fontedeluz. Árvores atrofiadas pontilhavam a paisagem, seus galhos esparsoscontorcidosemrigormortis.Nãoexistiavidaali,apenasacarcaçasecadeumaterramortahaviamuito.

—Perfeito—comentouLovett.—Emergimosnasterrasmortas.—Terrasmortas?—indagouRory,numavozdeespanto.—Entrarnoéternãoéumaciênciaexata.Existeumalargamargemde

erro de onde poderemos aparecer. As terras mortas têm seus pontospositivosenegativos,dependendodoseupropósito.Nãohaveránadaparalhe surpreender aqui, porém, se você estiver tentando capturar umdemônio,teráquearrastá-loporumabeladistânciaparavoltaraolocaldeorigem. Se eu estivesse caçando, fecharia este portal e abriria um novo,porém,paraosfinsdesteexercício,esteéolugarideal.Asterrasmortasselocalizamentreovazioeaorlaexteriordoéterhabitado—declarouLovettnuma voz fatigada. Fletcher notou uma veia pulsando na testa daprofessora. Entrar no éter provavelmente exigia muito poder econcentração.

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Valens se virou e voou para longe do portal, ganhando altitudeconstantemente.Asalapermaneciaemsilêncio,excetopelarespiraçãodeLovett,conformeosminutossepassavam.Apaisagempareciaficarmaisemaisdesolada,comcadavezmenosárvores,atéquesóseviaterraplanaecrua.

—Comovocêsabeparaondeir?—perguntouTarquin.—Parecetudoigualparamim.

Fletcherpercebeuqueeraumaboapergunta.Ojovemnobrepoderiasermuitascoisas,masnãoeraburro.

— O portal está sempre voltado para o centro do éter quando o seudemônio sai dele, então você é orientado assim que chega. Além disso,todos os demônios são atraídos instintivamente ao centro, e têm umabússola interna que lhes diz para que lado ele fica. Eu posso me guiarusandoessessentidos,masexigepráticaenãoémuitopreciso.Époressemotivoqueésemprearriscadoentrarnoéter.Sóconsigomanteroportalabertoporumtempolimitadoe,seeufechá-loantesqueValenspassedevolta,nossovínculoserárompido,eoperderei—explicouLovett.Tarquinabriuabocaparafazeroutrapergunta,masFletcherfalouprimeiro.

—Oquevocêquerdizercomcentro?Issosignificaqueoétertemumaforma?—perguntouele,tentandoentender.

— Até onde sabemos, o éter tem forma de disco. Os demônios maisfracos tendem a permanecer nos anéis exteriores, enquanto as criaturasmaispoderosasgravitampelocentro.Parecehaverumacadeiaalimentarrudimentar,comCarunchosdenívelbaixonabase,maispróximosàsterrasmortas.

Tarquin começou a falar de novo, mas Lovett ergueu a mão parasilenciá-lo.

— Guardem suas perguntas para mais tarde. Já é difícil o suficientemanter o portal aberto e guiar Valens sem ter que pensar em respostaspara vocês. — Mesmo enquanto ela falava, o pentagrama tremeluzia. A

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professoragrunhiueosímbolobrilhounumvioletaconstantenovamente.Apesar da intensidade da lição, Fletcher se sentiu relaxar, talvez pela

primeiravez.Todosestavamaprendendoalgumacoisa,atéTarquin.Tudofazia sentido para Fletcher, como se ele estivesse se lembrando de algohaviamuitoesquecido.Elenasceraparaaquilo.

Ohorizonte começoua cair, escurecendodramaticamente.Obrilhodocéu desapareceu numa treva pura e sem estrelas, porém o pequenoCarunchocontinuousubindoesubindo.Finalmente,eleparoueolhouparabaixonovamente.

—Olhemdeperto.Vocêsosverão—instruiuLovett,avoztensacomoesforço.

A terra terminava numa linha regular, criando um perfeito precipícioque mergulhava nas trevas turvas abaixo. Fletcher viu que a linha dopenhasco se estendia bem ao longe, curvando-se quaseimperceptivelmente ao desaparecer de vista. Percebeu que o disco deviaserenorme,maiorquemilHominums.Aquelenãoeraumbomlugarparaseperder,pensousombriamente.

Seu raciocínio se perdeu quando ele viu algo se mexer no abismo.Conforme os olhos do demônio se ajustavam à escuridão, uma massatempestuosa surgia. Ela se torcia e se retorcia tortuosamente, um caosemaranhadodetentáculos,olhosedentesserrilhados.

—Ceteanos—sussurrouSylva,emterror.—Isso,Ceteanos.Vocêfezodeverdecasa,Sylva—pronunciouLovett,

soturna,enxugandoosuordatesta.—AlgunsoschamamdeAntigos.Elespassamfomeláembaixo,canibalizandounsaosoutrosenquantoesperam.OsCeteanosagarramqualquerdemônioquevaguearparalongeobastante,geralmenteosdoentesouferidos,tentandoencontraralgumlugarondeserecuperar.Porissoprecisamosvoartãoalto.Estaéaprimeiraeúnicavezemqueme arriscarei a chegar perto deles, então aprendambem a lição.Fiquemlongedaqui.

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Valensgirouevooudevoltaemdireçãoaolugardeondetinhamvindo.Destaveznãohouveperguntasenquantoogruporefletiasobreascriaturashorripilantesquetinhamvisto.Osmonstrosgiganteseramseresgrotescosetorturados,dissoFletchertinhacerteza.Pormaisquenãopudesseouvirnada,eracapazdeimaginarseusgritosatormentados.

O orbe azul do portal surgiu novamente à vista, mas Valens passoudiretoporcimadele.Comsuaaltitudeatual,elespodiamvoarbemrápido,vendoosolopassandosobelescomofolhascaídasnumrio.Fletchertentouimaginar como seria a sensação de Lovett, de montar um Grifo sobre ocampodebatalha,entãosentiuumapontadadeinvejaaosetocardequejamaisseriacapazdemontarIgnácio.

— Eu lhesmostrarei rapidamente onde começam os campos de caça,entãotereiquevoltar—disseLovett,osdentestrincados.—Normalmenteconsigodurarmuitomais,masaindanãomerecupereidacapturadaLutradeAtlas,algunsdiasatrás.TivesortedoreitorCipiãoestarláparaatrelá-la.

—Atrelar?—indagouRory.Lovettoignorou,limitando-seaapontaragema.

Omundo tinha ficado verde. Valens contemplava uma floresta, mas avegetação não era de nenhum tipo que Fletcher reconhecesse. Acima damata, eles viram revoadasdedemônios voando ao longe,mergulhando egirando como estorninhos. Um enxame de minúsculos Carunchos voavabaixosobreasárvores,atésedispersarquandoumgrandeCarunchonãomuitodiferentedeValensagarrouumdelesnoar.Bemaolonge,nuvensdecinzasmanchavamocéu.Abaixodelas,vulcõescompontasdelavacuspiampilaresdefumaçaqueseerguiamnoar,comocolunassustentandooscéus.

AlgoatingiuValenscomforçabrutal,derrubando-o.Lovettgritoudedorconforme a imagem girava como um caleidoscópio, as árvores chegandocadavezmaisperto.

Apedrasetornounegracomotinta.

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35

Ogrupo fitouapedranegraaterrorizado,prendendoarespiração.Lovettagarravaatiradecouro,osnósdosdedosbrancosdetantaforça,enquantoopentagramacuspiafagulhasvioleta,chamuscandoefumegandonocouroaoseuredorcomofedordecabelosqueimados.

OOculuspiscoueseacendeunovamente.A imagemestavanebulosaeforadefoco,masgirou lentamenteenquantoValensolhavaparaascopasiridescentesdasárvoresacima.Odemoninhoestavavivo!

—Eraissoqueeutemia—murmurouLovett.—Énestaépocadoanoque os Picanços migram através dos nossos campos de caça. Nos anosanteriores,euteriaesperadopelomenosmaisummêsantesdecomeçaraslições no éter,mas tive de adiantar tudo graças a essa história de vocês,calouros,participaremdotorneio.MalditosejaCipiãoesuapressadebotarvocês no campo de batalha! No tempo dele, eram cinco anos de estudoantesdaformatura.Eledeveriasaberoqueestáfazendo!

Aprofessorapraguejoulongaeintensamente,umatiradamaisprofanaque uma conversa de marinheiros vesanianos. As orelhas de Fletcherficaram vermelhas com a explosão de palavrões, mas ele sorriu consigo

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mesmo.Lovettsabiaxingarcomoninguém!OmeninotentouvisualizarumPicançocombasenoquetinhaestudado,

mas só conseguia lembrar que se tratava de criaturas perigosas, comaspectodeaves,quevisitavamapartedeHominumdoéter.

—OPicançovaivoltar,masValensmachucouumadasasas.Elevaiterquedispararatéoportal.Nãoexisteamenorpossibilidadedeeleenfrentarum Picanço; o bicho está três classes acima dele. Talvez cinco, se for amatriarcadarevoada.

A última frase não dizia nada a Fletcher,mas ele se perguntou a queclasse Ignáciopertencia.QuandooCarunchovoltouazumbireseergueunoar,desajeitado,ospensamentosdorapazvoltaramaopresente.

Opobredemôniovoava lentamente, atrasadopelaasa ferida.Ele faziaum rasante sobre o deserto vazio, fustigado pelos ventos baixos quelançavam poeira em sua visão. Conforme os minutos se passavam comlentidãoexcruciante,Fletcherpercebeualgoàfrente.Eraumasombra,masorapaznãosabiabemdoquê.

—Temalgumacoisa acimadenós—afirmouele, apontandoa formanegranapedra.

—Eusei.Esteveconoscodesdeafloresta.Picançosgostamdemachucaravítimacomumataquesurpresa,depoissegui-ladoaltoatéqueeladesabepor conta dos ferimentos. É uma técnica eficaz,mas será uma vantagempara nós hoje. Demônios selvagens têm um medo quase instintivo deportais,entãoéraroqueumdelesatravesse,anãoserqueoarrastemos.Sepudermos fazerValensvirpeloportal, entãooPicançoodeixaráempaz.Emseguidaeupodereiinfundi-lo,eaíelevaisararnormalmente.Sóesperoqueconsigavoltar—respondeuLovett,empurrandoumamechadecabelosuadoparalongedosolhos.

Finalmente,oportalapareceunohorizonte.Jánãoerasemtempo,poisovoo de Valens estava cada vez mais instável, e a imagem no Oculusescureciacomfrequênciapreocupante.

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— Só mais um pouco — sibilou Lovett, com a testa franzida deconcentração.

MasoCarunchotinhavindoatéondepodia.Valensdesabouaochãoapoucosmetrosdoportal,aterrissandonumabaforadadepoeira.Ele ficoucaído, imóvel, e o único sinal de que ainda vivia era o brilho da pedra,exibindoasnuvensdepoeiraquegiravamcomovento.

— Rápido, me tragam o equipamento etéreo, agora! Está no últimoarmáriodaparedeoposta.Nãoseiquantotempotemos!

Serafim foi o primeiro a agir, disparando até o fundo da câmara epuxandoparaforadoarmárioumenormevolume.

—Euprecisodeajuda,épesado!—gritouele.Oteloseadiantouparaassisti-lo e juntos os dois carregaram o aparato até Lovett. Fletchercontinuoufitandoagema.Asombratinhadadooutrorasante.

—NãodáparaeumandarIgnáciobuscá-lo?—perguntouFletcher.—Não,nossosmanassefundiriamseoseudemônioentrassepelomeu

portal.Amisturademanaséalgodifícildesedominar.Sevocêfracassarnaprimeiratentativa,oportalsefecharáeeuperdereiValensdevez.

Lovettestavalutandoparaentrarnoquepareciaserumtrajeinteiriço.Erafeitodecouropesadocombotasdebiqueiradeaçonametadedebaixoeumanelmetálicoemvoltadopescoçonotopo.Depoisdeencaixarospés,Lovettprendeualongatiradecouroqueenergizavaopentagramaaoutraque se estendia nas costas do traje, esta com vários metros decomprimento.Haviaumamangueiralongaevaziaconectadaaumcapacetenochão,enroladaemváriasvoltas.

—Estendameu tubodear, Serafim.Precisodeumaviaaérea livre—comandou Lovett, erguendo o capacete, que tinha um anel de metal nabase. Assim que Serafim terminou de desenrolar a mangueira, a capitãencaixouocapacetesobreopescoço.

—Precisaestarhermeticamentefechado—gritouelacomvozabafada.—Oardoéterévenenosoparanós.Seomeutrajeforfurado,puxem-me

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devoltaimediatamenteusandoocabo,quereutenharecolhidoValensounão!

— É só um Caruncho. Por que arriscar sua vida por algo que vocêpoderiasubstituircomoutroigualamanhã?—indagouTarquin,comavozcarregadadeceticismo.

Lovett se virou para ele, o rosto semivisível. O capacete era feito decobre,comumpainelredondodevidrogrossonafrente.Haviaumagradenaviseiraparaimpedirqueseestilhaçasse.

—Umdemônionãoéumacoisaquesejogaforacomoumacamisavelha—vociferou ela.—Quando você tiver batalhado como seu, lado a lado,talvezvocêentenda.

Comessaspalavrasdedespedida,acapitãentrounoportal.Eles viram Lovett emergir na imagem da gema, um vulto marrom

nebuloso surgindo na visão deValens. Era tão estranho ver a professorasair da penumbra azulada do salão de evocação para o céu calcinado doéter em meros segundos. Porém, lá estava ela, pisoteando a poeira nadireçãodoCarunchocompassoslentosecuidadosos.

LogoamãoenluvadaalcançoueergueuValens,levando-oatédiantedocapacete. Os alunos viram os olhos cinzentos de Lovett pelo vidro,carregadoscomiguaisquantidadesdemedoepreocupação,antesqueelasevirasseesearrastassedevoltanadireçãodoportal.

—Porqueelasemovetãodevagar?—sussurrouGenevieve.—Elaestávestindoumtrajepesadonumdesertocalcinanteenquanto

mantém aberto um portal para outro mundo e controla um demôniomoribundo.Éummilagrequeelaconsigaficardepé—respondeuTarquinnumtomsoberbo.—Seoportalsefechar,elaficarápresaatéovenenoamatar depois que a sua mangueira de ar for cortada ao meio. Mulherinsensata.

— Ela vai conseguir — murmurou Fletcher, torcendo intensamenteenquantoeladavaumpassocambaleantedepoisdooutro.

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Foi Otelo quem viu primeiro, um pequeno ponto negro no céu,crescendoacadasegundo.Eleapontoucomcuriosidadeedepoiscomolhosarregalados de terror, enquanto o demônio emplumado crescia ao seaproximar. Lovett pareceu notá-lo também, pois apressou o passo; opentagrama crepitou perigosamente conforme a concentração dela seprejudicava.

OPicançoeraumaavegigantecomlongaspenasnegras.Aenvergaduradas asas era tão larga quanto a altura de Fletcher, e as penas nasextremidadestinhampontasalvejadasdebranco.Seubicoletaltinhaumacurvatura cruel, com uma barbela em vermelho brilhante na garganta euma crista vermelha no alto da cabeça, como um galo. Ele lembrava aFletcherumenormeefeioabutre.

O pássaro demônio mergulhou contra Lovett com as garras laranjabrilhantes estendidas. A capitã se abaixou, mas tarde demais; as garrasriscaramocapacetecomprecisãobrutal.Asunhasseprenderamnagradedo aparato, arrastando-a para trás e derrubando-a de costas. O bicocurvado atacou repetidamente, só conseguindo fazermossas no capacetedecobre.

— Puxem-na de volta!— gritou Fletcher.— Ela está com Valens nasmãos!

Omeninoagarrouocaboeopuxou,esticandoocourogrossoatéquerangessesoba tensão.Osdemais logoseguiramseuexemplo;atémesmoIsadoradelicadamentesegurouefezforçacomosoutros.Elesprogrediramrápido, extraindo váriosmetros de couro pelo portal crepitante. Fletcherolhou para trás, para a pedra de visualização, mas só conseguiu captarflashesdepenascontraocéudebronzeenquantoodemôniocontinuavaabicarviolentamente.

AtensãonocourodiminiuquandoLovettconseguiucambaleareficardepé, então ela caiu pelo portal num emaranhado de braços e pernas. Noentanto, logo que o grupo começou a comemorar, suas vozes ficaram

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entaladasaoperceberem:acapitãnãovoltarasozinha.OPicançoemitiuumcrocitaráspero,depoisabriubemasasasepisou

nochão,ficandoquasetãoaltoquantoumhomem.Eleestreitouosferozesolhosamarelosnaluzfracaeentãoavançounumestranhosaltitar,comoseestivesse fazendo uma brincadeira macabra de amarelinha. Lovett jaziaimóvelnochão;algumacoisaestavaterrivelmenteerrada.

— Para trás!— gritou Tarquin, colocando-se no caminho do Picanço.Fletcherpodia aténãogostardo rapaz,mas ficou impressionado.Ele eracorajoso.

O jovem nobre se ajoelhou rapidamente e pôs as mãos no chão,energizando o pentagrama mais próximo. Em instantes, um demônio seformouacimadeleeinvestiucontraoPicançosemhesitação.

OdemôniodeTarquineraumaHidra,comtrêscabeçasreptilianasempescoçoslongoseflexíveis,comoumtriodecobrasconectadoaocorpodeumlagartomonitor.AscabeçasoscilavametentavamabocanharoPicanço,dardejandoparaumladoeparaooutroconformeodemônioinvasoreraconduzido de volta ao portal. Eles estavam bem equiparados, já que acriaturadeTarquineragrandeobastantepara sermontada,mesmoqueboapartedesuaalturafosseformadapelospescoços.AspernasdaHidraeramcurtas,mascadapataestavaequipadacomgrossasgarrasnegrasquesecravavamnocouroacadapasso.

—Nada consegue resistir contraTrébio!—bradouTarquinquandooPicançograsnou,confusocomoataqueemtrêsfrentes.

Fletcher ignorou a luta e contornou os dois monstros até Lovett. Eladeveriaestarconsciente,poisoportalaindaestavaaberto,masseucorpoestava imóvel como um cadáver. Valens se remexia na mão aberta dela,zumbindoenquantooPicançocombatiaodemôniodeTarquin.OpequenoCarunchoqueriaajudar,masnãoeraforteobastante.

—Voubuscarumprofessor!—afirmouGenevieve,saindopelaporta.FletcherseajoelhouaoladodeLovetteaarrastouparalongedoperigo,

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depoistirouseucapacetecomcuidado.Osolhosdelesearregalaramaoveroquehaviadentro.Abocadaprofessoraespumavaeosolhosestavamtãorevirados que ele só conseguia ver branco. A cabeça da pobre mulherquicava dolorosamente no couro conforme seu corpo era assolado porconvulsões. Fletchernão fazia ideiade comoela aindamantinhaoportalaberto.

— O veneno! — exclamou Fletcher horrorizado, tentando proteger aparte de trás da cabeçade Lovett comasmãos. Seus olhos pousaramnocapaceteeviramumarachaduraprofundanovidro.AsgarrasdoPicançoprovavelmenteotinhamdanificadonoprimeiroataque.

Fletcher se virou furioso para a ave-demônio, notando que ela tinhaparado a um ou doismetros do portal. Ao ficar tão próximo, omedo doportalpareceusobrepujaromedoquesentiadaHidra.OPicançodeuumpassohesitante à frente e atacou a cabeçamais próximado inimigo comumabicada,tirandosanguedaHidraeumgritodeespantodeTarquin.Masonobrenãoprecisavalutarsozinho.

—Ignácio!—gritouFletcher,energizandoopentagramamaispróximodesieconjurandoseudemôniocomumaexplosãoraivosademana.

A Salamandra se formou num mero instante, jogando-se ao combatecomumguincho.

Apesar do fato do Picanço sermuitomaior que ele, Ignáciomordeu aperna da ave-demônio, estocando-a repetidamente com o esporão decauda.OPicançocrocitoucomdorealarme,perdendooequilíbrioecaindopara trás na direção do pentagrama. A Hidra aproveitou a oportunidadesemhesitação,avançandopesadamenteecravandotodosostrêsconjuntosdepresasnopescoçodoPicanço.Oimpulsodoataquelevouosdemônios,numa confusãode garras e dentes agitados, à beira doportal, gritando euivandocomobanshees.

— Agora, Ignácio! — berrou Fletcher, preocupado que os demônioscaíssem pelo portal instável e fossem todos perdidos para sempre. O

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diabreterolouparalongedocombatecorpoacorpoedisparouumarajadade chamas, calcinando o ar acima daHidra e do Picanço. Essa foi a gotad’água.OPicanço fezumúltimoataque contra aHidra comosgadanhos,então saltou de volta para o portal com um grasnido decepcionado,deixandoasserpentessibilandocontraoar.Momentosdepoisoportalsefechou, desparecendo no nada. Os fogos-fátuos logo fizeram o mesmo,dissipando-seemfilamentosde luzazul,atéqueosalãocaiuemabsolutaescuridão. Lovett soltou um longo suspiro, então seu corpo relaxou.Fletcher ficou feliz ao notar que sua respiração semantinha,mesmoqueirregular.

Os novatos rugiram em triunfo, mas a alegria durou pouco, pois logoouviram Lovett engasgar na escuridão. Enquanto Fletcher a colocavasentadaeesfregavasuascostas,avozdeTarquinecoouaoseulado.

—Fletcher,seuidiota!AquelePicançoiasermeupróximodemônio!Umfogo-fátuotrêmuloiluminouoaposentoapartirdamãodeTarquin,

quelheapontouodedocomraiva.— Você está tão preocupado com nossa professora idiota. Não fique

assim,euvoulheensinarumaliçãoquevocêjamaisesquecerá!

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AHidra avançou contra Fletcher, sibilando comas línguas bifurcadas. Ascabeçasondulavamhipnoticamente, balançandodeum ladoparaooutrocomoserpentesprestesadarobote.

— Salomão! — gritou Otelo, materializando o Golem. O demônio depedra se plantou diante da Hidra e a encarou. Ignácio logo o seguiu,rosnando furiosamente. Juntososdois sepostaram,desafiandoaHidra atentarpassar.

—Eisqueoanãodecidebotarsuascartasnamesa.Nãoestousurpreso.Osfracosfrequentementeseunem—zombouTarquin.

—Euvoulhemostrarqueméfracoaqui.Venhasóparaver—grunhiuOtelo.EledeuavoltaparaficaraoladodeFletcher.

— Não temos tempo para isso! Vocês não estão vendo que a capitãLovett está morrendo? — berrou Fletcher, furioso com os dois. Arespiração da professora estava ficando cada vezmais sofrida, sorvendogolesengasgadosdearcomosecadasegundofosseumaluta.

—Deixeomeio-homemlutar,sequiser—retrucouTarquin,causandoespanto em todos diante do termo preconceituoso. Até mesmo Fletcher

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sabia que “meio-homem” era algo incrivelmente ofensivo para os anões.Otelocerrouospunhos,masnãomordeuaisca.

—Caleasuaboca!Nãoousefalarassimcomele!—rugiuFletcher,comaraivainundandosuasveiascomofogolíquido.

—Oanãoachaquesóporqueumdeseussuperiores foi forçadoa lheconcederumdemôniovalioso,eleagoraestánonossonível—continuouTarquin,inabalado.—Voumostraraelecomoestáerrado.Entãomatareiesse seu diabretezinho ridículo, Fletcher. Seus truques com fogo nãoassustamTrébio.—Ao somdopróprionome, aHidra sibiloue raspouapatanochão.

—Caríssimoirmão,nãosejaegoísta.Tambémqueroduelar!—Isadoraentrouno círculode luz. Ela fez umamesura, raspandoopénabeira dopentagramamaispróximocomomovimento.Filamentosdelicadosde luzbrancavoaramdo couroe criaram forma, retorcendo-se e enroscando-seatéqueodemôniodelasurgiunomeiodopentagrama.

Tinha uma aparência muito próxima a de um grande felino, porémparecia ser quase bípede, andando num agachamento curvado, como umchimpanzédaselva.Seupeloespessoeralistradodelaranjaepretocomoumtigre,commúsculospoderososqueondulavamsobapele.Oscaninosenormes de um dentes-de-sabre estendiam-se dos dois lados da boca,amboscommaisdedezcentímetrosdecomprimentoeterminandonumapontaafiadacomoagulha.AssimcomoumCanídeo,estedemôniotinhaumparextradeolhosatrásdoprimeiro.

— Nunca viu um Felídeo antes?— perguntou Isadora, percebendo aexpressão de assombro de Fletcher. — Meu Tamil é um belíssimoespécime.Vocênãoveráoutroassimemtodaasuavida.Minhacaríssimamãe foi gentil o bastanteparamedardepresente. Foi omínimoque elapoderiaterfeito,depoisqueTarquinrecebeuoorgulhoeaalegriadepapai.

OFelídeouivoudeempolgação,comorabobalançandodeumladoparao outro. Ele voltou os olhos incandescentes para Ignácio, estendendoum

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conjuntodegarrasmortaiscomexperiência.Fletcherengoliuemsecoquandoosdoisdemôniosavançaram,suaraiva

se esvaindo conforme ele percebia a realidade da situação. Ambas ascriaturas provavelmente haviam sido os demônios primários dos pais, oque significava que deviam ser extremamente poderosos. Mesmo com osuportedeSalomão,FletchertinhacertezadequeIgnácioestavaemfortedesvantagem. O menino fez o diabrete cuspir uma rajada de fogoalaranjadonoar,masosdemôniosdosnobresmalestremeceramquandoaschamasirromperamacimadeles.

—Agora,Trébio!—gritouTarquin,fazendoaHidrainvestircontraelescomumsibilo,seguidaporumTamilsaltitante.Salomãoseparouaspernase soltou um rugido gutural, erguendo os punhos de pedra. Ignácio seergueusobreaspatas traseirase inspirou fundo,prontoparasoltarmaisumaboladefogo.

Subitamente, um clarão de pelos dourados surgiu entre os quatrodemônios; Sariel tinha chegado à cena. Sua juba áurea estava eriçada, etodos os quatro olhos ardiamde fúria.O focinho geralmente elegante doCanídeoestavaenrugadonumrosnadoapavorantequeera tododentesesaliva. Ela arrastou a pata dianteira no chão, deixando quatro rasgos nocouro.Destavez,aHidrahesitou.

—Paremcomisso!—exclamouSylva.—Vocêsjáesqueceramqueméoinimigo?Nósestamostodosdomesmolado!

—Nãooficialmente;ouoselfosjáserenderam?—respondeuTarquin,commalícia.—Vocêésóumarefémdeluxo,nadamais.

SylvaseindignoucomessaspalavraseSariellatiu,sentindosuaraiva.—Oraora,Tarquin,nãopercaocontrole—interveioIsadora,pousando

amãonoombrodoirmãonumgestoapaziguador.—Oselfospodemmuitobem ser nossos aliados embreve.Os Forsyth e os chefes dos clãs élficospoderãosebeneficiarmuitounscomosoutros...nãoselembra?

Fletcherviuameninaapertarobraçodoirmão,cravandoasunhasem

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suacarne.Tarquinpausoueentãocurvouacabeça,fazendoTrébiorecuaralgunspassos.

—Peçodesculpas,eumedeixeilevarpelomomento.Febredebatalha,vocêsentendem—murmurouTarquin,masorostoaindaestavavermelhoderaiva.ElelançouumolharameaçadoraFletcher.

— Então, Sylva, como vai ser? O anão e o pé de chinelo... ou nós?—indagouIsadora.Maselajamaisouviriaarespostadaelfa.

AportaseabriuviolentamenteeArcturoentrounumrompante,seguidoporGenevieveedoiscriadoscomumamaca.

—Oqueestáacontecendoaqui?—rugiuele.Sacarissa entrou correndoeparouao ladodeSariel, postando-seuma

cabeçamaisaltaqueodemôniodaelfa.Comumestalardemandíbula,elamandouooutroCanídeodevoltaàSylva.

— Levem-na à enfermaria imediatamente — murmurou Arcturo,pegandoLovetteadeitandogentilmentenamaca.Eleafastouumcachodecabelodesua testae lhe fechouosolhos,queainda fitavamcegamenteoteto. Os criados partiram de imediato, tropeçando devido à pressa. —Agora...alguémvaimecontaroqueestáacontecendoaqui?—inquiriuele,comraivamalcontida.

— Estávamos espantando um Picanço que veio pelo portal—mentiuTarquinsemhesitação.—Elejásefoi.

Arcturo voltou os olhos a Fletcher, mas o menino não gostava dededurarosoutros.Ficoudebocafechada,massemexeu,culpado.Arcturoestreitouosolhoseavançou, jogandofogos-fátuosazuisportodacâmara.Enquanto os novatos estreitavam os olhos sob a súbita a luz elétrica, ocapitãofalouemvozalta:

— Espero que vocês não estivessem pensando em duelar. Os elfosgostavamdeduelar.Elesperderamdemôniosemaisdemônios,atéquenãotinhammais nenhum. Vocês sabem o que acontece quando os demôniosacabam?Nãohámaismanaparaseabrirumportal.Nenhummeiodese

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conseguirmaiscriaturas.Éisso,oéterperde-separasempre.Você,Sylva,maisquetodososoutros,seriaumacompletatolaseduelasse.Sódepensarnasconcessõesqueseupovotevede fazerparaquevocêestivesseaqui...Foiescolhidaparaserafundadoradeumanovageraçãodeelfosadeptos,eserá sua missão presenteá-los com seus primeiros demônios. Você é aprimeiraelfaconjuradoraemmilanos.Nãoleveissodeformaleviana.SeperderseuCanídeo,nãolhedaremosoutro.

Sylvabaixouacabeça,envergonhada,eSarielchoramingoucomoraboentreaspernas.Fletcherficougratoqueaelfacorressetalriscoporele,esilenciosamente agradeceudo outro lado do aposento. Eles poderiam tersidoflagradosnomeiodeumdueloeatésidoexpulsos,senãofossepelaintervençãodela.

—Qualquerocorrênciadeduelosseráretribuídacomexpulsãosumária.Plebeus terãode se juntar às fileiras de soldados rasos sem treinamentoposterior. Talvez, com sorte, poderão chegar a sargento. Quanto aosnobres,terãoodireitodecomprarumacomissãodeoficial,obrigandosuacasanobreapassaravergonhadeprecisardesubornoparacolocá-losnoexército.Mesmoassim,terãodeestudarcomtutoresparticulares.

Tarquin fungou em escárnio ante as palavras de Arcturo, e sussurroualgumacoisaparaairmã.

—É isso que você quer, Tarquin?Que o grande Zacarias Forsyth sejaforçadoacomprarumapatentedeoficialparaofilho?—AvozmordazdeArcturo estava carregada com várias camadas de sarcasmo. Tarquinempalideceucomaideia,masserecompôsaosentirosolhosdetodosemsi.

—Seriaumtrocadinho.—Tarquindeudeombros,emseguidaretrucou,com tom sinistro:— E os meio-nobres? O que acontece com eles? Querdizer,vocêéapessoacertaaquemperguntarsobreesseassunto...oueuestouenganado,Arcturo?

Tarquin sorriu como se tivesse vencido a discussão, e o capitão não

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respondeu,abalado.Emseguidaseurostose tornouvermelhoderaiva,eSacarissarosnoucomameaçaprofunda,tãoaltoqueosomreverberounopeitodeFletcher.Tarquindeuumpassoparatrás,percebendoquetalveztivesse ido longe demais. Felizmente para ele, Cipião chegou correndo àcâmara,orostodemorsavermelhopeloesforço.

—Euvimassimquefiqueisabendo—ofegouele,recuperandoofôlego.—Estátudobemcomela?

Arcturorespiroufundoparaseacalmaresevirouparaoreitor.—Nãosenhor,nãoestá.Échoqueetéreo,estoucertodisso.Vamoster

queesperaratéqueelaserecupere,masnãohácomosaberquandoestarádepénovamente.Euassumireiasaulasdelanesseínterim.

Cipião fechou os olhos e suspirou de frustração. Em seguida se virouparaosaprendizesefalou:

—Atentembem,cadetes.Agoravocêsentendemosperigosdoéter,osriscos que seus pais e doadores correram para lhes dar seus demônios.Sejamgratose trabalhemarduamentepara fazercomqueseuspresentesvalhamocusto.—Eledeualgunspassosemdireçãoàporta,entãoparouefaloudenovo:—TarquinForsyth,vocêvemcomigo.Não fiquepensandoqueescapouimpunedepoisdefalardeformatãodesrespeitosaaumoficialsuperior.Haveráconsequênciasparasuainsolência.

A expressão de Tarquin desmoronou e o menino fitou o chão, mas obaterdepéimpacientedeCipiãoofezcaminharatéaporta.Fletchernãopôdedeixardesorrir.Ometidinhomimadobemquemerecia.

Sua felicidadeduroupouco,porém.Algunsmomentosdepois,avozdeArcturointerrompeuseuspensamentos.

— Tire esse sorriso da cara, Fletcher. Como seu patrocinador, seucomportamentoé refletidoemmim.Vádiretoparaomeugabinete emeesperelá.Vamosterumaconversinha.

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O gabinete de Arcturo era tão frio quanto o de Cipião era quente. Nãopossuía lareira e tinha uma daquelas seteiras sem vidro na parede. Oambiente era surpreendentemente despido de objetos, porém, pensandobem, tanto ele quantoFletcher tinhamchegado apenas algumas semanasantes,pormaisdifícilquefossedeacreditar.OrapazsentiadequejáestavaemVocanshaviaanos.

Osminutossepassaram,elogoFletcherficouentediado.Ignáciodormianopescoçodele, exaustodepoisde todaaquela açãomais cedo.Atentoaqualquer barulho de passos vindo do corredor, o menino contornou agrande escrivaninha de carvalho que parecia ser a única mobília noaposento,alémdeduascadeiraseumagrandealmofadaparaSacarissanocanto.Papéisestavamespalhadospelamesa,porémumdeleschamou-lheaatenção.

Era uma lista de nomes, todos começando com “Fletcher”. Confuso, orapazolhouabaixodelae,paraseuhorror,encontrououtralista,destavezde nomes terminados em “Wulf”. Não era uma boa notícia. Se Arcturoinvestigassemais profundamente, poderia descobrir o crime de Fletcher.

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Pior,talvezdeixasseumatrilhaquepermitisseaCasparrastreá-lo.Orapazvasculhouamemória,tentandoselembrarsetinhamencionadoPelego.

Passos soaramnocorredor, fazendoFletchervoltar correndoaooutrolado da escrivaninha. Momentos depois, Arcturo entrou a passos largos,seguidoporumaSacarissa saltitante.O rapazpercebeu, combasena sualinguagem corporal, que o professor estava bem agitado, pormais que aexpressão não demonstrasse nada. O capitão se sentou à escrivaninha eorganizouospapéis,semdarnenhumsinaldequeelestinhamalgoavercomFletcher.Enfimergueuoolhareuniuaspontasdosdedos.

—Vocêsabeporquepatrocineivocê,Fletcher?—perguntou,olhandooalunonosolhos.

—Foiporqueeujátinhaumdemônio,demodoquevocênãoprecisariacapturarumparamim?—sugeriuFletcher.

— Não, eu não me incomodaria com isso. Sacarissa é muito boa emcaçar, apesar daquele Cascanho ter se feito de difícil. Não foi, Sacha?—questionou Arcturo, afagando a cabeça do Canídeo.— Tente de novo—ordenouocapitão,reclinando-senacadeira.

—Hummm...minhararaSalamandra?—perguntouFletcher.— Isso foiumbônus,masnão foi omotivo—respondeuoprofessor,

comosolhosbrilhando,entretidos.—Minhabravuraperanteamortecerta?—brincouFletcher,notandoa

expressãodeArcturoetentandodeixaroclimamaisleve.—Não,issonão!—retrucouArcturocomumacurtarisada.—Algumas

pessoas diriam que você tomou a decisão errada naquelemomento. Umoficialprecisaaprenderasacrificarbonshomensparaqueorestodoseucomandopossa sobreviver. Assim, você tambémpoderia ter desistido doseudinheiro em trocadaprópria vida.Mas tenhoque admitir que fiqueiimpressionado. Você ficou frio sob pressão e correu um risco calculado.Bons oficiais são pragmáticos e se mantêm calmos em combate. Mas oshomens e mulheres que ascendem à grandeza são os ousados, os que

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buscamorisco.Aquelesquesóaceitamtudoounada.Talvezvocêtambémseelevaráaoníveldeles,sejogardireito.—FletchersorriucomaspalavrasdeArcturo,maselastomaramumrumomaissombrioemseguida:—Hojevocê jogoumal, Fletcher. Muito mal. Um duelo com Tarquin poderia terresultadoemexpulsãoinstantânea.

—Desculpe-me, senhor, eu estava sóme defendendo. Se eu soubessecomoerguerumescudo, eu teriausadoumdeles—murmurouFletcher,baixandoacabeça.

—Umescudonãoseriamuitoútilcontraumdemônio,masessanãoéaquestão.Vocêprecisa entenderqueosnobres farãoqualquer coisa a seualcanceparase livrardevocês.Melhor levarumasurradoquemorderaisca. Acredite em mim, eu sei. — Arcturo soava amargurado. Pareceuprestesacontinuar,maspensoumelhorebalançouacabeça.Levantou-sesubitamente e chamou Fletcher para mais perto da escrivaninha. Entãoprosseguiu: — Precisamos de conjuradores, Fletcher, mas eles nãoprecisam ser oficiais magos de batalha. Um conjurador nas fileiras desoldadosrasosé tãobomquantoumnorefeitóriodosoficiais,noâmbitogeral. Treinar plebeus ao lado dos nobres não é uma prática popular.Muitosacreditamquevocêsdeveriamterumaacademiaseparada.NãodêaCipiãomotivospararebaixarvocê.

Fletcher assentiu sombriamente.Elenão conseguiudeixardeolharderelance para os papéis na mesa. Arcturo não fez nenhuma menção deescondê-los.

—Quersaberporque fui seupatrocinador,Fletcher?Foiporquevocêmelembrademimmesmo.Maisimportante,foiporqueeuseiquemvocêé.Ouoquevocêé,pelomenos.

ElegirouospapéisparaqueFletcherpudesselê-losecorreuodedoporeles.

—Há alguns Fletchers da sua idade listados emHominum, e nenhumdelestemosobrenomeWulf.Vocênãoconstaemnenhumcensooficialque

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eu tenha encontrado. Estaria certo ao afirmar que é um órfão nãoregistrado?

Orapazassentiu,sementender.Arcturosereclinou,concordandocomacabeçaparasimesmocomose

Fletcher tivesse confirmado suas suspeitas. Apontou a cadeira do ladooposto da escrivaninha. O aprendiz se sentou e observou enquanto oprofessorofitava.

—VocêselembradequandoTarquininsinuouquesoumeionobre?—indagouocapitão,ajeitandoocabelopara tráse reajustandoa fitaqueomantinhanolugarànuca.Fletcherfezquesimcomacabeçae,depoisdeuma longapausa,Arcturo continuou:—Dezanosatrás, um jovemnobreestavaacaminhodaCidadela,vindodeseularnosterritóriossetentrionaisquefazemfronteiracomasterrasdoselfos.EleestavapassandoaprimeiranoiteemBoreas,que,comovocêsabe,nãoficamuitomuitolongedassuasmontanhas do Dente de Urso. — Fletcher não sabia se ficava feliz ouansioso pelo fato de Arcturo ter mencionado Dente de Urso em vez dePelego. Havia centenas de vilas por lá, mas as notícias viajavam rápido.Arcturosomariadoismaisdoissedescobrissequeumjovemfugitivotinhaescapado de lá. — Este rapaz nobre tinha sido presenteado com umCanídeopelo pai, lorde Faversham—continuouArcturo.—Mas ele nãoquisleropergaminhodeinvocaçãoantesdechegarnaacademia,ondeumprofessor poderia supervisionar a transferência. Assim, deixou opergaminhonosalforjesdaselaefoidormir.

Arcturo parou por um instante, coçando as orelhas de Sacarissa. Odemôniorumorejoucomprazereseesfregounasmãosdele.

— Naquela noite, um cavalariço decidiu roubar tudo que o nobreestivesse carregando. Não tinha absolutamente nada no mundo; era umórfãoque cresceranumasilodepobres e fora vendidoparaomestredeestábuloporvintexelins.Nãoeradononemdasroupasdocorpo.Orouboeraumaúltimatentativadesesperadadeconseguirdinheirosuficientepara

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escaparecomeçarumanovavida.Masodestinotinhaumplanodiferenteparaele.

Fletcher franziu o cenho. A história soava familiar, mas ele nãoconseguialembrarondeatinhaouvidoantes.

—Omeninosabia lerumpouco.Ele tinhaestudadosozinhoparaquepudesseaprendersobreomundo,devorandocadalivroabandonadopelosviajantesnatavernaàqualoestábulopertencia.Então,quandoocavalariçoencontrouopergaminhoeocourodeconjuraçãoqueoacompanhava,eleos abriu e os leu,mais por curiosidade do que por qualquer outra coisa.Felizmenteparaomenino,eleaindatinhadificuldadescomaleitura,entãopronunciavacadapalavraemvozbaixa.Ninguém ficoumais surpresodoqueelequandoumafilhotinhadeCanídeofoiconjurada,compelonegroeolhosbrilhantes.Eraacoisamaislindaqueelejamaisvira.

FletcherolhouparaSacarissaedepoisparaArcturo,efinalmenteafichacaiu.

— Você foi o primeiro plebeu a ter um demônio desde... bem, desdesempre!— exclamou Fletcher.— Se não fosse por você, nenhumde nósestariaaqui!Suadescobertatriplicouonúmerodemagosdebatalha!

Arcturoassentiucomseriedade.—Mas, peraí— continuou Fletcher, confuso.—Oque isso tem a ver

comigo?Oucomofatodevocêsermeionobre?— Essa foi a história que você já conhecia, com um pouco mais de

detalhes.Masháumasegundametade,quesóéconhecidapelanobrezaealguns raros outros. Veja bem, alguns anos depois de eu ter sidodescoberto, houve uma grande conferência entre as casas nobres, osgeneraisdeHominumeoreiHarold.Aguerracorriamalemseuprimeiroano: os xamãs orcs estavam se unindo sob o estandarte do orc albino, eseus números superavam várias vezes a nossa quantidade de magos debatalha. Os nobres odiavam colocar seus filhos e filhas primogênitos emrisco, considerando que, com a morte de cada herdeiro, suas linhagens

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corriamoriscodeseextinguir.Estavamsendoforçadosaterváriosfilhos,de modo que, se o primogênito morresse, poderia haver outro herdeirocom a habilidade de conjurar. Depois do primogênito, há apenas umachanceemtrêsdequeumfilhodenobresejaadepto.Muitascasasnobrestêmtrêsouquatrofilhosnocasodeumamorte,paraqueoadeptoseguintepossa se tornar o herdeiro. Além disso, muitos jovens nobres eramforçados a se casar e ter filhos assim que se formavam na Cidadela, demodoque,semorressemlutando,deixariamumfilhoprimogênitoemseulugar.

Fletcher nunca tinha passadomuito tempo pensando nas questões desucessão e linhagens nobres. Podia imaginar as famílias nobres,desesperadamente cientes de que, com uma única morte, a casa inteirapoderiadesapareceremumageração.Porummomento,elesentiupenadeTarquineIsadora,comtodaapressãoqueosanguenobrelhestrazia.Massóporummomento.

—Acreditesequiser,foioavôdeTarquin,ObediahForsyth,onobrequeliderouomovimentopelaintroduçãodosplebeusnasfileirasdemagosdebatalha, usando sua própria fortuna para financiar a grande Inquisição,trazendocriançasdetodasaspartesebuscandosinaisdemananelas.Eleera o nobre mais rico e poderoso naquela época, e continua sendo. Seufilho,Zacarias,secasoucomaprimogênitadeoutragrandecasa,JosephineQueensouth, unindo as terras vizinhas sob o brasão dos Forsyth. Issoefetivamente dissolveu a casa dos Queensouth. Geralmente herdeiros secasam com o segundo ou terceiro filho de outra casa nobre, de modo amanter seu legado,mas a família Queensouth estava à beira da falência,quase chegando ao ponto de vender a própria terra. O casamento foi aúnicasoluçãoqueelesencontraramnaépoca.Eu lheexplicoessascoisas,Fletcher, porque nobreza, casamento e sucessão são as chaves paraentenderquemvocêé.

Fletcherconcordoucomacabeçaprudentemente,tentandoacompanhar

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a história toda. Asmaquinações políticas da nobreza eram interessantes,maso rapazaindanãocompreendiaoqueelas tinhamaver comele.OucomArcturo,parasersincero.

—Dequalquermaneira,abuscadeObediahrendeufrutoseosplebeusforam recebidos em Vocans, eu inclusive. Os Inquisidores do velho reiassumiramabuscaeperceberamumatendênciacuriosa,algoqueObediahnão tinha notado. Havia estranhos agrupamentos de adeptos, maisnotavelmentenosorfanatosdecidadesdonorte.Agora,porquevocêachaque issoacontecia,Fletcher?—perguntouArcturo,oorbebrancode seuolhoruimfitandocegamenteacabeçadoaprendiz.

MasamentedeFletcherestavavazia.Oquehaviade tãoespecialnosórfãos?

—Oquediferenciaosórfãosdorestodaspessoas?—insistiuArcturo,ecoandoospensamentosdeFletcher.

—Ninguémosquer?—sugeriuorapaz.—Exatamente, Fletcher. Ediga-me: queméquenãoquer ospróprios

filhos?—perguntounummurmúrioArcturo,guiandooaluno.—Pessoas que não têm dinheiro para cuidar deles.—Amemória de

Fletcherrepassouaslongasesolitáriasnoitesquepassaraseperguntandoexatamenteisso.

— De fato, Fletcher, há quem abandone os filhos por esse motivo.Tambémháaquelesórfãoscujospaismorreram.Masháoutrogrupoqueabandona os filhos regularmente. A Inquisição descobriu que esse era oponto em comum entre quase todos os adeptos órfãos. — O capitãorespirou fundo.—Quase todas asmães deles eram cortesãs. Incluindo aminha.

Sacarissaganiu,eArcturoacalougentilmente.Fletcherpercebeuqueocapitãoestavatocandonumassuntoquelhecausavagrandesofrimento.

— Veja bem, lorde Faversham era... digamos assim... um homeminsaciável. A mulher dele não conseguiu lhe gerar filhos por um longo

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tempo. Lady Faversham acabou se tornando fria e distante, rejeitando apresença domarido em sua cama. Então ele procurou outras que não orejeitariam.

Fletcherafundounacadeira,finalmentecompreendendo.—Entãoos filhosprimogênitosdas cortesãs comquemeledormiu se

tornaram adeptos? É assim que funciona?— indagou Fletcher, tentandonãopensarnoqueaquilosignificariaquantoàsuaprópriaascendência.

— Sim, além do fato de que ele tinha várias amantes também. Umhomempodeterfilhosadeptoscomváriasmulheresdiferentes,desdequesejaoprimeirofilhodamulhertambém.Assimcomoumamulherpodetervários filhos primogênitos compais diferentes, se o homemnunca geroufilhos antes. Foi pura coincidência que um pequeno número de plebeustambémtivessenascidocomodom.Eufuiacausaparaoiníciodabusca,masnãonasci comopoder independentemente, comoosoutrosplebeus.Eu sou um adepto porque fui um dos filhos primogênitos de lordeFaversham.

AmentedeFletchersepôsatrabalhar,pensandonascircunstânciasdeseu abandono. Nemmesmo um cobertor para protegê-lo do frio. Pareciauma explicação adequada. Arcturo interrompeu seus pensamentossombrios:

— É claro que a descoberta provocou um escândalo. A prova deinfidelidade lançouvergonhasobreváriascasasnobres,especialmenteosFaversham. Mulheres nobres iniciaram uma greve e se recusaram a ir àguerra a não ser que fosse aprovada uma lei proibindo que os órfãosfossemtestadospelaInquisição.Elasnãoaguentavamahumilhaçãodeveros outros rebentos de seus maridos lutando ao lado dos filhos e filhaslegítimos — sussurrou o professor, com a voz carregada de emoçõesconflituosas.—OuvidizerqueladyFavershamficouofendidaaosaberqueodemôniodestinadoaoseufilhoacabousendopassadoparamim.Elameodeia aindamaisque as outras aristocratas. Sódeu à luzum filho, o que

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significa que, se o herdeiro morrer, eu serei o próximo na fila para metornarlordeFaversham,deacordocomaleideHominum.Elafoiobrigadaarequisitarpermissãoespecialdovelhoreiparatirarofilhodaslinhasdefrente,paraevitarqueeutentassematá-loetomarseulugarnalinhagem.Vocênãoficarásurpresoaoouvirquefoielaquemorganizouagreve.

Fletcher se impressionou ao ver como Arcturo se mantinha calmo aofalardassuspeitasquesofria.Eleseperguntouseoprofessorseriacapazdetalcrime.LordeFavershameradonodamaioriadasterrasaoredordoDentedeUrso,umhomemricoepoderoso.

—Obviamente,amaioriadosórfãosjátinhasidoidentificadaetreinadaquandoissotudofoidescoberto,portanto,foifeitaaconcessãodepermitirque aqueles que já tivessem sido descobertos permanecessem —continuouArcturo.—A única condição era que nós não poderíamos serchamados por nossos sobrenomes aristocráticos, e é por isso que souconhecido como capitão Arcturo, meu primeiro nome. Tenho mais trêsmeio-irmãosmaisoumenosdaminhaidade,tambémlutandonoexército.Provavelmente há mais deles por aí, completamente ignorantes de suasverdadeiras identidades. Não tenho permissão de testar crianças nosorfanatos, por mais que eu queira. Porém, de alguma forma, o destinotrouxevocêatémim.

Fletchermalcompreendeuestasúltimaspalavras.Estavaimersodemaisnos próprios pensamentos. Será que o pai dele poderia ser o lordeFaversham?Poderia issosignificarqueamãedeleestevevivaemBoreasdurantetodaasuavida?

—Fletcher,eupossoestarerrado—disseavozdeArcturo, flutuandoaoseuredor.—Vocêpodesersómaisumórfão,poisémuitosanosmaisnovoqueeu, afinal.Nemsequer sei seFavershamcontinuou sendo infieldepois de ter o primeiro filho com lady Faversham. Mas quais são aschances de um órfão adepto abandonado perto de Boreas ser um dospoucosquenãodescendeudanobreza?

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—EntãovocêestádizendoquesoufilhobastardodelordeFavershamequeminhamãeéumaamante,namelhordashipóteses,eumacortesãnapior?—retrucouFletcheramargurado,despertododevaneio.

—Emeumeio-irmão...—completouArcturoFaversham.

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38

Fletcher saiu correndo do gabinete de Arcturo cheio de raiva; mas paraquemeradirecionadoosentimento,elenãosabiadizer.Ignáciopassouboapartedanoitesibilando,soltandopequenosanéisdefumaçapelasnarinasenquantoosoutrosriamebrincavamduranteojantar.

— Posso não ter certeza de quem me aborreceu, mas vocêdefinitivamentenãofazamenorideia,faz?—murmurouFletcher,coçandoo queixo de Ignácio. Era muito engraçado ver a agitação confusa dodiabrete,eissoanimouumpoucoorapaz.

Fletcher tinha conseguido despistar os colegas quanto ao teor dareuniãocomArcturocomumarisada,afirmandoquesótinhalevadoumabronca por ser um estudante malcriado. Dentre todos os seus novosamigos,sóOtelotinhapercebidoseudesalento,batendoàportadeFletcherdepoisquetodosforamdormir.Orapazdecidiulhecontartudo;afinaldecontas, precisava retribuir o nível de confiança que Otelo e sua famíliatinhamdepositadonele.MasoanãonãoficouimpressionadocomahistóriadeArcturo.

—AmimparecequeArcturoestáprocurandochifreemcavalo,sequer

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saber—comentouOtelo,coçandoabarba.—Deveestardesesperadoparaencontrarmaisparentes,eignorouváriascoisasparafazersuahistóriaseencaixar na dele. Já ouvi falar de lady Faversham, por motivoscompletamentediferentes.Elaéprimadovelho rei e era famosapor suabeleza nos tempos de outrora. Sinceramente duvido que, após ocomportamento de lorde Faversham ter se tornado público, o velho reiAlfric teria permitido que sua prima real continuasse sendo humilhadadessaforma.Ofilhodele,reiHarold,tambémnãoteriadeixadoisso.

—MaseselordeFavershamcontinuou?Eseeleteveummomentodefraqueza,anosdepoisquetudoveioàtona?—indagouFletcher.

— Mesmo presumindo que ele seria tão tolo, por que você foiabandonado logo diante de Pelego? Certamente a mulher desesperadaem questão deixaria você num orfanato ou à porta de alguma casa emBoreas, não num lugar tão obscuro e distante da cidade quanto Pelego.Querdizer,équasenafronteiraélfica!—exclamouOtelo.

—TalvezelanãoquisessequeeuacabassenumasilodepobrescomoArcturo — retrucou Fletcher, igualmente teimoso, por mais que nãosoubesseporqueestavadefendendooladodeArcturonadiscussão.

—Seelaseimportavatantocomvocêapontodefazerisso,entãoporque te largou para congelar na neve, sem nem um paninho, roupa oucobertor? Não, Fletcher, a sua história vai muito além. Não se deixedesanimarpela teoria deArcturo. Fique feliz por ele estar ao seu lado, epeloencontrofortuitoentrevocêsdoisemCorcillum.

Comessaspalavras,OtelofoidormiredeixouFletchersesentindobemmelhor,mastambémmuitomaisconfuso.

—Quemdiaboseusou?—sussurroueleparaas trevas. Ignáciomiouemsolidariedadeeenterrouacabeçanopeitodomenino.

Apesardoseventosdodia,osonodeFletchernaquelanoitefoiosonotranquiloesemsonhosdosexaustos.

Osnovatosaguardavamnacâmaradeconjuraçãoapróximaauladeprática

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etérea.FletcherestavatorcendoparaverLovett,massabiaqueeramuitomaisprovávelqueArcturoministrassealição.Suastentativasdevisitaraenfermaria foram em vão; a dama Fairhaven tinha cuidado disso. ElainformouFletcherdequetinhacertezadequeacapitãLovettnãogostariade ser incomodada pelos alunos enquanto estivesse no seu estado deparalisia,equeasleiturasqueelamesmafaziaparaaprofessoraerammaisquesuficientesparamanteracapitãentretida.AdescobertadequeLovettestavacompletamenteparalisada,mascientedetudoaoseuredor,apenasaumentou a vontade de Fletcher de vê-la, mas a porta foi fechadafirmementenasuacara.

— Belo traje — comentou Genevieve, mostrando o polegar erguido.Fletchersorriueajeitouocolarinhodajaquetanova.

Uhtred tinha cumprido a promessa, mandando a Fletcher um belouniforme azul-marinho, além da espada, com as entregas matinais. OsbotõesdouradosdajaquetaedacalçatinhamatésidodecoradoscomumasinuosasilhuetadeSalamandraemaltorelevo,paraodeleitedeFletcher.Abainha era da mais alta qualidade, feita de couro negro firme e açoescovado.Fletchernotouqueaespadatambémtinhasidoafiadaeestavaacompanhada de umpano oleado, comumbilhete quemandava o rapazcuidarbemdaarma,poiserafrutodeumtrabalhodealtíssimahabilidade.

Ele ficou felizemrecebê-ladevolta,pois tinhasido forçadoausarumbastão de madeira enquanto Sir Caulder ensinava a ele e aos outrosplebeusobásicosobreocombatearmado.Osfilhosdosnobreshaviamtidoaulasnestaáreadesdeamaistenraidadeenãoosacompanhavam,apesardeMalikePenélopeteremassistidobrevementedoladodeforaantesdeseentediarem e irem embora. Quando Fletcher perguntou por que elesestavamaprendendoaenfrentarunsaosoutrosdepoisdoqueSirCaulderlhedisserasobrecombaterorcs,ovelhoguerreiroralhou:

— O torneio, garoto. Eles vão botar vocês para esgrimir e Deus sabemais o quê. Não quero ver todos vocês plebeus perdendo na primeira

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rodadaporquesóaprenderamaenfrentarselvagensde2,15metrosemvezdeumnobrecomumflorete.

AlembrançadotorneioencheuFletcherdetemoreofezcorrerparaabiblioteca,ondeseenterrounoslivros.Nãoestavasozinho;amaioriadosoutros plebeus também estava lá. Como os calouros nobres tinhamcrescidocompaismagosdebatalhainteiramentequalificados,elestinhamuma grande vantagem sobre seus correspondentes plebeus, dandorespostascorretasàsperguntasdosprofessoressemdificuldadealguma.

Haviamilharesdedemônioscujosnomesprecisavamsermemorizados,alémde suasmedidas, qualidades edefeitos,mesmoque amaioriadelesnão pudesse ser encontrada na parte do éter a que os evocadores deHominum tinham acesso. As dezoito raças de Canídeo por si só tinhamexigidodeFletcherquaseumfimdesemanaparamemorizar.

Osomdaportasendobatidaatrásdeleinterrompeuospensamentosdomenino. Um homem alto e magro entrou na câmara de invocação.Inicialmente, Fletcher pensou que se tratava de Arcturo, mas, quando osujeito entrou na área iluminada por fogo-fátuo, o rapaz notou que ouniformeeradiferente,negrocomdetalhesprateados.Seurostoerapálidoe barbado, com olhinhos negros que brilhavam enquanto ele avaliava osestudantes.

—MeutítulocompletoéInquisidorDamianRook,masvocêspodemmechamar de senhor. Vou lhes instruir na arte da prática etérea até que acapitãLovetttenhaserecuperadodeseu...acidente.Felizmenteparavocês,Cipiãodecidiucontratarumprofessormaiscompetentedestavez.

TaispalavrasconquistaramumsorrisinhodeTarquineumarisadinhadiscretadeIsadora,paradesgostodeFletcher.Rookosignorouesevirouparaosplebeus,estudando-oscomolhosencobertos.

—Ora, ora, parece que foi apenas ontemque eu testei vocês—disseRook com uma voz que comandava obediência absoluta. — Genevieve,Rory,Serafim,Atlas,alémdoanãoedaelfa,farãoumafiladaquelelado.

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OsamigosdeFletchersemoveramrapidamente,alinhando-sediantedaparededistante.RookosignoroueescrutinizouFletchereosnobrescomosefossemcavalosàvenda.

—Umabela turma, este ano. Tarquin e Isadora, presumoque seupaiestejabem?—inquiriuele.

—Sim,senhor,mesmoquefaçaváriosmesesdesdeaúltimavezqueeuestivecomele—respondeuTarquin,compolidezsurpreendente.Fletcherseperguntouque tipodehomeminspiraria tamanhorespeitonumnobrecomoTarquin.Comoelesseconheciam?

—VocêéclaramenteumSaladin,senãomeengano—continouRook,parandodiantedomeninodepeleescura.

— SouMalik Saladin, filho de Baybars Saladin, oriundo das terras deAntióquia—respondeuMalik,projetandooqueixoorgulhosamente.

—Éclaro.OAnubídeodeseupailutoubemaoladodomeuMinotauronapontedeWatford.Vocêfoiafortunadoobastantepararecebê-lo?

— Não, senhor. Meu pai precisa mais dele do que eu. Mas fuipresenteadocomumAnubídeojuvenil,capturadoantesqueeuviesseparacá.

—Ótimo. Você logo precisará dele.— Rook passou à nobre seguinte,Penélope.—Evocêé?

—PenelopeColt...deColtshire.—Elafezumamesuranervosa.Issolherendeu um grunhido neutro de Rook, que passou ao último nobre, omenino pequeno de cabelo castanho que Fletcher tinha visto seguindoTarquincomoumcachorrinho.

—Eusou...MeunomeéRufusCavendish,dascolinasdeCavendish—gaguejouogaroto.

— Colinas de Cavendish. Nunca ouvi falar. Quem são seus pais? —inquiriu Rook, os olhos negros se cravando no rosto de Rufus com aintensidadedeumfalcão.

—Minhamãemorreuquandoeueranovo.ElaeraacapitãCavendish.

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Meupainãoédesanguenobre.—Entendo—comentouRook,desinteressado,virando-seemseguida.

Claramente os Cavendish não eram uma família nobre importante ou destatussignificante.

OprofessorvoltouseuolharsinistroaFletcher,osolhinhosdardejandodaespadaaosbotõesdouradosdouniforme.

—Evocê?Deondeveio?Fletcherhesitou,emseguidaarriscando:—Soudonorte,senhor,depertodeBoreas.MeunomeéFletcher.—UmFaversham,então?Nãosabiaqueelestinhamumfilhoemidade

escolar.Comovocêescapoudaminhaatenção?AvozdeTarquinsoouantesqueFletcherpudesseresponder.—Elenãoénobre,senhor,ésóumplebeu.—Ridículo. Eu sou um Inquisidor. Conheço os nomes de cada adepto

vulgar.Quemévocê,garoto?—Eu... fui patrocinado, senhor. Li um pergaminho de conjuração que

eu...encontrei...einvoqueiumdemônio.Arcturomedescobriuemetrouxeparacá.

— E seus pais não pensaram em mandá-lo à Inquisição assim quedescobriramquevocêeraadepto?FoiArcturoquemodescobriu?ElenãotempermissãodeiraonortedeCorcillum,comofoiqueencontrouvocê?

—Eusouórfão,senh...—UmÓRFÃO!—sibilouRook,interrompendo-o.—Sim,masnãoécomoosenhorestápensando!—exclamouFletcher,

percebendooquedeveriaestarpassandopelacabeçadoInquisidor.—Elequebrouas regras!Oarrogante filhodeumameretriz achaque

pode desrespeitar o acordo que fez com o velho rei, mandandopergaminhosde conjuraçãoparaórfãosdeBoreas emsegredo!Ah,destavezeuopeguei!—vociferouRookcomalegria.

—Elenãofeznadadisso!—gritouFletcher.

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—Cale a boca, seubastardinho!Nós achávamosque tínhamosvisto oúltimodasualaiahámuitotempo.LadyFavershamvaisaberdetudoisso—sibilouoInquisidor,cutucandoopeitodeFletchercomforça.

—Vocêestáerrado!Pergunteaoreitor!—bradouomenino.—Ah,euvouperguntar,nãosepreocupe.Masissopodeesperar.Temos

quemedirosníveisderealizaçãodevocêsantes.Sigam-me,todos!Eles caminharam atrás de Rook em fila indiana. Saíramda câmara de

conjuraçãoesubiramasescadasdaalaoesteatéotopo,depoispegaramocorredoratéatorresudoeste.SomenteOtelocompreendeuoquetinhasepassado,epôsamãoreconfortantenoombrodeFletcher.

—Nãosepreocupe,vaisertudoesclarecido—sussurrouoanãoparaoamigo.

Os outros lhe olhavam de relance com uma mistura de suspeita econfusão,masosilêncioquepesavasobreoscorredores impediaque lhefizessem perguntas. Tarquin e Isadora estavam, com certeza, saltitantes,mas não dava para saber se era por causa da humilhação pública deFletcherouporcontadaaulaqueestavaporvir.

A torrenão continhanenhumaescadaemespiral. Emseu lugar, haviaum imenso tubo de espaço vazio, compisos vazados em cada andar. Umenorme pilar se erguia no centro do aposento, composto de váriossegmentoscravejadosdecristaismulticoloridosdeCorundum.Estendia-seatéo topoda torre, cintilandocomos raiosde luzquepenetravampelasseteirasnasparedesdavelhatorre.

— Este é um realizômetro, o maior que existe. Cada segmentorepresenta um nível de realização. Ao tocar a base, um conjurador oudemôniodescobriráemquenívelseencontra.Agora,quemvaiprimeiro?— perguntou-se o professor, o olhar voltado apenas para os nobres. —Malik, se tiverpuxadoa seupai, vainos impressionar.Pouseasmãosnapedrabase.Vamosverquecalibredeconjuradorestemosaquihoje.

Malik avançou sem hesitação, ajoelhando-se diante do primeiro

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segmento e pressionando a mão na base. Por um momento, nadaaconteceu; em seguida, subitamente, os cristais no primeiro segmento seacenderam com intensidade furiosa, iluminando o aposento com raioscaleidoscópicosdeluz.Umpulsoabafadodesomecoounacâmara,seguidoporoutroconformeopróximosegmentoganhavavidacomoumalabareda.O fenômeno se repetiu até que quatorze segmentos brilhassem. Malikmanteve amão ali pormais umminuto até que Rook o ergueu do chão,extinguindoasluzesquandoocontatofoiquebrado.

—Muitobem,rapaz.Amédiainicialparaumfilhodenobreséoito.Logovocêseráumnívelvinte,comoseupai.Próximo!

Isadorajogouajubadecachinhoseseadiantou,pressionandoamãonorealizômetro. Novamente o som abafado ecoou, seguido pelas luzesdispersas.Doze,destavez.

—OsangueForsythéforte.Zacariasficaráorgulhoso—afirmouRook,ajudandoIsadoraaselevantar.

Tarquinaseguiu;outrodoze.—Gêmeosgeralmentetêmomesmonívelderealização,masésempre

bomconferir—murmurou,meioparasimesmo,enquantoapertavaamãode Tarquin. O coração de Fletcher parecia uma pedra dentro do peitoquando o jovem nobre o empurrou ao passar. Eles eram todos tãopoderosos...Lovetterasónívelonze!

Penélopeeranívelsete,maspareciasatisfeita,sorrindoeassentindoaoselevantar.Rufuseranívelnove,umresultadoquelherendeuumtapinhanascostasdapartedeTarquineumgrunhidodeaprovaçãodeRook.

—Agora,osplebeus.Vocêprimeiro,anão.Umníveloito,pelomenos,deacordo com o que ouvi, considerando que você é capaz de evocar umGolem.Amédiadosplebeusécinco,éclaro,masvocêéumcasoespecial.

—Porqueosplebeustêmníveisderealizaçãomaisbaixos,senhor?—indagouRory,arrastandoospés.

— Eu digo que é criação deficiente — começou Rook. — Porém, a

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respostaoficial équeosnobres crescememmeioademôniose recebemsuasprópriascriaturasmuitoantesdeentrarparaaacademia,permitindoassimqueaumentemseunívelderealizaçãoaolongodosanosatravésdapráticadefeitiçariabásicaeinfusão.Jávocêscomeçamcomonívelcomoqual nasceram, considerando que não tiveram tempo para exercitá-lo. Épor esse motivo também que vocês plebeus geralmente começam comCarunchosEscaravelhos.Nãoadiantacapturarumdemônioquevocêtalveznem seja capaz de controlar... não que vocêsmereçam coisamelhor, emtodocaso.Masparecequealgunsdevocêsforamparticularmentesortudosesteano.

Otelo tinha tocado o realizômetro àquela altura, interrompendo arespostadeRorycomobrilhodoaparelho.Ossegmentosseacenderamumdecadavez,vibrandocomdezpalpitaçõesabafadas.

—Dez!Parecequeosanõespodemterumdomparaaconjuração!Devoinformar o rei imediatamente.Muito interessante, de fato...— comentouRook, indicando com gestos que Sylva deveria tomar o lugar de Otelo.Fletcherpercebeuaexpressãopreocupadadoanão.Porquecontaraorei?SeráqueoresultadodeOtelosignificariaqueosanõeseramaliadosaindamelhoresdoqueoreitinhapensado...ouumaameaçaaindamaior?—Oselfosgeralmentecomeçamnonívelsete,ouaomenosassimcostumavaser.Váemfrente,dequalquermaneira.VocêjáestácomseuCanídeoháalgunsmeses.—Sylvaerade fatoumsete,porémooitavosegmentopiscouporumbrevesegundo.

—Ótimo;vocêjáestáprestesasubirdenível.Commaisdedicação,logopoderácapturarumCarunchoparasomaraoseuCanídeo.

Genevieve estava exatamente no cinco. Serafim surpreendeu a todoscomumsete,eAtlasconseguiuumquatro,paraseudesgosto.

— Espero que você se saia melhor que eu— resmungou ele quandoRory,completamentepálido,passouapressado.

Desta vez, o realizômetro engasgou, então dois segmentos ganharam

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vida. Depois de trinta segundos, um terceiro se acendeu com hesitação.Rookagarrouobraçodomeninoecomeçouapuxá-lo.

—Não!—berrouRory.—Medêmaisumtempinho,temmais!—Nãohámaisnada,garoto.Essaétodaaenergiademoníacaquevocêé

capazdeabsorver.Vocêéumconjuradordeníveltrês.Fiquefelizpornãosermenos.—ElearrancouRorydopilareoempurroudevoltaaogrupodeplebeus.—Agora,obastardo.Vejamosoquetemosaqui.

RookcolocouFletcherdejoelhoscomumempurrão.Orapazfechouosolhos e pressionou amão contra o realizômetro. As gemas estavam friascontrasuapalma,comogelopolido.Elesentiuapressãodomanaqueerasugado,pulsandoemsuasveiasesaindopelosseusdedos.Emseguida,algomaisfoiempurradodevoltaparadentrodele.Nãoeramana,poiseracomoumfogoquelheferviaosangueeformigavanapele.

Fletcher não queria olhar para cima, mas a vibração abafada lheinformava exatamente quantos segmentos se acendiam. Cinco até então.Depoisseis.Nosétimo,elesentiuofluxoenfraquecer,masaindainvadi-lo.Oito... o jorro se reduziu a um escorrer. Finalmente, quando o meninopensava que não restava nada mais, um nono zumbido ecoou peloaposento. Seu alívio foi imenso, mas ele sentiu pena de Rory ao mesmotempo.JamesBakertinhasidoumconjuradordeníveltrês.

— Ora, ora, que surpresa. Quem poderia imaginar? Mas não importa.Fletchersó ficaráaquipelo tempoqueeu levarparaconseguirprovasdeque Arcturo lhe enviou um pergaminho de conjuração. Filhos bastardosnãotêmpermissãodefrequentaraCidadeladesdeodecretodovelhoreiAlfric, a pedido de lady Faversham. Assim como nenhum dos bastardosantigos tem permissão para buscar novos. Isso inclui Arcturo. — AspalavrasdeRookprovocaramespantonosplebeus.O segredodocapitãofora revelado. — Sem dúvida vocês terão um segundo professor novo,depois que eu tiver me livrado dele— comentou Rook com um sorrisocruel.

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—Pela última vez, ele nãomemandou nenhum pergaminho. Se quersaber, foi um pergaminho de xamã orc que eu ganhei de um mercadorambulante—retrucouFletcherentredentescerrados.

OInquisidorlheencarouporuminstante,emseguidasoltouumcilindrodecourodocinto.Tirouumrolomarromdedentroeoabriunochãodepedra.Eraumcourodeconjuração.

—Mostre-me—comandou,apontandoparaocouro.IgnáciosematerializouassimqueFletcherolibertou,comoseestivesse

ansiosoparasair.OdiabretefezmençãodemorderamãodeRook,fazendoohomemrecuarcomumacareta.

— Ora, vejam, se não é uma descoberta — murmurou o Inquisidor,esfregandooqueixosombriamentecomosdedoslongosefinos.—Muitobem,vamosdescobrirqualéonívelderealizaçãodele.OmajorGoodwinvaiquerersaber.NuncatestamosumaSalamandraantes.

Fletcher ergueu Ignácio nos braços e tocou a cauda do diabrete norealizômetro.Oaparelhoganhouvida.Osprimeirosquatro segmentos seiluminaramemrápidasucessão.Masentão,paraasurpresadeFletcher,oquinto estágio acendeu tremeluzente, quase hesitante. Tarquin irrompeuemgargalhadas.

— Hah! Salamandras mal chegam ao nível cinco. E você pensou quepoderiaderrotarumaHidradeníveloitoeumFelídeodenívelsetesócoma ajuda de um Golem! É uma diferença de dois níveis, seu bastardopobretãoidiota.

—Peloquemelembro,vocêtinhaditoquenossosdemôniossóestavamláparaespantaroPicanço—retrucouFletcher,esforçando-separamanteraraivasobcontrole.Ninguém,nemmesmoDidric,jamaisfalaraassimcomele.—Vocêgostariademudarsuaversãodahistória?

Tarquingaguejou,masfoiinterrompidoporRook.—Silêncio!Vamosvoltaràcâmaradeconjuraçãoimediatamente.Aaula

aindanãoacabou.

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A jornada de volta à câmara foi ainda mais tensa que a vinda. Oteloestavaperdidoempensamentos,enquantoorostodeRoryeraumretratoda infelicidade absoluta conforme ele marchava penosamente no fim dafila. Genevieve se esforçou para consolá-lo, mas o garoto simplesmenteencaravaovazioàsuafrente,comosenãopudesseouviroquelheeradito.Omeninofaladorebrincalhãotinhadesaparecido.

Quando eles chegaram, Rook já tinha instruído alguns criados atrazeremumacolunapesada,queelestiveramdificuldadeemerguerereta.Era parecida com o realizômetro, só que, em vez das várias gemas, cadasegmentoerafeitodeumaúnicagemavermelhadotamanhodopunhodeum homem. Rook a tocou casualmente, acendendo uma das pedras comcadatoquedodedo.

—Suaprofessorapreferiafazerascoisasàmodaantiga,energizandooportalpessoalmente.Maseuavalioosriscosdeseentrarnoéterdeformadiferente.Estaéumapedraderecarga.Elapodeserpreenchidacommanapara serusadaposteriormente. É umadas ferramentasqueusamosparaalimentar os enormes escudos sobre as linhas de frente, carregando-aduranteodiaparaquenãosejanecessárioenergizá-losanoitetoda.Masnósvamosempregá-laparaoutropropósito.Juntos,vamosmantê-lanumacargatotalconstanteeatá-laaosportaisqueusaremosparaentrarnoéter.Assim, se alguém vacilar e se desconcentrar, o portal não se fecharáprematuramente. Afinal, não podemos arcar com a perda de uma Hidra,podemos?Elasnãoexistemmaisnanossaregiãodoéter.

TarquindeuumsorrisinhoecutucouIsadora.Serafimlevantouamão.—Porqueelasestãoextintasnestapartedoéter?Certamentenósnão

capturamostodaselas?Rook suspirou dramaticamente e assentiu, como se tivesse decidido

generosamenteresponderaumaperguntaidiota.—Estávendoestas chavesnabeiradopentagrama?São coordenadas

aproximadas para o mesmo setor de terreno no éter. Todos os

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conjuradores nos últimos dois mil anos caçaram na mesma área,capturando incontáveis demônios. Obviamente, nesse meio-tempo,entramos em guerra contra os orcs. Depois aconteceram as rebeliõesenânicas. Muitos dos nossos demônios morreram em batalha, e fomosprecisando de mais para substituí-los. Logo os demônios selvagensaprenderam a ficar longe da nossa parte do éter, ou talvez tenhamosesgotadotodososmaisraros.Oquequerquetenhaacontecido,sórestamalgumaspoucasespécies.Devezemquando,umdemônioraro,comoumGrifo,perambulapelanossaárea.Geralmente,estáferidooudoente.Outrasvezes,criaturasmigramatravésdanossaregião,comoosPicanços.

— Então é por isso que precisamos das chaves dos orcs— suspirouGenevieve,quandoafichacaiu.

—Nãoprecisamosdechavedeorcnenhuma!—vociferouRook.—Osdemônios fracos e comuns são para os plebeus. Os nobres herdam osdemônios mais raros e antigos de seus pais. Assim, todos ficam em seulugardedireito.Osorcsnãomandamnadaalémdemôniosdenívelbaixopara nos enfrentar, de qualquer maneira, o que só prova que ascoordenadasdelesnãosãonadamelhoresqueasnossas.Éumdesperdíciodetempoerecursostentardescobriraschavesdeles.

Genevievemordeuolábioedeuumpassoatrás,intimidadapelalínguaafiada. Fletcher não entendeu por que Rook se opunha tão fortemente àbuscapelaschaves.NãoeraclaroqueelaspoderiambeneficiarHominum?A única coisa que parecia interessar o Inquisidor, entretanto, era odesequilíbriomesquinhodepoderestatusentreadeptosplebeusenobres.

—Agora, apedrade recarga só terá energia suficientepara funcionarcomcincoestudantesporsemana.Assimsendo,atéqueotorneioacabe,osnobres serãoosúnicos compermissãopara entrarnoéter.Depoisdisso,vamosconsiderarapossibilidadedepermitirquevocêsplebeusausem.

EnquantoRorysoltavaumsoluçodedesesperoeosoutroscomeçavamaprotestaremvozalta,Fletchersópodiapensarnumacoisa.

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QueriaqueacapitãLovettestivesseaqui.

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39

Fletchersibiloudefrustraçãoconformeosímboloqueeletinhaentalhadotremeluzianoareentãosumia.

—Denovo,Fletcher.Concentre-se!—rosnouArcturo.—Lembre-sedospassos.

O aprendiz ergueu o dedo luminoso e desenhou o glifo do feitiço deescudonovamente.Osímbolo flutuounoardiantedasuamão,enquantoeleoalimentavacomumfluxolentodemana.

—Ótimo.Agorafixe!—comandouArcturo.Fletchersefocounoglifo,segurandoodedonocentroexato.Manteve-o

ali até que a luz pulsou brevemente, e ele sentiu que o símbolo estavatravado naquela configuração. Fletcher moveu a mão e observou o glifoseguirseudedo,comoseestivesseafixadoaumamoldurainvisível.Osuorescorria pelas costas do rapaz como um inseto rastejante, mas ele oignorou.Precisavadartudodesiparamanteraconcentração.

—Empurreomanaalémcomcuidado!Vocêprecisaalimentaroglifoaomesmotempo.

Aquelaeraapartemaisdifícil.Pareciaqueasuamenteestavaprestesa

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sedividir emduas enquantoele tentavaequilibrar fluxos simultâneosdemanatantoatravésdoglifoquantoparaopróprio.

Osímboloestremeceudenovo,masFletchercerrouosdenteseforçouumestreitofilamentodesubstânciaopacaatravésdeleatéooutrolado.

—Isso!Vocêconseguiu.Agora,aproveitandooembalo, tentemoldá-lo—incitouArcturo.

Nãohaviamuitaenergiadeescudocomaqual trabalhar,masFletchernãoqueriaempurrarmaismana,paranãocorreroriscodedesestabilizaraconexão.Então,assimcomotinhafeitocomofogo-fátuonaprimeiralição,eleoenrolounumabola.

—Muito bem! Só que isso não é um fogo-fátuo.No caso dos escudos,você precisa esticá-los. Vá em frente, você provavelmente não terá outrachancedetentarnaauladehoje.

Mas Fletcher não conseguiamaismanter o glifo estável. Ele chamejourapidamenteesedissolveunonada.Momentosdepois,oescudo-bolafezomesmo.

—Certo.Tentaremosdenovonaaulaquevem.Vádescansar,Fletcher—murmurouArcturo,avozmarcadapeladecepção.

Fletchercerrouasmãos,furiosoconsigomesmo.Portodososladosdoátrio,osoutrosestudantesexibiamumsucessosignificantementemaior.Osnobres eram os melhores, é claro, e praticavam variar a espessura e oformatodeseusescudos,vistoquejáhaviamsidotreinadosemcasa.Malikera particularmente talentoso, produzindo um escudo curvo tão espessoqueeradifícildeveratravésdele.

Amaioriados amigosdeFletcher já era capazde criarumescudoemtodasastentativas,excetoporRoryeAtlas,quesóconseguiammetadedasvezes.Jáelesóobtiveraumúnicosucessonasúltimastrêshoras.

Orapazsesentounumbancodoladomaisdistantedoátrioeassistiu,deprimido.DesdeaprimeiraaulacomRooktantassemanasantes,ascoisasestavamindodemalapior.

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Primeiro foram as pedras de visão. Rook tinha passado pela fila deplebeus, permitindo que escolhessem pedras de uma caixa de sobras.Fletcher fora deixado por último de propósito, e só lhe restou umfragmentoarroxeadodotamanhoeformatodeumxelimdeprata.Paraverqualquer coisa, ele era forçado a levá-lo até o olho e espiar como umbisbilhoteiro por um buraco de fechadura. Além disso, os plebeus foramforçadosapraticarcomoscristaisnacâmaradeconjuração,enquantoosnobresmandavamseusdemôniosparaexploraraspartessegurasdoéter.

Alémdisso, é claro, houve a aula seguinte comArcturo.O capitãonãoestavabravocomFletcher,masdeuaorapazmuitocomquesepreocupar.

—JamaisgosteideInquisidores,eRookéopiordeles.TrêsinstituiçõesforamcriadaspelovelhoreiAlfric:a Inquisição,osPinkertonseos JuízesMagistrados;todaspodresatéaraiz.ReiHaroldasherdouquandoseupaiabdicoudotrono,mashárumoresdequeSuaMajestadenãogostadojeitocomoelasfazemascoisas.SeRooktentarcriarproblemas,oreiHaroldnãodaráatenção.EstoumaispreocupadocomapossibilidadedovelhoAlfricseenvolver,masele raramentedeixaopalácio, então, comsorte, não ficarásabendodenada.Nãosepreocupe,Fletcher.Vocênãofeznadadeerrado.SóesperoqueRooknãomandeInquisidoresaseuantigolarpararevirarolugardoavesso.

Essas palavras tinham assombrado Fletcher por várias semanas e elemudoudeideiaquantoamandarcartasaBerdon,poiselaspoderiamserrastreadasdevoltaatéele,ouatéopai.SeRookdescobrisseoseucrime...Fletchernãoquerianempensarnoquepoderiaacontecer.

ÉclaroqueessanãoforaaúnicacoisaadesanimarFletcher.Goodwinostinha carregado com toneladas de deveres de casa, exigindo redaçõesinfinitassobredemonologiaelhesdevastandocomcríticascasoerrassemomenordosdetalhes.

Emcompensação,FletcherconquistouelogiosrelutantesdeGoodwinnasegunda aula de demonologia; seu estudo das raças de Canídeos e seus

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primos foi recompensado. Fletcher tinha identificado corretamente ediscursado com eloquência sobre os demônios de Penélope e Malik.PenélopetinhaumVulpídeo,umdemônio-raposadetrêscaudas,umpoucomenor que um Canídeo comum, porémmuitomais ágil. Seu focinho eraelegante e pontudo, e a pelagem era de um vermelho suave que reluziacomocobrepolido.

OAnubídeodeMalikeraumdosprimosmaisrarosdosCanídeos.Eleseacocoravasobreduaspatas,semelhanteaumFelídeo,comacabeçadeumchacal e pelagem lisa e negra. Era um parente próximo do demônioescolhido do major Goodwin, o Lupídeo, uma criatura semelhante comdensopelocinzentoecabeçadelobo.OAnubídeoeraumdemôniopopularentre os magos de batalha, oriundos do deserto de Akhad, apesar daespécie ter sido caçada até se tornar praticamente extinta na parte deHominumdoéter.

O demônio de Rufus era outro Lutra, para a decepção de Atlas.Extraordinariamente,odemôniodo jovemnobre lhe forapresenteadodamesmaformaqueascriaturasdosplebeus,pormeiodadoaçãoforçadadeum pergaminho de conjuração. Isso ocorrera porque a mãe dele tinhamorridoquandoeleerapequeno,eseupainãoerauminvocador.

A única coisa em que Fletcher acreditava ter talento natural era naesgrima.SirCaulderoconvidaraparaaulasextras,comtécnicasespecíficasparao khopesh. Seumaiordefeito erao controleda agressão.De acordocom Sir Caulder, a paciência era uma das virtudes mais importantes doespadachim.

—Muito bem, pessoal, todos juntos aqui, por favor—gritouArcturo,tirandoFletcherdeseudevaneio.

O grupo se reuniu ao redor do professor, os rostos brilhando com aeuforiade finalmenteaprenderumadas liçõesmaispráticasda feitiçaria.As últimas semanas tinham sido basicamente voltadas para a prática defogo-fátuo,canalizandomanaecontrolandomovimento,tamanho,formae

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brilho.Arcturoargumentaraqueas técnicasaprendidascom fogos-fátuosospreparariambemparaoentalhedeglifos.

— Pois bem, muitos de vocês estão enfrentando dificuldades emcompletarumfeitiçoemtodasastentativas.Umnúmeroaindamaiortemproblemasemfazê-locomrapidezsuficiente.Voudeixarumacoisamuitoclara.Tantovelocidadequantoconsistência sãoessenciaisparaummagodebatalhabem-sucedido—afirmouArcturonumavozgrave,olhandocadaum deles nos olhos.— Agora, quem podeme dizer quais são os quatrofeitiçosfundamentaisdeummagodebatalha?

Penelopelevantouamão.—Osfeitiçosdeescudo,defogoederelâmpago.—Muitobem,masessessãosótrês.Quempodemedizeroquarto?—Telecinese—sugeriuSerafim.— Isso mesmo, a habilidade de mover objetos. Observem bem. —

Arcturosorriu.O professor ergueu a mão e entalhou uma espiral no ar, como se

estivesse agitando uma xícara de café. Subitamente, ele chicoteou amãoparaforaeochapéuqueeleusavasaltouparaasvigasdoteto,emseguidadescendo com lentidão e pousando em sua cabeça novamente. Fletcherpercebeu uma perturbação no ar abaixo do chapéu, como uma onda decalornumdiaensolarado.

—Aartedemoverobjetosétraiçoeira,pois,aocontráriodosfeitiçosdeescudo,fogoourelâmpago,atelecineseépraticamenteinvisívelaoolhonu.Émuitomaisdifícil laçaralgumacoisaemanipulá-laquandonãosepodeveracordaquevocêusa,porassimdizer.Amaioriadosmagosdebatalhasimplesmente lança um impacto súbito, jogando o oponente para longe,masgastandomuitomana.

Arcturo,parecendoumtantoculpado,olhouderelanceparaapilhaderolosdepergaminhoquePenélope tinha trazido consigo.Estavamcheiosdeoutrossímbolosqueocapitãoosinstruíraaaprender.

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—Obviamente,existemmilharesdeoutrosfeitiços.Ofeitiçodecura,porexemplo;difícil,masútil.Eleagelentamente,portantonãoémuitopráticonocalordabatalha.—Arcturoentalhouosímbolodocoraçãonoarparademonstrar.—Háalgunssímbolosquelhesserãonecessáriosnopróximoano, mas que vocês não conseguirão executar agora, como o feitiço debarreira.Vocêsverãoesteemaçãoduranteotorneio.Dequalquermaneira,concentrem-se nos quatro fundamentais e não se darão muito mal nodesafio.Mas precisarão dos outros na prova escrita; portanto, aprendamtodos!Turmadispensada!

Com essas palavras, Arcturo deu meia-volta e se dirigiu à porta. Osoutroscomeçaramumbate-papoanimado,masFletchernãoestavaa fimde conversar. Em vez disso, foi atrás do professor e puxou de leve suamanga.

—Senhor,seimportariaseeuperguntasseseacapitãLovettestábem?ArcturoseviroueolhounosolhosdeFletcher,comocenhofranzidode

preocupação.—Elaestáemchoqueetéreo.Podeserquejamaisserecupere,ouquese

recupere amanhã. Tento ler para ela sempre que posso — respondeuArcturo, tocando o livro que levava sob o braço. — Felizmente para acapitã, um dos demônios dela, Valens, não estava infundido quando oacidente aconteceu. Ela pode ser capaz de ver através dos olhos deleusando apenas a própria mente. Só os conjuradores extremamentetalentosos conseguiram aprender essa habilidade,mas Lovett é uma dasmaistalentosasqueeujátiveahonradeconhecer.Seexistealguémcapazdefazê-lo,éela.

O professor deu um aperto encorajador no ombro de Fletcher e seobrigouasorrir.

—Agoravádescansar;vocêtrabalhoudurohoje.Fletcher assentiu e se afastou, subindo lentamente as escadas da ala

oeste.DesejavaasolidãodopróprioquartoeacompanhiadeIgnácio,que

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sópodiaserconjuradodurantealgumasdasaulas.Com a capitã Lovett inconsciente, Fletcher se sentiamais solitário do

que nunca. Por mais que seus amigos lhe apoiassem e fossem boacompanhia, todos tinham seus próprios problemas com que lidar. AtémesmoArcturoandavareservadorecentemente,mas,seeraporcontadapresençadeRook,deumdesapontamentocomaperformancedeFletcher,ouporcausadacondiçãodeLovett,orapaznãosaberiadizer.Aprofessorahavia sido bela e destemida, completamente indiferente às distinções deraçaeclassesocialdeseusestudantes.Fletchersabiaquepoderiaprocurá-lasetivessealgumproblema.Agora...eracomoseelahouvessepartido.

Com a mente prejudicada pelo cansaço, Fletcher se dirigiu ao andarerrado, onde os nobres mantinham seus aposentos privados. Enquantoresmungavaeseviravadevoltaàsescadas,algolhechamouaatenção.Eraumatapeçaria,ilustradacompessoasdearmaduraemmeioaumabatalha.Fletcher foi até lá e admirou o trabalho intrincado que a tinha trazido àvida.

Os orcs investiam sobre uma ponte, cavalgando seus rinocerontes deguerra a toda velocidade contra um pequeno grupo de homens armadoscom piques. À frente deles se erguia uma figura dominadora, o braçoestendidocomosímboloemespiralentalhadodiantedesi.Aoseulado,umFelídeoleoninoexibiaaspresasepareciarugircontraashordasatacantes.

Fletcherseinclinouparaafrenteeleuaplacaabaixodaobra:OHeróidaPonteWatford.

—Incrível.Cipiãorechaçouumainvestidaderinocerontesórquicos—murmurouele.

Derepente,ouviuosomdepassos.Aoperceberqueestavanoandardosnobres, Fletcher disparou para dentro de um cômodo e se escondeu nassombras.ElenãoqueriatoparcomTarquinnovamente,nãoemseuhumoratual.

— Você viu a cara daquele palhaço quando o feitiço dele falhou? Eu

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poderiaterridoatéchorar.Obastardoachavaqueeratãoespecial.Agora,olhesóparaele—declarouTarquin,compachorra.ArisadinharesultanterevelouqueeleestavacomIsadora.

—Você é engraçado, Tarquin querido.—Riu a irmã.—Mas nós nãotivemos tempo de conversar hoje, não com todas aquelas aulas inúteis.Conte-me,oquepapaidisseemsuacarta?

— Sabe que ele não pode nos dizer muito, não em algo tãocomprometedorquantoumacarta.Maseuconsigolernasentrelinhas.Vaiacontecerestanoite.AmanhãpelamanhãseremososmaioresfabricantesdearmasemHominum.Então,tudoqueteremosdefazerseránoslivrardopai de Serafim e assumir o negócio demunições dele.Depois disso, tudoseránosso!

—Ótimo.Nossaherançaestaráasseguradanovamente.Maselelhedissese...—Avozde Isadoradesvaneceu até sumirquandoeles entraramemumdosquartosefecharamaporta.Fletcherpercebeuqueestavacontendoa respiração, e a soltou num longo suspiro. O que quer que ele tivesseescutadonaquelanoite,nãoeramboasnotíciasdeformaalguma.

Fletcherestavaprestesasairdoesconderijoquandoouviumaispassos.AlguémseaproximoudevagaratéparardiantedoquartoemqueTarquineIsadoratinhamentrado,emseguidasoltouumlongosuspiro.

—Vamoslá,Sylva,vocêconsegue—disseavozmusicaldaelfa.Fletcher ficouboquiabertodesurpresa.PorqueSylva teriavindo falar

comosForsythtãotardedanoite?—Consegueoquê?—indagouFletcher,saindodassombras.Sylvaseespantouelevouasmãosàboca.—Fletcher!Acheiquevocêestarianacama.—Consegueoquê?—repetiuomenino,franzindoocenho.—Euestouaquipara...fazeraspazescomosForsyth—murmurouela,

evitandoosolhosdeFletcher.— Por quê? Por que diabos você decidiria isso? Eles a abandonaram

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quandovocêmaisprecisavadeajuda!—exclamouFletcher.—Eumeesquecidomotivodaminhapresençaaqui,Fletcher.Souuma

elfa,aprimeiraconjuradoradomeupovoemcentenasdeanos.Nãosóisso,masumaembaixadoratambém.VocêeOteloforambonsparamim,enãolhes desejomal algum.Mas não posso alienar a nobreza, não quando asrelações entre nossos países estão em jogo. Zacarias Forsyth é um dosconselheirosmaisantigosemaispróximosdoreiHarold,eseráoreiquemnegociaráumaaliançaentrenossospovos.MinhaamizadecomosfilhosdeZacariaspoderáinfluenciá-loemfavordanossacausa.—Sylvafalavacomfirmeza,comosejátivesseensaiadoodiscursoantes.

—Mas, Sylva, eles nemgostamde você. Só querem sua amizadeparavantagemprópria!—insistiuFletcher.

—Eutambémsóqueroadelespelomesmomotivo.Lamento,Fletcher,mas já tomeiminhadecisão. Issonãomudanada entrenós,mas é assimqueascoisastêmqueser—afirmouela.

—Ah,masmudasim!Vocêachaquevouconfiaremvocêenquantoforamigadaquelasduasvíboras?—perguntouFletcher,sempensar,passandopelaelfa.

—Fletcher,porfavor!—implorouSylva.Mas era tarde demais. O rapaz foi embora pisando duro, a angústia

substituídaporumafúriaqueferviaemseuinterior.Malditasejaaelfaesuasmanobraspolíticas.Malditossejamosnobres

também! Tudo estava desmoronando: suas amizades, seus estudos.FletchernãopodianementraremcontatocomBerdonenquantoestivessesoboolharvigilantedeRook.

Noaltodaescadaria,Rory,SerafimeGenevievebatiampapo,animadoscom os próprios sucessos. Fletcher afundou numa poltrona atrás deles,esperandonãosernotado.Nãoestavanemumpoucoafimdeconversa.

—Achoquetalvezmeunívelderealizaçãoestejacrescendo!—declarouRory,cheiodealegria.—Eufuimuitobem!TalvezMalaquitambémesteja

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subindodenível!—Achoquevocênãoentendeucomoosníveisderealizaçãofuncionam,

Rory — afirmou Serafim, gentilmente. — Sua habilidade de executarfeitiços não temnada a ver como seunível. Realização sódiz respeito aquantaenergiademoníacavocêécapazdeabsorver.EMalaquinuncavaisubirdenível.Cadademôniopermanecenomesmonivelamentopelorestoda vida. Ainda que o seu demônio fique maior e mais forte, isso nuncamudará.

—Ah...—murmurouRory.—MasporqueTarquinestavasegabandocomFletchersobrecomoIgnácioeradeumnívelmaisbaixoqueTrébio,seissonãotemnadaavercompodereforça?

— Porque é normalmente uma boa estimativa. Um demônio de nívelsetegeralmentevaisermaisfortequeumnívelseis,numaregraempírica.Nãoéumaleiimutável.Porexemplo,umFelídeovaiderrotarumCanídeonumalutanoveemcadadezvezes,mesmoqueambossejamnívelsete.Ou,por exemplo, considere o Golem de Otelo. Quando ele estivercompletamentecrescido,seráváriasvezesmaispoderosoqueumCanídeo,mesmoquesejaníveloitoenquantooCanídeoésete.

— Certo... deixa para lá, então. — Rory estava com uma expressãochateadadenovo.

—Nãosepreocupe,tenhocertezadequevocêsubirádenível—disseSerafim,notandoamudançadehumoremRory.—OmajorGoodwinmedissequeémuitoraroqueumconjuradorpermaneçanomesmonívelsuavida inteira.Sóaquelesquenuncacapturamoutrosdemôniosouquesãomuito azarados em seu crescimento natural de realização ficamestagnados.

—E comoesperamque eu captureoutrosdemônios seRooknãonosdeixacaçar?—bradouRory,levantando-senumsalto.

—Rory,calma,ésóporumano!—tentouargumentarGenevieve,masogarotoaignorouefoiparaoquarto,aborrecido.Ameninalançouumolhar

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exasperadoaSerafimeentãoseguiuRoryatéoalojamentodosmeninos.Serafimmordeuolábioesuspirou.—Faleibobagemdenovo.Estavasótentandocontrolarasexpectativas

dele,nadamais—murmurouele.A sala ficouemsilêncio, e Serafimpassouaescreveranotaçõesparaa

próximaredaçãodedemonologia.No fim, ele se cansoueapagouo fogo-fátuo, lançando o aposento nas sombras. Levantou-se e fezmenção de irparaoquarto.

— Espere — disse Fletcher, segurando-o pela mão. — Preciso lheperguntarumacoisa.

—Claro,oquefoi?—indagouSerafimcomumbocejo.— O que seu pai faz? Estou perguntando porque escutei Tarquin

mencionarumacoisa... sobrederrubaro seupai.Temalgumacoisaavercomosnegóciosdele—murmurouFletcher.

Serafim ficouparalisado. Fletcherpercebeuquealgum tipode conflitointernoestavaocorrendo.Nofinaldascontas,orapazrelaxouesesentouaoladodele.

—Considerandoqueseiseussegredos,éapenasjustoquelheconteosmeus.Sómeprometaquenãovaidizerumaúnicapalavradoqueforditoparamaisninguém.

Fletcherconcordoucomumacenodecabeça,eSerafimcontinuou:—Sounascido e criado naAntioquia, amesma cidade deMalik e sua

família,osSaladin.A famíliadelenãopossuivastaspropriedadesruraiseflorestas como os outros nobres, porém são donos demuitos negócios eimóveis na cidade. Isso ocorre porque Antioquia é cercada pelo deserto,ondenadacresceehápoucaágua.

—EntãoosSaladinestãoenvolvidos?—perguntouFletcher.— Não exatamente. Meu pai correu um risco. Ele comprou áreas

enormesdodeserto.Eratudoterrabarata,masvirtualmenteinútil.Eumelembrodosmeuspaisdiscutindoanoiteinteiraquandoelegastoutodasas

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nossaseconomiasnisso.Entãocertodia,umanãoveionosvisitar.Elenosdisse que os anões não têm o direito de possuir terras que não sejamaquelas onde foram alocados em Corcillum, mas que ele e seu povoprecisavamdaquilo.Osnobresnãoqueriamsaberdefazernegócioscomosanões,mas,talvez,nósnosinteressássemos.

— Eu sabia que os anões tinham alguma coisa a ver com isso! —exclamouFletcher,percebendoemseguidaquefalavaaltodemaiselevavaumdedoaoslábios.

—Naverdadeosanõesprecisavamdemetaisedeenxofreemgrandesquantidades. Eles fizeram levantamentos geológicos nas nossas terras eencontraramveios sob a areia, bem fundos. Semo conhecimento técnicodeles, nós não conseguiríamos extraí-los e, por outro lado, sem a nossaterra,eles tambémnão.Então fechamosumacordo:elesnosajudariamainstalarasminasenosemprestariamodinheironecessárioparacontratarhomens e comprar o equipamento. Em troca, seríamos sóciosexclusivamentedosanõesenãovenderíamosamaisninguém.Elesfariamoprocessamentodamatéria-primaedividiríamososlucrosdeformajusta.

—Mas por que enxofre?— indagou Fletcher. Tudo começava a fazersentido.

— Ele é usado na produção de pólvora. A melhor parte é que,aparentemente, só o deserto de Akhad possui depósitos de pólvora emquantidadessignificativas,enóssomosdonosdetodasasterrasqueficamsuficientementepróximasdacivilizaçãoparaqueamineraçãosejaviável.Cada bala de chumbo disparada e cada barril de pólvora usado sãoproduzidos numa mina ou fábrica Pasha. Esse é meu sobrenome, aliás:Pasha.

—EporqueosForsythseimportariamcomisso?—inquiriuFletcher.—Você não sabe nada sobre essas coisas? Omaior negócio deles é a

produção de armas. São o principal fornecedor de espadas, armaduras,elmos, até mesmo uniformes. Quando os anões desenvolveram os

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mosquetes...osnegóciosdosForsythcomeçaramaminguar.Oarmamentoenânicoestásetornandogradualmentemaispopular,esoldadosquelutamcom mosquetes não precisam mais vestir armadura, já que podemcombateradistância.NãoachoqueosForsythsaibamcomonosderrubarainda,masnãoficariasurpresoseestivessemplanejandoisso.

—Elesmencionaramalgosobreumeventoimportantehojeànoite,masfalaramem lidar comseupai emseguida—avisouFletcher, tentandoselembrardaspalavrasexatasdeTarquin.

—Étardedemaisparafazeralgumacoisaarespeito,masmeupaiestáem segurança. Eu não me preocuparia muito. Tinha esperanças de queTarquin e Isadora não soubessem daminha identidade,mas suspeito decomo eles descobriram. — Serafim sorria enquanto falava, como seestivesseesperandoalgumadesculpapararevelarseusegredo.—Primeiroperdemos uma família nobre, os Raleigh, depois os Queensouth e osForsythseuniramnumasócasa.OreiHaroldsubitamenteperdeuduasdesuas famílias nobres mais antigas. Ele queria criar novas casasaristocráticas, usando os poucos segundos e terceiros filhos nobres quetambém nasceram adeptos e lhes dando seus próprios títulos. Mas osnobresodiarama ideia;emgeralcasamesses filhoscomosprimogênitosdeoutrascasas.Entãooreiprocurououtrasolução.Meupaitemumbomrelacionamentocomosanões,édonodemuitaterraeagoraestáquasetãorico quanto um aristocrata por si só. Entretanto, isso não basta. Para setornar um nobre, você precisa ser um adepto. Até que, certo dia, osInquisidoresapareceramparametestar...

—Edescobriramquevocêéumadepto—concluiuFletcher,finalmentecompreendendo a situação. — Você pode começar uma nova linhagemaristocrática,jáqueseusfilhosprimogênitosserãoadeptostambém.

—Exatamente.Oreifaráoanúnciopublicamentenopróximoano,masosnobresjáficaramsabendo.Nãoachoqueeusejamuitopopularjuntoaosgêmeosagora,oumesmocomMalik.

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Fletcher ficou sentado em silêncio, tentando processar tudo que tinhaacabadodeouvir.

— Boa noite, Fletcher— disse Serafim, saindo da sala pé ante pé.—Lembre-se...éonossosegredinho.

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40

Os tambores de guerra rufavam com um fervor insano, martelando o arnoturno com intensidadepulsante. Fileiras emais fileirasdeorcs batiampalmas e pisoteavam no ritmo, pontuando o fim de cada ciclo com umaululaçãogutural.

A Salamandra se enrolou no pescoço de um xamã orc, observando osprocedimentos. A plataforma elevada onde eles se encontravam era oepicentro ao redor do qual todos os orcs se reuniam, iluminada porenormes fogueiras vorazes em cada quina. Escravos gremlins corriamdeumladoparaooutro,arrastandomadeiradaselvaparamanteraschamasbemaltas.

Subitamente, os tambores cessaram. O diabrete se espantou com osilêncioabruptoebocejouruidosamente.Oxamãoacalmouelhecolocouuma isca de carne na boca, acariciando a cabeça da Salamandraafetuosamente.

Umgrunhido cortouo silêncio atrásdeles.Umelfo estava atado aumtravessão,mãosepéscruelmenteamarradosàmadeira.Seurostoestavainchado e coberto de sangue seco, mas o pior ferimento era o grande

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quadrado em carne viva nas costas, de onde um pedaço de pele foraremovido. Atrás dele, outro orc estava raspando a pele com uma rochaserrilhada, removendo qualquer traço residual de gordura, carne outendão.

Oelfograsnoudesesperado,massuagargantaestavasecademaisparaformar quaisquer palavras com sentido. O xamã orc lhe acertou umpontapé,chutando-onoestômago.Oelfosufocoueficoupenduradocontraasamarras,ofegandocomoumpeixeforad’água.

Um burburinho se iniciou na massa de orcs abaixo. As multidõesabriramcaminho,revelandoumaprocissãoqueadentravaoacampamento.Haviadezorcs;espécimesgrandes,musculosos, cujapelecinzentaestavapintadacomocresvermelhoseamarelos.Seuarmamentoeratãoprimitivoquanto atemorizante; pesadas clavas de guerra cravejadas de pedraspontudas.

Porém, eles não estavam sozinhos. Outro orc os acompanhava, e faziacomqueparecessemminúsculos.Suapeleeradeumbrancopálido,eseusolhos rubros ardiam sob a luzdas chamas. Ele caminhava comconfiançagenuína, aceitando os olhares de reverência dos orcs como um justotributo.

Conformeogruposeaproximavadaplataforma,oelfocomeçouagritar,lutandocontraasamarras.Destavez,oxamãnãofeznenhumamençãodesilenciá-lo. Em vez disso, simplesmente se ajoelhou, curvando a cabeçaprofundamente enquanto o orc albino subia na plataforma, deixando osguarda-costasparatrás.

Oorcbrancoergueuoxamã,colocou-odepéeoabraçou.Aofazê-lo,amultidãorugiuseuapoio,batendoospésatéaplataformatremer.Mesmocomtodoaquelebarulho,osgritosdesesperadosdoelfoaindapodiamserouvidosenquantoelepuxavaastirasdecouroqueoatavamnolugar.

Asexclamaçõesdeapoiomorreramquandooorcalbinoseaproximoudo elfo cativo. Ergueu o rosto do prisioneiro e o encarou, segurando a

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cabeça com tanta facilidade quanto se fosse uma laranja. Finalmente, osoltoucomumgrunhidodesinteressado.

O elfo estava quieto agora, como se resignado com seu destino. Amultidão observava com ansiedade enquanto o orc branco recebia opedaçodepele, agoraesticadonumapranchetademadeira.Eleergueuoobjeto à luz, exibindo assim o pentagrama que trazia tatuado namão, atinta negra contrastando drasticamente com a pele pálida. Os dedostambém eram tatuados, a ponta de cada um marcada com um símbolodiferente.

Odiabrete foibaixadoaochãopelomestre,queseafastouesecurvounovamente.Oorcalbinoestendeuamão,virandoapalmatatuadaparaocéu.Enfim,comumavozgraveeretumbante,oorccomeçoualerapele.

—Dirahgomailofalogorahlo…O pentagrama na palma do orc começou a brilhar num roxo

incandescentee cegante.Filamentosde luzbranca sematerializaram,umcordãoumbilical retorcido entre o xamã e a Salamandra.O laço invisívelqueuniaosdoissedesenrolou,entãoserompeucomumestaloaudível.

—Failosoneidiroh…Porém,aquelasforamasúltimaspalavrasdoorcbranco.Umaflechaélficasilvoupeloaresecravouemsuagarganta,espirrando

sanguequentepelaplataforma.Maisprojéteischoveramnasfileiras;longashastespesadas,ornadascompenasdeganso.Oorcxamãrugiu,mas,semseudemônio,estavaimpotente.Emvezdelutar,elecorreuparaoladodoorcbrancocaído,tentandoestancarosanguequeesguichavadopescoçodeseulíder.

Outra saraivada de flechas foi disparada, lançando os orcs no caos,correndo sem propósito, brandindo clavas de guerra e feixes de dardos.Então,comumtoarmetálico,osomdetrompetessoouda florestaeumagrandemultidãoinvestiuvindadasárvores,urrandoseusgritosdebatalha.Masnãoforamoselfosquevierammarchandodastrevas...eramhomens.

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Homensvestindopesadasarmadurasdeplacas, armadoscomespadaslargas e escudos, lançando-se destemidamente ao coração doacampamento.Elesnãooferecerammisericórdia,cortandoeestocandoosorcs num tornado de aço. O acampamento foi transformado numabatedouro, o solo recoberto por uma espessa camada de entranhas,corpos e sangue. Atrás dos guerreiros, ondas e mais ondas de flechasvoavamacima,bombardeandoosorcscomprecisãoletal.

Os orcs não eram covardes. Eles investiram contra os atacantes,esmagandoelmosepeitoraiscomgolpesdeclavacomosefossemfeitosdealumínio.Eraumcorpoacorpodesesperadoecruel.Nãohaviahabilidadeoutáticaali;amorteeradecididapelasorte,forçaenúmeros.

Orcs rugiram em desafio conforme as lâminas dos homens subiam edesciam. A cada golpe de suas clavas, lançavam homens pelos ares,esmigalhando-lhes os ossos e os deixando aleijados onde caíam. Os orcscontinuaram lutando sob a tempestade de flechas, arrancando as hastesdos próprios corpos e as atirando de volta nos rostos dos inimigos, odesafioemseusolhos.

Aguardapessoaldoorcbranco talhouuma larga trilhadedestruição,lançandodezenasdeoponentes às suasmortes. Sua força era inigualávelconforme eles se esquivavam e giravam à luz do fogo, usando as clavastachadas com efeito letal. Os outros orcs se organizaram na retaguarda,gritandoordens enquanto levavama lutade volta ao inimigo.De algumaforma,osorcsagoraestavamemvantagem.

Algo se agitou na selva, uma massa escura que se mantivera fora devista. O que antes parecia ser ummonte de galhos de árvore se tornouchifresquesacudiameempurravamaoinvestircontraaclareira.Eramoselfos,montadosemalcesimensos,ferasdepeitolargocompernasfortesegalhadasafiadas.Elesnãovestiamarmadura,masbrandiamosarcosquetinham enegrecido o céu com flechas havia pouco. O elfo que liderava acarga erguia uma grande flâmula que esvoaçava às suas costas, feita de

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pano verde com fios dourados. A flecha partida ilustrada no estandarteondulavaconformeosalcespisoteavamoscorposdespedaçadosnosolo.

Elesatingiramosorcscomoumaríete,empalandoasprimeirasfileirascomos chifres e os atirandopara trás. Flechas silvaram, cravando-se emcrânios e olhos, disparadas agilmente pelos elfos de suas montarias. Oshomenscomemorarameosseguiram,executandoosorcsquetinhamsidoatropeladospelainvestida.

Asituaçãocomeçouasereverterdenovo,masabatalhaestavalongedeterminar.Osorcscercaramaplataforma,umúltimonúcleoderesistênciaquenãoserenderia.Eleslançaramseusdardoscontraosinimigos,grandeshastes de madeira com pontas afiadas que massacravam alce e elfoigualmente.

Oshomensergueramseusescudos,umafileiraajoelhadaeaoutradepépara criar uma parede entrelaçada com duas linhas de altura. Os elfosmandaramseusalcesdevoltaàsárvoresedispararamflechasde trásdalinha da floresta, arqueando os disparos sobre a proteção para castigarhabilmente os inimigos. Era uma luta mortal de atrito conforme osprojéteis dos dois lados cobravam seu preço. Mas só poderia haver umresultado.

Foramnecessárias dúzias de flechas para extinguir cada orc,mas elesnãoescaparam.Caíram,umporum,estrebuchandoesangrandona terra.Por fim, a guarda do orc branco empreendeu um ato final irremediável,investindocontraosinimigos.Elesmalderamdezpassos.

Na plataforma, o orc xamã tocava a Salamandra perdida, desesperadopelomanaquepoderialhedarumachancedesobrevivência.Percebendoainutilidadedogesto,elesacouafacaesearrastouatéoelfocativo,talveznaesperançadeobterumrefém.

Aoerguerafacaaopescoçodoelfo,osarcosforamerguidosnovamente.Asflechassilvaramumaúltimavez.

Fletcheracordounumsusto,comocorpoencharcadodesuorfrio.

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—Oquediabosfoiisso?

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OqueFletcher tinhaacabadodever... não foraumsonho,dissoele tinhacerteza. Sentirao cheirode sangue, ouviraos gritos.As imagenseramasmemóriasde Ignácio,umdos flashbacksde infusãosobreosquaisLovetttinhalheavisado.

—Estoucomumpoucodeciúmes—murmurouFletcheraodiabrete.—Eutinhaquasemeesquecidodequevocêumdiafoideumorc.

O demoniozinho rosnou suavemente e se enterrou ainda mais noscobertores.Oquartoestavagélido;Fletcheraindanãotinhaencontradoumpreenchimentoadequadoparaaseteiradaparede.

Com um clarão de repulsa, Fletcher percebeu que o pergaminho deconjuraçãoquedeixara comadamaFairhaven tinha sido feitodoelfodamemória. De alguma forma, ver a vítima tinha tornado a relíquiaduplamenteperturbadora.

Elerepassouacenaqueacabaradepresenciar.Oqueoselfosestavamfazendo no território dos orcs? Seria o orc branco que ele tinha visto omesmoque lideravaas tribos agora?Nãopoderia ser. JamesBakerhaviaescritoqueopergaminhoforaencontradoemmeioaossosdemuitotempo

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atrás. A batalha deve ter acontecido centenas de anos antes, talvez naSegundaGuerraÓrquica;nãohaviamosquetesnaquelaépoca,afinal.Masissonãoexplicavaoqueoselfosfaziamali,nemapresençadoorcbranco.

—Vocêprovavelmenteécentenasdeanosmaisvelhoqueeu,ésóoquesei—murmurouFletcher,esquentandoasmãosnabarrigadeIgnácio.

Orapazsedeitoudevoltanacama,masosononãochegava.Ele ficouanalisando os fatosmentalmente, repetidas vezes. Haveria alguma pista?NãotinhanenhumoutrodemôniopresentealémdeIgnácio...seráqueissosignificava alguma coisa? Certamente um exército humano teriaempregado magos de batalha, especialmente num ataque tão crucialquantoaquele.

De repenteele tevea ideia.Oestandartequeoselfos tinhamusado: aflechapartida!Aquilocertamenterevelariaaqualclãaqueleselfostinhampertencido. Sylva saberia qual era; ninguémmais ali sabia tanto sobre ahistóriadospovosélficos.

Fletcherseentristeceuaolembraradiscussãoqueelestiveram.Talvezele tivessesidomuitodurocomaamiga.Era fácil esqueceraposiçãoemqueelaestavaeasresponsabilidadesdelaparacomseupovo.Droga,seaamizadedelasignificasseumfimàguerranafrenteélfica,oqueimportavase ela fosse amistosa com os Forsyth? No mínimo, isso atrapalharia osplanosdeDidric.Nãohaverianecessidadedeenviartodososprisioneirosparaseremtreinadosnonorteseafrenteélficanãoexistissemais.

O rapaz se levantou e se vestiu. Enrolando a Salamandra aindaadormecida no pescoço como um cachecol, Fletcher caminhousilenciosamenteatéoalojamentodasmeninas.

—Desta vez, eu certamente vou bater à porta—murmurou Fletcherconsigomesmo,semquereroutroencontrocomSariel.

Sylva atendeu imediatamente. O quarto dela era parecido com o deFletcher,sóquecomodobrodotamanhoeequipadocomumbaúextraaopéda cama.Sariel estavaenrodilhadanum tapetedepelede carneirono

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centro do quarto, observando o rapaz cautelosamente. Sylva exibia amesma expressão que seu demônio, e ele notou que ela ainda vestia ouniforme.ProvavelmentetinhaacabadodevoltardeseuencontrocomosForsyth. Ele engoliu o aborrecimento gerado com tal pensamento e faloucalmamente:

—Possoentrar?—Éclaro.Sóque,sevocêveioaquiparamefazermudardeideia,pode

voltar para a cama. Tarquin e Isadora estavam dispostos a pôr nossasdesavençasdelado,eesperoquevocêsejacapazdefazeromesmocomigo!

— Não vim aqui por causa disso— respondeu Fletcher, ignorando oprópriodesejode contradizê-la.—Tiveum flashback, comoLovett tinhaavisado.Precisolheperguntarsobreaúltimavezemqueelfosehumanoslutaramjuntos.

Sylvaouviucomatençãoabsolutaenquantoorapazcontavasobreseusonho.Eletentourelatá-lonosmenoresdetalhespossíveis,naesperançadeselembrardealgumaoutrapista.

—Fletcher...vocêtemcertezadequenãoeraumsonho?—indagouaelfaquandoeleterminou.—Ésóque...oquevocêmedisseéimpossível.

—Masporquê?—perguntouFletcher.—Estoulhedizendo,eratudoreal!

—Seoquevocêdizéverdade... Ignácio temmaisdedoismilanosdeidade! — exclamou Sylva. Ela se apressou até o baú ao pé da cama eremexeudentrodele.—Sei que está aqui emalgum lugar—murmurouela,empilhandolivrosempoeiradosaoseuladonochãodepedra.—Aqui!—anunciou,erguendoumtomopesadoatéacama.

Fletchersesentouao ladodelaeaelfa folheouo livroatépararnumapágina ilustrada. A cena exibida deixou Fletcher estonteado: elfoscavalgandoalces,investindocontraumahordadeorcs.Aflâmuladaflechapartida esvoaçava atrás deles. Homens a pé atacavam pelo outro lado,trajandoamesmaarmaduradavisãodeFletcher.Atémesmoaguardade

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honra do orc branco estava presente, com a inconfundível pintura deguerravermelhaeamarela.

—Vocêse lembradaquiloque lheconteinaquelanoitenosmilharais?SobrecomooselfosensinaramoprimeiroreideHominumaconjuraremtroca de uma aliança contra os orcs? Essa foi a batalha final que elesempreenderam,aBatalhadeCorcillum,assimchamadapelaproximidadecomacidadeenânica.Ohomônimodoseudemônio,Ignácio,terialideradoa investida naquela batalha. Aparentemente, não aconteceu muito longedaqui,masolocalexatodapelejafoiperdidonotempo.Ofatodequevocêpôdevê-la...é incrível!—Elaacariciouapágina, traçandoocontornodoschifresdeumalce.

—Maseunãoentendo.Porquehaviaumorcbranco...eporqueIgnácioeraoúnicodemôniolá?

—Sóoschefesdosclãsélficoseramconjuradores,eomotivoprincipalde eles terem feito o acordo com o seu primeiro rei foi para que nãotivessemdesearriscarembatalha.Oselfosnãoprecisariamlutardeformaalguma depois do acordo, mas participaram da Batalha de Corcillumporque o filho de um dos chefes de clã fora sequestrado, então elesmandaram seus próprios soldados para ajudar. Também não tinhamensinadoaartedaconjuraçãoaoreiCorwinaessaaltura,poisascondiçõesdo acordo determinavam claramente que os orcs precisavam sercompletamentederrotadosantes.Quantoaoorcbranco,eunãofaçoideia.Sóseique,depoisdaBatalhadeCorcillum,osorcsrecuaramparaasselvas.FoiavitóriadecisivaquemarcouoiníciodeumaeradepazquedurouatéaSegundaGuerraÓrquica,trezentosanosatrás.

Fletcher estava feliz por ter ido falar com Sylva. Ela parecia teraprendido tudo sobre relações humano-élficas na sua preparação para avindaàCidadela.

—Achoqueprecisamosiràbibliotecapesquisarsejáhouverelatosdeoutroorcalbino—comentouFletcher.—Aparentemente,depoisqueeste

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últimofoimorto,osorcssedesorganizaramdeformatotal.Talvezosorcsbrancosnãosejamapenasoslíderes;podehaveralgomaisportrásdisso!

—Temrazão.Ignácioestavaprestesaserpresenteadoaele,epareciaser uma cerimônia importante. Temosde pesquisar tudo sobre os orcs eseus líderes antigos, talvez a gente descubra alguma coisa. — Sylva selevantouefoiatéaporta.

—Aondevocêvai?—indagouFletcherenquantoSarielsaltavaatrásdadona,quaseoderrubando.

—Àbiblioteca,éclaro.Edigomais:oquantoantes!Fletchernãoteveescolhaalémdesegui-la.Vocanserafriaeúmidaànoite,masfogos-fátuosiluminavamocaminho

suficientementebem.OusodefeitiçosnãodavamaisaFletcheraalegriadeoutrora,poisaindaseaborreciacomseudesempenhorecentenasaulasdeArcturo.

Ele tentou semanter positivo e se concentrar na tarefa domomento.Pelo menos teria a chance de se redimir, oferecendo informações úteissobreosorcs.

Seaomenoseletivesseacessoaolivrodoconjurador...FletcheradorariateraoportunidadedelermaissobreolocalondeopergaminhodeIgnácioforaencontrado.

Enquantoelesdesciamaescadariaemespiral,Fletchernotouobrilhodeoutrofogo-fátuoatrásdeles.

—Esconda-se!PodeserRook!—sibilouele.Elesapagaramasprópriasluzeseseocultaramnumdoscorredoresdo

andarsuperior.Contendoarespiração,osdoissepressionaramcontraumaporta.Sarielganiucomaescuridãosúbita,massecaloucomumtoquedeSylvaemseufocinho.

Passos apressados logo se seguiram, acompanhados de respiraçãoofegante.Quemquerquefosse,estavacompressa.Depoisdoquepareceuuma eternidade, os passos se foram, e os dois ficaram novamente

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envolvidospelastrevas.—Venha,vamosemfrente—murmurouFletcherquandotevecerteza

dequenãopoderiaserouvido.— Quem estaria vagueando pelos corredores a uma hora destas? —

indagouSylva.—Achoquefaçoumaideia—respondeuFletcher,descendoasescadas

àfrentedelanovamente,tomandocuidadoparanãotropeçarnoescuro.—Comoassim?—perguntouSylva.—Naminhaprimeiranoiteaqui,vialguémsaindodanossasalacomum

edepoisdaCidadela. Parecia estar compressa, e nãoqueria ser visto—explicouFletcher,virandonocorredordabiblioteca.

—Issoétãosuspeito,Fletcher.Porquevocênãocontouaninguém?—inquiriuSylva,comdesaprovaçãoclaranavoz.

—Porquenãoacheinadademais.Poderiasersóalguématrásdeumpoucodearfresco.Foiporissoqueeusaínaquelanoite.Agora,aconteceudenovo,porém...talvezeudevesseterditoalgumacoisa.

Fletcher empurrou aportadabiblioteca. Ela balançounasdobradiças,maspermaneceufirmementefechada.

—Bem,parecequedesperdiçamosumaviagemaosandaresdebaixo.AdamaFairhavendeve ter trancadoaportadepoisqueoúltimoestudantefoiemboradormir...Oquedeveríamosfazertambém—concluiuorapaz,chutandoaportadefrustração.—AbibliotecapodeesperaratédepoisdaauladeRook.

—Eunãovoudormir!Temalguémseesgueirandopelaescolaànoite.Eu vou descobrir quem é. Se eu puder trazer um traidor à justiça, entãotodomundovaisaberqueoselfossãoconfiáveis.

Comisso,elasaiupelocorredoredesceuaescadariaaossaltos.— Sylva, não é seguro para você lá fora! Aqueles homens que lhe

atacaramemCorcillumpodemestarvigiandoocastelo!Maseratardedemais.Aelfatinhapartido.

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Fletcherpraguejouaotropeçarnaescuridão.— Sylva!— sibilou ele, tentando chamar atenção e ser silencioso ao

mesmo tempo.Ele já seguiao rastrodelahaviaumahora, apesarda finalascadeluanocéunoturnomallhepermitirqueenxergasseatrilhadaelfa.Haviaumpoucodegramaamassadaaqui,umgravetoquebradoali.Numdadopontoeleachouqueatinhaperdido,masosolotinhasidoamolecidopelachuvarecente,permitindoqueorapazdetectasseaslevesdepressõesdepegadas,quelentamenteseenchiamdeágua.Senãofosseumcaçadorexperiente,Fletcherateriaperdido.

Elepoderiasearrependerdenãotê-laseguidoimediatamenteapóssuapartida. Em vez disso, decidiu correr de volta escada acima e buscar okhopesh,paraocasodeelessemeterememencrencas.QuempoderiaterimaginadoqueSylvacorreriatãorápido?

Fletcher alcançou a beirada de um bosque, com árvores altas seerguendosobrecolinasescarpadasaunsoitocentosmetrosdeVocans.

—Sylva,euvoumatarvocê!—Pouco provável— sussurrou uma voz de trás dele. Fletcher sentiu

açofriosendopressionadocontrasuascostaseficouparalisado.—Estouperfeitamentecientedosperigosquecorroporcontadequemeusou.Masme recuso a viver com medo, ou mudar meu comportamento emconsideraçãoaosmeusinimigos.

SylvapassouparadiantedeFletchereexibiuumlongoeestreitopunhal,nãomuitodiferentedaquelequeeletinhafeitonaforjadeUhtred.

—Euvimpreparada,éclaro—explicouela, sorrindo.—MasSarieléequivalente a uma guardapessoal de dez homens e dois rastreadores dequebra.

EnquantoFletchersentiaumapontadaemseuorgulhopróprioportersido pego de surpresa, Sariel saiu de detrás de um afloramento rochosoadiante,farejandoosolo.

— Sylva, vamos embora. Isto não é problema nosso! Poderia ser

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Genevieve visitando a família, nós sabemos que ela vive aqui perto —argumentouFletcher,ansiosoparavoltaràCidadela.Estavacongelandoalifora,mesmocomajaqueta.

—Não quando estamos tão perto— retrucou Sylva, teimosa.— Elesestãologoàfrente,vamos!

ElasaiucorrendoantesqueFletcherpudessedetê-la.Resmungandodeexasperação,eleaseguiu.

Ofogo-fátuosurgiuàvistaquaseimediatamente.Aorbedeluzflutuavasobre umpequeno penhasco rochoso, que Sylva subiu abaixada antes deespiar.SeusolhossearregalarameelachamouFletchercomumgesto.

Omeninoolhouparaochãolamacento.OqueSylviapoderiatervistoláembaixoparadeixá-lanesseestado?Acuriosidadeenfimfaloumaisaltoeelesedeitounaterraesearrastoupeloacliveatéestaraoladodaelfa.Asfrentesdouniformeedajaquetalogoficaramensopadascomlamafria,quenão era nada comparada ao arrepio que lhe desceupela espinha quandoFletcherviuquemestavaláembaixo.

Otelo e Salomão estavam parados diante de uma caverna. Havia doisguardas vigiando a entrada sobre javalis, amontaria tradicional do povoanão. Os animais tinham pelos ásperos cor de ferrugem, com presasenormes que se projetavamperigosamente dos focinhos. Não eramnadaparecidos comosporcos selvagensqueFletcher tinha caçado emPelego;aqueleseramatacantesmusculosos, comolhosvermelhose sinistrosquepareciamcheiosderaivaemalícia.

Os anões vestiam armadura, usavam elmos de chifres emachados debatalhadeduasmãosnospunhos.Portavamumabandoleirademachadosde arremesso pendurada na sela, projéteis mortais com uma lâminaadicionalnotopoeumcaboafiado.

Derepenteouviramumavozclaraetrovejanteanunciar:—Otelo Thorsager se apresentando para o conselho de guerra. Estou

sendoesperado.

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Os anõesmontados seguiramOtelo caverna adentro, o baque dos cascosdosjavalisecoandoatédesaparecernosubterrâneo.

—Eles estavamesperandoporOtelo.Ainda achaquenão éproblemanosso?—sussurrouSylva.

— Bem, não exatamente. Esse conselho de guerra poderia ser sobrequalquercoisa.Afinal,elesacabaramdeentrarparaoexército.—AvozdeFletcher soava grave e aborrecida. Ele estava decepcionado comOtelo.Oanãoconheciatodososseussegredos,atéosmínimosdetalhes.Comopôdeseumelhoramigoesconderissodele?

—Osanõespodemestartramandoumarebelião—retrucouSylva.—Pensebem.OreiAlfriccriouasleismaisseverascontraosanõesemtodaahistória,mesmoqueseufilho,Harold,tenhacomeçadoaaboli-las.Elesjáserevoltaram contra Hominum pormuito menos no passado, sem falar nofatodequeagoratêmomonopóliodaproduçãodemosquetes.

—Nãopossoacreditarnisso.Oteloestátãodeterminadoapromoverapazentrenossospovos,elejamaisarriscariatudoisso!—sibilouFletcher,furiosocomainsinuaçãodaelfa.

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—Você está disposto a arriscar uma guerra civil com base nisso?—perguntou Sylva. Fletcher fez uma pausa, em seguida socou a terramolhada.

—Tudobem.Masnãotemcomosegui-lo.Eletemumaescoltaarmada.Avisar os Pinkertons também não é uma boa ideia; eles invadiriam acaverna e começariam a guerra civil esta noite — ponderou Fletcher,explorandoasopções.—Oquevocêsugere?

— Nós somos conjuradores, Fletcher, vamos mandar Ignácio seesgueirarpelosguardaseespiaroqueestáacontecendo.Vocêteráquemecontaroqueestãodizendo.Eunãopodereiescutar.

—PorquenãoenviarSariel?—discutiuFletcher.—Porqueelamalcabenaquelacavernaejamaispassariadespercebida

pelosguardas.Alémdisso,precisamosdealguémparanosprotegeraqui.—Sylvasoavaexasperada.

—Vocêsóestáfazendoistoparadescobrirseháalgumatramoiaeusaressainformaçãoparaconquistaraboavontadedorei—acusouFletcher.

—Nãoéaúnicarazão,Fletcher.Seumaguerracivil irrompernomeiodaguerraatualcontraosorcs,quemsabeoquepodeacontecer?Nósdoissabemos que precisamos ver o que está acontecendo nesse conselho deguerra. Agora pare de perder tempo e use minha pedra de visão comIgnácio.Seusarmossualasca,nãovamosvernadaquepreste.

Sylvaremoveuumfragmentodecristaldobolsodouniforme.EraovalecercadequatrovezesmaiorqueapedrinhadotamanhodeumamoedaqueFletcherrecebera.

—Rápido, provavelmente já perdemos o começo da reunião— urgiuela.

Fletcher tocou a pedra de visão na cabeça de Ignácio, acordando odiabretedeseusonoprofundo.

—Vamos lá, parceiro. Hora de colocar todo aquele treino em prática.Pelo menos alguma coisa boa vai sair do fato de Rook não deixar que

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fizéssemosnadaalémdetreinarvisualização.Ignácio bocejou em protesto, mas acordou imediatamente ao sentir o

humordeFletcher.Odemôniosaltou-lhedoombroecorreuatéabeiradado penhasco. Cravando as garras na rocha, Ignácio se arrastouverticalmenteatéabocadacaverna.Então,comosefosseacoisamaisfácildomundo,odiabretecontinuoucorrendodecabeçaparabaixonotetodacaverna,aventurando-senasprofundezasdaterra.

—Uau,nãosabiaqueelepodiafazerisso—sussurrouSylva,virandoapedradevisãodecabeçaparabaixonasmãosdeFletchera fimdequeaimageminvertidafizessemaissentido.

— Nem eu. Ignácio ainda consegue me surpreender — respondeuFletcher,cheiodeorgulho.

Controlar Ignácio era fácil. A conexão mental deles tinha sido afiadapelasmuitashorasdetreinonasaulasdeRook,eprecisavapoucomaisdoque uma sugestão de pensamento para ajustar a trajetória do demônioexplorador para um lado ou outro. A caverna era escura, mas a visãonoturna do diabrete era muito melhor que a de um humano. Dava paradiscerniralongaesinuosapassagemcomfacilidade.

Passados apenas alguns minutos, o túnel se alargou e o brilhotremeluzentedetochassurgiuadiante.FletcherincitouIgnácioareduziravelocidade,poisconseguiaouvirocliquedasgarrasdodemônioatravésdaconexão. Seria melhor não dar aos guardas um motivo para olhar paracima.

Os dois anõesmontados que escoltaram Otelo esperavam na boca dotúnel acompanhados demais de duas dúzias deles. Estavam enfileirados,vigiandoo túnel adiante como falcões. Felizmentepara Ignácio, a luzdastochasnãoalcançavaotetodacaverna.Eleseguiurastejandonapenumbra,passandodespercebidopelosguardasatentos.

O teto do túnel subia cada vezmais. Agora Ignácio estava a quase 25metrosdealtura.Qualquerpassoemfalsopoderialançá-loàmorte,maso

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demônio continuou escalando, escolhendo uma trilha por entre asestalactitesdegelo.Finalmente,otúnelseabriunumacavernacomformadedomo,iluminadaporcentenasdetochas.

A cavernaeraonexocentraldeumaredede túneis similares, comooeixoeosraiosdeumaroda.Oluzirdetochasnofimdecadatúnelindicavaqueelestambémestavamguardadosporanõesmontados.

—Qualquer que seja o assunto desta reunião, eles não estão dando amenorchanceaoazar,né?—sussurrouSylva.

Fletcherindicouqueaelfasecalasse,poisIgnácioestavaolhandoparabaixo.Dezenasdeanões estavamreunidosali, sentadosembancos feitosdepedralavradagrosseiramente.Nomeio,haviaumaplataformarochosaelevada,ocupadaporumanão.Fletchermalpodiaouvirsuavoztrovejante.

— Precisamos chegar mais perto. Não consigo ouvir o que ele estádizendo—murmurouFletcher, orientando Ignácio a olhar emvoltapelacaverna.Asparedeseram iluminadaspela luz irregulardas tochas, enãohaviacomoodemôniodescerporelassemservisto.

—MandeIgnáciodescerporaquiloali—sugeriuSylva,apontandoparaagrandeestalactitequedesciaumterçodadistânciaatéopisodacaverna.

Fletcher ordenouque o demônio usasse a rocha pontudapara descer,urgindo-o a ser cauteloso. Em seguida, fechou os olhos e começou asussurraraspalavrasqueestavaouvindo.

—…Eulhesdigonovamente,esteéomomentoperfeitopararebelião!Nãohouveumasituaçãomelhoremdoismilanos.OexércitodeHominumestáatoladoentreduasguerras,oselfosaonorteeosorcsaosul.Elesnãopodemenfrentarumaterceira.Deumpontodevista tático,estamosbemposicionadosparainvadiropalácioemanteroreieseupaicomoreféns.

Ooradoreraumanãograndeecorpulentocomumaatitudeautoritária.Ele encarou, por sobre o nariz, os ouvintes sentados, e enfim desceu osdegrausdaplataforma.Outroanãoesperavaabaixo,estemaisvelho,commechasgrisalhasnabarba.Eleapertouamãodomaisjovemeassumiuseu

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lugarnopúlpito.—Obrigado, Ulfr, pelas palavras instigantes. Você fala a verdade,mas

temosaindamaisumacartaemnossasmangas.Comotodosvocêssabem,somos os únicos fabricantes de armas de fogo.Nestemomento, nove emcadadezsoldadosnoexércitodeHominumforamtreinadosapenasnaartedecarregaredispararummosquete, semarmaduraalguma,enadaalémde uma baioneta para combate corpo a corpo. Se cortássemos ofornecimento de armas, eles se tornariamnada além de umamilíciamalequipadaesemtreinamento.Outravantagemquenãopodeserignorada…

As palavras dele provocaram brados de vivas dos anões, e logo elescomeçaramaentoarseunome.

—Hakon!Hakon!Porém, muitos permaneceram calados, encarando-o com braços

cruzados.Claramente,amultidãoestavadividida.—Uma vantagem adicional, talvez amaior de todas, é amunição. As

minasdePashasãocontroladaspelosnossosaliadoseempregammineirosanões.Énossopovoqueproduzapólvoraeasbalasdechumbo.Semessesdoisrecursos,osmosquetesqueHominumjátemsetornarãoinúteis.Umavezqueelesesgotaremseusestoquesdemunição…nósvenceremosestaguerra!

Mais vivas se seguiram,mas desta vez houve vaias também. Um anãosaltoudeseuassentoecorreuatéopalco.EleapertouamãodeHakonesussurrouemseuouvido.

—ÉOtelo!—exclamouSylva.Fletcherbalançouacabeça.—Não é, não. Eu sei por causa da forma como o cabelo foi trançado.

Otelo tem um gêmeo. Seu nome é Átila e ele odeia a humanidade comfervor.

—Traidoresecovardes!—urrouÁtilaquandoFletchersintonizoudenovo.—Vocêssãoanõesdeverdade…oumeio-homens?

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Vários deles, furiosos, levantaram-se num salto, gritando tão alto queFletcherquasepodiaouvirosecosdacavernaabaixodeondeeleeSylvaestavamsentados.

— Nenhum de vocês sentiu o peso dos cassetetes dos Pinkertons?Quantosaquinãotiveramseudinheiro,conquistadocomtrabalhoesuor,extorquidodesuasmãos?Quemaquinãoteveumfilhoouirmãojogadonacadeiaporumjuizcomódiodosanões?Vocêsgostamdeteremderastejardiantedoreiparaconseguirapermissãodetermaisdeumfilho?

Osberrosquasedobraramemvolumeconformeosanõesselevantavamegritavamderaiva.

Subitamente, um rugido gutural trovejou pela caverna, silenciando oalvoroço.

— Basta!— gritou uma voz familiar. Otelo abriu caminho emmeio àmultidãoesubiuasescadasdoisdegrausdecadavez.Salomão,aorigemdorugido,oseguiu.

—SouOteloThorsager,primeirooficialanãoemHominum,eoprimeiroconjuradordonossopovo.Reivindicoodireitodefalar.

—Vamoslogocomisso,então,adoradordehumanos—bradouÁtila.—NãopodemosguerrearcontraHominum—afirmouOtelonumavoz

alta e clara.—ReiHaroldestánosoferecendoumachancede igualdade,vocêsnãopercebem?Seiniciarmosumaguerra,perderemos,semsombradedúvida.OexércitodeHominumsozinhojásuperaapopulaçãoenânicaemdezparaum.Amaioriadosanõesemidadedelutarestáacaminhodotreinamentona frenteélfica,cercadosporsoldadosveteranose tão longedeCorcillumquantoépossível.Vocêsachamquepodeminvadiropaláciocomacentenadeanõesquesobrou?

—Se fornecessário!—gritouHakon, gerando gritosde concordânciadosseuspartidários.

— E o que vai acontecer em seguida? As notícias do nosso ataquechegarão aos generais no norte em questão de dias, transportadas por

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demônios voadores. Esses generais vão massacrar nossos jovensguerreirossemhesitação.Mesmoseplanejássemoscomeles,edaí?Comomilanões inexperientespoderiamtomartodaa frenteélfica?Mesmosemmosquetes,osmagosdebatalhapoderãodespedaçarnossosguerreirosemminutos.Opróprioreiéumdosevocadoresmaispoderososapisarnestaterra,evocêssupõemquepoderíamosfazerdeleumrefém?Nãoteríamosamenorchance!

— E daí? Prefiro morrer lutando contra eles a fazê-lo ao lado deles.Apostoquepensamquevocêéumapiada,passeandoporaícomesseseudemoniozinho—acusouÁtila.

— Era isso que eu também pensava, quando cheguei a Vocans. Masestavaenganado.Háboaspessoaspor lá.Diabos,noprimeirodiaemquepiseinaacademia,umdelesmemostrouumcartãodosBigornas!

—OsBigornas?Elesnãopassamdehumanosquesentempenadenós,nada mais. Não é nada além de um hobby para eles. Os anciãos nemconfiam nesse grupo o suficiente para chamá-los para esta reunião —retrucouÁtila.

—Eeutambémnãochamaria,jáqueoassuntodiscutidoaquiéguerrafranca contra o povo deles. Estamos conquistando aliados lentamente;primeiro os Pashas, e agora os Bigornas, que estão iniciando ummovimentoparanosapoiar.AtémesmooreiafirmouqueestádispostoareverasleiserefrearosPinkertons,umavezqueprovarmosquesomosdeconfiança. Mas o que fazemos? Exatamente o contrário; discutimos umarebelião.—Otelo,furioso,cuspiunasbotasdogêmeo.

— Você não é um anão de verdade! Não merece o signo enânicoestampadonassuascostas.Tenhovergonhadechamarvocêdeirmão!—gritouÁtila.

ElearrancouacamisadeOtelopararevelaratatuagemnassuascostas.Comumrugido,oirmãoagarrouÁtilapelopescoçoeosdoisgirarampelopalco,umtentandoestrangularooutro.Salomãoavançouparaajudar,mas

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logoparou,comoseoevocadortivessemandadoodemôniosedeter.Uhtredirrompeunaplataforma,separandoosdoisgêmeosàforça.Atrás

dele, uma procissão de anões de cabelos brancos subiu no palco. Eramidososeveneráveis,comlongasbarbasprateadasenfiadasnoscintos.

—ElesdevemseroConselhoEnânico—sussurrouSylvaparaFletcher.O menino concordou com a cabeça e urgiu Ignácio para escutar maisatentamente, pois aqueles anões não pareciam ser do tipo que gritava eberrava.

O salão caiunumsilêncioprofundoe respeitoso.AtéÁtila seacalmou,baixandoacabeçaemreverência.Omaisvelhodosanciãosdeuumpassoàfrenteeabriubemosbraços.

— Todos aqui desejam liberdade para nossos filhos, não é? Se nãoformos capazes de enfrentar as adversidades unidos, então já estamosderrotados.

Os anões começaram a se sentar, muitos olhando para os pés,envergonhados.

—Jáouvimostudoqueprecisávamosouvir.Hámuitascabeçasquentesaqui esta noite, mas a decisão que estamos prestes a tomar será levadamuito a sério. Eu lhes pergunto o seguinte: que bem nos fará morrercorajosamente na busca pela liberdade? Quatorze vezes os anões serebelaram, e quatorze vezes fomos levados à beira da extinção. Vocês,jovensanões,nãoselembramdomassacrequesofremosnaúltimarevolta.Todasasvezesemqueperdemos,mais liberdadesnossãotomadas,maissangueenânicoéderramado.

Váriosanõesacenaramcomacabeça,indicandoconcordância.—Vejo dois caminhos à nossa frente. Um já foi bem trilhado, porém,

todavezqueoseguimos,acabamosdevoltaondecomeçamos,derrotadoseensanguentados. Só quehá um segundo caminho.Não sei aonde leva, ouquaissãoosperigosquenosaguardamnessa trilha,masseino fundodomeu coração que é melhor seguir o destino incerto do que aquele da

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gloriosaporémgarantidaderrota.Nãohaveráguerra,meusamigos.Vamoshonrarnossoacordocomorei.

Fletcher foi tomado pelo alívio. Otelo tinha se esgueirado paraargumentar contra a rebelião, não para apoiá-la. Além disso, ele tinhaconseguidoconquistaraopiniãodosanciãos.Nãoqueriapensarnoqueseuamigo teria feito se a decisão tivesse seguido na outra direção,mas nãovaliaapenapensarnisso.Tudoiaficarbem.

— Fletcher, o que foi aquilo? — indagou Sylva, puxando o braço dorapaz.

Haviatochasadiante,movendo-sevelozmenteporentreasárvores.Osdoisseabaixaramatrásdopenhascoeobservaram,comocoraçãonaboca.

Viramdezhomens,cadaumarmadocomummosqueteeumaespada.Olíderresfolegavacomoesforço;mesmonastrevas,Fletcherpercebeuquesetratavadeumhomemextraordinariamentegordo.

— Você tem certeza de que é esta caverna? — indagou um deles,erguendo uma tocha para iluminar a área. Fletcher gelou quando a luzrevelouosrostosdosrecém-chegados.

—Certezaabsoluta—afirmouGrindle.

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43

— Aqueles são os homens que me sequestraram — sibilou Sylva,apontandoparaossoldadosdearmadura.

—Eusei;reconheceriaogordocarecaemqualquerlugar—respondeuFletcher,agarrandoocabodokhopesh.—ElesechamaGrindle,eeraelequem iria te executar. Achei que você o tivessematado. Ele deve ter umcrâniobemduro.

—Hámuitosdeles—murmurouSylva,masFletcherpercebeuqueelaseenrijecia, comoseestivesse sepreparandopara saltaràbatalha.Atrásdeles,o rapazouviuumrosnadograve;Sariel tinhasentidoaagitaçãodaelfa.

—Tente ficar calma.Precisamosdescobrirporqueelesestãoaqui.—Fletcher sufocou a raiva e se inclinou sobre o parapeito sombreadoparaouvir.

— Não entendo por que a gente simplesmente não espera aqui paraemboscarosanõesquandoelessaírem—reclamavaumdoshomens.

— Porque esta é só uma de cinco saídas — respondeu Grindle,sentando-se numa rocha.— Sem falar que três delas levam de volta aos

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túneissoboBairroAnão.Quandoosoutroshomenssereuniramemvoltadolíder,a luzdesuas

tochas iluminou o ombro enfaixadodeGrindle, ainda feridopela bola defogodeIgnácio.

—Eudeveriatergarantidoqueeleestavamorto—sussurrouSylvaporentre dentes cerrados. Fletcher pousou a mão no ombro dela paratranquilizá-la. Se aquilo acabasse em luta, ele não se sentia confiantequantoàschancesdeambos.

Havia dez homens, cada um trajando armadura de couro rígido. Asvestes lhes permitiriam movimentos rápidos sem deixar de oferecerproteçãocontragolpeslevesdeespada.

Fletcher espiou seus mosquetes. Seu frágil feitiço de escudo não oajudarianaquelanoite.

—Oqueagentetáesperando,então?—inquiriuoutrohomem,fitandoasprofundezassombriasdacaverna.

— Vocês não prestaram atenção nenhuma nas instruções? —resmungouGrindle,erguendoamãoeagarrandoacouraçadosujeitoqueperguntou.Elepuxouocaraatéopróprionível.—Hácentenasdesoldadosdo lorde Forsyth se reunindo nas outras saídas acessíveis— disse numcuspe, cobrindoooutro sujeito comsaliva.—Nósentramosquandoelesentrarem, quando a trombeta soar, mais ou menos daqui uns cincominutos. Ou você achou que dez homens contra cem anões era o planodesdeocomeço?

O coraçãodeFletcher gelou. Eradissoque ele tinhaouvidoTarquin eIsadora falar. Não era a família de Serafim que corria perigo; eram osanões!

—Cincominutos—sussurrouSylva.—Temosquefazeralgumacoisa.Fletcheravaliouasopções,seusolhosdardejandodoshomensàentrada

da caverna. Não havia tempo suficiente. Lutar contra Grindle e seushomens levaria tempo demais. Se eles tentassem passar por eles, mal

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pisariam na caverna antes de levar uma bala de mosquete nas costas.Mesmo que, por algummilagre, eles conseguissem escapar, ainda teriamqueconvencerosguardasanõesdoqueestavaacontecendo.

—SeaomenosIgnáciosoubessefalar—murmurouSylva,observandoosanõesnocristaldevisão.Elesaindaestavamlá,andandodeumladoaooutroeconversandosobreadecisão.

—Elenãoprecisafalar—afirmouFletcher,numasúbitaepifania.Elesprecisavamavisaraosanõesqueestavamsendoatacados.Então,porquenãoatacá-los?

EleenviouasordensparaIgnácioesentiuumclarãodeconfusãoemedovindosdodemônio.Quandosuasintençõesficaramclarasparaodiabrete,omedofoisubstituídopordeterminaçãoférrea.

—Observe—sussurroueleaSylva.Ignáciodesceupelaestalactite,enrolandoacaudaaoredordapontae

cravando os espinhos na pedramacia. Ele ficou ali pendurado como ummorcego, esticando o pescoço para chegar tão perto quanto possível dosanões.

— Agora, Ignácio — murmurou Fletcher, sentindo sua visão seintensificarconformeomanaseincendiavadentrodele.

Ignácio lançouuma labaredaespessa,umaonda turbulentadechamasque se deteve logo acima dos anciãos abaixo. O fogo chamuscou suascabeças, preenchendo o salão com o odor acre de cabelos queimados.Então, com um estrídulo de empolgação, Ignácio estava de volta ao teto,rastejandodevoltaaFletcher.

— Estamos sendo atacados! — rugiu Hakon, enquanto o pânicodominavaoaposento.—Recuemparaascavernas!Protejamosanciãos!

Os cavaleirosde javalis voltaramde seuspostosnas saídas, guiandoamultidãoerráticadeanõesaumtúnelquelevavaparamaisfundonaterra.

—Funcionou—sussurrouSylva.—Fletcher,vocêéumgênio!Subitamente, um machado de arremesso veio voando da multidão,

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cravando-seacentímetrosdeIgnácio.—Umdemônio de Vocans! Traição!—EraÁtila, ainda no pódio com

Otelo.—Aquemvocêcontousobreestareunião?— A ninguém, eu juro — gritou de volta o irmão, com a expressão

tomada pela confusão ao reconhecer Ignácio.— Conheço esse demônio.Seudonoéamigodosanões!

—Entãoelenãovai se importar se eu lhe fizero favordematar essebicho!—uivouÁtila,pegandooutromachadodearremessodocinto.

ElesaltoudopódioecomeçouacorrernadireçãodaSalamandra,queficouparalisadademedo.

—Não,Átila,fiquecomosoutros!—gritouOtelo,indoatrásdogêmeo.Ignácioguinchouesaiuemdisparadatúnelacima,escapandoporpouco

dolançamentoseguintedeÁtila.—Detenha-oFletcher!Vocêvai levarosdoisatéGrindle—sussurrou

Sylva,puxandoomeninopelaveste.Mas era tarde demais. Os dois anões corriam diretamente abaixo de

Ignácioagora.—Prepare-se—respondeuFletcher.—Vamosterquelutar.Sylva assentiu, sacandoopunhaldeumabainhana coxa. Sariel sentiu

seuhumoreseagachou,prontaparasaltarcontraoshomensabaixo.Elesesperaram,prendendoarespiração,enquantoossegundossepassavam.

—Passos!—exclamouGrindleroucamente,apontandoparaaentradado túnel. Fletcher ouviu também, ecoando pela caverna conformeÁtila eOtelo corriam. — Duas fileiras; a primeira de joelhos, a segunda de pé.Disparar ao meu comando! — ordenou o homem, sacando a espada eerguendo-asobreacabeça.

Ospassosestavamcadavezmaispróximos.Fletcherouviuabarulheiradeoutromachado,batendonarochaaoerraroalvomaisumavez.

—Euvou criarumescudona entrada.Você lançaum fogo-fátuoparaatrapalharamiradeles;nãoseiseomeuescudovaiserforteobastante—

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disseSylva.Elajáestavadesenhandoosímbolodoescudonoar.Momentosdepois,elaestavafluindoluzopacaparaochãodiantedesi,empoçando-anochãocomoâmbarlíquido.

—Preparar—grunhiuGrindle.Os homens ergueram os mosquetes, apontando-os para dentro da

caverna.Fletcherpuxoumanade Ignácio.Eramaisdifícil comadistânciaentreeles,maslogoseucorpovibravacomenergia.Emsuavisãocarregadademana,aluzdastochasreluzianumalaranjadoprofundo.

—Apontar—comandouGrindle,baixandoaespada30centímetros.Ospassosnãoecoavammais,de tãopertoque jáestavam.Aqualquer

segundo,osanõesapareceriam.Grindlebaixouaespadatotalmente.—Fo...—Agora!—gritouSylva,lançandoabaixoumreluzenteescudo,branco

equadrado.Fletcher disparou um clarão de luz azul nos olhos dos atiradores,

cegando-osbemquandoosmosquetesestalaram,arrotandofumaçanegraquelhesencobriuavisão.

Então Sariel irrompeupor entre as fileiras, espalhando-os comopinosde boliche. Ela saltou no peito do homem mais próximo e começou adestroçarsuagarganta.

Fletchersaltoudobarrancocomumgrito,golpeandoparabaixocomokhopesh. A arma se cravou no estômago de um homem caído, e logo ogarotoestavaa caminhodopróximooponenteatordoado, cortando-lheopescoço.EleouviuSylvaatrásdesi,emseguidaogorgolejardeumhomemcomagargantacortada.

Ignácio se deixou cair no ombro de Fletcher e soprou chamas numhomemqueinvestiadeespadaerguidacontraseudono.

—Meus olhos!—berrou o oponente, caindode joelhos. Sylva passoucorrendoporeleecravouopunhalnoseucrânio.

Sarielveiocorrendodevolta,comopelodofocinhoimundodesanguee

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pedaços de carne. Sylva a agarrou pelo cangote e a arrastou de volta àentradadacaverna,posicionando-aaoladodeFletcher.Aindahaviacincohomens,incluindoGrindle.Elestinhamsereagrupado,espalhando-senumlequeparamanterosinimigospresosnacaverna.

Otelo e Átila chegaram, ofegando enquanto tentavam se recuperar. Oescudodeviaterfuncionado.

— É uma emboscada, Átila; Fletcher e Sylva estão do nosso lado —murmurouOtelo.Salomãotrovejouemconcordância.

—Prefiromatarcincohomensaumgaroto.—Átilapegouaespadadeumdoscombatentesmortos.—Voulutaraoseulado...porenquanto.

EleentregouaOteloumamachadinhaquetrazianocinto.—Vocêsemprefoimelhorcomissodoqueeu.Mostreaesseshumanos

doqueumanãodeverdadeécapaz.EntãoGrindle jogouuma tocha na caverna, iluminando-lhes os rostos.

Depoiscuspiudenojo.—Lixoélfico.Eudeveriatermatadovocêquandotiveachance.Selorde

Forsythnão tivessenosobrigadoa fazer tudopublicamente, vocêestariaapodrecendodebaixodaterraagora.

FletchercongelouàmençãodonomeForsyth,percebendoquemtinhaestadoportrásdoraptodeSylva.Nãoforacoincidênciaalgumaofatodeque os gêmeos Forsyth a acompanhavam quando ela fora raptada. Omeninobalançouacabeçaparaafastartaispensamentos,concentrando-senatarefaimediata.

— Vou estripar você — rosnou Grindle, estocando com a espada nadireçãodabarrigadela.—Sempremepergunteiseoselfostêmasmesmasentranhasqueagente.

— Esse ombro parece dolorido— zombou Fletcher.— Como vai serhoje?Aopontooubem-passado?

Grindleignorouocomentárioesorriu.—Recarreguemseusmosquetes,rapazes.Vaisercomomassacrarratos

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numbarril.—Alto lá!— exclamouÁtila.—O primeiro que estender amão para

pegaromosquetelevaummachadonacara.Oanãopegouoúltimomachadodearremessonocintoeogirouentreos

dedos.Os homens restantes olharamdeGrindle para seusmosquetes nochão.Nãosemoveram.

— Somos sete de nós contra cinco de vocês; e três dos nossos sãodemônios. Façamum favor a simesmos e voltemparaoburacodeondevocêssearrastaram.

Grindle deu um sorrisinho zombeteiro e apontou a espada para acavernaatrásdeles.Aolonge,Fletcherescutouosoardeumchifre,osinalparaoataquedoshomensdeForsyth.

— Se eu mantiver vocês aqui por tempo suficiente, os reforços vãochegar.Elesvãodestroçá-loscomocães.

— Isso se... — comentou Fletcher, dando um passo à frente. Mas elepercebeu que o gordo tinha razão. Os gritos distantes dos soldados deForsyth ecoavam no túnel atrás dele. Quando notarem que Grindle nãoatacou junto comeles, virão investigar. Fletcherprecisavadaro foradaliimediatamente.Umalutapoderiademorardemais.

Fletcherfezsurgirumaboladefogo-fátuo,alimentando-acommanaatéficar do tamanho da cabeça de um homem. Ela vibrava com um pulsarmonótono,reluzindonapenumbradabocadacaverna.OrapazapropeliunadireçãodeGrindle,quesaiudafrente.

— Você já viu como fica uma queimadura demana, Grindle? Se vocêachou que o fogo real era ruim... Espere só até sentir sua carne serarrancadadosossosquandoomanapurotocarsuapele.Ouvidizerqueadoréinimaginável—blefouFletcher.Elesabiamuitobemquefogo-fátuosedissipariaassimquetocassequalquercoisasólida,semefeitoalgum.SóqueGrindlenãosabiadisso.

SylvaeOteloseguiramoexemplo,lançandobolasmenoresdefogo-fátuo

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para circundar a cabeça de Grindle. Ele se abaixou, batendo nelas com aespada.

—Corraparacasa,Grindle—falouFletcher,comescárnio.—Vocênãoé capaz de enfrentar a gente. Considere-se sortudo por deixarmos vocêviver.

Grindleuivoudefrustração,gritandoparaocéu.Finalmente,afastou-separaolado,indicandoparaseushomensqueimitassemogesto.

Fletcher fez umamesura teatral e exagerada, e passou com os outrospelos homens. Ele manteve o fogo-fátuo flutuando sobre a cabeça deGrindle. Era importantemanter a aparência de que estava no controle econfiante.

—Muitobem,Fletcher—sussurrouOtelo.—Foiumaótimaatuação.—Aprendicomomelhor—murmuroudevoltaorapaz,lembrando-se

doencontrocomosPinkertons.Eles caminharamomais rápidopossível, cientesdoolharmalévolode

Grindleperfurandosuascostas.—Oque foiesseestardalhaçotodo,Grindle?Oshomensdisseramque

ouviram tiros! — gritou uma voz retumbante da caverna. A entradaluminava-se com tochas conforme incontáveis vultos de armadura saíamdelá.

—Corram!—gritouFletcher.Umabalademosquetelherasgouamangaeseestilhaçounumrochedo

adiante.Maistirosseseguiram,zumbindoacimacomovespasfuriosas.Era impossível ver mais do que poucos metros à frente. Tudo que

Fletcher ouvia era a respiração ofegante do grupo enquanto elescambaleavam nas trevas. Fogos-fátuos estavam fora de questão. Aescuridãodanoiteeraaúnicacoisaqueosprotegiadassalvasdetirosqueestrondavamnadistânciaatrásdeles.

Umabala zuniupertoeentãohouveumbaquequandoumcorpocaiudiante deles. Fletcher tropeçou num amontoado de braços e pernas,

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esparramando-senalamacommaisalguém.—Foiaminhaperna—grunhiuÁtila.—Fuiatingido!Elesestavamsozinhos.SylvaeOtelodeviamterseseparadonacorreria

loucadafuga.—Deixe-meaqui.Voucobrirsuaretirada—afirmouÁtila,engasgando,

empurrandoFletcherparalonge.—Semchance.Voutirarvocêdaqui,mesmoqueprecisecarregá-lo—

retrucou Fletcher com teimosia, tentando puxar Átila para que selevantasse.

—Eufaleiparamedeixaraqui!Voumorrerlutando,comoumanãodeverdade—rosnouÁtila,afastandoorapaz.

—Éassimqueumanãodeverdademorre?Alvejadonalamacomoumvira-lata? Achei que vocês, anões, fossem mais durões que isso —respondeuFletcher,carregandoavozcomdesprezo.Esteanãopareciasermovidoaraiva,eeleiriaseaproveitardofato.

— Seu almofadinha, me deixe morrer em paz! — rugiu Átila,empurrando-odevoltaàlama.

— Se você quer morrer, ótimo! Mas não esta noite. Se eles tecapturarem,poderãousá-locomoprovadeumareuniãosecretaaqui.Nãofaçaissoaoseupovo.NãodêessasatisfaçãoaosForsyth.

Átilarosnoudefrustração,masdepoisrespiroufundo.— Vamos fazer do seu jeito. Porém, se eles nos alcançarem, não vai

haverrendição.Lutaremosatémorrer.—Nãoaceitarianadadiferente—concordouFletcher,erguendooanão.Era uma caminhada difícil, pois a diferença de altura dos dois não

permitia que Fletcher passasse o braçodo anãopelos seus ombros. Parapiorar a situação, os gritos dos perseguidores estavam ficando cada vezmais altos. Ao contrário de Fletcher e Átila, eles tinham tochas parailuminarocaminho.

Os dois continuaram caminhando pelo que pareceu horas, até Átila

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finalmentetropeçarecair.— Olha, você vai ter que me carregar. Vai ser mais rápido assim—

ofegouÁtila.Oferimentoestavacobrandoseupreço,eFletchernotouqueas calças do anão estavam ensopadas de sangue. O menino sabia que ooutrotiveradeengolirmuitoorgulhoparafazerumpedidodesses.

— Vamos lá, pule nas minhas costas—murmurou Fletcher. O rapazgrunhiuenquantoÁtilaseajeitava,entãoseguiuemfrente,respirandoporentre dentes cerrados. Ignácio chilreou encorajamento para o novocompanheirodecarona,lambendoorostodoanão.

Sem aviso, a área foi iluminada pelo brilho de uma luz azul fraca. Umglobo de fogo-fátuo surgiu no céu, dezenas de metros acima. Ele semantinhanoarcomoumasegundalua,girandoacimadasnuvens.

—Issoécoisasua?—indagouÁtila.—Não.EnãodeveserdeOtelo,nemdeSylva.OssoldadosdeForsyth

devemterummagodebatalhaconsigo.EunãomesurpreenderiasefosseopróprioZacarias;aquelefogo-fátuoéenorme!—respondeuFletcher.

Eleolhouaoredoresedesesperou.Oterrenoemvoltapareciaidêntico,eomeninopercebeuqueestava completamenteperdido.Mas, seelenãochegasselogoaumlugarseguro,Átilanãosobreviveriaàquelanoite.

Osgritosestavamdistantesagora,masosdoisnãoestavamsegurosdeformaalguma.Seomagodebatalha inimigo tivesseumdemôniovoador,elespoderiamserencontrados.

—Paremaímesmo!—gritouumavoz.Umhomemsaiudassombras,apontando ummosquete contra eles.Mais uma vez, Fletcher amaldiçoousuainabilidadedeexecutarumfeitiçodeescudo.

—Semrendição…—murmurouÁtilaemseuouvido.Massuavozsoavapastosaefraca.Fletcherduvidavaqueoanãopudessedarmaisquealgunspassosantesdedesabar.

IgnáciosaltoudopescoçodeFletcheresibilou.Ohomemsimplesmenteoignorouecontinuouapontandoomosquetediretoparaacaradorapaz.

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— Mantenha esse bicho longe de mim ou eu atiro — afirmou ele,movendoocanodeformaameaçadora.

Fletcherergueuamãoeacendeuumaboladefogo-fátuo.—Possometerissonoseucrâniomaisrápidoquequalquerbala.Soltea

arma,enãoteremosproblemas.—Eusouumsoldado,seuidiota.Seioqueéfogo-fátuo.Largueoanão

nochãoe...argh!—Ohomemgritouebateunopescoçocomamãolivre.UmCaruncho castanho fosco zumbiu acima do soldado e depois voou

numcírculoaoredordacabeçadeFletcher.—Valens— suspirou Fletcher. De alguma forma, o demônio os tinha

encontrado. O homem caiu de lado, com o mosquete ainda erguido. Eracomosetivessesidocongelado.—OmajorGoodwinnãoestavabrincandoquanto ao ferrão de um Escaravelho! — exclamou o rapaz, espantado.Valenssoltouumzumbidoforteeentãoesvoaçouparaafrenteeparatrás.

Fletcher o observou por um momento, e por fim percebeu que oCarunchoqueriaqueelesoseguissem.

—Sómaisumpouco,Átila—murmurouFletcher.—Vamosconseguir.

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ÁtilaestavainconscientequandoelesfinalmentechegaramàCidadela,masaindarespirava.Apernadoanãoestavaenrijecidacomsanguecoagulado,mas, na escuridão, Fletcher não conseguia ver o tamanhodo estrago. Eleenfaixou o ferimento omais apertado possível comuma tira de pano dacamisadeÁtila,entãoseguiuValenspelapontelevadiça.

— Aonde vamos agora? — perguntou Fletcher num sussurro para odemônioquepairavaacimadele.

OCarunchozumbiudeformaencorajadoraeparounametadedasubidadaescadarialeste.Fletcherencarouosdegrausíngremescomapreensão.

—Eunãoseiseconsigo!—resmungouele,erguendoocorpodeÁtila.SentindoohumordeFletcher,Ignáciosaltouparaochão.

—Obrigado,amigo,agoraestámuitomais leve—murmurouFletchersemmuitaempolgação,afagandooqueixododiabrete.

Valensoguiouescadaacima,ovibrardesuasasasorientandoFletchernastrevas.Elenãoarriscouacenderumfogo-fátuo.SeRookopegassecomÁtila,relatariatudoaorei.

Eleschegaramaoúltimoandar,depoiscontinuaramasubidapelatorre

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nordeste.A essa altura, os joelhosdeFletcher estavamquasedesabando,maselecontinuouteimosamente.Dealgumaforma,Valenstinhaumplano.

Finalmente, eles alcançaramumpar de pesadas portas demadeira noponto mais alto da torre, e Fletcher percebeu que tinham chegado àenfermaria.Antesquetivesseumachancedebater,asportasseabrirameeletopoucomumaSylvafrenética.

—Vocêsestãobem!Achávamosquetinhammorrido!—soluçouSylva,enterrando o rosto no peito de Fletcher. Otelo o encarava, com o rostopálidoemarcadoporlágrimas.OanãocorreuatéorapazetomouÁtilanosbraços.

Fletcher deu tapinhas amistosos e desajeitados na cabeça de Sylva eolhouemvolta.Haviaváriasfileirasdecamas,comarmaçõesenferrujadase cobertas de poeira. Três camas mais novas ficavam perto da porta, eSariel descansava embaixo delas. Quando Otelo deitou Átila numa delas,Fletcherpercebeuquenãoestavamtodasvazias.

Lovett jaziana camamaispróxima.Ela estava tão imóvel quepoderiaserumcadáver,nãofossepelosubiredescerquaseimperceptíveldotórax.Ela vestia uma camisola, com os longos cabelos negros espalhados à suavoltacomoumhalo.Osoutrostinhamacendidoastochasevelasdosdoisladosdacama,oquelançavaosalãonumaluztênue,alaranjada.

—Valenstrouxevocêsatéaquitambém?—indagouFletcher,enquantooCarunchopousavanopeitodamestra.

—Elenosencontrouhámaisoumenosumahora, e saiuvoandopelajanelaassimquechegamosaqui—contouSylva,enxugandouma lágrimadoolho.—Eledevetersentidoquevocêestavacomproblemas.

— Não acho que seja apenas a Valens que devemos agradecer —comentouFletcher,acariciandoacarapaçadobesourodemônio.

—Oquevocêquerdizer?—indagouSylva.— Arcturo me contou que alguns conjuradores conseguem aprender

como ver e ouvir pelo demônio, efetivamente usando sua própriamente

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comoumapedradevisão.DuvidoqueumCarunchopudesseterfeitotudoqueValens fez esta noite sem alguémo guiando. Você estava lá com ele,capitãLovett?—Fletcherfitouorostoimóveldaprofessora.

Odemôniozumbiuegirou.—Nãoépossível!—exclamouSylva.— Como ela sabia? — indagou Fletcher, arregalando os olhos de

espanto.—Eladeveterficadodeolhonagente.ProvavelmentedesdequeRook

apareceu— disse Sylva, ajeitando o cabelo de Lovett no travesseiro.—Tivemossorte.Estaríamosmortossenãofosseporela.

—Sevocêsjáterminaramdesemaravilhar,euprecisodeajudaaqui—resmungou Otelo com a voz entrecortada. Os olhos de Fletcher searregalaramaoverapernadeÁtila.

Otelotinhacortadoopanoemvoltaereveladoumburacoirregularqueaindaderramavasangue.Fletchernuncatinhavistoumferimentodebalaantes,eoestragopareciamuitopiorqueofurinhoqueeleimaginara.

—Tivemossorte;abalanãoacertounenhumaartériaprincipal.Oossocertamenteestáquebrado,porém,entãonãopodemostentarumfeitiçodecura.NaúltimavezemqueviumferimentoassimfoiquandoumPinkertonatirounumjovemanãoquenãotinhapagoporproteção—contouOtelo,cortando uma longa tira do lençol com a machadinha.— O melhor quepodemos fazer é uma atadura para estancar o sangramento. Levantem apernadeleparamim.

Eles ajudaram Otelo a enfaixar o ferimento, até que a perna de Átilaestava embrulhada numa faixa grossa de ataduras brancas.Cuidadosamente,Otelolimpouosanguecoagulado.

— Sei que Átila parece ser tão racista com humanos quanto muitoshomenssãocomosanões,maseletemumbomcoração.Oproblemaéquetem uma cabeça quente à altura — murmurou ele, colocando umtravesseirosobacabeçadoirmãoadormecido.

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Osdois ficaramemsilêncioenquantoOteloenxugavaa testadooutro.EntãoSylvafalou:

—Achoqueprecisamosconversarsobreascoisasqueaconteceramestanoite.

— De acordo — disse Fletcher. — Mas temos que buscar Serafimprimeiro.Elemerecesaberoperigoquesuafamíliapodeestarcorrendo.

—Euvou—decidiuOtelo.—Precisobuscarumuniformeextranomeuquarto, de qualquer maneira. Vamos precisar de um, se quisermos tirarÁtiladaquiescondidoamanhã.

O anão foi embora, seguido por Salomão, que parecia deprimido.FletchersabiaqueOteloprovavelmenteestavacomopesodomundonascostas.

Orapazsesentouna lateraldacamadeLovett,gemendodesatisfaçãoperante o alívio em seus pés doloridos. Acariciou a cabeça de Sarieldistraidamente, e ela respondeu comumbarulhode satisfação. Sorrindo,ele coçou o queixo dela do mesmo jeito que fazia com Ignácio. Ela seesfregoudevoltaelatiucomprazer.

—Hum,Fletcher—gaguejouSylva.Fletcher ergueu o olhar e viu que a elfa estava ruborizada, o rosto e

pescoçocompletamentevermelhos.—Desculpa...eunãopensei!—exclamouele,tirandoamão.Sylvaficouparadanolugarporuminstante,entãosuspirouesentouna

camaaoladodele.—Eununcateagradeci—murmurouela,torcendoasmãos.—Peloquê?—indagouFletcher,confuso.— Por ter me seguido. Se você não tivesse… Grindle poderia ter me

capturadodenovo.—Nãoseinão;achoqueelepoderiatertidoumasurpresaetanto.Você

dissequeSarielvaliadezhomens,eissoresultarianumalutajusta.Senãofosseporvocê,poderíamosestarnomeiodeumaguerracivilagora.Você

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tomouadecisãocorreta.ValenszumbiuanimadoeempurrouamãodeFletcher.—AchoqueacapitãLovettquersaberoqueestáacontecendo.Contea

elaoquehouvenapraçaValentius,eeuexplicareioqueaconteceuhojeànoite.

Contar a história toda levou algum tempo; Otelo e Serafim chegarambemquandoelesterminaram.Orecém-chegadoaindaestavadepijama,eestreitavaosolhosparaaluz.

—Otelomeexplicoutudonocaminho—declarouele,fitandooscorposinconscientesdeÁtilaeLovett.—Eusó tenhoumapergunta.PorqueosForsythcontrataramGrindleparamatá-lanaquelanoiteemCorcillum,mastambémfizeramamizadecomvocê?

Sylvaselevantouemordeuolábio.— Sempre pensei que eles buscavam minha amizade para poderem

suprir os elfos no caso de uma aliança sematerializar— respondeu ela,andandopelosalão.—Masoquefazdemimumainimigadeles?Porqueelesmequeremmorta?

—Acho que a verdadeira pergunta é: por que eles queriam que vocêfosse executada publicamente? — afirmou Otelo, sem rodeios. — Elespoderiam ter matado você a qualquer momento. Por que fazer ummanifestodisso?

—ParaincitarumaguerraentreoselfoseHominum—sugeriuSerafim.— Uma guerra de verdade. Isso aumentaria a demanda por armas, emanteriaosnegóciosdelesvivos,mesmocomaconcorrênciadosanões.

Fletcher sentiu uma onda de repugnância. Começar uma guerra porlucro?

—Entãoelesqueremomelhordosdoismundos...—murmurouele.—Seos elfos se aliassemaHominum, os ForsythplanejavamassegurarumcontratodearmamentospormeiodaamizadefalsacomSylva.Sóqueelespreferemumaguerra,porquegeramaislucro.Elesnãoaabandonaramno

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mercado,Sylva,esimalevaramdiretoaosbraçosdeGrindle!—Nãodiga“euteavisei”…—Sylvaencaravaosprópriospés.A enfermaria ficou em silêncio, interrompido apenas pelo zumbido

furiosodeValens,esvoaçavandodeumladoparaooutro.—Aquelesalmofadinhasmalévolos!—resmungouSerafim.—Eusabia

queelesestavamarmandoalguma,masisso...issoétraição!— Não podemos provar nada! — praguejou Fletcher, cerrando os

punhos.—Naverdade,secontarmosahistóriatodaaorei,émaiscapazdeele pensar que os anões estavam cometendo traição, com o conselho deguerraetudoaquilo.

—Nãofazdiferença—anunciouSylva.—Oplanodelesestáarruinado.Vou escrever para meu pai agora e contar que os Forsyth não são deconfiança.Atramoiaparainiciarumaguerracivilcomosanõesfoidetida,eestou em relativa segurança na Cidadela. Não há nada que eles possamfazerparanosprejudicaragora.

—Há,sim—acautelouSerafim.—Otorneio.SeumdosForsythvencer,elesetornaráumoficialdealtapatenteeganharáumassentonoconselhodorei.ÉumvotoextraparaZacariasemaisumavozfalandocontraminhafamília,semfalardoselfoseanões.

Oteloconcordoucomacabeça,emseguidacoçouabarba,pensativo.—Nãovamosesquecerqueaspessoasmais importantesdeHominum

estarãoassistindo;osnobreseosgenerais—afirmouoanão,andandodeumladoparaooutro.—Serãoelesquemdecidirãoseoselfoseanõessãoaliados valorosos, e depois se reportarão ao rei. Podemos ter certeza deque os Forsyth farão tudo ao seu alcance para nos desacreditar eenvergonharnotorneio,também.

—Entãonóstemosquederrotá-los!—Fletcherselevantounumsalto.—Quemdissequenãopodemosvencerotorneio?TemosumGolem,umCascanho,umCanídeoeumaSalamandra!

Serafimbalançouacabeça.

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—Nãosomostãopoderososquantoeles.Atéosplebeusdosegundoanolevamvantagemsobrenós.Comopoderemosvencer?

Fletcherrespiroufundoeofitou,olhonoolho.—Treinando.

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45

Uma névoa pesada pairava ao redor da Cidadela, fazendo o horizonte sedesvanecer numabrancura sombreada. Isso ofereceu a Fletcher eÁtila acoberturadequeprecisavamenquantomancavampelaestrada.

—Espero que Uhtred chegue na hora— comentou Fletcher.—Rookficarádesconfiadoseeunãoaparecernaauladele.

—Eleestará lá.VocêdissequeValensentregouas instruçõesdeondemebuscarsemproblemas—respondeuÁtila.Eleestavapálido,mastinhaserecuperadoobastanteparaandar,mesmoquemancassenitidamente.

Os dois conseguiram se esgueirar para fora do castelo sem problemapraticamente algum. Tarquin fizera um comentário sarcástico quandopassouporelesnaescada,perguntandoseoanãoestavamancandoporquealguémtinhapisadonelenaquelamanhã.Felizmente,comouniformeextrade Otelo e um rápido trançar da barba de Átila, os anões gêmeos eramindistinguíveis.

O coração de Fletcher se acelerou quando uma sombra escureceu anévoaadiante.

—Tudobem,émeupai—resmungouÁtila.

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Umjavaliemergiudonevoeiro,puxandoumacarroça.Ocondutorusavacapuz,masovultocorpulentodeUhtrederainconfundível.

—Suba,rápido.Nãoéseguroporaqui!—exclamouoanãomaisvelho,parandoacarroçaaoladodeles.FletcherajudouÁtilaaseesparramaraospésdopai.

—Os anões estão emdívida comvocê. Seprecisarde alguma coisa, oque for, é só pedir— ribombou Uhtred, estalando as rédeas do javali evirandoacarroça.

—Espere,tenhoalgoadizer—anunciouÁtila.Fletcher deu meia-volta, preocupado em se atrasar para a aula que

começariaaqualquerminuto.—Muitoobrigado.Eulhedevominhavida.DigaaOteloque...euestava

errado.Com essas palavras de despedida eles desapareceram na névoa, se

afastando até que Fletcher ouvisse apenas o som dos cascos do javalicontraaterra.

Fletcher chegou atrasado à aula. Porém, quando ele chegou à câmara deevocação, tanto Rook quanto Arcturo estavam esperando por ele, com orestante dos estudantes parados em silêncio diante dos professores.Fletcher percebeu que Arcturo usava um tapa-olho, e não conseguiusegurarumsorriso.Comochapéutricorne,oprofessorpareciaumcapitãopirata.

—Tireessesorrisinhodorosto,moleque.Vocêachaqueoseutempoémaisvaliosoqueonosso?—ralhouRook,indicandocomumacenoqueeledeveriasejuntaraosoutros.

—Desculpe,senhor—disseFletcher,indoatéoscolegas.— Eu cuido delemais tarde, Rook— afirmou Arcturo.—Mas talvez

devêssemoscontinuarcomalição.—Sim,talvezdevêssemos—retrucouRooksecamente,dandoumpasso

àfrente.—Comaaproximaçãodotorneio,achamosquechegouahorade

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demonstrar como funciona um duelo. Pois bem, Arcturo acredita queaprenderaduelarcomoutromagodebatalhaéumapráticainútil...

—Osxamãsorcsraramenteduelam.—OcapitãointerrompeRook.—Épouco provável que vocês enfrentem um deles corpo a corpo. Elespreferemseescondernassombrasemandarosdemônioslutarporeles.

—Umaestratégiaquelhesserviubemnopassado.Suspeitoquenossataxadeperdademagossejaváriasvezesmaiorqueadeles,maséofatodelutarmos nas linhas de frente nos pondo em risco que nos está fazendoganharestaguerra—retrucouRook.

—Sóque issonãoéduelar, Inquisidor. Issoéusarnossashabilidadesparaprotegereapoiarossoldados—retorquiuArcturo.

— Porém, usamos asmesmas técnicas, não usamos?— refletiu Rook,esfregandooqueixo,fingindoestarpensativo.

Fletcher ficou surpreso que os dois professores discutissem assim nafrentedosalunos.Seemalgummomentohouvedúvida,aquiloacabavadeconfirmar:aqueleshomenssedetestavam.

Arcturosuspirouesevirouparaosalunos.—Independentementedeminhasopiniõesquantoaotorneio,eleéuma

tradiçãoquedatadesdeafundaçãodaescolademagosdebatalha,hádoismil anos. Geralmente vocês passariam por quatro anos de treinamentoantesdepoderemcompetir no torneio.No ano anterior, esseperíodo foireduzido a dois anos. Agora, basta um. Tivemos sorte, pois todos vocêsnestaturmaaprendembemrápido.Paraamaioriadoscalouros,levadoisanos para se aprender a executar um feitiço básico de escudo. Até você,Fletcher,estáàfrentedamédia.Hámuitosveteranosdosegundoanoquenãoconseguirãofazerumescudodecente.

Fletchercorouaoserdestacado,massesentiumelhor.Pelomenosnãoficariaemúltimonotorneio.

— Agora, prestem bem atenção — continuou Arcturo, entalhando osímbolodeescudonoareofixandoacimadodedoindicador.Eledisparou

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manaatravésdoglifoeformouumescudoovalgrossoeopacodiantedesi.—Umescudoésempremaisfortequandovocêsepreparaparaoimpactode seja lá o que for que estiver vindo na sua direção — explicou ele,agachando-se um pouco e cruzando os antebraços em X. — Na defesacontraumfeitiçoofensivo,obaquetemum...efeitoviolento.

—Vocêestápronto?— indagouRookpreguiçosamente, erguendoumdedobrilhante.

—Est...Um clarão iluminou a câmara quando Rook chicoteou um feitiço de

relâmpago contra Arcturo, crepitando o ar com forquilhas de raioselétricos.EleatacoutãorápidoqueFletchermalviuodedosemexer.

Oescudo rachou comogelonum lago, emitindoestalos altos e agudoscomcada fratura.O rostodeArcturo se contorceucomesforçoconformealimentavaoescudocommaismana,filamentosopacosfluindocomosedapara cobrir o dano. A força do impacto de Rook o empurrou para trás,fazendoseuspésdeslizaremnocouro.

Arcturo estendeu um dedo da outra mão e agitou o ar, em seguidadescruzando os braços com um rugido e disparando um golpe cinéticopelaslateraisdoescudo.

Rook foi lançado para trás, chocando-se contra a parede e deslizandoparaochão.

—Éporissoqueofeitiçodeescudoéaprimeiracoisaaserfeitaquandoseentranumduelo.Vocêatépodecolocarseuadversárionadefensivaseatacarprimeiro.Porém,sevocênãooderrotarcomesseprimeirogolpe,elesóprecisaráusarumfeitiçodeataqueenquantovocêestiverdistraídoeodueloestaráencerrado.Atacarsemumescudoéumamanobradetudoounada.—Arcturosorriueoescudosedissipou.Aluzfoisugadadevoltaaoseudedocomumsilvarsuave.

“É melhor recuperar o mana dos seus escudos sempre que possível,especialmenteno casodaqueles comdemôniosdenível baixo.Vocês vão

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precisardetodomanaqueconseguiremsequiseremperdurarnotorneio.”FletcherouviuRorypraguejaremvozbaixaatrásdesi.—Aquilofoiumgolpebaixo!—rosnouRook,limpandoasroupascom

aspalmas.— Você passou tempo demais longe das linhas de frente, Rook. —

Arcturo riu, retorcendo o bigode.—Até um segundo-tenente sabe que évitalerguerumescudoseoseuprimeiroataquenãofuncionar.Deixardefazê-loéumatodeinteligênciabovina,sevocêmeperdoaotrocadilho.

— Vamos ver o que você acha dos bovinos quando meu Minotauroestiver com as garras em volta da garganta do seu Canídeo— retrucouRook,dandoumpassoemdireçãoaArcturo.

Os dois homens se encararam por um tempo, o ódio mútuoinconfundível.EleslembravamaFletchercãesdecaçarivais,esticandoascorreias para atacar um ao outro. Se os aprendizes não estivessem nacâmara,orapaztinhacertezadequeumduelo ilegalestariaacontecendoalieagora.

—Turmadispensada!—ralhouRook,saindodasala.—Nãoécomosealgum de vocês pudesse capturar alguma coisa antes do torneio, dequalquerjeito.Inúteis,todosvocês!

Fletcherpercebeuo sorrisodeRory.Apesardosmelhores esforçosdeRook, os nobres não tinham chegado nem perto de capturar novosdemônios.Mesmocomapedradecarga,ahabilidadedevisualizaçãodelesera fraca demais para controlar seus demônios de forma eficiente. Poroutro lado, os plebeus agora conduziam seus demônios com facilidade,fazendo-oscorreresaltarpelapistadeobstáculosqueelesmontaramnocantodacâmaradeconjuração.Fletchererahabilidoso,masseuminúsculocristaldevisãooatrapalhava.Eleotiroudobolsoeoexaminou.

—Vocês escutaramo homem; fora daqui, todos vocês!— resmungouArcturo.—Menosvocê,Fletcher.Venhacá.

O rapaz foi até o professor lentamente, esperando uma bronca pelo

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atraso.Emvezdisso,Arcturopôsamãoemseuombro.—Deixe-meveressapedradevisão.Fletcheraentregousempronunciarumapalavra.— Você não vai vencer o torneio com isto. Há desafios, Fletcher, que

exigirão muita visualização. Não posso lhe emprestar minha pedra; nãotenhopermissãoparalhefavorecere,mesmoseeuquisesse,Rookestámevigiandobemdeperto.Dêumjeitonisso.

ElelargouocristaldevoltanamãodeFletchereoolhounoolho.—Essa é adiferença entreumbomguerreiro eumgrande guerreiro.

Rookseesforçoumuito,masperdeuaquelabatalha.Nãoseesforceapenas.Sejainteligente.

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Ogolpeveiosibilandonoar,evitandoaguardadeFletchereacertandoaclavículadomeninocomumesmigalhardoloroso.

—Denovo!—grunhiuSirCaulder,chutandoacaneladeFletchercomaperna de pau antes de vibrar-lhe outro golpe na cabeça. Desta vez, oaprendiz aparou o ataque com a espada demadeira, desviando-o para oladoedandoumajoelhadanabarrigadeSirCaulder.

Ovelhodesabou,ofegandonaareiadaarena.—Fletcher!—gritouSylvadoladodefora.—Cuidado!SirCaulderergueuamãoeselevantoulentamente.—Está tudo bem, Sylva— sibilou ele, esfregando o estômago.—Um

guerreiro jamais pode hesitar diante de uma abertura. Deus sabe que oinimigonãoofará.

— Você mesma não golpeou o rosto de Sir Caulder não faz nem dezminutos?—provocouFletcher.

—Aquilofoidiferente...—respondeuelacomumsorrisoarrependido.Umgritoveiode trásdeles. Fletcher seviroue viuOtelomontadoem

Serafim,comasarmasesquecidasnochão.

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—Não,não,não;vocêsprecisamaprenderalutarcomrefinamento!—ralhouSirCauldercomosdois.—Nãopodemsimplesmentesocarumaooutroatéquealguémsecanse.

Osdoismeninosselevantaram,sorrindoenvergonhados.Umhematomaamarelo brotava no rosto de Serafim, e o lábio de Otelo estava inchadocomoumaameixamadura.

—JáquevocêsedeuaotrabalhodefazerUhtredentalharessasarmasde madeira para praticarmos, você provavelmente deveria usá-las. —Fletcher riu, olhando a espada larga e omachado de batalha demadeiralargadosnochão.

— Nós só nos empolgamos um pouco — admitiu Otelo, catando omachadoelimpandoaareia.

Elebrandiuaarmacomumafacilidadeexperiente,girando-anoarantesdegolpeá-lanochãoaoseulado.

—Bem,vocêsmelhorarammuitodepoisquecomeçamosatreinar,nãopossonegar—admitiuSirCaulder.—MasSylvaeFletcherjáavançaramaum nível excepcional de esgrima. Considero que vocês já possam fazerfrente a alguns dos nobres, mas vão precisar de muito trabalho parasuperá-los.Bomnãoéobastante.

SirCaulderolhou feioparaosdoispormaisalgumtempo,depoissaiupisandoforteemdireçãoàsaída.

—A aula de combate acabou por hoje. Vocês podem treinar feitiçariaaquiembaixo,sequiserem.Nãovouimpedi-los.

O estalar da perna de pau contra a pedra foi se afastando até que eledeixouaarena.

—Bem,essefoiomaiorelogioqueeujáouvidele—observouSerafim,pegandoaespadalarganochão.—Aindaassim,nãonosfaltatempoparamelhorarmos;aindatemosunsdoismeses.Estoumaispreocupadocomaprova de demonologia da próxima semana. Com tanto treinamento, euadormeçoassimqueabromeuslivros!

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—Vamosnos sairbem— insistiuOtelo.—Aindanãovinenhumdosnobres botar o pé na biblioteca, e até mesmo Rory, Genevieve e Atlaspassam a maior parte do tempo em Corcillum. Se obtivermos uma notaruim,todomundoobterátambém.

—Então,vamospraticarfeitiçaria?—indagouSylva,caminhandosobreaareiaeacendendoumaesferade fogo-fátuo.—Porquevocênão tentaumaboladefogodestavez,Fletcher?Vouerguerumescudoalievocêpodeusarcomoalvo.

Fletcher sentiu o rosto ficar vermelho, envergonhado com suainabilidade em produzir até mesmo o mais básico dos escudos. Eleconseguiadispararondasdefogo,telecineseouatémesmorelâmpagos,oqueeraeficaz,masgastavamuitomana.Paraseudesgosto,orapazaindatinhadificuldadesemmoldá-losnumraiooumesmoumabola.Energizarumglifoeofeitiçoaomesmotempoeracoisademaisparamemorizardeumasóvez.Mesmoassim,elemelhorava lentamente,mesmoquenãonavelocidadedesejada.

—Vocêsvãoemfrente,jáestãomuitomaisavançadosdoqueeu.Vousótreinaraquidolado,ondenãoatrapalho...

—Tudobem,seéissoquevocêquer—respondeuSylva,decepcionada.—Rapazes,porquevocêsnãotentamacertarumalvomóvel?

Ela lançou uma grande esfera de fogo-fátuo no ar, fazendo-aziguezaguear pela arena num padrão aleatório. Otelo riu e entalhou osímbolodo fogo, soltandouma línguade fogoquemoldounumabolaealançounorastrodaluzazul.Serafimestavalogoatrás.

Fletchersesentoudeprimidonaarquibancada,entalhandoosímbolodofogorepetidamentenoar.Ele tinhaconseguido, comaprática,aceleraroentalhamento em alguns segundos, tornando-se capaz de formar o glifomais rápidoquequalquer umdos outros.Mas era ali que suahabilidadeacabava.O rapazpingoualgummanaeobservouum lequede chamas seformar. Com um esforço colossal, ele a compactou numa formamais ou

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menos esférica. Fletcher olhou a bola, surpreso, então a lançou contra ofogo-fátuoantesquesuaconcentraçãoserompesse.

Ela passou em disparada pela esfera azul, pegando-a de raspão e aapagando.

—Legal!—gritouFletcher,socandooar.Atrásdele,palmaslentasecoaramdaentradadaarena.— Parabéns, Fletcher, você conseguiu lançar um feitiço — provocou

Isadora. — Nossa, você conseguiu executar uma das habilidades maisbásicas necessárias a um mago de batalha. Seus pais devem estar tãoorgulhosos.Ah...ops.

Fletcher se virou, sua alegria imediatamente substituída pelo ultraje.Isadora lhe acenou delicadamente e desceu saltitando os degraus daarquibancada. Fletcher ficou surpreso ao ver os outros sete calourosentrandoatrásdelanaarena.

—Enfim,comovocêspodemver,estávamoscertos.—Tarquinapontouum dedo acusador contra Sylva, Otelo, Fletcher e Serafim.— Eles estãotreinandoaqui,emsegredo!

— É por isso que vocês nunca estão na sala comum! — exclamouGenevieve,surpresa,jogandoocabelo.—Vocêssempredizemqueestãonabiblioteca.

—Masnós estamosmesmo.—Fletcher tentouapaziguá-la.—Nós sódescemosparacádepois,parapraticaresgrimacomSirCaulder.Vocêsnãolembram? Ele ofereceu lições particulares para todos nós depois daprimeiraaula.

— Isso não parece prática de esgrima para mim — comentou Atlas,apontandooespaçovazioacimadaarenaondeaboladefogodeFletchertinhaapagadoofogo-fátuodeSylva.—SirCauldernemsequerestáaqui.

—Porquevocêsnãonoscontaram?—gaguejouRory.—Vocêsnuncamedãorespostasdiretasquandoperguntooqueandaramfazendo.

Fletchernãotinharespostaparaisso.Elesesentiamalemnãoincluiros

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outros.Sóqueteriasidomuitodifícildeexplicar,umriscograndedemaisdequeTarquine Isadoradescobrissemoque faziam.Nãoqueo segredotenhaajudadomuito,nofinaldascontas.

—Porqueelesesconderiamissodevocês?—ponderouTarquinemvozalta,comarteatral.—Talvezporque...não,nãopodeser.Pode?

—Oque você quer dizer?— indagouGenevieve, como lábio inferiortremendo.

— Bem, lamento informar, mas parece que os outros plebeus estãotreinandoemsegredoparaderrotarvocês—teorizouTarquin,balançandoacabeçacomnojofingido.—Querodizer,elesnãotêmamenoresperançade derrotar os nobres, vamos ser razoáveis. Porém, se puderemenvergonharvocêstrêsnaarena,quemsabenãoconseguemdescolarumapatente?

—Quementiranojenta!—berrouFletcher, levantando-senumsaltoeavançando até Tarquin. — E, se acha que não temos como vencer osnobres,vocêémaisarrogantedoqueeupensava.

—Porquenãodescobrimosagoramesmo,então?—Tarquinlevouseurosto a alguns poucos centímetros do de Fletcher.— Estamos na arena.Comumaplateiadeespectadores.Oquevocêmediz?

Fletcher estava absolutamente furioso, com as mãos coçando deintençõesviolentas.

—Umaplateiade testemunhas, vocêquerdizer— interrompeuSylva,puxandoseuamigodevoltadabeiradoabismo.—Aítodomundopoderádizer que viu Fletcher participar de um duelo e assim garantir suaexpulsão.Vocênãoseimportacomaprópriacarreira?

—Cipiãojamaismeexpulsaria—retrucouTarquin,venenoescorrendodesuaspalavras.—Éumaameaçavazia.Meupaiéomelhoramigodorei;oprocessojamaisirialonge.Quantoaumbastardodaralé,comoFletcher...

Porém,FletcheragorajápercebiaoplanodeTarquin,enãolhedariaogosto.

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—Vocêteráseuduelo,nahoracerta.Quandoeupuderderrotá-locomtodomundoassistindo.Vamosverqueméomelhorconjuradorentão.

Onobresorriueseinclinouaindamais,atéqueFletcherpôdesentirsuarespiraçãonoouvido.

—Vouesperaransiosamente.Tarquinentãofezumasaídadramáticadaarena,seguidopelorestodos

nobres. Por um momento, Rory hesitou, com o rosto marcado pelaindecisão.Atlaspousouamãoemseuombro.

—Elesforamflagradosnoato,Rory.Nósnãodeveríamostersidotolosdeconfiarnessalaia.Umpretendenteanobre,umbastardo,umaelfaeummeio-homem.Nãoprecisamosdeamigosdessetipo.

Fletcherseofendeucomoataque,entãopercebeuque,paraAtlasdizer“pretendenteanobre”,elesópodiaterouvidoaconversaentreFletchereSerafim.

— Você andou bisbilhotando, Atlas — acusou o rapaz. — Aquelaconversaeraparticular.

—Ah,sim,ouvimuitacoisanasúltimassemanas.QuemvocêachaquecontoudesuasatividadesextracurricularesaTarquineIsadora?

—Dedo-duro—cuspiuSerafim,chutandoaareiacomraiva.—Oqueelelheprometeu?

—UmacomissãonosFúriasdosForsyth, seeu jogardireitinho.Vocêsdois deveriam fazer o mesmo — afirmou ele, virando-se para Rory eGenevieve.

—Vocêconfiarianaquelasserpentes?—grunhiuFletcher.—Elesestãomentindo para você, e farão omesmo comRory e Genevieve.Não façamisso,porfavor!

Maseratardedemais;eles játinhamdecidido.Umdecadavez,ostrêsderam as costas a Fletcher e foram embora. Até que os quatro ficaramsozinhosdenovo.

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Osuorpingavada testadeFletcherenquantoeleentalhavaosímbolodoescudonoardiantede si.Eleo fixou, remexendoodedoeobservandoosinalseguirtodososseusmovimentos.

— Ótimo. Agora a parte difícil — instruiu Sylva, cuja voz ecoava noespaçovaziodaarena.Serafimosobservavadaslaterais,poisjáterminaraseutreinamentonaqueledia.

Parecia a Fletcher que sua mente se racharia em duas enquanto eletentavaregularumfluxodemana,atéosímboloeatravésdeleaomesmotempo. O rapaz foi recompensado por um fino fluxo de luz branca quepairavanoaràsuafrente.

—Jábastaporora,Fletcher.Agora,molde.Erafácilpuxarofluidonumdiscoopaco,asincontáveishorasdeprática

de fogo-fátuo finalmente se fazendo valer. Espalhava-se bem fino e seestilhaçaria após alguns golpes de espada, mas aquilo bastava porenquanto.

Fletchersugouoescudodevoltapelodedoesentiuoprópriocorposeencherdemanaoutravez.Comotorneioaapenashorasdaquelemomento,

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nãoeraumaboaideiadesperdiçarsuasreservasdeenergiamística.— Muito bem, Fletcher! Você está tendo sucesso em quase todas as

tentativas. Já deve estar melhor que alguns dos veteranos, imagino —encorajouSylva.

— Eu não dou a mínima para a minha classificação no torneio —resmungou Fletcher.— Só quero derrotar Isadora e Tarquin. E eles sãocapazes de erguer um escudo em poucos segundos, duas vezes maisespessos que o meu. É a mesma coisa com os feitiços de ataque.Consistência, velocidade epoder, sãoos fatoresque realmente importamsegundoArcturo.Elesmesuperamemtodosostrês.

Sylvadeuumsorrisosolidárioeapertouseuombro.—Se você tiverque enfrentá-los, eles terãoqueusarmaismanapara

derrotarvocê,oquemelhoraasnossaschances.Serafim,Oteloeeujánosequiparamosaelesdepoisdetantotreinamento.Nãoteríamosconseguidoissosemasuaajuda,especialmentecomapráticadeesgrima.AtéMalikdizquevocêéumbomespadachim,eosSaladintêmfamadeserosmelhoresesgrimistasdopaís!

FletcherdeuumsorrisodesanimadoefoisesentaraoladodeSerafim.Eraquasemeia-noite,masOtelo tinhapedidoqueelesoaguardassemnaarena.Eledesapareceraalgumashorasantes, comnegóciosmisteriososaresolveremCorcillum.

Os últimos meses tinham sido exaustivos, preenchidos com sessõesconstantesdetreinoeestudo.Aprovadedemonologiatinhavindoeseido,etodoselespassaramcomnotasaltas.Fletchernãosabiabemoquetinhafeito seu pulso doer mais, os incessantes treinos de espada ou asintermináveishorasescrevendoredaçõesduranteprovasqueduravamumdiainteiro.

Ele poderia ter suportado esses meses recentes com relativatranquilidade,senãofossepelafriezacomaqualele,Sylva,SerafimeOteloeram tratados pelos antigos amigos. Apesar das tentativas de fazer as

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pazes, Rory, Genevieve e Atlas ainda estavam chateados, comendoseparadamentenocafédamanhãeosevitandosemprequepossível.

— Ah, eles ainda estão aqui — disse Otelo de trás deles. — Temoscompanhia,pessoal.Animem-seevenhamreceberunsvelhosamigos.

FletcherseviroueviuOtelo,AtholeÁtilaparadosatrásdeles.Levantou-senumsaltoefoiimediatamenteembrulhadonumabraçodeurso,erguidopelosbraçosfortesdeAtholcomoseelenãopesassemaisqueumacriança.

— Achei que Otelo tinha falado que ia buscar minha encomendaamanhã! —Fletcher riu. Átila sorriu desajeitado e lhe deu um acenorespeitosodecabeça.

—Osverdadeirosamigosdosanõesrecebementregaspessoalmente—retumbou Athol, soltando o rapaz.— Átila trabalhou dia e noite no seupedido.Agora,comapernacurada,eledecidiuvirjuntotambém.

— Bah, foi um trabalho delicado, mas um prazer de executar —comentouÁtila,erguendooprodutodeseutrabalhoàluz.

FletchertinhapensadoinicialmentenaquilodepoisdesuaconversacomArcturo.A pedrade visãoque ele recebera só era útil quandoFletcher asegurava junto ao olho.O tapa-olhodeArcturo tinha lhe dado a ideia deprenderapedraali,deixandosuasmãoslivres.

— Percebi que o seu conceito de monóculo clássico não daria certoassim que comecei, Fletcher. Ele se soltaria se você lutasse enquanto ousasse.Mas você disse que sua ideia veio do tapa-olho do seu professor.Entãopoliocristalatéele ficar transparente, fizumamolduradeprataeprendiumatiranela.Experimentesó.

AtiradecourodomonóculoserviuperfeitamentenacabeçadeFletcher,comapedradevisãoposicionadalogodiantedeseuolhoesquerdo.Eleviaatravés dela quase perfeitamente, apesar do lado esquerdo de sua visãoagoraestarcomumacoloraçãolevementearroxeada.

— Ficou perfeito! Muitíssimo obrigado! — exclamou Fletcher,maravilhado com a clareza. Se ele iniciasse uma visualização, seria

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literalmentecapazdeverascoisasdopontodevistadeIgnácio,ficandoaomesmotempolivreparaagircomoquisesse.

—Vocêpode fazerumdessesparamim?— indagouSerafimcomumtoquedeinveja.—Eujamaisteriapensadonisso.

—Tardedemaisagora—respondeuÁtila,puxandoabarbadiantedoelogio.—Mas, se você estiver comodinheiro e o cristal, ficarei feliz emcomeçarimediatamente.

—Hum,precisodaminhapedraparaamanhã.Masaceitareisuaofertamuitoembreve.—Serafimpegouoprópriofragmentodecristaleofitoucomdesapontamento.

— Muito impressionante — comentou Sylva, bocejando ao subir asescadas.—Sóqueotorneioéamanhãcedo,eprecisodeumaboanoitedesono.Vocêvem,Serafim?

—Sim,precisodomeusonodebelezaseeuquiserconquistarocoraçãode Isadora amanhã — brincou Serafim, mandando uma piscadela dedespedidaaFletcherenquantoseguiaaelfa.—Boanoiteatodos!

Apósospassosdeambosdesapareceremnocorredor,AtholpigarreouelançouumolharapreensivoaOtelo.

—Certo,temosmaisumassuntoaconversar,Otelo.Átilafezumanovatatuagem, para cobrir a cicatriz na perna. Sei que você odeia isso, mastrouxeokitdetatuagemparaocasodevocêquererfazerumaigual.Depoisdoataquefracassado,osPinkertonsestãomaisagressivosdoquenunca.

OtelogrunhiuenquantoAtholpegavaváriasagulhasgrossaseumpotedetintanegranamochila.

—Não!Nãodestavez.ChegueiàconclusãodequelevaraculpanolugardeÁtilasóserviuparadeixarqueelevivesseumavidasemconsequências.Afinal, essa experiênciade ter quasemorridoprovavelmente lhe ensinoumais liçõesdevidanumasónoitedoqueeleaprendeuem todosos seusquinze anos de existência. Não é, Átila? — observou Otelo, indicandoFletchercomumacenodecabeça.

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—Euestavaerradoquantoaoshumanos—resmungouÁtila,olhandoparaospés.—Masissonãoapagaasmuitasatrocidadesquesofremosnasmãosdeles.Percebiquenãoéaraçahumanaqueeuodeio,masosistemaemquevivemos.

—Mas, se nós quisermos mudar esse sistema, precisamos fazê-lo dedentrodele.—OtelosegurouoombrodeÁtila.—Vocêvai sealistaremVocansnoanoquevem?Eunãopossofazerissosozinho,irmão.

Átilaergueuorosto,seusolhosbrilhandocomdeterminação.—Euvou.Oteloriucomalegriaedeuumtapanascostasdoirmão.—Excelente!Deixe-memostrar-lhemeuquarto.Vocêconseguesubiras

escadascomessaperna?Osgêmeossaíramdebraçosdados,OteloajudandoÁtilaamancarpelos

degraus e deixar a arena. Suas vozes animadas ecoaram pelo corredor,deixandoFletcherasóscomAthol.

—Comoascoisasmudam—comentouorapaz.—Ecomomudam.Meucoraçãosealegraaovê-losamigosdenovo—

concordou Athol, enxugando uma lágrima do olho. — Eles eraminseparáveisquandonovos,sempresemetendoemencrencas.

—Átilatemocoraçãonolugarcerto—afirmouFletcher,pensandonoódio que ele mesmo sentia pelos Forsyth. — Eu não sei se estaria tãodispostoaperdoar.

—Operdãonãoédanaturezadosanões—suspirouAthol,sentando-see levando uma das agulhas de tatuagem à luz.— Podemos ser teimososcomomulas, incluindo eu.Menos Otelo, porém. Lembro-me bem quandoeleseofereceuparasertestadopelaInquisição,eeulhedissequeestavasejuntandoaosnossosinimigos.Vocêsabeoqueelemerespondeu?

—Não,oquê?—indagouFletcher.—Eledissequeomaiorinimigodeumguerreiropodesertambémseu

maiorprofessor.Aquelegurianãotemumasabedoriaquevaimuitoalém

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desuaidade.Fletcher contemplou essas palavras, mais uma vez sentindo profunda

admiraçãoporOtelo.AdamaFairhaventinhaditoalgosimilar:Conheceteuinimigo.Masoque elepoderia aprender comosForsyth, ou comDidric?Talvez, se tivesse acesso ao diário de JamesBaker, ele pudesse aprenderalgumacoisacomosorcs.Porém,olivroaindanãotinhavoltadodagráfica,ondeelestinhamdificuldadesemprepararasxilogravurasdosintrincadosdiagramasqueadornavamcadapágina.Mesmoqueamaioria tratassedaanatomiadosdemôniosqueviviamdoladoórquicodoéter,eraimpossívelsaber que outras observações úteis Baker poderia ter anotado naquelaspáginas.

— Você não quer uma tatuagem também? Eu fiz as de Otelo e Átila,entãoseioqueestoufazendo—perguntouAthol,meiodebrincadeira.

— Não, não é bem meu estilo — respondeu Fletcher, rindo. — Semquererofender,achoqueelassãomeiobrutas.Euviatéumorc...

Omeninoparalisou.Emsuasmemórias,eleviuoorcbrancoerguendoamão,comopentagramafulgurandovioletanasuapalma.Seráquepoderiaserassimtãosimples?

—Vocêviuumorccomtatuagens?—repetiuAthollentamente,confusopelosilêncioabruptodeFletcher.

—Foiumsonho...—murmurouele, traçandocomodedoapalmadamãoesquerda.

Fletchersacouokhopeshecomeçouadesenharocontornodeumamãona areia da arena. Seu coração batia loucamente no peito enquanto elepensavanoqueestavaprestesafazer.

—Esperoquevocêsejatãobomquantodizqueé,Athol—declarou.—Precisoqueestatatuagemfiqueperfeita.

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Fazia um calor intenso na arena, piorado pelas dúzias de tochas que SirCaulder instalara nos suportes nas paredes. A areia onde os calouros seperfilavampareciasemoveredeslocarsobaluztremeluzente.

—Só temmesmo24denós?Acheiqueseriamaisgente—sussurrouSerafimnoouvidodeFletcher.

—Não,ésóisso.São12calourose12veteranos,comumnúmeroigualdeplebeusenobres—respondeuooutro,comvozforçada.

Elenãosesentiabem.Cadabaterdoseucoraçãofaziaamãoesquerdalatejar de dor. Não fora uma experiência agradável com Athol na noitepassada,eorapaznãotiveraachancedetestarateoriaainda.Oanãotinhalhe dito para deixar a mão se curar o máximo possível antes de tentarqualquercoisa.

—Olhosadiante!—bradouSirCaulderatrásdeles, fazendoosalunospularem.—DemonstremrespeitoaosgeneraisdeHominum.

Fletcher endireitou a postura à penumbra do corredor de acesso àarena. Primeiro vieram os generais, resplandecentes em seus elegantesuniformesdeveludoazul, bordados com fiosdouradosque subiampelas

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mangasatéasdragonas.Ospeitoseramadornadoscomumaabundânciademedalhas e borlas, e todos os generais seguravam seus bicornes comforça junto ao flanco enquantodesciam rigidamentepelosdegraus. Eramhomens severos, com rostos que evidenciavam penosas experiências.Nenhum deles falou, apenas passaram os olhos pelos cadetes como seavaliassemcavalosnumleilão.

— Se eles ficarem impressionados, vão nos oferecer comissõesdiretamenteapóso torneiopara lutarmosnoExércitoReal—murmurouSerafimcomocantodaboca.—Osoldonãoétãobom,masaspromoçõeschegammaisrápidoquenosbatalhõesnobres,porcontadoaltocoeficientedeatrito.Assumirolugardehomensmortosetudoomais.

—Silêncionasfileiras!—ralhouSirCaulder,mancandoatéafrenteeosdesafiando a romper o silêncio. — Posição de sentido! Se eu vir um devocêssemoverumcentímetro,voufazercomquesearrependam!

MasFletchernão estavaprestando atenção.Umhomem tinha entradona arena e o encarava. A semelhança familiar era inconfundível. ZacariasForsyth.

ZacariasnãoeracomoFletchertinhaimaginado.Orapazvisualizaraumhomem com feições frias e tortuosas. Entretanto, o nobre era alto ecorpulento, com metade da orelha faltando e um sorriso confiante. EledescolouoolhardeFletcherparaosfilhos,queestavamladoalado.

— Ora ora, Sir Caulder, deixe que os cadetes relaxem. Haverá tempomais que suficiente para toda essa cerimônia mais tarde — comentouZacarias numa voz grave e animada. Ele desceu até a areia e abraçou osdoisfilhos,bagunçandoocabelodeTarquinedandoumbeijonorostodeIsadora.

Poralgummotivo,Fletcherficouconfusoaopresenciartalcena.PareciaestranhopensarquealguémpoderiaadorarTarquineIsadora,mesmoquefosseoprópriopai.

—Equeméesterapazrobusto?—trovejouZacarias,parandodiantede

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Fletchereoolhandodecimaabaixo,notandooscheioscabelosnegroseokhopeshemseucinto.

— É o bastardo, pai; aquele com o demônio Salamandra — afirmouTarquin,observandoooutromeninocomdesdém.

—Émesmo?—comentouZacarias,fitandoasprofundezasdosolhosdeFletcher.Osorrisopermaneceusemvacilarnorostodonobre,masorapazviu algo mudar no fundo do seu olhar. Algo sombrio e feio que lhe deuvontadedeestremecer.

—Vaiser interessanteverdoqueoseudemônioécapaz.Ora,apostoque ele poderia calcinar o ombro de um homem até o osso, se assimquisesse. — A máscara sorridente continuava lá, mas Fletcher não sepermitiuintimidarporaquelebrutamontes.

— Ele pode, e já o fez— retrucou Fletcher, com dentes trincados.—Talvezeupossalheoferecerumademonstraçãoalgumdia.

OsorrisodeZacariasvacilou,eelepousouamãonoombrodomeninoeapontouparaaarquibancada.Olugarestavaseenchendocommaisnobres,todos vestindo cores e uniformes que representavam seus batalhõespessoais.AlgunstinhamsejuntadoaZacariasnaareia,abraçandoosfilhosefalandoalto,paraairritaçãodeSirCaulder.

—Serálegalparavocêtersuafamíliaaquiparalhedarapoio.Porquevocênãodáumtchauzinhoaoseupai?

Fletcherficouparalisado.Berdonestavaali?Nãopoderiaser!Enãoeramesmo; Zacarias estava apontando para um casal grisalho, quecontemplavaomeninocomumolhardepuroódio.

—Tomeia liberdadede informarosFavershamdassuasalegações—contou Zacarias, com olhos cheios de malícia. — Até o rei demonstrouinteresseespecialnoseucaso.Afinal,vocêacusouolordeFavershamdetersidoinfielàprimadoreimaisumavez,tantosanosdepoisdetodosaquelesproblemascomArcturoeosoutrosbastardos.

—Eunãoalegueinadadisso!—enfureceu-seFletcher.—Eujamais...

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—Convidei os dois ame acompanhar e assistir pessoalmente. Esperoquevocênãoseimporte.Arcturofoimandadoparalonge,demodoanãoseencontrar comopai e amadrasta, o que fazpartedo acordodele comovelho rei. Isso deixa Rook encarregado do torneio. Um velho amigo daminha família, sabe? Tenho certeza de que ele fará um esforço dolorosoparagarantirquetudosejaomaisjustopossível.

Zacarias piscou para Fletcher e deixou a areia para se sentar com osoutros nobres,mas não antes de exibir um sorriso de tubarão a Sylva eOtelo.Fletchertremiadefúria,cerrandoasmãosempunhosapesardadorquepulsavanapalmaesquerda.

—Nãodeixequeeleafetevocê,Fletcher—sussurrouSerafim.—VamosarrasarcomosForsyth.

— Sentem-se, sentem-se todos! — trovejou Cipião, chegando pelocorredoredescendoosdegrausdaarena,seguidoporumRooksorridente.O reitor acenava e saudava generais e nobres igualmente. Conforme osespectadoresseassentavam,osilênciorecaiusobreaarena.—Enfim,maisumano,maisumasafradecadetesprontosparatestarsuashabilidadesnaarena—continuouCipião,abrindoosbraçosesorrindoparaosalunos.—Esteanoéumaocasiãobemincomum.Tradicionalmente,sóteríamosmaisou menos uma dúzia de candidatos que se enfrentariam em dueloseliminatórios e assim determinariam um vencedor. Porém, neste anoestendemosaoportunidadetantoaoscalourosquantoaosveteranos,oquenos deixa com 24 candidatos a serem avaliados. Vou deixá-los nasmãoscapazesdoInquisidorRook,quelhesexplicaráasnovasregrasdotorneio.

Cipiãoseafastouesentou-senaprimeirafiladaarena,tendocumpridoseudever.

—Muitoobrigado, reitor.Eugostariadeaproveitarestaoportunidadeparaagradeceratodosporteremvindo;seiqueseutempoéprecioso.Cadaminutolongedaslinhasdefrenteéumminutoemqueseussoldadosestãoprivados de sua excelente liderança. Para acelerar as coisas, decidi que

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haveráumabatalhatriplanaprimeirarodada,ondeapenasumcandidatoseguirá adiante para a próxima. Não será um duelo tradicional, masdetalhesadicionaisserãoreveladosposteriormente.

Houve murmúrios de curiosidade da plateia, porém nenhumadiscordância.Rookesperouqueobarulhoterminasseantesdecontinuar.

—Apróxima rodada será a eliminação tradicional entre dois cadetes,massemfeitiçosoudemônios.Historicamente,oscombatentesdotorneioraramenteseenfrentamcorpoacorpo,preferindolançarfeitiçosoudeixarqueseusdemônioslutemporeles.Pareceumapenadesperdiçartodososanosdeaprendizadodeesgrimaqueseus filhosreceberam,mesmoantesde vir à academia. Esta segunda rodada evidenciará esta importanteperícia.

Destavezhouveacenosdeconcordânciadosnobresnasarquibancadas,mas os generais pareceram menos felizes com o arranjo, franzindo oslábioseassentindo.

—Tenhoumaobjeção.Talprocedimentodáumavantageminjustaaosjovensnobres,quereceberamaulasparticularesdeesgrima—afirmouumdos generais, falando diretamente com Cipião. — Nós preferimos umaavaliaçãojustadashabilidadesdoscadetes.

—Talvezosenhorprefiraqueprejudiquemososnobres,simplesmenteporqueeles sãomaisbempreparados?— indagouRook comum tomdesarcasmo.—Elestambémnãoreceberamtreinamentoemfeitiçariaantesde chegar à Cidadela? Talvez seja melhor limitar os testes à prova dedemonologia?

Cipiãoselevantouesevoltouaogeneralquetinhafalado.—TemoqueeutenhaqueconcordarcomoInquisidorRook.Também

me opus a essa mudança inicialmente, mas logo me lembrei de algoimportante.Aguerraéinjusta;osfracosfracassameosfortessobrevivem.Seotorneiofordesequilibrado,issonãopermitiráumarepresentaçãomaisprecisadeumabatalhareal?

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—Tambémdetermineiumamedidaquepermitiráqueumnúmeroigualde nobres e plebeus sigampara a segunda fase—anunciouRook.—Asduasclassesnãocompetirãoumacomaoutranabatalhade três,poisosgruposnãosemisturarão.Issosatisfazaosenhor?

— De fato, Inquisidor. Obrigado. — O general se sentou novamente,apesardecontinuarcomocenhofranzido.

—Ótimo.Aterceiraeaquartarodadaserãoduelostradicionais,entãopresumoquenãohádiscordâncianenhumaaqui.Agora,aarenadeveserpreparadaparaaprimeirafase—afirmouRook,esfregandoasmãos.—SirCaulder!Leveoscadetesàssuascelas!

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Fletcherestavasentadonaescuridãodesuaceladeprisão,comocoraçãosaltandocomoumpassarinhoengaiolado.Eleacreditarapoderassistiràsoutras lutas, mas as regras determinavam que todos os combatentesdeveriamsermantidosisolados.Pareciaquehorasjátinhamsepassado,eaespera,comaantecipação,eraumatortura.

O rapaz fitou a própria mão, traçando as linhas negras profundasdesenhadasporAthol.Nocentrodapalmahaviaumpentagrama,aestrelade cinco pontas inscrita num círculo. Se aquilo funcionasse conformeplanejado,FletcherpoderiaevocareinfundirIgnáciosimplesmenteusandoamão,emvezdeserobrigadoaposicionarodemôniosobreumcourodeconjuração.Sónãosabiaaindamuitobemcomoissopoderiaserútilnumabatalha.

Tinha deixado o dedo indicador esquerdo em branco, para poderentalhar com ele normalmente, caso precisasse usar outro feitiço. Aspontasdosoutrosdedosforamtatuadascomosquatrosímbolosdebatalhapara telecinese, fogo, relâmpago e escudo. Com alguma sorte, ele seriacapazdedispararmanaporcadadedosemprecisarentalharoglifonoar.

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Um zumbido súbito lhe assustou quando Valens apareceu pairando,passandoporentreasbarrasdacelaepousandonocolodomenino.

— Veio assistir, capitã Lovett? — perguntou Fletcher, acariciando acarapaçalisadobesouro.

Valensbalançouasantenasezumbiuanimado.Dealgumaforma,aquilofezFletchersesentirmelhor.

—Esperoquepossaassistir.Seráótimoteralguémtorcendopormim.Ouzumbindo.

Passossoaramnocorredor,eobesourodisparou,escondendo-senumcantoescurodacela.

—Fletcher.EraSirCaulder,fitando-oporentreasbarras.—Chegouahora.

Fletcher estava sobre uma plataforma demadeira no limite da arena, decostasparaosespectadores.Umgrandecourodeconjuração jaziaabertodiantedele.Roryeumaplebeiaveterana chamadaAmberestavamsobresuasprópriasplataformas,umdecadaladoeequidistantesdeFletcher.Orapaz sentia sobre si os olhares dos Faversham, deixando-o com a nucatodaarrepiada.OolhardeRorytambémestavacarregadodemalícia,comoseoretornoàarenaofizesselembrardasupostatraiçãodeFletcher.Comum balançar de cabeça, o rapaz se forçou a ignorar tudo aquilo,concentrando-senatarefaimediata.

Ocampodebatalhatinhasidocobertoderochasgrandesepontiagudas,comoseumenormerochedovermelhotivessesidoestilhaçadoeespalhadopela areia. No centro exato, havia um pilar gigante de barro, de uns 9metros de altura. Uma trilha em espiral contornava da base ao topo dacolunacomoumaserpente,largaobastanteparaacomodarumcavalo.

Fletcherouviuumzunirquaseimperceptívelacimaeolhouparaoalto.Valenstinhaacabadodesobrevoá-lo,circulandoaarenaatépousarnotetocôncavo,misturando-seàssombras.Fletchersorriu.Lovetttinhaamelhor

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vista.—Asregrasdestedesafiosãosimples—declarouRook,dalateral.—O

primeiro demônio que alcançar o topo do pilar e manter-se ali por dezsegundos, vencerá. Vocês podemusar apenas o feitiço de telecinese.Nãopodem atacar seus colegas cadetes nem sair de suas plataformas. Se ofizerem,serãosumariamenteeliminados.Comecem!

Fletchercaiudejoelhosepousouamãonocouro,evocandoIgnáciocomumaexplosãodemana.Elepassouapedradevisãonascostasdodemônio.Odiabretesoltouumtrinadodeempolgaçãoesaltouàarenasemhesitar.

Aoseulado,AmberevocaraumPicanço,eMalaquijáestavadisparandoemdireçãoaoPilar.Rook tinhaescolhidobemosoponentesdeFletcher;demônios voadores, umpequeno edifícil de acertar, o outro grandemasdurodederrubar.Aquilonãoseriafácil.

FletcherergueuamãoeapontouparaMalaquicomumdedotatuado.—Esperoqueissofuncione—sussurroueleconsigomesmo,inundando

ocorpocommana.O ar tremulou num espaço longo e estreito, e Malaqui foi derrubado,

caindonasrochasabaixo.Tinhadadocerto!—VaiIgnácio,agora!ASalamandragalopouporentreaspedras,dardejandoparaumladoeo

outro, enquanto Rory e Amber disparavam contra ele freneticamente. Aareia entrou em erupção em volta de Ignácio. Rochas eram destroçadas,lançando fragmentos afiadíssimos como estilhaços de bombas. Quando odemôniosaltouparaaespiral,umimpactocinéticodeRoryoacertoucomforçaeoatirouparadetrásdeumafloramentorochosopróximoàbasedopilar.Fletchersentiuumlatejarabafadodedor,massabiaqueIgnácionãoestavaseriamenteferido.

OPicançojátinhasaltadoparaochão,preferindoseesconderatrásdaspedras a ser derrubado do alto. Fletcher aproveitou para colocar omonóculo,antesqueMalaquifizesseoutratentativa.

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EleviuqueIgnácioestavaescondidoatrásdeumarochacôncava,equeaespiralnãoestava longe.Porém,seodemônioSalamandracomeçasseacorrerpela trilha, ficariaexpostodemaisparaavançarobastante.Mesmoquealcançasseotopo,dificilmenteficarialáemcimaportemposuficiente.

— Temos que caçar os outros demônios, derrotá-los antes que elestenhamumachancedevoarparaoalto—murmurouFletcher,mandandosuasintençõesparaIgnácio.ASalamandrarosnouemconcordância,entãodisparouparaapedraseguinte,procurandoosinimigosdebaixoenquantoFletcherobservavadoalto.

Rory e Amber também espiavam suas pedras de visão, com o olharsaltandoentreocristaleaarenacomoorabodeumgatofurioso.Fletchersorriu,impressionadocomaimensaeficáciadomonóculo.Eleaindapodiaver com os dois olhos, apesar de ter uma imagem fantasmagórica earroxeadasobrepostaaoladoesquerdodavisão.

Ignácio ficou completamente imóvel. O Picanço estava à frente dele,silenciosamente agachado sob a beira de uma grande rocha. Era umPicançopequeno,maisoumenosdotamanhodeumaáguiacrescidaalémdaconta,mastinhaumfísicopoderoso,complumagembrilhanteegarrasferozes.Ignácioeracapazdederrotá-lo.

— Fogo— sussurrou Flethcer, sentindo omana se agitando em suasveias.

OPicanço foipegonumredemoinhode fogo, sendo lançando contra aface de uma rocha. Ele crocitou e agitou as asas,mas Fletcher o golpeoucomumimpactocinético,jogando-oaochãoantesqueseerguessenoar.

— Hoje vai ter peru assado! — gritou Cipião, enquanto a plateia aomesmotempocomemoravaevaiava.

Ignácio saltou sobre o Picanço fumegante, atacando-o freneticamentecomasgarrase ferroando-ocomacauda, comoumescorpião.OPicançoretribuiu com uma gadanhada, rasgando o flanco do diabrete. ASalamandra guinchou de dor e então empinou-se, pronto para disparar

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maischamascontraaave.— Não! — gritou Amber, saltando da plataforma. Ignácio se deteve,

espantado com o barulho. — Não o machuque! Não o machuque! —exclamouela,jogando-sesobreacabeçadoPicanço.

—Jáchega,Ignácio.Elesestãoforadotorneio!—gritouFletcher.Masorapaznãoeraoúnicoqueestavagritando.Amultidãoatrásdele

urrava,eFletcherviuqueMalaquiestavanotopodopilar,espiandosobreabordaoposta.

Ignácio já corria em direção à coluna, mas não chegaria a tempo.Fletcherdisparouum impacto,mas só conseguiu soprarapoeira sobreopilar.Oângulonãoera favorável.SeriaummilagreseeleconseguisseatémesmopegarMalaquideraspão.

—Dez,nove,oito...—gritouRook.Fletcherprecisavafazeralgodrástico.Deixouapróximaboladeenergia

cinética crescer até o tamanho de uma toranja, cerrando os dentesenquantoabombeavacommana.

—Sete,seis,cinco...—continuouRook,malescondendosuaalegria.Fletcheruivou,erguendosobreacabeçaaesferaqueseexpandia.Sentia

oaracimadesisedistorcerevibrar.Elehesitou,comoolharfixonafigurafrágildoCaruncho.

—Quatro, três, dois...— O ritmo se acelerou; Rook percebia o que omeninoestavaprestesafazer.

Fletcherlançouabolaatravésdaarenacomtodaasuaforça.Otopodopilarsedestroçoucomoporcelana,arremessandoMalaquiparalongenumturbilhãoestrondosodepoeiraefragmentosdepedra.

—Nãããããoooo!—gritouRory,saltandodaplataformaeseajoelhandonaareia.EscavouocorpoferidodoCarunchodeondeelejazia.Obesourose debatia e estremecia, as seis pernas em convulsão. Rory soluçava,desesperadamentetentandoentalharumfeitiçodecuranoar.

— A dama Fairhaven vai cuidar dele— anunciou Cipião, enquanto a

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plateia começava a murmurar em solidariedade. Fairhaven correu e seajoelhou ao lado domenino. Ela entalhou o símbolo do coração no ar ecomeçouafluirluzbrancasobreodemônioferido.

—Seumonstro!—berrouRory.—Eleestámorrendo!Fletchersentiuoestômagorevirarquandoviuumamanchadesangue

escuronaareiaondeoCarunchotinhacaído.—Vamoslá—chamouSirCaulder,segurando-opelobraço.—Nãohá

nadaquevocêpossafazerporeleagora.—Mesolte!—gritouFletcherenquantoeraarrastadoporSirCaulder.

—Malaqui!

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Destavez,Fletcherfoiconfinadonumacelamaior.Eraigualmenteescuraedesagradável,maseleficousurpresoaoencontrarOteloeSylvanasoutrascelascombarrasde ferroao ladodasua. Ignáciochilreoucomalegriaaovê-los.

—Vocêconseguiu!—exclamouSylva,erguendo-senumsaltoesorrindoparaele.

—Roryquasemevenceu.EracomoseodesafiotivessesidoprojetadoparaCarunchos.—Fletcherencarouochão.Aindasesentiaculpado,esuamentesevoltavasempreaRoryeMalaqui.Aimagemdaareiamanchadadesangueressurgiuderepente,eelesentiuumaondadenáusea.

— E foi projetado para Carunchos. Você não vê o que Rook fez? —resmungou Otelo, segurando as barras que os separavam.— Ele queriaeliminartodososplebeuspoderososlogonocomeço,eassimfezcomquefosse mais fácil para os mais fracos nos vencer. Se o plano dele tivessefuncionado, os nobres estariam enfrentando Rory, Genevieve e algunsplebeus veteranos comCarunchosnapróxima rodada.Rooknão separouplebeusenobresnaprimeirarodadaparaser justo;ele fez issoparaque

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ficassecompletamenteinjustoparanós!— Bom, ainda bem que ele nos subestimou— respondeu Sylva, com

umaexpressãodedeterminaçãoseveranorosto.—EsperoqueSerafimseclassifiquetambém.ViqueeleestavaparaenfrentarAtlaseumveterano,quandoelespassarampelaminhacela.

—AchomelhortorcermosparaTarquineIsadoranãoseclassificarem.Sóque,comRookdecidindocomquemelesvãolutar,achopoucoprovável—resmungouOtelo,sombrio.

— Então, o que vem agora?— indagou Fletcher, observando Ignáciolamber a feridano flanco e seperguntando sedeveria tentar o feitiçodecura.—Rookfaloualgumacoisasobrelutacomespadas.Atholfezofavordeafiarmeukhopeshontemànoite.Masoquenósvamosfazer,cortarumaooutroatéquealguémdesista?

—Não, perguntei a Cipião como seriana semanapassada—explicouOtelo.—Ofeitiçodebarreiraprotegeapeledoscortes.Écomoumescudomuitoflexívelqueenvolveseucorpo.Osgolpesaindadoemdemais,masocorte é contido, como se você estivesse apanhando com uma barra demetal. Uma vez que Rook julgar que você acertou um golpe mortal ouincapacitante,vocêseráproclamadoovencedor.

—Rookdenovo.Bem,pelomenoselenãopodeserinjustodemaiscomtodo mundo assistindo — resmungou Fletcher, coçando o queixo deIgnácio.

— Esperem aí, eu nunca ouvi falar nesse feitiço. Por que nós nãoaprendemosausá-lo?Seiqueosorcscostumamusararmasdeimpactoenão de corte, de qualquer jeito, mas isso certamente muda tudo! —exclamouSylva.

—Porquevocêprecisadepelomenosquatroconjuradorespoderosospara fornecer umabarreira forte o bastante—explicouOtelo.—Algunsdosnobresterãoquefundirseumanaefornecerumatorrenteconstanteavocê durante a batalha inteira. Fora de torneios, o feitiço quase nunca é

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usado.Excetoquandooreiestánocampodebatalha,éclaro.— Entendi. Bem, vamos torcer para que funcione; não estou muito

interessadoemperderacabeçaestanoite—comentouFletcher,chamandoodiabreteparaseucolo.

— Aqui, deixe-me curar Ignácio — murmurou Sylva, percebendo ohumordeFletcher.

—Não,vocêvaiprecisardetodoseumanaparaderrotarosForsythnaterceira e quarta rodadas. Ele vai ficar bem — respondeu o rapaz,desejandoser capazde fazerum feitiçode curapor si só. Infelizmente,oglifo respectivo era geralmente muito instável, e Fletcher estava muitolongededominá-lo.—Deixaeudarumaolhada—disseFletcherparaodemônio,erguendoIgnácioparamaispertodorosto.

Oarranhãoerasuperficial,bemmaisdoqueeletinhaesperado.Defato,pareciaestardesaparecendodiantedosolhosdele.Orapazficousentado,observando com espanto cada vez maior conforme o corte se selavagradualmente.

— Caramba — murmurou Fletcher. — Você é uma caixinha desurpresas.

Ignácioronronouquandoomeninotraçouapelenovacomodedo.—Temalguémchegando—anunciouOtelo,voltandoparao fundoda

cela.SirCaulderapareceu,conduzindoSerafim,quepareciabemfeliz.—Aindanãoentendoporqueosmantêmnessascelascomoumbando

decriminosos—resmungouSirCaulder,destrancandoacelaemfrenteàdeFletcherparaSerafim.—Omínimoqueeuposso fazeré lhesofereceralgumacompanhia.

—Vocêsabequemvailutaremseguida?—perguntouFletcher.—Sei.Parecequenenhumdosveteranospassouparaapróximarodada.

OsparessãoSerafimeTarquin,Sylvae Isadora,OteloeRufus,FletchereMalik.Todosvocêsvãotermuitadificuldadeparavencer.Especialmenteno

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seu caso, Fletcher; a sua luta é a primeira, eMalik foi treinado pelo pai.Virei buscá-lo num instante, eles estão organizando voluntários para abarreiradoseuoponente.

Ele saiumancando, ainda resmungando, como toquedapernadepauecoandonocorredor.

—Olha, senós jáodiamosestascelas, imaginemcomoaquelesnobresmetidosdevemestarsesentindo—comentouSerafim,animado.

—Presumoquevocêtenhavencido,então?—perguntouFletcher.— Claro que venci. Farpa nocauteou Bárbaro com alguns espinhos

venenosos do dorso dele. Atlas não ficou nada feliz! O Caruncho doveteranosóficouescondidoembaixodeumapedraatétudoacabar.Quemquer que tenha participado da batalha anterior fez uma belo estragonaquelepilar!Metadedacolunaestavaemruínasquandochegouaminhavez, sem falar no estado do Caruncho de Rory! Deixou aquele veteranocompletamenteapavorado,semdúvidaalguma.

— Está tudo bem com Rory? — indagou Fletcher, sentindo outrapontadadeculpa.

—Elepareciabeminfeliz.Malaquiaindaestavasendotratadoquandoeuovipelaúltimavez.Osperdedoressesentamcomaplateia,entãovocêlogoveráporsipróprio.Teremosumabelaaudiêncianapróximarodada,podemtercerteza—afirmouSerafim,aindasorrindo.

— Você e Sylva precisam vencer Isadora e Tarquin. É por isso queestamos aqui. Foi por isso que eu quasemateiMalaqui. Agora comece alevarissoasério—ralhouFletcher.

—Desculpa.Eunãoquisdizer...Ouviu-sedenovooecodospassosdeSirCaulder,deixandoatodosnum

silêncionervoso.—Venha,Fletcher,vocêéoprimeiro—afirmouo instrutornumavoz

ranzinza.O instrutor destrancou a cela e, com um último olhar para os outros,

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Fletcheroseguiu.— Lembre-se do que falei, Fletcher. Isto não é uma corrida, não é

emocional.Suacarreiraéaguerra,etudoistosãoapenasnegócios.Maliksabe o quanto é impaciente, que suas emoções podem lhe atrapalhar.Ótimo, deixe que ele pense que vai se comportar assim. Use isso ao seufavor.

Comessaspalavrasdedespedida,SirCaulderoempurrouparaaarena.—Ah,Fletcher.Precisodizer,ficamosmuitoimpressionadoscomoseu

desempenhonaúltimabatalha;surpreendeuatodos!—Colocandoamãoem suas costas, Cipão o guiou para a arena cheia de rochas. —Entalhamento incrivelmente rápido, nemvi seudedo semexer.Quanto àsuaSalamandra,masqueespetáculo!Tenhocertezadequeumaprimeira-tenência é uma possibilidade real, se um dos generais vir o mesmopotencialqueeuvejo!

Fletchermalouviuodiscurso, fitandoo rostomarcadode lágrimasdeRoryenquantoomeninoabraçavaMalaquijuntoaopeito.Odemôniobatiaasasasfracamente,maspareciaestarvivo.OalívioinundouFletchercomoumadroga.

—Rory,eleestábem?—gritouaooutroladodaarena.—Não, e graçasavocê—gritouRorydevolta.Adoremsuavozera

óbvia,masnãohaviaraivaverdadeiraali;apenasresquíciosdemedo.— Me desculpe, Rory — implorou Fletcher, mas o outro lhe deu as

costas,ocupando-sedodemônioferido.Apesar disso, Fletcher se sentiamuitomelhor.Malaqui ia ficar bem, e

issoeraaúnicacoisaqueimportava.Rorymudariadeideia.FoisóquandoeleviuMalik,decimitarranamão,quedesaboudevoltaà

realidade.— Preciso de voluntários para produzir o feitiço de barreira para o

cadeteWulf—declarouCipiãoàplateia.— Serámeu prazer— bradou Zacarias Forsyth.— E acredito que os

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Faversham também estão ansiosos para ajudar. Inquisidor Rook, você sejuntariaanós?

FletcherempalideceuenquantoosFavershameZacariasdesceramatéabeiradaarena.Ocasalnãosedeuaotrabalhodeesconderoódioemseusolhos. Cipião ia mesmo deixar que eles ficassem responsáveis pela vidadele?

O reitor pigarreou diante de um estardalhaço e os olhou, parecendodesconfiado.

— Por mais que eu respeite sua boa vontade em ignorar as…complexidades entre vocês e Fletcher, lorde e lady Faversham, precisoinsistirparaqueRookpermaneçaconcentradono julgamentodo torneio.Não,euassumireiessaresponsabilidade.

—Mas,milorde— gaguejou Zacarias.—O senhor está… aposentado,nãoestá?

— O rei foi generoso e me enviou um pergaminho de conjuração nanoite passada. — Cipião criou um fogo-fátuo e depois o apagou com opunho.—SuaMajestadeacreditaquesereinecessárionafrenteórquicaembreve,equefiqueiemlutoportempodemais.Estouinclinadoaconcordarcom ele. Preciso deixar para trás a morte do meu primeiro demônio,ocorridahátantosanos,eseguiradiante.MeunovofilhotedeFelídeoaindaestá se desenvolvendo, mas tenho certeza de que, com a ajuda de umconjuradortãopoderosoquantovocê,ficaremosbem.Agora,nãoligueparanós, Fletcher. Você sentirá um leve formigamento na sua pele,mas é só.Vamoscuidardetodooresto.

Os quatro magos de batalha deram as mãos e Cipião começou adesenharumglifocomplexonoar.

—Váemfrente,Fletcher—disseoreitor.—Malikestáesperando.

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OkhopeshestavaescorregadionamãodeFletcher.EletentounãopensarnoquepoderiaacontecerseZacariasouosFavershamdecidissemcortaromananomomentoerrado.Umacidentetrágico,eraoqueelesalegariam.

—Vamoslá,Fletcher,nãotemosodiainteiro—zombouRook,indoatéocentrodaarena.—Temosmaistrêsbatalhassónestarodada.

FletcheroignoroueinstruiuIgnácioasesentarnaarquibancada,longedabatalha.Seodemôniointerferisse,elesseriamdesclassificados.

— Comecem! — declarou Rook, fazendo uma mesura exagerada aoscompetidores.

Fletcher deu alguns passos à frente, tentando se aclimatar à novapaisagem.Tinhamsidotreinadosnaareiaplana,masagoraaarenaestavacobertaderochaspontiagudasedestroçosdaprimeirarodada.

Enquanto Fletcher circulava, Malik permanecia parado como umaestátua, observando-o. O jovem nobre tinha escolhido bem sua posição,uma área cercada por pedras soltas, nas quais um atacante poderiatropeçar.Fletcherdecidiuquenãopermitiriaaoadversárioescolherolocaldocombate.

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Emvezdisso,eleolhouparaa torre,comsua trilhaespiralatéo topo.Lembrou-sedoqueOtelotinhadito,sobrecomoosanõesconstruíamsuasescadarias numa espiral no sentido anti-horário, para que o braço daespada dos atacantes ficasse atrapalhado pelo pilar quando lutavamdescendo.Pelamesma lógica,umatacante ficaria igualmenteatrapalhadonumatrilhanosentidohorárioquandoestivessemsubindo!

Fletcherdisparouatéopilaresubiupartedocaminho.AindadeolhoemMalik, ele manobrou até ficar logo abaixo do toco partido que ele tinhadestroçadoalgunsminutosantes.

— Venha atémim, se ousar!— desafiou Fletcher com um grito, paradeleitodosespectadores.

—Não vou enfrentar vocênopilar, Fletcher.—A vozdeMalik soavacalmaeconsiderada.—Porquevocênãodesceemeencaranomeio?Emcamponeutro?

Mesmo que a falta de paciência supostamente fosse a fraqueza deFletcher, ele esperaria até que Malik se aborrecesse. O rapaz não seimportavanemumpoucocomoqueosgeneraisenobrespensariamdele.MasMalik ligava.Seosdois ficassemnaquele impasseportempodemais,as reputaçõesdeambos ficariamarruinadasaosolhosdaaudiência.E, sereputaçãoeraoquepreocupavaMalik,Fletcherusariaissoaoseufavor.

—EntãoofilhodograndeBaybarsserecusaalutar!TalvezosfilhosnãopuxemaospaisnafamíliaSaladin.

Malikseofendeucomaspalavrasdoplebeu,dandoumpassoraivosoàfrente.

— Um Saladin luta em qualquer momento, em qualquer lugar. Jálutamos do deserto às trincheiras, nas selvas mais profundas das terrasórquicas.Duvidoquevocêpossadizeromesmodasuafamília.

— Então prove! Venha me mostrar o que um Saladin pode fazer —provocouFletcher,girandookhopeshcomfalsaconfiança.

Malik não precisou de mais provocações. Ergueu a cimitarra curva e

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subiuatrilhaempassadaslongasecalculadas.Mesmofurioso,orapazeraum espadachim nato. Fletcher esperava que o pilar lhe desse vantagemsuficiente.

O primeiro golpe veio assoviando pelo canto, tentando lhe cortar aspernas.Fletcheroaparounacurvadokhopesheovirouparaolado,antesdeinvestircontraacabeçadeMalik.Onobreseabaixou,deixandoaarmasechocarcontraopilar.

Malik seafastouumpoucoeavançoucontraelediretamente, fintandoumcortetortoemvoltadopilarcontraacabeçadooponenteeemseguidaatacandonovamenteaspernas.Fletchersaltou,deixandoacimitarrasibilarsob seus pés. Aterrissando agachado, ele socou e acertou Malik nabochecha,fazendoonobrerecuaralgunspassos.

Os dois se encararam com raiva, ofegando. Fletcher tinha sentido alisurasedosadabarreiranosoco.Passouapalmanaprópriamãoesentiuomesmo, só que com muito menos intensidade. Provavelmente apenasCipiãocanalizavamanacorretamenteparaofeitiço.Elerelegouaquiloparaofundodamente.Nãohavianadaquepudessefazer.

Acimitarraerabrandidadeumladoaooutro,seguradacomlevezapelamãodeMalik.Nãoeramuitodiferentedeumkhopesh,comalâminacurvaeapontaafiada.Comumgestodopulso,Malika lançoudamãodireitaàesquerda.

—Meupaimeensinoualutarcomamãoesquerda.SeráqueSirCaulderjálheensinouisso?—rosnouonobre.

Fletcher o ignorou, mas suor frio lhe escorreu pelas costas. Com acimitarra na mão esquerda de Malik, o pilar não era mais uma barreiraentreeles.Aindaassim,pelomenoseletinhaavantagemdaposiçãomaiselevada.

MalikestocoucontraoestômagodeFletcher,queaparouogolpecomacurvadokhopesheforçouacimitarraaochão.Eles lutaram,peitocontrapeito,comatrilhademadeirarangendosobseuspés.

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FletchersentiaohálitoquentedeMalikemseurostoenquantoonobreusava suaalturae forçaparaalavancara lâminanadireçãodavirilhadeFletcher.Ele fezumesforçoparaempurrar,masaespadado inimigomalestremeceuenquantolentamentecontinuavasubindo.

Omenino sentiu a ponta da cimitarra raspando o lado interno da suacoxa. Era sangue o que escorria pela perna? A lâmina estava a poucoscentímetrosagora.Empoucossegundos,seriacravadanasuacarne.

Fletcher viu a própria vida passando diante dos olhos; imagens deBerdon, Didric, Rotherham. Sua primeira briga. Rotherham dando umacabeçadaemJakov,umsujeitoduasvezesmaiorqueele.

A ficha caiu.Fletcherolhouparao teto,depois lançoua cabeçaparaafrente, acertandoMalik no nariz com a testa. O nobre cambaleou e caiu,agitandoosbraços,paraolado.

Malik quicou numa rocha pontiaguda, que o acertou diretamente nabarriga.Ficoucaídonaareia,ofegandocomoumpeixeforad’água.

—Umgolpemortal!Arochaoteriaempalado—gritouFletcher.—Nãonaminhaopinião—retrucouRookcomumacaretadedesprezo.

—Nãoparecetãoafiadaassim.Viu,elejáestáselevantando!De fato, Malik estava quase de pé. Ele encarou Fletcher com raiva,

respirandofundo,mascomdificuldade.—Desista!Vocêestáferido,eeutenhooterrenoelevado!—implorou

Fletcher.Maliknãoofaria,porém.Fletcherotinhaprovocadodemais,feridoseu

orgulhoalémdaconta.Ojovemnobreergueuacimitarracomumrugidoegolpeou o pilar. O estardalhaço do metal foi alto, mas Fletcher viufragmentosdebarroespirrando.

Malikgolpeoudenovo,destavezcommaissucesso.Grandespedaçosdeargilavermelhacederam,eaplataformabalançousobospésdeFletcher.

—Desistavocê!—gritouMalik.Masnãohouve temposequerparaumarespostadeFletcher.Comum

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estalo, o pilar começou a desabar, finas rachaduras se espalhando pelacolunacomorelâmpagosbifurcados.

Com apenas segundos de sobra, Fletcher saltou do topo, rezando porumaaterrissagemsuave.Enquantoelerolavaeficavadecócorasnaareia,opilardesmoronouaoseulado,lançandoumturbilhãodepónoar.

Elenãoconseguiavernada;opóvermelhorecobriaseuslábioselíngua.Era difícil respirar. Uma sombra passou pela sua esquerda, depois peladireita.SeriaRook?OuMalik?

Subitamente,seuoponenteirrompeudanévoarubra,gritandodefúria.Ele golpeou forte para baixo, mas Fletcher se esquivou para o lado,sentindo a lâmina pegar seu antebraço de raspão. Malik desapareceu denovo,misturando-seàpenumbraferruginosa.

Fletcherolhouparaobraço.Sangrava,maserasóumarranhão.Agorasabia: aquilo era para valer, a barreira era inútil. Bastaria um lapso deconcentração,eeleestariamorto.

O menino girou, procurando a sombra mais uma vez. Um vulto semoveu,foradoalcancedasuavista.Fletcherestreitouosolhos,observandoa figura embaçada erguer o braço. Uma pedra veio voando do nevoeiro,acertando-o bem na testa. Ele viu estrelas e caiu estatelado no chão,encarandoapoeiraflutuante.

Fletcher sentiu dificuldade em se manter consciente, apagando eacordandoenquantoasbordasdasuavisãoescureciam.Seria tão fácil sepermitirdesmaiar.

Uma dor excruciante explodiu na palma da mão dele, trazendo-o devolta do abismoda inconsciência.Deixou a cabeça cair para o lado e viuValens,mordendosuamão.Fletchertossiuechacoalhouamão,tentandosesoltardasmandíbulasdele.Obesourodeumaisumamordiscadaeenfimdisparoupoeiraadentro,tendocumpridoseupapel.

Fletchercomeçouaselevantar,masokhopeshlhefoichutadodamãoeumpépressionousuagarganta.

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—Vounocautearvocê,Fletcher.NinguémdesrespeitaosSaladin.—Avoz de Malik soou baixa, como se Fletcher a escutasse de uma grandedistância. Ele precisava de ajuda. Ignácio?Não, ele também estavamuitolonge.

Suamãobuscouumapedra,qualquercoisa,massósentiuareia.Malikergueu a espada, seus dentes incrivelmente brancos contrastando com apoeiravermelhaquerecobriaapele.Conformeopócomeçavaaassentar,Fletcherpôdeveraplateia.Osgritosdeempolgaçãobeiravamahisteria.

—Boanoite,Fletcher.Fletcher lançouumpunhadodeareiacontraorostodeMalik.Onobre

gritou e girou para longe, temporariamente cego. Fletcher se levantou,instável,ecomsuaúltimareservadeforça,investiucontraMalik,jogando-onochão.Houveumbaquequandoacabeçadonobresechocoucontraapedra,seguidodesilêncio.

Os dois ficaram ali caídos por um tempo, a poeira baixando ao redorcomoumcobertormorno.Eraserenoficardeitadonaterra.Elemalsentiuasmãos que o ergueram para que ficasse de pé, ou o copo de água quelevaramaos seus lábios. Porém, ouviumuito bemas palavras queCipiãogritava.

—Fletchervenceu!

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52

—Nãovouconseguir,Fletcher.Teráqueservocê—implorouOtelopelasbarrasdacelavizinha.

O anão estava determinado. Sir Caulder tinha acabado de lhes contarque eles enfrentariam um ao outro na semifinal, e Otelo estava serecusandoalutar.

—Não,Otelo.Useimanademaisnaprimeirarodada.Nãosereicapazdevencer—respondeuorapaz.

—Bom,muitomenos eu;Rufusquebrou aminhamalditaperna!Tivesorte em vencê-lo, no final das contas— retrucou o anão, apontando acanela, que tinha sidoenfaixadaeposta em talas.—Napróxima rodada,voume render e deixar que você vá à final. Se tivéssemos que lutar umcontra o outro, você provavelmente me derrotaria a esta altura, dequalquer maneira. Se eu me desclassificar, não vai ter que usar mananenhumnaterceirarodada.

—PorquenãopedeàdamaFairhavenquecureasuaperna?—indagouFletcher.

—Ofeitiçodecurasófuncionaemferimentosnacarne,lembra?Sevocê

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começarasemeteracurarossos,elessesoldamtortos.Podeacreditar,euperguntei.QueroumachancededarumasurraemTarquin tantoquantovocê,talvezaindamais,masseiqueeunãoteriaamenorchance.

— Olha, talvez não faça a menor diferença no fim — argumentouFletcher,mostrandoumacelamaisadiante.—TarquinpodeterderrotadoSerafim, mas Sylva venceu Isadora. Sylva e Tarquin estão lutando agoramesmo para ver quem vai à final. Se ela vencer, eume rendo. Os anõesprecisam que um representante do seu povo seja um dos finalistas; vaiimpressionarmais os generais. Posso dizer que tenho uma concussão, eseriaquaseverdade,dequalquermaneira.

Eleesfregouocortenacabeça,ondeapedraacertara.Oferimentotinhaquasesidoumabênção,decertaforma.QuandoCipiãoviuapelelacerada,ele percebeu imediatamente que houve trapaça. O reitor sugeriu queZacarias e os Faversham descansassem e os substituiu com nobresmaisimparciais, que protegeriam Fletcher de maneira adequada na próximaluta.

Algo retumbouna cela deOtelo. Salomão estava grunhindode aflição.Eleperambuloupelacela,emseguidaparouparatocaratalanapernadeOtelo. Ignácio trilou em solidariedade, lambendo o rosto do dono com alínguamolhada.

—Vou ficarbem, Ignácio.Tarquinnãosabedas tatuagens.Elevainossubestimar—sussurrouFletcher.

Sir Caulder bateu com o cajado nas barras da cela, fazendo Fletcherpular.

—Venham,vocêsdois.Abatalhaacabou.—Sylvavenceu?—indagouFletcherenquantoSirCaulderdestrancava

ascelas.— Veja por conta própria — respondeu o velho soldado num tom

sombrio.DamaFairhaveneCipiãotransportavamSylvanumamaca.Seusbraços,

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pernas e rosto estavam cobertos de hematomas negros e azulados, e elatinha um galo terrível na lateral da cabeça. Sariel cambaleava atrás dela,com o rabo entre as pernas. O pelo dela estava manchado de sangue, ehaviaumarranhãofeionoseuflanco,quecorriadofocinhoàcauda.

—EleacertouSylvacomumimpactocinético—explicouCipiãoaoveros rostos preocupados dos rapazes.— Ela caiu de mau jeito. Ainda nãosabemosagravidadedoestrago.

—Pobremenina,tevequeenfrentarosdoisgêmeos,umdepoisdooutro— comentou a dama Fairhaven, balançando a cabeça.— Ela usou quasetodoseumananaprimeirarodada,edepoisprecisoude todaasua forçafísica para derrotar Isadora, então estava exausta quando enfrentouTarquin.Elaresistiubravamente,porém.Ninguémvaisairdaquiachandoqueoselfos são fracos—concluiuaenfermeira, comavozcarregadadesolidariedade.—Comumferimentodessesnacabeça,nãoésegurousarofeitiço de cura, especialmente se ela tiver sofrido um traumatismocraniano.Vamosdeixá-ladescansaraoladodacapitãLovett.Seelaacordar,avisaremosavocês.

Fletchercerrouospunhos,fitandoocorpoferidonamaca.—Vamoslá.Ele ajudou o anão a mancar até a arena. Ele se lembrou de quando

apoiou Átila damesmamaneira; lembrou-se do sangue que escorria porsuascostasenquantoocarregava.AslágrimasnorostodeOteloaoverqueestavam vivos. Os Forsyth estavam no centro de tudo aquilo, como umaaranhagordanomeiodeumateiadementiras.Fletcher ia fazê-lospagarpeloquetinhamfeito.

Otelo mal conseguia ficar de pé quando chegaram à arena. Seu rostoestavaesverdeado,comgotasdesuorsalpicando-lheatesta.Oanãotinharazão;elenãodurariadoissegundosnumalutacomTarquin.Fletchereraaúnicaesperançadelesagora.

—As regras são simples—declarouRook, caminhando entre os dois

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cadetes.—Demôniosnãopodematacar conjuradores, jáqueo feitiçodebarreira é ineficaz contra ataques demoníacos.MeuMinotauro ajudará amantersuascriaturaslongedeseusoponentes,casoelasseempolguem.

Foi aí queFletchernotouomonstro comcabeçade touroespreitandodetrás do pilar caído. Tinha 2,10 metros de altura, com chifres curvosafiados e pelagem crespa tão negra quanto os cabelos do menino. Seuscascos fendidos deixavam sulcos redondos na areia conforme a criaturaandavadeumladoaooutro,comosemalconseguissecontersuaraiva.Asmãos seriam idênticas às de um homem, não fossem as garras negras egrossas que se estendiam dos dedos. Um par de olhos avermelhadosencararamomeninocomódio,entãooMinotaurosevirou,borrifandooarcomumafungadadedesprezo.

—Sim, ébelo espécime,nãoé?—RooknotouoolhardeFletcher.—Calibantemumnívelderealizaçãodeonze,entãodevesercapazdeconterqualquerdemônioteimososemdificuldades.Vocêsforamavisados.

O Inquisidor continuou falando, dando a volta na arena, com asmãosunidasàscostas.

—Seumdevocêssairdaarena,perde.Seoseudemôniofornocauteadoou sairda arena, vocêperde. Sevocêmatarodemôniodo seuoponente,serádesclassificadoetambémexpulso.Nãolutamosatéamorteaqui,eosdemônios são um recurso precioso. Então, avisem para que sejamcuidadosos.Elespodemferir,masnãoaleijar.Elespodemmachucar,masnãomatar.

—Equantoanós,podemosmatar?—zombouTarquin,da lateral.Eleestavasentadonumadasplataformasdesmanteladas,acariciandoumadascabeçasdeTrébio.

— Não, continuam valendo as mesmas regras da sua última batalha,mestre Tarquin— respondeu Rook, sorrindo para o jovem nobre.— Sevocêacertarumfeitiçoougolpepoderosoosuficienteparaserconsideradoumgolpemortal,vencerá.O feitiçodebarreira impediráquevocêssejam

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eletrocutados,queimadosoucortados,entretantoaindasentirãomuitadorseforematingidos;comoeuseiquevocêestáciente,Tarquin,depoisdeteracabadocomaelfa.

—Sim,eladefatopareceuestaragonizandodetantador—comentouojovemnobre,comumsorrisozombeteiro.—Porémeulogoacabeicomosofrimentodela.Soutãogeneroso.

—Estábem,vamosacabarlogocomisso—resmungouFletcher,entredentes.Otelojáestavamancandoparaalateraldaarena.

—Comecem!—bradouRook.Fletcher sorriu para Rook e observou enquanto Otelo saía da arena e

caíaparaochão.—Ah,não—gritouTarquindeformaexageradamentedramática.—Eu

estava torcendo tanto para poder lutar contra o meio-homem. Derrotardoissub-humanosnumsódia,issosimteriasidoumprivilégio.

—Calesuabocaimundaevenhameenfrentar,Tarquin.Vamoscomeçarcomafinal,agoramesmo.

Tarquinrevirouosolhosedesceuparaaarena.—Ah,muitobem,vamoslogocomisso.—As barreiras estão erguidas?— indagou Cipião, erguendo uma das

mãos.—Estão,reitor—respondeuumnobredaplateia.—Nesteca...—Comecem!—berrouRook.Tarquin já estava lançando bolas de fogo antes que Fletcher tivesse

sequerouvidoavozdeRook.Omeninoseabaixouatrásdeumarochabematempo,sentindoocalorquandoumdosprojéteischamuscou-lheocabelo.

—Ignácio,esconda-se!—sussurrouFletcher,mandandoaSalamandraemdisparadaparaomeiodamontoeiradepedras.Trébioeraumdemôniopoderoso, mas uma bola de fogo bem posicionada de Ignácio poderiaacabar com a batalha imediatamente. O diabrete só teria que evitar as

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cabeçasserpentinas.Umabolacinéticasechocoucontraarocha,esfarelandooladoopostoa

Fletcher.—Venha,Fletcher,querobrincar—bradouTarquin.—Euestavasómeaquecendo—bradouogarotodevolta,ativandoum

escudo oval com um impulso de mana. Sentia suas reservas sendodrenadas,esabia,graçasaosestudos,queHidrastinhamníveismuitoaltosde mana. Se ele e Tarquin se enfrentassem golpe a golpe, a luta nãoacabariabem.

Fletcher rolou de trás da rocha, disparando para a cobertura do pilarcaído. Seu escudo rachou ao ser atingido por uma bola de fogo, masfelizmente foi uma das pequenas, sem amenor chance de derrubá-lo nochão.

—Equetalestaaqui?—provocouTarquin,lançandoumasegundaboladefogoàscostasdeFletcher.

Esta se chocou contrao escudo comoumaríete, jogandoo rapazparalonge. Enquanto ele lutava para se levantar, Tarquin acertou mais uma,derrubando-onovamentenosolo.

—Qualé;acheiquevocêfossedeixaressabatalhainteressante—riuonobre enquanto Fletcher se encolhia atrás de uma pedra.—Pelomenosfaçadurarumpoucomais.Trébio,encontreaSalamandra.Euqueroferir!

Fletcher aproveitou a oportunidade para colocar o monóculo. Ignácioestavadooutroladodaarena,tentandoseesgueirarportrásdeTrébio.Atarefaeraquaseimpossível,comtrêscabeçascobrindotodososângulos.

— Parte para cima, Ignácio — sussurrou Fletcher. — Você consegueacabarcomele.

ASalamandradisparou, correndoemdireçãoàHidra. Saltoudepedraem pedra, evitando as cabeças que tentavam mordê-lo com intençõesmalignas. Com uma última investida, Ignácio deslizou para debaixo deTrébio, liberandoumtornadodechamascontraoventredesprotegidoda

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Hidra.Trébio rugiu quando as chamas lhe queimaram a carne. Ele girou e

pisoteou,masIgnácioeratenaz,dardejandoporentreasgarrasdançantesechicoteandoodemôniocomlínguasdefogo.

—Jáchega!—rugiuTarquin,apontandoodedoparaosdemôniosquelutavam. Uma bola cinética voou sob Trébio, jogando Ignácio de cabeçapara baixo no centro da arena. O diabrete ficou ali caído, como umbrinquedopartidonochãodeumquartodecriança.

—Acreditoqueestapartidaestejaencerrada.—Rook riuenquantooMinotauroperambulavaatéIgnácioeocutucavacomocasco.

—Issomesmo!—gritouZacariasdaarquibancada.Trébio sibilou, pisando firme até o demônio caído. Parou a ummetro

dele,baixandoastrêscabeçaselançandosuaslínguasbífidassobreovultodeitado.

Mas Fletcher não sentia tristeza nem desapontamento. Ele captava amentedaSalamandra,suasintenções.

—Issomesmo,Ignácio—murmurouFletcher.—Lutesujo.Combatedecavalheiroséparacavalheiros.

Fletcherabsorveuoescudodevoltaparaseucorpo.Comamanobraqueestava prestes a fazer, teria apenas uma chance de acertar. O plano iacontratudoqueArcturolhesensinarasobreduelos,maseraumriscoquevaleriamuitoapena.

—Muitobem,Tarquin.Vamosveroquevocêachadeseratingidopelostrês feitiçosdeumavez—sussurrouFletcher,energizandoos trêsdedoscomfeitiçosdeataque.—Esperoquevocêestejapronto,Ignácio.

Ogarotoselevantounumsaltoesaiucorrendoatodaavelocidadepelaarena. Ignácio ganhouvida comumberro, saltandoparao alto comumaondadefogotrovejante.

A Hidra urrou e se empinou sobre as patas traseiras, em seguidadesabou sobre Ignácio com força letal.Uma fraçãode segundo antesque

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fosse esmagado, o diabrete se dissipou em luz branca, infundido pelopentagramanapalmadeFletcher.

Percebendo o que o outro tinha feito, Tarquin ergueu um escudoapressado.Ebematempo,poisorapazlançouumaespiralderelâmpago,fogo e energia cinética que fez o nobre deslizar até o limite da arena,deixandosulcosprofundosnaterracomospés.

O escudo rachou e se deformou, mas Tarquin estava conseguindoresistir, alimentando grossas tiras de luz branca para reparar o dano.Fletcher dobrou a força do ataque, inundando seu corpo de mana e oempurrando à espiral de energia que continha o oponente. Seus dedosardiam de dor e o ar ao redor do raio se distorcia, zumbindo comintensidade enquanto forquilhas de relâmpago estilhaçavam rochas emfragmentos cintilantes. A areia abaixo se tornou um canal de vidroderretido,borbulhandocomolava.

Ignácioestavacomeleagora,mandandocadaúltimagotadeenergiaeencorajamento.Fletcherrugiu,colocandotudodesinumaerupçãofinaldemana,drenandotudoquelhesrestavanasreservas.Umaondadechoquevirouomundodecabeçaparabaixoquandooescudoexplodiu.

Fletcher girou e rolou no ar, empurrado por um borrifo de poeira epedras. Em seguida, viu-se deitado de costas, fitando o teto. As trevas oengoliram.

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53

—Fletcher, acorde.—A voz deOtelo parecia estar distante. Alguém lhetocouorosto.

—Vocêconseguiu,Fletcher—sussurrouoanão.—Vocêoderrotou.—Euvenci?—indagouorapaz,confuso.Eleabriuosolhos.O rosto de Otelo o encarava de cima para baixo, com olhos verdes

faiscandodealegria.—Vocênosdeixounochinelo.Tarquinbateunotetoquandooescudo

delecedeu,literalmente.SeZacariasnãotivesseaparadoaquedacomumcolchãocinético,omalditoprovavelmenteestariaaquiconoscoagora.

Fletcher se sentou e notouque estavamna enfermaria. Lovett e Sylvajaziamnas camas ao seu lado, ambas imóveis e silenciosas. Sariel estavaenrodilhada debaixo do leito da mestra, roncando suavemente. ValenstinhaseaninhadonopelomaciodoCanídeo,igualmenteisoladodomundo.

—Comoelaestá?—perguntouFletcher,estendendoobraçoatéaoutracamaeafastandoumamechadecabelodorostodaelfa.

—DamaFairhavendissequeelavai ficarbem.Masteráquesararporcontaprópria,assimcomoeu.Ficoucomobraçopartidoemdoislugares.

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Otelocontemplouaelfacomemoçõescomplexasnorosto,emseguidaagarrousuamão.

— Não teríamos conseguido sem ela, sabe. Sylva derrotou Isadora eenfraqueceuTarquin,correndoumgranderisco.Elapoderiaterserendido,quenemeu.Emvezdisso,decidiulutar,mesmosabendoquenãovenceria—murmurouoanão.

— Ela é duas vezes o guerreiro que eu sou — respondeu Fletcher,observandoarespiraçãodagarota.

—Foramvocêsdoisqueconseguiram,nofim—continuouOtelo,emumtomdecepcionado.—Queriapoderdizeraomeupaiquefuieu.QueriaqueosForsythsoubessemqueforamosanõesquelhescustaramavitória.

—Otelo,osanõesmederamasferramentasnecessáriasparavencere,senãofosseporvocê,euteriagastadotodoomeumanaenfrentandoRufusnasemifinal—afirmouFletcher,encarandooamigonosolhos.—Fomosnóstrêsqueconseguimos.AtéSerafimdesempenhouseupapel.ApostoqueelenãofoiumadversáriofácilnalutacontraTarquin.SóqueriaqueSylvaestivesseacordadaparacomemorarnossavitória.

—Ela logoestará—assegurouOtelo,esfregandoocansaçodosolhos.—Éaprimeiracoisaquevoulhedizer.Raios,elaprovavelmentereceberáofertasdecomissõesassimqueacordar.

— Tenho certeza de que você também, Otelo. Os recrutas anões vãoprecisar de líderes. Ao chegar à semifinal, você provou seu valor.Não seesqueçadomotivopeloqualvocêveioatéaqui:provaraomundoqueosanõessãoaliadosvalorosos—disseFletcher.

—Éverdade—concordouOtelo,comumsorriso.—Nãotinhapensadonisso.CipiãocertamentedeixaráÁtilasealistaremVocansagora;eleémeugêmeo,afinal.Aprimeiracoisaquevoufazerdepoisdistoéaprendercomoa Inquisição testa os candidatos a adeptos. Vamos precisar demagos debatalhanosexércitosenânicos.

— Pode contar com isso. Vou mencionar o assunto na reunião do

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conselhoimediatamente,sepuder—respondeuFletcher.Elesentiuumapontadadeansiedadeaoimaginarumalongamesanum

salão escuro, cercada pelos homens mais poderosos do reino. Zacariasestaria lá, tentando desacreditá-lo a cada oportunidade. Mesmo com osgêmeosForsythderrotados,Fletcheraindateriaquelidarcomopaideles.

Passosecoaramnaescadaria,atéqueorostoanimadodeSerafimsurgiuàporta.

— Pessoal, a dama Fairhaven disse que eu já poderia vir aqui buscarvocês, seconseguiremdescer.Elesvãocomeçaradistribuirascomissõesem breve. Vamos lá!— O rapaz desapareceu logo em seguida, e os doisouviramsuacorreriaescadaabaixo.

—Alguémachaquevaisedarmuitobem.—Oteloriu.—Ei,meajudeadescer?Nãopossobotarnenhumpesonessadrogadeperna.

— Eu juro que parece que passei metade da minha vida servindo demuletaparaanõesferidos—brincouFletcher.

Ele passou as pernas para fora da cama e se levantou. Houve ummomento de tontura, que logo passou depois de algumas profundasrespirações.

—Nósdevemosparecerumbelopar—comentouFletcher,passandoobraçoemvoltadosombrosdeOtelo.—Achoquevouprecisardasuaajudatantoquantovocêdaminha.

Ele estremeceu ao suportar opesodeOtelo, o próprio corpodoloridoprotestandocontraoesforço.

Elesmancaram pelas escadas e corredores, parando para descansar acadapoucospassos.

— Vamos, você não pode perder a sua promoção a capitão — disseOtelo.

À lembrança da sua capitania, os troféus de guerra e armas quedecoravam os corredores da academia subitamente adquiriram um novosentido para Fletcher. Mais cedo ou mais tarde, um orc poderia estar

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brandindoumadaquelasarmasassustadorasnadireçãodesuacabeça.Oátrioestavarepletodenobresegeneraisquandoeleschegaram,todos

fitandooparconformeelesmancavamsalãoadentro.Algunschegavamatermedoemseusolhos.

—Genialidadepuraeautêntica!—bradouCipião,caminhandoapassoslargosemsuadireção.—Setatuarparapularoentalhe;usarumapedradevisualização comomonóculo. Grandes saltos na tecnologia dosmagos debatalha;comojamaishavíamospensadonisso?

Atrásdele, FletcherpôdeverTarquin ser repreendidopelopai, comacabeça baixa e envergonhado. Os demais aprendizes sentavam-se embancostrazidosdorefeitório,esperandoemsilênciopelacerimônia.

— Fique tranquilo, perguntarei sobre essa história de tatuagensmaistarde.Agora, generalKavanagh, sepuder trazerapapeladaparaFletcherassinar...Quandoéoconselhodorei,nopróximomês?Precisaremosdeumprofessorparaensiná-losobreaspolíticasdeHominumnessemeio-tempo;comoumplebeu,elenãodevesabermuitacoisa.—Cipiãozumbiaaoredorde Fletcher como uma mãe superprotetora, limpando a poeira de seusombros.

O rapaz corrigiu apostura e vasculhou a sala, encontrandooolhardegeneraisenobrescomumaexpressãofirme.Orgulhoso,admirouaproezaqueeleeseusamigoshaviamalcançado.

SylvaeOtelotinhamprovadoaosescalõesmaiselevadosdeHominumqueseuspovoseramforçasaseremreconhecidas.AelevaçãodeSerafimànobreza seriauma transição suave, agoraqueele tinhademonstrado suatenacidadenaarena.QuantoaFletcher,eleestavabasicamentefelizporterevitadoqueosForsythconquistassemmaisumlugarnoconselho,eportergarantido a si mesmo um futuro promissor. Só desejava que Berdonestivessealiparaver.

OrapazapertouoombrodeOteloeapontouparaosgeneraisenobres.—Umdesseshomensvailhedarumacomissãohoje.Vocêtemalguma

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preferência?— Desde que não seja Zacarias ou os Faversham — riu Otelo em

resposta.—VocêdeveriatervistoacaradelesquandoderroteiRufus.Asportasprincipais se abriramde rompante, lançandouma rajadade

ventopeloátrio.Trêsvultossepostavamnaentrada,contornadospelaluzdoexterior,atéqueasportasdecarvalhosefecharamdenovo.

Quando os olhos de Fletcher se ajustaram à escuridão, ele ficoualarmado ao notar que os três homens eram Rook, Turner e Murphy. OInquisidorsorriacomironiaenquantocaminhavaatéosdois.

OcoraçãodeFletchersaltouquandoeleviuqueTurnerseguravaumpardegrilhõesnasmãos.

—Otelo—exclamouele.—OsPinkertons!—Qualéosignificadodisto?—bradouCipiãoenquantoosPinkertons

abriamcaminhoentreosnobres.—Esteéumeventoparticular.—Estamosaquiparabuscá-lo—afirmouMurphy,indicandoFletchere

Otelo.—Temosummandadourgenteparaaprisãodele.Fletcherentrounafrentedoanão,cambaleante.—Sevocêoquiser,teráquepassarpormimprimeiro.Murphydeuumpassoàfrente,sorrindomaliciosamente.— Fletcher Wulf — anunciou ele, atando os grilhões aos pulsos de

Fletcher.—VocêestápresopelatentativadeassassinatodeDidricCavell.Orapazficouparalisadoconformeosignificadodaspalavrasficavaclaro

paraele.—Tireasmãosdele—bradouOtelo,tentandosepôrentreosdois.—

Istoéumengano!Turnerbateunamãoabertanoanão,derrubando-onochão.—Controle-se,anão,ouserápresopordesacatoàautoridade—cuspiu,

cutucando-ocomopé.RookpassouporcimadocadetecaídoeagarrouocolarinhodeFletcher,puxando-oparaperto.

—Esteseupasseiozinhoacabou,Fletcher—rosnouRook,comohálito

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quentenaorelhadorapaz.—VocêvaivoltaraPelego.

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Demonologia

Caruncho — Nível 1 (Rory (Malaqui), Genevieve (Azura) e Lovett(Valens))

OsCarunchossãoosdemôniosmaiscomunsnaregiãodeHominumdoéter,etambémafontedealimento de várias espécies demoníacas. Mesmo que haja muitas variedades menores deCarunchos,todassimilaresainsetos,osCarunchosEscaravelhossãoosmaispoderososdetodoogênero. Eles são como grandes besouros voadores, variando do castanho fosco ao coloridobrilhante. Quando inteiramente crescidos, desenvolvem uma arma para complementar suaspoderosas mandíbulas: um ferrão cruel que pode paralisar temporariamente seus inimigos.MuitosconjuradoresusamCarunchoscomobatedoresparaexploraroéterantesdemandarumdemôniomaispoderosoparacaçar.

Lutra—Nível4(RufuseAtlas(Bárbaro))

Estedemôniodotamanhodeumcãoémuitosemelhanteaumalontrasupercrescida,comumacauda espinhosa como uma maça-estrela e dois enormes dentes incisivos. Geralmente sãoencontradasnoslagoseriosdoéter,poisgostamparticularmentedenadar.

Picanço—Nível4(Amber)

EstesdemônioscomaspectodeavecruzamanualmenteapartedeHominumdoéterdurantesuamigração, tornando incursões extremamente perigosas durante uma semana do ano. Bemconhecidospelaslongaspenasnegras,aenvergaduradesuasasaséequivalenteàalturadeumhomem, com as plumas das extremidades descoloridas. O bico de um Picanço é cruelmentecurvado,comumabarbelaemvermelhobrilhantenagargantaeumacristavermelhanoaltodacabeça,comoumgalo.

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Salamandra—Nível5(Fletcher(Ignácio))

Salamandras são extremamente raras e não existem na região de Hominum do éter. Não seconhecemuitosobreseuhábitatouhistória,masháevidênciadequeosorcsascapturavamnopassado. São do tamanho de um furão, comum corpo similarmente ágil e flexível, emembroslongosobastanteparaquesejamcapazesdeavançarcomoumlobodamontanha,emvezdascorridinhasdeum lagarto. Suapeleédeumvermelhoprofundo,a cordeumbomvinho tinto,com olhos grandes de brilho âmbar, redondos como os de uma coruja. Salamandras não têmdentes de verdade, mas seu focinho termina numa ponta afiada, quase como o bico de umatartarugadorio.

MatriarcaPicanço—Nível6

AMatriarcaPicançoéalídermaternaldeumarevoadadePicanços.Quaseduasvezesmaiorqueo picançomédio, esses demônios não devem ser subestimados.Não é raro que umaMatriarcacapturefilhotesdeCanídeo,quandoaoportunidadeseapresenta.

Cascanho—Nível6(Serafim(Farpa))

Estedemônio com formade texugo tempelegrossaquase indistinguível da cascadasárvores,vantagemqueeleusaparasecamuflarnasselvasdoéter.Apesardeserrelativamentecomum,suatendênciaaseescondernotopodostroncosdeárvores,alémdacristadefarpasvenenosasque disparam da espinha dorsal, tornam difícil sua captura. A dieta desses demônios consisteexclusivamenteemvegetação,queesmagamemsuasbocascheiasdeplacas.

Vulpídeo—Nível6(Penélope)

UmparentepróximoeumtantomenordoCanídeo,estedemôniocomaparênciaderaposatemtrêscaudaseéconhecidopelaagilidadeerapidez.

Canídeo—Nível7(Sylva(Sariel)eArcturo(Sacarissa))

Umdemôniocaninocomquatroolhos,garrasletais,raboderaposaeumacristaespessadepelosquecorrepelaespinha.Otamanhodessesdemôniosvariaentreodeumcachorrograndeeumpequenopônei.

Felídeo—Nível7(Isadora(Tamil)eCipião*)

Estegato-demôniobípedetemaestaturaea inteligênciadeumchimpanzé.Suasraçasvariam

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entre leonino, tigrino e leopardino, que são semelhantes a leões, tigres e leopardos,respectivamente.

Anubídeo—Nível8(Malikeseupai,Baybars)

OutroparentedistantedoCanídeo,esterarodemônioandasobreduaspernasetemacabeçadeumchacal.Aocontráriodosoutrosmembrosdafamília,eletemapenasdoisolhos.

Golem—Nível8(Otelo(Salomão))

Esterarodemôniodaclasseelementalpodeserformadoporváriostiposdiferentesdeminerais,incluindoargila,lamaeareia,sendoomaispoderosonogolemdepedra.FilhotesdeGolenstempoucomais de ummetro,mas ao longo do tempopodemalcançar trêsmetros de altura. Têmaparênciamais oumenos humanoide, porém possuem apenas um enorme dedo e um polegaropositornasmãos.

Hidra—Nível8(Tarquin)

UmaHidraéumgrandedemôniocomtrêscabeçasdecobraempescoçoslongoseflexíveis.Seucorpoésimilaraodeumlagartomonitor,commaisoumenosomesmotamanhodeumCanídeogrande.EssesdemôniosjáforamoutroracomunsnapartedeHominumdoéter,masagorasãoextremamenteraros.

Grifo—Nível10(Lovett(Lisandro))

Este rarodemônioocasionalmenteaparecenapartedeHominumdo éter.Do tamanhodeumcavalo,temocorpo,acaudaeaspatastraseirasdeumleãoeacabeça,asasaseasgarrasdeumaáguia.

Minotauro—Nível11(Rook)

Essesdemônioshumanoidessãoaltos,peludosemusculosos.Têmacabeçadeumtouroecascosfendidos no lugar dos pés. Ao contrário dos Golens, eles têm mãos com garras capazes demanipulararmas,mesmoquesejaumatarefadifícilensiná-losausá-las.ÉmuitoraroencontrarumdelesnapartedeHominumdoéter.

Nota:*OprimeiroFelídeodeCipiãomorreu.Elerecentemente foipresenteadocomumnovo filhoteda

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mesmaespécie.