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0 ARQUIPÉLAGO DA MADEIRA

NO SÉCULO XV

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1. O PROBLEMA DO RECONHECIMENTO OU DESCO-BRIMENTO DO ARQUIPÉLAGO MADEIRENSE

A dar crédito a algumas cartas geográficas quatrocentistas e a umaanónima e célebre narrativa de fantasiosas viagens que as informou oudecorrente de alguma delas, hoje desaparecida (pois nenhum mapaexistente em tais condições é anterior ao texto), o grupo insular daMadeira já seria tão bem.conhecido, em meados do século XV, que oscartógrafos puderam representá-lo nos seus desenhos com espantosaprecisão.

A ideia de que em tais delineamentos do arquipélago, aliás comuma toponímia que não se alterou até aos nossos dias, os contornos dasilhas da Madeira, do Porto Santo e das Desertas podiam ter sidoacrescentadas nas cartas posteriormente à data da execução dos seustraçados originais, chegou a ser admitido e deu lugar a acesas contro-vérsias, mas está hoje posta de lado, e com fundamento em boasrazões. De facto, se parece absolutamente aceitável que, em deter-minadas circunstâncias, um ou outro pormenor de interesse náuticose anotasse ou corrigisse em uma certa carta preparada para a nave-gação, é de todo em todo incompreensível que um arquipélago, sódescoberto no século XV (como sustentaram os defensores de talideia), fosse acrescentado em todas ou quase todas as cartas do séculoanterior que se construíram a partir de determinada data; tem de sepensar que tais espécimes cartográficos não estavam certamente entãona posse do mesmo marítimo, do mesmo erudito ou do mesmo car-tógrafo, que seria a via mais fácil para se compreender que tais acrés-cimos se apresentam mais ou menos uniformes; de outro modo, parece

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bem pouco provável, para não dizer inadmissível que a notícia danecessidade de tais acrescentos se fazer a luz de descobrimentosrecentes tivesse chegado em tempo útil a todos os diversos possui-dores de tão valiosos exemplares da cartografia.

Aliás, se de acréscimos se tratasse, seria desde logo de esperarque a caligrafia dos topónimos que acompanham as manchas insula-res, porventura introduzidas numa carta já antiga, fosse diferente docaligrafo que nesta obra interviera; ora um estudo atento das cartasnestas circunstâncias mostrou que tal se não verifica e que, pelo coa-trário, a letra se apresenta com o mesmo talhe em toda a extensão dasáreas costeiras representadas. É certo que este argumento não con-venceu todos os historiadores nem todos os críticos; sem negarem auniformidade apontada, eles obtemperaram que a letra manuscritaanterior ao século XVI, e sobretudo anterior ao século XV, se indis-cutivelmente varia, a sua transformação é muito lenta com o correr dosanos, mantendo-se por largos períodos de tempo com característicasmais ou menos constantes e impessoais; quer isto dizer que dificilmentese poderiam reconhecer pelo formato da letra das palavras que osacompanham, os acrescentamentos desenhados numa carta, se acasoeles tivessem sido feitos não muito depois de elaborado o documentoem que foram supostamente introduzidos.

Esta observação pode parecer oportuna ou pertinente, mas quemalguma vez teve de se dar à leitura de textos manuscritos de um qual-quer período do século XIV, sabe bem que o facto da letra ser entãomais desenhada do que o foi posteriormente não apaga em absolutoum cunho pessoal de quem escreveu. Todavia; mesmo que admi-tíssemos que dois calígrafos tinham a mesma letra, a tinta que usaram,essa foi decerto diferente, é não há em tais cartas o mínimo indício detal diferença.

Além disso tem de se reconhecer que as ilhas do arquipélagomadeirense não estão representadas de um modo estereotipado emtodas as cartas trecentistas em que aparecem, verificando-se que osseus contornos e as suas posições relativas estão mais próximos dosverdadeiros nas cartas mais recentes; só a toponímia é a mesma, apenascom as inevitáveis variantes de carácter linguístico. E tal facto pode

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ser interpretado como consequência de um melhor conhecimento daposição das ilhas com o curso dos anos, ou seja, depois de sucessivasvisitas, aperfeiçoando-se os desenhos a partir dos dados em cada umarecolhidos.

Postas estas considerações gerais, se procedermos ao estudo com-parado na cartografia trecentista que representa o Atlântico ao largoda costa da Península Ibérica e do norte africano até o Cabo Bojador(nessas cartas quase sempre já assinalado pelo seu nome actual), temosde aceitar definitivamente que o arquipélago madeirense foi conhecido de europeus, ou pelo menos de alguns navegadores e cartógrafositalianos e ibéricos, desde meados do século XIV; efectivamente, se acarta de Dulcert de 1339, apesar de anotar algumas das Canárias, aindanão representa as ilhas madeirenses (pese embora a opinião oposta dealguns autores), estas aparecem desenhadas pouco depois (em 1351)numa carta do chamado atlas Mediceo; e logo a seguir: numa cartaatribuída aos irmãos Pizzigani, de 1367; numa folha do planisfériocatalão de Abraão Cresques, de 1375 (muitas vezes designado impro-priamente por «carta catalã» de Paris, por se conservar na BibliotecaNacional desta cidade); na carta de Pinelli, de 1390; na carta deSolleri, de 1385; além de várias outras.

Como se disse, verificam-se algumas insignificantes modificaçõesdos contornos e do posicionamento relativo das ilhas de carta paracarta, e ligeiríssimas alterações na grafia das designações da Madeira(concorrem as formas de «Lenyame», «Lecname», «Legname», etc.) edas Selvagens («Selvagens» e « Salvages» por exemplo) - estas pelaprimeira vez apontadas, até onde podemos saber, na carta dos Pizzi-gani; quanto às «Desertas» e a «Porto Santo» são anotadas sempre comestes nomes, apenas com ínfimas variantes -gráficas.

Adiantaremos desde já uma informação quanto à última das ilhascitadas. É quanto a nós muito possível que o nome de Porto Santoderive da circunstância de se pensar que por ali teria passado um santoirlandês de nome Brandão, quando quase um milénio antes, e segundouma história fabulosa que correu por toda a Idade Média, ele empreen-deu, com alguns seus companheiros de convento, uma longa e erranteviagem pelo Atlântico, à procura do Paraíso Perdido. Esta explica-

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ção é-nos sugerida pelo facto de em algumas das cartas, que incluem ogrupo das ilhas madeirenses, se terem desenhado um pouco mais paranorte algumas ilhas dispersas e sem qualquer dúvida fantásticas(embora alguns autores tenham pretendido identificá-las com os Aço-res), entre as quais aparece uma ilha,ou aparecem várias ilhas relacio-dadas, pelo nome, com as aventuras do frade e santo irlandês.

Esse facto parece-nos um claro indício de que os autores dessascartas aceitavam como verídica qualquer lenda que indicava ter SãoBrandão andado a navegar por aquela área marítima; é muito possível que numa desconhecida versão da história se admitisse que eletivesse escalado por ali uma ilha, e esta fosse identificada com a dePorto Santo, que recebeu o nome em consequência da hipotéticavisita. É uma simples conjectura, que apenas como tal aqui se deixa.

As informações sobre a existência do arquipélago madeirenseparece terem partido de um passo do anónimo Libro del Conosci-miento, pretensamente escrito por um frade mendicante castelhano,por volta do ano de 1350. Como em tantos outros textos do períodomedieval e do mesmo género de «novelo geográfica», o autor ou compi-lador desta obra inculca-se nela como um infatigável viajante que tinhapercorrido praticanete todo o 'mundo então conhecido - ou seja,desde os países nórdicos até a terras do norte africano, e desde as ilhasatlânticas até o Extremo Oriente. A indicação das escalas dessas suasimaginárias viagens é, aqui e além, entrecortada por referências a casosmaravilhosos e incríveis que no decurso delas teria observado; istosignifica que o livrinho deve ser inserido no conjunto dos tão vul-gares «livros de maravilhas» medievais, que tinham então, seguramente,leitores interessados ou ávidos.

No entanto, se um qualquer dos livros deste género se alimentouprincipalmente de lendas, de fantasias, de milagres e de acontecimentosinsólitos, isso não significa que o esquema de que o autor ou compilador partiu não tenha qualquer ligação com a realidade geográ-fica; pelo contrário, e quer-nos até parecer que para a grande acei-tação de tais escritos concorresse a circunstância deles conterem alu-sões a dados verídicos, que podiam ter chegado por outras vias aoconhecimento dos leitores; isso podia Ievar estes a conceder ao texto,

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arbitrariamente composto, uma credencial de completa veracidade,que ele na verdade não merecia.

É lícito admitir que os «livros de maravilhas» se baseariam, geral-mente, em relatos parciais, orais ou escritos, e que alguns destes repro-duzissem aventuras efectivamente vividas por aqueles que os transmitiam; é claro que essas descrições podiam ser logo exageradas ouacrescentadas por quem vivera a experiência, e vinham depois a serprogressivamente aumentadas quando passavam de cópia para cópia,pois era uma tentação para os sucessivos escribas introduzir no textotranscrito novos dados que o tomassem mais aliciante; as referências apaíses ricos em ouro, em prata e em pedras preciosas, para citar só umexemplo, eram um dos meios seguros para excitar a imaginação demuitos leitores com sonhos de fabulosas riquezas.

Casos destes entraram pelo século XV e pelo século XVI, e mesmoem textos portugueses há disso provas: Alvaro Velho, presumívelredactor do chamado Diário da Primeira Viagem de Vasco daGama, registou nesse texto, credulamente, que as pedras preciosaspodiam ser apanhadas aos cestos numa indeterminada área da costaoriental africana; e também o anónimo autor do planisfério portu-guês dito de Cantino (datável com todo o rigor de 1502) anota emalgumas legendas referentes a lugares ou áreas orientais (como, porexemplo, a correspondente à ilha de Samatra) a existência abundantede esmeraldas, de rubis, de pérolas, etc..

Voltemos, porém, ao Libro del Conoscimiento; se temos por certoque o seu desconhecido autor não fez mais do que uma ínfima parte dasviagens que descreve e a si mesmo se atribue (se é que alguma fez!),parece-nos do mesmo modo inegável que teve à vista narrativas poroutros escritos sobre pelo menos algumas de tais deambulações, ou queterá ouvido atentamente relatos verbais de peregrinos que tivessemandado por lugares no texto referidos.

O hábito de ouvir exposições orais de viajantes que chegavam deterras longínquas era então muito corrente, e está atestado (citaremos sóum caso) na documentação que se conhece referente ao reino deAragão, e precisamente para o século XIV.

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Dito isto, supomos ser de aceitar, em conclusão, que o escritoatribuído ao frade mendicante castelhano transmite informações deraiz fidedigna, embora porventura deturpados no percurso dos várioselos de uma muito possível extensa cadeia que, desde a sua formaoriginal, as levou até o conhecimento do autor do Libro.

Com esta prevenção, vejamos o que se escreveu no texto queinteresse para o nosso caso. Usando a primeira pessoa do singular, operegrino castelhano afirma: «Subi a um navio com uns mouros, echegámos à primeira ilha que chamam Gresa (diga-se que não é fácilidentificá-la satisfatoriamente) e depois dela está a ilha de Lançarote, echamam-lhe assim porque as gentes desta ilha mataram um genovêschamado Lançarote; e daí fui a outra ilha que chamavam Bezimarin(nas condições de Gresa) e a outra que chamam Raehau (idem) e daí aoutra que chamam Alegrança e outra que chamam Forteventura»; anarrativa continua neste estilo, e inclui citações às ilhas de Tenerife,Inferno, Gomeira e Ferro (todas do grupo canáreo), e bem assim a«Salvage», a «Lecname» e a «puerto Santo», do grupo madeirense; mascom falta de uma alusão à «Deserta» ou às «Desertas».

Se, como nos parece correcto, aceitarmos a ideia de que o Libroreproduz narrativas compiladas pelo «frade mendicante», somos obri-gados a concluir que o arquipélago da Madeira foi decoberto, reconhecido e quase todas as suas ilhas baptizadas antes de meados doséculo XIV, pois esta é a época apontada pelos especialistas como a daredacção dessa importante narrativa.

Será tal conclusão tão extraordinária como já algumas vezes sépretendeu, e até em vários casos com acalorada veemência? Não nosparece porque somos de opinião (aliás partilhada por vários historiadores) que já por esse tempo seria navegada com alguma fre-quência por navios peninsulares numa vasta área marítima que sealarga para poente do Estreito de Gibraltar três a quatro centenas dequilómetros, estendendo-se desde a latitude do Cabo de São Vicenteaté a das Canárias - área a que no século XVI se chamou frequente-mente o Golfo ou Vale das Éguas.

Aliás o texto do Libro, como acima se indicou, junta num só oreconhecimento dos arquipélagos madeirense e canáreo, e dispomos

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de uma indicação segura de que o último foi efectivamente visitadoantes de 1339, pois é deste ano a acima referenciada carta portulano deDulcert, que inclui algumas das suas ilhas; o arquipélago da Madeirateria, deste modo, sido entrevisto pela primeira vez entre este ano ecerca de 1350.

O conjunto insular canário está certamente relacionado comexpedições italianas; na carta-portulano de Dulcert a sua ilha de Lan-çaroté encontra-se assinalada com as armas de Génova, sendo de admitir que, tal como se lê no Libro del Conoscimiento, um genovês denome Lançarote (e de apelido Malocelus) =3ara lá se tenha dirigido naprimeira metade de trezentos (alguns autores precisam até oano: 1312), com o intuito de fixar aí uma .<colónia»; o que conseguiu eque se manteve vários anos, até a morte do seu patrocinador às mãosdos guanches, nunca conformados com a ocupação.

No entanto, as Canárias não despertaram o interesse só de nave-gadores genoveses. Em 1341, por exemplo, teria sido preparada emLisboa uma expedição que se destinava a essas ilhas, e que efectivamente as visitou, tendo regressado depois ao ponto de partida. Foiorganizada também por italianos, mas participaram nela marinheirosda península ibérica, sendo muito provável, para não dizer certo, queentre eles se encontravam alguns portugueses. Corre sobre estaviagem um relato abreviado, muito provavelmente redigido pelo punhodo grande escritor Giovanni Bocaccio, e repleto de notícias interes-santíssimas, cuja exactidão parece de aceitar.

À esta experiência pouco animadora, porque os resultados comer-ciais da expedição foram medíocres, outras se seguiram; temos tam-bém notícias certas de que os catalães entraram na corrida pelasCanárias, organizando várias expedições que chegaram até o arquipé-lago: Domenec Gual e Desvalers, em 1342; Jaime Ferrer, em 1346 (esta,de resto, muito expressivamente assinalada pelo desenho de um navio,em alguns espécimes da cartografia); Amau Reger, em 1352; etc.

Verifica-se, pois, que por meados do século XIV, o arquipélagodas Canárias fora sucessivamente visitado por' navios de italianos, dearagoneses e de maiorquinos, sendo já bem conhecido de todos eles;

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tanto assim era que, no último dos anos referidos, o Papa nomearia pelaprimeira vez um bispo para exercer o seu munus nas ilhas.

É claro que além das viagens às Canárias testemunhadas pordocumentação autêntica do nosso conhecimento, decerto muitas outrasse terão realizado, sem sobre elas terem chegado aos dias de hoje dadoscomprovativos. Estão exactamente nestas circunstâncias viagensorganizadas por portugueses, que quase com certeza tiveram lugar,apesar de sobre elas não existir qualquer narrativa que sequer suma-riamente nos dê a conhecer as mais importantes peripécias vividaspelos aventureiros que as terão levado a bom termo.

Refira-se em primeiro lugar que, depois da episódica ocupação deuma das ilhas por parte de Lançarote, em 1344 surgiu o plano de tomaro arquipélago pela força das armas, pois se sabia muito bem que umaparte das ilhas era habitada, e que os habitantes ofereciam tenaz resis-tência aos intrusos, apesar de apenas disporem do recurso à pedrada oua armas rudimentares.

D. Luís de Ia Cerda, descendente do rei Afonso X de Castela (decognome «O Sábio»), foi quem arquitectou o projecto de tomar possede um grande grupo de ilhas, (em que entravam as Canárias a par deoutras imaginárias), a fim de aí fundar um pequeno domínio, de queviria a ser rei ou príncipe.

O Papa chegou até a investi-lo no cetro do fictício principado,comprometendo-se D. Luís de La Cerda, em troca, a descarregar-se decertas obrigações, que voluntariamente contraiu perante a Cúria; logoque estivesse na posse efectiva dos «seus» territórios insulares; e opontífice levou o caso tanto a sério que chegou a pedir a reis e a prín-cipes da Cristandade para apoiarem o pretendente nessa tarefa de«cruzada», que colocaria as ilhas sob o poder espiritual da Igreja.

O projecto estaria de toda amaneira condenado ao fracasso; maseste foi imediato porque os príncipes e reis a quem a mensagem papalchegou, nada fizeram para dar uma ajuda ao pretendente ao tronocanário, e de Ia Cerda, sem armas, sem navios e sem homens, viu-secompelido a renunciar ao seu sonho.

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No entanto, um rei houve - o de Portugal, D. Afonso IV - quenão só se recusou a auxiliar D. Luís, como reclamou do Papa o direito aser ele o reconhecido como príncipe ou senhor das Canárias, estribadono argumento de que vassalos seus já tinham estado por sua ordemno arquipélago (e por isso o considerava sob jurisdição), e no factode ser Portugal o reino europeu mais próximo das ilhas.

Esta respeitosa impugnação do rei português a uma decisão papal,é conhecida através de um documento existente nos arquivos do Vati-cano, que tem feito correr rios de tinta, por terem levantadodúvidas quanto à sua autenticidade. Não nos interessa de momentofazer a história dessa polémica; bastará dizer-se que as mais modernascríticas a que o texto foi submetido, sob várias perspectivas (desde otipo da letra em que está escrito até à colecção arquivística em que seencontra inserido), apontam para a sua veracidade; e como autêntico oaceitamos.

Dessa carta de protesto, D. Afonso IV é muito claro em afamar odireito que lhe assistia em fazer ocupar o arquipélago por homens seus,aduzindo as duas razões acima referidas; e opõe-se logo a qualquerobjecção que podia ser levantada afirmando que já lá mandara naviosao reconhecimento, embota não precise a data em que o fez; por outrolado, e para atalhar qualquer dúvida que o Pontífice levantasse pelofacto de não ter manifestado continuidade nesse seu propósito, o Reiexplica-se: não prosseguira na acção empreendida por ter sido obrigadoa envolver-se em guerras, em primeiro lugar com os castelhanos (lutaque se iniciou em 1336) e logo depois com muçulmanos (principiadaem 1341); a expedição por si organizada seria, por consequência,anterior ao primeiro dos anos indicados.

Não faltou quem precipitadamente tivesse identificado esta viagemcom a Lançarote Malocelus, para tal efeito considerado como umdos homens «sabedores do mar», que de Génova vieram para o serviçoda Coroa portuguesa em resultado do célebre contrato que o ReiD. Diniz assinou com Manuel Pessanha, em 1317; e não faltou igual-mente quem adiantasse que D. Afonso IV não desistiu dos seusintentos, sendo ele o promotor da viagem de 1341. Mas isto é incerto;

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certeza só a temos quanto às palavras do Rei dirigidas ao Papa, e essassão explícitas: súbditos seus tinham-se dirigido às Canárias com aintenção de as ocuparem.

Toda esta digressão que fizemos sobre o reconhecimento doarquipélago canário durante o século XIV tem por objectivo tornarbem claro que o conhecimento do arquipélago madeirense nessemesmo século nada tem de extraordinário; qualquer navio ou grupo denavios que se dirigisse para as Canárias podia facilmente avistar aMadeira e Porto Santo; bastaria um pequeno desvio da rota directa queaquele arquipélago conduzia, por um qualquer erro de manobra ou porsúbitas condições geofísicas desfavoráveis, para os expedicionáriosficarem em águas donde se avistassem a Madeira, o Porto Santo e asDesertas. E foi o que decerto aconteceu, como mostram algumascartas e á referência do «frade mendicante», antes citadas; o arqui-pélago madeirense terá sido visitado por mareantes italianos, arago-neses, maiorquinos e portugueses antes de meados da era de Trezentos.

As mais antigas fontes portuguesas de que dispomos sobre aMadeira e as ilhas que com ela se reunem no mesmo grupo insular, nãopõem em causa esta conclusão, antes parecem confirma-la, emboraapenas por omissão ou de um modo indirecto. Esses testemunhosvêm-nos de Diogo Gomes (que andou a pilotar caravelas ainda emtempos henriquinos), do cronista Gomes Eanes de Azurara e do mesmoinfante D. Henrique!

Quanto a este último não vale a pena dizer que ele, nos documen-tos adiante referidos, procurou manter em segredo os descobrimentos,realizados por navios seus, para subtrair as cinco ilhas principais dogrupo madeirense à cobiça de possíveis concorrentes; esta opinião, quese filia na chamada «política do sigilo», sustentada por Jaime Cortesãoaté quase aos limites do absurdo, não pode ser aplicada neste caso semcorrermos o risco de passar um certificado de inabilidade ao grandeInfante; com efeito, que lucraria ele em esconder o «achado» daquelas

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ilhas, quando muito gente devia saber da sua existência, pois que umaabundante cartografia as registava?

Se D. Henrique jamais se declarou como tendo, através dosseus marinheiros, o seu descobridor, foi porque certamente-também elenão ignorava, ao desencadear os descobrimentos, que elas existiam,conhecendo até a sua localização aproximada.

Realmente o Infante fala, em diplomas por si subscritos, e por maisde uma vez, das ilhas da Madeira, mas apenas se apresenta comohomem que tomou a iniciativa de as mandar povoar. Assim, numacarta de doação passada em 8 de Maio de 1440 a favor de Tristão VazTeixeira; o Infante, concedendo-lhe amplas regalias para se poder fixarna Madeira como povoador, não refere que a ilha tivesse sido des-coberta pelo beneficiário (facto que justificaria a mercê), nem porqualquer outro dos capitães que andaram em seu serviço; num outrodiploma, datado de 1 de Novembro de 1446, em que Porto Santo écedida a Bartoloméu Perestrelo, a fim de que este procedesse à suaocupação, D. Henrique refere-se à ilha como sua, mas também nãomandou escrever, ou não consentiu que se escrevesse no documentoqualquer frase em que, mesmo de modo indirecto, se inculcasse comoseu descobridor.

Azurara não vai mais longe. No capítulo 83 da sua Crónica dosFeitos da Guiné, que sintomaticamente trás por título «de como foipovoada a Madeira, e assim as outras ilhas que estão naquela parte», ocronista conta-nos que, depois «da vinda que o infante fez do des-cerco de Ceuta», «dois escudeiros pobres» da sua casa, pediram-lhe quelhes permitisse ir «de armada contra os mouros», encaminhando-oscomo se fossem em busca da terra de Guiné, a qual ele já tinha vontadede mandar buscar». Aparelhada uma barca para o efeito, e iniciada aviagem, «com tempo contrário» foram ter a Porto Santo; aí se detiveramalguns dias para proceder ao reconhecimento da terra, dele concluindoque ela oferecia excelentes condições para ser povoada.

Tal ideia seria aceite por D. Henrique, mas disso nos ocuparemosmais adiante; por agora apenas desejamos salientar que não há no textode Azurara a mais leve alusão a um descobrimento; na opinião do

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cronista os dois escudeiros henriquinos teriam sido, porventura, osprimeiros portugueses a chegar à ilha, mas nem isso é seguro, pois oautor apenas afirma que eles foram os primeiros a proceder a umasuperficial análise das condições climatéricas, hidrográficas e geológicasde Porto Santo, para concluírem que seria possível, e até aconselhável,a sua ocupação.

Quando no mesmo capítulo da Crónica é citada a ilha da Madeira,continua a notar-se a falta de qualquer referência a um descobrimento;nos dizeres de Azurara, quando os navegadores henriquinos aí sedirigiram pela primeira vez, levavam já a determinação de nela lançargado e de a povoar; tinham, pois, conhecimento da sua existência - oque é absolutamente natural: se não foi antes conhecida, como tudoparece indicai, tê-1o-ia certamente sido no decurso da anterior visita aPorto Santo, pois seria absolutamente inexplicável que os dois escudei-ros, que a esta foram e nelas se demoraram por .<alguns dias», não tives-sem entrevisto para su-sudoeste a maior ilha do arquipélago.

Se, como acaba de ser dito, não há na Crónica de Azurara qualquerreferência, mesmo indirecta ou velada, ao descobrimento do arquipélagomadeirense por parte de navegadores do infante D. Henrique,o mesmo se verifica na narrativa de Diogo Gomes. Este navegadorditou as suas memórias a Martinho da Boémia depois de 1485, e oforasteiro alemão redigiu-as em latim; essa versão, única de quedispomos, foi copiada por outro homem vindo de temas germânicas,mas que facilmente sé integrou na sociedade portuguesa, com o nomede Valentim Fernandes; ele deu-se ao trabalho de compilar para umextenso e valiosíssimo caderno várias notícias sobre as navegaçõesrealizadas em Portugal até o início do século XVI, a fim de satisfazer acuriosidade do humanista Konrãd Peutinger, igualmente alemão.

No texto que dessa narrativa nos chegou pode, assim, haver lapsosde mais de uma origem: a memória de Diogo Gomes, que era homemidoso quando fez o seu depoimento; podia atraiçoa-lo; na transcriçãolatina de Martinho da Boémia, além de comentários da responsabili-dade exclusiva do anotador, podem ter sido cometidos involuntários ouaté voluntários lapsos; e a cópia de Valentim Femandes pode conter

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inexactidões, por inadvertência ou por intromissões deliberadas.O estudo crítico desta importantíssima peça para a história dos des-cobrimentos portugueses nunca foi feito na globalidade ou sob estastrês perspectivas analíticas; presumimos, no entanto, que os errosporventura cometidos sejam de secundária importância e envolvam sóaspectos de pormenor; e é por isso que ao texto recorremos e otomamos à letra, sem quaisquer hesitações.

Que nos diz Diogo Gomes acerca do descobrimento da Madeira?Rigorosamente nada - e, no entanto, fala do arquipélago mais de umavez. Num dos passos em que tal acontece o velho caravelista henriquino terá dito que «no tempo do senhor infante D. Henrique, umacaravela com tormenta, viu uma pequena ilha, que está perto daMadeira, e que se chama hoje Porto Santo, despovoada».

Parece claro que Diogo Gomes ignorava ter a ilha de há muito onome que ainda hoje mantém; todavia, se trocarmos a palavra «cara-vela» por «barca», verifica-se que esta informação quase se identificacom aquela que Azurara transmite. Diogo Gomes deixa implícito oreconhecimento da ilha, que então terá sido feito, pois conclui a brevereferência com os seguintes dados de alguma importância (mas nãoregistados por Azurara), que só através de uma acção daquele tipopodiam ter sido recolhidos: «Nesta ilha de Porto Santo há muitasárvores que se chamam dragoeiros, as quais dão uma resina muitolinda, de cor vermelha, a que se chama sangue de dragão. E aquelacaravela regressou, anunciando ao Infante a terra encontrada, da quallevaram sangue de dragão e ramos de outras árvores...».

Quando na continuação desta narrativa se lê que D. Henriquetomou a decisão de mandar o piloto Afonso Fernandes à «ilha des-coberta de Porto Santo» («insulam inventam de Porto Santo»), não nosparece correcto considerar a expressão como insignificante de queD. Henrique fora o seu descobridor; o texto apenas aponta para o factoda ilha ter sido visitada, deixando indeterminados o nome do nave-gador que a visitou e a data da visita.

A esta mesma conclusão nos conduz uma outra fonte manuscritaum pouco mais tardia, pois data do início do século XVI. Trata-se de

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um texto «sobre as ilhas do Mar Oceano», que o mesmo ValentimFernandes redigiu e juntou à compilação remetida a KonradPeutinger.

Nesse escrito Fqrnandes começa por nos dizer que os castelhanos,ao tempo em que andavam empenhados na conquista das Canárias,para onde mandaram frequentemente armadas, tinham por hábito ir aPorto Santo fazer carnagem, pois havia cabras na ilha; os primeiros queaí aportaram, fizeram-no «com o tempo» -o que quer dizer: em coa-sequência de tempestade ou de ventos contrários.

E de notar que o recurso a uma tormenta para explicar a primeiraabordagem à ilha, é igualmente usado por Diogo Gomes, como se viu,embora este autor não endosse o acontecimento a um anónimo castelhano; e é também de assinalar que se esse supostamente primeirovisitante da ilha lá foi encontrar cabras, alguém para lá teria levado osanimais em viagem anterior.

Como é que, nesta versão, se explica ter vindo a ilha ao conhe-cimento dos portugueses? Teremos a resposta se continuarmos a lerValentim Fernandes: na verdade, este diligente impressor da corte deD. Manuel conta que certa vez, andando João Gonçalves Zarco «dearmada em uma barca contra os castelhanos», e sem qualquer resul-tado positivo, um outro castelhano, seu companheiro de aventura, lhedisse: «Senhor, se quiserdes tomar boa preza, vamos onde eu vosdisser, que é a ilha de Porto Santo, onde os conquistadores de Canária[topónimo que designava genericamente o arquipélago, em que a ilhacom aquele nome se integral vão fazer sua carnagem e tomar sua água;porquanto, quando eles ali estão, saem todos em terra, e tomaremos osnavios e depois cativá-los-emos em terra».

Apesar desta proposta ter sido encarada de diversos modos peloscompanheiros de Zarco, acabou por se concluir que era de pôr emprática a sugestão do castelhano; mas chegaram tarde à ilha, o que osimpediu de pilhar os navios e de cativar os seus tripulantes - emborao golpe planeado tivesse falhado por pouco, pois encontraram em terravestígios de uma carnagem recente; algum gado morto e fogueiras queainda crepitavam.

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Parece-nos oportuno aqui um parentese para darmos uma expli-cação. Efectivamente, à luz do código de honra da cavalaria da épocaum acto como este planeado por Zarco não era condenável, como oseria hoje; um cavaleiro desse tempo podia entregar-se à actividade docorso, e se ela terminasse a seu favor, isso só o honraria; abordar umnavio no mar, pilhá-lo e aprisionar-lhe a tripulação era um acto per-feitamente lícito, mesmo quando as vítimas fossem irmãos de crença; adiligência de Gonçalves Zarco, aliás frustrada, nada tinha, por conse-quência, de condenável, à luz do «código de honra» vigente nessaépoca.

A condenação e subsequente marginalização do corsário, e tambémdo pirata- esta, no entanto, uma designação que; desde o início, teveuma certa carga pejorativa - são posteriores ao século XV e mesmoao século imediato. D. João 111, cujas armadas da índia e da Minaestavam sempre em risco de ser vítimas de corsários, sobretudo fran-ceses, procurou repetidas vezes afastar o perigo por via diplomática;mas quando não conseguiu entender-se com outros reis da Cristandade(em especial, o rei de França) para os levar a suster o apoio que davamàs armadas corsárias, não vacilou em estabelecer acordos com oscapitaês destas, negociando directamente com eles, sempre que tal erapossível. E por muito estranho que nos pareça hoje, obteve frequen-temente um êxito completo em tal negociação, respeitando oscorsários com que contratava os compromissos a que se tinhamobrigado.

Fechemos o parentese, e voltemos à narrativa de Valentim Fer-nandes. Lê-se nela que, se Zarco falhou a acção guerreira planeada,pôde na sua visita à ilha avaliar as boas condições que ela oferecia paraaí se instalar com os povoadores, primeiro assunto de que terá faladoao Infante logo que com ele se encontrou em Sagres; note-se, porém, quea cobiçada licença para a ocupação de Porto Santo, se bem que dainiciativa de D. Henrique, só podia ser oficialmente concedida peloRei; a este respeito o texto é bem explícito: «o qual infante foi muitoledo e contente [subentenda-se: com a notícia trazida por Zarcol, e

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escreveu logo a el-Rei seu pai, que estava em Santarém, pedindo-lhede mercê as ditas ilhas para ás povoar, e el-Rei lhas outorgou».

No final deste passo há um plural aparentemente abusivo; naverdade, das palavras antecedentes fica-se com a ideia duque apenasestava em causa a ilha de Porto Santo, e não as ilhas do arquipélagomadeirense; mas na sequência do texto colhe-se, de facto, ã ideia deque Zarco, embora apenas tivesse visitado Porto Santo, tinha em vista aocupação de «ilhas». É assim muito possível que no escrito de ValentimFernandes se queira dizer que Zarco associara à que lhe fora apontadapelo indiscreto castelhano outras do mesmo grupo insular, por acasoentrevistas no decorrer dessa viagem excêntrica, se não conhecidassomente através de qualquer carta náutica em que estivessem repre-sentadas.

Valentim Fernandes conta-nos depois, à sua maneira, como asilhas do arquipélago da Madeira foram ocupadas e povoadas, não semsérios desentendimentos entre Zarco e os dois homens que, para levar abom termo a tarefa, teria agregado a si: Tristão Vaz Teixeira e Bar-tolomeu Perestrelo. São informações que de momento nos não inte-ressam; importa antes sublinhar que o narrador concorda com Azurarae com Diogo Gomes em não atribuir à época henriquina o des-cobrimento do arquipélago, o que também está implícito, como seviu, nos textos em que o infante se refere às ilhas que o compõem.

E no entanto, a notícia do descobrimento português do arquipé-lago da Madeira tem sido sustentada por vários historiadores, e com talpersistência que a notícia passou a ser inserida nos manuais escolares,como dado indiscutivelmente adquirido.

Qual a origem dessa novaversão dos acontecimentos, em absolutocontrária às que acabamos de referir? Parece-nos fora de dúvida quepodemos encontra-la em João de Barros, que nas suas Décadas assumeuma visão epopeica dos descobrimentos portugueses; não obstanteprocure sempre imprimir objectividade à descrição que dos grandesfactos delas nos faz, Barros não hesitou em silenciar situações que tinhapor menos exemplares, como aliás nessa monumental obra adverte,expressa e escrupulosamente.

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No texto deste historiador dois cavaleiros, Zarco e Teixeira, aoregressarem «do grande cerco de Ceuta», solicitaram ao InfanteD. Henrique licença para irem ao descobrimento da costa da Guiné; opedido foi atendido favoravelmente, mandando-se preparar para oefeito uma barca, e dando-se aos dois decididos aventureiros por regi-mento «que corressem a costa da Berberia até passaram aquele temerosocabo Bojador, e daí fossem descobrindo o mais que achassem...».

Há aqui uma evidente distorsão da verdade, se é exacto o que nosdiz Azurara; na realidade, a ideia de navegar para além do Bojador sóteria fervilhado nos projectos do Infante alguns anos depois do «grandecerco de Ceuta»; além disso, Zarco e Teixeira nunca terão estadoenvolvidos em tais planos.

Feito este reparo, voltemos a Barros. Ele acrescenta que, ini-ciada a viagem, «antes que chegassem à costa de África, saltou comeles tamanho temporal, com força de ventos contrários à sua viagem,que perderam a esperança das vidas»; com a protecção divina, salva-ram-se dos grandes perigos que os ameaçavam, e tiveram a boa sina dedescobrir «a ilha a que agora chamamos de Porto Santo, o qual nomelhes eles então puseram porque os separou do perigo que nos dias da[má] fortuna passaram».

Aparte o temporal, que surge também como dado explicativo nosacontecimentos relatados em textos antes referidos, e que é uma notamuito vulgar em narrativas de outras viagens de descobrimento, verifica-se que existe uma clara discordância entre este passo e referên-cias anteriores; agora, Zarco e Teixeira são apontados como autores dodescobrimento de Porto Santo, indicação confirmada em outro lugarda mesma Década, onde são explicitamente declarados como < pri-meiros descobridores» da ilha. Além disso, teria partido deles onome que a esta foi dado e que se manteve -. e bem sabemos que isso éinexacto.

O relato de Barros prossegue com a referência às iniciativastomadas para o povoamento de Porto Santo; só depois deste desen-cadeado se decidiram a «ir ver se era terra uma grande sombra que lhesfazia a ilha a que ora chamamos da Madeira» .

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Tudo isto é inconsistente à luz do que sabemos através das fontespor nós citadas; e basta referir as cartográficas, pois elas desmentemque Porto Santo e Madeira tinham sido baptizadas com estes nomesapenas no século XV. Por outro lado, não é crível que a Madeirativesse sido avistada de Porto Santo apenas como uma equívoca sombra;qualquer das ilhas pode ser sem dificuldade avistada da outra, e aMadeira, pela sua maior área e pelo seu relevo, é ainda mais facilmentenotada da ilha vizinha.

Se o texto de Barros pode ser considerado uma fonte secundáriapara o esclarecimento do problema que nos ocupa, o mesmo se nãopoderá dizer do relato de Alvise Cadamosto, que esteve em Portugalpor meados do século XV e empreendeu viagens de negócios a terrasafricanas, com a indispensável autorização de D. Henrique; na narra-tiva, em que se ocupa sobretudo da experiência adquirida nas suasexpedições, Cadamosto também se refere ao arquipélago madeirense.

Na pena de Cadamosto, no entanto, as duas ilhas mais importantesdo arquipélago são consideradas em situações diferentes. De PortoSanto o texto diz que se trata de uma ilha «muito pequena, com cercade quinze milhas de periferia», para logo acrescentar que «foi des-coberta haverá vinte e sete anos pelas çaravelas do senhor infante, quea fez povoar... »; o navegador e mercador italiano termina com estajustificação do nome dado à ilha: «por ter sido descoberta em dia deTodos os Santos». Pelo que respeita à Madeira, Cadamosto situa oinício do povoamento em três anos mais tarde; no entanto, dá aentender com clareza que havia um conhecimento anterior da exis-tência da ilha, pois não só não se fala de qualquer descobrimento em tem-pos henriquinos, como também, de certo modo, e em concordânciacom isso, informa que o infante decidiu o povoamento «sem que atéentão [a ilha] tivesse sido povoada».

Se este último dado, apenas implícito, vai ao encontro do que nostransmitem outros informadores contemporâneos de Cadamosto, o«descobrimento » da Madeira, efectuado apenas numa data em quePorto Santo desde há três anos seria conhecida, torna-se bem difícil de

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explicar; e a justificação dada para o nome posto à última ilha nãopassa, como é evidente, de uma fantasia de Cadamosto.

Assim, e sem perdermos tempo a referir informações de outrasfontes do século XVI, já que nenhuma delas veicula novos dados sobreo problema que nos ocupa, podemos concluir que todas elas deslocamabusivamente para o primeiro quartel do século XV o descobrimentodo arquipélago; que este teve lugar cerca de um século antes, e que osnomes dados às ilhas foram atribuídos desde o primeiro reconheci-mento. E é sobretudo através da Cartografia, aliás não contrariadapela pouca documentação que até nós chegou, que podemos avançaras duas últimas conclusões com bastante segurança.

Todavia, na história do descobrimento da Madeira - redutível,em última análise, às conclusões precedentes - intervém ainda umepisódio romanesco que não deverá deixar de ser aqui registado, adespeito de todos os autores que dele recentemente se ocuparam, oterem por inverosímil, e com sobejas razões, como já veremos.

A novela coma já no tempo de Valentim Femandes, que a regis-tou e a deverá ter recolhido, embora alterando-o em alguns passos, deum anterior relato de Francisco Alcoforado, presumível escudeiro doInfante, ou de uma qualquer tradição oral, de origem indeterminada;daí passou sucessivamente, e quase sempre com aliciantes acréscimosque a valorizavam, ao Tratado dos Descobrimentos de António Gai-vão (1563), às Saudades da Terra de Gaspar Frutuoso (escrito antesde 1591, mas só impresso em 1876); à História Insulanado Padre Antó-nio Cordeiro (1717), à Insulae Materiae Historiade Manuel Constan-tino (1599) -único texto que procurou apagar na lenda o fascínio deuma história amorosa- e à Epanáfora Amorosa de D. FranciscoManuel de Melo (1654). A lista podia alongar-se até os nossos dias,mas paramos no escritor seiscentista porque foi sobretudo a partir deleque a relação de um par de amorosos ingleses, em fuga, com o des-

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cobrimento da Madeira, irradiou para muitos escritos, e na maioria doscasos sem o mínimo espírito crítico.

Passemos à historieta, tal como no-la conta Valentim Femandes.Era uma vez um fidalgo de Inglaterra, de nome Machin, que, por qual-quer delito grave não especificado, foi condenado a degredo; forçadoou decidido a abandonar a sua terra, e pensando refugiar-se na Penín-sula Ibérica, comprou para isso um pequeno navio de quarenta toneis,carregou-o com os seus bens, a sua «manceba» (quer dizer: sua amante)e os seus criados, além de gado caprino que assegurasse a alimentaçãode todos, e meteu-se ao mar.

É de supor que o destino fosse Portugal, pois chegou à vista dasBerlengas. Mas o navio foi então apanhado por um furioso temporal(mais uma vez, se regista o súbito aparecimento de uma intempérie paraexplicar o curso da narração!), que os fez correr desgovernados mui-tas léguas, até darem com a ilha de Porto Santo. Espantaram-se muitode encontrarem abrigo tão engolfados no mar, mas logo decidiramretemperar-sê na ilha dos trabalhos passados, desembarcando tambémos animais que levavam, «por serem magros e cheios de fome».

Aclarando o tempo, «viram mais tesa ao mar, e fizeram vela eforam ver que terra era, e arribaram a um porto onde agora chamamMachico». Estavam, portanto, na Madeira, e o lugar, a que aportaram, pareceu ao nobre inglês apropriado para se instalarem, o que semdemora se fez;

Depois de estabelecido com as poucas comodidades possíveis emtais circunstâncias, Machin tomou a decisão de proceder ao reconhe-cimento da ilha, embrenhando-se nela durante três dias. Ao regressarà sua precária base, esperava-o uma surpresa: o pequeno navio em queviajara tinha desaparecido, porque os tripulantes se decidiram pelafuga, levando consigo lodos os haveres do desventurado fidalgo pros-crito; ficara-lhe a «manceba», que dignamente se recusou a acompa-nhar os fugitivos, apesar de aliciada a fazê-lo («e ela disse que nuncaDeus quisesse que houvesse de deixar seu senhor»), e um jovem pagem.

Um severo castigo esperava, como seria conveniente para a his-tória, os desumanos marinheiros do navio de Machin; efectivamente,

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«dando o tempo neles» (mais uma cilada do tempo!), perderam-se emuns baixos da costa de Berberia, morrendo uns e sendo outros redu-zidos a cativeiro.

Apesar do ânimo de Machin, que se não cansava de encareceros meios de sobrevivência que a ilha podia proporcionar-lhes, ã sua«manceba» não se iludia quanto ao futuro que a esperava: fechou-setaciturna sobre si mesma, e veio a morrer «de pasmo» pouco tempodepois. E o texto explica: «a qual foi a primeira [pessoal que enter-raram nesta terra em uma ermida» que o seu amante fizera construir ea que pôs o nome de Santa Cruz.

Machin pensou então em salvar-se com o pagem; construíram osdois um batel, com os meios rudimentares de que dispunham e fize-ram-se ao mar; também eles foram empurrados para a costa marroquina, e exactamente para o lugar em que se encontravam presos osmarinheiros 'que o tinham abandonado na Madeira! Já foicoincidência!-

Vendo-os, Machin, apesar de também se encontrar preso, não seconteve e investiu contra o que lhe estava mais ao alcance, com o firmepropósito de o matar; os mouros impediram que cevasse a sua cóleranaquele homem que o atraiçoara.

Os seus carcereiros souberam, assim, que eles tinham descobertoduas ilhas perdidas no mar fronteiro; e decidiram dar conta do caso aoRei de Fez, à presença de quem, de resto, Machin foi levado; e o Reimouro, depois de reconhecer «que se não podia aproveitar de taisilhas», resolveu mandar Machin ao Rei D. João 1 de Castela, a fim deser este a tirar partido do descobrimento. (Note-se que este aponta-mento situa a história, por consequência, num tempo bastante posterioràs mais antigas referências às ilhas madeirenses).

O Rei castelhano, então muito ocupado com a guerra que mantinhacom seu homónimo de Portugal, não prestou qualquer atenção ànotícia; e, morto Machin, o caso foi-se esvaindo da memória daquelesque dele tiveram conhecimento, acabando por ficar quase totalmenteesquecido; e só não inteiramente porque os navegadores que se diri-giam às Canárias, ou delas regressavam, habituaram-se a ir a Porto

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Santo abastecer-se de carne, porque as cabras ali deixadas por Machinproliferaram, espalhando-se por toda a ilha repartidas por muitosrebanhos numerosos.

Vamos passar agora ao texto de D. Francisco Manuel de Melopara se ver como, em cerca de século e meio, esta aventurosa his-tória se enriqueceu. E começaremos por djzer que na Epanáfora aprincipal personagem da novela se chama Robert (embora fosse conhe-cido por «o Machino»), é um homem de inferior nobreza, terá vivido no .tempo de Eduardo 111 e não praticara qualquer crime a que se seguisseuma condenação; era, no entanto, um pouco excêntrico, pois, «des-prezando jogos e banquetes» a que se entregavam os homens da suaigualha, «se singularizava em pensamentos mais altos».

Se Robert não é, nesta versão de D. Francisco Manuel, um homemdesde o início forçado a abandonar a sua pátria, tão pouco a sua com-panheira de aventura se pode dizer que fosse, com carga pejorativa,uma «manceba»; chamava-se Ana de Erfet, era uma «donzela formo-síssima» (repare-se na diferença!), «estimada como uma maravilhaentre maravilhas», pela qual suspiravam muitos fidalgos daquela corteeduardina. Ana passava de largo, sobranceira, até que o destino pôsno seu caminho Robert, por quem ela se enamorou perdidamente,sendo correspondida com não menor ardor.

No entanto, os dois jovens enamorados encontravam-se inseridosem dois extractos muito diferenciados da nobreza, sendo o de Ana denível muito superior; estava, aliás, prometida pelos pais um lorde de«alto estado»; quando souberam que Ana se encontrava louca deamores por Machin, não lhes foi muito difícil fazer encarcerar onamorado de menor estirpe, e acelerar o casamento da filha com ohomem que lhe tinham destinado.

No episódio imediato a -história passa a desenrolar-se em lancesverdadeiramente rocambolescos. Machin foi solto, e, com auxílio defamiliares e amigos decidiu pôr em prática um audacioso plano: ir aBristol, raptar Ana (depois de obtido o seu consentimento - e, porconsequência, também a sua colaboração!) e fugir por mar com elapara França. E o plano foi executado tal como estava previsto: Ana

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de Erfert e Robert Machin conseguiram desferrar no seu navio deBristol, na esperança de encontrarem em qualquer lugar da costafrancesa uma terra de promissão em que pudessem viver em paz eamar-se sem as interferências dos rigorosos bons costumes do meioem que tinha nascido.

O futuro que os esperava era, porém, muito diferente. Por defi-ciência de aparelho para uma boa navegação ou por imperícia dosmarinheiros que o tripulavam (D. Francisco Manuel não deixa isso bemclaro, mas fala de «falta de governo» e de «sobejo vento»), o naviosingrou desgovemado; ao cabo de treze dias de navegação incerta, nãoestavam à vista da Costa de França, a que se destinavam, mas de umaterra altíssima e cheia de frondoso arvoredo.

Tendo reconhecido tratar-se de uma ilha acolhedora, em quepodiam instalar-se a contento, ali decidiram desembarcar os dois amo-rosos; com a ajuda dos seus amigos e dependentes construíram rudimentares pousadas, decididos a viver ali com árvores, com flores, comsossego e com paz. Uma paz que durou apenas três dias, acres-cente-se; porque ao terceiro dia uma súbita tempestade (e é mais uma!)arrebatou o navio com os seus tripulantes, deixando Ana e Robert, comalguns poucos serviçais e amigos isolados em terra.

Estavam uns e outros lançados na estrada de um trágico fim. Comefeito, e tal como na versão de Fernandes, o navio veio a perder-se nacosta de Marrocos, donde os seus ocupantes foram transferidos paramasmorras mouriscas - ou, como diz o escritor, «passaram da tumba[o navio desgovernado em que iam] à sepultura» [os cárceres emque os encerraram].

Ana, que pressentia um fim lamentável», «desde o primeiro passodo seu caminho, ou do seu descaminho» (não se esqueça que elaabandonara o marido!) caiu em estado de tão grande prostração que«desde aquela hora até a sua morte, nunca mais as palavras lhesouberam o trânsito do coração à boca». Nesse estado emocionalviveu apenas três dias!

Machin sepultou-a com sentidas lágrimas e ornamentou-lhe otúmulo com grinaldas de flores (na versão mais tardia do cónego

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Jerónimo Dias Leite, até redigiu um epitáfio em versos latinos, que osacerdote reproduz); e para ali se deixaria ficar, caído em desespero, seos companheiros lhe não tivessem exigido um último esforço para ten-tarem sair da situação difícil em que se encontravam; lá conseguiraminprovisar uma embarcação primitiva, e nela se fizera ao mar, paraterem a mesma sorte dos outros marinheiros: as masmorras muçul-manas!

Contudo, o Rei de Fez não chega a intervir nesta versão, e por issoMachin não veio a ser rapidamente recambiado para a Europa, comoafirmara Valentim Fernandes; pelo contrário, permaneceu muitos anoscativo, junto dos seus companheiros. E foi durante essa demoradaprisão que comunicaria a suas aventuras a um castelhano, Juan deMorales, que com ele partilhava o cárcere. Seria através deste homem,que ninguém sabe quem fosse, que a notícia da existência da Madeiracorreu pela península - quando ele, depois de pago o resgate recla-mado, pôde voltar à sua terra.

Não há dúvida que esta história romântica do descobrimento daMadeira é muitíssimo mais atraente do que a descolorida narrativa,cheia de dúvidas, de omissões e de informações desencontradas, comque iniciámos este capítulo. No entanto, a história menos atraente é averdadeira; a outra não passa de romance tecido em torno da ilha daMadeira, ou do arquipélago a que ela pertence, com linhas de que detodo se ignota a origem, mas que tocaram muito de perto várias gera-ções de escritores e os seus leitores.

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2. OS PRIMEIROS DONATÁRIOS DA MADEIRA

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O sistema administrativo das donatarias, aplicado a terras possuí-das pela coroa além-mar, foi iniciado em relação ao arquipélago daMadeira, estendendo-se depois a outros arquipélagos ou territórios daorla atlântica que o rei de Portugal considerava como seus domínios.

Impossibilitado de exercer directamente o direito de senhoriosobre essas ilhas e terras, a donataria foi um meio a que o rei recorreupara delegar os seus poderes, com certas restrições, em pessoas da suainteira confiança; cabia ao donatário administrar, em nome dosoberano, a terra considerada no instrumento legal que instituía a dona-taria, com as regalias, os direitos e as obrigações nele bem definidos etambém com limitações de acção em diversos campos, nomeadamenteo da justiça.

As donatarias estabeleceram-se por toda a área atlântica, semexcluir praças do norte africano e, naturalmente, o Brasil, enquanto noOriente se optou pela solução de um governador, que substituía o rei,embora no âmbito de directrizes definidas por Lisboa, nos actos admi-nistrativos, financeiros, legais e bélicos.

Os donatários atlânticos actuaram, de resto, de dois modos dis-tintos: ou designaram capitães que exerciam os seus poderes, com maisalgumas restrições, nos domínios que os reis lhes haviam designado; ouse transferiram eles mesmos para esses domínios, a fim de os adminis-trarem directamente e deles tirarem maiores proveitos, na qualidade decapitães-donatários. A donataria da Madeira foi do primeiro tipo; dósegundo as que deitaram o povoamento de São Tomé e Príncipe e, jáno século XVI, a ocupação do Brasil.

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A primeira obrigação do donatário, e certamente a mais impor-tante, era a de fazer transferir para o domínio referido no documentode outorga, uma população portuguesa, europeia e africana, que aí seestabelecesse e se ocupasse de exploração da terra; cada um dosprimeiros imigrantes devia desencadear actividades agrícolas de baseque garantissem a subsistência do agregado familiar de si dependente,com excedente para a comunidade que em torno desse núcleo depovoadores se reunia; e ainda para a exportação, em que o donatário semostrava sempre interessado; ou, se preferirmos, essa primeira fase dai ntervenção do donatário visava «colonizar» a área terrestre constituinteda donataria.

Sem o povoamento ou sem a ocupação, é evidente que o dona-tário não podia tirar qualquer benefício da doação real; era neces-sário povoar, ocupar e colocar os homens transferidos para as áreas dadonataria a produzir à custa do seu trabalho, para que o senhor pudesseexercer o direito, que o rei lhe reconhecia, de cobrar vários impostos,que não era a única mas uma significativa fonte de rendimento.

Depois da operação de transferência de gente bastante para a áreaa ocupar, cumpria ao donatário, ou aos seus capitães em seu nome,distribuí-Ia por povoados, em cuja definição intervinha de modo decisivo; em seguida tinha de criar uma estrutura administrativa queregulasse as relações entre os vizinhos dos diversos agregados popu-lacionais, e os de cada um destes entre si, prover à administração dajustiça (repete-se: com alguns limites definidos pelo rei), aproveitar ascondições para a criação de uma assistência religiosa efectiva -numa palavra, tomar todas as medidas com vista a impulsionar o pro-gresso nascente na comunidade recém-criada, dentro dos modelos emprática no reino.

A entrega de terras aos colonos era então feita em regime desesmarias, muito embora, anos e séculos mais tarde, quando a coroa ouo estado se substituiu ao donatário, esse modo de distribuição viesse aser objecto de variadas e, às vezes, bastante frequentes alterações.

Por um diploma régio de 30 de Outubro de 1422 (cujo original seperdeu, mas que foi incorporado num texto de confirmação assinadopor D. Afonso V), sabe-se que o Infante D. Henrique passou a estar

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autorizado a doar as suas terras e as pertencentes à Ordem de Cristo, deque era governador. Quer isto dizer que, em princípio e teoricamente,já o podia fazer a respeito dos solos madeirenses, quando começou apovoar o arquipélago da Madeira no ano de 1425; este ano é indicadocomo do início do povoamento pelo mesmo infante, nas suas dispo-sições testamentárias de 1460.

Acontece, porém, que à data da primeira ocupação do arquipé-lago, o infante ainda não era, efectivamente, o seu donatário; sabe-seisso porque a autorização passada a João Gonçalves Zarco, no sentidode proceder à partilha de terras madeirenses, aparece assinada porD. João 1, num documento em que declara «rei e senhor» das ilhas, por«poder regulado e absoluto»; quer dizer: a administração do arqui-pélago dependia do Rei, e ele não estava disposto a largá-la de mão emfavor do filho.

D. Henrique só viria a alcançar a donataria no reinado do seuirmão D. Duarte, pela carta régia de 26 de Setembro de 1433; o reiafirma nela expressamente ceder ao irmão as «suas ilhas» de Madeira,do Porto Santo e da Deserta, com todos os direitos e rendas que ele,doador, até então para si retivera; declara também expressamente queendossava ao infante D. Henrique a «jurisdição civil e crime, salvo emsentença de morte ou talhamento de membro», casos em que reser-vava para si a resolução final; o donatário ficava igualmente autori-zado, por esse documento, a fazer naquelas ilhas todos os «proveitos ebenfeitorias» que lhe parecessem para bem delas, bem como a aforar,«em perpétuo ou a tempo», todas [ ... ] terras» a quem lhe aprouvesse,com o direito de fazer dádivas de terrenos com a remissão de qualquerforo, prerrogativa que o infante teria em sua vida, e que certamente lhefoi concedida para ele a usar como meio de incentivar o povoamento. Háno texto uma restrição de assinalar: o donatário não podia mandarcunhar moeda própria naqueles territórios, pois o rei queria, e afirma-o,que a «sua» ali «corresse».

Que isto dizer que desde 1425 (se na verdade foi este o ano doarranque do povoamento, o que para alguns historiadores não é abso-lutamente certo) a interferência de D. Henrique no arquipélago daMadeira tinha sido feita a título precário; faltava-lhe o apoio de um

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diploma legal que legitimasse as iniciativas nesse sentido tomadas, e lhealargasse os poderes até os de um autêntico donatário, que apenaslogrou alcançar nesse ano de 1433, pouco depois da morte de seu pai.É ainda de referir que naquele justamente célebre documento,D. Duarte reservava para si não só o foro como também alguns direitosreais (como a dizima do pescado); nos primeiros anos da sua regência,o infante D. Pedro declaria os ocupantes das ilhas dispensados dopagamento de alguns desses impostos, por um determinado período.

D. Henrique nunca terá alimentado o plano de administrar direc-tamente as ilhas contempladas naquela disposição eduardina. Pensouantes em subestabelecer essa obrigação em pessoas da sua confiança,passando para isso cartas de doação: da chamada capitania de Machicoa favor de Tristão Vaz Teixeira, em 8 de Maio de 1440; a de PortoSanto, entregue a Bartolómeu Perestrelo, em 1 de Novembro de 1444; ea do Funchal, que ficou a cargo de João Gonçalves Zarco, em 1 deNovembro de 1450.

Seguindo o mais antigo dos documentos agora citados (e os outrossão de igual teor) verifica-se que, em primeiro lugar, o infante sepreocupa nele em delimitar com o máximo rigor possível a área sobre aqual o cavaleiro da sua casa Tristão Teixeira podia exercer a sua acti-vidade; em seguida vai mais longe e faz dele um verdadeiro capitão--donatário, pois lhes trespassa «a jurisdição [...] do civil e [do]crime, ressalvando a morte ou talhamento de membro, que [no caso] aapelação venha a mim» (substituindo-se abusivamente ao rei). MasD. Henrique não alienava todos os poderes, pois adverte, de formaexpressa, que os «seus mandados e correição sejam cumpridos como emcoisa minha própria».

Tristão Vaz Teixeira tinha, no entanto, direitos sobre moinhos deaçúcar da área da sua capitania, sobre os fornos do pão, sobre o sal,podia criar um imposto sobre rendas já taxadas para o 'infante (direitochamado de redizima) e era-lhe permitido distribuir as terras situadas;na área que lhe estava distribuída, por quem entendesse; estas doaçõesde terras podiam considerar-se prescritas ao fim de cinco anos, caso osbeneficiários as não tivessem devidamente aproveitadas dentro desselapso de tempo.

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O que se cita parece-nos suficiente para se ter uma ideia de como,sob a égide protectora do infante D. Henrique, o capitão passava agozar no arquipélago, embora em áreas restritas, de um estatuto dequase donatário, com larguíssimos poderes, que mais tarde lhe seriamretirados pela coroa, que para si os tomou de novo.

Como se explica que tendo sido iniciado o povoamento em 1425(se, na verdade, foi) só quinze anos volvidos se iniciasse a regulamenta-ção dos meios para pôr em prática tal medida? E não há dúvida queem 1440 o processo de ocupação se encontrava bastante avançado,pois no documento por nós referido há alusões ao cultivo da cana doaçúcar, e esta só podia ser feita com o concurso de vasta mão-de-obraagrícola.

Já em 1914 Damião Peres, ao ocupar-se de A Madeira sob os

Donatários, acabou por se defrontar com tal pergunta. Este histo-riador notou, em primeiro lugar, que as atribuições judiciais conferidasaos capitães pelos referidos diplomas de donatário, deviam ser por elesanteriormente exercidas, baseado na circunstância de se saber comtoda a certeza que assim aconteceu para o caso de Bartolomeu Peres-trelo em relação a Porto Santo; em segundo lugar, não parecia aDamião Peres de aceitar que os diplomas citados fossem antecedidosde outros com objectivos semelhantes ou alternativos, mas visando finsanálogos; deste modo, acabaria por sugerir, como provável ou maiscompreensível que «nos primeiros tempos os futuros capitães-dona-tários actuavam apenas como delegados do Infante, embora com amais lata autoridade». E para melhor fundamento desta sua opiniãorefere que o mesmo infante, na carta de mercê da capitania do Funchala Zarco, explicitamente diz que o fazia «por ele ser o primeiro que, pormeu mandado, adita ilha povoou».

Com esta interpretação ficaria amplamente explicada a presençados três capitães no arquipélago madeirense muito antes de 1440, anoem que, como se disse, foi assinado o mais antigo diploma de doação.

A propósito do teor desses textos fez notar o mesmo historiador, ea razão quanto a nós assiste-lhe, que D. Henrique se «excedera»: naverdade, e mencionámos oportunamente esse facto, ele não tinhadireito a reservar para si a resolução sobre as pesadas sentenças

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referidas, pois o diploma de 1433 a deixava ao arbítrio exclusivo do rei;por outro lado, D. Duarte concedera-lhe a donataria do arquipélago daMadeira apenas em uma vida, e parece evidente que, nessas condi-ções, o infante nunca deveria incluir essas terras no seu testamento,como fez.

Criadas as capitanias, e confirmadas por D. Afonso V poucodepois da batalha de Alfarrobeira, os povoamentos de Porto Santo e daMadeira receberam um forte impulso; e por isso as sedes das duascapitanias foram a curto prazo elevadas a vilas: o Funchal em datai ncerta mas anterior a 1461 (possivelmente em 1452), e Machico umpouco mais tarde, mas com toda a segurança ainda em vida de TristãoVaz Teixeira.

Por morte do Infante D. Henrique a donataria das ilhas da Madeirapassou ao seu filho adoptivo, o infante D. Fernando, e depois a suaviúva, D. Beatriz, que exerceu o poder sobre o arquipélago como tutorado seu filho menor, o duque D. Diogo. Alguns anos mais tarde, sendoeste considerado como uma das figuras de nobreza que encabeçava aconspiração contra D. João II, o rei apunhalou-o (23 de Agostode 1484), passando a donataria para a posse de D. Manuel, então duquede Beja. Quando o Príncipe Perfeito condescendeu em entregar ospoderes de donatário ao jovem e, com razão, amedrontado duque, otexto da concessão estipulava que ela era feita para valer apenas emvida do beneficiário, sendo a donataria integrada na coroa após o seufalecimento. Como é bem sabido, cerca de uma década mais tarde, epor morte de D. João II, o duque foi considerado como seu naturalsucessor, e aclamado rei de Portugal; deste modo a reintegração dasilhas madeirenses no património real acabou por ser feita de um modoautomático.

Entretanto as ilhas tinham-se desenvolvido económica e social-mente, o que veio a dar mais poder aos seus capitães e força à fidal-guia de que se rodeavam, esta aliás revigorada com o poder económico da burguesia com que se cruzava. Consciente do seu peso, essegrupo chegou a fazer frente, com independência e altivez, às deter-minações do rei e dos donatários.

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pectiva de obter «o compromisso de não ser no futuro lançadanenhuma outra» contribuição.

De nada valiam as insistências. Os madeirenses mostraram-sefirmes, recusando-se ao pagamento voluntário do que devia ser por elesconsiderado uma extorsão; em todos os tempos a fuga ao fisco é umaforma de protesto contra impostos iníquos - mas neste caso a resis-tência era massiva! E ó problema arm,tou-se durante anos!

Podiam-se apontar outros atritos como reveladores do confrontoentre o poder re^i, os poderes senhoriais e os habitantes do arquipé-lago, e Damião Peres estudou-os com argúcia. Os donatários (D. Bea-triz, D. Diogo e, por último, D. Manuel), esses estavam sempre, comonão podia deixar de ser, pelo lado do rei, e acabariam' mesmo por ser osporta-vozes dos seus desejos, dos seus caprichos e das suasexigências.

Esse conflito latente, que podia agudizar-se com o tempo, veio aterminar através de uma solução «natural»: a ascensão de D. Manuelao trono, integrou automaticamente o arquipélago da Madeira nosdomínios da coroa; o rei passou a exercer directamente os seus pode-res, dispensando um donatário, e tendo sob sua vigilância, e de algummodo a seu arbítrio, os capitães.

É interessante notar, de qualquer modo, que quase na mesma dataem que o estatuto da donataria desaparecia na Madeira, ele renascia noBrasil; e com apectos na aparência só ligeiramente diferentes, mas emsubstância bem distintos, veio a mostrar-se aí de inegável eficiência,tendo por isso uma vida menos perturbada e mais longa.

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3. EVOLUÇÃO DA ESTRUTURA ECONÓNICAMADEIRENSE 1425-1500

A contemplação do espaço ,rural madeirense, obra-prima dospioneiros da colonização da ilha, transporta-nos para os primórdios dasua ocupação. O rendilhado dos socalcos e levadas, que alastrampelos setecentos e vinte quilómetros quadrados de superfície, amenizao acentuado declive de ambas as vertentes da ilha. Aí, nesse duploanfiteatro sobranceiro ao mar, lançaram os portugueses, na década devinte do século XV, um processo de ocupação e valorização sócio--económica. Assim, de uma ilha de densa floresta, eles fizeram nascerum novo espaço com amplas frentes de arroteamento engalanadas comos núcleos de habitação, dominados pelas ennidas e igrejas.

As expedições iniciais, sucedâneas do reconhecimento das ilhas,lançaram as bases dessa nova sociedade; mercê da transplatação deprodutos agrícolas, meios e técnicas peninsulares: são os degredados eaventureiros, que dão corpo à multidão dos primeiros ocupantes daMadeira, a flora e os artefactos diversos; que dão forma à faina e lazerdiários. Daí a mediterranidade estar sempre presente; na verdade, astecnologias e os produtos da civilização do Mediterrâneo associaram-seao capital e à experiência das suas gentes, para esta primeira aventurano Atlântico.

O empenho desses europeus, ã tecnologia e os produtos que setransportaram na bagagem dos primeiros recém-chegados, em conso-nância com as condições do eco-sistema da ilha (relevo, clima e solo) ,condicionaram a evolução da história madeirense desde o século XV.

A selecção de transplante dos produtos agrícolas cultivados fize-ram-sede acordo com as exigências alimentares dos iniciais ocupan-

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tes. Desta forma o cereal e a vinha, componentes fundamentais dadieta alimentar da Cristandade Ocidental, cresceram lado a lado com opastel e a cana de açúcar. Daí a impossibilidade da utilização demodelos de análise de estrutura económica que apontem para oexclusivo de uma cultura - o ciclo do açúcar.

Nos cronistas do século XV (Francisco Alcoforado, Diogo Gomes,Zurara) ressalta a importância da riqueza agrícola (cereal, vinho,açúcar) e dos recursos do arquipélago (madeiras, urzela, sangue dedragoeiro), como factor de enriquecimento dos povoadores da ilha; eem documento de 1461 insiste na importância do açúcar, do cereal,do vinho e das madeiras nas exportações da ilha.

a. - A propriedade

Na Madeira só pode ser cultivada uma reduzida faixa paralela aolitoral, com cerca de dois quilómetros e meio de profundidade, que nototal não ultrapassa uns trinta mil hectares (cerca de um terço da áreada ilha). A essa exiguidade do espaço arável junta-se a formaçãoorográfica da ilha, que actua como condicionante da ocupação e dadistribuição desse espaço, dando lugar a, essa obra-prima da agricul-tura madeirense: os poios.

Tal condicionalismo pesou na política de distribuição de terras noséculo XV e implicou uma evolução peculiar do sistema de proprie-dade. A sua distribuição foi regulamentada, desde o início, pela coroae, mais tarde, pelo Senhor. No primeiro caso, D. João 1 estipulara queas terras deveriam ser «dadas forras e sem pensão alguma aqueles demaior qualidade e a outros que possanças tiveram para as aproveitar eaos de menor que vivam do seu trabalho de cortar e pilhar madeiras edas criações de gado ... ». Com a criação do senhorio (1433 eaté 1497) essas competências são transferidas para o donatário quedelega os seus poderes nos seus capitães. Com o decorrer dos anosessas normas de distribuição de terras vão sendo alteradas de modo apoderem adequar-se à pressão do movimento demográfico. Assim, oprazo de aproveitamento das terras baixa de dez para cinco anos, ecaduca a possibilidade de nova concessão, findo este prazo.

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A partir da década de sessenta agrava-se a política de concessão deterrenos, mercê do aparecimento de várias demandas sobre a suaposse e sobre as águas, que obrigam a uma pronta intervenção dodonatário por meio do seu ouvidor. Ao mesmo tempo restringem-seas frentes de arroteamento, pondo-se termo à concessão de terras emregime de sesmarias, bem como a prática generalizada do fogo naabertura de novas arroteias, que se reconheceu ser uma ameaça ecoló-gica, e também da economia açucareira.

As reclamações e as medidas consequentes do senhorio atestam apressão do movimento demográfico sobre a concessão de terras. Dasfacilidades da década de vinte entra-se na década de sessenta commedidas limitativas dessas concessões, como forma de preservar áreasde pasto de usufruto comum e de apoiar os principais proprietários decanaviais. As exorbitâncias dos capitães, desrespeitando as ordena-ções régias e senhoriais, conduziram a uma diminuição de áreas depasto ou comunitárias, e também às incessantes reclamações dosmadeirenses. Saliente-se que o próprio D. Manuel, em 1492, contra-ria o regime de concessão de terras, ao permitir ao capitão doFunchal que fizesse a distribuição de terrenos na serra para currais epara cultura de cereais, bem como o das bermas das ribeiras para aplantação de árvores de fruto; por outro lado, no sentido de evitar aexorbitância do capitão em suspender a doação de terras, revoga-se taldireito.

No período de 1433 a 1495 a atribuição de terras de sesmaria erafeita pelo capitão, em (nome do donatário. A carta respectiva deveriaser lavrada pelo escrivão do almoxarifado, na presença do capitão ealmoxarife; no seu enunciado deveriam constar as condições gerais queregulavam esse tipo de concessão, as confrontações, extensão e quali-dade do terreno, capacidade de produção e o tipo de cultura maisprópria para a sua exploração, bem como o prazo do seu aproveita-mento. O colono ou sesmeiro deveria actuar de acordo com o clau-sulado e, findo o prazo estabelecido, adquiria a posse plena do terreno,podendo então vender, doar, «escambar ou fazer dele e em ela comosua própria cousa».

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São poucas as concessões de terras que resistiram ao correr dostempos e que ficaram a testemunhar e a legitimar a posse do solo arávelda ilha. Temos notícia de uma, em 1457, feita a Henrique Alemão:especifica-se nela que o beneficiário fará casa nas terras concedidas,sendo o terreno de lavra ocupado em vinhas, canaviais e horta.

A evolução do movimento demográfico madeirense, acompa-nhado da valorização das zonas aráveis com as culturas de exportação,conduziram a profundas alterações na distribuição e na posse dasterras, aliás já evidente no regimento henriquino. Os mercados internoe externo condicionaram um maior aproveitamento do solo arroteá-vel, tomando-se urgente um adequado reajustamento da estruturafundiária à nova situação. O aparecimento de capitais estrangeiros enacionais conduziu à intensificação do arroteamento das terras e pro-vocou alterações na sua posse por meio das transacções para compra eaforamento enfatiota. Em consonância com estas mutações surge aafirmação do sistema de vinculação da terra, no reinado de D. Manuel,que veio dar origem ao contrato de colónia. Note-se que em 1494 segeneraliza o aforamento dos canaviais na capitania do Funchal, comespecial incidência nas partes do fundo e em Câmara de Lobos.

Com a lei de 9 de Outubro de 1501 põe-se termo à concessão deterras de sesmarias, como forma de impedir a diminuição do parqueflorestal, tão necessário à laboração do açúcar. A partir destemomento, toda a aquisição de terras só poderá fazer-se por compra ouaforamento enfatiota e ainda por transmissão por via familiar, atra-vés de herança, sucessão e dote. Enquanto a compra e a vendasurgem como mecanismos de concentração da propriedade nas mãosda aristocracia e da burguesia enriquecidas com os proventos da pri-meira fase de colonização, ou dos estrangeiros recém-chegados, aherança e dote actuam no sentido inverso, conduzindo à desintegra-ção da grande propriedade. A primeira transacção conhecida datade 1454 e resulta da venda feita por Diogo de Teive a Pedro Gonçal-ves Barbinhas de uma terra no Funchal por dois mil reais brancos.Em 1498 Rui Gonçalves da Câmara vende a sua sesmaria da Lombadada Ponta de Sol a João Esmeraldo. Quanto ao regime de aforamento,que se generaliza nas últimas décadas do século XV, a primeira acta

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surge em 1484, quando Constança Rodrigues entrega uma terra emSanta Catarina a João da Cunha por cinco mil reais de foro. Em 1494esse regime generaliza-se na cultura dos canaviais da capitania doFunchal, com especial incidência nas partes do fundo e em Câmara deLobos.

A presença estrangeira ao nível da estrutura fundiária evidencia-sea partir da década de oitenta, com fixação de vários contingentes deitalianos, flamengos, franceses e castelhanos. Entre eles salienta-seJoão Esmeraldo, que em 1498 aforou a já referida Lombada da Pontade Sol.

A este importante mercador flamengo vieram juntar-se muitosestrangeiros que, entre finais do século XV e meados do século XVI,fixaram a sua residência nas principais áreas de canaviais da vertentemeridional. Atraídos inicialmente pelo comércio do açúcar, acabaminvestindo os seus proventos em canaviais, engenhos e levadas; paraalém de João Esmeraldo, podemos referir os nomes de Simão Acciaoli,João de Bettencourt, Pedro Lominhana Berenguer (o Doutor), JoãoDrumond, António Espíndola, António Leme, Urbano e Sixto Lome-lino, João Mondragão, João Salviati, Adriano Espranger, João Val-devesso, Micer Batista, Maciote de Bettencourt, André França,Pedro Giralte, Martim Leme, Rui Vaz Uzel e Benoco Amador.

Bem relacionados com a alta finança europeia e com os principaiscentros do comércio europeu, cativaram rapidamente a atenção daaristocracia e da burguesia insulares, com que se relacionavam pormeio de laços de parentesco. O casamento com o apetecido dote eramuitas vezes a forma mais simples de alargarem os seus domínios e deafirmarem a sua posição na sociedade local. Assim sucedeu comBenoco Amador, que casou com Petronilha Gonçalves Ferreira, viúvade Esteves Eanes Quintal, detentor de uma grande quinta em SantoAntónio e de terras na Ponte de Sol; em poucos anos transformou-senum grande proprietário e empresário, cuja fazenda adquirira com acompra e arrendamento, por um lado, e com o comércio, a arrema-tação e o empréstimo, por outro. Idênticas situações surgem comJoão Esmeraldo, Simão Acciaoli, Pedro Berenguer, João Drummond,Urbano Lomelino, João Salviati e Micer Batista. Este último era

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casado com a filha de Tristão Vaz, capitão do donatário de capitania deMachico.

Não obstante a forte presença do capital estrangeiro na ilha, a suaactuação ao nível da estrutura fundiária fica muito aquém das expec-tativas; assim, no estimo de 1494 registam-se quinze estrangeiros commenos de um quinto da produção total; embora no século XVI talsituação tendesse a melhorar um pouco, o certo é que o estrangeiromantém uma posição secundária no sector produtivo.

Sendo o Funchal o principal centro do comércio madeirense,lógico será supôr a fixação do estrangeiro no burgo e arredores, alar-gando-se depois a algumas comarcas periféricas com forte incidênciana economia açucareira, como Ribeira Brava, Ponta de Sol e Calheta.Nesses lugares os estrangeiros têm, no século XVI, uma posição impor-tante na produção de açúcar, aparecendo como os principais proprie-tários, dispondo de extensos canaviais, engenho e grande número deescravos. De entre eles salientam-se João de Bettencourt na RibeiraBrava, com duas mil quatrocentas e cinquenta arrobas de açúcar, Joãode França, na Calheta, com mais de três mil e seiscentas arrobas e JoãoEsmeraldo, na Ponta do Sol, com cerca de três mil e trezentas arrobas.É certo que no Funchal temos grandes proprietários, como SimãoAcciaoli, Benoco Amador e João Bettencourt mas, em contraste, a suaposição no quadro geral não atinge o nível dos supracitados. Aliás, éna Ribeira Brava e Ponta de Sol que encontramos a percentagem maiselevada da produção dos estrangeiros.

Em síntese podemos 'firmar que o estrangeiro avizinhado não sepreocupou apenas com o sector produtivo, pois o comércio e o trans-porte dos produtos, que o atraíra, se mantiveram sempre como a actividade principal; o estrangeiro raramente surge na condição de pro-prietário mas com o triplo estatuto de proprietário-mercador--prestamista.

b. Produção

A exploração da ilha orienta-se de acordo com uma política dedesenvolvimento económico dependente dos interesses do tráfico europeu

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internacional. A selecção e transplante dos produtos para as novasarroteias far-se-á, portanto, em consonância com os vectores do diri-gismo económico europeu e, bem assim, com as diferenças e assime-trias derivadas da estrutura do solo e do clima. Estes condiciona-lismos actuam em conjunto como mecanismos virtuais de distribuiçãodas culturas europeao-mediterrânicas, componentes da dieta alimentar(cereais, vinha) ou resultantes das solicitações das principais praçaseuropeias (açúcar, pastel).

Tal situação materializar-se-á numa tendência evidente para umaexploração económica baseada na monocultura ou dominância de umproduto. Contra isso surgirá a heterogeneidade do espaço insular,que condicionará a distribuição das terras, dando azo a uma políticadistributiva ou a uma arrumação dos principais produtos agrícolas;surgem, deste modo, áreas de produção para subsistência e troca,procurando definir-se as condições necessárias à estabilidade das acti-vidades económicas. Assim, o avanço da mancha do açúcar naMadeira implicou a criação de novas áreas de produção cerealífera,capazes de suprirem as exigências da ilha e de outras praças emcarência.

O povoamento e exploração do espaço madeirense filia-se numadupla actividade; com efeito, o carácter agrário desta sociedade nas-cente tem de compatibilizar com as necessidades derivadas da subsistência e das solicitações externas. Ambos os sectores alicerçaram orumo desta economia, definida, por um lado, pela aposta numa agri-cultura de subsistência, assente nos componentes da dieta alimentareuropeia, e, por outro, pela imposição de produtos estranhos, capazesde activarem o sistema de trocas.

A estrutura do sector produtivo adaptar-se-á a estas circunstân-cias. Em consonância com a actividade agrícola, teremos a valori-zação dos recursos do meio insular, que irão integrar os produtos paraalimentação - pesca, silvicultura - e as trocas comerciais - urzela,sumagre, madeiras e derivados, como o pez.

Oriundos de uma área em que a principal componente alimentíciase definia pelos cereais (trigo, cevada, centeio), os colonos europeus

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povoaram as ilhas não menosprezaram o quantitativo do grão neces-sário para a sementeira nestas novas frentes de arroteamento.O fenómeno de ocupação e povoamento das ilhas atlânticas é, assim,caracterizado pela transplantação de homens, técnicas, produtos eformas de domínio e de poder; a ocupação será moldada à imagem esemelhança das terras de origem destes colonos, e por isso surgem assearas, os vinhedos, as hortas e os pomares, tudo dominado pela casade palha e, mais tarde, pelas luxuosas vivendas senhoriais.

Na Madeira, até à década de setenta, a paisagem agrícola serádefinida pelas searas, decoradas de parreiras e canaviais. A culturacerealífera dominava, então, a economia madeirense, referindo FernandoJasmins Pereira, a este propósito, que no período henriquino os cereaisconstituíram a base da colonização da ilha.

A fertilidade do solo, resultante das queimadas, fez com que estacultura atingisse níveis de produção espectaculares, que a historio-grafia quatrocentista e quinhentista anuncia com assiduidade, notandoque se exportava cereal para o reino e as praças africanas.

Segundo Francisco Alcoforado e Diogo Gomes uma medida desementeira equivalia, em média, a sessenta e cinquenta de colheita,situação deveras espectacular se tivermos em conta que na Europararas vezes ultrapassava trinta e só em condições excepcionais se ficavapor quarenta.

Em meados do século, segundo Cadamosto, a ilha produzia trêsmil moios de trigo, o que excedia, em mais de dois terços, as necessi-dades da parca população. Esse excedente era exportado para o reinoe, segundo os cronsitas, vendia-se ao preço de quatro reais o alqueire;desde 1461, mil destinava-se ao saco da Guiné.

Não obstante, a partir da década de sessenta, com a valorização daprodução açucareira, as searas diminuíram em superfície e a produçãocerealífera passou a ser deficitária; a partir de 1466, a ilha precisavamesmo de importar trigo para o sustento dos seus vizinhos, sendo,portanto, impossível manter as escápulas estabelecidas. Aliás,em 1478 referia-se que essa produção dava apenas para quatro meses.Esta situação derivou da acção dominadora dos canaviais, aliada aorápido esgotamento do solo e à inadequação da cultura, resultante de

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uma exploração intensiva, sem recurso a qualquer técnica de arro-teamento.

O agravamento do défice cerealífero nas décadas de setenta eoitenta, que conduziu ao alastramento da fome, em 1485; surgirá comoa principal preocupação das autoridades locais e centrais. Primeiroprocura-se colmatar essa falta inicial com o recurso à Berberia, Porto,Setúbal, Salónica; depois foi necessário definir uma área produtora,capaz de suprir às necessidades dos madeirenses. Assim sucedeudesde 1508, com a definição dos Açores como principal área cerealí-fera do Atlântico português; esse arquipélago actuará como o celeirode provimento da Madeira e substitutivo desta no fornecimento àspraças africanas.

A Madeira que se havia afirmado, no período henriquino, comoum importante mercado de fornecimento de trigo passará, no governofernandino, à situação de comprador, adquirindo mais de metade doseu consumo nas ilhas vizinhas: Açores e Canárias.

A crise cerealífera madeirense surge simultaneamente com a afir-mação da mesma cultura no solo açoreano; aliás Joel Serrão já referiuque a sua valorização açoreana resulta daquela exigência; o rápidoincentivo da cultura no arquipélago dos Açores durante as décadasde 60 e 70, conduziu a uma situação em que o arquipélago, nos finais doséculo, se afirmava como a principal área produtora de trigo do novomundo.

Os cabouqueiros peninsulares transportaram conjuntamente comos poucos grãos de cereal alguns bacelos das boas cepas, existentes noreino, de modo a poderem dispôr do preciso vinho para o ritualcristão e alimento diário. A videira adaptou-se com facilidade ao soloinsular e conquistou uma posição de peso na economia das ilhas.

Cadamosto, que em meados do século XV vitou a Madeira, ficoudeslumbrado com o rápido crescimento desta cultura, aduzindo que ailha atem vinhos muitíssimo bons, e se se considerar que a ilha é habi-tada há pouco tempo, são em tanta quantidade, que chegam para os dailha e se exportam muitos deles».

A cultura da vinha na Madeira absorvia, já nessa altura, uma parteconsiderável da área arroteada da ilha e, de modo especial, a zona

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ribeirinha do Funchal, onde deparamos com doze vinhas e trezelatadas; fora do Funchal, na área entre a ribeira brava e Ponta do Sol,situavam-se apenas oito latadas.

Da certeza e da aposta inicial, testemunhada em 1511 na expressãode Simão Gonçalves da Câmara, segundo a qual a ilha produzia ape-nas pão e vinho, surge a afirmação, a partir de meados do século, denovas culturas, como a cana de açúcar que galvanizava ó empenho dospioneiros madeirenses. Por outro lado, é atribuída maior atenção aosrecursos que a ilha pode oferecer e que apresentam valor econó-mico, e daí a importância dos domínios silvícolas e piscícolas. Por issoZurara (1463-68) refere que os proventos da ilha incidiam sobre o pão,açúcar, mel, madeiras e outros. Incompreensivelmente o cronistaignora o vinho, que já em 1455 era referenciado por Cadamosto comoum produto importante da lavra madeirense.

A cana de açúcar, na sua primeira experiência além Europa,mostrou as possibilidades do seu rápido desenvolvimento fora dohabitat mediterrânico. Esta verificação catalizou as atenções do capitalestrangeiro e nacional, que apostou no crescimento e promoção destacultura na ilha; só assim se poderá compreender o seu rápido avanço.Se nos primórdios da ocupação do solo insular se apresentava comouma cultura subsidiária, passa a partir das últimas décadas doséculo XV a produto dominante, situação que se manterá até o final daprimeira metade do século XVI.

A cana sacarina, usufruindo do apoio e protecção do senhorio e dacoroa, conquista o espaço ocupado pelas searas, atingindo todo o soloarável da ilha. Aí poderemos distinguir duas áreas: a vertente meridional (de Machico à Calheta), com um clima quente e abrigada dosalíseos, onde os canaviais atingem os quatrocentos metros de altitude; eo noroeste, dominado pelas plantações da capitania de Machico (Portoda Cruz e Faial até Santana), solo em que as condições mesológicas nãopermitem a sua cultura além dos duzentos metros, nem uma produçãoidêntica à primeira área.

A capitania do Funchal agregava no seu perímetro as melhoresterras para a cultura da cana de açúcar, ocupando a quase totalidadede espaço da vertente meridional. À capitania de Machico restava

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uma mínima parcela dessa área e todo um vasto espaço acidentadoi mpróprio para tal cultivo. Assim, em 1494, do açúcar produzido nailha apenas um quinto foi proveniente da capitania de Machico.

Na capitania do Funchal os canaviais distribuem-se de modo irre-gular, de acordo com as condições mesológicas da área; deste modo,em 1494, a maior safra situava-se nas partes de fundo, englobando ascomarcas da Ribeira Brava, Ponta de Sol e Calheta, com cerca de doisterços da produção, enquanto ao Funchal e a Câmara de Lobos cabiamenos de um sexto. Em 1520 a diferença mantém-se, pois são ligeirís-simas as alterações. Uma análise em separado das diversas comarcasda capitania do Funchal, na mesma data, evidencia a importância dacomarca do Funchal, seguindo-se a da Calheta; as comarcas da RibeiraBrava e Ponta de Sol surgem numa posição secundária.

Descrita a situação da geografia açucareira madeirense, vejamos asua evolução até meados do século XVI.

Criadas as condiçõees a nível interno, por meio do incentivo aoinvestimento de capitais na cultura da cana de açúcar e no comércio deseus derivados, do apoio do senhorio, da coroa e da administraçãolocal e central, a cana estava em condições de prosperar e de se tomar,por algum tempo, no produto dominante da economia madeirense.O incentivo externo do mercado mediterrânico e nórdico acelerou esteprocesso expansionista; e a sua detenção só se veio a verificar pelaconvergência de vários factores endógenos e exógenos. Tudo istoexplica o rápido movimento ascendente bem como o percurso inverso,pois ao atingir-se o zénite não houve um lapso de tempo de esta-bilidade.

A fase ascendente, que poderá situar-se entre 1450 e 1506, nãoobstante a situação depressionária de 1497-1499, é marcada por umcrescimento acelerado que, entre 1454-1472, se situa em uma médiaamial de 13 %, no primeiro caso, e de 68 %, no segundo. No períodoseguinte, após o colapso de 1497-1499 a recuperação é de tal modorápida que em 1500-1501 o crescimento é de 110 % e entre 1502-1503de 205 %. Esta forte aceleração do ritmo de crescimento nos pri-meiros anos do século XVI irá atingir o máximo em 1506, para se veri-ficar um rápido declínio nos anos imediatos; basta dizer que apenas em

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quatro anos se atingiu um valor inferior ao do início do século.A situação agravou-se nas duas décadas seguintes, baixando na capi-tania do Funchal, entre 1516-1537, em 60%. Na capitania de Machicoa quebra é lenta, sendo consequência de depauperamento do solo e dasua crescente desafeição à cultura. Mas a partir de 1521 a tendên-cia descendente é global e muito marcada, de modo que á produção dofim do primeiro quartel do século se situava ã um nível pouco superiorao registado em 1470, Na década de 30 consumava-se em pleno acrise da economia açucareira e o ilhéu viu-se na necessidade de aban-donar os canaviais e de os substituir pelos vinhedos.

c. Comércio

O desenvolvimento das relações de troca de um qualquer mercadonão resulta apenas da disponibilidade de produtos capazes de o pro-mover, exige também de um conjunto de condicionantes que o possibilitem. Estão entre as condições propiciadoras dó seu curso os meiose as vias de comunicação, os agentes habilitados para os diversosserviços e os instrumentos de pagamento ajustados ao volume eduração das trocas. No caso da Madeira estes condicionantes mere-ceram a adesão dos ilhéus, que souberam encontrar os mecanismospara lhes dar um elevado nível de desenvolvimento.

O europeu impôs e dominou os circuitos de troca, fazendo destaárea uma região periférica definida como um mercado de reserva paraassuas necessidades mercantis. Além disso, as coroas peninsulares,empenhadas num comércio monopolista, intervêm com assiduidadepor meio de uma regulamentação exaustiva das actividades económi-cas, delimitando o campo de manobra dos agentes intervenientes.Esse excessivo intervencionismo; aliado às intempéries, tempestadesmarítimas, peste, pirataria e corso, foram os principais responsáveispelo bloqueamento dos circuitos comerciais em determinadas épocasda centúria em análise.

Houve a necessidade, por parte da administração central e insular,de acompanhar muito de perto estas actividades nos seus múltiplosaspectos, no sentido de assegurar as directrizes acima enunciadas.

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Essa preocupação é constante e abrange todos os sectores deactividade: as autoridades municipais e régias intervêm na produção,no processo transformador das matérias primas, na distribuição ecomércio dos produtos locais e estrangeiros; o município legisla sobre aforma de postura e acórdão, regulamentando de modo pormenorizadotodas as actividades sectoriais; a coroa, por sua vez, através das ins-tituições próprias, intervem por meio de regimentos e alvarás. Destemodo os produtos e as actividades que definem a economia de subsis-tência e de mercado estavam sujeitos aos intervencionalismos municipale régio.

Essa intervenção incide preferencialmente sobre o açúcar, produtoque mereceu especial atenção do senhorio, nomeadamente no tempode D. Manuel; a sua acção, quando donatário e monarca, foi decisivapara a afirmação plena desta cultura é definição do mercado nórdicocomo o seu destino preferencial.

A par da política de regulamentação dos ofícios empenhados nasafra açucareira, estabeleceram-se normas rigorosas de fiscalização daqualidade do açúcar produzido, por meio dos alealdamentos.

A manutenção e a permanência deste movimento comercial implicavaa criação de estruturas de apoio adequadas a uma reserva de capitaldisponível. Isso foi delineado pelos primeiros peninsulares e estrangeiros que iniciaram a sua exploração económica, pois em poucos anosas ilhas inseriram-se com a maior facilidade nos circuitos comerciais doAtlântico, activando uma rede complicada de rotas, que o seu apro-veitamento, aliás, desencadeou.

Na Madeira manteve-se desde meados do século XV um tratoassíduo com o reino, activado de início com as madeiras, a urzela, otrigo e, depois, com o açúcar e o vinho. Esse movimento alargou-se àscidades nórdicas e mediterrânicas com o aparecimento de estrangeirosinteressados no comércio do açúcar. A sua evolução é de tal modorápida e lucrativa que em 1493 a fazenda real lançava uma imposiçãosobre o movimento do porto da cidade para a despesa de construção dacerca e dos muros. De acordo com a dedução feita, a imposição deum vintém sobre a tonelagem dos navios renderia cem mil reais, e a deum por cento sobre as mercadorias, duzentos e cinquenta mil reais.

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O açúcar deveria ser o principal responsável por tão elevadaquantia. Aliás o mesmo produto contribuiu para o arranque decisivoe consequente inserção da Madeira na economia europeia. O acelerado ritmo de crescimento da ilha condicionou a atracção de diversascorrentes imigratórias europeias. Tal situação é definida em 1508pelo monarca D. Manuel ao justificar a elevação do Funchal a cidade:«tem crescido em mui grande povoação e como nela vivem muitosfidalgos cavaleiros e pessoas honradas e de grandes fazendas, pelasquais e pelo grande trato da dita ilha...».

A afirmação da tendência de monocultura condicionou a economiamadeirense, marcando a sua forte dependência relativamente ao mercadoexterno, uma vez que a ilha necessitava desse mercado para a colocação do açúcar e para se abastecer de produtos alimentares (carne,pescado, legumes, cereais, azeite, sal) e de artefactos (ferro, telha,barro, panos, linho, etc.).

Até à afirmação da economia açucareira, a partir de meados doséculo XV, a Madeira evidenciou-se como o principal celeiro atlân-tico, fornecedor das praças e das áreas do litoral português carecidosdo cereal. Para isso a coroa traçou uma política cerealífera, definidapela abertura das duas rotas de escoamento: a primeira, orientada nosentido os portos do reino (Lisboa, Porto, Lagos), foi delineadaem 1439 por meio de isenções fiscais; a segunda foi imposta pelacoroa em tempos de D. Afonso V, e tinha como finalidade o abaste-cimento das praças do litoral saariano e guineense. Esta últimasituação definia-se pelo monopólio ou direito preferencial, por meio decontrato firmado com os mercadores. Assim, em 1466 todo o trigodos direitos do infante estava entregue a um mercador catalão, enquantoem 1473 se estabeleceu um contrato com Baptista Lomelim para que«todo o trigo que ai houver o possa tirar para fora dela ilha».

As dificuldades sentidas, a partir de 1461, agravadas na décadaseguinte, introduziram profundas alterações na economia madeirense,que conduziriam a uma inversão do comércio do cereal. As tentativasdo infante D. Fernando, em 1461 e em 1466, para manter a domi-nante cerealífera na economia madeirense e as consequentes rotas do

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escoamento, esboroaram-se perante a alta rendibilidade e valorizaçãoda cultura do açúcar.

O comércio é o principal activador das trocas com o mercadoeuropeu; e o açúcar assume na Madeira uma posição dominante naprodução e no comércio entre 1450 e 1550. O regime do comércio doaçúcar madeirense nos séculos XV e XVI, segundo opinião de VitorinoMagalhães Godinho «vai oscilar entre a liberdade fortemente res-tringida pela intervenção quer da coroa quer dos poderosos capita-listas, de um lado, e o monopólio global, primeiro, posteriormente umconjunto de monopólio cada qual em relação com uma escápula deoutra banda». Deste modo o comércio apenas se manteve em regimelivre até 1469, data em que a baixa do preço veio a condicionar a inter-venção do senhorio, que estipula o exclusivo do seu comércio aosmercadores de Lisboa. O madeirense, habituado a negociar com osestrangeiros, reage veementemente contra essa decisão, pelo que oInfante D. Fernando, restringidas as suas possibilidades, arremataem 1471 todo o açúcar a uma companhia formada por Gil Vicente,Álvaro Esteves, Baptista Lomelim, Francisco Calvo, Martim Anes BoaViagem. Dessa decisão resultou um conflito aceso entre a vereação eos referidos contratadores.

Passados vinte e um anos a ilha debatia-se ainda com uma con-juntura difícil no comércio açucareiro, pelo que a coroa retoma,em 1488 e em 1495, a pretensão do monopólio da comercialização doaçúcar, apenas conseguindo, no entanto, impôr um conjunto de medidasregulamentadoras da cultura, safra e comércio, promulgadas em 1490e 1496. Esta política, definida no sentido de defesa do rendimento doaçúcar, irá saldar-se mais uma vez por um fracasso, pelo que em 1498 étentada uma nova solução, com o estabelecimento de um contigentede cento e vinte mil arrobas para exportação, partilhadas por diversasescápulas europeias.

Estabilizada a produção e definidos os mercados do comércio doaçúcar, a economia madeirense não necessitava dessa rigorosa regu-lamentação, pelo que em 1499 o monarca revogou algumas das prerrogativas estipuladas no ano antecendente mantendo-se, no entanto, oregime de contrato para a sua venda. Só em 1508 foi revogada toda a

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legislação anterior, activando-se o regime de liberdade comercial;assim estipulava o foral da capitania do Funchal, em 1515, ao anunciarque: «Os ditos açúcares se poderão carregai para o Levante é Poente epara todas outras partes que os mercadores e pessoas que os carregaremaprouver, sem lhe isso ser posto embargo algum».

O estabelecimento das escápulas em' 1498 definia de modo precisoo mercado consumidor do açúcar madeirense, que se circunscrevia atrês áreas distintas: o reino, a Europa nórdica e a mediterrânica. Aspraças do mar do Norte dominavam, recebendo mais de metade dasreferidas escápulas; entre elas evidenciavam-se as praças circunscritasà Flandres. No Mediterrânico a posição cimeira é atribuída a Veneza,conjuntamente com as praças levantinas de Chios e Constantinopla.

Se compararmos as escápulas com o açúcar consignado às diversaspraças europeias no período de 1490 e 1550, verifica-se que o roteironão estava muito aquém da realidade; as únicas diferenças relevantesna equivalência surgem nas praças da Turquia, França e Itália, sendode salientar nesta última um reforço acentuado da sua posição; todavia,essa diferença poderá resultar apenas da actuação das cidades italianascomo centros de redistribuição no mercado levantino e francês.Note-se que os italianos detinham mais de dois terços do açúcar tran-sacionado nesse período.

Os dados disponíveis para-o comércio do açúcar na Madeira;referentes a esse lapso de tempo, mostram que ele se manteve cons-tante para os mercados flamengo e italiano. 0 reino, circunscrito aosportos de Lisboa, Vila do Conde e Viana do Castelo, surge em ter-ceiro lugar apenas com cerca de um décimo do total. Viana doCastelo teria, de resto, uma função redistribuidora do açúcar madei-rense no mercado nórdico.

Para as transacções com o mundo mediterrânico existiam igual-mente alguns entrepostos, nomeadamente em Cádiz e em Barcelona.Estas cidades apresentam-se, no período de 1493 a 1537, como portosde apoio ao comércio com Génova, Constantinopla, Chios e ÁguasMortas.

A ordenança de 1498 não determinava apenas o contingente dasdiversas escápulas, mas também a forma da sua comercialização.

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A coroa, para dar maior facilidade ao seu escoamento, monopolizavaas escápulas de Roma e Veneza, vinte mil arrobas das de Flandres etrês mil das de Inglaterra, no total equivalente a um terço da pro-dução; A este açúcar juntava-se o quantitativo do quinto ou quarto eda dízima de exportação, que o rei carregava por meio de contratoestabelecido com as grandes companhias nacionais e internacionais.

Até 1504 as escápulas e o produto dos direitos reais foramcanalizados para o mercado europeu, quer por carregação directa,quer por negócio livre ou a troco de pimenta. Esse açúcar era arrendado por mercadores ou sociedades comerciais, sediados em Lisboa,sendo primordial a actuação dos mercadores italianos, como JoãoFrancisco Affaiti e Lucas Salvago.

O comércio madeirense com a Europa definia-se por uma multi-plicidade de produtos, agentes, rotas e mercados. A península, mercêda sua intervenção no reconhecimento, ocupação e valorização económica desta ilha, apresentar-se-á como mercado mais importante.Esta área será o elo de ligação entre a ilha e as principais praçaseuropeias no mar do Norte e do Mediterrâneo. Assim, a partir deLisboa, Cádiz e Sevilha activar-se-á um assíduo comércio, secundadopelos outros portos atlânticos e mediterrânicos do litoral peninsular.A essas praças peninsulares afluiu um grupo de mercadores italianos,franceses, flamengos e ingleses interessados no comércio atlântico eapostados nesta nova economia de mercado. Se numa primeira fase asua intervenção estava limitada à península, num segundo momento,facilitada a sua intervenção nas ilhas, actuaram a partir delas, onde seafirmaram como os principais homens de negócios; daí estabeleceramcontactos e rotas directas com as principais praças do Mediterrâneo edo Norte.

A Madeira, foi de todas as ilhas a primeira a merecer umaocupação efectiva, alicerçou o seu comércio nos contactos com aszonas costeiras da proveniência dos seus colonos e com as principaispraças de origem dos mercadores forasteiros. Se no início os contactoseram sazonais e se justificam apenas pelas necessidades do povoamentoe governo da terra, numa segunda fase eles passaram a fazer-se comassiduidade, mercê do comércio activo com a Europa Ocidental.

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Os cronistas do século XV e XVI referem com frequência a abun-dância de madeira na ilha que, em face da abertura de diversas frentesde arroteamento, condicionou um rendoso comércio com o reino ecom outras partes. De acordo com a mesma informação, a explora-ção de madeiras fazia-se em regime industrial com o objectivo defabrico de embarcações, mobiliário para a exportação e de caixas paraembalagem de açúcar. O volume de exportação de madeiras foi de talordem que conduziu a alteração na técnica de construção naval e civildo reino.

O comércio das madeiras foi certamente a primeira actividade queconstituiu uma fonte de riqueza para os colonos e senhores da ilha,conforme se depreende do indeferimento dado, em 1461, pelo infanteD. Femando, ao pedido de isenção da dizima da sua exportação.

Os contactos entre a Madeira e o reino, ao longo dos séculos XVe XVI, eram constantes e faziam-se com maior frequência com osportos de Lisboa, Viana e Caminha. Os marinheiros e mercadores dosportos do norte, nomeadamente da região costeira de entre-Douro-e--Minho, frequentavam com assiduidade o porto do Funchal, paracomerciar o açúcar a troco de panos e carne.

A Madeira ofereceu ao mercador continental, num primeiromomento, as suas madeiras e o excedente de cereais. Todavia o prin-cipal comércio com o reino foi o açúcar, solicitado desde o início pelosmercadores nacionais, que procuravam firmar o monopólio da rotalisboeta. A ilha recebia em troca um grupo variado de produtosnecessários para o uso e o consumo quotidianos, como ferramentas,panos, tecidos, telha, louça, barro, ferro, carne, peixe, sal e azeite.Tudo isto a troco de açúcar e da reexportação de alguns produtos,como peles; escravos, breu e algodão.

A importação de louça fazia-se com assiduidade dos principaisportos continentais como Setúbal, Lisboa e Porto; e, de igual modo, asformas para o fabrico do açúcar deveriam ser provenientes do continente europeu, nomeadamente da região do Barreiro, tendo em contaa escassez de barro na ilha e, por isso, o fraquíssimo desenvolvimentoda olaria local.

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4. A ESTRUTURA SOCIAL DA POPULAÇÃOMADEIRENSE; SUA EVOLUÇÃO

O povoamento da Madeira, iniciado na década de vinte nospequenos núcleos do Funchal e Machico, alastrou rapidamente portoda a costa meridional, surgindo novos centros populacionais emSanta Cruz, Câmara de Lobos, Ribeira Brava, Ponta de Sol e Calheta.As condições orográficas condicionaram os rumos dessa ocupação daterra madeirense, enquanto a elevada fertilidade do solo e a pressão domovimento demográfico implicaram um rápido processo de humanizaçãoe de valorização sócio-económica da ilha.

Aos obreiros e cabouqueiros iniciais seguiram-se diversas levas degente para esse rápido arranque de ocupação. No grupo surgem trintae seis apaniguados da casa do Infante, na sua maioria escudeiros ecriados, que adquirem uma posição proeminente na dinâmica admi-nistrativa e na estrutura fundiária.

Enquanto os homens importantes detinham uma posição desafogadano reino e ambicionavam melhor situação noutras paragens do Atlân-tico, à ilha afluíam muitos de inferior qualidade ou preteridos dafamília pelo regime de sucessão vigente; note-se que o próprio JoãoGonçalves Zarco sentiu essa situação ao solicitar junto da coroa varõesde qualidade para casarem com as suas filhas; foi para responder a essepedido que o monarca terá enviado Garcia Homem de Sousa, DiogoCabral e Diogo Afonso de Aguiar. -

Na relação dos homens bons da capitania do Funchal, em 1471, amaioria surgia como escudeiros (36%), sendo reduzido o número decavaleiros (10%) e fidalgos (5%).

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A partir de finais do século XV a elevada condição social dosprimeiros povoadores e de seus descendentes (resultante da sua inter-venção na estrutura administrativa madeirense, na safra açucareira, eda (obilitação régia), é o índice da formação de uma aristocraciainsular; ela marca uma posição de evidência no panorama aristocrá-tico nacional, competindo com a velha aristocracia do reino nasaventuras bélicas no norte de África e no Oriente, ou nas viagens deexploração do litoral africano e para o ocidente.

É comum atribuir-se a proveniência algarvia `aos primeiros eprincipais povoadores que desencadearam a ocupação da ilha. Essaideia filia-se na tradição, que corre no Algarve, da participação das suasgentes na gesta expansionista, e na expressão de Jerónimo Dias Leite,«muitos do Algarve»; no entanto parece-nos apressada, uma vez quefaltam provas que a corroborem. Numa listagem dos primeirospovoadores referidos nos documentos e crónicas a presença nortenha émuito superior à algarvia (64 % para 25 %); por outro lado os registosparoquiais da freguesia da Sé, no período de 1539 a 1600, corrobo-ram esta conclusão, uma vez que os nubentes oriundos de Braga, Vianae Porto representam metade do total; enquanto os provenientes deFaro não ultrapassam os 3 %. É de referir que alguns dos maiseminentes investigadores madeirenses hesitam entre a procedênciaminhota e algarvia dos primeiros colonos; Emesto Gonçalves, noentanto, é peremptório em apontar a origem minhota desses primeirosobreiros do povoamento da Madeira.

O povoamento da Madeira é um processo em que participamgentes oriundas das mais diversas origens; praticamente todo o reino seempenhou nesta experiência tentadora, em especial as gentes das áreasribeirinhas - Lisboa, Lagos, Aveiro, Porto e Viana - e os estran-geiros, adestrados no arroteamento de terras incultas. Se é certo quedo Algarve partiram muitos dos homens da casa do Infante, que vierama ter uma função de relevo no lançamento das bases institucionais dosenhorio, não é menos certo que do norte de Portugal nomeadamenteda região de entre-Douro-e-Minho, provieram os cabouqueiros neces-sários para desbravar a densa floresta e preparar o solo para o lan-çamento de culturas mediterrânicas; entretanto, do Mediterrâneo

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chegavam os italianos, com a sua experiência e o capital necessáriopara o lançamento da cultura do pastel e do açúcar. Mas o norte dePortugal, quer pelo facto de ser região do país mais densamentepovoada, quer pela sua permanente vinculação à economia madei-rense, terá exercido. uma influência decisiva nesse processo.

A nova realidade insular atlântica projectada na península deulugar ao rápido povoamento da ilha e a sua também célebre valoriza-ção sócio-económica. O fluxo imigratório europeu desenvolveu-se eacelerou o movimento demográfico madeirense; do reduzido númerode colonos que acompanharam os três promotores da iniciativa dopovoamento na década de vinte, na década de quarenta passa-se paracento e cinquenta famílias importantes, na década seguinte para oito-centos e em princípios do século XVI (1514) atinge-se uma populaçãode 5.000 habitantes. Este crescimento demográfico corresponde aonível do desenvolvimento económico da ilha e pressiona a evolução dadinâmica institucional e religiosa. A criação dos municípios e dasparóquias, e a evolução genérica do sistema administrativo e fiscal,aparecem como os principais aferidos dessa situação galopante dademografia e da economia madeirenses.

No século XV o povoamento orienta-se para o litoral meridional,sendo os locais de fixação definidos pelas enseadas abertas à comuni-cação com o exterior e pelas extensas clareiras aptas para a faina agrícola. As iniciais capelas para o serviço religioso no Funchal e noMachico, juntam-se outras em Santo António, Câmara de Lobos,Ribeira Brava, Ponta do Sol, Arco da Calheta e Santa Cruz; por outrolado; as dificuldades de comunicação dos diversos núcleos de povoa-mento adstritos à capitania do Funchal conduziram a uma redefinição daorgânica administrativa e fiscal. Primeiro surgem os pedâneos ealcaides dos lugares de Câmara de Lobos e Ribeira Brava, e depoisaparece a estrutura municipal a legitimar uma incessante aspiração doshabitantes das chamadas partes do fundo. Todavia, só em princípiosdo século XVI, com o governo manuelino, vieram a ser atendidas aspretensões dos homens da referida área, criando-se os municípios daPonta de Sol (1501) e da Calheta (1502).

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De acordo com o arrolamento dos homens-bons para servir noconcelho do Funchal, em 1495, as famílias mais importantes encon-travam-se instaladas na área da sede concelhia; 66% delas pertencemao Funchal enquanto que as restantes se distribuem por Câmara deLobos (16%), Ponta de Sol (11%) e Calheta (6%).

O segundo município surge apenas em 1515 nas partes de Machico,e ficou sediado em Santa Cruz. Toda a costa norte, incluída nacapitania de Machico, manteve-se nos séculos XV e XVIII vinculada àsestruturas de poder sediadas no novo município; só em 1743 surigiriaem S. Vicente a primeira estrutura de poder municipal em toda essaextensa faixa nortenha; tal situação reflecte não só o abandono a quefoi votada toda a extensa área arborizada, mercê das dificuldades deacesso, mas também um indicador da macrocefalia da estruturaadministrativa da capitania.

Em 1508, ao elevar a vila do Funchal a cidade, o monarca referiraque o aglomerado populacional tinha crescido «em mui grande povoa-ção e como vivem nela muitos fidalgos cavaleiros e pessoas honradas ede grandes fazendas, pelas quais e pelo grande trato da dita ilhaesperamos com ajuda de Nosso Senhor que a dita ilha muito mais seenobreça e acrescente...».

A par dessa evolução da orgânica municipal é religiosa, a dinâ-mica institucional madeirense sofre noutros campos profundas mutações,como forma de adaptação aos novos condicionalismos do processosócio-económico; e nesse sentido foram importantes as iniciativas dosenhorio depois da década de sessenta: enquanto em 1477 D. Beatrizprocurou orientar a economia madeirense para o mercado externo,com a criação de duas alfândegas, no Funchal e em Machico,D. Manuel deu em 1486 o impulso decisivo para a implantação de umaestrutura administrativa adequada às, exigências do final do século; foiD. Manuel quem ordenou a construção de uma igreja, de uma casapara a câmara, do paço para os tabeliães, da alfândega e do paçopúblico, cedendo para o efeito terrenos que lhe pertenciam e conhe-cidos como o Campo do Duque. Desta forma o burgo funchalenseampliou-se e a malha urbana ganhou uma estrutura renascentista.

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A partir desse núcleo inicial de povoadores, disseminados pelasdiversas frentes de arroteamento da ilha, ganha forma uma novasociedade com uma dinâmica semelhante à do reino. A sua estruturaçãopartirá desse estatuto preferencial dos primeiros habitantes e evoluirácom a afirmação da estrutura institucional e económica.

O grupo europeu peninsular tinha uma importância primordial naformação dessa nova sociedade, sendo pouco representativa a presençade outros grupos étnicos; destes apenas se salientam os africanos(mouros, negros e guanches) que surgem na ilha sob à condição servil;mas desempenharam um importante papel relacionado com o arranqueda economia açucareira.

Dentro dessa população madeirense surgem diferenças de condiçãosocial que determinam os diversos estatutos ou categorias sociais -privilegiados, povo e minorias. Sem pretender fazer agora uma análiseexaustiva da questão, e pondo de parte a discussão dos conceitos emodelos, daremos conta de alguns dados que permitam uma conve-niente elucidação do edifício social madeirense no século XV.A escassez de documentação, nomeadamente para os primeiros cin-quenta anos de ocupação da ilha, impede-nos de apresentar uma visãocompleta da dinâmica social madeirense no primeiro século que seseguiu ao seu povoamento.

No entanto, alguma documentação existente permite, ainda assimenunciar a forma de diferenciação dos diversos estratos sociais. Naverdade, o senhorio e o monarca, na correspondência para os homensda ilha, estabelecem diversas categorias sociais: em 1425 o rei, dife-rencia fidalgos, cavaleiros, escudeiros e povo, enquanto em 1466 osenhorio saudava os capitães, fidalgos, cavaleiros, juízes vereadores,procurador e homens-bons. Dois tipos de tratamento diferenciadosque espelham a realidade social madeirense: no primeiro caso estamosperante um grupo heterogéneo de privilegiados e o povo, enquanto nosegundo se referencia apenas o primeiro, cujo estatuto depende da suacondição nobre e do exercício de funções.

Em 1944 a diferenciação de ambos os grupos torna-se mais explí-cita; um texto refere o «povo meúdo» e os «mesteres» em oposição aos

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«principais». Note-se que em 1508 essa oposição derivava do facto deestes últimos serem pessoas «honradas e de grandes fazendas»; assim oseu estatuto social define-se não só pela origem mas também pelariqueza e pelo exercício do poder, que deram origem à nova aristo-cracia insular.

O exercício do poder, nomeadamente municipal, era uma dasprincipais prerrogativas diferenciadoras dessa aristocracia; os que deleparticipam aparecem arrolados como homens-bons do concelho,detendo uma activa intervenção no município, que era o seu órgão degoverno; note-se que somente em 1484 foi nele permitido o assento dosprocuradores dos mesteres. Todavia aquela intervenção não se resumiaao poder municipal, pois ia-se alargando às diversas estruturas insti-tucionais que o desenvolvimento demográfico e económico implicava;assim, no período de 1454 a 1517, os três grupos da aristocracia surgemcom uma posição relevante na estrutura institucional madeirense.A mesma documentação da Câmara dá conta de que, no período emcausa, entre homens-bons se contam praticamente as mesmas percen-tagens de fidalgos, cavaleiros e escudeiros; note-se que no primeiro esegundo casos surgem os capitães do donatário, enquanto no últimoaparecem amos e criados do capitão, mercadores, sapateiros e vedordas obras da Sé. Em 1471 no mesmo grupo de homens-bens, no totalde vinte e oito, contavam-se cinco relacionados com ó capitão e setecom o senhor; o que marca bem a importância destas duas figuras nadinâmica social madeirense.

A par deste grupo de mando, de ócio e de façanhas bélicas nonorte de África, existia uma numerosa pléiade de subordinados (ren-deiros, assalariados, mesteres e escravos), que contribuía para o progressoagrícola e mercantil da ilha. Aliás, a sua importância na sociedademadeirense reforçava-se com o progresso económico da ilha. Comose disse, os mesteres somente em 1484 fazem ouvir a sua voz navereação por meio de criação da «Casa dos Vinte e Quatro»; dois anosmais tarde foi-lhes atribuída uma participação activa na procissão doCorpo de Deus. O lugar que os mesteres nela ocupavam, poderá signi-ficar uma hierarquização dos ofícios, que se fazia de acordo com o esta-belecido em 1453 para Lisboa. A relação dos mordomos dos ofícios,

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feita no ano de 1486 pela vereação, indica a estrutura sócio-profissional;pedreiros, sapateiros, alfaiates, barbeiros, vinhateiros, tecelões, besteiros,hortelães, almueiros, pescadores, mercadores, almocreves, ourives,tabeliães e tanoeiros. Para os anos imediatos dispomos de dadosreferentes à fiança e aos juízes dos ofícios (ferradores, ferreiros,barbeiros e moleiros) que testemunham a dimensão adquirida pelaestrutura oficinal, mercê da exigência da sociedade para serem asseguradasas necessidades básicas, pois o isolamento e as dificuldades de contactocom a Europa impossibilitava o abastecimento dos artefactos de usocorrente aí produzidos. A importância e a fixação dos mesteres emdeterminadas áreas do burgo veio dar origem a ruas com o nome dosdiversos ofícios aí sediados - como a dos ferreiros, a dos tanoeiros, ados caixeiros, etc.

A par dos ofícios apareciam os trabalhadores braçais ou assolda-dados, que se dedicavam a diversas tarefas no campo e no burgo.O seu serviço era onerado com a redízima; este tributo, prejudicial aoexercício dessas actividades, punha em causa a segurança da terra,pois, segundo se dizia em 1466, tal situação conduzia ao aumento dosescravos; a mesma preocupação evidencia-se em 1489, apontando-se asaída de homens para as campanhas africanas como um perigo para asegurança da ilha, devido o elevado número de escravos que nelahavia.

Verifica-se, portanto, que o grupo servil surgiu com uma importânciarelevante na sociedade madeirense na segunda metade do século XV; oseu peso gerou preocupação e tomou necessária a regulamentação dosseus movimentos e do seu espaça de convívio; daí a exigência dos neleincluídos usarem um sinal, de se recolherem à casa do senhor, aomesmo tempo que se ordenou a explosão dos forros, com excepção doscanários. Os escravos negros surgem como assalariados, vendedoresde fruta dos seus senhores, enquanto os guanches eram pastores emestres de engenho.

A Madeira atraiu a partir de meados do século XV uma vaga deforasteiros, mercê da prioridade na ocupação e na exploração doaçúcar. Só o impediam as ordenanças limitativas da residência na

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ilha, resultante da sua rápida fixação da sua intervenção nos circuitoscomerciais madeirenses.

Em meados do século XV a coroa facultava a entrada e a fixaçãode italianos, flamengos, franceses e bretões, por meio de privilégiosespeciais, como forma de assegurar um mercado europeu para oaçúcar; mas a grande influência que esses estrangeiros rapidamentealcançaram, tornou-se lesiva para os mercadores nacionais e para acoroa, pelo que se mostrou necessário impedir que eles pudessem«assim soltamente tratar todos»; deste modo o senhor ordenou a proi-bição da sua permanência na ilha como vizinhos. O problema foilevado às cortes de Coimbra, em 1472-1473, e às de Évora, em 1481,reclamando a burguesia do reino contra o monopólio, de facto, dosmercadores genoveses e judeus no comércio do açúcar; para issopropunha a exploração de tal comércio a partir de Lisboa e nas mesmascondições.

O monarca, comprometido com a posição vantajosa dos estran-geiros, mercê dos privilégios que lhes concedera, actuou de modoambíguo, procurando salvaguardar compromissos e ao mesmo tempoatender às solicitações que eram dirigidas; nesse sentido estabeleceulimitações à residência dos estrangeiros no reino, fazendo-a dependerde licenças especiais; quanto à Madeira definiu a impossibilidade dasua vizinhança sem licença sua, ao mesmo tempo que lhes interditava arevenda no mercado local; a câmara, por seu turno, baseada nestasordenações e no desejo dos seus moradores, ordenou a sua saída atéSetembro de 1480, no que foi impedida pelo senhor; somente em 1489se reconhece a utilidade da presença de estrangeiros na ilha, ordenandoD. João II a D. Manuel, então Duque de Beja, que os estrangeirosfossem considerados como «naturais e vizinhos de nossos reinos».

Os problemas do mercado açucareiro na década de 90 conduziramao ressurgimento dessa política xenófona. Os estrangeiros passaram adispôr de três ou quatro meses, entre Abril e meados de Setembro, paracomerciar os seus produtos, não podendo dispôr de loja e feitor;D. Manuel apenas em 1493 reconheceu o prejuízo que as referidasmedidas causavam à economia madeirense, afugentando os mercadores,pelo que revogou as interdições anteriormente impostas; as facilidades

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então concedidas à estada destes agentes forasteiros conduziriam àassiduidade da sua frequência nesta praça, bem como à sua fixação eintervenção de modo acentuado na estrutura fundiária e admi-nistrativa.

A comunidade de mercadores estrangeiros na Madeira estavadominada pelos italianos, a que se seguiam os flamengos e os fran-ceses; todos surgiram na terra atraídos pelo tão solicitado ouro branco.

Os italianos, em especial florentinos e genoveses, conseguiram,desde meados do século XV, implantar-se na Madeira como os prin-cipais agentes do comércio do açúcar, alargando depois a sua actuaçãoao domínio fundiário, por meio da compra e laços matrimoniais. Nadécada de 70, mediante o contrato estabelecido com o senhor da ilha,detinham já uma posição maioritária na sociedade criada para o efeito,sendo representados por Baptista Lomellini, Francisco Galvo e MicerLeão; no último quartel do século vêm juntar-se a estes CristovãoColombo, João António Cesare, Bartolomeu Marchioni, JerónimoSemigi e Luís Doria. A este grupo inicial seguiu-se, em princípios doséculo XVI, outro mais numeroso, que alicerçou a comunidade italianaresidente, distinguindo-se nele Lourenço Cattaneo, João RodriguesCastelhano, Chirio Cattano, Sebastião Centurione, Luca Salvago, Giovannie Lucano Spinola.

A actividade comercial, principal móbil da fixação dos estrangeiros,não absorveu por completo a sua intervenção, pois eles subdividem asua vida quotidiana entre o comércio, o transporte, a banca, a produçãoe as administrações local e central; as primeiras actividades comple-mentavam-se e garantiam-lhes um pecúlio vantajoso, enquanto a última lhesassegurava as condições e os meios preferenciais para a sua acção.A par disso, o interrelacionamento matrimonial com as principaisfamílias reforçou a sua posição na sociedade madeirense.

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5. A IGREJA NA MADEIRA NO SÉCULO XV

Partindo do princípio de que o processo de expansão europeia noséculo XV se confunde com a expansão da Cristandade Ocidental, ede que com a gesta marítima lusíada se relaciona a religião como umadas principais motivações, teremos que admitir o rápido empenha-mento dos navegadores e da coroa protuguesa na definição de umaestrutura religiosa adequada às diversas manifestações culturais doscrentes sediados nos novos espaços de ocupação atlântica.

Aos primeiros navegadores e povoadores associam-se os francis-canos, que asseguram a necessária «povoação do céu» no mar e nasprimeiras áreas ocupadas. São eles que acompanham João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz Teixeira na primeira viagem de reconhe-cimento e ocupação da Madeira, e serão eles também que tomarãoa iniciativa do primeiro serviço religioso e da definição do primeiroespaço sagrado no vale de Machico; quer dizer: ergueram nas duascapitanias da Madeira as primeiras estruturas para apoio da sua acti-vidade sacerdotal.

Como reconhecimento da costa da ilha, os seus principais pro-motores - João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz Teixeira- destina-ram os lugares de habitação e mandaram erguer capelas - Machico,Funchal, Câmara de Lobos, Campanário, Ponta de Sol e Calheta. Destaforma a preocupação de ambos era, segundo Jerónimo Dias Leite,«pôr em obra a edificação das igrejas e das vilas e lugares, e lavrançadas terras», pois a sua acção tinha como finalidade «manter todos emjustiça, paz, e quietação, e que vivessem todos em serviço de Deus».

A par disso o Infante D. Henrique; como senhor da ilha, pre-ocupou-se com o serviço religioso do arquipélago, tendo ordenado,

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segundo o testamento de 1460, a construção das igrejas de SantaMaria, de Porto Santo e da Deserta. Tal determinação derivava dousufruto que o infante detinha, desde 1433, da jurisdição espiritual ereligiosa do arquipélago. A partir dessa data todo o serviço religiosoda ilha dependia do vigário de Tomar, situação que se manteve atéà criação da diocese do Funchal, em 1514; durante esse período osassuntos religiosos do arquipélago não tiveram qualquer filiação a umadiocese; e nem a criação do bispado de Tânger (1468), com pretensãojurisdicional sobre todo o espaço atlântico, conseguiu impedir a hege-monia do vicariato de Tomar na Madeira.

O primeiro vigário da ilha foi o Padre João Gonçalves, sendodesconhecida a data da sua nomeação, que apenas é citada para osegundo, Francisco Nuno Gonçalves apresentado em 1476; estemanteve-se ao serviço até 1485, ano em que foi solicitado a sairpelos moradores do Funchal; depois, só em 1490 surge novo vigáriode Santa Maria do Funchal, Frei Nuno Cão, que encontrou umexcelente acolhimento dos funchalenses; em Machico aparece,desde 1450, um Frei João Garcia como vigário da capitania local.A ambos os vigários eram atribuídos poderes de administração e aprática religiosa nas respectivas capitanias; eles dependiam directa-mente, como se disse, do vigário de Tomar, não podendo ser moles-tados na sua acção pelos capitães do donatário.

A pressão do movimento demográfico e o progresso económicoda ilha implicaram novas exigências em relação à assistência reli-giosa. Assim, em 1461 os moradores do Funchal exigiam mais padrespara assegurarem o serviço religioso em Câmara de Lobos, RibeiraBrava, Ponta de Sol e Arco da Calheta. O serviço religioso era feitoaos domingos e dias santificados na Capela do Infante no Funchal,não lhes sendo exigido tal serviço nos dias ordinários; quem o soli-citasse nestes dias teria de o pagar.

Em 1485 alargou-se o número de templos, pois teve de se procederà construção de novas capelas no Funchal, Machico, Santa Cruz eCâmara de Lobos; e dois anos após o senhorio mandou dispender atécinco mil réis nos reparos e provimento de vestimenta a alfaias dasigrejas da ilha.

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O Funchal surge assim, em finais do século XV, com três capelasde devoção: Santa Maria do Calhau, S. Sebastião e Santa Maria deCima, com esta última construída pelo capitão do donatário. Todavia,já em 1485 se dava conta da necessidade de construção de um novotemplo; mana relutância dos homens-bons do concelho levou a pro-telar até 1493 o início das necessárias obras, que ficaram concluídasem 1517, ano em que o novo templo foi sagrado por D. Diogo Pinheiro,bispo de Dume. Com a construção do Convento de Santa Clara, apartir de 1488 todo o serviço religioso ficou concentrado nas capelas deS. Sebastião e Santa Maria do Calhau.

A falta de documentação para os primeiros oitenta anos deocupação da ilha impossibilitaram um conhecimento cabal da evoluçãoda estrutura religiosa e da criação das diversas paróquias. Em todo ocaso sabe-se que em 1430 estava criada a primeira paróquia deN.a S .a da Conceição de Baixo seguindo-se depois as da Calheta,Caniço, Ribeira Brava, Ponta de Sol, Câmara de Lobos, S. Vicente,Machico e Arco da Calheta. Tal situação atesta o rápido povoamentoda vertente sul da ilha na segunda metade do século XV.

Acompanhando essa disseminação da população no pouco espaçode terra arável, apareceram as capelas e ermidas, construídas pelosmoradores, coroa, senhorio e particulares. No período de 1420a 1484 são referenciadas trinta construções, sendo quinze no Funchal earredores, três em Câmara de Lobos, duas em Machico é oito naspartes do fundo (Calheta, Arco, Ribeira Brava, Ponta de Sol e Canhas).

O serviço religioso na ilha diversifica-se a partir de meados doséculo XV, para ir ao encontro dos principais núcleos de povoadores.Terá sido importante o empenho de famílias madeirenses nessa expansão,criando capelas anexas ou integradas nas suas casas, e provendo-as decapelães. Essa evolução da estrutura religiosa madeirense e as novassolicitações da expansão oceânica tornaram necessárias a diocese doFunchal: em 12 de Junho de 1514 o Papa Leão X extinguiu a depen-dência ao vicariato de Tomar, criando aquela diocese com jurisdiçãosobre todos os descobrimentos; foi provido como bispo o vigáriotomarense. Acrescente-se que nessa data a Madeira dispunha de

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quinze beneficiados para cinco mil habitantes, disseminados por oitoparóquias.

A Ordem Seráfica surge no século XV intimamente ligada aoprocesso de descobrimento e ocupação do novo espaço Atlântico; osfranciscanos foram companheiros inseparáveis dos primeiros navegadoresportugueses, associando-se à empresa de reconhecimento e povoamentoda Madeira; coube-lhes a honra da celebração do primeiro actolitúrgico em solo madeirense, a 2 de Julho de 1419, dia da invocação davisita da Santíssima Virgem a Santa Isabel; além disso, até à criação dosenhorio, em 1433, detiveram sob o seu controle o serviço religioso dailha, construindo para o efeito alguns cenóbios ou eremitérios nosprincipais núcleos de povoamento: Funchal (1426), Câmara deLobos (1425) e Machico (1462); todavia, a doação, em 1433, da espiri-tualidade da ilha à Ordem de Cristo, e a sua compulsiva subordinaçãoàs orientações da Ordem, geraram uma situação de conflito queobrigou à saída dos franciscanos para Xabregas, só regressandoem 1459, sob a direcção de Frei Diogo Arruda.

A testemunhar a forte presença da Ordem Seráfica na Madeira noséculo XV temos o Convento de S. Francisco, conhecido como o novo,e o de Santa Clara. O primeiro resultou da necessidade de ampliar oacanhado espaço do cenóbio de S. João da Ribeira, enquanto osegundo materializa o desejo do senhorio e capitão de um Conventofeminino para as donzelas da ilha.

Em 1476 dá-se início à construção do Convento de S. Francisco esó em 1492 o segundo capitão do Funchal, João Gonçalves da Câmara,ordena à construção do Convento Feminino nos terrenos anexos à suacasa de morada.

O convento de Santa Clara só começou a funcionar em 1497, coma entrada das duas filhas do capitão do Funchal para o referido recolhi-mento com mais quatro freiras do convento de Encarnação de Beja.Para o efeito Câmara dotou as filhas com o sítio do Curral, que veiodepois a ser conhecido como Curral das Freiras.

A par dessas realizações, institucionalizadas e orientada pelo clero,surgiram outras formas de intervenção dos madeirenses, procurandoatender ao princípio cristão da caridade e devoção; aparecem assim as

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Misericórdias e as Confrarias. A primeira instituição desse tipo criadano Funchal foi a Misericórdia, instituída em 1454 por João GonçalvesZarco. Vinte e três anos mais tarde, em 1477, o carpinteiro PedroAfonso e a sua esposa Constança Vaz fizeram doação para o novohospital de Santa Maria do Calhau. A este seguiram-se iniciativassemelhantes como a de Álvaro Afonso em 1483, de Constança Rodriguesem 1484, e de Gonçalo Enes de Velosa, com a construção em 1497 daalbergaria de S. Bartolomeu. De todos o Hospital da Misericórdia doFunchal salienta-se pela sua acção de caridade e amparo aos pobres,doentes e viajantes.

As confrarias, que associam os vizinhos do burgo com intuitos dedevoção ou caridade, organizam-se também desde o início do povoamentoda ilha. E o seu desenvolvimento sócio-económico, desde meados doséculo XV, permitirá o reforço e expansão dessa instituição na Madeira,ao mesmo tempo que condicionará a afirmação das corporações dosofícios existentes na ilha.

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CRONOLOGIA

c. 1350 - Libro del conoscimiento, supostamente escrito por um frade medicantecastelhano, dá conta do conhecimento da Madeira e Porto Santo.

1351 - Primeira representação cartográfica do arquipélago, com os nomes queperduram, no Atlas Mediceo.

1 419-20 - Reconhecimento da Madeira e Porto Santo pelos Portugueses.1425- Construção do primeiro cenóbio franciscano em Câmara de Lobos.1426- Construção do primeiro cenóbio franciscano no Funchal.1430 - Criação da paróquia de N.a Sr.' da Conceição de Baixo no Funchal.1433 - Ser. 26 - D. Duarte faz a doação do arquipélago da Madeira ao infante

D. Henrique.1 440 - Nov. 1 - Carta de doação da capitania do Porto Santo a Bartolomeu

Perestrelo.1450- Nov. 1 - Carta de doação da capitania do Funchal a João Gonçalves

Zarco.1 451 - Elevação do Funchal à categoria de vila.1454- Doação por João Gonçalves Zarco de alguns terrenos para a fundação

da Misericórdia.1467 - Morte de João Gonçalves Zarco.1461 - Estabelecimento da obrigatoriedade da Madeira fornecer mil moios de

trigo à Guiné, conhecddd como o Saco da Guiné.1467- Início da construção do Convento de S. Francisco.1477 - Criação das alfândegas do Funchal e Machico.1484 - Criação da Casa dos Vinte e Quatro.1485 - Construção de novas capelas no Funchal, Santa Cruz, Machico e

Câmara de Lobos.1486 - Ordem de D. Manuel para a construção de uma igreja, Casa de Câmara,

paço de tabeliães e alfândega, no terrenos conhecidos como Campo doDuque.

1493

- Revogação das medidas impeditivas da vizinhança e trato dos estran-geiros na ilha.Lançamento de uma imposição sobre o movimento do porto do Funchalpara a despesa da construção da cerca e muros.

1494 - Primeiro estimo da produção do açúcar da capitania do Funchal.1497 - Fundação do Convento de Santa Clara.1497 - Abr. 27 - D. Manuel toma realengo e faz reverter para a coroa o

arquipélago.1498 - Aforamento da Lombada da Ponta de Sol por João Esmeraldo.

Contingente da exportação do açúcar: as escápulas.1499 - Renovação das medidas protecionistas do trato do açúcar.

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BIBLIOGRAFIA

CORTESÃO, Armando - 0 Descobrimento de Porto Santo e da Madeira e o InfanteD. Henrique, Coimbra, 1973.

- História do Descobrimento das Ilhas da Madeira por Roberto Machimem Fins do Século XV, Coimbra, 1973

FRUTUOSO, Gaspar - Livro Segundo das Saudades da Terra, Ponta Delgada,1 968.

LEITE, Jerónimo Dias - Descobrimento da ilha da Madeira- ., Coimbra, 1947.MACHADO, João Franco - «A Relação de Francisco Aleoforado», em Arquivo

Histórico da Marinha, vol. 1, Lisboa, 1937MANUSCRITO de Valentim Fernandes, publicado por António Bavão, Academia

Portuguesa de História, Lisboa, 1940.PEREIRA, Femando Jasmins

- Alguns elementos para o estudo da Históriaeconómica da Madeira. Capitania do Funchal - Século IL Coimbra.

1 951, Diss. dact. apresentada à Faculdade de Letras da Universidade deCoimbra.

-A ilha da Madeira no período hemiquino,

Lisboa, 1961.PERES,.Damião - A Madeira sob os Donatários, Funchal, 1914.

- História dos Descobrimentos, Porto, 1943.PITA FERREIRA, Manuel Juvenal - 0 Arquipélago da Madeira Terra do Senhor

infante, Funchal, s.d.-A Sé do Funchal, Funchal, 1963..

RODRIGUES; António Gonçalves - D. Francisco Manuel de Melo e o Descobri-mento da Madeira (A Lenda da Machmn), Lisboa, 1935.

SILVA, Fernando Augusto da-Subsídios para a História da diocese do Funchal,Funchal, 1946.

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ÍNDICE

1. O Problema do Reconhecimento ou Descobrimento do Arquipélago da

Madeira ........... ............:....................................................................................................5

2. Os Primeiros Donatários da Madeira ..........................................................................29

3. Evolução da Estrutura Económica Madeirense 1425-1500 ........................................37

a. A Propriedade..............................................................................................................38

b. Produção .....................................................................................................................42

c. Comércio .....................................................................................................................48

4. A Estrutura Social da População Madeirense; sua Evolução .....................................55

5 A Igreja na Madeira no Século XV .............................................................................65

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ERRATA

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Composto e impresso nas oficinas da

I MPRENSA DE COIMBRA, LIMITADA

Largo de S. Salvador, 1-3 - Coimbra

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