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FONTES DO DIREITO Sílvio de Salvo Venosa Direito Civil - Parte Geral A expressão fontes do Direito tem dois sentidos: origem histórica ou diferentes maneiras de realização do Direito. Aqui, no sentido que ora interessa, temos o aspecto de fonte criadora do Direito. No início da evolução social, residia nos costumes a principal fonte. Posteriormente, a lei ganha foros de fonte principal. Sob esses dois aspectos, decorrem os dois principais sistemas atuais: o sistema do direito costumeiro do Common Law e o sistema romano-germânico, que é o nosso, dos quais nos ocuparemos mais detidamente a seguir. A lei de Introdução ao Código Civil (Decreto- lei no 4.657, de 4-9-42), não é simplesmente uma introdução ao Código Civil, mas a todo ordenamento jurídico brasileiro; apresenta em seu art. 4 o , como fontes de Direito: a lei, a analogia, os costumes e os princípios gerais de Direito. Continua em vigor mesmo perante o Código Civil de 2002 e com ele se harmoniza perfeitamente. Direito Civil I – Fontes do Direito 1

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FONTES DO DIREITO

Sílvio de Salvo Venosa

Direito Civil - Parte Geral 

A expressão fontes do Direito tem dois sentidos: origem

histórica ou diferentes maneiras de realização do Direito. Aqui, no sentido

que ora interessa, temos o aspecto de fonte criadora do Direito.

No início da evolução social, residia nos costumes a principal

fonte. Posteriormente, a lei ganha foros de fonte principal. Sob esses dois

aspectos, decorrem os dois principais sistemas atuais: o sistema do

direito costumeiro do Common Law e o sistema romano-germânico, que é

o nosso, dos quais nos ocuparemos mais detidamente a seguir.

A lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-lei no 4.657, de 4-

9-42), não é simplesmente uma introdução ao Código Civil, mas a todo

ordenamento jurídico brasileiro; apresenta em seu art. 4o, como fontes de

Direito: a lei, a analogia, os costumes e os princípios gerais de Direito.

Continua em vigor mesmo perante o Código Civil de 2002 e com ele se

harmoniza perfeitamente.

Miguel Reale (1973:164) entende por fonte do Direito, no

aspecto que nos interessa, "os processos ou meios em virtude dos quais

as regras jurídicas se positivam com legítima força

obrigatória, isto é, com vigência e eficácia". Há, destarte, necessidade de

um poder que dê validade a essas fontes como normas. Cumpre

examinar de que fontes brota o Direito.

É necessário distinguir as fontes diretas, ou seja, as que de

per si têm força suficiente para gerar a regra jurídica, as quais podem ser

denominadas, segundo a doutrina tradicional, fontes imediatas ou

primárias. Ao lado dessas, há as denominadas fontes mediatas ou

secundárias, as que não têm a força das primeiras, mas esclarecem os

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espíritos dos aplicadores da lei e servem de precioso substrato para a

compreensão e aplicação global do Direito.

Como fontes primárias ou formais, a maioria da doutrina

estatui a lei e o costume. Como fontes mediatas ou secundárias devem

ser citadas, sem unanimidade entre os juristas, a doutrina, a

jurisprudência, a analogia, os princípios gerais de Direito e a eqüidade.

Entendendo-se, contudo, a fonte formal do Direito como modo

de expressão do Direito Positivo, só a lei e o costume podem assim ser

considerados. Os outros institutos gravitam em torno da noção de

estratégias para a aplicação do Direito.

É importante fixar de plano que no universo jurídico atual

coexistem duas grandes famílias jurídicas (sistemas). O sistema

denominado romano-germânico, em que tem cabal proeminência a lei

escrita, e o sistema do Common Law, dos países de língua inglesa ou de

colonização inglesa, em geral, que é um sistema, basicamente, de direito

não escrito, vazado em normas costumeiras e precedentes.

Note, ainda, que, embora nosso ordenamento de leis seja

escrito, legalmente se reconhecem outras fontes, como vimos no citado

art. 4o da Lei de Introdução ao Código Civil.

 

۩. Lei

 

No tocante à etimologia da palavra lei, há duas explicações

técnicas: ou a palavra é

originária do verbo legere = ler; ou decorre do verbo ligare, e é de notar

que legere também significa eleger, escolher. Daí se inferir que se chama

lei por se tratar da escolha de determinada norma, regra, dentro de um

conjunto.

Todo doutrinador apresenta um conceito próprio de lei, mas

não podemos fugir a seus caracteres estáveis e permanentes em

qualquer definição que elaborarmos.

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Primeiramente, temos de afastar da denominação da lei as

leis naturais. Aqui, importa a regra jurídica, como lei do "dever ser".

"Nesse âmbito, podemos conceituar lei como uma regra geral

de direito, abstrata e permanente, dotada de sanção, expressa pela

vontade de uma autoridade competente, de cunho obrigatório e de forma

escrita." É necessário o estudo de cada uma dessas características.

A lei é uma regra geral, não se dirige a um caso particular,

mas a um número indeterminado de indivíduos. É dirigida a todos os

casos que se colocam em sua tipicidade. Contudo, o domínio de alcance

da lei pode ser maior ou menor, sem que isso descaracterize a

generalidade. O comando que emana de um poder dirigido a uma única

pessoa não pode ser caracterizado, de acordo com o que aqui foi

afirmado, como lei propriamente dita.

Dessa generalidade da lei decorrem dois outros caracteres

também importantes, uma vez que a lei é uma regra abstrata e

permanente.

É regra abstrata porque regula uma situação jurídica abstrata.

O legislador tem em mira condutas sociais futuras a serem alcançadas

pela lei. Ela será aplicada a todas as situações concretas que se

subsumirem em sua descrição. No dizer de Brethe de La Gressaye e

Laborde Lacoste (1947:198), reside aí, ao mesmo tempo, a força e a

fraqueza da lei.

É a força porque facilita o pré-ordenamento das condutas

sociais, simplificando o trabalho do juiz que, em sua atividade mais

simples, aplicará a lei ao caso concreto que lhe é apresentado. Todavia,

por outro lado, a lei não apresenta flexibilidade por si própria, nem

sempre se aplicará adequadamente ao caso concreto, uma vez que as

situações fáticas são infinitas e o comando da lei é abstrato. Isso faz, com

freqüência, o juiz agir rigorosamente dentro da chamada "letra da lei",

arriscando-se a praticar uma injustiça (summus ius, summa iniuria), ou

então o juiz tenta dar um matiz diferente à norma que se lhe apresente

para adequá-la ao caso em julgamento. As duas posições do magistrado,

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aí, são filosóficas. Seu estudo foge ao objetivo

deste livro, se bem que o registro da problemática, já de plano, deve ser

feito. Quando tratamos

da questão da interpretação, retornaremos ao tema.

A lei tem também o caráter de permanência. Mesmo nas

chamadas leis temporárias (examinadas a seguir), existe o sentido de a

lei reger todos os casos aplicáveis indefinidamente, até ser revogada, ou

seja, até deixar de ser obrigatória. Melhor dizendo, os efeitos da

aplicação da lei são permanentes.

A lei deve emanar de um poder competente. A estrutura do

Estado dirá qual o poder competente para expressar determinada lei.

Havendo separação de poderes, como em nossa Constituição, em regra

geral, cabe ao Poder Legislativo promulgar leis; contudo, o Poder

Executivo tem o poder de editá-las em determinadas matérias, e até

mesmo o Poder Judiciário, sob determinadas circunstâncias.

A sanção, como elemento constrangedor, obriga o indivíduo a

fazer o que a lei determina, de modo direto ou indireto. No Direito

Repressivo, a sanção é sempre direta. O Código Penal obriga a não

matar e impõe uma pena a quem praticar crime de homicídio. Já no

Direito Privado, a sanção atuará, em geral, de forma indireta: se para um

contrato for exigida a presença de duas testemunhas, sua ausência

poderá acarretar a anulação do contrato, se for esse o interesse de uma

das partes. E é por meio da sanção, elemento constritivo para o

cumprimento, que a lei torna-se conseqüentemente obrigatória, pois de

nada adiantaria a obrigatoriedade se não houvesse uma reprimenda para

seu não-cumprimento.

No que tange à força obrigatória da lei, é da tradição dizê-la

como decorrente dos princípios de justiça e do poder do legislador. A

matéria referente à obrigatoriedade da lei, contudo, pertence a outras

ciências jurídicas.

A lei é apresentada por uma fórmula escrita, em geral,

imperativa e categórica. Como já expusemos, reside na escrita a

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diferença básica de nosso sistema com relação ao direito costumeiro.

Tomando-se o Código Civil, vemos que a obra é dividida em Partes Geral

e Especial, livros, títulos, capítulos, seções, artigos etc. Essa divisão visa

dar melhor compreensão à lei, que terá mais ou menos divisões, de

acordo com sua complexidade, facilitando assim as citações.

 

۩. Classificação das Leis

 

Quanto à origem legislativa de onde promanam, as leis são

federais, estaduais e municipais.

No Estado federativo, existe uma hierarquia de leis: no conflito

entre elas, na ordem enunciada, têm preferência as leis federais às

estaduais e estas às municipais.

Quanto à duração, as leis são temporárias e permanentes. As

leis temporárias, exceção no ordenamento jurídico, já nascem com um

tempo determinado de vigência. Geralmente, surgem para atender a uma

situação circunstancial ou de emergência.

As leis permanentes são editadas para vigorar por tempo

indeterminado, deixando de ter vigência apenas mediante outro ato

legislativo que as revogue. Já as leis temporárias deixam

automaticamente de ter eficácia, ou cessada a situação para qual foram

criadas, ou com o implemento da condição, ou com o advento do termo

nelas expresso, ou em lei posterior.

Quanto à amplitude ou ao alcance, as leis são gerais,

especiais, excepcionais e singulares. Gerais são as leis que disciplinam

um número indeterminado de pessoas e atingem uma gama de situações

genéricas. O Código Civil brasileiro é exemplo de lei geral.

São consideradas especiais as leis que regulam matérias com

critérios particulares, diversos das leis gerais. Exemplo disso é a Lei do

Inquilinato (Lei no 8.245, de 18-10-91), que cuida diferentemente do

Código Civil a respeito da locação de imóveis.

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São consideradas leis excepcionais, no dizer de Orlando

Gomes (1983:53), as que "regulam, por modo contrário ao estabelecido

na lei geral, fatos ou relações jurídicas que, por sua natureza, estariam

compreendidos nela". Os atos institucionais suprimiram muitas das

garantias constitucionais e são exemplos típicos de leis excepcionais.

Não devemos confundir, porém, a lei especial, em que o

legislador tem por bem regular diferentemente um conjunto de relações

jurídicas, com a lei excepcional, pois esta contraria, geralmente, todo um

sistema preestabelecido.

A denominada lei singular só pode ser assim rotulada para

compreensão didática. Vimos que a lei tem o caráter de generalidade. Um

decreto que nomeia ou demite um funcionário público é um ato legislativo,

mas só impropriamente pode ser chamado lei.

Segundo sua força obrigatória, as leis são cogentes e

dispositivas.

São cogentes as normas que se impõem por si mesmas,

ficando excluído qualquer arbítrio individual. São aplicadas ainda que

pessoas eventualmente beneficiadas não desejassem delas valer-se. É

exemplo de norma cogente o princípio da imutabilidade de bens no

casamento no Código de 1916, princípio que se altera no novo Código,

ou a regra que impõe a presença de cinco testemunhas no testamento

também no Código de 1916. No Código de 2002 o número de

testemunhas exigido para esse ato é menor.

É cada vez maior o número de normas cogentes, pois a todo o

momento o Estado intervém na relação de particulares. O fenômeno da

constante publicização do Direito Privado será ainda referido nesta obra.

Nas leis cogentes, as partes não podem dispor

diferentemente. Atuam as normas cogentes com proeminência nas

relações de direito de família.

As normas dispositivas impõem-se supletivamente às partes.

Cabe aos interessados valerem-se delas ou não. Na ausência da vontade

das partes, essas leis são chamadas a atuar, sendo então

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obrigatoriamente aplicadas pelo juiz. É no campo do Direito das

Obrigações que essas normas têm maior âmbito de atuação. Como

assevera Serpa Lopes (1962, v. 1:49), para editar tais leis o legislador

inspira-se em duas idéias: "a primeira consiste em reproduzir a vontade

presumida das partes, regulamentando a relação jurídica, como se os

interessados a houvessem confeccionado, eles próprios; a segunda,

considerando antes de tudo as tradições, os costumes, os hábitos de

interesse geral, como no caso em que se estabelece um determinado

regime de bens no casamento, na ausência de pacto antenupcial".

Como já dissemos, cada vez mais se reduz o campo das leis

dispositivas. Nem sempre é fácil, à primeira vista, distinguir uma norma

cogente de uma norma dispositiva. Impõe-se, em cada caso, examinar a

finalidade da lei e a intenção do legislador, dentro do conjunto da situação

jurídica enfocada, pois raramente o legislador é expresso no atinente a

uma disposição cogente. Geralmente, se se tratar da tutela de interesses

gerais, garantias de liberdades ou proteção da família, por exemplo, a

norma será cogente. Quando o interesse é meramente individual, a

norma é dispositiva.

Paralelamente ao tema de normas cogentes, é importante

lembrar o conceito de ordem pública. As leis de ordem pública são

normas a que, em regra, o Estado dá maior relevo, dada sua natureza

especial de tutela jurídica e finalidade social. São princípios de Direito

Privado que atuam na tutela do interesse coletivo. Seus efeitos e sua

conceituação muito se aproximam das normas cogentes, não havendo

razão para não aproximarmos os dois institutos.

A dificuldade maior reside no conceito exato de "ordem

pública", que extravasa o campo do Direito Privado e é motivo de

divergência por parte de muitos autores. A melhor solução a ser

apresentada nesta introdução é equipararmos as normas cogentes,

impositivas ou absolutas, às leis de ordem pública, como faz Maria

Helena Diniz (1982, v. 1:28). Serpa Lopes (1962, v. 1:56) diverge dessa

equiparação sem, porém, apresentar os fundamentos dessa discrepância.

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Quando o legislador valora determinada conduta de molde a

entender que o particular não pode afastar-se dela, passa a tutelar

interesses fundamentais, diretamente ligados ao bem comum. As

dificuldades de conceituar ordem pública, acentuadas por Colin e

Capitant (1934:10), são matéria para outros campos da Ciência Jurídica.

Quanto à sanção, as leis podem ser perfeitas, mais que

perfeitas, menos que perfeitas e imperfeitas.

Perfeitas são aquelas cuja infringência importa em sanção de

nulidade, ou possibilidade de anulação do ato praticado. Exemplo dessa

modalidade é a disposição que exige cinco testemunhas, no Código de

1916, para a feitura do testamento: desobedecido o princípio legal, o

testamento é nulo.

Doutra parte, o ato praticado com dolo (art. 145 do atual

Código; art. 92 do Código Civil de 1916) fica sujeito à anulação,

dependendo da iniciativa da parte interessada. Mais que perfeitas são as

normas cuja violação dá margem a duas sanções, a nulidade do ato

praticado, com possibilidade de restabelecimento do ato anterior e

também uma pena ao transgressor. A disposição do art. 1.521, VI, do

novo Código (art. 183, VI, do Código de 1916) estabelece que não podem

casar as pessoas casadas. A transgressão desse dispositivo faz com que

se decrete a nulidade do casamento (art. 1.548, inciso II, no novo Código;

antigo, art. 207), sem prejuízo de punição penal ao infrator (art. 235 do

Código Penal, crime de bigamia).

São menos que perfeitas as leis que trazem sanção

incompleta ou inadequada. O ato vale, mas com sanção parcial, como é a

hipótese da viúva ou viúvo que contrai novo matrimônio, tendo prole do

consórcio anterior, não fazendo inventário do cônjuge falecido. O novo

casamento será válido, mas perderá a mulher o usufruto dos bens dos

filhos menores, além de se casar obrigatoriamente no regime de

separação de bens (arts. 225 e 226 do Código Civil de 1916; atual, art.

1.641, I).

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São leis imperfeitas as que prescrevem uma conduta sem

impor sanção. Não existe nulidade para o ato, nem qualquer punição.

Exemplo dessa espécie é a que determina prazo de 30 dias, a contar da

abertura da sucessão, para o início do processo do inventário (art. 983 do

CPC). Não obstante isso, leis estaduais cominaram multa pela

desobediência do prazo ou perda de incentivo fiscal e foram admitidas

pela jurisprudência, o que não desnatura o exemplo (ver Súmula 542 do

Supremo Tribunal Federal). Outro exemplo é o das dívidas prescritas e de

jogo (obrigações naturais).

Essas dívidas devem ser pagas, porém o ordenamento não

concede meio jurídico de obrigar o pagamento (art. 814 do atual Código;

antigo, art. 1.477). Como toda obrigação natural, seu pagamento é bom e

perfeito e não pode ser repetido (requerida a devolução do que foi pago);

no entanto, não tem o credor ação judicial para obter o cumprimento

dessas obrigações.

No conceito lato de lei, são incluídos também os decretos e

regulamentos, mas em sentido estrito não se amoldam à situação aqui

enfocada.

 

۩. Costume 

Sem que possamos precisar exatamente a origem nem seus

autores, o uso reiterado de uma conduta perfaz o costume. Forma-se ele

paulatinamente, quase imperceptivelmente. Chega, porém, a determinado

momento, em que aquela prática reiterada é tida por obrigatória.

É difícil dar uma prova concreta de sua existência, é custoso

buscar a gênese de sua elaboração e, na grande maioria das vezes, é

difícil provar sua presença, mormente nos sistemas de direito escrito.

Brota o costume da própria sociedade, da repetição de usos

de determinada parcela do corpo social. Quando o uso se torna

obrigatório, converte-se em costume.

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Seu papel de fonte criadora do Direito nas primitivas

sociedades, como é óbvio, foi muito grande. Todos os grandes sistemas

jurídicos da Antigüidade foram condensados de costumes. Note que nem

todo uso é costume. O costume é um uso considerado juridicamente

obrigatório. Para isso, são necessárias determinadas características.

Exige-se que o costume seja geral, isto é, largamente

disseminado no meio social, observado por um número grande de

sujeitos. Não é necessário que toda a sociedade ou que todo o país

observe o costume. Aliás, é raro que isso ocorra. Em geral, o costume é

setorizado numa parcela da sociedade.

É necessário que o costume tenha certo lapso de tempo, pois

deve constituir-se em um hábito arraigado, bem estabelecido.

Ademais, deve o costume ser constante, repetitivo na parcela

da sociedade que o utiliza. Para converter-se em fonte do Direito, dois

requisitos são imprescindíveis ao costume: um de ordem objetiva (o uso,

a exterioridade do instituto, o que é palpável e percebido pelos sentidos),

outro de ordem subjetiva (ou seja, a consciência coletiva de que aquela

prática é obrigatória). É este último aspecto que, na realidade, distingue o

costume de outras práticas reiteradas, de ordem moral ou religiosa ou de

simples hábitos sociais.

Não se confunde o costume com as chamadas "cláusulas de

estilo", simples praxe ou repetição automática, inserida nos contratos.

O fundamento jurídico do instituto é controvertido. Para uns, é

a vontade tática do próprio legislador, para outros é a consciência

popular. Parece, no entanto, ser a consciência da

obrigatoriedade que dá força ao costume.

Quando esse uso reiterado e consciente é aceito pelos

tribunais, estará solidificada uma fonte do direito. Pode também o

legislador transformar em lei um costume, mas então o enfoque passa a

ser diferente, pois, em última análise, já se estará perante uma lei e não

mais diante de um costume.

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É pequena a influência do costume nos sistemas de direito

escrito, mas não se pode subestimar sua influência, que tem crescido

consideravelmente. A lei não tem o condão de ser a fonte única do direito.

O costume, por vezes, torna-se instrumento precioso no preenchimento

de lacunas no direito escrito.

No direito contratual ou lei entre partes, o recurso ao costume

das partes e do local onde foi celebrado o contrato será meio importante

de sua interpretação. O atual Código Civil, mais do que o estatuto

anterior, acentua a utilização do costume como fonte subsidiária de

interpretação em várias oportunidades (arts. 569, II, arts. 596, 599, 615,

965, I, art. 1.297, § 1o),

atribuindo ao juiz sua conceituação.

Se levarmos em conta nosso sistema de direito escrito, apesar

de na Teoria Geral do Direito o costume ser considerado fonte principal,

segundo o art. 4o da Lei de Introdução ao Código Civil, é ele fonte formal,

mas fonte subsidiária, uma vez que o legislador dispõe que, na omissão

da lei, o juiz decidirá de acordo com a analogia, os costumes e os

princípios gerais de Direito. Portanto, temos lei para erigir o costume em

fonte do Direito, ao contrário do que ocorre em outras legislações.

Considerado fonte subsidiária, o costume deverá girar em

torno da lei. Portanto, não pode o costume contrariar a lei, que só pode

ser substituída por outra lei.

Os costumes podem ser secundum legem, praeter legem e

contra legem. O costume secundum legem já foi erigido em lei e,

portanto, perdeu a característica de costume propriamente dito. O

costume praeter legem é exatamente aquele referido no art. 4o da Lei de

Introdução ao Código Civil, ou seja, o que serve para preencher lacunas,

é um dos recursos de que se serve o juiz para sentenciar quando a lei for

omissa.

O costume contra legem é o que se opõe ao dispositivo de

uma lei, denominando-se costume ab-rogatório; quando torna uma lei não

utilizada, denomina-se desuso.

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Discute-se a possibilidade de admissão de costumes contra a

lei. Há opiniões favoráveis pela afirmativa. Entretanto, deve prevalecer a

opinião de que a lei é suprema, não se podendo reconhecer validade ao

costume contrário à norma, pois no caso haveria instabilidade no sistema

(cf. Pereira, 1978, v. 1:75; Gomes, 1983:81; Monteiro, 1977, v. 1:19).

Alguns autores vêem no art. 5o da Lei de Introdução ao

Código Civil uma válvula que permite ao juiz aplicar o costume contra a

disposição da lei. Diz esse dispositivo: "Na aplicação da lei, o juiz

atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem

comum." De qualquer modo, mesmo aqueles que admitem o costume ab-

rogatório procedem sempre em caráter de exceção.

O próprio Clóvis Beviláqua afirma que o costume aplicado

nessa forma seria inconveniente por tirar do aparelho jurídico a

supremacia da lei e a certeza das prescrições legais, mas conclui:

"Todavia, se o legislador for imprevidente em desenvolver a legislação

nacional de harmonia com as transformações econômicas, intelectuais e

morais operadas no país, casos excepcionais haverá em que, apesar da

declaração peremptória da ineficácia ab-rogatória do costume, este

prevaleça CONTRA LEGEM, porque a desídia ou a incapacidade do

poder legislativo determinou um regresso parcial da sociedade da época,

em que o costume exercia, em sua plenitude, a função de revelar o

direito, e porque as forças vivas da nação se divorciam, nesse caso, das

normas estabelecidas na lei escrita" (Beviláqua, 1980:39).

Maria Helena Diniz (1981:179), em sua obra As lacunas no

direito, menciona caso jurisprudencial de São Paulo em que se julgou

com o costume contra legem, justamente pelos

fundamentos apresentados por Clóvis.

Entre nós, a maior repercussão dos costumes é no Direito

Comercial, em que se apresentam como fonte suplementar de maior

aplicação que no Direito Civil.

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No estágio atual de nosso direito, porém, o papel do costume

é diminuto, mormente devido à inelutável expansão legislativa, à pletora

de leis, que limita a força criadora dos costumes.

 

۩. Doutrina

 

A doutrina é o trabalho dos juristas, dos estudiosos do Direito

dentro dos campos técnico, científico e filosófico.

Há discussão a respeito de considerá-las ou não fonte do

Direito. Indubitavelmente no passado, antes de nossa codificação ou nos

primórdios dela, as decisões dos juízes e tribunais recorriam aos

ensinamentos dos mestres. Hoje, a doutrina não é tão utilizada ou não é

tão citada pelos pretórios, mas não resta a menor dúvida de que na

doutrina o Direito inspira-se, ora aclarando textos, ora sugerindo

reformas, ora importando institutos e aclimatizando-os a nossas

necessidades fáticas. Os estudos dos juristas estão sempre ventilando a

jurisprudência e, portanto, a aplicação do Direito. É fora de dúvida que o

trabalho doutrinário é fonte subsidiária

de Direito.

Muitos dos temas estudados no curso de Direito Civil e depois

erigidos como princípios legais são obra de monumentais trabalhos

doutrinários, como, por exemplo, a modificação de tratamento dos

companheiros na união estável; dos filhos adotivos e adulterinos; a

indenização por danos morais; os novos rumos da responsabilidade civil

em geral etc.

O valor da obra jurídica baseia-se no fato de não se limitar a

repetir conceitos estratificados no sistema, mas de buscar novas

soluções, avaliar as soluções do direito comparado, criticar a injustiça e

lacunas de nosso sistema legislativo, enfim, preparar o espírito do

legislador para as reformas que se fizerem necessárias e dar alento ao

julgador para partir para vôos mais elevados, não os deixando relegados

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a meros escravos aplicadores da lei ou seguidores de conceitos

ultrapassados pela era de desenvolvimento tecnológico e social ciclópico

em que vivemos.

A doutrina, portanto, do escrito ou manual mais singelo à da

mais profunda monografia, traz sempre um novo sopro à aplicação do

Direito. É a chamada autoridade moral da doutrina. Somente por

intermédio da obra de estudiosos temos acesso a uma visão sistemática

do Direito.

A simples leitura dos textos legais, por si só, parece um corpo

sem alma, por vezes complexo e inatingível.

Como lembra Orlando Gomes (1983:64), a influência da

doutrina é percebida em três sentidos fundamentais: "(1o) pelo ensino

ministrado nas Faculdades de Direito; (2o) sobre o legislador; (3o) sobre o

juiz. Pelo ensino, formam-se os magistrados e advogados, que se

preparam para o exercício dessas profissões pelo conhecimento dos

conceitos e teorias indispensáveis à compreensão dos sistemas de direito

positivo. Inegável, por outro lado, a influência da obra dos jurisconsultos

sobre os legisladores, que, não raro, vão buscar, no ensinamento dos

doutores, os elementos para legiferar.

E, por fim, notável a sua projeção na jurisprudência, não só

porque proporciona fundamentos aos julgados, como porque, através da

crítica doutrinária, se modifica freqüentemente a orientação dos tribunais."

É pela doutrina que se forjam o vocabulário e os conceitos

jurídicos, importantíssimos para a exata compreensão da ciência.

Importante notar que as obras dos juristas latinos

caracterizam-se, em sua grande maioria, por um dogmatismo

praticamente desvinculado da jurisprudência, embora essa tendência

tenha diminuído em anos mais recentes. E é exatamente esse

dogmatismo que influencia a aplicação do Direito pelos tribunais,

tornando a doutrina importante fonte subsidiária. A obra doutrinária que

simplesmente se curva perante a jurisprudência majoritária é sectária e

Direito Civil I – Fontes do Direito 14

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não inovadora, não cumprindo seu importante papel revitalizador do

Direito.

 

۩. Jurisprudência

 

Modernamente, é aplicado o nome jurisprudência ao conjunto

de decisões dos tribunais, ou uma série de decisões similares sobre uma

mesma matéria. A jurisprudência nunca é constituída de um único

julgado, mas de uma pluralidade de decisões.

O termo jurisprudência, no Direito antigo, significava a

sabedoria dos prudentes, os sábios do direito. Significava a Ciência do

Direito, e ainda hoje pode ser empregada nesse sentido, mas fora do

campo que tratamos.

A jurisprudência, como um conjunto de decisões, forma-se

mediante o trabalho diuturno dos tribunais. É o próprio direito ao vivo,

cabendo-lhe o importante papel de preencher lacunas do ordenamento

nos casos concretos.

Os julgados não têm força vinculativa. Não pode ser

considerada a jurisprudência como uma fonte primária do Direito.

Contudo, é inelutável que um conjunto de decisões sobre uma matéria,

no mesmo sentido, influa na mente do julgador que tende a julgar de igual

maneira. Entretanto, não devemos olvidar que o juiz julga de acordo com

a lei e não pode fazê-lo, em geral, contra a lei, além do que o julgado só

tem efeito entre as partes envolvidas no processo.

Outro aspecto importante é que a jurisprudência orienta o

legislador, quando procura dar coloração diversa à interpretação de uma

norma, ou quando preenche uma lacuna.

A jurisprudência não está mencionada na lei como fonte, mas

sua importância como tal, ainda que subsidiária, é inarredável.

É uma fonte informativa. As leis envelhecem, perdem a

atualidade e distanciam-se dos fatos sociais para as quais foram

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editadas. Cumpre à jurisprudência atualizar o entendimento da lei, dando-

lhe uma interpretação atual que atenda às necessidades do momento do

julgamento. Por isso, entendemos que a jurisprudência é dinâmica. O juiz

deve ser um arguto pesquisador das necessidades sociais, julgando

como um homem de seu tempo, não se prendendo a ditames do

passado. Aí se coloca toda a grandeza do papel da jurisprudência.

Embora não caiba aos tribunais ditar normas, opera-se

paulatinamente no país um deslocamento da visão judicial, com a

expedição de súmulas de jurisprudência dos Tribunais, em especial do

precursor que foi o Supremo Tribunal Federal. A invocação da súmula,

um enunciado que resume uma tendência sobre determinada matéria,

decidida contínua e reiteradamente pelo Tribunal, acaba sendo

verdadeira fonte formal.

Cientificamente, não pode ser assim considerada, mas, na

prática, as súmulas do Supremo Tribunal Federal se, por um lado, tiveram

o condão de dar certeza a determinada forma de decidir, por outro lado,

colocam em choque a verdadeira finalidade dos julgados dos tribunais

que não podem estratificar suas formas de julgar. Entendemos, para

evitar o entrave mencionado, que não devem o doutrinador e muito

menos o juiz e o advogado se acomodar perante um enunciado de

súmula, se os fatos sociais demonstrarem que, como as leis, aquela

forma de decidir já não atende mais às necessidades sociais.

Sob esse prisma, coloca-se a maior crítica para os que

defendem a denominada súmula vinculante. Com base no forte

argumento de desafogar a pletora de feitos nos tribunais, postula-se que

os casos repetitivos e idênticos recebam uma súmula que

obrigatoriamente deve ser seguida pelos julgadores de instância inferior,

autorizando-se assim o julgamento coletivo de

inúmeros processos.

Se, por um lado, a súmula vinculante permite o julgamento

rápido e simultâneo de centenas de processos, por outro, corre-se o risco

de petrificar o poder criativo dos tribunais, principalmente dos juízes de

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primeira instância, primeiros receptáculos das modificações sociais. A

matéria ainda está em discussão e continua a causar celeuma. Sem

dúvida, sente-se constante necessidade de agilizar os julgamentos;

contudo, a instituição de súmulas vinculantes não pode ir ao ponto de

estabelecer um permanente amordaçamento do poder criativo dos

julgados.

Há vários repertórios de jurisprudência publicados no país

com cunho oficial. Citemos, para exemplificar, as tradicionais Revista dos

Tribunais e a Revista Forense. Afora essas, que procuram selecionar

mensalmente os julgados dignos de nota nos vários campos do Direito,

há muitas outras, tais como as publicações oficiais dos tribunais, como a

Revista Trimestral de Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do

Superior Tribunal de Justiça, além das publicações oficiais dos Tribunais

dos Estados e mais as revistas setorizadas de acordo com cada campo

jurídico.

Toda essa jurisprudência está atualmente informatizada, pelas

editoras e pelos tribunais do país, dispensando-se, na maioria das vezes,

a outrora cansativa consulta a repertórios impressos, bastando o acesso

à rede de computadores. Essa informação é importante para aquele que

se inicia no trato das primeiras linhas jurídicas, pois não há estudo do

Direito, não há doutrinador completo, não há advogado solerte ou juiz

competente que possa prescindir de uma atualização contínua com os

julgados dos tribunais, mormente no tocante ao campo jurídico em que se

especializar.

Ademais, é essencial que o professor, na sala de aula, não se

limite a expor os dogmas do Direito, mas que vincule esses ensinamentos

ao direito vivo, a ilustrações de casos práticos, decididos pelos tribunais.

 

۩. Analogia

 

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O ideal seria o ordenamento jurídico preencher todos os

acontecimentos da sociedade. Não é, como vimos, o que ocorre.

O juiz não pode, em hipótese alguma, deixar de proferir

decisão nas causas que lhe são apresentadas. Na falta de lei que regule

a matéria, recorre às fontes subsidiárias, entre as

quais podemos colocar a analogia. Na realidade, a analogia não constitui

propriamente uma técnica de interpretação, como a princípio possa

parecer, mas verdadeira fonte do Direito, ainda que subsidiária e assim

tida pelo legislador no art. 4o da Lei de Introdução ao Código Civil. Trata-

se de um processo de raciocínio lógico pelo qual o juiz estende um

preceito legal a casos não diretamente compreendidos na descrição legal.

O juiz pesquisa a vontade da lei, para transportá-la aos casos que a letra

do texto não havia compreendido.

Para que esse processo tenha cabimento, é necessária a

omissão no ordenamento.

A analogia pode operar de duas formas: analogia legal e analogia

jurídica.

Na analogia legal, o aplicador do Direito busca uma norma

que se aplique a casos semelhantes.

Como no caso do leasing, ou arrendamento mercantil, que é

uma locação com opção de compra da coisa locada, no final do contrato.

Na hipótese de omissão do texto legal, o intérprete poderia valer-se dos

princípios da compra e venda e da locação para dar solução ao problema.

O intérprete procura institutos que têm semelhança com a situação sob

enfoque.

Não logrando o intérprete um texto semelhante para aplicar ao

caso sob exame, ou então sendo os textos semelhantes insuficientes,

recorre a um raciocínio mais profundo e complexo. Tenta extrair do

pensamento dominante em um conjunto de normas uma conclusão

particular para o caso em exame. Essa é chamada analogia jurídica.

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A analogia é um processo de semelhança, mas,

especialmente a analogia jurídica, requer cuidado maior do intérprete e

conhecimento profundo da ciência a que se dedica.

Para o uso da analogia, é necessário que haja lacuna na lei e

semelhança com a relação não imaginada pelo legislador. A seguir, no

derradeiro passo do raciocínio, o intérprete procura uma razão de

identidade entre a norma encontrada, ou o conjunto de normas, e o caso

contemplado.

A utilização da técnica analógica para o preenchimento de

lacunas presta grandes serviços, mas só pode ser utilizada com eficiência

quando o aplicador não foge à ratio legis aplicada, quando então daria

amplitude perigosa ao princípio, arriscando-se a julgar contra a lei.

 

۩. Princípios Gerais de Direito

 

Conceituar princípios gerais de direito é uma tarefa árdua que

se perde em um sem-número de teorias de ordem filosófica,

incompatíveis com os propósitos do presente livro.

O legislador, enfim, coloca os princípios gerais de direito como

fonte subsidiária, no decantado art. 4o da Lei de Introdução ao Código

Civil.

Por esses princípios, o intérprete investiga o pensamento mais

alto da cultura jurídica universal, buscando uma orientação geral do

pensamento jurídico. Cada autor, dentro de várias correntes, procura dar

sua própria explicação sobre o tema.

É tarefa inútil, por ser impossível, definir o que sejam esses

princípios. São regras oriundas da abstração lógica do que constitui o

substrato comum do Direito. Por ser um instrumento tão amplo e de

tamanha profundidade, sua utilização é difícil por parte do julgador, pois

requer traquejo com conceitos abstratos e concretos do Direito e alto

nível cultural.

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Para citar algumas correntes, ora os autores propendem para

identificá-los com o Direito Natural, ora com princípios de eqüidade, ora

com princípios fundamentais da organização social e política do Estado.

De plano, podemos enfatizar sua reconhecida importância

pelo próprio legislador não só como fonte, isto é, normas inspiradoras

para a aplicação do Direito, mas também como fonte inspiradora da

atividade legislativa e administrativa do Estado.

João Franzen de Lima (1977, v. 1:35) propõe o critério já

coimado por Clóvis Beviláqua, invocando os famosos brocardos de

Ulpiano ao expor os iuris praecepta, que podem resumir toda uma

filosofia, em um plano global do Direito: honeste vivere, neminem laedere,

suum cuique tribuere.

Viver honestamente, não lesar a ninguém e dar a cada um

aquilo que é seu. A invocação desses princípios pelo julgador, na lacuna

da lei, ou mesmo em sua interpretação, constitui um ideal da mais alta

justiça.

Propendemos para a opinião de que existe um valor coercitivo

nesses elevados princípios. Não podemos dizer, contudo, que a

enunciação desses princípios possa ser exaustiva. Mesmo os autores

que entendem que tais elementos decorrem do Direito Natural, o que

também é uma realidade, compreendem que o Direito Natural apenas

auxilia na compreensão do instituto, mas não esgota a matéria.

Rubens Limongi França (1971:201), em alentada monografia,

apresenta várias conclusões, mas acaba por aceitar a idéia de

fundamentar os princípios no Direito Natural e de explicitá-los, ad

exemplum, pelos preceitos jurídicos enumerados, fazendo acrescentar

outros brocardos romanos, particularizados a determinadas situações.

Conclui, no entanto, o monografista, nessa sua obra, que, uma vez que o

aplicador do direito atinja a compreensão de um desses princípios, esse

trabalho orienta-lhe a idéia suprema do justo.

 

۩. EqüidadeDireito Civil I – Fontes do Direito 20

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Eqüidade é uma forma de manifestação de justiça que tem o

condão de atenuar a rudeza de uma regra jurídica. Como informam

Stolze Gagliano e Pamplona Filho, a eqüidade, na concepção aristotélica,

é a "justiça do caso concreto" (2002:25).

Na realidade, o conceito de eqüidade não se afasta do

conteúdo do próprio Direito, pois, enquanto o Direito regula a sociedade

com normas gerais do justo e eqüitativo, a eqüidade procura adaptar

essas normas a um caso concreto.

São freqüentes as situações com que se defronta o juiz ao ter

de aplicar uma lei, oportunidade em que percebe que, no caso concreto,

se afasta da noção do que é justo. O trabalho de aplicação por eqüidade

é de exatamente aparar as arestas na aplicação da lei para que uma

injustiça não seja cometida. A eqüidade é um labor de abrandamento da

norma jurídica no caso concreto.

Tratamos aqui da eqüidade na aplicação do Direito e em sua

interpretação, se bem que o legislador não pode olvidar seus princípios,

em que a eqüidade necessariamente deve ser utilizada para que a lei

surja no sentido da justiça.

A eqüidade é não só abrandamento de uma norma em um

caso concreto, como também sentimento que brota do âmago do

julgador. Como seu conceito é filosófico, dá margem a várias

concepções.

O Código Civil brasileiro de 1916 não se referiu diretamente à

eqüidade, que não é propriamente uma fonte de direito, mas um recurso,

por vezes deveras necessário, para que não ocorra o que Cícero já

denominava summum ius, summa iniuria, isto é, que a aplicação cega da

lei leve a uma iniqüidade.

Nosso Código Civil de 1916 não ignorava, no entanto, a

eqüidade, pois a ela se referia no art. 1.040, IV, permitindo que se

autorizem os árbitros, no compromisso (juízo arbitral), a decidirem por

"eqüidade"; no art. 1.456, a ela também se referia ao tratar da

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interpretação de aspecto de contrato de seguro. Aliás, é da tradição do

instituto da arbitragem que as partes possam autorizar os árbitros a

decidir por eqüidade, como consta de nossa atual lei sobre a matéria (art.

11, II, da Lei no 9.307/96). Entenda-se, porém, que a eqüidade é antes de

mais nada uma posição filosófica a que cada aplicador do direito dará

uma valoração própria, mas com a mesma finalidade de abrandamento

da norma. Indubitavelmente, há muito de subjetivismo do intérprete em

sua utilização.

Vale a pena lembrar, contudo, que, se a eqüidade não é

mencionada como forma direta de julgamento no Código de 2002, este

estatuto menciona em mais de uma oportunidade a fixação da

indenização de forma eqüitativa, o que implica um raciocínio por eqüidade

por parte do magistrado. A esse respeito diga-se que, no sistema de

1916, o valor do prejuízo, na responsabilidade civil, sempre foi tido como

o valor a ser indenizado. Essa regra geral é exposta no caput do art. 944:

"A indenização mede-se pela extensão do dano."

No entanto, o parágrafo único desse dispositivo aduz: "Se

houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano,

poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização." Nesta última

hipótese, em síntese, aplicará o juiz a eqüidade. No mesmo diapasão é

colocada a indenização carreada ao incapaz, conforme o art. 928, matéria

à qual retornaremos no estudo da responsabilidade civil.

No Código de Processo Civil pode ser lembrada a hipótese

prevista no art. 20, quanto à fixação de honorários de advogado nas

causas de pequeno valor, nas de valor inestimável, nas em que não

houver condenação ou em que for vencida a Fazenda Pública e nas

execuções, embargadas ou não, "em que se delega ao prudente arbítrio

do julgador a estipulação do quantum debeatur", como recordam Stolze

Gagliano e Pamplona Filho (2002:26). Esses autores também recordam

que nos procedimentos de jurisdição voluntária o juiz não é obrigado a

observar critério da legalidade estrita, podendo adotar, em cada caso, a

solução que reputar mais conveniente ou oportuna (art. 1.109 do CPC).

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Na realidade, sintetiza-se que a eqüidade se traduz na busca

constante e permanente do julgador da melhor interpretação legal e da

melhor decisão para o caso concreto. Trata-se, como se vê, de um

raciocínio que busca a adequação da norma ao caso concreto. Em

momento algum, porém, salvo quando expressamente autorizado pela lei,

pode o julgador decidir exclusivamente pelo critério do justo e do

equânime, abandonando o texto legal, sob o risco de converter-se em

legislador.

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