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PESSOAS COM DEFICIÊNCIA E RECONHECIMENTO SOCIAL: REFLEXÕES CRITICAS. Professor Enio Rodrigues da Rosa. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4110820541546263 "Ao tachar de complicação obscura e, de preferência, de alienígena o pensamento que se aplica negativamente aos fatos, bem como às formas de pensar dominantes, e ao colocar assim um tabu sobre ele, esse conceito mantém o espírito sob o domínio da mais profunda cegueira. É característico de uma situação sem saída que até mesmo o mais honesto dos reformadores, ao usar uma linguagem desgastada para recomendar a inovação, adota também o aparelho categorial inculcado e a má filosofia que se esconde por trás dele, e assim reforça o poder da ordem existente que ele gostaria de romper" (THEODOR W. ADORNO E MAX HORKHEIMER). "Ora, concluem Diderot e seus adeptos: "Sendo a vista o mais precioso, o mais aplicado dos sentidos, o indivíduo que não vê será completamente diverso dos outros." Que concepção acanhada da vida humana!" (PROF. AIRES DA MATA MACHADO FILHO, 1932, grifos do autor). Início este ensaio tomando como referência norteadora o conteúdo dessas duas epigrafes e recordando um fato interessante que eu tive a oportunidade de presenciar. Um dia eu estava numa assembléia dos servidores públicos do município de Cascavel. Num dado momento, após pedir a palavra, um colega meu virou-se para o prefeito que estava 1

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Page 1:  · Web viewDeste modo, os apontamentos aqui formulados fazem parte de práticas e atos recorrentes que atingem servidores com deficiência que clamam e lutam por "reconhecimento"

PESSOAS COM DEFICIÊNCIA E RECONHECIMENTO SOCIAL: REFLEXÕES CRITICAS.

Professor Enio Rodrigues da Rosa.

Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4110820541546263

"Ao tachar de complicação obscura e, de preferência, de alienígena o pensamento que se aplica negativamente aos fatos, bem como às formas de pensar dominantes, e ao colocar assim um tabu sobre ele, esse conceito mantém o espírito sob o domínio da mais profunda cegueira. É característico de uma situação sem saída que até mesmo o mais honesto dos reformadores, ao usar uma linguagem desgastada para recomendar a inovação, adota também o aparelho categorial inculcado e a má filosofia que se esconde por trás dele, e assim reforça o poder da ordem existente que ele gostaria de romper" (THEODOR W. ADORNO E MAX HORKHEIMER). "Ora, concluem Diderot e seus adeptos: "Sendo a vista o mais precioso, o mais aplicado dos sentidos, o indivíduo que não vê será completamente diverso dos outros." Que concepção acanhada da vida humana!" (PROF. AIRES DA MATA MACHADO FILHO, 1932, grifos do autor).

Início este ensaio tomando como referência norteadora o conteúdo dessas

duas epigrafes e recordando um fato interessante que eu tive a oportunidade de

presenciar. Um dia eu estava numa assembléia dos servidores públicos do

município de Cascavel. Num dado momento, após pedir a palavra, um colega meu

virou-se para o prefeito que estava presente e disse: "O bom senso diz que eu

deveria me manter calado.

“Porém, minha consciência diz que eu devo falar”. E ele expressou sua

critica sem a preocupação com possíveis retaliações, perseguições e outras

coisas do gênero.

Tomando esta observação como preocupação e ponto de partida, também

pensei muito antes de manifestar aqui algumas ideias preliminares sobre as

dificuldades identificadas nas relações de trabalho, envolvendo servidores com

deficiência e determinados posicionamentos do setor de Recursos Humanos da

Secretaria de Estado da Educação (SEED). Esses posicionamentos estão

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articulados com a constante e sistemática falta de reconhecimento profissional de

servidores com deficiência aprovada por concurso público, no exercício das suas

respectivas atividades laboral.

Evidentemente que eu não precisaria aqui recordar dos dispositivos

constitucionais que garante aos cidadãos e cidadãs deste país a liberdade de

expressão e manifestação do pensamento. Todavia, de qualquer maneira, parece

instrutivo conferir a redação de dois incisos do Artigo N. 5 da Constituição Federal

(CF) de 1988. Os respectivos incisos vertem:

"IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

“IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;”.

Partindo-se dessas garantias constitucionais, embora eu relate neste ensaio

algumas de minhas próprias experiências negativas vivenciadas como servidor

público do Quadro Próprio do Magistério do Estado do Paraná (professor

pedagogo), esclareço que muitas experiências semelhantes também são

vivenciadas por outros servidores com deficiência, particularmente, cegos ou com

baixa visão, em alguns municípios do interior do Estado e na própria capital.

Deste modo, os apontamentos aqui formulados fazem parte de práticas e

atos recorrentes que atingem servidores com deficiência que clamam e lutam por

"reconhecimento" profissional individual e coletivo.

Para tornar um pouco mais claro meu objetivo, num primeiro momento,

apresento algumas ideias da obra de Axel Honneth, intitulada: "Luta por

reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais" (2003).

Trata-se de um material bastante interessante e revelador do quão certos

segmentos sociais historicamente marginalizados/excluídos, não obstante os

poucos avanços legais/formais já conseguidos nas últimas três ou quatro décadas,

ainda sofrem com a falta de reconhecimento social e profissional.

Depois, num segundo momento, relato algumas de minhas experiências

negativas como servidor público do magistério estadual, por algumas

incompreensões, interpretações e decisões equivocadas tomadas por

determinados setores da SEED. Algumas dessas decisões acabam trazendo

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como consequência violações de direitos que se configuram crime por atos ou

práticas discriminatórias, previstas no parágrafo primeiro do Artigo N. 4 da Lei

Brasileira da Inclusão -- Lei N. 13.146 de 2015.

Com esta iniciativa, muito mais do que formular apenas algumas criticas,

busco fornecer alguns elementos preliminares que possam subsidiar uma reflexão

mais aprofundada e ampla sobre as práticas, atitudes e posturas, não apenas

relacionadas com a falta de reconhecimento profissional desses servidores, mas,

também em relação aos estudantes com deficiência que estão matriculados nas

escolas públicas estaduais.

Na obra: "Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais"

(2003), Axel Honneth, concentra seus estudos em três pontos centrais, buscando

na filosofia de Hegel, as ideias do amor, do direito e da estima, os fios condutores

e articuladores de sua importante argumentação teórica.

Logo no início do prefácio, ele esclarece as razões que o levaram a buscar na filosofia de Hegel os fundamentos constituintes necessários que serviram de base nas suas formulações. Diz ele:

"Nesse escrito, proveniente de uma tese de livre-docência, tento desenvolver os fundamentos de uma teoria social de teor normativo partindo do modelo conceitual hegeliano de uma "luta por reconhecimento". O propósito dessa iniciativa surgiu dos resultados a que me levaram meus estudos em Kritik der Macht [Crítica do poder]: quem procura integrar os avanços da teoria social representados pelos escritos históricos de Michel Foucault no quadro de uma teoria da comunicação se vê dependente do conceito de uma luta moralmente motivada, para o qual os escritos hegelianos do período de Jena continuam a oferecer, com sua ideia de uma ampla "luta por reconhecimento", o maior potencial de inspiração.1 A reconstrução sistemática das linhas argumentativas de Hegel, que constitui a primeira parte do livro, conduz a uma distinção de três formas de reconhecimento, que contêm em si o respectivo potencial para uma motivação dos conflitos. Contudo, o retrospecto sobre o modelo teórico do jovem Hegel torna evidente também que suas reflexões devem parte de sua força a pressupostos da razão idealista, os quais não podem ser mantidos sob as condições do pensamento pós-metafísico. Daí a segunda grande parte sistemática do trabalho tomar seu ponto de partida no cometimento de dar à ideia hegeliana uma inflexão empírica, recorrendo à psicologia social de G. H. Mead; desse modo, origina-se no plano de uma teoria da intersubjetividade um conceito de pessoa em que a possibilidade de uma autorrelação imperturbada se revela dependente de três formas de reconhecimento (amor, direito e estima)" (HONNETH, 23/24, 2003, grifos do autor).

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Primeiramente, parece necessário deixar claro aqui que a obra de Honneth

não aborda a questão relacionada com pessoas com deficiência. Sua teoria social

do reconhecimento de teor normativo trata de questões e problemas filosóficos

abrangentes, relacionados com os objetivos gerais da sua importante

investigação.

No entanto, compreendo que o coletivo das pessoas com deficiência,

assim como outros coletivos de pessoas historicamente marginalizadas,

enquadradas no conceito de minorias sociais, desde o final dos anos 60 do século

passado, de forma organizada em movimentos políticos/ sociais, trava lutas por

reconhecimento social. As lutas por direitos civis, políticos, sociais, econômicos,

etc., desencadeadas por mulheres, jovens, negros, homossexuais, pessoas com

deficiência, entre outras minorias, tinham e continuam tendo no seu cerne os

conflitos sociais como forças motivadoras das suas lutas políticas e sociais.

Para Honneth, os três eixos estruturadores e motivadores dessas lutas

morais por reconhecimento social, respectivamente, são o amor, o direito e a

estima. Essas três categorias analíticas constituem o núcleo de sua argumentação

filosófica na defesa de sua tese, segundo a qual os conflitos sociais são à base

das lutas por reconhecimento social.

Esclareço que por falta de espaço neste escrito e principalmente de

conhecimento mais aprofundado da obra de Honneth, não pretendo avançar para

além de expor algumas ideias do autor. Faço isso muito mais como uma forma de

divulgar a obra, pois identifico no conjunto de sua argumentação filosófica, daquilo

que já consegui apreender no pensamento, material bastante interessante na

perspectiva de se buscar relações e conexões históricas com as lutas por

"reconhecimento" pessoal, profissional e social, por parte das pessoas com

deficiência e de outros coletivos com demandas semelhantes.

Falando sobre a necessidade da reciprocidade entre as pessoas como

elemento indispensável nas relações de reconhecimento e na formação da

intersubjetividade humana das pessoas, Honneth enfatiza:

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"Para a relação de reconhecimento, isso só pode significar que está embutida nela, de certo modo, uma pressão para a reciprocidade, que sem violência obriga os sujeitos que se deparam a reconhecerem também seu defrontante social de uma determinada maneira: se eu não reconheço meu parceiro de interação como um determinado gênero de pessoa, eu tampouco me posso ver reconhecido em suas reações como o mesmo gênero de pessoa, já que lhe foram negadas por mim justamente aquelas propriedades e capacidades nas quais eu quis-me sentir confirmado por ele" (2003, p. 78).

Ora, se eu como pessoa dotada de propriedades e capacidades humanas,

na interação, não reconhece na outra pessoa as mesmas propriedades e

capacidades humanas que estão presentes na minha personalidade integral, eu

não posso pretender que a outra pessoa reconheça na minha pessoa

propriedades e capacidades que são comuns a todas as pessoas humanas.

Por isso, na negação das propriedades e capacidades humanas das

pessoas com deficiência, acha-se presente o núcleo central de todas as formas de

desrespeito dos seus direitos humanos. Reconhecer apenas direitos formais

inscritos nas leis de uma moral normativa socialmente valida, sem considerar

questões intersubjetivas relacionadas com os sentimentos de aceitação e

pertencimento familiar e social, parece ser o mesmo que garantir o direito de

participação num concurso público por exigência legal, sem o devido e necessário

reconhecimento de que no exercício das atividades sociais do trabalho, estão

presentes determinadas necessidades objetivas e subjetivas que precisam ser

contempladas pelos agentes públicos e pelas empresas que empregam esta força

de trabalho.

Nas primeiras linhas do último capítulo de sua teoria social do

reconhecimento, Honneth afirma que da experiência do amor, existe a

possibilidade da autoconfiança, da experiência do reconhecimento jurídico, a

possibilidade do autorrespeito e da experiência da solidariedade a possibilidade da

autoestima. "... os indivíduos se constituem como pessoas unicamente porque, da perspectiva dos outros que assentem ou encorajam, aprendem a se referir a si mesmos como seres a que cabem determinadas propriedades e capacidades. A extensão dessas propriedades e, por conseguinte, o grau da autorrealização positiva cresce com cada nova forma de reconhecimento, a qual o indivíduo pode referir a si mesmo como sujeito: desse modo, está

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inscrita na experiência do amor a possibilidade da autoconfiança, na experiência do reconhecimento jurídico, a do autorrespeito e, por fim, na experiência da solidariedade, a da autoestima" (2003, p. 272).

De fato, no caso das pessoas com deficiência, esses três elementos

mereceriam uma profunda reflexão, pois autoconfiança, autorespeito e autoestima,

são, precisamente, as três principais formas de desqualificação e estão

diretamente vinculadas e articuladas com os aspectos morais e materiais da falta

de reconhecimento dessas pessoas, em todos os aspectos e espaços da vida

social.

Finalizando sua investigação, Honneth sugere que tanto o projeto de Hegel

como o projeto de Mead, fracassou em relação aos objetivos inicialmente traçados

pelos próprios pesquisadores. Ele assim se expressa:"Em seus escritos de Jena, o jovem Hegel buscou colocar no local assim traçado somente a "solidariedade" de todos os cidadãos, entendida como forma de comunicação; mas a vantagem da maior formalidade possível, que sem dúvida sua proposta lhe havia trazido, foi paga com a desvantagem de não dispor mais de nenhuma referência acerca das experiências às quais se deve o surgimento desses sentimentos de solidariedade. Por sua vez, em analogia com Durkheim, um autor mais ou menos da mesma época, George H. Mead havia concebido a divisão social do trabalho como finalidade coletiva, de que deve partir a força solidarizante por meio da qual todos os sujeitos podem saber-se estimados. Sua proposta, porém, tinha de fracassar, porque a organização do trabalho social, mas mais ainda a avaliação das diversas realizações laborais, depende por seu lado de representações de valores éticos, que justamente como tais iriam ser neutralizadas com a referência às exigências técnicas.

Ambos, Hegel não menos que Mead, não atingiram o objetivo, estabelecido por eles mesmos, de determinar um horizonte abstrato de valores éticos, abertas às mais distintas metas de vida, sem perder a força solidarizante da formação coletiva da identidade. Mas agora os duzentos anos que nos separam dos primeiros escritos de Hegel e os quase cem anos que nos distanciam das especulações de Mead somente intensificaram a necessidade de tal forma de integração: nesse meio-tempo, as transformações socioestruturais nas sociedades desenvolvidas ampliaram objetivamente a tal ponto as possibilidades da autorrealização que a experiência de uma diferença individual ou coletiva se converteu no impulso de uma série inteira de movimentos políticos; certamente, suas exigências só podem ser cumpridas em longo prazo quando ocorrem mudanças culturais que acarretam uma ampliação radical das relações de solidariedade. Nessa nova situação, a concepção aqui esboçada pode tirar do fracasso dos projetos de Hegel e de Mead somente o ensinamento de contentar-se com uma tensão insuperável: ela não pode renunciar à tarefa de introduzir os valores materiais ao lado

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das formas de reconhecimento do amor e de uma relação jurídica desenvolvida, os quais devem estar em condições de gerar uma solidariedade pós-tradicional, mas tampouco pode preencher por si mesma o lugar que é assim traçado como local do particular na estrutura das relações de uma forma moderna de eticidade -- pois saber se aqueles valores materiais apontam na direção de um republicanismo político, de um ascetismo ecologicamente justificado ou de um existencialismo coletivo, saber se eles pressupõem transformações na realidade econômica e social ou se mantêm compatíveis com as condições de uma sociedade capitalista, isso já não é mais assunto da teoria, mas sim do futuro das lutas sociais" (HONNETH, 2003, p. 279/280, grifos do autor).

De fato, as especulações psicológicas de Mead só poderiam fracassar,

pois a divisão social do trabalho, em vez da força coletiva solidarizante por ele

imaginada, abriram o caminho para o aprofundamento da competição e o

individualismo entre os próprios colegas de trabalho. Em processos competitivos o

que menos importa são os aspectos da solidariedade, enquanto formas de

cooperação individual e coletiva.

Processos competitivos e individualistas, levados ao extremo como

estamos vendo, constituem o núcleo central e são próprios desta forma atual mais

desenvolvida e perversa de capitalismo, onde praticamente tudo e todos foram

transformados em mercadorias lucrativas, colocadas a disposição de "todos" no

mercado de bens de consumo.

A divisão social do trabalho como força coletiva solidarizante, só pode ser

concebida numa perspectiva idealista. Na sua forma moderna mais desenvolvida

(fordismo/teylorismo/toyotismo, por exemplo), ela teve o propósito de retirar dos

trabalhadores o controle da produção, criando assim a divisão entre aqueles

especialistas (de RHS, por exemplo) que concebem e os trabalhadores que

executam as tarefas nos seus respectivos postos de trabalho. No capitalismo

atual, a ideia de trabalho colaborativo não tem outra finalidade se não aquela de

ocultar os interesses antagônicos das classes sociais e enfatizar a necessidade da

colaboração entre patrões e empregados. A força solidarizante almejada por Mead

sucumbiu diante da fragmentação do trabalho e da competição entre as categorias

de trabalhadores.

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Num modelo societário onde ainda predomina as leis dos mais fortes e

inteligentes, fala num projeto social verdadeiramente inclusivo parece mais

cinismo do que uma ideia séria que mereça credibilidade.

Tivemos avanços legais e conceituais importantes nas últimas décadas,

mas que ainda não se traduziram em reconhecimentos sociais nem mesmo na

concretização das políticas públicas, também determinadas pelas leis do mercado.

Diante desta realidade sombria, Honeth conclui que as garantias inscritas

na forma das Leis morais sem as devidas e necessárias garantias materiais e

mudanças culturais radicais correspondentes de longo prazo, já se revelaram

insuficientes e incapazes no intento de assegurar às pessoas o reconhecimento

social e individual tão almejado.

Particularmente, diante desta realidade nada animadora, se eu ainda não

perdi de vez as esperanças nas capacidades humanas na busca de um novo

projeto societário, efetivamente e verdadeiramente baseado no bem comum da

coletividade, por sua vez, já não acredito mais no projeto iluminista baseado na

liberdade, igualdade e fraternidade.

A única liberdade que vejo prosperar no capitalismo é evidentemente a

liberdade do mercado, a liberdade da deixa fluir, deixa passar. O mercado é, pois,

o novo Deus que dita às regras da vida das pessoas.

Se as coisas vão bem, é porque o mercado quer; se as coisas estão ruins,

é porque o mercado está nervoso; se eu sou discriminado, por exemplo, também é

por culpa do mercado e suas exigências, por mais indecentes que elas sejam. Em

nome de este ser abstrato, pessoas rouba e pessoas matam, governos suprimem

direitos históricos dos trabalhadores, porque esta é simplesmente a vontade do

mercado.

Parece já não existir mais a separação entre mercado e sociedade. Até

mesmo os direitos foram transformados em mercadorias e são comercializados

pelos agentes públicos e nos tribunais. As próprias famílias já não são mais

núcleos onde se ensinam valores do bem comum, do respeito e da verdadeira

solidariedade humana, se não o lugar onde todos são educados para o consumo,

o individualismo e a competição.

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Nossas escolas, registro com pesar, vão pelo mesmo caminho, na medida

em que estão mais preocupadas em formarem trabalhadores adestrados do que

formarem cidadãos e cidadãs dotados de consciência critica.

Na prática, é como afirma Meszáros, me diga onde está o trabalho em uma

dada sociedade e eu te direi onde está a educação. Esta é precisamente a

contradição da educação do nosso tempo: algumas escolas ainda resistem e

procuram formar cidadãos e cidadãs, mas o mercado exige trabalhadores

disciplinados, passivos e ordeiros. Assim, nossas escolas são, em sua maioria,

verdadeiros "cães" de guarda a serviço da reprodução dos ideais capitalistas.

Para ilustrar o que estou pretendendo tornar claro, destaco que

"Com o aguçamento das contradições do capitalismo e o consequente acirramento da luta de classes, a burguesia intensifica o uso de todos os recursos possíveis para não permitir o avanço da luta pela socialização dos meios de produção. Nesse contexto a educação escolar dos filhos da classe trabalhadora é constantemente reestruturada em todos os seus níveis, desde a educação infantil até o ensino superior, num complexo jogo político e ideológico cujo objetivo, por parte da classe dominante e dos intelectuais a seu serviço, é o de assegurar que os conteúdos ensinados e aprendidos na escola pública se limitem ao que é demandado pela reprodução da divisão social do trabalho e da concepção burguesa de sociedade, de conhecimento, de vida humana e de individualidade; em poucas palavras, que a educação escolar se limite à adaptação" (DUARTE, 2013, p. 27).

Na sequencia, citando Leontiev, Duarte esclarece o conceito de adaptação: "A perspectiva da psicologia histórico-cultural é, porém, bastante distinta e Leontiev (1981) foi bastante claro em sua crítica à centralidade do conceito de adaptação na psicologia burguesa: A despeito das concepções capitalistas do desenvolvimento ontogenético humano como "uma adaptação ao meio", esta adaptação não constitui de modo algum o princípio desse desenvolvimento. Ao contrário, o progresso no desenvolvimento do individuo pode consistir em ir além das limitações desse meio imediato e não numa adaptação às mesmas que, em tais circunstâncias, tornam-se empecilhos à expressão mais plena possível da riqueza das verdadeiras características e capacidades humanas. “Eis por que falar da adaptação do indivíduo ao seu meio social é no mínimo ambíguo tanto no aspecto social como ético” (DUARTE, 2013, p. 27, grifos do autor).

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Da mesma forma, a única igualdade é aquela baseada na igualdade de

oportunidades, também submetida e aprisionada nas leis do mercado, nas leis da

competição, do egoísmo e do individualismo exacerbado.

Somos todos iguais na forma da Lei, mas, acontece que a Lei não é igual

para todos e nem todos são iguais na forma da Lei. Trata-se de uma velha

contenda liberal que garante aos sujeitos apenas o direito de participarem da

competição. Acontece que as desigualdades já estão presentes no marco zero

das largadas, pois nem todas as pessoas iniciam a competição com as mesmas

condições materiais. Trata-se de uma igualdade de oportunidades meramente

ilusória.

Já a fraternidade, não é outra se não aquela baseada na velha caridade,

nas suas formas medievais, ou na filantropia, nas suas formas modernas mais

desenvolvidas. De qualquer maneira, ambas não reconhecem as pessoas com

deficiência como sujeita de direitos, nos termos filosóficos e conceituais dos atuais

direitos humanos com todas suas complexidades e dimensões particulares e

abrangentes. Se eu e meus semelhantes com deficiência, não somos reconhecido

como sujeitos de direito, logo, nós somos meros objeto da filantropia. Acredite isso

não é apenas uma retórica ou força de expressão, mesmo nos dias atuais.

Desta forma, depois de buscar em Honneth os fundamentos filosóficos dos

pontos de vistas que pretendo sustentar nesta exposição, bem como também de

demonstrar que a experiência moral do amor, do direito e da solidariedade,

efetivamente, não resultou na autoconfiança, no autorrespeito e na autoestima das

pessoas com deficiência, em virtude de não serem reconhecidas como pessoas

dotadas das mesmas propriedades e capacidades humanas das pessoas sem

deficiência, o que entra perfeitamente nos princípios e nos valores da sociedade

capitalista.

Neste exercício de apreender o concreto em pensamento, meu esforço

consistirá em demonstrar que as práticas equivocadas e recorrentes da SEED, na

relação de trabalho com os servidores com deficiência, em vez de contribuir

enquanto experiência na geração da possibilidade da autoconfiança, do

autorrespeito e da autoestima, aponta justamente no sentido contrario, gerando

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um sentimento de insegurança, desrespeito profissional e, por conseguinte,

reforçando nessas pessoas o seu sentimento de inferioridade e autoestima

rebaixada.

Deste modo, a importante experiência do trabalho que do ponto de vista

social e das condições elementares de sobrevivência poderiam ser altamente

encorajadoras e recompensatórias, por tudo o que o trabalho representa na vida

das pessoas, acaba traduzindo-se em experiências negativas justamente pelo tipo

de relação desrespeitosa estabelecida pelos agentes públicos. Casos e situações

que poderiam ser resolvidas com diálogos, bom senso e um pouco mais de

temperança, geram conflitos e tensões desnecessárias que poderiam ser evitadas.

O mais intrigante e preocupante em muitos desses casos e situações,

consiste em compreender que nos dois extremos das relações conflituosas estão

servidores públicos que ingressaram no Quadro Próprio do Magistério pelas

mesmas vias, quer dizer, por meio de concurso público de provas e títulos. Isso

apenas demonstra que nas relações de trabalho mesmo dentro do serviço público,

o que importa não é a condição de servidor, mas qual a posição ocupada na

escala das hierarquias, o poder de mando e de decisão que o servidor exerce no

interior da estrutura estatal.

Esclareço que não pretendo, nesta exposição, transformar minha própria

experiência negativa como professor num ponto de eventual comoção social em

face dos descasos enfrentados desde que ingressei no Estado pela primeira vez

em 2005, quando enfrentei e fui aprovado no meu primeiro concurso público.

Embora não focado apenas na minha própria experiência, já desenvolvi

com mais vagar e detalhe este assunto no quarto capítulo de minha dissertação

de mestrado, intitulada: "O trabalho das pessoas com deficiência e as relações

sociais de produção capitalista: uma análise critica da política de cotas no Brasil"

(2009).

O mesmo assunto também se encontra no livro de minha autoria,

recentemente publicado na versão digital, intitulado: "Deficiência e trabalho: a luta

pelo direito de ser explorado" (2016).

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A luta pelo direito de ser explorado é parte do título de um importante e

esclarecedor artigo, escrito por Eduardo Joli, um ativista político argentino, usuário

de cadeira de rodas. Ele demonstra que a força e trabalho das pessoas com

deficiência é tão desqualificada, depreciada, rejeitada, pela incapacidade produtiva

na produção da mais valia, que elas lutam pelo direito de serem exploradas.

Enquanto muitos trabalhadores sem deficiência estão buscando libertar-se da

exploração do trabalho, o que as pessoas com deficiência mais desejam é serem

exploradas pelo capital.

Nos dois casos (na dissertação no livro), demonstrei com farta

documentação e exemplos que as práticas dos agentes públicos não se

diferenciam em nada das práticas dos agentes privados quando o assunto envolve

a seleção, contratação e aproveitamento da força de trabalho das pessoas com

deficiência. Em ambas as situações, essas pessoas somente são contratadas por

imposição legal e ainda assim precisando enfrentar e superar inúmeros atos de

preconceitos e discriminação nos processos de seleção e posteriormente nos

locais de trabalho.

Essas práticas não são novas e estão agravando-se ainda mais nos últimos

anos, sobretudo, em face da crise econômica e de um recrudescimento dos atos e

práticas de preconceito e discriminação contra as pessoas com deficiência. Para

muitos, essas pessoas são privilegiadas com as leis protetivas dos seus direitos.

No caso em tela, minha primeira experiência negativa apareceu logo após

eu ter vencido todas as fases do concurso público, em 2005. Mesmo eu tendo

declarado ser pessoa cega no ato de inscrição, conforme determina a Lei, o que

me garantia o direito de participar do certame na reserva de vagas, no momento

do exame médico pré admissional, o médico da pericia me considerou inapto

temporariamente para o trabalho.

Ora, flagrante ato de discriminação, nos termos da legislação brasileira. Eu

cursei quatro anos de universidade e fui devidamente titulado por instituição de

ensino credenciada pelo Ministério da Educação (MEC). Logo, se eu fui habilitado

pela universidade, o médico da perícia não poderia ter me declarado inapto, por

três razões básicas elementares:

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a) Eu já havia feito a inscrição como pessoa cega.

b) O exame médico pré-admicional não tem a finalidade de avaliar ou identificar

deficiência, mas apenas e tão somente a condição de saúde do candidato.

c) A declaração de inaptidão feita pelo médico é o mesmo que dar a ele o poder

de cassar diploma. Tanto lá como nos dias de hoje, trata-se de ato discriminatório

e porque não dizer, um certo abuso de autoridade e arrogância profissional.

Naquele contexto, eu só consegui assumir a vaga que conquistei por mérito

próprio após muitas lutas políticas. Se não fosse à pressão, na "Luta por

reconhecimento", talvez eu estivesse até hoje esperando para ser chamado, como

já aconteceu com vários colegas meus com deficiência que também foram

declarados inaptos.

Mesmo assim, depois de ter tomado posse, fui simplesmente enviado para

uma escola sem nenhum tipo de preocupação com as questões de acessibilidade.

Nesses casos, a legislação brasileira prevê que os candidatos com deficiência,

tanto no momento da realização do concurso como também depois, no decorrer

do estágio probatório e mesmo na realização das suas atividades profissionais,

precisam contar com equipe de apoio especializado e com os devidos e

necessários recursos acessíveis que são utilizados no desempenho das funções.

Nada disso, eu e outros tantos colegas também com deficiência tivemos por parte

da SEED e dos núcleos regionais onde assumimos nossas respectivas vagas.

Da mesma forma que aconteceu comigo, ocorreu também com outras

pessoas com deficiência no momento da escolha das escolas onde iriam exercer

as suas respectivas funções. Como o critério da chamada é a lista de

classificação, acontece que pessoas com deficiência melhor selecionadas nas

listas gerais dos aprovados nos respectivos concursos, por um erro de

interpretação legal dos HRS dos NRES, acabavam sempre sendo chamadas por

último. Por isso, quando chegava à vez dessas pessoas escolherem as vagas, na

maioria das vezes, só restava escolas distantes e sem nenhuma condição dos

candidatos com deficiência exercerem suas funções profissionais.

Durante o período que estive em Cascavel, atuei em três locais de trabalho

diferentes, sendo duas escolas e um centro especializado na área da deficiência

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visual. Não posso dizer que não tive experiências positivas em nenhum desses

locais, pois estaria faltando com a verdade. Porém, nas duas escolas fui marcado

pela falta de reconhecimento, não vou nem dizer pessoal, mas de reconhecimento

profissional.

A falta da visão impossibilita ou dificultam que uma pessoa cega possa

exercer algumas das atribuições destinadas aos professores (as) pedagogos (as).

Isso realmente poderia ser bem diferente, se as funções desses profissionais não

tivessem sido reduzidas as práticas de "vigiar e punir", nos termos desenvolvidos

por Foucault.

Além do mais, na maioria das escolas, os processos de trabalho onde os

pedagogos (as) atuam, não possuem as condições de acessibilidade, de modo a

atender as necessidades específicas de servidores cegos ou cegas.

Para ilustrar, certo dia, numa das escolas, eu estava na sala da pedagogia

e entra o diretor e ao perceber que eu estava ali sozinho indaga: mas, não tem

nenhum pedagogo aqui? Ora, embora eu fosse lá naquela escola pedagogo

assim como os outros meus colegas, a atitude do diretor indicava que não havia

por parte dele o reconhecimento da minha condição profissional de pedagogo.

Exemplos de situações como essas, eu e tantos outros servidores com

deficiência estamos cansados de enfrentar nos locais de trabalho e na vida social

em geral. Não obstante as leis, o fato é que do ponto de vista da cultura, ainda

somos reconhecidos como inválidos, inúteis, incapazes e improdutivos.

No final de 2009, fui convidado pela então chefa do Departamento da

Educação Especial (DEE), para assumir a função de interventor judicial provisório

no Instituto Paranaense de Cegos (IPC).

Para isso, deixei família, meus estudos relacionados com assuntos sobre a

educação e a vida de pessoas com deficiência visual e um projeto de doutorado já

bem encaminhado. Abri mão dos meus projetos pessoais para dedicar tempo e

esforço num projeto coletivo, de acordo com meus ideais de vida.

O IPC é uma organização particular sem fins lucrativos e, nesta condição,

presta serviços públicos, nos termos da legislação brasileira que regula as

parcerias firmadas entre o poder público e essas organizações (Lei Federal,

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13.019, de 2015). Desta forma, como o IPC já tinha com a SEED/DEE, termo de

convênio, meu padrão foi colocado na Escola de Educação Especial, Professor

Osny Macedo Saldanha, mantida pelo instituto. Foi a maneira mais apropriada

para que eu pudesse regularizar a vida do IPC e manter a continuidade dos

serviços públicos prestados pela Escola Osny.

A sugestão do meu nome, segundo a chefia do DEE, aconteceu por três

motivos principais:

a) Como eu era servidor público e havia recurso público envolvido nos desvios

constatados pelo Ministério Público, que resultou no afastamento judicial da

direção do IPC, eu parecia o nome mais indicado naquele contexto.

b) Eu fazia parte do Conselho Estadual dos Direitos das Pessoas com Deficiência

- COEDE, justamente representando a área visual. Nesse sentido, meu nome

tinha uma representatividade e legitimidade de base.

c) Eu era pessoa cega, o que poderia aliviar um pouco o argumento de que o

Ministério Público estava retirando as pessoas cegas da direção e colocando ali

pessoa vidente. Isso poderia ser um ponto maior de conflito entre o Ministério

Público e as pessoas cegas afastadas da direção do IPC.

Contudo, havia ainda um quarto argumento, que eu era uma pessoa

coerente e comprometida com as políticas públicas. De fato, sempre conduzi

minha atuação profissional/pessoal nas lutas sociais e políticas pela defesa dos

direitos das pessoas com deficiência e das políticas públicas enquanto forma de

concretização dos direitos humanos deste segmento social.

Deste modo, em Curitiba, num período eu exercia a função de pedagogo na

escola do IPC e no outro a função de interventor. Porém, em 2015, fui aprovado

em outro concurso de pedagogo, classificado em 11º lugar para o Núcleo de

Educação de Curitiba, numa disputa entre centenas de participantes.

Num primeiro momento, pensei muito seriamente em não assumir a vaga. Depois

de refletir e fazer algumas consultas jurídicas decidi assumir o novo padrão e

assim fiquei os dois períodos, manhã e tarde na Escola do IPC, desenvolvendo

minhas atribuições profissionais.

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Não demorou e logo apareceu uma denuncia que eu estava acumulado

funções. Esta denuncia foi feita por Luiz Cesar Trevisan, ex advogado do IPC,

afastado da função quando eu assumi.

Mesmo sem meu conhecimento, por escrito, bem como o direito ao

contraditório e a ampla defesa, do que e por quem estava sendo acusado, o fato

foi investigado pela Comissão de Acumulo de Cargos da SEED e o resultado foi

de que não havia ilegalidade na minha condição."No ano de 2015 houve denuncia, através Sistema

Integrado para Gestão de Ouvidorias - SIGO, atendimento número, 36329/2015 de 18/11/2015, quando o denunciante solicitava análise quanto à acumulação ilegal do cargo de interventor com os cargos de professor QPM, sendo a mesma protocolada por esta Pasta e encaminhada para análise da Comissão de Acúmulo de Cargos - CAC/SEAP protocolo número 13.736.088-8. Em resposta, por meio do parecer 2012/2015 - SEAP/CAC e despacho número 1802/2015 - GS/SEAP, foi considerado legal à acumulação dos cargos ocupados pelo professor, desde que houvesse compatibilidade de horário" (PARANÁ, 2015).

Como evidenciado pelo resumo do parecer da Comissão de Acúmulos de

Cargos, existia apenas uma questão da compatibilidade de horário e não uma

possível ilegalidade, conforme pleiteava o denunciante.

Quando o Juiz do processo (autos N. 1630/2009, da 22 Vara de Curitiba),

fez minha nomeação como administrador provisório do IPC, não fixou dias e

horários estabelecidos. Eu exercia e continuo exercendo minhas atribuições de

interventor nos dias e horários que não estou na função de professor do Estado.

Além do mais, trata-se de uma função provisória e sem nenhum tipo de prejuízo

financeiro ao poder público, já que o meu pró-labore é pago pela própria

instituição.

Por isso, naquela ocasião não foi tomado pela SEED nenhuma medida

drástica como esta de agora e eu continuei exercendo minhas funções na escola

do IPC com os dois padrões. Diante do arquivamento da denúncia, a vida seguiu

seu curso e eu continuei fazendo no IPC as devidas e necessárias mudanças, no

intento de regularizar, inclusive, a situação do próprio convênio com a SEED,

tendo em vista haver dinheiro público envolvido.

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No final de 2016, houve outra denuncia com o mesmo teor e pela mesma

pessoa, quer dizer, o ex advogado do IPC, Luiz Cesar Trevisan. Desta vez,

porém, a denuncia foi feita ao Ministério Público – Promotoria de Defesa do

Patrimônio Público. Como precisava investigar, a Promotoria pediu

esclarecimentos da SEED sobre a minha situação funcional. O GRHS da SEED,

se assim desejasse, poderia simplesmente responder que denuncia semelhante já

havia sido feita em 2015 e que o resultado acabará por concluir que não havia

ilegalidade no acumulo de funções.

No entanto, o GRHS passou a solicitar várias informações da direção da

Escola Osny sobre minha situação, mais precisamente no período do meu

segundo padrão, onde ainda estava em estágio probatório. Foram vários

documentos enviados, todos devidamente esclarecedores sobre minha situação

funcional e que eu vinha exercendo as atribuições educacionais designadas pela

direção da escola e previstas no Termo de colaboração firmado entre o IPC e a

SEED/DEE.

Não satisfeitas com as explicações, técnicas do GRHS estiveram na escola

do IPC e lá eu mesmo pude responder algumas perguntas formuladas por elas.

Durante toda esta fase de levantamento de informações e de questionamentos

sobre minha situação, em nenhum momento eu fui comunicado, por escrito,

conforme prevê a Lei, sobre o que eu estava sendo investigado ou mesmo

acusado.

Em outras palavras, além de não ter o conhecimento do que estava sendo

supostamente acusado, eu ainda tive o direito cerceado de exercer o meu direito

ao contraditório e a ampla defesa, conforme prevê a CF de 1988. Ora, seu eu

estou sendo acusado eu preciso saber qual é precisamente a acusação para que

eu possa exercer o direito de apresentar minha defesa.

Depois, por outras vias, acabei sabendo que se tratava da mesma denuncia

de 2015, do suposto acumulo de funções. Aproveitando-se da situação e mesmo

sem haver ilegalidade constatada, o GRHS da SEED simplesmente decidiu que

durante o ano letivo de 2017, eu deveria sair da escola do IPC no período da

manhã e exercer minha função em outra escola.

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Valendo-se do meu direito entrei com recurso contra a decisão que considerei

arbitraria, já que as motivações não estavam claras. Ora, se a denuncia era de

acumulo de função e se a própria SEED, em 2015, havia constatado que não

havia nenhuma ilegalidade, porque então eu estava sendo visivelmente

prejudicado com aquela decisão?

Depois de certo tempo veio à resposta negativa do meu recurso. As explicações

são simplesmente que cabe ao agente público, na defesa do interesse público,

designar onde os servidores irão exercer suas atribuições profissionais.

Transcrevo aqui o teor da resposta do GRHS:

"Através do Despacho nº599/2017, a Assessoria Jurídica solicita manifestação acerca do recurso apresentado pelo professor Ênio Rodrigues da Rosa, sobre os fatos ali apresentados. O Professor Ênio Rodrigues da Rosa entende ser ato arbitrário da administração pública que, a partir do ano de 2017, em uma das linhas funcionais, desempenhe suas funções docentes em outro estabelecimento de ensino, visto que afirma conciliar dois cargos de professor com a função de interventor junto ao Instituto Paranaense de Cegos. Considerando os esclarecimentos já prestados pela informação Nº1529/2016, fls.46 e após análise da situação dos cargos desempenhados pelo professor/interventor, este GRHS/CT determinou que o professor Ênio Rodrigues da Rosa, a partir deste ano, cumpra sua jornada de trabalho, de um de seus dois padrões QPM, em outro estabelecimento para não haver sobreposição de funções. Ainda que se julgue apto para desempenhar suas funções dentro de uma mesma jornada, esse acúmulo de atribuições a médio ou longo prazo poderiam comprometer a qualidade do serviço público prestado, bem como a própria saúde do servidor. É importante ressaltar que a distribuição de aulas para professores é instrumento de política de pessoal da Administração, que deve ser realizada no estrito interesse do serviço público, além disso, o princípio da impessoalidade garante que o administrador público não trabalhará voltado a determinadas pessoas e sim em prol do interesse público (CARVALHO FILHO, 2011). Diante do exposto o professor Ênio Rodrigues da Rosa, neste ano desempenhará as funções de professor, em uma linha funcional, em outro estabelecimento de ensino para não haver sobreposição de funções" (PARANÁ, 2017).

Ora, se eu estou interpretando corretamente a manifestação do GRHS, a

decisão acha-se amparada no poder discricionário do agente público, no momento

de determinar onde o servidor público deve exercer sua função.

Sobre isso, o STF já se manifestou da seguinte forma:

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"Nessa hipótese, de revogação de um ato válido que se tornou inconveniente - verdadeiro poder da administração pública, exercido com suporte, também, no poder discricionário -, somente a própria administração que editou o ato tem a possibilidade de controle. Vale dizer, o Poder Judiciário não pode retirar do mundo jurídico atos válidos editados por outro Poder.

O princípio da autotutela administrativa está consagrado na Súmula 473 do STF, nestes termos: 473 - A Administração pode anular seus próprios atos quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.

Não obstante tratar-se de um verdadeiro poder-dever da administração pública, convém ressaltar que nossa Corte Suprema entende que o exercício da autotutela-administrativa, quando implique desfazimento de atos administrativos que afetem interesse do administrado, modificando desfavoravelmente sua situação jurídica, deve ser precedido da instauração de procedimento no qual se dê a ele oportunidade de contraditório, isto é, de apresentar alegações que eventualmente demonstrem ser indevido o desfazimento do ato (RE 594.296/MG)" (ALEXANDRINO, 2012, grifos meus).

Nesta pegada, parece evidente que a decisão do GRHS foi tomada

violando-se o princípio constitucional do direito ao contraditório e da ampla defesa.

Pois, não houve a instauração de um procedimento administrativo oficialmente

constituído, com notificação amparada nos termos legais, dando ciência das

motivações que levaram a instauração do procedimento e abrindo o devido prazo

legal para que eu pudesse exercer o meu direito ao contraditório e a ampla

defesa.

Deste modo, se é verdade que o agente público tem o poder discricionário,

ele não pode utilizar-se deste poder de forma abusivo, causando danos e

prejuízos ao servidor público. Mesmo que eu estivesse exercendo uma ilegalidade

devidamente demonstrada e justificada nos termos legais, parece necessário

esclarecer que isso vinha acontecendo com o devido conhecimento e

concordância da própria SEED.

Quando a primeira denuncia apareceu em 2015, aliás, lá também não foi

instaurado um ato administrativo, visto que nunca fui notificado sobre isso, se

houvesse uma efetiva ilegalidade, as providencias deveriam ter sido tomadas.

Naquela ocasião, é bom recordar, a Comissão de Acumulo de Funções não

identificou ilegalidade, conforme parecer já exposto linhas antes.

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Ora, se não havia ilegalidade lá, provavelmente não havia ilegalidade em

2017. Se não há ilegalidade, pois é isso que estou aqui buscando conferir,

significa dizer que a minha permanência na Escola do IPC, não seria nenhuma

ilegalidade. Restaria, então, o poder discricionário do agente público. Porém,

ainda que tal discricionariedade tenha sido exercida na defesa do interesse

público, conforme aparece no parecer do GRHS, exposto linhas antes, a decisão

desconsiderou que na Escola do IPC eu estava também exercendo minha função

de professor concursado realizando atividades educacionais que também são de

interesse público.

Por isso, em nenhum momento o GRHS levou em conta os transtornos e os

reflexos negativos desta decisão na minha vida pessoal e profissional. Se

estivesse efetivamente preocupado com a minha saúde, não teria conduzido o

processo desta maneira. Esclareço: não estou nem mesmo questionando o mérito

da decisão, mas uma dada maneira de abordar e conduzir um processo cheio de

dúvidas e que envolve, queiram ou não, a vida de um servidor público que deveria

ter merecido ao menos o direito de manifestação no processo. Se havia denúncia,

no mínimo, eu deveria ser informado e ter garantido o direito de dizer o que

pensava da acusação.

Antes mesmo do parecer final sobre meu recurso, por iniciativa própria, eu

estive na SEED, no GRHS, falando pessoalmente com as duas técnicas que

estavam cuidando deste caso. Pedi reconsideração, ponderei que eu estava

sendo prejudicado por denuncias de pessoas que faziam parte da diretoria

afastada do IPC, demonstrei que eu estava sendo penalizado simplesmente pelo

fato de ser interventor, estar contribuindo com a própria SEED, na boa gestão do

recurso público repassado ao IPC, argumentei o quão aquela decisão estava

trazendo transtornos na minha vida pessoal, já que eu organizará minha vida

próxima do IPC, meu local de trabalho, os desgastes físicos e emocionais, além

de prejuízos financeiros com deslocamento, a falta de tempo de almoço em face

do pouco tempo para o deslocamento entre uma e a outra escola, entre outros

tantos argumentos plausíveis que poderiam ter sido considerados sem nenhum

comprometimento do interesse público.

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Naquele momento, fui novamente informado por uma das técnicas que

nada daquilo estava ocorrendo por conta do suposto acumulo de funções, porque

não havia ilegalidade constatada. Ora, se não havia o acumulo de cargos e se a

denuncia, segundo consta, já que não tive acesso aos autos, tratava disso, então,

porque mesmo eu fui retirado de onde eu estava? Esta é a resposta que eu

procurava e ela não foi dada pelo GRHS e nem pelo jurídico da SEED.

Diante desta situação, pedi interferência da então chefa do DEE, no

sentido de buscar manter minha permanência na escola do IPC. Ainda na fase

anterior, no parecer interno solicitado pelo GRHS, a então chefe do DEE, havia

sugerido que aquele Departamento acompanharia minha situação durante o ano

letivo de 2017, no próprio local onde eu já estava atuando antes. Em outras

palavras, o DEE não opinou pela minha transferência, mesmo sendo ele o

responsável direto pelo acompanhamento dos convênios com as instituições sem

fins lucrativos, como é o caso do IPC.

Na continuidade, foi o próprio representante do DEE da área visual que

sugeriu, como uma alternativa, a minha transferência para o CAP -- Centro de

Apoio Pedagógico às Pessoas com Deficiência visual.

Ele teria feito isso a pedido da então chefa. Na ocasião, eu ainda indaguei

se havia a possibilidade de uma negativa do GRHS, pois, se tal acontecesse

poderia tornar minha situação um tanto embaraçosa na escola onde eu havia sido

realocado. Em resposta, ele acha muito pouco provável que tal negativa pudesse

ocorrer dado ser um pedido do próprio DEE e ainda mais se considerando que lá

havia carga horária disponível.

Então, confiante nesta possibilidade, dei início no processo de

transferência. Preenchi e assinei o formulário; recolhi a assinatura da chefia do

DEE; peguei a assinatura da direção da escola e do chefe do NRE e depois deixei

o documento no DEE. Foi o próprio DEE quem protocolou o pedido junto ao

GRHS, solicitando minha transferência para o CAP, com a intenção de fortalecer

aquele espaço pedagógico, principalmente com a presença de servidores com

deficiência visual qualificado e preparada para atuarem na formação continuada

dos professores (as) da Rede Estadual de Ensino.

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No pedido enviado ao GRHS, a chefia do DEE escreveu:

"O Departamento de Educação Especial – DEE encaminha o presente protocolado para análise e providências. Informamos que a solicitação de prestação de serviço do professor Enio Rodrigues da Rosa, não é demanda de substituição, a vaga que será ocupada pelo profissional encontra- se em aberto no CAP-PR - CENTRO DE APOIO PEDAGÓGICO PARA ATENDIMENTO ÀS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA VISUAL" (PARANÁ, 2017).

Entretanto, em resposta o GRHS informou o que segue:

"Encaminhamos o presente protocolado para ciência da impossibilidade de atendimento à solicitação da prestação de serviços em pauta, uma vez que não há demanda para suprimento requerente. Lembramos que foi deferida licença, especial para dois servidores que compõe aquele centro, no entanto, eles permanecem ocupando aquela demanda. Ressaltamos que o Art.5º da resolução nº3869/02 as fls.12. Estabelece a carga horária total máxima admitida no CAP.

Não obstantes às necessidades desse Departamento, esclarecemos que neste momento não há possibilidade de ampliação da demanda, considerando os seguintes pontos:

a) No ano de 2016 o CAP já apresentava demanda total de 340 (trezentos e quarenta horas semanais);

b) Não há disponibilidade orçamentária para atendimento;c) “As prestações de serviços de professores e pedagogos

somente são autorizadas, entre outros critérios, mediante a indicação de servidor ser substituído, devido ao seu retorno para instituição de ensino da Rede Estadual” (PARANÁ, 2017).

Diante da negativa, o DEE enviou o processo ao NRE de Curitiba para que

eu tomasse ciência da decisão do GRHS. Quando lá estive, deixei registrada a

seguinte declaração:

"Lamento, não pela decisão em si, mas pelo fato desta decisão não observar a necessidade dos estudantes com deficiência visual matriculados nas escolas públicas, bem como, da necessidade de uma efetiva e urgente implementação de uma política de formação continuada que de conta de garantir a formação dos professores".

De acordo com o DEE, havia carga horária disponível no CAP para o meu

suprimento. Porém, o GRHS argumenta diferente e ainda acrescenta outras

informações que são mais preocupantes. Elas explicitam muito bem o conflito

entre os interesses financeiros do Estado e as necessidades pedagógicas.

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Durante uma reunião ocorrida entre a equipe do DEE e os representantes

das instituições conveniadas da área visual de Curitiba, onde fiquei sabendo que o

meu pedido havia sido negado, eu afirmei que o principal obstáculo que a então

chefia do DEE precisaria transpor, estava dentro da própria SEED, mais

precisamente no GRHS e não nas instituições parceiras. Na ocasião,

apresentamos um documento com inúmeras reivindicações da área, entre elas

justamente o fortalecimento dos CAPS, não apenas com recursos humanos, mas

também com recursos financeiros e recursos materiais (equipamentos de

tecnologias assistivas).

Diante da negativa, não apenas no meu caso, mas também de outros

profissionais na mesma situação, só me restou Lamentar pela falta de prestigio

deste importante Departamento dentro da estrutura da SEED.

Naquela ocasião, eu não imaginava como a Secretária da Educação

concebia as questões relacionadas com a inclusão educacional dos estudantes

com deficiência nas escolas da Rede. Se fosse do mesmo jeito que o GRHS, eu

projetava que as coisas ainda deveriam piorar muito além do que já estavam.

Como pedagogo, independentemente da minha cegueira e desta questão

envolvendo minha transferência para o CAP, continuo vendo com muitas

restrições e sérias preocupações decisões, posicionamentos, atitudes e posturas

meramente burocráticas se sobrepondo as questões e os interesses pedagógicos.

O argumento da indisponibilidade orçamentária era totalmente infundado e

improcedente, pois eu já era servidor do Quadro Próprio. Esta tese só se

sustentava na seguinte hipótese: o GRHS negará minha transferência para evitar

mandar outro pedagogo para a escola onde eu fora lotado.

Diante disso, ficará visível a falta de força política do DEE frente a certas

decisões que atingem as questões relacionadas com as diversas áreas das

deficiências. A própria área da deficiência visual que em outros tempos era muito

mais atuante nas questões pedagógicas, atualmente, conta apenas com uma

pessoa que precisa desdobrar-se na realização de todas as demandas. Isso

revela o quão estamos andando de ré nesses últimos anos na educação escolar

das pessoas com deficiência visual.

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Na mesma perspectiva, desejo agora abrir uma fenda e lançar luzes em

alguns dispositivos previstos no capítulo sobre o direito ao trabalho das pessoas

com deficiência, constante na Lei Brasileira da Inclusão - Lei 13.146 de 2015.

Inicialmente, vamos conferir o que verte o Artigo N. 34 deste diploma:

"Art. 34. A pessoa com deficiência tem direito ao trabalho de sua livre escolha e aceitação, em ambiente acessível e inclusivo, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas".

Grifei a expressão "... ambiente acessível e inclusivo...". Portanto, as

pessoas com deficiência não só têm garantido o direito ao trabalho, como os

ambientes de trabalho devem ser acessíveis e inclusivos.

Ora, o que são ambientes acessíveis e inclusivos, se não aqueles que

garantem todas as condições de acessibilidade, de acordo com as necessidades

objetivas e subjetivas específicas de cada trabalhador com deficiência.

O parágrafo primeiro do mesmo Artigo supracitado verte: "§ 1º As pessoas

jurídicas de direito público, privado ou de qualquer natureza estão obrigadas a

garantir ambientes de trabalho acessíveis e inclusivos".

Grifei a expressão "... estão obrigadas...". Aqui entra a questão central

trazida por Honneth, da falta de reconhecimento. Já relatei quais foram e

continuam sendo as condições de trabalho que eu e meus colegas com deficiência

nos deparamos nas escolas públicas estaduais. Nem de longe esses ambientes

são acessíveis e inclusivos. Se não são, logo, não estão dentro do que estabelece

o dispositivo legal.

Já o parágrafo dois do mesmo Artigo, afirma:

"§ 2º A pessoa com deficiência tem direito, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, a condições justas e favoráveis de trabalho, incluindo a igual remuneração por trabalho de igual valor".

Destaquei a expressão "... condições justas... e igual remuneração por

trabalho de igual valor". Mas, qual é mesmo o valor do trabalho das pessoas com

deficiência numa sociedade, ou numa organização do trabalho onde nem elas

mesmas têm valor como pessoa humana? Eis aqui o nó que precisa ser desatado,

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se pretendemos conferir seriedade nas questões e situações envolvendo o direito

ao trabalho às pessoas com deficiência.

Por sua vez, o parágrafo três do mesmo Artigo já supracitado, proíbe a

restrição ao trabalho e veda a discriminação e a exigência da aptidão plena.

"§ 3º É vedada restrição ao trabalho da pessoa com deficiência e qualquer discriminação em razão de sua condição, inclusive nas etapas de recrutamento, seleção, contratação, admissão, exames admissional e periódico, permanência no emprego, ascensão profissional e reabilitação profissional, bem como a exigência de aptidão plena".

Destaquei da redação legal a "permanência no emprego e a aptidão

plena", pois desejo aqui fazer alguns comentários com mais vagar.

Primeiramente, em relação à permanência no emprego, as condições são

precárias e difíceis, não apenas pela falta das condições materiais de

acessibilidades, mas principalmente pela falta de reconhecimento das

capacidades profissionais dos servidores com deficiência.

Constantemente desacreditados nas suas potencialidades e capacidades,

em regra, esses servidores ajeitam-se como podem dentro dos espaços

pedagógicos (escolas, centros, etc.) tentando mostrar aos seus colegas sem

deficiência a necessidade do trabalho colaborativo, como forma de garantir e

viabilizar que todos sejam aproveitados na realização das atividades pedagógicas.

De acordo com o princípio da divisão social do trabalho, no processo de

trabalho, nenhum trabalhador consegue realizar todas as tarefas necessárias

existentes no processo do trabalho pedagógico, sem contar com a cooperação de

outros trabalhadores. Na essência, a concretização do trabalho pedagógico só é

possível quando consideramos a soma da parcela de cada trabalhador no

processo. Neste processo, existem determinadas atividades que pessoas cegas

podem perfeitamente realizar, desde que haja mudanças no processo de trabalho

e espírito de solidariedade dos trabalhadores sem deficiência em relação a

compreensão sobre a importância e a necessidade do trabalho também para as

pessoas com deficiência.

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Além do mais, no que se constitui efetivamente a aptidão plena de um

trabalhador, com ou sem deficiência? Minha aptidão, não obstante a cegueira que

possuo, é plena na realização de algumas atividades e não é no exercício de

outras. Uma coisa sou eu não poder exercitar minha aptidão plena por aquilo que

a cegueira, enquanto u dado biológico realmente impede. Outra vem diferente é

eu não poder exercitar minha aptidão plena porque o empregador não me garante

os devidos e necessários instrumentos e ferramentas de trabalho, de acordo com

as minhas necessidades específicas. Mas, não basta garantir essas necessidades

se os empregadores e meus próprios colegas de trabalho também não acreditam

nas minhas capacidades de realização das atividades laborais.

Todos os trabalhadores sem deficiência desempenham suas respectivas

funções em processos de trabalho desenvolvidos de acordo com as suas

necessidades e recebendo os instrumentos e ferramentas de trabalho.

Ora, no caso dos trabalhadores com deficiência, a coisa é totalmente o

contrario e eles ainda precisam provar que são aptos? Coloque um ou mais

trabalhadores sem deficiência numa função para a qual ele nunca trabalhou e

ainda assim sem os instrumentos necessários e vamos verificar como eles vão se

sair? Então, a aptidão plena precisa ser relativizada, ainda mais se considerando a

divisão social do trabalho, com suas inúmeras funções e recursos instrumentais.

Como cego, por óbvio, eu não posso ser motorista. Por outro lado, eu não posso

realizar determinadas atividades pedagógicas dentro de uma escola não por

minha incapacidade, mas porque determinados processos de trabalhos e certas

atividades estão preparadas apenas para trabalhadores com visão.

Ora, se existe a reserva de vagas, é porque esses trabalhadores não

possuem aptidão plena, pelo menos não em todas as situações relacionadas com

os postos de trabalho. Logo, para que esses trabalhadores sejam tratados com a

mesma igualdade de oportunidades e sem discriminação, eles precisam de

abordagens, ferramentas e instrumentos de trabalho diferenciados (são as

tecnologias assistivas), bem como exigência de avaliação e produtividade

diferente do padrão exigido dos trabalhadores sem deficiência.

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Vamos conferir a redação dos parágrafos quatro e cinco do Artigo N. 34 da

Lei N. 13.146 de 2015:"§ 4º A pessoa com deficiência tem direito à participação e

ao acesso a cursos, treinamentos e educação continuada, planos de Carreiras, promoções, bonificações e incentivos profissionais oferecidos pelo empregador, em igualdade de oportunidades com os demais empregados.

§ “5º É garantida aos trabalhadores com deficiência a acessibilidade nos cursos de formação e capacitação”.

Para fechar a exposição sobre os dispositivos que garantem o trabalho às

pessoas com deficiência, previsto na LBI, resta observar o disposto no Artigo N.

35:

"Art. 35. É finalidade primordial das políticas públicas de trabalho e

emprego promoverem e garantir condições de acesso e permanência da pessoa

com deficiência no campo do trabalho".

Grifei a expressão "... as condições de acesso e permanência das pessoas

com deficiência...". Se fosse minha intenção, eu poderia aqui listar mais de uma

centena de exemplos, incluindo o setor público e privado, em que pessoas com

deficiência foram prejudicadas nas condições de acesso, mas, principalmente em

relação à permanência. Por isso, garantir as condições de permanência vai muito

além de garantir apenas a presença desses trabalhadores nos locais de trabalho.

Nos termos filosóficos que o paradigma da inclusão vem sendo discutido e

defendido, incluir não significa apenas trazer para dentro, para junto do mesmo

espaço físico aquelas pessoas que antes estavam impedidas de convivência com

os seus semelhantes.

Ora, se eu sou aceito num local de trabalho ou numa escola apenas por

uma exigência legal, mas não sou aceito afetivamente como trabalhador dotado

das mesmas propriedades e capacidades humanas dos meus colegas de trabalho,

logo, eu não estou ali sendo reconhecido como pertencente daquela comunidade,

porque aquela comunidade não me pertence e eu não faço parte dela. Portanto, a

permanência liga-se e tem implicações com um conjunto de fatores objetivos e

subjetivos, ou materiais e imateriais, que vão para muito além de simplesmente

dizer onde este ou aquele servidor deve cumprir sua jornada de trabalho, ainda

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mais quando não se conhece nem o servidor e muito menos ainda o local de

labor.

Muitos setores de Recursos Humanos, tanto do setor público como do

privado, nos dias de hoje, excluíram das suas atribuições as preocupações com a

vida real dos trabalhadores. Gerir uma efetiva, eficiente e eficaz política de

Recursos Humanos distante da vida real das escolas e dos trabalhadores com

deficiência, fixados apenas numa tela de computador vendo gráficos, tabelas e

mapas, efetivamente, não parece à postura mais apropriada dos técnicos desses

setores, se o objetivo realmente for o interesse público, no sentido verdadeiro da

coisa pública.

Além dos fatos que já descrevi, outros tantos que poderia relatar, para

ilustrar minha observação critica, destaco dois exemplos bem concretos que

atingiram diretamente duas colegas minhas ambas as professoras concursadas,

uma delas cega e a outra com baixa visão. Nos dois casos, uma afastou-se para o

mestrado e a outra para o PDE. Como se trata de estudo, ambas ficaram

licenciadas com os respectivos salários pagos pela SEED. Em outras palavras, o

Estado investiu na formação dessas professoras da rede com a perspectiva que

depois elas dessem retorno aos colegas demonstrando/aplicando os

conhecimentos que obtiveram nas respectivas formações.

Uma dessas professoras, antes de sair de licença, trabalhava num CAP, 40

horas, na formação de professores. Eu imagino que ela buscou ampliar sua

formação pensando em depois retornar para o mesmo local de trabalho e

continuar contribuindo na formação, agora, com muito mais conhecimento e

qualificação. Talvez, muitas pessoas assim como eu, tenham imaginado a mesma

coisa.

Todavia, o GRHS da SEED não pensou assim. Depois de concluir o

mestrado e buscando retornar, esta servidora pública perdeu o seu lugar onde

antes trabalhava e foi deslocada para outros espaços pedagógicos.

Resumindo, a professora foi simplesmente prejudicada porque buscou

ampliar sua qualificação. Como premio, simplesmente perdeu seu lugar de

trabalho.

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Page 29:  · Web viewDeste modo, os apontamentos aqui formulados fazem parte de práticas e atos recorrentes que atingem servidores com deficiência que clamam e lutam por "reconhecimento"

O mesmo sucedeu-se também com a outra professora que saiu para o

PDE. Ao tentar retornar para o CAP, também perdeu seu lugar onde antes atuava,

porque para os técnicos do GRHS, nada disso importou. Afinal, não envolve a vida

profissional deles e eles também não estão nem um pouco preocupados se os

estudantes com deficiência visual estão ou não recebendo os materiais

adaptados, muito menos ainda se os professores estão ou não preparados.

Resumindo, o Estado investe na formação de professores com deficiência e

depois mandam eles para qualquer lugar, sem nenhuma preocupação com o

aproveitamento dos seus respectivos conhecimentos específica, na realização de

atividades de formação dos professores da rede.

Para ilustrar, transcrevo na sequência, o desabafo de uma das

professoras, recebido por e-mail em um de nossos diálogos: "A notícia que me foi

repassada pelo NRE no dia de hoje me deixou desanimada... somente técnicos

administrativos nos CAPs e para trabalhar com formação é suficiente o número de

professores que já estão no CAP... e seguem com a violação dos nossos direitos

quanto a acessibilidade, não só isto, mas de nós contribuirmos efetivamente

enquanto trabalhadores da educação... Lembram que no ano de 2015 a APP

bancou a ida do pessoal de Cascavel para aquela reunião no DEE, a qual ainda

não resultou em encaminhamentos concretos? Poderíamos retomar aquela pauta.

Qual a possibilidade do envolvimento do COED nessa discussão? Aqui em

específico da postura do RH de Curitiba. É eles que estão indeferindo nossos

processos. No meu caso há o parecer favorável do DEE, do PDE, da

superintendência de educação, da chefia do NRE de Cascavel, uma justificativa

da coordenadora do CAP falando da necessidade do trabalho... muito frustrante. A

... falou que meu processo já foi e voltou 11 vezes, um absurdo".

Também em diálogo por e-mail, a outra professora escreveu:

"É angustiante ver essas situações em relação a um trabalho que acreditamos tanto. Por hora estou me achando na vida de um professor com sete alunos com deficiência visual e necessidades diferentes... E mais 18 com deficiência intelectual e dificuldades de aprendizagem com necessidades também diferentes... E não me aceitando como prof. haja visto estarem na 3 prof. este ano. Me tratam super bem pessoalmente mas um ou dois alunos já foram até outras instâncias se queixarem de mim.

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Page 30:  · Web viewDeste modo, os apontamentos aqui formulados fazem parte de práticas e atos recorrentes que atingem servidores com deficiência que clamam e lutam por "reconhecimento"

Paciência, porque outro sentimento para além da certeza de que poderia contribuir muito mais no CAP não só com alunos e professores mas com os colegas cegos. E tem os colegas, professores videntes, que com um jeitinho dizem que também não me querem: "prof. você com tanto conhecimento, mestre, poderia ter um cargo no NRE e contribuir muito mais" (grifos da professora).

De fato, angustiante é precisamente o sentimento quando observamos o

quão somos discriminados como servidores lutando pelo direito de sermos

explorados. Trata-se de uma discriminação que começa lá por cima e acaba lá

dentro das escolas públicas. Efetivamente, não são poucas as reclamações sobre

essas práticas esparramadas por todos os NRES das regiões do Estado.

Ainda hoje, um dos discursos mais recorrentes dentro das escolas públicas

estaduais, continua sustentando a falta de formação dos professores regentes,

dos professores (as) pedagogos (as), dos diretores (as) e funcionários (as),

quando envolve a relação com os estudantes com deficiência. De fato, trata-se,

efetivamente, de um problema muito sério que precisaria ser definitivamente

enfrentado pela SEED/DEE.

Uma política de formação continuada, estratégica e abrangente, deveria

considerar o efetivo aproveitamento das duas professoras antes mencionada,

assim como tantos outros servidores públicos com deficiência também

qualificados. São pessoas que hoje na condição de trabalhadores com deficiência,

além dos conhecimentos acadêmicos que já contam, possuem tantas outras

experiências de vida que poderão servir de exemplos, estímulos e encorajamento

nos cursos de formação.

Entretanto, há um discurso plantado e tende a ganhar força se não for

contido, ou pelo menos criticamente problematizado. Este discurso está ancorado

na ideia segundo a qual, se esses servidores com deficiência fizeram concurso

para trabalharem nas escolas comuns, é lá que eles devem atuar no exercício das

suas respectivas atividades profissionais.

Deixo claro que nem eu e nem meus colegas estamos questionando ou

pretendendo atuar apenas na Educação Especial, dentro dos espaços

pedagógicos como os Centros de Apoio Pedagógico às pessoas cegas ou com

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Page 31:  · Web viewDeste modo, os apontamentos aqui formulados fazem parte de práticas e atos recorrentes que atingem servidores com deficiência que clamam e lutam por "reconhecimento"

baixa Visão (CAPS), nas Salas de Recursos ou nos Centros de Atendimentos

Educacionais Especializados (CAEES).

Inicialmente, é necessário esclarecer que, a enorme maioria dos

professores (as) especializados (as) que atuam na Educação Especial, em todas

as áreas da deficiência, não possuem o concurso específico na Educação

Especial. Logo, são profissionais que além das suas respectivas formações,

contam com pós graduação em educação especial, mestrado e mesmo doutorado.

Deste modo, para esta discussão ser levada a sério, é necessário

considerar e incluir na mesma reflexão outros professores (as) que estão na

mesma situação minha e de alguns de meus colegas com deficiência visual,

formados também em pedagogia, em outras disciplinas específicas e estão

atuando nos CAPS.

Para ilustrar o que estou aqui problematizando e refletindo, trago a baila a

realidade dos cinco CAPS existentes no Estado. Nesses centros pedagógicos

especializados, trabalham servidores com e sem deficiência visual. A grande

maioria dessas pessoas são professores (as) e técnicos (as) sem deficiência.

Entre esses servidores públicos sem deficiência estão professores (as) das

disciplinas específicas (matemática, história, química, geografia, pedagogo, etc.).

Ora, se nós pedagogos e pedagogas com deficiência visual, em razão do

nosso concurso, deveram atuar nas escolas públicas, qual seria, então, a

justificativa para os professores (as) das respectivas disciplinas estarem atuando

nos CAPS? Se estiverem lá é porque são necessários, possuem especialização

em Educação Especial e a legislação permite. Nos últimos dois critérios, eu e

meus colegas nos enquadramos. Restaria a hipótese de que não somos

considerados necessários na realização daquelas atividades pedagógicas.

Os CAPS desenvolvem (ou deveriam desenvolver) basicamente duas

funções: a produção dos livros didáticos escolares em Braille e realiza cursos de

formação continuada aos professores (as) das escolas públicas, sobre o

Atendimento Educacional Especializado (AEE). O AEE consta no Artigo N. 208 da

CF de 1988, no inciso III, com a seguinte redação: "Atendimento Educacional

Especializado, preferencialmente na rede regular de ensino".

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Page 32:  · Web viewDeste modo, os apontamentos aqui formulados fazem parte de práticas e atos recorrentes que atingem servidores com deficiência que clamam e lutam por "reconhecimento"

Existem outros dois núcleos previstos como sendo de responsabilidade dos

CAPS, tecnologias e convivência, respectivamente, mas nenhum deles funciona.

A ideia dos quatro núcleos, pedagógico e de produção de material acessível, além

dos dois antes mencionados, fazia parte do projeto original desses centros,

quando foram concebidos pelo Ministério da Educação (MEC).

Deste modo, os CAPS realizam atividades pedagógicas essenciais que

demandam recursos materiais e recursos humanos especializados. Em todas

essas atividades a presença de servidores públicos com deficiência visual é

necessário, por vários motivos e razões pedagógicas que não pretendo aqui

detalhar porque escapa do meu foco principal. Apenas para ilustrar, parece

importante citar um motivo: são esses espaços os que estão mais preparados do

ponto de vista das condições de acessibilidade e são nesses espaços que os

servidores com deficiência visual, efetivamente, poderão dar maior contribuição,

inclusive com as suas próprias experiências de vida.

Diante desta realidade presente nos cincos CAPS, nas Salas de Recursos

e nos CAEES, criticar apenas os professores (as) com deficiência visual porque

eles (as) estão lutando pelo direito de atuarem em locais que ofereçam maiores e

melhores possibilidades no exercício das suas atividades profissionais, sem que a

mesma crítica seja também direcionada aos professores (as) sem deficiência, não

só parece uma tentativa de "queimar" os servidores com deficiência, como pode

configurar-se num verdadeiro ato de discriminação, como mostrarei linhas adiante.

Se for para utilizar argumentos rasteiros com a nítida intenção de

desqualificar os servidores com deficiência, então, o que dizer dos professores

que hoje estão atuando apenas na burocracia de toda a estrutura da educação?

Por óbvio, não pretendo aqui abrir conflito com os meus colegas servidores sem

deficiência, se não qualificar uma reflexão coletiva que precisa ser urgentemente

enfrentada no interior da Rede Estadual de Ensino.

Nesta perspectiva, eu compartilho integralmente com a tese vigotskiana,

segundo a qual a colaboração com pessoas videntes deve constituir a base da

educação laboral das pessoas com deficiência visual. "A colaboração com o vidente deve constituir a base da

educação laboral. Sobre esta base se cria uma relação verdadeira

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com os videntes e o trabalho resultará ser a porta estreita através da qual o cego entrará na vida" (VIGOTSKI, 1997, p. 64-65).

De fato, tanto quanto eu defendo a participação de estudantes com

deficiência junto com estudantes sem deficiência nas escolas comuns, defendo

também e luto exatamente pelo mesmo em relação aos trabalhadores com

deficiência: estar junto com seus colegas sem deficiência nos mesmos locais de

trabalho.

Mais uma vez, sustento esta tese com base em outro pressuposto

vigotskiano:

"Tão logo se incorpora ao processo tiflopedagógico um novo elemento, isto é, a experiência de outra pessoa, a utilização do olho alheio, a colaboração com o vidente, nesse mesmo momento nos encontramos em um terreno novo, em princípio, e o cego adquire seu microscópio e o seu telescópio que ampliam imensamente sua experiência e o inserem estreitamente no tecido geral do mundo" (VIGOTSKI, 1997).

Portanto, a diferença entre estar juntos nas escolas ou nos espaços

pedagógicos especializados que prestam o Atendimento Educacional

Especializado (AEE) aos estudantes com deficiência visual, consiste

simplesmente em, por mais paradoxo que tal afirmativa pareça poder extrair da

força de trabalho dos servidores com deficiência maior e melhor produtividade.

Nisso deveria estar à preocupação principal do GRHS, se a questão era

efetivamente o interesse público quando me tirou da escola do IPC e mandou para

outra escola, sem pensar se lá eu poderia ser mais produtivo.

Muito provavelmente não viverei até ver chegar o dia em que o trabalho

colaborativo realmente seja, compreendido e colocado em prática entre os

servidores com e sem deficiência. As pessoas que falam e defendem o verdadeiro

trabalho colaborativo, precisam compreender que ele só se realiza, não pela

competição, divisão e individualismo nos locais e trabalho, se não pela soma do

esforço coletivo onde cada trabalhador deixa registrado nos produtos materiais ou

imateriais um pouco da sua humanidade objetivada. O que menos deveria

importar aqui é qual o tamanho da porção de humanidade, quer dizer, de trabalho

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Page 34:  · Web viewDeste modo, os apontamentos aqui formulados fazem parte de práticas e atos recorrentes que atingem servidores com deficiência que clamam e lutam por "reconhecimento"

cada trabalhador com ou sem deficiência está colocando na realização do trabalho

colaborativo.

Porém, para que de fato isso realmente pudesse acontecer, ou fluir, uma

série de barreiras, ou bloqueios objetivos e subjetivos precisaria ser efetivamente

superado. Partes desses bloqueios estão nas mentes das pessoas e estão

relacionados com os nossos preconceitos. A outra parte está precisamente nesta

forma capitalista de organização do trabalho, onde o que de fato importa não é o

interesse público, se não a reprodução da competição e do individualismo nos

espaços pedagógicos.

Nesta forma de organização do trabalho, presente na própria estrutura

estatal, os trabalhadores com deficiência, se não são de tudo impedidos,

encontram muitas dificuldades e bloqueios para colocarem em movimento as suas

propriedades humanas e demonstrarem as suas capacidades laborais. Por certo,

alguns mais afoitos poderão dizer que sustento esta tese em minha própria

defesa. Trata-se de um ponto de vista particular e eu com certeza respeito muito.

Evidentemente que ao escrever manifestas concepções, pensamentos e ideias e,

por conseguinte, também acabo agindo na minha defesa. Por óbvio, essas idéias

não são neutras e além do mais estão carregadas de afetividades e emoções. Isso

é próprio do humano que age e ao agir assume posicionamentos que nem sempre

agradam todos.

Particularmente, penso que eu atenderia muito mais o interesse público se

fosse mantido onde eu estava antes de ser desenraizado pela decisão do GRHS.

Como segunda alternativa, também atenderia mais o interesse público se o meu

pedido de transferência para o CAP, feito inclusive com o aval da chefia do DEE,

tivesse sido atendido.

Para o Estado, para as escolas públicas, para os estudantes com

deficiência visual e também para os seus familiares, minhas experiências de vida,

meus conhecimentos acadêmicos e minhas pesquisas/estudos

científicos/pedagógicos, sem nenhuma dúvida, seriam muito mais úteis atuando

no CAP. Certamente eu seria muito mais produtivo, criativo e feliz com o trabalho

coletivo realizado.

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Page 35:  · Web viewDeste modo, os apontamentos aqui formulados fazem parte de práticas e atos recorrentes que atingem servidores com deficiência que clamam e lutam por "reconhecimento"

Aparentemente, como nada disso importa ao GRHS da SEED e como eu

sou um simples "barnabé" do serviço público, por enquanto, ainda me resta a

liberdade de poder manifestar meus pensamentos em escritos como este e tantos

outros que já tornei público. Se objetivamente eu não tenho como controlar o

tempo de minha vida que vendo ao Estado em troca de um parco salário que

recebo ao final de cada mês, porque ele determina onde eu devo cumprir minha

carga horária de trabalho, ao menos me resta a liberdade de dar asas a minha

imaginação e deixar parte de minha humanidade degradada objetivada nessas

poucas linhas que deixo aqui registradas como contribuição, para quem desejar

fazer uma reflexão critica sobre as ideias que sustento neste ensaio.

Por ora, deixo de lado o mérito das decisões do GRHS, para retomar o fio

da meada e retornar na escolha da outra escola onde eu fui mandado a fim de

cumprir a minha carga horária no período da manha.

Desta vez, aconteceu o mesmo que eu já havia enfrentado em Cascavel

quando entrei no serviço público pela primeira vez. Tanto lá como agora, não

houve nem do GRHS e nem mesmo do NRE, nenhuma preocupação preliminar

sobre as questões legais prevendo as devidas e necessárias condições de

acessibilidades.

Nesta situação, independentemente de quem quer que seja o servidor com

deficiência, parece que o mais apropriado seria mesmo considerar as condições e

as necessidades específicas do caso. Como já demonstrei antes, não apenas a

LBI assegura este direito, mas também outras leis sobre o trabalho das pessoas

com deficiência também contemplam as mesmas preocupações.

No entanto, como nada disso aconteceu, o fato é que tive de escolher outra

escola sem nenhuma segurança sobre as condições de acessibilidades. Por sorte,

acabei sendo indicado para uma escola na região central da cidade de Curitiba.

Do ponto de vista da segurança, o local não é lá tão animador devido o fato de ser

considerada barra pesada.

Na nova escola, fui muito bem recebido pela direção, não posso negar.

Acontece que entre uma recepção formal, marcada pela troca de poucas palavras

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e as reais e verdadeiras condições de trabalho, existe uma distância muito grande

que precisa ser considerada numa situação como esta.

No meu primeiro contato com as colegas pedagogas, foi visível certo

desconforto de ambos os lados, tanto minha que estava chegando como delas

que estavam surpresas com a presença de um pedagogo cego.

De acordo com minhas experiências, já vivenciadas em outras situações

parecidas, elas ficaram meio atordoadas imaginando coisas que aqui não é o lugar

e o momento de colocar.

Quando entraram na pauta as atividades dos profissionais da pedagogia

naquela escola, eu concluo que na última década nossas escolas não mudaram

nada em relação ao processo de trabalho dos pedagogos (as).

Muitas tarefas eram manuais, envolviam a manipulação de cadernos,

fichas, documentos e outros papeis que exigiam a visão. Existiam tarefas

realizadas pelo sistema informatizado, mas com acesso possível somente para as

pessoas com visão.

Se eu busco no Regimento Escolar das escolas públicas do Estado, são

mais de 30 as atribuições dos pedagogos (as). No entanto, três ou quatro dessas

atribuições são as mais recorrentes. E, essas, são normalmente aquelas que

exigem a visão.

De toda sorte, lá estava eu precisando mostrar serviço. Então, acertamos

que eu ficaria responsável por fazer as palestras que eram realizadas para

aquelas pessoas que estavam buscando o estabelecimento pela primeira vez.

Num primeiro momento, as palestras eram feitas todos os dias. Deste modo, eu

chegava à escola, arrumava a sala, aguardava as pessoas, fazia a palestra e lá

por volta dás dez horas eu já estava liberado.

Depois, as palestras passaram a ser apenas nas terças e quintas-feiras.

Significa dizer que nos outros dias da semana eu ficava praticamente sem fazer

nada de mais importante.

Após certo tempo, mentalmente, eu já estava me vendo como um

verdadeiro invalido, e meus colegas acreditando nesta ideia ainda muito presente

nas escolas, no Estado e na sociedade em geral. Diante daquela situação

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constrangedora, por duas vezes procurei a direção e manifestei minha

preocupação com aquela situação.

Dentro do seu campo conceitual e da sua compreensão sobre o assunto,

creio eu de boa fé, ela simplesmente me disse que eu deveria ficar lá no setor

pedagógico fazendo o que fosse possível, contribuindo com o que estava ao meu

alcance.

Pela primeira vez, compreendi com mais profundidade as várias

reclamações trazidas por trabalhadores com deficiência empregados nas

empresas privadas. Seus relatos demonstram o quão eles se sentem

inferiorizados e sua estima profundamente abalada, quando as empresas

contratam e simplesmente deixam lá num lugar qualquer no mais puro ostracismo.

Por isso, se tem uma coisa que joga a estima de uma pessoa para bem

abaixo da sola do sapato, é a percepção critica de que você poderia dar mais do

que está dando e que as pessoas de sua volta não acreditam ou duvidam de sua

capacidade de realização. Trata-se de um tipo de sentimento que só reforça na

pessoa com deficiência a sua percepção de invalidez. É uma espécie de produção

social das incapacidades humanas.

Na realidade, como já indiquei, buscando em Honneth os fundamentos, se

eu não reconheço no meu semelhante às mesmas propriedades e capacidades

que também são minhas, eu não posso esperar deles, na interação, pela

reciprocidade, o reconhecimento das minhas propriedades e capacidades

humanas reconhecida por eles.

Eu poderia relatar aqui as várias vezes que fui e me vi sendo constrangido

em razão da deficiência, em vários momentos e nas diversas situações da vida

social. Falo em razão da deficiência, porque pessoas sem deficiência não

precisam passar por determinadas situações constrangedoras que somente

pessoas com deficiência enfrentam. Nada disso importa, para aqueles que não

sofrem na carne práticas e atos de preconceito em razão de uma deficiência, da

cor da pele ou por opção sexual, por exemplo. Nada disso interessa para essas

pessoas, enquanto não acontecer com elas próprias e elas não precisar sentir na

própria carne os danos psicológicos e emocionais das práticas e atos de

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discriminação. Certas pessoas julgam-se imunes de tudo isso pela posição que

ocupam nas estruturas de mando e de poder.

Deixo claro que não culpo diretamente a escola e meus colegas de

profissão pelos atos ou práticas conscientes ou inconscientes que, sem nenhuma

dúvida, configuram-se atitudes discriminatórias. Quando um ato ou prática

configura-se discriminação em razão da deficiência? Na busca desta resposta,

recorro a Lei Brasileira da Inclusão -- Lei N. 13.146 de 2015. Em resumo, qualquer

ato ou prática baseada na deficiência, configura-se crime de discriminação.

Todos os atos ou práticas até o momento narrados nesta exposição

envolvendo minha pessoa na relação de trabalho, ou outras situações

semelhantes também envolvendo servidores com deficiência, a bem da verdade,

mereceriam uma reflexão mais aprofundada e quem sabe poderiam muito bem ser

enquadrados na tipificação de crime de discriminação. Pelo menos é isso que eu

posso extrair da interpretação da redação do parágrafo primeiro do Artigo N. 4 da

Lei Brasileira da Inclusão, 13.146 de 2015.

"Art. 4º Toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação. § 1° Considera-se discriminação em razão da deficiência toda forma de distinção, restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha o propósito ou o efeito de prejudicar, impedir ou anular o reconhecimento ou exercício dos direitos e liberdades fundamentais de pessoa com deficiência, incluindo a recusa de adaptações razoáveis e do fornecimento de tecnologias assistivas".

Parece que a redação não deixa nenhuma dúvida sobre em que situações e

circunstâncias, práticas ou atos configuram-se crime de discriminação. Não basta

mais dizer eu não tinha a intenção ou não sabia, já que o suposto

desconhecimento da Lei não pode ser alegado como defesa ou justificativa para

continuar cometendo práticas discriminatórias.

Depois, Grifei a expressão "reconhecimento", constante na redação do

referido parágrafo. Independentemente do caso em tela, é importante deixar claro

que as pessoas com deficiência travam todos os dias uma verdadeira luta

"sangrenta" por reconhecimento social. Esta luta por reconhecimento começa

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dentro da própria casa, esparrama-se pelo conjunto da sociedade, passa pelas

escolas e universidades e chega aos locais de trabalho, quando elas conseguem

um emprego.

Também grifei a expressão "... incluindo a recusa de adaptações razoáveis

e o fornecimento de tecnologias assistivas". Ressalto que este é um direito que

vem sendo constante e sistematicamente negado, não apenas aos servidores com

deficiência que necessitam desses recursos, mas também aos estudantes com

deficiência matriculados nas escolas públicas estaduais.

Conheço professora cega que, para poder trabalhar numa determinada

escola, precisam levar de casa seus equipamentos pessoais de tecnologias

assistivas. Isso, depois de ter chegado à escola e ser recebida com profunda

indiferença pelos seus próprios colegas de trabalho. Tanto no caso dela, como de

resto em outras situações, isso acontece porque os RHS do NRES apenas

indicam qual escola o trabalhador com deficiência deve se apresentar. Nenhuma

outra preocupação existe no sentido de verificar se lá estão presentes as

condições materiais (ferramenta, instrumento, etc.) de trabalho.

Esta mesma realidade, com algumas ressalvas, atinge também os estudantes

cegos ou com baixa visão matriculada nas escolas públicas estaduais. Faltam os

livros didáticos em Braille, com caracteres ampliados, máquinas Braille, refletem

materiais adaptados e principalmente aqueles equipamentos mais sofisticados de

tecnologias assistivas. Além disso, esses estudantes também são recebidos e

tratados nas escolas com tamanha indiferença, distinção e restrição que, a luz da

redação do parágrafo primeiro da LBI, já exposto linhas antes, grande parte deles

sofrem crime de discriminação em razão da deficiência.

Se eu fosse relatar aqui com detalhes tudo o que já presenciei nas escolas

públicas estaduais, seja envolvendo diretamente a minha pessoa em

determinadas situações, envolvendo outros servidores com deficiência ou

estudantes com deficiência, a triste conclusão que eu poderia chegar é que os

agentes públicos são os principais e maiores violadores dos direitos humanos das

pessoas com deficiência. Digo maiores, porque a eles cabe o dever constitucional

de cumprir e fazer cumprir a Lei.

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Algumas das práticas e atos já presenciados ou sofridos por mim mesmo, ferem

também o princípio da dignidade humana, de acordo com o que verte o inciso III

do Artigo N. 1 da CF de 1988.

"Art. 1.º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos: ... III - a dignidade da pessoa humana;...".

Na mesma perspectiva, lanço luzes no inciso IV do Artigo N. 3 da CF de

1988, cuja redação coloca entre os objetivos do Estado Democrático de Direito, a

promoção do bem de todos, sem preconceito e discriminação.

"Art. 3.º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: ... IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação".

Diante do exposto, penso que do ponto de vista dos fundamentos legais,

estão demonstrados os requisitos necessários que poderiam justificar o

enquadramento de alguns dos atos e práticas aqui descritos, como crime por

discriminação em razão da deficiência. Da mesma forma, tais atos e práticas

recorrentes também ferem o princípio da dignidade humana, valor inalienável e

inquestionável do Estado Democrático de Direito brasileiro.

Entretanto, como deixei claro desde o início desta exposição, meu objetivo

aqui não é formular uma peça de teor jurídico com fim de buscar reparação pelos

danos sofridos. Meu objetivo principal foi suscitar uma reflexão critica sobre o atual

"estado da arte" e fornecer alguns elementos preliminares que possam subsidiar

uma discussão coletiva sobre os apontamentos presentes neste ensaio.

Marcos Nobre, na apresentação da obra de Honneth, destaca:

"A reconstrução da lógica dessas experiências do desrespeito e do desencadeamento da luta em sua diversidade se articula por meio da análise da formação da identidade prática do indivíduo num contexto prévio de relações de reconhecimento. E isto em três dimensões distintas mas interligadas: desde a esfera emotiva que permite ao indivíduo uma confiança em si mesmo, indispensável para os seus projetos de autorrealização pessoal, até a esfera da estima social em que

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esses projetos podem ser objeto de um respeito solidário, passando pela esfera jurídico-moral em que a pessoa individual é reconhecida como autônoma e moralmente imputável, desenvolvendo assim uma relação de autorrespeito. No entanto, é somente nas duas últimas dimensões que Honneth vê a possibilidade de a luta ganhar contornos de um conflito social, pois na dimensão emotiva não se encontra estruturalmente, segundo ele, uma tensão moral que possa suscitar movimentos sociais, o que não faltaria às formas de desrespeito como a privação de direitos e a degradação de formas de vida, ligadas respectivamente às esferas do direito e da estima social" (NOBRE, 2003. p. 18).

De fato, essas três dimensões, respectivamente, o amor, o direito e a

estima, guardam relações entre si, mas as duas com maior força potencial de

despertar conflitos sociais e com isso pressões políticas de movimentos

organizados travando lutas por reconhecimento parecem ser efetivamente a

privação de direitos e uma vida social marcada por processos degradantes que

atingem aspectos relacionados com a formação das individualidades humanas.

Efetivamente, são as constantes e sistemáticas violações dos direitos das

pessoas com deficiência que produzem efeitos e reflexos materiais, psicológicos,

emocionais e afetivos extremamente negativos, porque essas pessoas não se

sentem estimadas por seus pais/mães e a sociedade em geral.

Estudo mais completo e consistente, porém, mereceria a dimensão do

amor, por tudo o que ele abarca do ponto de vista da formação dos sentimentos,

emoções, afetividades, enfim, da formação da subjetividade humana.

Ainda não conheci casais que afirmaram não amar seus filhos com

deficiência. Da mesma forma, também ainda não conheci casais que tenham

sustentado que planejaram e desejaram ter filhos com deficiência, tanto como

também não conheço ninguém que tenha dito que gostaria de ficar com alguma

deficiência, porque isso lhe traria benefícios pessoais e sociais nas relações com

outras pessoas.

Pelo que já vivi enquanto experiências próprias, pelo que já presenciei de

outras experiências e pelo que já estudei, penso que tenho alguns elementos para

suspeitar que não se trata do mesmo tipo de amor dedicado aos filhos sem

deficiência. Não deixa de ser amor, mas é um amor diferente, tanto quanto

também são diferentes os filhos com e sem deficiência. Por mais que se negue no

plano da linguagem, lá no intimo, no plano da consciência, o fato é que os filhos

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com deficiência são vistos, compreendidos, tratados, cuidados e encaminhados na

vida com perspectivas diferentes.

Por isso, no caso da formação e desenvolvimento da personalidade integral

das pessoas com deficiência, o amor contêm dimensões e complexidades

objetivas e subjetivas que podem ser a resposta para muitos fatos ainda pouco

investigados e compreendidos sobre aspectos psicológicos envolvendo o

reconhecimento, pertencimento, aceitação e valorização social dessas pessoas.

Tudo isso e muito mais envolve um conjunto de relações sociais que vão

moldando (plasmando) a formação de uma subjetividade com propriedades e

capacidades marcadas por sentimentos de inferioridade.

Deste modo, os filhos com deficiência, assim como as pessoas com

deficiência em geral, independentemente da idade, sempre são vistos com

olhares, expectativa, perspectivas, entendimentos e compreensões diferentes

daquelas sem deficiência. O que ainda predomina nas relações entre pessoas

com e sem deficiência, infelizmente, são as marcas da indiferença, do

estranhamento e do distanciamento.

O sentimento de rejeição, de não sentir-se amado, desejado e estimado, é

o pior dos sentimentos humanos. Pessoas com deficiência precisam conviver com

esses sentimentos todos os dias, como fantasmas rondando suas confusas

mentes. Mesmo no meu caso, depois de já ter passado por todas as experiências

que já fui submetido; ter enxergado enfrentada a baixa visão e hoje cego; ser por

mais de vinte anos militante dos movimentos sociais de defesa dos direitos das

pessoas com deficiência; ser formado em pedagogia, concluído duas

especializações e mestrado em educação; enfrentado e aprovado em dois

concursos públicos para o magistério estadual, honestamente, tem momentos que

fraquejo e me bate uma forte vontade de desistir de lutar pelo meu próprio

reconhecimento social, pelo reconhecimento dos meus colegas e por um novo

modelo societário, mais justo e verdadeiramente igualitário, onde o preconceito, a

discriminação e esta cultura histórica que considera pessoas com deficiência

seres inferiores e incapazes, sejam definitivamente e verdadeiramente abolidos

das relações humanas.

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Page 43:  · Web viewDeste modo, os apontamentos aqui formulados fazem parte de práticas e atos recorrentes que atingem servidores com deficiência que clamam e lutam por "reconhecimento"

Se eu, depois de 57 anos já vivido e com o coro já sovado de tanto levar

pancada da vida, fraquejo em certos momentos, imagine então aquelas pessoas

com menos resistências que ainda estão buscando compreender os "conflitos

sociais", marca característica de uma sociedade capitalista onde impera o

egoísmo, o individualismo e outras formas de manifestações que só reforçam a

ideia que nesta sociedade só tem lugar para os mais fortes, inteligentes e

competitivos.

Na mesma perspectiva da conclusão da obra de Honneth, só que desta vez

focado nas condições históricas e nas especificidades das pessoas com

deficiência, com pesar, também concluo que o projeto social baseado apenas nos

direitos legais da igualdade de oportunidades, também fracassou no intento de

garantir o reconhecimento individual e uma verdadeira e irrestrita inclusão social

das pessoas com deficiência.

Antes de encaminhar a finalização deste ensaio, retorno no início e uma

vez mais destaco o teor de uma das epigrafes lá registrada.

"Ora, concluem Diderot e seus adeptos: "Sendo a vista o mais precioso, o mais aplicado dos sentidos, o indivíduo que não vê será completamente diverso dos outros." Que concepção acanhada da vida humana!"

De fato, ainda hoje, predomina na nossa cultura esta concepção acanhada

e tacanha da vida humana e da humanidade dos trabalhadores com deficiência.

Trata-se de uma espécie de cegueira coletiva que reforça a falsa e recorrente

ideia segundo a qual pessoas com deficiência são tão diversas das outras,

infelizmente, ainda impera na cabeça das pessoas e nos diversos espaços da vida

social.

O que era para ser direito das pessoas com deficiência, como forma de

reconhecimento legal, social e afetivo em face das suas dificuldades e limitações

impostas por um modelo societário que oprime e não garante as condições de

acessibilidades, por meio de discursos eivados de preconceitos, vem sendo

desconstruído e transformado em privilégios. Se já não bastasse a falta do

reconhecimento social e histórico da nossa condição de humanidade, os poucos

avanços legais que tivemos nas últimas três décadas no Brasil, estão sofrendo

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Page 44:  · Web viewDeste modo, os apontamentos aqui formulados fazem parte de práticas e atos recorrentes que atingem servidores com deficiência que clamam e lutam por "reconhecimento"

ataques e sendo desconstruídos por práticas e discursos de organizações e

pessoas que se consideram dotadas de propriedades e capacidades humanas

verdadeiramente diferentes daquelas que também estão presentes na

personalidade integral das pessoas com deficiência.

Na interpretação dessas organizações, pessoas e agentes públicos e

privados, eu não luto ou reclamo por meus direitos, mas desejo apenas privilégios

que outras pessoas sem deficiência não possuem. Se eu luto pelos mesmos

direitos das outras pessoas, logo, eu deveria ser igual elas, fazer o mesmo que

elas fazem com os mesmos recursos e do mesmo jeito que elas fazem, aliás, sem

reclamações, de preferência.

Efetivamente, eu preciso ser padronizado dentro do mesmo padrão das

pessoas sem deficiência para ser aceito como trabalhador dotado de capacidades

produtivas.

Na realidade, estamos diante do chamado modelo social e modelo

individual da deficiência. No modelo individual, enfatiza nas pessoas os aspectos

médicos, biológicos, clínicos, psicológicos e individuais.

Para ilustrar, destaco: viu as árvores, não viu a floresta; viu a cegueira, não

viu a pessoa; viu o rabo, não viu o cachorro.

Ora, nos três exemplos, existe um ponto em comum: fala-se de uma

particularidade e esquece-se que esta parte só existe dentro da totalidade de um

sistema de conjunto integrado. Portanto, quando eu enfatizo a deficiência e

esqueço a pessoa de "carne e osso", com todas suas complexidades (aspectos

biológicos, psicológicos, emocionais, afetivos, objetivos e subjetivos, etc.), eu tomo

o rabo pelo cachorro e não levo em conta que é do mais complexo que se explica

o menos complexo. Por isso, na análise dos aspectos, características e

subjetividade...

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Page 45:  · Web viewDeste modo, os apontamentos aqui formulados fazem parte de práticas e atos recorrentes que atingem servidores com deficiência que clamam e lutam por "reconhecimento"

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