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Verinotio - Revista On-line de Educaccedilatildeo e Ciecircncias Humanas Nordm 5 Ano III Outubro de 2006 periodicidade semestral ndash ISSN 1981-061X
ANTINOMIAS DO PENSAMENTO DE HANNAH ARENDT
ACERCA DAS SUAS CRIacuteTICAS A KARL MARX
Ronaldo Gaspar
Resumo
As anaacutelises de Hannah Arendt sobre o pensamento de Karl Marx destacam-
se por sua complexidade e num certo aspecto pioneirismo intelectual Este artigo
analisa sua criacutetica agrave conceituaccedilatildeo marxiana de trabalho e as repercussotildees desta
mesma criacutetica sobre questotildees decisivas como a poliacutetica e o papel da violecircncia no
processo revolucionaacuterio
Palavras-chave Hannah Aredt Karl Marx trabalho poliacutetica violecircncia
Antinomies of Hannah Arendts thought concerning its criticism to Karl Marxs thought
Abstract
The analysys of Hannah Arendt about Karl Marxs thought outstands for its
complexity and in a certain way for its intellectual pioneeirism This article
analyzes her criticism of the marxian conceptualization of work as weel as the
repercussions of this criticism on decisive issues as politics and the role of violence
in the revolutionary process
Keywords Hannah Aredt Karl Marx work politics violence
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Ao longo de sua desconcertante obra primordialmente centrada na
tentativa de iluminar as caracteriacutesticas e os fundamentos da poliacutetica no mundo
contemporacircneo Hannah Arendt (1906-75) dedicou algumas significativas e
influentes passagens agrave criacutetica do marxismo especialmente do pensamento
marxiano Num dos temas analisados nessas passagens ela criticou duramente a
abordagem marxiana acerca do papel da violecircncia nos momentos de transiccedilatildeo de
uma sociedade a outra isto eacute nos momentos revolucionaacuterios Nessas criacuteticas
enfocou prioritariamente aqueles aspectos que segundo pensa demonstram que
em Marx haacute uma glorificaccedilatildeo da violecircncia na poliacutetica Esta glorificaccedilatildeo presente
em toda a obra de Marx estaria manifesta com toda sua forccedila numa frase contida
em O capital na qual ele afirma que ldquoA violecircncia eacute a parteira de toda velha
sociedade que estaacute prenhe de uma novardquo (Marx 1985[II] p 286) Considerada
sintomaacutetica do pensamento poliacutetico marxiano Arendt afirma que nesta frase estaacute a
ldquonegaccedilatildeo do logos do discurso a forma de relacionamento que lhe eacute [agrave violecircncia]
diametralmente oposta e tradicionalmente a mais humanardquo (1972 p 50) Ambas
glorificaccedilatildeo da violecircncia e negaccedilatildeo do discurso (portanto da democracia)
resultariam da identificaccedilatildeo que Marx teria efetuado entre accedilatildeo e violecircncia Para
que pudesse chegar a tais resultados em suas anaacutelises Marx teria infundido na
accedilatildeo os procedimentos tiacutepicos da esfera produtiva ndash especialmente da atividade
produtiva de bens duraacuteveis Eacute a esta relaccedilatildeo entre trabalho poliacutetica e violecircncia
nos pensamentos de Hannah Arendt e Karl Marx que vamos dedicar nossa anaacutelise
Antes poreacutem de analisarmos melhor o conteuacutedo das afirmaccedilotildees e das
criacuteticas de Hannah Arendt eacute necessaacuterio enfatizarmos que natildeo se leva adiante
uma anaacutelise profunda sobre a poliacutetica agrave revelia ou melhor sem o sustentaacuteculo de
uma teoria mais ou menos consistente acerca dos fundamentos do ser social (em
seus proacuteprios termos da condiccedilatildeo humana) Nesse sentido deve-se recordar que
para Arendt dentre os aspectos importantes que as atividades constitutivas da vita
activa ndash as quais estaacute a accedilatildeo a atividade proacutepria da esfera poliacutetica ndash
desempenham na conformaccedilatildeo do ser social encontra-se na distinccedilatildeo entre
aquelas que reproduzem o homem como ser vivo e portanto dotado de
necessidades bioloacutegicas e materiais em relaccedilatildeo agravequelas que o reproduzem como
membro do gecircnero humano ou seja as que atendem suas demandas de
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indiviacuteduo-social E de acordo com o corpus de sua reflexatildeo pode-se presumir que
eacute nas diferenccedilas existentes na natureza dessas atividades e nas influecircncias de
umas sobre outras que respectivamente erguem-se a grandeza antiga e a
miseacuteria moderna da vida poliacutetica Por isso neste momento inicial eacute necessaacuterio
nos dirigirmos ao edifiacutecio principal de seu complexo teoacuterico para dele extrairmos
aqueles elementos que nos permitam analisar e entender adequadamente sua
singular visatildeo acerca do trabalho (e da fabricaccedilatildeo) e das caracteriacutesticas
potencialidades e limites da accedilatildeo poliacutetica em geral ndashespecialmente no mundo
contemporacircneo Somente partindo deste edifiacutecio de seus fundamentos e
peculiaridades eacute que poderemos entender o exato sentido de sua concepccedilatildeo
acerca da violecircncia na poliacutetica e por meio dela da criacutetica que desfia ao
pensamento de Marx
I Vita activa
Em inuacutemeras obras Hannah Arendt debruccedilou-se no desvendamento das
bases da poliacutetica contemporacircnea No entanto foi em A condiccedilatildeo humana que ela
desenvolveu aquilo que em seu pensamento mais se aproxima em termos
lukacsianos de uma anaacutelise ontoloacutegica do ser social portanto nesta obra ela
analisou mais profundamente as bases da poliacutetica e as inter-relaccedilotildees desta com
as outras atividades humanas Foi nela tambeacutem que explicitou a importacircncia
decisiva da distinccedilatildeo entre as trecircs atividades constitutivas da vita activa[1] (trabalho
fabricaccedilatildeo e accedilatildeo) para a explicitaccedilatildeo dos fundamentos da praacutetica poliacutetica E se eacute
faacutecil entender porque em seu edifiacutecio conceitual o trabalho (labor) e a fabricaccedilatildeo
(work) possuem um papel prioritaacuterio na produccedilatildeo dos fundamentos materiais da
vida social a mesma facilidade natildeo se repete quando analisamos como na
atualidade estas atividades interferem negativamente na forma e no conteuacutedo da
atividade proacutepria da esfera poliacutetica ndash isto eacute na accedilatildeo Em razatildeo disso uma anaacutelise
seacuteria da poliacutetica contemporacircnea deve contemplar as muacuteltiplas relaccedilotildees entre
essas atividades e as determinaccedilotildees delas decorrentes
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Naquilo que diz respeito ao trabalho e agrave fabricaccedilatildeo Arendt acredita que
ambas as atividades apesar de serem constitutivas da esfera das necessidades
possuem diferenccedilas significativas entre si E analisando estas categorias em sua
pureza praacutetica observa que enquanto o trabalho satisfaz demandas bioloacutegicas da
vida humana produz bens de consumo natildeo-duraacuteveis ndash e que por isso estaacute
envolvido num processo ciacuteclico e interminaacutevel da produccedilatildeo material ndash a
fabricaccedilatildeo consiste naquela atividade responsaacutevel pela produccedilatildeo das demandas
materiais da vida humana que escapam agrave dimensatildeo meramente bioloacutegica em
seus termos os bens de consumo duraacuteveis Por conseguinte ao contraacuterio do
trabalho atividade ciacuteclica interminaacutevel repetitiva e cujo resultado satildeo produtos
desprovidos de durabilidade e da identidade do produtor a fabricaccedilatildeo constitui-se
originalmente de atividades cujo iniacutecio meio e fim satildeo perfeitamente delineados e
cujos resultados aleacutem de duraacuteveis expressam a individualidade de quem os
produziu Entre outras coisas isto significa que comparada ao trabalho a
fabricaccedilatildeo constitui uma atividade mais humana (porque se encontra mais distante
da mera reproduccedilatildeo bioloacutegica) Eacute evidente que pelas caracteriacutesticas
discriminadas e antes do advento da induacutestria a fabricaccedilatildeo identificava-se agrave
atividade artesanal
Ademais na condiccedilatildeo de atividade produtora do mundo humano objetivo
duradouro e ldquocomum a todosrdquo a fabricaccedilatildeo tambeacutem eacute fundamental para a vida
puacuteblica para a liberdade pois se ldquoo termo puacuteblico significa o proacuteprio mundo na
medida em que eacute comum a todos noacutes e diferente do lugar que nos cabe dentro
delerdquo (Arendt 1998 p 52) a fabricaccedilatildeo ndash e seu produto a obra ndash eacute fundamental
para sua existecircncia E isto porque aquilo que eacute puacuteblico
tem a ver com o artefato humano com a fabricaccedilatildeo das matildeos humanas com os
negoacutecios realizados entre os que juntos habitam o mundo feito pelo homem
Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto
entre os que nele habitam em comum como uma mesa se interpotildee entre os que
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se assentam ao seu redor o mundo como todo intermediaacuterio ao mesmo tempo
separa e estabelece uma relaccedilatildeo entre os homens (Arendt 1998 p 52)
Num primeiro momento eacute fundamental entender que nem mesmo a
percepccedilatildeo do importante papel da fabricaccedilatildeo e evidentemente da obra em razatildeo
do caraacuteter humano (e natildeo meramente fisioloacutegico) daquela e da durabilidade desta
para a sustentaccedilatildeo material dos assuntos humanos concede ao Homo faber as
qualificaccedilotildees necessaacuterias para participar da vida puacuteblica da vida poliacutetica Na
verdade esta percepccedilatildeo da importacircncia da fabricaccedilatildeo para a vida puacuteblica serve
como um contraponto ainda mais niacutetido agrave condiccedilatildeo inferior do trabalho e agrave sua
problemaacutetica valorizaccedilatildeo no mundo moderno E isto porque sendo os produtos do
trabalho objetos de consumo raacutepido ligados agraves necessidades vitais (bioloacutegicas) e
sustentados por uma atividade incessante ela vecirc na atual valorizaccedilatildeo desta
atividade (trabalho) os fundamentos do produtivismo contemporacircneo cuja
caracteriacutestica central eacute a de submeter cada vez mais aspectos da produccedilatildeo ndash
inclusive a proacutepria fabricaccedilatildeo[2] ndash e da accedilatildeo agrave sua loacutegica agrave sua racionalidade
Assim em relaccedilatildeo ao mundo moderno
O ponto [central] natildeo eacute que pela primeira vez na histoacuteria os trabalhadores tenham
sido admitidos com direitos iguais na esfera puacuteblica mas sim que noacutes quase
obtivemos sucesso em nivelar todas as atividades humanas ao denominador
comum de assegurar as coisas necessaacuterias agrave vida e de produzi-las em abundacircncia
(Arendt 1998 p 126)
Natildeo eacute difiacutecil a partir do exposto perceber que eacute no crescente predomiacutenio
do trabalho marcado pela racionalidade produtivista e por praacuteticas vinculadas agraves
necessidades vitais que se assenta sua visatildeo de que eacute fundamental distinguirmos
esta atividade (o trabalho) da fabricaccedilatildeo dado que a construccedilatildeo de um verdadeiro
espaccedilo puacuteblico implica a delimitaccedilatildeo de um espaccedilo social especiacutefico para o
trabalho em sua separaccedilatildeo da fabricaccedilatildeo e na valorizaccedilatildeo das atividades que
possam fornecer sustentaacuteculo agravequele espaccedilo agrave esfera puacuteblica[3] ndash fabricaccedilatildeo e
accedilatildeo Por conseguinte somente a fabricaccedilatildeo produz as condiccedilotildees objetivas da
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vida efetivamente humana produz uma espeacutecie de segunda natureza que
possibilita e daacute forma objetiva agraves relaccedilotildees entre os homens ou seja fornece a
base material que transcende as demandas fisioloacutegicas e ao mesmo tempo as
individualidades humanas (histoacuterica e espacialmente) sedimentando a vida em
sociedade a proacutepria vida humana[4]
A subsunccedilatildeo da produccedilatildeo dos objetos duraacuteveis[5] agrave loacutegica e agraves demandas
do Animal laborans ndash ou seja ao inesgotaacutevel ciclo produccedilatildeo-consumo ndash implica o
decliacutenio de um mundo humano objetivo e duraacutevel de um mundo imprescindiacutevel
para o desenvolvimento de uma vida efetivamente humana tanto no acircmbito
individualfamiliar quanto no coletivopoliacutetico Em razatildeo disso numa sociedade que
valoriza o trabalho em detrimento da fabricaccedilatildeo e com isso faz que as praacuteticas e
ideais que regem o trabalho predominem na produccedilatildeo de objetos o mundo
objetivo torna-se cada vez mais desqualificado para sustentar a proacutepria vida
humana[6]
Jaacute sabemos entretanto que as atividades da vita activa natildeo se resumem
ao trabalho e agrave fabricaccedilatildeo Haacute tambeacutem a accedilatildeo a mais elevada de suas
atividades Sinteticamente podemos defini-la como a uacutenica atividade livre e a
mediadora par excellence da plural relaccedilatildeo homem-homem cujo ambiente de
exerciacutecio eacute a esfera poliacutetica Eacute por meio da accedilatildeo e do discurso que a explicita (isto
eacute que torna possiacutevel o debate para aclarar e legitimar a proacutepria finalidade e os
meios da accedilatildeo do agente ou agentes poliacuteticos) que os homens relacionam-se
como seres livres natildeo vinculados a demandas materiais e portanto natildeo tendo
por objeto de sua atividade o mundo material mas a si mesmos (indiviacuteduos e
gecircnero humano) e a suas autopostas preocupaccedilotildees com os bens comum e
individual
Ainda no que diz respeito agrave accedilatildeo Arendt observa que se a esfera poliacutetica
relaciona os homens como iguais sendo cada individualidade dotada dos mesmos
direitos que as outras ndash primordialmente dos direitos de agir e discursar ndash este
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relacionamento soacute eacute possiacutevel porque apesar de iguais em direitos os homens satildeo
diferentes entre si
Se os homens natildeo se distinguissem se cada ser humano natildeo diferisse de todos
os que existiram existem ou viratildeo a existir eles natildeo necessitariam da fala ou da
accedilatildeo para se fazerem entender Sinais e sons seriam suficientes para comunicar
suas necessidades e desejos imediatos e idecircnticos (Arendt 1998 p 176)
Se portanto sob a condiccedilatildeo de igualdade juriacutedica os homens se
relacionam de fato apenas porque satildeo diferentes entre si eacute por meio do discurso e
da accedilatildeo que esta diferenccedila pode vir agrave tona visto que ldquoEacute com palavras e atos que
nos inserimos no mundo humano e esta inserccedilatildeo eacute como um segundo
nascimento no qual confirmamos e assumimos o fato nu bruto do nosso
aparecimento fiacutesico originalrdquo (Arendt 1998 pp 176-7) Tal nascimento em vez de
produzir algo que eacute preacute-ideado pode ser refeito eou consertado aleacutem de carregar
em si as marcas do indiviacuteduo que o plasmou resultando numa produccedilatildeo anocircnima
irreversiacutevel e que aleacutem do mais traz em si forte dose de imprevisibilidade jaacute que
a pluralidade de indiviacuteduos o debate de ideacuteias e a realizaccedilatildeo destas nos negoacutecios
humanos (isto eacute natildeo em objetos mas em indiviacuteduos dotados de razatildeo) natildeo
permitem o controle sobre os resultados da accedilatildeo nos mesmos moldes a que estaacute
sujeito por exemplo o objeto nas matildeos do artesatildeo
Eacute esta inseguranccedila em relaccedilatildeo aos seus resultados que desde a
Antiguumlidade segundo Arendt motiva os seres humanos a tomarem a fabricaccedilatildeo
por modelo para a accedilatildeo Esta substituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeo ndash ou o que daacute
no mesmo uma accedilatildeo inspirada no modus operandi da fabricaccedilatildeo ndash visando a
aumentar o controle sobre os negoacutecios humanos natildeo eacute uma caracteriacutestica
especiacutefica da modernidade haacute muito a fabricaccedilatildeo constitui uma espeacutecie de
modelo desvirtuador da atividade tiacutepica da esfera poliacutetica da accedilatildeo[7] E a este
respeito o mundo moderno se destaca pelo fato de ter passado a valorizar as
atividades que nas eacutepocas anteriores eram relegadas a um plano secundaacuterio
como o trabalho e a fabricaccedilatildeo De acordo com Arendt mesmo que em inuacutemeros 7
casos tomassem a fabricaccedilatildeo por modelo para a accedilatildeo as eacutepocas anteriores agrave
modernidade valorizavam a accedilatildeo e a contemplaccedilatildeo como atividades propriamente
humanas ndash o homem era reconhecido como Animal rationale No mundo moderno
as coisas tomaram outro rumo
a convicccedilatildeo de que o homem pode conhecer somente aquilo que ele faz de que
suas capacidades supostamente superiores dependem da fabricaccedilatildeo e de que ele
eacute portanto primariamente um Homo faber e natildeo um Animal rationale trouxe agrave
tona as implicaccedilotildees muito mais antigas da inerente violecircncia em todas as
interpretaccedilotildees das esferas de negoacutecios humanos como uma esfera de fabricaccedilatildeo
(Arendt 1998 p 228)
Assim aleacutem de ressaltar uma suposta confusatildeo entre trabalho e fabricaccedilatildeo
permitindo o predomiacutenio daquele em espaccedilos antes restritos apenas agrave atividade
do artesatildeo ndash e atraveacutes dele a subsunccedilatildeo dos ideais e praacuteticas do Homo faber aos
do Animal laborans ndash Arendt enfatiza que o mundo moderno tambeacutem acabou
confundindo a fabricaccedilatildeo com a accedilatildeo o que fez com que a primeira se tornasse o
modelo da praacutexis poliacutetica da accedilatildeo Nessa ldquosubstituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeordquo
(Arendt 1998) o Animal rationale cedeu seu lugar ao Homo faber ndash ou melhor
incorporou as caracteriacutesticas deste ndash e com isso a accedilatildeo passou a ter como
principal referecircncia o modus operandi da fabricaccedilatildeo (work) da atividade produtiva
da obra[8] Isso significa que a racionalidade orientada para a adequaccedilatildeo de meios
a fins determinados preacute-ideados ndash ou seja a racionalidade que deve conduzir a
organizaccedilatildeo dos meios de acordo com um ldquomodelordquo (mental conceitual) a ser
objetivado ndash tiacutepica da fabricaccedilatildeo tambeacutem estaacute presente de maneira decisiva na
accedilatildeo na praacutexis poliacutetica do mundo moderno Ou seja justamente na accedilatildeo que eacute
(ou ao menos deveria ser) a atividade humana que estabelece a relaccedilatildeo entre
indiviacuteduos livres e iguais na esfera puacuteblica na vida poliacutetica
Enfim essa substituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeo expressa que a violecircncia
tatildeo necessaacuteria ao Homo faber em sua luta para arrancar da natureza os
elementos (os materiais) sobre os quais incide sua atividade e com isso adequaacute-
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los a fins natildeo-naturais torna-se tambeacutem necessaacuteria e valorizada nesta atividade
(uma espeacutecie de accedilatildeo corrompida) que toma a fabricaccedilatildeo por modelo
II Poliacutetica e violecircncia
Ao considerar a violecircncia detentora um papel decisivo na fabricaccedilatildeo e por
meio dela na accedilatildeo especialmente na transiccedilatildeo de uma formaccedilatildeo social a outra
Arendt considera a poliacutetica no mundo moderno agraves voltas com um problema
fundamental toma por caracteriacutestica da accedilatildeo aquilo que na verdade constitui
caracteriacutestica da fabricaccedilatildeo E eacute justamente no cerne dessa confusatildeo conceitual
que segundo ela o pensamento de Marx se encontra ndash mais constitui um caso
exemplar Sendo assim deixemos que nesse aspecto decisivo Arendt fale por si
mesma
A afirmaccedilatildeo de Marx de que a ldquoviolecircncia eacute a parteira de toda velha sociedade
prenhe de uma sociedade novardquo ou seja de toda mudanccedila histoacuterica ou poliacutetica
somente sintetiza a convicccedilatildeo dominante em toda a era moderna e deduz as
consequumlecircncias de sua crenccedila mais iacutentima de que a histoacuteria eacute ldquofeitardquo pelo homem
do mesmo modo que a natureza eacute ldquofeitardquo por Deus
Como tem sido persistente e bem sucedida a transformaccedilatildeo da accedilatildeo em
modalidade da fabricaccedilatildeo eacute facilmente atestada por toda terminologia da teoria e
do pensamento poliacutetico a qual torna quase impossiacutevel discutir esses assuntos sem
que se utilize a categoria de meios e fins e se raciocine em termos de
instrumentalidade (Arendt 1998 pp 228-9)
Num artigo de 1953 intitulado ldquoReligiatildeo e poliacuteticardquo logo apoacutes apoiar-se em
Karl Mannheim para ressaltar a dimensatildeo ideoloacutegica do marxismo e desqualificar
a abordagem acerca da relaccedilatildeo entre ser e consciecircncia por este preconizada[9]
Arendt diz
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A relutacircncia de Marx em levar a seacuterio ldquoo que cada eacutepoca diz sobre si e imagina
serrdquo derivava de sua convicccedilatildeo de que a accedilatildeo poliacutetica era basicamente violecircncia e
que a violecircncia era a parteira da histoacuteria Tal convicccedilatildeo natildeo se devia agrave ferocidade
gratuita de um temperamento revolucionaacuterio mas tem seu lugar na filosofia da
histoacuteria de Marx que sustenta que a histoacuteria representada pelos homens na
modalidade da falsa consciecircncia isto eacute na modalidade das ideologias pode ser
feita pelos homens tendo eles plena consciecircncia do que estatildeo fazendo Eacute
justamente esse lado humanista dos ensinamentos de Marx que o levou a insistir
no caraacuteter violento da accedilatildeo poliacutetica ele via o fazer da histoacuteria em termos de
fabricaccedilatildeo o homem histoacuterico era para ele basicamente Homo faber A fabricaccedilatildeo
de todas as coisas feitas pelo homem implica necessariamente alguma violecircncia
que incidiraacute sobre a coisa que se torna a mateacuteria baacutesica do que foi fabricado
(Arendt 2002 pp 62-3)
Marx assim teria compreendido a histoacuteria como resultado do ldquofazerrdquo
humano como resultado de atos teleoloacutegicos que nos moldes da atividade
artesanal ndash da fabricaccedilatildeo ndash fazem do ldquoHomemrdquo ndash e natildeo dos homens ndash o artesatildeo
consciente de sua histoacuteria (cf Canovan 1998) Eacute como se Marx tivesse
transformado o processo histoacuterico resultante de muacuteltiplas interaccedilotildees dos seres
humanos entre si (e simultaneamente destes com a natureza) num processo
instrumental Ou dito de outro modo eacute como se tal qual um Hegel materialista
ele concebesse a proacutepria sociedade como um ser demiuacutergico dotado de
capacidades e formas de atuaccedilatildeo semelhantes agravequelas do indiviacuteduo singular que
substituiacutesse o Espiacuterito e o seu processo de sua autoconscientizaccedilatildeo pelos
proacuteprios homens ndash ou pelo ldquoHomemrdquo ndash e seus atos de ldquofazer a histoacuteriardquo de
ldquofabricarrdquo a sociedade ideal (comunista) Neste caso a consciecircncia de classe
cumpriria o mesmo papel que a hegeliana ldquoastuacutecia da Razatildeordquo De qualquer modo
em ambos os casos natildeo satildeo exatamente os homens em sua multiplicidade de
experiecircncias e expectativas que agem em parte de maneira coordenada e
consciente e em parte conflitiva e inconscientemente mas ao contraacuterio eacute o
ldquoHomemrdquo a humanidade unificada que age de maneira coordenada consciente e
controlada como se fosse o ldquoartesatildeo do mundordquo
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A visatildeo marxista da atividade revolucionaacuteria seria entatildeo o resultado da
imputaccedilatildeo inconsciente de qualidades da fabricaccedilatildeo agrave accedilatildeo a qual por meio da
violecircncia[10] e orientada pelos mesmos criteacuterios de meios e fins que regem a
fabricaccedilatildeo faria os homens efetuarem o parto da nova sociedade cujo rebento
encontra-se emaranhado nas iacutentimas contradiccedilotildees da velha formaccedilatildeo social Seria
justamente esta exaltaccedilatildeo da violecircncia da ldquouacuteltima ratiordquo tiacutepica das relaccedilotildees entre
os baacuterbaros e caracteriacutestica da condiccedilatildeo do escravo[11] a demonstraccedilatildeo de que
em Marx predomina uma ldquohostilidade antitradicional ao discursordquo agrave busca do
consenso agrave poliacutetica (Arendt 1972 p 50)
Nesse contexto o pensamento poliacutetico de Marx representa segundo Arendt
o fim de uma trajetoacuteria do pensamento poliacutetico tradicional iniciada pelas filosofias
de Platatildeo e Aristoacuteteles Pois com esses pensadores a filosofia teria num duplo
salto se distanciado dos assuntos humanos onde reina a confusatildeo e a ilusatildeo
para retornar a eles ilustrada pela razatildeo isto eacute ldquopara [esta a razatildeo] impor seus
padrotildees aos assuntos humanosrdquo (Arendt 1972 p 44) fato altamente positivo que
teria demarcado o iniacutecio de uma fecunda relaccedilatildeo entre a filosofia e os assuntos
humanos entre ela e a poliacutetica Enquanto com Marx desgraccediladamente teria
acontecido o oposto visto que ele ldquorepudiou a Filosofia para poder lsquorealizaacute-larsquo na
poliacuteticardquo (Arendt 1972 p 44) Para ele em vez de a filosofia permanecer uma
espeacutecie de reflexatildeo sistemaacutetica e criacutetica constituiacuteda de certo modo apartada do
processo histoacuterico ela passou a emanar da proacutepria histoacuteria ldquoou antes a
consciecircncia poliacutetica [deriva] da consciecircncia histoacutericardquo (Arendt 1972 p 114) E
ainda segundo Arendt um dos fundamentos desta concepccedilatildeo reside na
identificaccedilatildeo estabelecida no mundo moderno entre sentido e fim Por meio dela
o sentido como termo que expressa o significado de um acontecimento ndash portanto
resultante de uma explicaccedilatildeo post factum ndash foi transformado em fim de
significado de acontecimentos passados passou a preacute-idear situaccedilotildees futuras
Com isso as accedilotildees individuais e instrumentais (realizadas com a finalidade de)
que explicam o processo de trabalho e seus resultados passaram a servir de
modelo para a explicaccedilatildeo do porquecirc de o indiviacuteduo (eou a sociedade) ser o que eacute
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e portanto executar esta atividade (eou possuir tais caracteriacutesticas) ndash ie como
se o presente fosse a manifestaccedilatildeo ldquoaqui e agorardquo da necessidade imanente de
atos passados Enfim ao considerar as sociedades modernas degradadoras do
sentido em fim Arendt avalia que o marxismo parte integrante desta modernidade
levou esta degradaccedilatildeo agraves uacuteltimas consequumlecircncias e assim transformou a histoacuteria
em teleologia
Pois bem se ainda segundo Arendt a teoria da histoacuteria como fabricaccedilatildeo
natildeo eacute exclusiva do pensamento marxista mas constitui uma caracteriacutestica do
pensamento poliacutetico moderno aquele se distingue
de todas as demais teorias em que a noccedilatildeo de ldquofazer a histoacuteriardquo encontrou abrigo
somente [pelo] fato de apenas ele ter percebido que se se toma a histoacuteria como o
objeto de um processo de fabricaccedilatildeo ou elaboraccedilatildeo deve sobrevir um momento
em que esse objeto eacute completado e que desde que se imagina ser possiacutevel fazer
a histoacuteria natildeo se pode escapar agrave consequumlecircncia de que haveraacute um fim para a
histoacuteria (Arendt 1972 p 114)
Para que entatildeo os marxistas respondem aos apocaliacutepticos que
advogam o fim das ideologias e da histoacuteria se com um golpe de matildeo o proacuteprio
Marx eliminou a ambas Nesta visatildeo tal como o objeto que inicialmente preacute-
ideado na cabeccedila do artesatildeo completa seu ciclo de produccedilatildeo torna-se objetivo
finda a histoacuteria chegaria ao seu fim com a realizaccedilatildeo da filosofia pelo proletariado
ndash nos invertidos termos hegelianos seria este o momento da autoconscientizaccedilatildeo
do Espiacuterito da plena identificaccedilatildeo entre conceito e objeto entre pensamento e
realidade ndash fato que demarcaria o controle da vida humana nos mesmos moldes
em que o artesatildeo domina a mateacuteria a ser plasmada e lhe fornece uma forma final
Mas se Marx eacute tratado como uma espeacutecie de Hegel materialista eacute certo que
as ideacuteias de ambos natildeo satildeo idecircnticas Tanto que em oposiccedilatildeo agrave sua
predecessora hegeliana a coruja de Minerva marxiana natildeo alccedila vocirco somente ao
crepuacutesculo ela capta conceitualmente as condiccedilotildees em que este pode ocorrer e
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assim auxilia na sua realizaccedilatildeo Outrossim mais importante do que saber se esta
caracteriacutestica do pensamento de Marx eacute adequadamente entendida por Arendt eacute
saber que para ela esta caracteriacutestica expressa um determinismo que torna
supeacuterflua qualquer discussatildeo sobre as finalidades e o conteuacutedo dos processos
sociais dado que a histoacuteria fabricada modelada como se fosse um objeto pelo
proletariado demiuacutergico torna a palavra o discurso um mero instrumento de
justificaccedilatildeo ideoloacutegica de ideacuteias preconcebidas a serem materializadas Foi
partindo desses pressupostos que Arendt pocircde afirmar
O que era entatildeo inexplicaacutevel na histoacuteria [a saber os muacuteltiplos interesses
conflitantes que tornam a accedilatildeo poliacutetica ineficaz no alcance de seus objetivos e a
existecircncia de um sentido no processo histoacuterico] passa agora a ser visto como o
reflexo de um significado que seguramente era tanto um produto humano quanto o
desenvolvimento teacutecnico do mundo O problema de humanizar os assuntos
poliacutetico-histoacutericos resumia-se consequumlentemente em descobrir como dominar
nossas proacuteprias accedilotildees assim como dominamos nossa capacidade produtiva ou
em outras palavras como ldquofazerrdquo histoacuteria assim como fazemos outras coisas Uma
vez que isso seja alcanccedilado com a vitoacuteria do proletariado natildeo precisaremos mais
de ideologias Mas ateacute laacute todas as accedilotildees poliacuteticas preceitos legais e
pensamentos espirituais continuaratildeo escondendo os motivos inconfessos de uma
sociedade que somente finge agir politicamente mas que na verdade ldquofaz
histoacuteriardquo ainda que de uma maneira inconsciente isto eacute natildeo-humana (Arendt
2002 p 63)
Natildeo constituindo a esfera do pleno exerciacutecio do debate de ideacuteias entre
indiviacuteduos livres e iguais ndash indiviacuteduos que por meio do uso intenso da palavra do
discurso do muacutetuo esclarecimento estabelecem consensos mais ou menos gerais
sobre os fundamentos e as finalidades da accedilatildeo ndash a poliacutetica atual constitui um
simulacro da poliacutetica autecircntica Tal como a entende Arendt esta constitui uma
esfera (puacuteblica) que antes de qualquer outra coisa deve estar apartada da
violecircncia na medida em que esta nega a palavra o discurso o debate e portanto
a accedilatildeo Definindo assim o que satildeo meios e fins o que eacute essencial e o que eacute
imposiccedilatildeo extriacutenseca agrave poliacutetica Arendt reitera que ldquoo poder eacute de fato a essecircncia
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de todo governo mas natildeo a violecircnciardquo (Arendt 1994 p 40) Por conseguinte
sendo de natureza instrumental a violecircncia ldquocomo todos os meios sempre
depende da orientaccedilatildeo e da justificaccedilatildeo pelo fim que almeja E aquilo que
necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser a essecircncia de nadardquo (Arendt
1994 p 41) O poder encontra sua legitimidade no passado a violecircncia se
justifica pelas consequumlecircncias futuras aquele pela sua constituiccedilatildeo esta pelos
seus objetivos Em razatildeo disso ldquoa violecircncia pode ser justificaacutevel mas nunca seraacute
legiacutetimardquo (Arendt 1994 p 41) Enfim ao vincularem a violecircncia ao poder as
concepccedilotildees poliacuteticas hegemocircnicas dentre elas o marxismo demonstram a
incompreensatildeo de que aqueles satildeo na verdade opostos ldquoonde um domina
absolutamente o outro estaacute ausenterdquo (Arendt 1994 p 44)
Para natildeo cindir a argumentaccedilatildeo criacutetica e com isso tornaacute-la
demasiadamente prolixa retornaremos mais adiante a estas afirmaccedilotildees de
Hannah Arendt sobre poliacutetica e violecircncia Por ora apoacutes termos descrito algumas
categorias centrais do pensamento arendtiano e em especiacutefico os fundamentos
de sua criacutetica agrave relaccedilatildeo entre poliacutetica e violecircncia em Marx passemos na mesma
sequumlecircncia de ideacuteias desenvolvida ateacute aqui ao confronto dessas reflexotildees com
aquelas que a nosso ver correspondem adequadamente tanto ao corpo quanto
ao espiacuterito da obra marxiana
III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
Consideramos desnecessaacuterio demonstrar ad nauseam como a concepccedilatildeo
de trabalho em Marx difere substancialmente daquelas atividades que Arendt
denomina pelos vocaacutebulos trabalho e fabricaccedilatildeo pois para o nosso objetivo
basta que o realizemos apenas em suas linhas gerais Assim em primeiro lugar eacute
necessaacuterio relembrar que ao contraacuterio da concepccedilatildeo arendtiana na obra de Marx
o trabalho natildeo consiste numa atividade que nos vincularia mais ao mundo dos
animais do que ao dos seres humanos propriamente ditos Para ele muito distante
14
de qualquer ilusatildeo acerca de uma vida sem trabalho[12] esta atividade constitui um
momento efetivamente fundante e fundamental da vida humana sem a qual aiacute
sim natildeo nos distinguiriacuteamos em absolutamente nada dos proacuteprios animais[13] Em
termos precisos podemos dizer que o animal natildeo se relaciona com a natureza
ele apenas vive nela eacute sua parte integrante[14] natildeo se distinguindo dela como um
ser consciente o animal eacute portanto incapaz de estabelecer uma mediaccedilatildeo
regulada conscientemente controlada com a natureza (Marx 1985 p 149)
apenas respondendo com maior ou menor labilidade agraves determinaccedilotildees e agraves
constantes mudanccedilas de seu haacutebitat O ser humano por sua vez age de maneira
preacute-ideada em sua atividade metaboacutelica pois em todos os momentos do processo
de trabalho lhe ldquoeacute exigida a vontade orientada a um fimrdquo (Marx 1985 p 150)
Assim o sujeito que trabalha ldquonatildeo apenas efetua uma transformaccedilatildeo da forma da
mateacuteria natural realiza ao mesmo tempo na mateacuteria natural seu objetivo que ele
sabe que determina como lei a espeacutecie e o modo de sua atividade e ao qual tem
de subordinar sua vontaderdquo (Marx 1985 p 150) Natildeo sendo portanto a mera
expressatildeo de determinaccedilotildees ou epifenocircmenos bioloacutegicos o trabalho eacute uma
atividade na qual inevitavelmente entrelaccedilam-se o pensar e o fazer a
consciecircncia e a accedilatildeo com aquela orientando esta para transformar a mateacuteria com
vistas a dar-lhe uma forma adequada agrave satisfaccedilatildeo de alguma necessidade
humana A ideacuteia mediada pelo trabalho cristaliza-se no objeto objeto que longe
de ser meramente natural eacute a manifestaccedilatildeo material da subjetividade humana
posto que soacute existe em razatildeo desta Tanto que no final temos que ldquoo trabalho
estaacute objetivado e o objeto trabalhadordquo (Marx 1985 p 151) num mesmo ato a
subjetividade exteriorizou-se e a materialidade tornou-se subjetiva[15] E eacute claro
como esta objetivaccedilatildeo eacute resultado de accedilotildees conscientes o metabolismo dos
homens em relaccedilatildeo agrave natureza eacute muito mais dinacircmico mutante do que aquele
efetuado pelos animais resultando em formas materiais e sociais
permanentemente alteradas ocorrendo a mesma coisa com a proacutepria
subjetividade humana
15
Sendo uma atividade humanamente produtiva o trabalho natildeo eacute apenas a
relaccedilatildeo do homem com a natureza eacute tambeacutem uma relaccedilatildeo que ocorre entre os
proacuteprios homens ndash e verdadeiramente como trabalho soacute existe a partir desta
relaccedilatildeo Ainda em sua juventude num texto seminal para a elaboraccedilatildeo de suas
reflexotildees posteriores Marx nos diz que o homem ldquosoacute eacute um ser consciente quer
dizer a sua vida constitui para ele um objeto porque eacute um ser geneacuterico
Unicamente por isso eacute que sua atividade surge como atividade livrerdquo (Marx 1985
p 165) Se natildeo fosse um ser social geneacuterico produto e produtor de si e do
gecircnero o ser humano natildeo possuiria as faculdades (consciecircncia linguagem) sem
as quais paradoxalmente o proacuteprio trabalho natildeo existiria E que simultaneamente
como dissemos permitem o aprimoramento e a expansatildeo das fronteiras da vida
humana (individual e coletiva) para muito aleacutem daquelas a que estatildeo restritos os
seres vivos naturais[16]
Nesse caso parece-nos oacutebvio que eacute completamente irrelevante saber se
uma atividade produtiva resulta em produtos mais ou menos duraacuteveis ndash por
exemplo em alimentos ou objetos do mobiliaacuterio ndash para classificaacute-la como estando
mais proacutexima ou mais distante da vida propriamente humana Seja numa
sociedade especiacutefica ou ao longo da histoacuteria humana um produto pode durar mais
ou menos tempo devido a um sem-nuacutemero de fatores tais como os materiais e a
tecnologia empregados as relaccedilotildees sociais sob as quais foi produzido as classes
eou grupos sociais que o utilizaratildeo ndash definindo por exemplo a velocidade e o
perfil de sua obsolescecircncia ou seja se esta eacute real materialmente efetiva ou
socialmente condicionada ndash entre outros e natildeo apenas devido agrave maior ou menor
proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica dos indiviacuteduos A rigor a produccedilatildeo de um
alimento ou medicamento por meio de procedimentos complexos e sofisticados
mas cujo consumo eacute quase imediato (para Arendt ldquoproduto do trabalhordquo)
certamente expressa niacuteveis mais elevados de humanizaccedilatildeo do que a produccedilatildeo de
uma tosca mesa de madeira que perdura seacuteculos passando de geraccedilatildeo a
geraccedilatildeo (Marx 1985 ldquoproduto da fabricaccedilatildeordquo)
16
Essas observaccedilotildees acerca da relaccedilatildeo entre as atividades produtivas e a
durabilidade de suas produccedilotildees natildeo significa em hipoacutetese alguma que a
durabilidade ou natildeo de um produto seja irrelevante para os indiviacuteduos e a
sociedade em geral ateacute mesmo porque os produtos satildeo elementos constitutivos e
condicionantes de certas caracteriacutesticas dos processos de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo
das formaccedilotildees sociais Significa apenas que per se ela natildeo eacute relevante para
mensurar o niacutevel de humanizaccedilatildeo da atividade e das qualificaccedilotildees subjetivas nela
envolvidas Assim nas sociedades capitalistas por exemplo saber se um
determinado objeto constitui parte do maquinaacuterio ou da edificaccedilatildeo (capital fixo) ou
entatildeo se eacute apenas insumo mateacuteria-prima ou meio de subsistecircncia (capital
circulante) eacute significativo prioritariamente em razatildeo de que as proporccedilotildees de seus
respectivos usos e o seu periacuteodo de rotaccedilatildeo afetam de maneira decisiva as taxas
de lucro do capital investido Aleacutem do mais ldquoo fato de um valor de uso aparecer
como mateacuteria-prima meio de trabalho ou produto depende totalmente de sua
funccedilatildeo determinada no processo de trabalho da posiccedilatildeo que nele ocupa e com a
mudanccedila dessa posiccedilatildeo variam essas determinaccedilotildeesrdquo (Marx 1985 p 152)
Quase desnecessaacuterio dizer que tal posiccedilatildeo tambeacutem varia de acordo com o niacutevel
de desenvolvimento das forccedilas produtivas e das relaccedilotildees sociais que constituem a
sociedade em questatildeo Em siacutentese se natildeo podemos definir um objeto como
sendo o resultado de uma atividade inferior ou superior na hierarquia das
atividades humanas (da vita activa arendtiana) devido agrave sua durabilidade[17] ou agrave
sua proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica (agrave manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo do corpo)
qualquer tentativa de mensuraccedilatildeo sob este prisma nos parece completamente
arbitraacuteria inclusive eacute claro a que se funda na distinccedilatildeo arendtiana entre trabalho
e fabricaccedilatildeo
Enfatizar estas caracteriacutesticas do trabalho tambeacutem eacute importante porque
contrariamente agraves qualificaccedilotildees inerentes a ele e agrave fabricaccedilatildeo que de acordo com
Arendt estatildeo diretamente relacionadas agraves qualidades do Animal laborans e do
Homo faber no pensamento marxiano inexiste qualquer menccedilatildeo a uma essecircncia
a-histoacuterica do trabalho isto eacute uma essecircncia que agrave revelia da forma societaacuteria em
17
que a atividade se realiza imprime agrave subjetividade daquele que o executa
inelutaacuteveis qualificaccedilotildees Muito ao contraacuterio As anaacutelises marxianas satildeo
profundamente ancoradas na historicidade dos fenocircmenos naturais e sociais
negando qualquer essencialismo em relaccedilatildeo ao trabalho ou a qualquer outra
atividade bem como ao indiviacuteduo ou grupo de indiviacuteduos que o executa Para
Marx ldquoa essecircncia humana natildeo eacute uma abstraccedilatildeo inerente ao indiviacuteduo singular
Em sua realidade eacute o conjunto das relaccedilotildees sociaisrdquo (Marx 1987 p 13) Por
conseguinte em aberta oposiccedilatildeo agraves proposiccedilotildees arendtianas afirmamos que o
produtivismo natildeo constitui uma caracteriacutestica inerente ao trabalho ndash que com a
ascensatildeo deste agrave esfera puacuteblica teria transbordado as fronteiras da vida privada e
se generalizado socialmente ndash mas sim uma caracteriacutestica que possui suas raiacutezes
nas formas de sociabilidade vigentes no mundo contemporacircneo sejam estas
formas capitalistas ou poacutes-capitalistas[18] Dito de outro modo se o trabalho
assalariado alienado constitui cada vez mais a forma predominante da atividade
produtiva e reprodutiva dos indiviacuteduos nestas sociedades tal desventura natildeo
decorre de uma essecircncia que seja inerente a ele tanto quanto agraves formas preteacuteritas
de trabalho e que tenha se desvencilhado na atualidade das amarras que
limitavam sua expansatildeo A raiz deste fenocircmeno reside no fato de o capital
constituir a relaccedilatildeo social baacutesica das sociedades assinaladas generalizando
aquela forma de trabalho E a propoacutesito do essencialismo produtivista do trabalho
em vaacuterias passagens de sua obra Marx nos mostrou as diferenccedilas existentes
entre as sociedades antigas e as modernas sociedades capitalistas Numa dessas
passagens ele lembra que
Entre os antigos natildeo encontramos uma uacutenica investigaccedilatildeo a propoacutesito de qual a
forma de propriedade etc que seria a mais produtiva que geraria o maacuteximo de
riqueza A riqueza natildeo constituiacutea o objetivo da produccedilatildeo A pesquisa sempre
era sobre qual o tipo de propriedade que geraria os melhores cidadatildeos (Marx
1975 p 80 grifos nossos)
Mesmo em seu acircmbito estritamente privado a propriedade natildeo estava
relacionada prioritariamente aos interesses egoiacutestas do indiviacuteduo mas eram os 18
interesses deste ndash e portanto o uso que fazia daquela ndash que estavam
circunscritos e condicionados pelos interesses da comunidade da qual fazia parte
por mais restrita que esta fosse em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo total Desse modo nestas
formaccedilotildees sociais as atividades produtivas natildeo eram movidas por uma ldquoinerenterdquo
racionalidade produtivista uma racionalidade cujo suposto transbordamento das
fronteiras privadas e o estabelecimento do domiacutenio sobre as outras atividades
caracterizariam ndash segundo Arendt ndash o mundo moderno Em relaccedilatildeo a este sua
principal caracteriacutestica consiste na centralidade na generalizaccedilatildeo e no crescente
predomiacutenio do capital no conjunto das relaccedilotildees sociais Enfim eacute justamente esta
centralidade do capital e suas consequumlecircncias que produz o assalariamento
generalizado dos indiviacuteduos e a subsunccedilatildeo da reproduccedilatildeo socioeconocircmica como
um todo agrave loacutegica produtivista
Numa pequena digressatildeo visando apenas a estreitar as margens de accedilatildeo
das leituras vulgares do marxismo eacute necessaacuterio ressaltar que esta afirmaccedilatildeo da
centralidade do capital nas relaccedilotildees sociais contemporacircneas e do espraiamento
de sua influecircncia pela totalidade social natildeo implica reducionismo econocircmico Na
verdade ela significa apenas a explicitaccedilatildeo de caracteriacutesticas inerentes ao capital
cuja tendecircncia a subsumir a multiplicidade de dimensotildees da vida humana agrave sua
loacutegica acumulatoacuteria expansionista eacute um fato incontestaacutevel ontologicamente
enraizado e racionalmente apreensiacutevel e natildeo um grave equiacutevoco teoacuterico de um
pensamento incapaz de atentar para a complexidade do real Eacute nesse sentido que
comentando a famosa proposiccedilatildeo de Marx segundo a qual ldquoNatildeo eacute a consciecircncia
dos homens que determina o seu ser mas ao contraacuterio eacute o seu ser social que
determina sua consciecircnciardquo[19] (Marx 1982 p 25) Lukaacutecs afirma ldquonesse trecho o
mundo das formas de consciecircncia e seus conteuacutedos natildeo eacute visto como um produto
direto da estrutura econocircmica mas da totalidade do ser social A determinaccedilatildeo da
consciecircncia pelo ser social portanto eacute entendida em seu sentido mais geralrdquo
(Lukaacutecs 1979 p 41) ndash e natildeo como expressatildeo direta mecacircnica e restrita dos
processos econocircmicos
19
Neste toacutepico ateacute o momento detivemo-nos nas distintas concepccedilotildees
acerca do trabalho presentes em Arendt e Marx O caso poreacutem eacute que apesar de
significativas tais concepccedilotildees natildeo circunscrevem sua influecircncia agraves fronteiras
econocircmicas mas extravasam a economia e deitam raiacutezes na totalidade de suas
reflexotildees sobre a vida humana Assim se Arendt tem razatildeo em afirmar que para
Marx o trabalho ndash e a fabricaccedilatildeo apesar da irrelevacircncia desta distinccedilatildeo (trabalho x
fabricaccedilatildeo) no quadro conceitual marxiano ndash eacute tratado como uma atividade
teleoloacutegica cujas relaccedilotildees que estabelece com as outras atividades constitutivas
da vida humana satildeo fundamentais para delinear as caracteriacutesticas da totalidade
social nada justifica sua transposiccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos do trabalho
(concreto) para a concepccedilatildeo de histoacuteria marxiana No entanto eacute justamente isto
que ela faz ao afirmar que em Marx a histoacuteria eacute entendida como um processo
similar ao da fabricaccedilatildeo do artesanato um processo que contemporaneamente
exige a intervenccedilatildeo consciente de um sujeito demiuacutergico ndash o proletariado ndash para
plasmar a nova forma societaacuteria tal como o artesatildeo faz com sua mateacuteria-prima E
igualmente ao afirmar que do mesmo modo que a materializaccedilatildeo do objeto preacute-
ideado expressa o fim do processo gerido pelo artesatildeo a realizaccedilatildeo da sociedade
ldquopreacute-ideadardquo pelo proletariado significaria o fim da histoacuteria
Ora uma das questotildees mais complexas do pensamento social fruto de
inuacutemeras polecircmicas teorias e tratados ao longo dos uacuteltimos seacuteculos ndash
especialmente apoacutes o advento da sociologia ndash eacute a articulaccedilatildeo das accedilotildees
individuais e a reproduccedilatildeo da totalidade social E mesmo certos da impossibilidade
de adentrar no emaranhado de questotildees suscitado pelo tema natildeo podemos omitir
a informaccedilatildeo de que uma leitura criteriosa dos textos marxianos demonstra sem
grande dificuldade a improcedecircncia das criacuteticas de Hannah Arendt De modo
algum condiz com o ldquoespiacuteritordquo da obra marxiana a identificaccedilatildeo da reproduccedilatildeo
social como um todo e nem dos processos de transiccedilatildeo de uma forma societaacuteria a
outra ao modus operandi do trabalho O que natildeo significa por sua vez que a
instabilidade econocircmica e social natildeo fosse objeto de suas preocupaccedilotildees A bem
da verdade sendo o primeiro a entender a centralidade do trabalho e suas
20
consequumlecircncias na produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana Marx se assenhoreou
desde os Manuscritos de 1844 de conhecimentos suficientemente significativos
para criticar em relaccedilatildeo agravequele aspecto inicialmente citado das relaccedilotildees entre
indiviacuteduo e sociedade tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo Assim em
vez da naturalizaccedilatildeo da histoacuteria humana ou da arbitrariedade da vontade e da
razatildeo em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmaccedilatildeo dos
seres humanos como autoprodutores de sua proacutepria histoacuteria e simultaneamente
uma criacutetica agrave hipostasia das potencialidades da razatildeo e das forccedilas humanas nesta
autoproduccedilatildeo Invariavelmente suas anaacutelises reiteram que ldquoOs homens fazem
sua proacutepria histoacuteria mas natildeo a fazem como querem natildeo a fazem sob
circunstacircncias de sua proacutepria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam
diretamente legadas e transmitidas pelo passadordquo (Marx 1986 p 17 grifos
nossos) Nos dias atuais natildeo eacute difiacutecil perceber como por si soacute esta frase nos
mostra quatildeo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e
da realpolitik que cada qual ao seu modo como faces de uma mesma moeda
dominam os discursos poliacuteticos e econocircmicos em voga
Ainda no que diz respeito agrave questatildeo do sujeito demiuacutergico e do finalismo
histoacuterico eacute necessaacuterio que se entenda que mesmo em sua fastidiosa reproduccedilatildeo
cotidiana o trabalho eacute sempre um ato de criaccedilatildeo criaccedilatildeo natildeo apenas de coisas
novas de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma
humanamente apropriada mas criaccedilatildeo da proacutepria subjetividade humana que se
renova a partir das experiecircncias possibilitadas pelos meios e resultados de sua
produccedilatildeo e pelas relaccedilotildees sociais que os envolvem Tendo em mente esta
dinacircmica intriacutenseca agrave atividade vital dos seres humanos e ao mesmo tempo o
caraacuteter que para Marx a totalidade do real[20] assume como concreto pensado
(Marx 1982 p 15) nem a mais poderosa das inteligecircncias humanas tampouco o
concurso delas sob a forma do coletivo partidaacuterio pode em termos conceituais
apreender subsumir absolutamente o real ao pensamento ndash e muito menos
sujeitar as proacuteprias relaccedilotildees sociais a um controle assemelhado ao das teacutecnicas
produtivas
21
Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final
entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja
rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz
consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de
Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo
sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele
ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von
Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia
hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas
sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais
geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de
onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta
observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica
especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente
pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto
natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o
proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela
histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e
seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o
conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade
histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens
em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo
possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas
Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo
de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos
individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica
intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos
altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que
nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que
22
em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a
divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente
a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de
todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada
espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das
diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como
reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori
e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do
trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural
interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado
subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo
social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo
reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo
exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo
que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as
condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)
Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais
de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente
as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de
posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo
(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa
O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias
normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de
finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem
realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute
inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)
Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante
entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de
indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de
eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a
23
casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece
porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da
ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas
significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias
sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca
controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias
objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que
encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano
Em sua Ontologia do ser social ele afirma
Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada
vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as
decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da
totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse
conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa
relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso
porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o
movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da
histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas
etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local
tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que
tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de
transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que
satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do
que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e
consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso
aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)
Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos
individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha
ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias
mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade
oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem
econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo
24
social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve
ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que
historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os
processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem
uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle
destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou
A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a
anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo
incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do
trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer
controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma
infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo
autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais
entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda
organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a
sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)
Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus
ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os
limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de
intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal
qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos
uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana
(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do
pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os
limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir
para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta
ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo
No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras
experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao
nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25
pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas
relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi
drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente
desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses
capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de
regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo
resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica
reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas
experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da
humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua
loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a
accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com
seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social
passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees
marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de
regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos
moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a
consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria
redenccedilatildeo universal
O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos
ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as
acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels
salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido
um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o
movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)
O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se
realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico
do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana
de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo
comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o
26
comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a
forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo
nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao
desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma
sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o
comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no
fim da histoacuteria[22]
Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento
marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute
capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e
desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo
ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso
numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]
mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou
natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana
Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees
que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim
contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das
caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da
limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os
homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara
manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal
Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos
extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a
violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo
Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do
capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre
a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os
revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila
27
material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a
utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de
recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o
revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico
Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder
material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria
se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz
de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e
argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar
o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p
497)
Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos
(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o
discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista
muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)
que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no
encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as
sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece
ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um
discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos
constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das
individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades
eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano
mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em
campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar
plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de
sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar
sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio
colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel
convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e
28
culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem
respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes
subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]
Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)
de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio
das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto
natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive
atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie
No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias
naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o
crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda
escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-
sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo
contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da
incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees
materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos
afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus
processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos
inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos
da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades
humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute
o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses
trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)
Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas
produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa
penetrante passagem sobre o tema lemos
O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto
dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de
29
desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse
nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos
demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua
vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado
naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo
determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas
relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu
proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx
1973 pp 89-90)
Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos
sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a
centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos
aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza
e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham
vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a
intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o
equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente
econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida
social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da
permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas
relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito
da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas
universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada
das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os
homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria
mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das
forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo
adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos
homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia
O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se
compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30
neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo
do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo
pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso
histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive
violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste
(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso
resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na
sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os
antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por
ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses
das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos
Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica
natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades
reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a
estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico
Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da
cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios
juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da
sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela
que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de
duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que
complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo
concreto
O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em
oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem
de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade
desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem
leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da
realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na
comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na
31
sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como
meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes
estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser
profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real
eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem
eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma
soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de
uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)
Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e
imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos
privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma
revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res
publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja
eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da
proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a
violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica
consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a
accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a
vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma
alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento
Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a
essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o
proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua
violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre
dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo
de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a
perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a
violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt
segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser
a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente
32
pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o
antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as
relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de
supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano
Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder
dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se
faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de
violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o
poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa
revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades
viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento
humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo
profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma
resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como
desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo
Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado
como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos
do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute
poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de
propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)
Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de
dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao
contraacuterio
Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como
classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como
classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as
condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em
geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)
33
Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx
1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo
poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer
forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas
formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar
em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis
Quanto a isso eacute importante relembrar que
O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos
limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute
capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade
Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais
ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e
espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a
fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)
Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-
violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo
violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-
socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo
(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-
humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo
humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a
rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios
quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de
coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras
A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um
anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo
(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim
negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se
natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para
natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a
34
contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo
(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-
humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-
violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que
assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)
Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx
caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu
proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios
empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo
entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez
de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do
humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-
capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo
dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os
torna incompatiacuteveis[27]
IV Agrave guisa de conclusatildeo
Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de
Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda
distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de
Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do
pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas
que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio
da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente
sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir
de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns
aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram
envolvidos pela leitura arendtiana
35
Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem
ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem
duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho
Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e
estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do
solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo
neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade
com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se
reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos
intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro
porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento
marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual
formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco
em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e
Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para
o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e
revolucionaacuterios
Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo
XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho
caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos
revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso
imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob
muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes
natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca
demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo
sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas
proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os
argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro
sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas
ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma
36
verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto
que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute
cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido
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Notas
38
Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo
Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo
teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a
estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o
ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque
somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a
abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos
que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e
isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a
accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num
constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas
produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou
menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de
consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados
a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo
antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em
termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e
inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho
como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt
1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels
segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte
daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos
homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e
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osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida
real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos
desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo
corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade
efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa
produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma
aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio
Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para
produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas
necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a
Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de
qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas
formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na
constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso
ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro
Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se
distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo
reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele
duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo
(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute
afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels
1986 p 19)
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[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade
esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas
daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades
capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas
carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e
propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que
determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a
p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que
sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram
transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em
grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos
paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital
Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo
crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos
estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem
consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo
social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas
conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento
marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo
implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de
estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo
significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo
dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma
luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude
do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de
uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o
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entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada
dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas
caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos
do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no
fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje
muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o
sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e
saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente
a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente
severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de
personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de
objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de
produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e
personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar
condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua
perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento
universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social
como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p
85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que
apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo
aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do
esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e
complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em
relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios
revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA
transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em
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massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
-
contemporacircneo Hannah Arendt (1906-75) dedicou algumas significativas e
influentes passagens agrave criacutetica do marxismo especialmente do pensamento
marxiano Num dos temas analisados nessas passagens ela criticou duramente a
abordagem marxiana acerca do papel da violecircncia nos momentos de transiccedilatildeo de
uma sociedade a outra isto eacute nos momentos revolucionaacuterios Nessas criacuteticas
enfocou prioritariamente aqueles aspectos que segundo pensa demonstram que
em Marx haacute uma glorificaccedilatildeo da violecircncia na poliacutetica Esta glorificaccedilatildeo presente
em toda a obra de Marx estaria manifesta com toda sua forccedila numa frase contida
em O capital na qual ele afirma que ldquoA violecircncia eacute a parteira de toda velha
sociedade que estaacute prenhe de uma novardquo (Marx 1985[II] p 286) Considerada
sintomaacutetica do pensamento poliacutetico marxiano Arendt afirma que nesta frase estaacute a
ldquonegaccedilatildeo do logos do discurso a forma de relacionamento que lhe eacute [agrave violecircncia]
diametralmente oposta e tradicionalmente a mais humanardquo (1972 p 50) Ambas
glorificaccedilatildeo da violecircncia e negaccedilatildeo do discurso (portanto da democracia)
resultariam da identificaccedilatildeo que Marx teria efetuado entre accedilatildeo e violecircncia Para
que pudesse chegar a tais resultados em suas anaacutelises Marx teria infundido na
accedilatildeo os procedimentos tiacutepicos da esfera produtiva ndash especialmente da atividade
produtiva de bens duraacuteveis Eacute a esta relaccedilatildeo entre trabalho poliacutetica e violecircncia
nos pensamentos de Hannah Arendt e Karl Marx que vamos dedicar nossa anaacutelise
Antes poreacutem de analisarmos melhor o conteuacutedo das afirmaccedilotildees e das
criacuteticas de Hannah Arendt eacute necessaacuterio enfatizarmos que natildeo se leva adiante
uma anaacutelise profunda sobre a poliacutetica agrave revelia ou melhor sem o sustentaacuteculo de
uma teoria mais ou menos consistente acerca dos fundamentos do ser social (em
seus proacuteprios termos da condiccedilatildeo humana) Nesse sentido deve-se recordar que
para Arendt dentre os aspectos importantes que as atividades constitutivas da vita
activa ndash as quais estaacute a accedilatildeo a atividade proacutepria da esfera poliacutetica ndash
desempenham na conformaccedilatildeo do ser social encontra-se na distinccedilatildeo entre
aquelas que reproduzem o homem como ser vivo e portanto dotado de
necessidades bioloacutegicas e materiais em relaccedilatildeo agravequelas que o reproduzem como
membro do gecircnero humano ou seja as que atendem suas demandas de
2
indiviacuteduo-social E de acordo com o corpus de sua reflexatildeo pode-se presumir que
eacute nas diferenccedilas existentes na natureza dessas atividades e nas influecircncias de
umas sobre outras que respectivamente erguem-se a grandeza antiga e a
miseacuteria moderna da vida poliacutetica Por isso neste momento inicial eacute necessaacuterio
nos dirigirmos ao edifiacutecio principal de seu complexo teoacuterico para dele extrairmos
aqueles elementos que nos permitam analisar e entender adequadamente sua
singular visatildeo acerca do trabalho (e da fabricaccedilatildeo) e das caracteriacutesticas
potencialidades e limites da accedilatildeo poliacutetica em geral ndashespecialmente no mundo
contemporacircneo Somente partindo deste edifiacutecio de seus fundamentos e
peculiaridades eacute que poderemos entender o exato sentido de sua concepccedilatildeo
acerca da violecircncia na poliacutetica e por meio dela da criacutetica que desfia ao
pensamento de Marx
I Vita activa
Em inuacutemeras obras Hannah Arendt debruccedilou-se no desvendamento das
bases da poliacutetica contemporacircnea No entanto foi em A condiccedilatildeo humana que ela
desenvolveu aquilo que em seu pensamento mais se aproxima em termos
lukacsianos de uma anaacutelise ontoloacutegica do ser social portanto nesta obra ela
analisou mais profundamente as bases da poliacutetica e as inter-relaccedilotildees desta com
as outras atividades humanas Foi nela tambeacutem que explicitou a importacircncia
decisiva da distinccedilatildeo entre as trecircs atividades constitutivas da vita activa[1] (trabalho
fabricaccedilatildeo e accedilatildeo) para a explicitaccedilatildeo dos fundamentos da praacutetica poliacutetica E se eacute
faacutecil entender porque em seu edifiacutecio conceitual o trabalho (labor) e a fabricaccedilatildeo
(work) possuem um papel prioritaacuterio na produccedilatildeo dos fundamentos materiais da
vida social a mesma facilidade natildeo se repete quando analisamos como na
atualidade estas atividades interferem negativamente na forma e no conteuacutedo da
atividade proacutepria da esfera poliacutetica ndash isto eacute na accedilatildeo Em razatildeo disso uma anaacutelise
seacuteria da poliacutetica contemporacircnea deve contemplar as muacuteltiplas relaccedilotildees entre
essas atividades e as determinaccedilotildees delas decorrentes
3
Naquilo que diz respeito ao trabalho e agrave fabricaccedilatildeo Arendt acredita que
ambas as atividades apesar de serem constitutivas da esfera das necessidades
possuem diferenccedilas significativas entre si E analisando estas categorias em sua
pureza praacutetica observa que enquanto o trabalho satisfaz demandas bioloacutegicas da
vida humana produz bens de consumo natildeo-duraacuteveis ndash e que por isso estaacute
envolvido num processo ciacuteclico e interminaacutevel da produccedilatildeo material ndash a
fabricaccedilatildeo consiste naquela atividade responsaacutevel pela produccedilatildeo das demandas
materiais da vida humana que escapam agrave dimensatildeo meramente bioloacutegica em
seus termos os bens de consumo duraacuteveis Por conseguinte ao contraacuterio do
trabalho atividade ciacuteclica interminaacutevel repetitiva e cujo resultado satildeo produtos
desprovidos de durabilidade e da identidade do produtor a fabricaccedilatildeo constitui-se
originalmente de atividades cujo iniacutecio meio e fim satildeo perfeitamente delineados e
cujos resultados aleacutem de duraacuteveis expressam a individualidade de quem os
produziu Entre outras coisas isto significa que comparada ao trabalho a
fabricaccedilatildeo constitui uma atividade mais humana (porque se encontra mais distante
da mera reproduccedilatildeo bioloacutegica) Eacute evidente que pelas caracteriacutesticas
discriminadas e antes do advento da induacutestria a fabricaccedilatildeo identificava-se agrave
atividade artesanal
Ademais na condiccedilatildeo de atividade produtora do mundo humano objetivo
duradouro e ldquocomum a todosrdquo a fabricaccedilatildeo tambeacutem eacute fundamental para a vida
puacuteblica para a liberdade pois se ldquoo termo puacuteblico significa o proacuteprio mundo na
medida em que eacute comum a todos noacutes e diferente do lugar que nos cabe dentro
delerdquo (Arendt 1998 p 52) a fabricaccedilatildeo ndash e seu produto a obra ndash eacute fundamental
para sua existecircncia E isto porque aquilo que eacute puacuteblico
tem a ver com o artefato humano com a fabricaccedilatildeo das matildeos humanas com os
negoacutecios realizados entre os que juntos habitam o mundo feito pelo homem
Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto
entre os que nele habitam em comum como uma mesa se interpotildee entre os que
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se assentam ao seu redor o mundo como todo intermediaacuterio ao mesmo tempo
separa e estabelece uma relaccedilatildeo entre os homens (Arendt 1998 p 52)
Num primeiro momento eacute fundamental entender que nem mesmo a
percepccedilatildeo do importante papel da fabricaccedilatildeo e evidentemente da obra em razatildeo
do caraacuteter humano (e natildeo meramente fisioloacutegico) daquela e da durabilidade desta
para a sustentaccedilatildeo material dos assuntos humanos concede ao Homo faber as
qualificaccedilotildees necessaacuterias para participar da vida puacuteblica da vida poliacutetica Na
verdade esta percepccedilatildeo da importacircncia da fabricaccedilatildeo para a vida puacuteblica serve
como um contraponto ainda mais niacutetido agrave condiccedilatildeo inferior do trabalho e agrave sua
problemaacutetica valorizaccedilatildeo no mundo moderno E isto porque sendo os produtos do
trabalho objetos de consumo raacutepido ligados agraves necessidades vitais (bioloacutegicas) e
sustentados por uma atividade incessante ela vecirc na atual valorizaccedilatildeo desta
atividade (trabalho) os fundamentos do produtivismo contemporacircneo cuja
caracteriacutestica central eacute a de submeter cada vez mais aspectos da produccedilatildeo ndash
inclusive a proacutepria fabricaccedilatildeo[2] ndash e da accedilatildeo agrave sua loacutegica agrave sua racionalidade
Assim em relaccedilatildeo ao mundo moderno
O ponto [central] natildeo eacute que pela primeira vez na histoacuteria os trabalhadores tenham
sido admitidos com direitos iguais na esfera puacuteblica mas sim que noacutes quase
obtivemos sucesso em nivelar todas as atividades humanas ao denominador
comum de assegurar as coisas necessaacuterias agrave vida e de produzi-las em abundacircncia
(Arendt 1998 p 126)
Natildeo eacute difiacutecil a partir do exposto perceber que eacute no crescente predomiacutenio
do trabalho marcado pela racionalidade produtivista e por praacuteticas vinculadas agraves
necessidades vitais que se assenta sua visatildeo de que eacute fundamental distinguirmos
esta atividade (o trabalho) da fabricaccedilatildeo dado que a construccedilatildeo de um verdadeiro
espaccedilo puacuteblico implica a delimitaccedilatildeo de um espaccedilo social especiacutefico para o
trabalho em sua separaccedilatildeo da fabricaccedilatildeo e na valorizaccedilatildeo das atividades que
possam fornecer sustentaacuteculo agravequele espaccedilo agrave esfera puacuteblica[3] ndash fabricaccedilatildeo e
accedilatildeo Por conseguinte somente a fabricaccedilatildeo produz as condiccedilotildees objetivas da
5
vida efetivamente humana produz uma espeacutecie de segunda natureza que
possibilita e daacute forma objetiva agraves relaccedilotildees entre os homens ou seja fornece a
base material que transcende as demandas fisioloacutegicas e ao mesmo tempo as
individualidades humanas (histoacuterica e espacialmente) sedimentando a vida em
sociedade a proacutepria vida humana[4]
A subsunccedilatildeo da produccedilatildeo dos objetos duraacuteveis[5] agrave loacutegica e agraves demandas
do Animal laborans ndash ou seja ao inesgotaacutevel ciclo produccedilatildeo-consumo ndash implica o
decliacutenio de um mundo humano objetivo e duraacutevel de um mundo imprescindiacutevel
para o desenvolvimento de uma vida efetivamente humana tanto no acircmbito
individualfamiliar quanto no coletivopoliacutetico Em razatildeo disso numa sociedade que
valoriza o trabalho em detrimento da fabricaccedilatildeo e com isso faz que as praacuteticas e
ideais que regem o trabalho predominem na produccedilatildeo de objetos o mundo
objetivo torna-se cada vez mais desqualificado para sustentar a proacutepria vida
humana[6]
Jaacute sabemos entretanto que as atividades da vita activa natildeo se resumem
ao trabalho e agrave fabricaccedilatildeo Haacute tambeacutem a accedilatildeo a mais elevada de suas
atividades Sinteticamente podemos defini-la como a uacutenica atividade livre e a
mediadora par excellence da plural relaccedilatildeo homem-homem cujo ambiente de
exerciacutecio eacute a esfera poliacutetica Eacute por meio da accedilatildeo e do discurso que a explicita (isto
eacute que torna possiacutevel o debate para aclarar e legitimar a proacutepria finalidade e os
meios da accedilatildeo do agente ou agentes poliacuteticos) que os homens relacionam-se
como seres livres natildeo vinculados a demandas materiais e portanto natildeo tendo
por objeto de sua atividade o mundo material mas a si mesmos (indiviacuteduos e
gecircnero humano) e a suas autopostas preocupaccedilotildees com os bens comum e
individual
Ainda no que diz respeito agrave accedilatildeo Arendt observa que se a esfera poliacutetica
relaciona os homens como iguais sendo cada individualidade dotada dos mesmos
direitos que as outras ndash primordialmente dos direitos de agir e discursar ndash este
6
relacionamento soacute eacute possiacutevel porque apesar de iguais em direitos os homens satildeo
diferentes entre si
Se os homens natildeo se distinguissem se cada ser humano natildeo diferisse de todos
os que existiram existem ou viratildeo a existir eles natildeo necessitariam da fala ou da
accedilatildeo para se fazerem entender Sinais e sons seriam suficientes para comunicar
suas necessidades e desejos imediatos e idecircnticos (Arendt 1998 p 176)
Se portanto sob a condiccedilatildeo de igualdade juriacutedica os homens se
relacionam de fato apenas porque satildeo diferentes entre si eacute por meio do discurso e
da accedilatildeo que esta diferenccedila pode vir agrave tona visto que ldquoEacute com palavras e atos que
nos inserimos no mundo humano e esta inserccedilatildeo eacute como um segundo
nascimento no qual confirmamos e assumimos o fato nu bruto do nosso
aparecimento fiacutesico originalrdquo (Arendt 1998 pp 176-7) Tal nascimento em vez de
produzir algo que eacute preacute-ideado pode ser refeito eou consertado aleacutem de carregar
em si as marcas do indiviacuteduo que o plasmou resultando numa produccedilatildeo anocircnima
irreversiacutevel e que aleacutem do mais traz em si forte dose de imprevisibilidade jaacute que
a pluralidade de indiviacuteduos o debate de ideacuteias e a realizaccedilatildeo destas nos negoacutecios
humanos (isto eacute natildeo em objetos mas em indiviacuteduos dotados de razatildeo) natildeo
permitem o controle sobre os resultados da accedilatildeo nos mesmos moldes a que estaacute
sujeito por exemplo o objeto nas matildeos do artesatildeo
Eacute esta inseguranccedila em relaccedilatildeo aos seus resultados que desde a
Antiguumlidade segundo Arendt motiva os seres humanos a tomarem a fabricaccedilatildeo
por modelo para a accedilatildeo Esta substituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeo ndash ou o que daacute
no mesmo uma accedilatildeo inspirada no modus operandi da fabricaccedilatildeo ndash visando a
aumentar o controle sobre os negoacutecios humanos natildeo eacute uma caracteriacutestica
especiacutefica da modernidade haacute muito a fabricaccedilatildeo constitui uma espeacutecie de
modelo desvirtuador da atividade tiacutepica da esfera poliacutetica da accedilatildeo[7] E a este
respeito o mundo moderno se destaca pelo fato de ter passado a valorizar as
atividades que nas eacutepocas anteriores eram relegadas a um plano secundaacuterio
como o trabalho e a fabricaccedilatildeo De acordo com Arendt mesmo que em inuacutemeros 7
casos tomassem a fabricaccedilatildeo por modelo para a accedilatildeo as eacutepocas anteriores agrave
modernidade valorizavam a accedilatildeo e a contemplaccedilatildeo como atividades propriamente
humanas ndash o homem era reconhecido como Animal rationale No mundo moderno
as coisas tomaram outro rumo
a convicccedilatildeo de que o homem pode conhecer somente aquilo que ele faz de que
suas capacidades supostamente superiores dependem da fabricaccedilatildeo e de que ele
eacute portanto primariamente um Homo faber e natildeo um Animal rationale trouxe agrave
tona as implicaccedilotildees muito mais antigas da inerente violecircncia em todas as
interpretaccedilotildees das esferas de negoacutecios humanos como uma esfera de fabricaccedilatildeo
(Arendt 1998 p 228)
Assim aleacutem de ressaltar uma suposta confusatildeo entre trabalho e fabricaccedilatildeo
permitindo o predomiacutenio daquele em espaccedilos antes restritos apenas agrave atividade
do artesatildeo ndash e atraveacutes dele a subsunccedilatildeo dos ideais e praacuteticas do Homo faber aos
do Animal laborans ndash Arendt enfatiza que o mundo moderno tambeacutem acabou
confundindo a fabricaccedilatildeo com a accedilatildeo o que fez com que a primeira se tornasse o
modelo da praacutexis poliacutetica da accedilatildeo Nessa ldquosubstituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeordquo
(Arendt 1998) o Animal rationale cedeu seu lugar ao Homo faber ndash ou melhor
incorporou as caracteriacutesticas deste ndash e com isso a accedilatildeo passou a ter como
principal referecircncia o modus operandi da fabricaccedilatildeo (work) da atividade produtiva
da obra[8] Isso significa que a racionalidade orientada para a adequaccedilatildeo de meios
a fins determinados preacute-ideados ndash ou seja a racionalidade que deve conduzir a
organizaccedilatildeo dos meios de acordo com um ldquomodelordquo (mental conceitual) a ser
objetivado ndash tiacutepica da fabricaccedilatildeo tambeacutem estaacute presente de maneira decisiva na
accedilatildeo na praacutexis poliacutetica do mundo moderno Ou seja justamente na accedilatildeo que eacute
(ou ao menos deveria ser) a atividade humana que estabelece a relaccedilatildeo entre
indiviacuteduos livres e iguais na esfera puacuteblica na vida poliacutetica
Enfim essa substituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeo expressa que a violecircncia
tatildeo necessaacuteria ao Homo faber em sua luta para arrancar da natureza os
elementos (os materiais) sobre os quais incide sua atividade e com isso adequaacute-
8
los a fins natildeo-naturais torna-se tambeacutem necessaacuteria e valorizada nesta atividade
(uma espeacutecie de accedilatildeo corrompida) que toma a fabricaccedilatildeo por modelo
II Poliacutetica e violecircncia
Ao considerar a violecircncia detentora um papel decisivo na fabricaccedilatildeo e por
meio dela na accedilatildeo especialmente na transiccedilatildeo de uma formaccedilatildeo social a outra
Arendt considera a poliacutetica no mundo moderno agraves voltas com um problema
fundamental toma por caracteriacutestica da accedilatildeo aquilo que na verdade constitui
caracteriacutestica da fabricaccedilatildeo E eacute justamente no cerne dessa confusatildeo conceitual
que segundo ela o pensamento de Marx se encontra ndash mais constitui um caso
exemplar Sendo assim deixemos que nesse aspecto decisivo Arendt fale por si
mesma
A afirmaccedilatildeo de Marx de que a ldquoviolecircncia eacute a parteira de toda velha sociedade
prenhe de uma sociedade novardquo ou seja de toda mudanccedila histoacuterica ou poliacutetica
somente sintetiza a convicccedilatildeo dominante em toda a era moderna e deduz as
consequumlecircncias de sua crenccedila mais iacutentima de que a histoacuteria eacute ldquofeitardquo pelo homem
do mesmo modo que a natureza eacute ldquofeitardquo por Deus
Como tem sido persistente e bem sucedida a transformaccedilatildeo da accedilatildeo em
modalidade da fabricaccedilatildeo eacute facilmente atestada por toda terminologia da teoria e
do pensamento poliacutetico a qual torna quase impossiacutevel discutir esses assuntos sem
que se utilize a categoria de meios e fins e se raciocine em termos de
instrumentalidade (Arendt 1998 pp 228-9)
Num artigo de 1953 intitulado ldquoReligiatildeo e poliacuteticardquo logo apoacutes apoiar-se em
Karl Mannheim para ressaltar a dimensatildeo ideoloacutegica do marxismo e desqualificar
a abordagem acerca da relaccedilatildeo entre ser e consciecircncia por este preconizada[9]
Arendt diz
9
A relutacircncia de Marx em levar a seacuterio ldquoo que cada eacutepoca diz sobre si e imagina
serrdquo derivava de sua convicccedilatildeo de que a accedilatildeo poliacutetica era basicamente violecircncia e
que a violecircncia era a parteira da histoacuteria Tal convicccedilatildeo natildeo se devia agrave ferocidade
gratuita de um temperamento revolucionaacuterio mas tem seu lugar na filosofia da
histoacuteria de Marx que sustenta que a histoacuteria representada pelos homens na
modalidade da falsa consciecircncia isto eacute na modalidade das ideologias pode ser
feita pelos homens tendo eles plena consciecircncia do que estatildeo fazendo Eacute
justamente esse lado humanista dos ensinamentos de Marx que o levou a insistir
no caraacuteter violento da accedilatildeo poliacutetica ele via o fazer da histoacuteria em termos de
fabricaccedilatildeo o homem histoacuterico era para ele basicamente Homo faber A fabricaccedilatildeo
de todas as coisas feitas pelo homem implica necessariamente alguma violecircncia
que incidiraacute sobre a coisa que se torna a mateacuteria baacutesica do que foi fabricado
(Arendt 2002 pp 62-3)
Marx assim teria compreendido a histoacuteria como resultado do ldquofazerrdquo
humano como resultado de atos teleoloacutegicos que nos moldes da atividade
artesanal ndash da fabricaccedilatildeo ndash fazem do ldquoHomemrdquo ndash e natildeo dos homens ndash o artesatildeo
consciente de sua histoacuteria (cf Canovan 1998) Eacute como se Marx tivesse
transformado o processo histoacuterico resultante de muacuteltiplas interaccedilotildees dos seres
humanos entre si (e simultaneamente destes com a natureza) num processo
instrumental Ou dito de outro modo eacute como se tal qual um Hegel materialista
ele concebesse a proacutepria sociedade como um ser demiuacutergico dotado de
capacidades e formas de atuaccedilatildeo semelhantes agravequelas do indiviacuteduo singular que
substituiacutesse o Espiacuterito e o seu processo de sua autoconscientizaccedilatildeo pelos
proacuteprios homens ndash ou pelo ldquoHomemrdquo ndash e seus atos de ldquofazer a histoacuteriardquo de
ldquofabricarrdquo a sociedade ideal (comunista) Neste caso a consciecircncia de classe
cumpriria o mesmo papel que a hegeliana ldquoastuacutecia da Razatildeordquo De qualquer modo
em ambos os casos natildeo satildeo exatamente os homens em sua multiplicidade de
experiecircncias e expectativas que agem em parte de maneira coordenada e
consciente e em parte conflitiva e inconscientemente mas ao contraacuterio eacute o
ldquoHomemrdquo a humanidade unificada que age de maneira coordenada consciente e
controlada como se fosse o ldquoartesatildeo do mundordquo
10
A visatildeo marxista da atividade revolucionaacuteria seria entatildeo o resultado da
imputaccedilatildeo inconsciente de qualidades da fabricaccedilatildeo agrave accedilatildeo a qual por meio da
violecircncia[10] e orientada pelos mesmos criteacuterios de meios e fins que regem a
fabricaccedilatildeo faria os homens efetuarem o parto da nova sociedade cujo rebento
encontra-se emaranhado nas iacutentimas contradiccedilotildees da velha formaccedilatildeo social Seria
justamente esta exaltaccedilatildeo da violecircncia da ldquouacuteltima ratiordquo tiacutepica das relaccedilotildees entre
os baacuterbaros e caracteriacutestica da condiccedilatildeo do escravo[11] a demonstraccedilatildeo de que
em Marx predomina uma ldquohostilidade antitradicional ao discursordquo agrave busca do
consenso agrave poliacutetica (Arendt 1972 p 50)
Nesse contexto o pensamento poliacutetico de Marx representa segundo Arendt
o fim de uma trajetoacuteria do pensamento poliacutetico tradicional iniciada pelas filosofias
de Platatildeo e Aristoacuteteles Pois com esses pensadores a filosofia teria num duplo
salto se distanciado dos assuntos humanos onde reina a confusatildeo e a ilusatildeo
para retornar a eles ilustrada pela razatildeo isto eacute ldquopara [esta a razatildeo] impor seus
padrotildees aos assuntos humanosrdquo (Arendt 1972 p 44) fato altamente positivo que
teria demarcado o iniacutecio de uma fecunda relaccedilatildeo entre a filosofia e os assuntos
humanos entre ela e a poliacutetica Enquanto com Marx desgraccediladamente teria
acontecido o oposto visto que ele ldquorepudiou a Filosofia para poder lsquorealizaacute-larsquo na
poliacuteticardquo (Arendt 1972 p 44) Para ele em vez de a filosofia permanecer uma
espeacutecie de reflexatildeo sistemaacutetica e criacutetica constituiacuteda de certo modo apartada do
processo histoacuterico ela passou a emanar da proacutepria histoacuteria ldquoou antes a
consciecircncia poliacutetica [deriva] da consciecircncia histoacutericardquo (Arendt 1972 p 114) E
ainda segundo Arendt um dos fundamentos desta concepccedilatildeo reside na
identificaccedilatildeo estabelecida no mundo moderno entre sentido e fim Por meio dela
o sentido como termo que expressa o significado de um acontecimento ndash portanto
resultante de uma explicaccedilatildeo post factum ndash foi transformado em fim de
significado de acontecimentos passados passou a preacute-idear situaccedilotildees futuras
Com isso as accedilotildees individuais e instrumentais (realizadas com a finalidade de)
que explicam o processo de trabalho e seus resultados passaram a servir de
modelo para a explicaccedilatildeo do porquecirc de o indiviacuteduo (eou a sociedade) ser o que eacute
11
e portanto executar esta atividade (eou possuir tais caracteriacutesticas) ndash ie como
se o presente fosse a manifestaccedilatildeo ldquoaqui e agorardquo da necessidade imanente de
atos passados Enfim ao considerar as sociedades modernas degradadoras do
sentido em fim Arendt avalia que o marxismo parte integrante desta modernidade
levou esta degradaccedilatildeo agraves uacuteltimas consequumlecircncias e assim transformou a histoacuteria
em teleologia
Pois bem se ainda segundo Arendt a teoria da histoacuteria como fabricaccedilatildeo
natildeo eacute exclusiva do pensamento marxista mas constitui uma caracteriacutestica do
pensamento poliacutetico moderno aquele se distingue
de todas as demais teorias em que a noccedilatildeo de ldquofazer a histoacuteriardquo encontrou abrigo
somente [pelo] fato de apenas ele ter percebido que se se toma a histoacuteria como o
objeto de um processo de fabricaccedilatildeo ou elaboraccedilatildeo deve sobrevir um momento
em que esse objeto eacute completado e que desde que se imagina ser possiacutevel fazer
a histoacuteria natildeo se pode escapar agrave consequumlecircncia de que haveraacute um fim para a
histoacuteria (Arendt 1972 p 114)
Para que entatildeo os marxistas respondem aos apocaliacutepticos que
advogam o fim das ideologias e da histoacuteria se com um golpe de matildeo o proacuteprio
Marx eliminou a ambas Nesta visatildeo tal como o objeto que inicialmente preacute-
ideado na cabeccedila do artesatildeo completa seu ciclo de produccedilatildeo torna-se objetivo
finda a histoacuteria chegaria ao seu fim com a realizaccedilatildeo da filosofia pelo proletariado
ndash nos invertidos termos hegelianos seria este o momento da autoconscientizaccedilatildeo
do Espiacuterito da plena identificaccedilatildeo entre conceito e objeto entre pensamento e
realidade ndash fato que demarcaria o controle da vida humana nos mesmos moldes
em que o artesatildeo domina a mateacuteria a ser plasmada e lhe fornece uma forma final
Mas se Marx eacute tratado como uma espeacutecie de Hegel materialista eacute certo que
as ideacuteias de ambos natildeo satildeo idecircnticas Tanto que em oposiccedilatildeo agrave sua
predecessora hegeliana a coruja de Minerva marxiana natildeo alccedila vocirco somente ao
crepuacutesculo ela capta conceitualmente as condiccedilotildees em que este pode ocorrer e
12
assim auxilia na sua realizaccedilatildeo Outrossim mais importante do que saber se esta
caracteriacutestica do pensamento de Marx eacute adequadamente entendida por Arendt eacute
saber que para ela esta caracteriacutestica expressa um determinismo que torna
supeacuterflua qualquer discussatildeo sobre as finalidades e o conteuacutedo dos processos
sociais dado que a histoacuteria fabricada modelada como se fosse um objeto pelo
proletariado demiuacutergico torna a palavra o discurso um mero instrumento de
justificaccedilatildeo ideoloacutegica de ideacuteias preconcebidas a serem materializadas Foi
partindo desses pressupostos que Arendt pocircde afirmar
O que era entatildeo inexplicaacutevel na histoacuteria [a saber os muacuteltiplos interesses
conflitantes que tornam a accedilatildeo poliacutetica ineficaz no alcance de seus objetivos e a
existecircncia de um sentido no processo histoacuterico] passa agora a ser visto como o
reflexo de um significado que seguramente era tanto um produto humano quanto o
desenvolvimento teacutecnico do mundo O problema de humanizar os assuntos
poliacutetico-histoacutericos resumia-se consequumlentemente em descobrir como dominar
nossas proacuteprias accedilotildees assim como dominamos nossa capacidade produtiva ou
em outras palavras como ldquofazerrdquo histoacuteria assim como fazemos outras coisas Uma
vez que isso seja alcanccedilado com a vitoacuteria do proletariado natildeo precisaremos mais
de ideologias Mas ateacute laacute todas as accedilotildees poliacuteticas preceitos legais e
pensamentos espirituais continuaratildeo escondendo os motivos inconfessos de uma
sociedade que somente finge agir politicamente mas que na verdade ldquofaz
histoacuteriardquo ainda que de uma maneira inconsciente isto eacute natildeo-humana (Arendt
2002 p 63)
Natildeo constituindo a esfera do pleno exerciacutecio do debate de ideacuteias entre
indiviacuteduos livres e iguais ndash indiviacuteduos que por meio do uso intenso da palavra do
discurso do muacutetuo esclarecimento estabelecem consensos mais ou menos gerais
sobre os fundamentos e as finalidades da accedilatildeo ndash a poliacutetica atual constitui um
simulacro da poliacutetica autecircntica Tal como a entende Arendt esta constitui uma
esfera (puacuteblica) que antes de qualquer outra coisa deve estar apartada da
violecircncia na medida em que esta nega a palavra o discurso o debate e portanto
a accedilatildeo Definindo assim o que satildeo meios e fins o que eacute essencial e o que eacute
imposiccedilatildeo extriacutenseca agrave poliacutetica Arendt reitera que ldquoo poder eacute de fato a essecircncia
13
de todo governo mas natildeo a violecircnciardquo (Arendt 1994 p 40) Por conseguinte
sendo de natureza instrumental a violecircncia ldquocomo todos os meios sempre
depende da orientaccedilatildeo e da justificaccedilatildeo pelo fim que almeja E aquilo que
necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser a essecircncia de nadardquo (Arendt
1994 p 41) O poder encontra sua legitimidade no passado a violecircncia se
justifica pelas consequumlecircncias futuras aquele pela sua constituiccedilatildeo esta pelos
seus objetivos Em razatildeo disso ldquoa violecircncia pode ser justificaacutevel mas nunca seraacute
legiacutetimardquo (Arendt 1994 p 41) Enfim ao vincularem a violecircncia ao poder as
concepccedilotildees poliacuteticas hegemocircnicas dentre elas o marxismo demonstram a
incompreensatildeo de que aqueles satildeo na verdade opostos ldquoonde um domina
absolutamente o outro estaacute ausenterdquo (Arendt 1994 p 44)
Para natildeo cindir a argumentaccedilatildeo criacutetica e com isso tornaacute-la
demasiadamente prolixa retornaremos mais adiante a estas afirmaccedilotildees de
Hannah Arendt sobre poliacutetica e violecircncia Por ora apoacutes termos descrito algumas
categorias centrais do pensamento arendtiano e em especiacutefico os fundamentos
de sua criacutetica agrave relaccedilatildeo entre poliacutetica e violecircncia em Marx passemos na mesma
sequumlecircncia de ideacuteias desenvolvida ateacute aqui ao confronto dessas reflexotildees com
aquelas que a nosso ver correspondem adequadamente tanto ao corpo quanto
ao espiacuterito da obra marxiana
III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
Consideramos desnecessaacuterio demonstrar ad nauseam como a concepccedilatildeo
de trabalho em Marx difere substancialmente daquelas atividades que Arendt
denomina pelos vocaacutebulos trabalho e fabricaccedilatildeo pois para o nosso objetivo
basta que o realizemos apenas em suas linhas gerais Assim em primeiro lugar eacute
necessaacuterio relembrar que ao contraacuterio da concepccedilatildeo arendtiana na obra de Marx
o trabalho natildeo consiste numa atividade que nos vincularia mais ao mundo dos
animais do que ao dos seres humanos propriamente ditos Para ele muito distante
14
de qualquer ilusatildeo acerca de uma vida sem trabalho[12] esta atividade constitui um
momento efetivamente fundante e fundamental da vida humana sem a qual aiacute
sim natildeo nos distinguiriacuteamos em absolutamente nada dos proacuteprios animais[13] Em
termos precisos podemos dizer que o animal natildeo se relaciona com a natureza
ele apenas vive nela eacute sua parte integrante[14] natildeo se distinguindo dela como um
ser consciente o animal eacute portanto incapaz de estabelecer uma mediaccedilatildeo
regulada conscientemente controlada com a natureza (Marx 1985 p 149)
apenas respondendo com maior ou menor labilidade agraves determinaccedilotildees e agraves
constantes mudanccedilas de seu haacutebitat O ser humano por sua vez age de maneira
preacute-ideada em sua atividade metaboacutelica pois em todos os momentos do processo
de trabalho lhe ldquoeacute exigida a vontade orientada a um fimrdquo (Marx 1985 p 150)
Assim o sujeito que trabalha ldquonatildeo apenas efetua uma transformaccedilatildeo da forma da
mateacuteria natural realiza ao mesmo tempo na mateacuteria natural seu objetivo que ele
sabe que determina como lei a espeacutecie e o modo de sua atividade e ao qual tem
de subordinar sua vontaderdquo (Marx 1985 p 150) Natildeo sendo portanto a mera
expressatildeo de determinaccedilotildees ou epifenocircmenos bioloacutegicos o trabalho eacute uma
atividade na qual inevitavelmente entrelaccedilam-se o pensar e o fazer a
consciecircncia e a accedilatildeo com aquela orientando esta para transformar a mateacuteria com
vistas a dar-lhe uma forma adequada agrave satisfaccedilatildeo de alguma necessidade
humana A ideacuteia mediada pelo trabalho cristaliza-se no objeto objeto que longe
de ser meramente natural eacute a manifestaccedilatildeo material da subjetividade humana
posto que soacute existe em razatildeo desta Tanto que no final temos que ldquoo trabalho
estaacute objetivado e o objeto trabalhadordquo (Marx 1985 p 151) num mesmo ato a
subjetividade exteriorizou-se e a materialidade tornou-se subjetiva[15] E eacute claro
como esta objetivaccedilatildeo eacute resultado de accedilotildees conscientes o metabolismo dos
homens em relaccedilatildeo agrave natureza eacute muito mais dinacircmico mutante do que aquele
efetuado pelos animais resultando em formas materiais e sociais
permanentemente alteradas ocorrendo a mesma coisa com a proacutepria
subjetividade humana
15
Sendo uma atividade humanamente produtiva o trabalho natildeo eacute apenas a
relaccedilatildeo do homem com a natureza eacute tambeacutem uma relaccedilatildeo que ocorre entre os
proacuteprios homens ndash e verdadeiramente como trabalho soacute existe a partir desta
relaccedilatildeo Ainda em sua juventude num texto seminal para a elaboraccedilatildeo de suas
reflexotildees posteriores Marx nos diz que o homem ldquosoacute eacute um ser consciente quer
dizer a sua vida constitui para ele um objeto porque eacute um ser geneacuterico
Unicamente por isso eacute que sua atividade surge como atividade livrerdquo (Marx 1985
p 165) Se natildeo fosse um ser social geneacuterico produto e produtor de si e do
gecircnero o ser humano natildeo possuiria as faculdades (consciecircncia linguagem) sem
as quais paradoxalmente o proacuteprio trabalho natildeo existiria E que simultaneamente
como dissemos permitem o aprimoramento e a expansatildeo das fronteiras da vida
humana (individual e coletiva) para muito aleacutem daquelas a que estatildeo restritos os
seres vivos naturais[16]
Nesse caso parece-nos oacutebvio que eacute completamente irrelevante saber se
uma atividade produtiva resulta em produtos mais ou menos duraacuteveis ndash por
exemplo em alimentos ou objetos do mobiliaacuterio ndash para classificaacute-la como estando
mais proacutexima ou mais distante da vida propriamente humana Seja numa
sociedade especiacutefica ou ao longo da histoacuteria humana um produto pode durar mais
ou menos tempo devido a um sem-nuacutemero de fatores tais como os materiais e a
tecnologia empregados as relaccedilotildees sociais sob as quais foi produzido as classes
eou grupos sociais que o utilizaratildeo ndash definindo por exemplo a velocidade e o
perfil de sua obsolescecircncia ou seja se esta eacute real materialmente efetiva ou
socialmente condicionada ndash entre outros e natildeo apenas devido agrave maior ou menor
proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica dos indiviacuteduos A rigor a produccedilatildeo de um
alimento ou medicamento por meio de procedimentos complexos e sofisticados
mas cujo consumo eacute quase imediato (para Arendt ldquoproduto do trabalhordquo)
certamente expressa niacuteveis mais elevados de humanizaccedilatildeo do que a produccedilatildeo de
uma tosca mesa de madeira que perdura seacuteculos passando de geraccedilatildeo a
geraccedilatildeo (Marx 1985 ldquoproduto da fabricaccedilatildeordquo)
16
Essas observaccedilotildees acerca da relaccedilatildeo entre as atividades produtivas e a
durabilidade de suas produccedilotildees natildeo significa em hipoacutetese alguma que a
durabilidade ou natildeo de um produto seja irrelevante para os indiviacuteduos e a
sociedade em geral ateacute mesmo porque os produtos satildeo elementos constitutivos e
condicionantes de certas caracteriacutesticas dos processos de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo
das formaccedilotildees sociais Significa apenas que per se ela natildeo eacute relevante para
mensurar o niacutevel de humanizaccedilatildeo da atividade e das qualificaccedilotildees subjetivas nela
envolvidas Assim nas sociedades capitalistas por exemplo saber se um
determinado objeto constitui parte do maquinaacuterio ou da edificaccedilatildeo (capital fixo) ou
entatildeo se eacute apenas insumo mateacuteria-prima ou meio de subsistecircncia (capital
circulante) eacute significativo prioritariamente em razatildeo de que as proporccedilotildees de seus
respectivos usos e o seu periacuteodo de rotaccedilatildeo afetam de maneira decisiva as taxas
de lucro do capital investido Aleacutem do mais ldquoo fato de um valor de uso aparecer
como mateacuteria-prima meio de trabalho ou produto depende totalmente de sua
funccedilatildeo determinada no processo de trabalho da posiccedilatildeo que nele ocupa e com a
mudanccedila dessa posiccedilatildeo variam essas determinaccedilotildeesrdquo (Marx 1985 p 152)
Quase desnecessaacuterio dizer que tal posiccedilatildeo tambeacutem varia de acordo com o niacutevel
de desenvolvimento das forccedilas produtivas e das relaccedilotildees sociais que constituem a
sociedade em questatildeo Em siacutentese se natildeo podemos definir um objeto como
sendo o resultado de uma atividade inferior ou superior na hierarquia das
atividades humanas (da vita activa arendtiana) devido agrave sua durabilidade[17] ou agrave
sua proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica (agrave manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo do corpo)
qualquer tentativa de mensuraccedilatildeo sob este prisma nos parece completamente
arbitraacuteria inclusive eacute claro a que se funda na distinccedilatildeo arendtiana entre trabalho
e fabricaccedilatildeo
Enfatizar estas caracteriacutesticas do trabalho tambeacutem eacute importante porque
contrariamente agraves qualificaccedilotildees inerentes a ele e agrave fabricaccedilatildeo que de acordo com
Arendt estatildeo diretamente relacionadas agraves qualidades do Animal laborans e do
Homo faber no pensamento marxiano inexiste qualquer menccedilatildeo a uma essecircncia
a-histoacuterica do trabalho isto eacute uma essecircncia que agrave revelia da forma societaacuteria em
17
que a atividade se realiza imprime agrave subjetividade daquele que o executa
inelutaacuteveis qualificaccedilotildees Muito ao contraacuterio As anaacutelises marxianas satildeo
profundamente ancoradas na historicidade dos fenocircmenos naturais e sociais
negando qualquer essencialismo em relaccedilatildeo ao trabalho ou a qualquer outra
atividade bem como ao indiviacuteduo ou grupo de indiviacuteduos que o executa Para
Marx ldquoa essecircncia humana natildeo eacute uma abstraccedilatildeo inerente ao indiviacuteduo singular
Em sua realidade eacute o conjunto das relaccedilotildees sociaisrdquo (Marx 1987 p 13) Por
conseguinte em aberta oposiccedilatildeo agraves proposiccedilotildees arendtianas afirmamos que o
produtivismo natildeo constitui uma caracteriacutestica inerente ao trabalho ndash que com a
ascensatildeo deste agrave esfera puacuteblica teria transbordado as fronteiras da vida privada e
se generalizado socialmente ndash mas sim uma caracteriacutestica que possui suas raiacutezes
nas formas de sociabilidade vigentes no mundo contemporacircneo sejam estas
formas capitalistas ou poacutes-capitalistas[18] Dito de outro modo se o trabalho
assalariado alienado constitui cada vez mais a forma predominante da atividade
produtiva e reprodutiva dos indiviacuteduos nestas sociedades tal desventura natildeo
decorre de uma essecircncia que seja inerente a ele tanto quanto agraves formas preteacuteritas
de trabalho e que tenha se desvencilhado na atualidade das amarras que
limitavam sua expansatildeo A raiz deste fenocircmeno reside no fato de o capital
constituir a relaccedilatildeo social baacutesica das sociedades assinaladas generalizando
aquela forma de trabalho E a propoacutesito do essencialismo produtivista do trabalho
em vaacuterias passagens de sua obra Marx nos mostrou as diferenccedilas existentes
entre as sociedades antigas e as modernas sociedades capitalistas Numa dessas
passagens ele lembra que
Entre os antigos natildeo encontramos uma uacutenica investigaccedilatildeo a propoacutesito de qual a
forma de propriedade etc que seria a mais produtiva que geraria o maacuteximo de
riqueza A riqueza natildeo constituiacutea o objetivo da produccedilatildeo A pesquisa sempre
era sobre qual o tipo de propriedade que geraria os melhores cidadatildeos (Marx
1975 p 80 grifos nossos)
Mesmo em seu acircmbito estritamente privado a propriedade natildeo estava
relacionada prioritariamente aos interesses egoiacutestas do indiviacuteduo mas eram os 18
interesses deste ndash e portanto o uso que fazia daquela ndash que estavam
circunscritos e condicionados pelos interesses da comunidade da qual fazia parte
por mais restrita que esta fosse em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo total Desse modo nestas
formaccedilotildees sociais as atividades produtivas natildeo eram movidas por uma ldquoinerenterdquo
racionalidade produtivista uma racionalidade cujo suposto transbordamento das
fronteiras privadas e o estabelecimento do domiacutenio sobre as outras atividades
caracterizariam ndash segundo Arendt ndash o mundo moderno Em relaccedilatildeo a este sua
principal caracteriacutestica consiste na centralidade na generalizaccedilatildeo e no crescente
predomiacutenio do capital no conjunto das relaccedilotildees sociais Enfim eacute justamente esta
centralidade do capital e suas consequumlecircncias que produz o assalariamento
generalizado dos indiviacuteduos e a subsunccedilatildeo da reproduccedilatildeo socioeconocircmica como
um todo agrave loacutegica produtivista
Numa pequena digressatildeo visando apenas a estreitar as margens de accedilatildeo
das leituras vulgares do marxismo eacute necessaacuterio ressaltar que esta afirmaccedilatildeo da
centralidade do capital nas relaccedilotildees sociais contemporacircneas e do espraiamento
de sua influecircncia pela totalidade social natildeo implica reducionismo econocircmico Na
verdade ela significa apenas a explicitaccedilatildeo de caracteriacutesticas inerentes ao capital
cuja tendecircncia a subsumir a multiplicidade de dimensotildees da vida humana agrave sua
loacutegica acumulatoacuteria expansionista eacute um fato incontestaacutevel ontologicamente
enraizado e racionalmente apreensiacutevel e natildeo um grave equiacutevoco teoacuterico de um
pensamento incapaz de atentar para a complexidade do real Eacute nesse sentido que
comentando a famosa proposiccedilatildeo de Marx segundo a qual ldquoNatildeo eacute a consciecircncia
dos homens que determina o seu ser mas ao contraacuterio eacute o seu ser social que
determina sua consciecircnciardquo[19] (Marx 1982 p 25) Lukaacutecs afirma ldquonesse trecho o
mundo das formas de consciecircncia e seus conteuacutedos natildeo eacute visto como um produto
direto da estrutura econocircmica mas da totalidade do ser social A determinaccedilatildeo da
consciecircncia pelo ser social portanto eacute entendida em seu sentido mais geralrdquo
(Lukaacutecs 1979 p 41) ndash e natildeo como expressatildeo direta mecacircnica e restrita dos
processos econocircmicos
19
Neste toacutepico ateacute o momento detivemo-nos nas distintas concepccedilotildees
acerca do trabalho presentes em Arendt e Marx O caso poreacutem eacute que apesar de
significativas tais concepccedilotildees natildeo circunscrevem sua influecircncia agraves fronteiras
econocircmicas mas extravasam a economia e deitam raiacutezes na totalidade de suas
reflexotildees sobre a vida humana Assim se Arendt tem razatildeo em afirmar que para
Marx o trabalho ndash e a fabricaccedilatildeo apesar da irrelevacircncia desta distinccedilatildeo (trabalho x
fabricaccedilatildeo) no quadro conceitual marxiano ndash eacute tratado como uma atividade
teleoloacutegica cujas relaccedilotildees que estabelece com as outras atividades constitutivas
da vida humana satildeo fundamentais para delinear as caracteriacutesticas da totalidade
social nada justifica sua transposiccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos do trabalho
(concreto) para a concepccedilatildeo de histoacuteria marxiana No entanto eacute justamente isto
que ela faz ao afirmar que em Marx a histoacuteria eacute entendida como um processo
similar ao da fabricaccedilatildeo do artesanato um processo que contemporaneamente
exige a intervenccedilatildeo consciente de um sujeito demiuacutergico ndash o proletariado ndash para
plasmar a nova forma societaacuteria tal como o artesatildeo faz com sua mateacuteria-prima E
igualmente ao afirmar que do mesmo modo que a materializaccedilatildeo do objeto preacute-
ideado expressa o fim do processo gerido pelo artesatildeo a realizaccedilatildeo da sociedade
ldquopreacute-ideadardquo pelo proletariado significaria o fim da histoacuteria
Ora uma das questotildees mais complexas do pensamento social fruto de
inuacutemeras polecircmicas teorias e tratados ao longo dos uacuteltimos seacuteculos ndash
especialmente apoacutes o advento da sociologia ndash eacute a articulaccedilatildeo das accedilotildees
individuais e a reproduccedilatildeo da totalidade social E mesmo certos da impossibilidade
de adentrar no emaranhado de questotildees suscitado pelo tema natildeo podemos omitir
a informaccedilatildeo de que uma leitura criteriosa dos textos marxianos demonstra sem
grande dificuldade a improcedecircncia das criacuteticas de Hannah Arendt De modo
algum condiz com o ldquoespiacuteritordquo da obra marxiana a identificaccedilatildeo da reproduccedilatildeo
social como um todo e nem dos processos de transiccedilatildeo de uma forma societaacuteria a
outra ao modus operandi do trabalho O que natildeo significa por sua vez que a
instabilidade econocircmica e social natildeo fosse objeto de suas preocupaccedilotildees A bem
da verdade sendo o primeiro a entender a centralidade do trabalho e suas
20
consequumlecircncias na produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana Marx se assenhoreou
desde os Manuscritos de 1844 de conhecimentos suficientemente significativos
para criticar em relaccedilatildeo agravequele aspecto inicialmente citado das relaccedilotildees entre
indiviacuteduo e sociedade tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo Assim em
vez da naturalizaccedilatildeo da histoacuteria humana ou da arbitrariedade da vontade e da
razatildeo em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmaccedilatildeo dos
seres humanos como autoprodutores de sua proacutepria histoacuteria e simultaneamente
uma criacutetica agrave hipostasia das potencialidades da razatildeo e das forccedilas humanas nesta
autoproduccedilatildeo Invariavelmente suas anaacutelises reiteram que ldquoOs homens fazem
sua proacutepria histoacuteria mas natildeo a fazem como querem natildeo a fazem sob
circunstacircncias de sua proacutepria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam
diretamente legadas e transmitidas pelo passadordquo (Marx 1986 p 17 grifos
nossos) Nos dias atuais natildeo eacute difiacutecil perceber como por si soacute esta frase nos
mostra quatildeo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e
da realpolitik que cada qual ao seu modo como faces de uma mesma moeda
dominam os discursos poliacuteticos e econocircmicos em voga
Ainda no que diz respeito agrave questatildeo do sujeito demiuacutergico e do finalismo
histoacuterico eacute necessaacuterio que se entenda que mesmo em sua fastidiosa reproduccedilatildeo
cotidiana o trabalho eacute sempre um ato de criaccedilatildeo criaccedilatildeo natildeo apenas de coisas
novas de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma
humanamente apropriada mas criaccedilatildeo da proacutepria subjetividade humana que se
renova a partir das experiecircncias possibilitadas pelos meios e resultados de sua
produccedilatildeo e pelas relaccedilotildees sociais que os envolvem Tendo em mente esta
dinacircmica intriacutenseca agrave atividade vital dos seres humanos e ao mesmo tempo o
caraacuteter que para Marx a totalidade do real[20] assume como concreto pensado
(Marx 1982 p 15) nem a mais poderosa das inteligecircncias humanas tampouco o
concurso delas sob a forma do coletivo partidaacuterio pode em termos conceituais
apreender subsumir absolutamente o real ao pensamento ndash e muito menos
sujeitar as proacuteprias relaccedilotildees sociais a um controle assemelhado ao das teacutecnicas
produtivas
21
Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final
entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja
rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz
consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de
Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo
sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele
ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von
Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia
hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas
sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais
geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de
onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta
observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica
especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente
pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto
natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o
proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela
histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e
seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o
conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade
histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens
em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo
possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas
Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo
de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos
individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica
intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos
altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que
nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que
22
em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a
divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente
a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de
todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada
espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das
diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como
reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori
e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do
trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural
interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado
subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo
social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo
reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo
exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo
que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as
condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)
Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais
de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente
as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de
posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo
(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa
O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias
normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de
finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem
realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute
inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)
Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante
entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de
indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de
eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a
23
casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece
porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da
ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas
significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias
sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca
controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias
objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que
encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano
Em sua Ontologia do ser social ele afirma
Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada
vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as
decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da
totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse
conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa
relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso
porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o
movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da
histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas
etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local
tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que
tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de
transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que
satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do
que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e
consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso
aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)
Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos
individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha
ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias
mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade
oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem
econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo
24
social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve
ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que
historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os
processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem
uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle
destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou
A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a
anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo
incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do
trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer
controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma
infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo
autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais
entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda
organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a
sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)
Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus
ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os
limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de
intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal
qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos
uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana
(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do
pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os
limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir
para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta
ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo
No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras
experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao
nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25
pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas
relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi
drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente
desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses
capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de
regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo
resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica
reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas
experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da
humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua
loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a
accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com
seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social
passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees
marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de
regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos
moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a
consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria
redenccedilatildeo universal
O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos
ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as
acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels
salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido
um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o
movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)
O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se
realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico
do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana
de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo
comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o
26
comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a
forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo
nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao
desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma
sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o
comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no
fim da histoacuteria[22]
Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento
marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute
capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e
desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo
ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso
numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]
mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou
natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana
Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees
que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim
contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das
caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da
limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os
homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara
manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal
Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos
extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a
violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo
Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do
capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre
a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os
revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila
27
material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a
utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de
recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o
revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico
Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder
material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria
se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz
de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e
argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar
o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p
497)
Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos
(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o
discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista
muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)
que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no
encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as
sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece
ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um
discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos
constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das
individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades
eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano
mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em
campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar
plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de
sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar
sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio
colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel
convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e
28
culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem
respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes
subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]
Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)
de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio
das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto
natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive
atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie
No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias
naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o
crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda
escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-
sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo
contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da
incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees
materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos
afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus
processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos
inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos
da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades
humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute
o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses
trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)
Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas
produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa
penetrante passagem sobre o tema lemos
O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto
dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de
29
desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse
nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos
demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua
vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado
naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo
determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas
relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu
proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx
1973 pp 89-90)
Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos
sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a
centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos
aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza
e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham
vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a
intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o
equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente
econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida
social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da
permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas
relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito
da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas
universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada
das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os
homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria
mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das
forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo
adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos
homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia
O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se
compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30
neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo
do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo
pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso
histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive
violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste
(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso
resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na
sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os
antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por
ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses
das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos
Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica
natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades
reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a
estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico
Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da
cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios
juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da
sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela
que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de
duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que
complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo
concreto
O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em
oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem
de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade
desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem
leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da
realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na
comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na
31
sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como
meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes
estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser
profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real
eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem
eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma
soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de
uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)
Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e
imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos
privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma
revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res
publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja
eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da
proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a
violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica
consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a
accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a
vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma
alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento
Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a
essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o
proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua
violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre
dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo
de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a
perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a
violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt
segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser
a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente
32
pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o
antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as
relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de
supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano
Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder
dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se
faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de
violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o
poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa
revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades
viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento
humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo
profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma
resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como
desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo
Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado
como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos
do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute
poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de
propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)
Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de
dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao
contraacuterio
Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como
classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como
classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as
condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em
geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)
33
Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx
1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo
poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer
forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas
formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar
em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis
Quanto a isso eacute importante relembrar que
O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos
limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute
capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade
Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais
ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e
espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a
fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)
Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-
violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo
violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-
socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo
(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-
humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo
humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a
rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios
quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de
coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras
A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um
anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo
(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim
negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se
natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para
natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a
34
contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo
(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-
humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-
violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que
assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)
Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx
caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu
proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios
empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo
entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez
de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do
humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-
capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo
dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os
torna incompatiacuteveis[27]
IV Agrave guisa de conclusatildeo
Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de
Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda
distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de
Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do
pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas
que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio
da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente
sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir
de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns
aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram
envolvidos pela leitura arendtiana
35
Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem
ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem
duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho
Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e
estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do
solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo
neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade
com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se
reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos
intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro
porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento
marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual
formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco
em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e
Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para
o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e
revolucionaacuterios
Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo
XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho
caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos
revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso
imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob
muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes
natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca
demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo
sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas
proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os
argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro
sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas
ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma
36
verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto
que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute
cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido
V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio
1983
______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002
Notas
38
Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo
Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo
teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a
estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o
ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque
somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a
abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos
que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e
isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a
accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num
constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas
produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou
menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de
consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados
a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo
antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em
termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e
inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho
como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt
1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels
segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte
daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos
homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e
39
osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida
real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos
desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo
corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade
efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa
produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma
aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio
Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para
produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas
necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a
Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de
qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas
formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na
constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso
ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro
Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se
distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo
reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele
duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo
(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute
afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels
1986 p 19)
40
[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade
esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas
daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades
capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas
carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e
propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que
determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a
p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que
sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram
transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em
grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos
paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital
Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo
crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos
estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem
consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo
social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas
conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento
marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo
implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de
estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo
significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo
dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma
luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude
do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de
uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o
41
entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada
dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas
caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos
do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no
fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje
muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o
sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e
saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente
a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente
severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de
personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de
objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de
produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e
personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar
condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua
perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento
universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social
como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p
85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que
apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo
aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do
esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e
complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em
relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios
revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA
transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em
42
43
massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
-
indiviacuteduo-social E de acordo com o corpus de sua reflexatildeo pode-se presumir que
eacute nas diferenccedilas existentes na natureza dessas atividades e nas influecircncias de
umas sobre outras que respectivamente erguem-se a grandeza antiga e a
miseacuteria moderna da vida poliacutetica Por isso neste momento inicial eacute necessaacuterio
nos dirigirmos ao edifiacutecio principal de seu complexo teoacuterico para dele extrairmos
aqueles elementos que nos permitam analisar e entender adequadamente sua
singular visatildeo acerca do trabalho (e da fabricaccedilatildeo) e das caracteriacutesticas
potencialidades e limites da accedilatildeo poliacutetica em geral ndashespecialmente no mundo
contemporacircneo Somente partindo deste edifiacutecio de seus fundamentos e
peculiaridades eacute que poderemos entender o exato sentido de sua concepccedilatildeo
acerca da violecircncia na poliacutetica e por meio dela da criacutetica que desfia ao
pensamento de Marx
I Vita activa
Em inuacutemeras obras Hannah Arendt debruccedilou-se no desvendamento das
bases da poliacutetica contemporacircnea No entanto foi em A condiccedilatildeo humana que ela
desenvolveu aquilo que em seu pensamento mais se aproxima em termos
lukacsianos de uma anaacutelise ontoloacutegica do ser social portanto nesta obra ela
analisou mais profundamente as bases da poliacutetica e as inter-relaccedilotildees desta com
as outras atividades humanas Foi nela tambeacutem que explicitou a importacircncia
decisiva da distinccedilatildeo entre as trecircs atividades constitutivas da vita activa[1] (trabalho
fabricaccedilatildeo e accedilatildeo) para a explicitaccedilatildeo dos fundamentos da praacutetica poliacutetica E se eacute
faacutecil entender porque em seu edifiacutecio conceitual o trabalho (labor) e a fabricaccedilatildeo
(work) possuem um papel prioritaacuterio na produccedilatildeo dos fundamentos materiais da
vida social a mesma facilidade natildeo se repete quando analisamos como na
atualidade estas atividades interferem negativamente na forma e no conteuacutedo da
atividade proacutepria da esfera poliacutetica ndash isto eacute na accedilatildeo Em razatildeo disso uma anaacutelise
seacuteria da poliacutetica contemporacircnea deve contemplar as muacuteltiplas relaccedilotildees entre
essas atividades e as determinaccedilotildees delas decorrentes
3
Naquilo que diz respeito ao trabalho e agrave fabricaccedilatildeo Arendt acredita que
ambas as atividades apesar de serem constitutivas da esfera das necessidades
possuem diferenccedilas significativas entre si E analisando estas categorias em sua
pureza praacutetica observa que enquanto o trabalho satisfaz demandas bioloacutegicas da
vida humana produz bens de consumo natildeo-duraacuteveis ndash e que por isso estaacute
envolvido num processo ciacuteclico e interminaacutevel da produccedilatildeo material ndash a
fabricaccedilatildeo consiste naquela atividade responsaacutevel pela produccedilatildeo das demandas
materiais da vida humana que escapam agrave dimensatildeo meramente bioloacutegica em
seus termos os bens de consumo duraacuteveis Por conseguinte ao contraacuterio do
trabalho atividade ciacuteclica interminaacutevel repetitiva e cujo resultado satildeo produtos
desprovidos de durabilidade e da identidade do produtor a fabricaccedilatildeo constitui-se
originalmente de atividades cujo iniacutecio meio e fim satildeo perfeitamente delineados e
cujos resultados aleacutem de duraacuteveis expressam a individualidade de quem os
produziu Entre outras coisas isto significa que comparada ao trabalho a
fabricaccedilatildeo constitui uma atividade mais humana (porque se encontra mais distante
da mera reproduccedilatildeo bioloacutegica) Eacute evidente que pelas caracteriacutesticas
discriminadas e antes do advento da induacutestria a fabricaccedilatildeo identificava-se agrave
atividade artesanal
Ademais na condiccedilatildeo de atividade produtora do mundo humano objetivo
duradouro e ldquocomum a todosrdquo a fabricaccedilatildeo tambeacutem eacute fundamental para a vida
puacuteblica para a liberdade pois se ldquoo termo puacuteblico significa o proacuteprio mundo na
medida em que eacute comum a todos noacutes e diferente do lugar que nos cabe dentro
delerdquo (Arendt 1998 p 52) a fabricaccedilatildeo ndash e seu produto a obra ndash eacute fundamental
para sua existecircncia E isto porque aquilo que eacute puacuteblico
tem a ver com o artefato humano com a fabricaccedilatildeo das matildeos humanas com os
negoacutecios realizados entre os que juntos habitam o mundo feito pelo homem
Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto
entre os que nele habitam em comum como uma mesa se interpotildee entre os que
4
se assentam ao seu redor o mundo como todo intermediaacuterio ao mesmo tempo
separa e estabelece uma relaccedilatildeo entre os homens (Arendt 1998 p 52)
Num primeiro momento eacute fundamental entender que nem mesmo a
percepccedilatildeo do importante papel da fabricaccedilatildeo e evidentemente da obra em razatildeo
do caraacuteter humano (e natildeo meramente fisioloacutegico) daquela e da durabilidade desta
para a sustentaccedilatildeo material dos assuntos humanos concede ao Homo faber as
qualificaccedilotildees necessaacuterias para participar da vida puacuteblica da vida poliacutetica Na
verdade esta percepccedilatildeo da importacircncia da fabricaccedilatildeo para a vida puacuteblica serve
como um contraponto ainda mais niacutetido agrave condiccedilatildeo inferior do trabalho e agrave sua
problemaacutetica valorizaccedilatildeo no mundo moderno E isto porque sendo os produtos do
trabalho objetos de consumo raacutepido ligados agraves necessidades vitais (bioloacutegicas) e
sustentados por uma atividade incessante ela vecirc na atual valorizaccedilatildeo desta
atividade (trabalho) os fundamentos do produtivismo contemporacircneo cuja
caracteriacutestica central eacute a de submeter cada vez mais aspectos da produccedilatildeo ndash
inclusive a proacutepria fabricaccedilatildeo[2] ndash e da accedilatildeo agrave sua loacutegica agrave sua racionalidade
Assim em relaccedilatildeo ao mundo moderno
O ponto [central] natildeo eacute que pela primeira vez na histoacuteria os trabalhadores tenham
sido admitidos com direitos iguais na esfera puacuteblica mas sim que noacutes quase
obtivemos sucesso em nivelar todas as atividades humanas ao denominador
comum de assegurar as coisas necessaacuterias agrave vida e de produzi-las em abundacircncia
(Arendt 1998 p 126)
Natildeo eacute difiacutecil a partir do exposto perceber que eacute no crescente predomiacutenio
do trabalho marcado pela racionalidade produtivista e por praacuteticas vinculadas agraves
necessidades vitais que se assenta sua visatildeo de que eacute fundamental distinguirmos
esta atividade (o trabalho) da fabricaccedilatildeo dado que a construccedilatildeo de um verdadeiro
espaccedilo puacuteblico implica a delimitaccedilatildeo de um espaccedilo social especiacutefico para o
trabalho em sua separaccedilatildeo da fabricaccedilatildeo e na valorizaccedilatildeo das atividades que
possam fornecer sustentaacuteculo agravequele espaccedilo agrave esfera puacuteblica[3] ndash fabricaccedilatildeo e
accedilatildeo Por conseguinte somente a fabricaccedilatildeo produz as condiccedilotildees objetivas da
5
vida efetivamente humana produz uma espeacutecie de segunda natureza que
possibilita e daacute forma objetiva agraves relaccedilotildees entre os homens ou seja fornece a
base material que transcende as demandas fisioloacutegicas e ao mesmo tempo as
individualidades humanas (histoacuterica e espacialmente) sedimentando a vida em
sociedade a proacutepria vida humana[4]
A subsunccedilatildeo da produccedilatildeo dos objetos duraacuteveis[5] agrave loacutegica e agraves demandas
do Animal laborans ndash ou seja ao inesgotaacutevel ciclo produccedilatildeo-consumo ndash implica o
decliacutenio de um mundo humano objetivo e duraacutevel de um mundo imprescindiacutevel
para o desenvolvimento de uma vida efetivamente humana tanto no acircmbito
individualfamiliar quanto no coletivopoliacutetico Em razatildeo disso numa sociedade que
valoriza o trabalho em detrimento da fabricaccedilatildeo e com isso faz que as praacuteticas e
ideais que regem o trabalho predominem na produccedilatildeo de objetos o mundo
objetivo torna-se cada vez mais desqualificado para sustentar a proacutepria vida
humana[6]
Jaacute sabemos entretanto que as atividades da vita activa natildeo se resumem
ao trabalho e agrave fabricaccedilatildeo Haacute tambeacutem a accedilatildeo a mais elevada de suas
atividades Sinteticamente podemos defini-la como a uacutenica atividade livre e a
mediadora par excellence da plural relaccedilatildeo homem-homem cujo ambiente de
exerciacutecio eacute a esfera poliacutetica Eacute por meio da accedilatildeo e do discurso que a explicita (isto
eacute que torna possiacutevel o debate para aclarar e legitimar a proacutepria finalidade e os
meios da accedilatildeo do agente ou agentes poliacuteticos) que os homens relacionam-se
como seres livres natildeo vinculados a demandas materiais e portanto natildeo tendo
por objeto de sua atividade o mundo material mas a si mesmos (indiviacuteduos e
gecircnero humano) e a suas autopostas preocupaccedilotildees com os bens comum e
individual
Ainda no que diz respeito agrave accedilatildeo Arendt observa que se a esfera poliacutetica
relaciona os homens como iguais sendo cada individualidade dotada dos mesmos
direitos que as outras ndash primordialmente dos direitos de agir e discursar ndash este
6
relacionamento soacute eacute possiacutevel porque apesar de iguais em direitos os homens satildeo
diferentes entre si
Se os homens natildeo se distinguissem se cada ser humano natildeo diferisse de todos
os que existiram existem ou viratildeo a existir eles natildeo necessitariam da fala ou da
accedilatildeo para se fazerem entender Sinais e sons seriam suficientes para comunicar
suas necessidades e desejos imediatos e idecircnticos (Arendt 1998 p 176)
Se portanto sob a condiccedilatildeo de igualdade juriacutedica os homens se
relacionam de fato apenas porque satildeo diferentes entre si eacute por meio do discurso e
da accedilatildeo que esta diferenccedila pode vir agrave tona visto que ldquoEacute com palavras e atos que
nos inserimos no mundo humano e esta inserccedilatildeo eacute como um segundo
nascimento no qual confirmamos e assumimos o fato nu bruto do nosso
aparecimento fiacutesico originalrdquo (Arendt 1998 pp 176-7) Tal nascimento em vez de
produzir algo que eacute preacute-ideado pode ser refeito eou consertado aleacutem de carregar
em si as marcas do indiviacuteduo que o plasmou resultando numa produccedilatildeo anocircnima
irreversiacutevel e que aleacutem do mais traz em si forte dose de imprevisibilidade jaacute que
a pluralidade de indiviacuteduos o debate de ideacuteias e a realizaccedilatildeo destas nos negoacutecios
humanos (isto eacute natildeo em objetos mas em indiviacuteduos dotados de razatildeo) natildeo
permitem o controle sobre os resultados da accedilatildeo nos mesmos moldes a que estaacute
sujeito por exemplo o objeto nas matildeos do artesatildeo
Eacute esta inseguranccedila em relaccedilatildeo aos seus resultados que desde a
Antiguumlidade segundo Arendt motiva os seres humanos a tomarem a fabricaccedilatildeo
por modelo para a accedilatildeo Esta substituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeo ndash ou o que daacute
no mesmo uma accedilatildeo inspirada no modus operandi da fabricaccedilatildeo ndash visando a
aumentar o controle sobre os negoacutecios humanos natildeo eacute uma caracteriacutestica
especiacutefica da modernidade haacute muito a fabricaccedilatildeo constitui uma espeacutecie de
modelo desvirtuador da atividade tiacutepica da esfera poliacutetica da accedilatildeo[7] E a este
respeito o mundo moderno se destaca pelo fato de ter passado a valorizar as
atividades que nas eacutepocas anteriores eram relegadas a um plano secundaacuterio
como o trabalho e a fabricaccedilatildeo De acordo com Arendt mesmo que em inuacutemeros 7
casos tomassem a fabricaccedilatildeo por modelo para a accedilatildeo as eacutepocas anteriores agrave
modernidade valorizavam a accedilatildeo e a contemplaccedilatildeo como atividades propriamente
humanas ndash o homem era reconhecido como Animal rationale No mundo moderno
as coisas tomaram outro rumo
a convicccedilatildeo de que o homem pode conhecer somente aquilo que ele faz de que
suas capacidades supostamente superiores dependem da fabricaccedilatildeo e de que ele
eacute portanto primariamente um Homo faber e natildeo um Animal rationale trouxe agrave
tona as implicaccedilotildees muito mais antigas da inerente violecircncia em todas as
interpretaccedilotildees das esferas de negoacutecios humanos como uma esfera de fabricaccedilatildeo
(Arendt 1998 p 228)
Assim aleacutem de ressaltar uma suposta confusatildeo entre trabalho e fabricaccedilatildeo
permitindo o predomiacutenio daquele em espaccedilos antes restritos apenas agrave atividade
do artesatildeo ndash e atraveacutes dele a subsunccedilatildeo dos ideais e praacuteticas do Homo faber aos
do Animal laborans ndash Arendt enfatiza que o mundo moderno tambeacutem acabou
confundindo a fabricaccedilatildeo com a accedilatildeo o que fez com que a primeira se tornasse o
modelo da praacutexis poliacutetica da accedilatildeo Nessa ldquosubstituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeordquo
(Arendt 1998) o Animal rationale cedeu seu lugar ao Homo faber ndash ou melhor
incorporou as caracteriacutesticas deste ndash e com isso a accedilatildeo passou a ter como
principal referecircncia o modus operandi da fabricaccedilatildeo (work) da atividade produtiva
da obra[8] Isso significa que a racionalidade orientada para a adequaccedilatildeo de meios
a fins determinados preacute-ideados ndash ou seja a racionalidade que deve conduzir a
organizaccedilatildeo dos meios de acordo com um ldquomodelordquo (mental conceitual) a ser
objetivado ndash tiacutepica da fabricaccedilatildeo tambeacutem estaacute presente de maneira decisiva na
accedilatildeo na praacutexis poliacutetica do mundo moderno Ou seja justamente na accedilatildeo que eacute
(ou ao menos deveria ser) a atividade humana que estabelece a relaccedilatildeo entre
indiviacuteduos livres e iguais na esfera puacuteblica na vida poliacutetica
Enfim essa substituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeo expressa que a violecircncia
tatildeo necessaacuteria ao Homo faber em sua luta para arrancar da natureza os
elementos (os materiais) sobre os quais incide sua atividade e com isso adequaacute-
8
los a fins natildeo-naturais torna-se tambeacutem necessaacuteria e valorizada nesta atividade
(uma espeacutecie de accedilatildeo corrompida) que toma a fabricaccedilatildeo por modelo
II Poliacutetica e violecircncia
Ao considerar a violecircncia detentora um papel decisivo na fabricaccedilatildeo e por
meio dela na accedilatildeo especialmente na transiccedilatildeo de uma formaccedilatildeo social a outra
Arendt considera a poliacutetica no mundo moderno agraves voltas com um problema
fundamental toma por caracteriacutestica da accedilatildeo aquilo que na verdade constitui
caracteriacutestica da fabricaccedilatildeo E eacute justamente no cerne dessa confusatildeo conceitual
que segundo ela o pensamento de Marx se encontra ndash mais constitui um caso
exemplar Sendo assim deixemos que nesse aspecto decisivo Arendt fale por si
mesma
A afirmaccedilatildeo de Marx de que a ldquoviolecircncia eacute a parteira de toda velha sociedade
prenhe de uma sociedade novardquo ou seja de toda mudanccedila histoacuterica ou poliacutetica
somente sintetiza a convicccedilatildeo dominante em toda a era moderna e deduz as
consequumlecircncias de sua crenccedila mais iacutentima de que a histoacuteria eacute ldquofeitardquo pelo homem
do mesmo modo que a natureza eacute ldquofeitardquo por Deus
Como tem sido persistente e bem sucedida a transformaccedilatildeo da accedilatildeo em
modalidade da fabricaccedilatildeo eacute facilmente atestada por toda terminologia da teoria e
do pensamento poliacutetico a qual torna quase impossiacutevel discutir esses assuntos sem
que se utilize a categoria de meios e fins e se raciocine em termos de
instrumentalidade (Arendt 1998 pp 228-9)
Num artigo de 1953 intitulado ldquoReligiatildeo e poliacuteticardquo logo apoacutes apoiar-se em
Karl Mannheim para ressaltar a dimensatildeo ideoloacutegica do marxismo e desqualificar
a abordagem acerca da relaccedilatildeo entre ser e consciecircncia por este preconizada[9]
Arendt diz
9
A relutacircncia de Marx em levar a seacuterio ldquoo que cada eacutepoca diz sobre si e imagina
serrdquo derivava de sua convicccedilatildeo de que a accedilatildeo poliacutetica era basicamente violecircncia e
que a violecircncia era a parteira da histoacuteria Tal convicccedilatildeo natildeo se devia agrave ferocidade
gratuita de um temperamento revolucionaacuterio mas tem seu lugar na filosofia da
histoacuteria de Marx que sustenta que a histoacuteria representada pelos homens na
modalidade da falsa consciecircncia isto eacute na modalidade das ideologias pode ser
feita pelos homens tendo eles plena consciecircncia do que estatildeo fazendo Eacute
justamente esse lado humanista dos ensinamentos de Marx que o levou a insistir
no caraacuteter violento da accedilatildeo poliacutetica ele via o fazer da histoacuteria em termos de
fabricaccedilatildeo o homem histoacuterico era para ele basicamente Homo faber A fabricaccedilatildeo
de todas as coisas feitas pelo homem implica necessariamente alguma violecircncia
que incidiraacute sobre a coisa que se torna a mateacuteria baacutesica do que foi fabricado
(Arendt 2002 pp 62-3)
Marx assim teria compreendido a histoacuteria como resultado do ldquofazerrdquo
humano como resultado de atos teleoloacutegicos que nos moldes da atividade
artesanal ndash da fabricaccedilatildeo ndash fazem do ldquoHomemrdquo ndash e natildeo dos homens ndash o artesatildeo
consciente de sua histoacuteria (cf Canovan 1998) Eacute como se Marx tivesse
transformado o processo histoacuterico resultante de muacuteltiplas interaccedilotildees dos seres
humanos entre si (e simultaneamente destes com a natureza) num processo
instrumental Ou dito de outro modo eacute como se tal qual um Hegel materialista
ele concebesse a proacutepria sociedade como um ser demiuacutergico dotado de
capacidades e formas de atuaccedilatildeo semelhantes agravequelas do indiviacuteduo singular que
substituiacutesse o Espiacuterito e o seu processo de sua autoconscientizaccedilatildeo pelos
proacuteprios homens ndash ou pelo ldquoHomemrdquo ndash e seus atos de ldquofazer a histoacuteriardquo de
ldquofabricarrdquo a sociedade ideal (comunista) Neste caso a consciecircncia de classe
cumpriria o mesmo papel que a hegeliana ldquoastuacutecia da Razatildeordquo De qualquer modo
em ambos os casos natildeo satildeo exatamente os homens em sua multiplicidade de
experiecircncias e expectativas que agem em parte de maneira coordenada e
consciente e em parte conflitiva e inconscientemente mas ao contraacuterio eacute o
ldquoHomemrdquo a humanidade unificada que age de maneira coordenada consciente e
controlada como se fosse o ldquoartesatildeo do mundordquo
10
A visatildeo marxista da atividade revolucionaacuteria seria entatildeo o resultado da
imputaccedilatildeo inconsciente de qualidades da fabricaccedilatildeo agrave accedilatildeo a qual por meio da
violecircncia[10] e orientada pelos mesmos criteacuterios de meios e fins que regem a
fabricaccedilatildeo faria os homens efetuarem o parto da nova sociedade cujo rebento
encontra-se emaranhado nas iacutentimas contradiccedilotildees da velha formaccedilatildeo social Seria
justamente esta exaltaccedilatildeo da violecircncia da ldquouacuteltima ratiordquo tiacutepica das relaccedilotildees entre
os baacuterbaros e caracteriacutestica da condiccedilatildeo do escravo[11] a demonstraccedilatildeo de que
em Marx predomina uma ldquohostilidade antitradicional ao discursordquo agrave busca do
consenso agrave poliacutetica (Arendt 1972 p 50)
Nesse contexto o pensamento poliacutetico de Marx representa segundo Arendt
o fim de uma trajetoacuteria do pensamento poliacutetico tradicional iniciada pelas filosofias
de Platatildeo e Aristoacuteteles Pois com esses pensadores a filosofia teria num duplo
salto se distanciado dos assuntos humanos onde reina a confusatildeo e a ilusatildeo
para retornar a eles ilustrada pela razatildeo isto eacute ldquopara [esta a razatildeo] impor seus
padrotildees aos assuntos humanosrdquo (Arendt 1972 p 44) fato altamente positivo que
teria demarcado o iniacutecio de uma fecunda relaccedilatildeo entre a filosofia e os assuntos
humanos entre ela e a poliacutetica Enquanto com Marx desgraccediladamente teria
acontecido o oposto visto que ele ldquorepudiou a Filosofia para poder lsquorealizaacute-larsquo na
poliacuteticardquo (Arendt 1972 p 44) Para ele em vez de a filosofia permanecer uma
espeacutecie de reflexatildeo sistemaacutetica e criacutetica constituiacuteda de certo modo apartada do
processo histoacuterico ela passou a emanar da proacutepria histoacuteria ldquoou antes a
consciecircncia poliacutetica [deriva] da consciecircncia histoacutericardquo (Arendt 1972 p 114) E
ainda segundo Arendt um dos fundamentos desta concepccedilatildeo reside na
identificaccedilatildeo estabelecida no mundo moderno entre sentido e fim Por meio dela
o sentido como termo que expressa o significado de um acontecimento ndash portanto
resultante de uma explicaccedilatildeo post factum ndash foi transformado em fim de
significado de acontecimentos passados passou a preacute-idear situaccedilotildees futuras
Com isso as accedilotildees individuais e instrumentais (realizadas com a finalidade de)
que explicam o processo de trabalho e seus resultados passaram a servir de
modelo para a explicaccedilatildeo do porquecirc de o indiviacuteduo (eou a sociedade) ser o que eacute
11
e portanto executar esta atividade (eou possuir tais caracteriacutesticas) ndash ie como
se o presente fosse a manifestaccedilatildeo ldquoaqui e agorardquo da necessidade imanente de
atos passados Enfim ao considerar as sociedades modernas degradadoras do
sentido em fim Arendt avalia que o marxismo parte integrante desta modernidade
levou esta degradaccedilatildeo agraves uacuteltimas consequumlecircncias e assim transformou a histoacuteria
em teleologia
Pois bem se ainda segundo Arendt a teoria da histoacuteria como fabricaccedilatildeo
natildeo eacute exclusiva do pensamento marxista mas constitui uma caracteriacutestica do
pensamento poliacutetico moderno aquele se distingue
de todas as demais teorias em que a noccedilatildeo de ldquofazer a histoacuteriardquo encontrou abrigo
somente [pelo] fato de apenas ele ter percebido que se se toma a histoacuteria como o
objeto de um processo de fabricaccedilatildeo ou elaboraccedilatildeo deve sobrevir um momento
em que esse objeto eacute completado e que desde que se imagina ser possiacutevel fazer
a histoacuteria natildeo se pode escapar agrave consequumlecircncia de que haveraacute um fim para a
histoacuteria (Arendt 1972 p 114)
Para que entatildeo os marxistas respondem aos apocaliacutepticos que
advogam o fim das ideologias e da histoacuteria se com um golpe de matildeo o proacuteprio
Marx eliminou a ambas Nesta visatildeo tal como o objeto que inicialmente preacute-
ideado na cabeccedila do artesatildeo completa seu ciclo de produccedilatildeo torna-se objetivo
finda a histoacuteria chegaria ao seu fim com a realizaccedilatildeo da filosofia pelo proletariado
ndash nos invertidos termos hegelianos seria este o momento da autoconscientizaccedilatildeo
do Espiacuterito da plena identificaccedilatildeo entre conceito e objeto entre pensamento e
realidade ndash fato que demarcaria o controle da vida humana nos mesmos moldes
em que o artesatildeo domina a mateacuteria a ser plasmada e lhe fornece uma forma final
Mas se Marx eacute tratado como uma espeacutecie de Hegel materialista eacute certo que
as ideacuteias de ambos natildeo satildeo idecircnticas Tanto que em oposiccedilatildeo agrave sua
predecessora hegeliana a coruja de Minerva marxiana natildeo alccedila vocirco somente ao
crepuacutesculo ela capta conceitualmente as condiccedilotildees em que este pode ocorrer e
12
assim auxilia na sua realizaccedilatildeo Outrossim mais importante do que saber se esta
caracteriacutestica do pensamento de Marx eacute adequadamente entendida por Arendt eacute
saber que para ela esta caracteriacutestica expressa um determinismo que torna
supeacuterflua qualquer discussatildeo sobre as finalidades e o conteuacutedo dos processos
sociais dado que a histoacuteria fabricada modelada como se fosse um objeto pelo
proletariado demiuacutergico torna a palavra o discurso um mero instrumento de
justificaccedilatildeo ideoloacutegica de ideacuteias preconcebidas a serem materializadas Foi
partindo desses pressupostos que Arendt pocircde afirmar
O que era entatildeo inexplicaacutevel na histoacuteria [a saber os muacuteltiplos interesses
conflitantes que tornam a accedilatildeo poliacutetica ineficaz no alcance de seus objetivos e a
existecircncia de um sentido no processo histoacuterico] passa agora a ser visto como o
reflexo de um significado que seguramente era tanto um produto humano quanto o
desenvolvimento teacutecnico do mundo O problema de humanizar os assuntos
poliacutetico-histoacutericos resumia-se consequumlentemente em descobrir como dominar
nossas proacuteprias accedilotildees assim como dominamos nossa capacidade produtiva ou
em outras palavras como ldquofazerrdquo histoacuteria assim como fazemos outras coisas Uma
vez que isso seja alcanccedilado com a vitoacuteria do proletariado natildeo precisaremos mais
de ideologias Mas ateacute laacute todas as accedilotildees poliacuteticas preceitos legais e
pensamentos espirituais continuaratildeo escondendo os motivos inconfessos de uma
sociedade que somente finge agir politicamente mas que na verdade ldquofaz
histoacuteriardquo ainda que de uma maneira inconsciente isto eacute natildeo-humana (Arendt
2002 p 63)
Natildeo constituindo a esfera do pleno exerciacutecio do debate de ideacuteias entre
indiviacuteduos livres e iguais ndash indiviacuteduos que por meio do uso intenso da palavra do
discurso do muacutetuo esclarecimento estabelecem consensos mais ou menos gerais
sobre os fundamentos e as finalidades da accedilatildeo ndash a poliacutetica atual constitui um
simulacro da poliacutetica autecircntica Tal como a entende Arendt esta constitui uma
esfera (puacuteblica) que antes de qualquer outra coisa deve estar apartada da
violecircncia na medida em que esta nega a palavra o discurso o debate e portanto
a accedilatildeo Definindo assim o que satildeo meios e fins o que eacute essencial e o que eacute
imposiccedilatildeo extriacutenseca agrave poliacutetica Arendt reitera que ldquoo poder eacute de fato a essecircncia
13
de todo governo mas natildeo a violecircnciardquo (Arendt 1994 p 40) Por conseguinte
sendo de natureza instrumental a violecircncia ldquocomo todos os meios sempre
depende da orientaccedilatildeo e da justificaccedilatildeo pelo fim que almeja E aquilo que
necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser a essecircncia de nadardquo (Arendt
1994 p 41) O poder encontra sua legitimidade no passado a violecircncia se
justifica pelas consequumlecircncias futuras aquele pela sua constituiccedilatildeo esta pelos
seus objetivos Em razatildeo disso ldquoa violecircncia pode ser justificaacutevel mas nunca seraacute
legiacutetimardquo (Arendt 1994 p 41) Enfim ao vincularem a violecircncia ao poder as
concepccedilotildees poliacuteticas hegemocircnicas dentre elas o marxismo demonstram a
incompreensatildeo de que aqueles satildeo na verdade opostos ldquoonde um domina
absolutamente o outro estaacute ausenterdquo (Arendt 1994 p 44)
Para natildeo cindir a argumentaccedilatildeo criacutetica e com isso tornaacute-la
demasiadamente prolixa retornaremos mais adiante a estas afirmaccedilotildees de
Hannah Arendt sobre poliacutetica e violecircncia Por ora apoacutes termos descrito algumas
categorias centrais do pensamento arendtiano e em especiacutefico os fundamentos
de sua criacutetica agrave relaccedilatildeo entre poliacutetica e violecircncia em Marx passemos na mesma
sequumlecircncia de ideacuteias desenvolvida ateacute aqui ao confronto dessas reflexotildees com
aquelas que a nosso ver correspondem adequadamente tanto ao corpo quanto
ao espiacuterito da obra marxiana
III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
Consideramos desnecessaacuterio demonstrar ad nauseam como a concepccedilatildeo
de trabalho em Marx difere substancialmente daquelas atividades que Arendt
denomina pelos vocaacutebulos trabalho e fabricaccedilatildeo pois para o nosso objetivo
basta que o realizemos apenas em suas linhas gerais Assim em primeiro lugar eacute
necessaacuterio relembrar que ao contraacuterio da concepccedilatildeo arendtiana na obra de Marx
o trabalho natildeo consiste numa atividade que nos vincularia mais ao mundo dos
animais do que ao dos seres humanos propriamente ditos Para ele muito distante
14
de qualquer ilusatildeo acerca de uma vida sem trabalho[12] esta atividade constitui um
momento efetivamente fundante e fundamental da vida humana sem a qual aiacute
sim natildeo nos distinguiriacuteamos em absolutamente nada dos proacuteprios animais[13] Em
termos precisos podemos dizer que o animal natildeo se relaciona com a natureza
ele apenas vive nela eacute sua parte integrante[14] natildeo se distinguindo dela como um
ser consciente o animal eacute portanto incapaz de estabelecer uma mediaccedilatildeo
regulada conscientemente controlada com a natureza (Marx 1985 p 149)
apenas respondendo com maior ou menor labilidade agraves determinaccedilotildees e agraves
constantes mudanccedilas de seu haacutebitat O ser humano por sua vez age de maneira
preacute-ideada em sua atividade metaboacutelica pois em todos os momentos do processo
de trabalho lhe ldquoeacute exigida a vontade orientada a um fimrdquo (Marx 1985 p 150)
Assim o sujeito que trabalha ldquonatildeo apenas efetua uma transformaccedilatildeo da forma da
mateacuteria natural realiza ao mesmo tempo na mateacuteria natural seu objetivo que ele
sabe que determina como lei a espeacutecie e o modo de sua atividade e ao qual tem
de subordinar sua vontaderdquo (Marx 1985 p 150) Natildeo sendo portanto a mera
expressatildeo de determinaccedilotildees ou epifenocircmenos bioloacutegicos o trabalho eacute uma
atividade na qual inevitavelmente entrelaccedilam-se o pensar e o fazer a
consciecircncia e a accedilatildeo com aquela orientando esta para transformar a mateacuteria com
vistas a dar-lhe uma forma adequada agrave satisfaccedilatildeo de alguma necessidade
humana A ideacuteia mediada pelo trabalho cristaliza-se no objeto objeto que longe
de ser meramente natural eacute a manifestaccedilatildeo material da subjetividade humana
posto que soacute existe em razatildeo desta Tanto que no final temos que ldquoo trabalho
estaacute objetivado e o objeto trabalhadordquo (Marx 1985 p 151) num mesmo ato a
subjetividade exteriorizou-se e a materialidade tornou-se subjetiva[15] E eacute claro
como esta objetivaccedilatildeo eacute resultado de accedilotildees conscientes o metabolismo dos
homens em relaccedilatildeo agrave natureza eacute muito mais dinacircmico mutante do que aquele
efetuado pelos animais resultando em formas materiais e sociais
permanentemente alteradas ocorrendo a mesma coisa com a proacutepria
subjetividade humana
15
Sendo uma atividade humanamente produtiva o trabalho natildeo eacute apenas a
relaccedilatildeo do homem com a natureza eacute tambeacutem uma relaccedilatildeo que ocorre entre os
proacuteprios homens ndash e verdadeiramente como trabalho soacute existe a partir desta
relaccedilatildeo Ainda em sua juventude num texto seminal para a elaboraccedilatildeo de suas
reflexotildees posteriores Marx nos diz que o homem ldquosoacute eacute um ser consciente quer
dizer a sua vida constitui para ele um objeto porque eacute um ser geneacuterico
Unicamente por isso eacute que sua atividade surge como atividade livrerdquo (Marx 1985
p 165) Se natildeo fosse um ser social geneacuterico produto e produtor de si e do
gecircnero o ser humano natildeo possuiria as faculdades (consciecircncia linguagem) sem
as quais paradoxalmente o proacuteprio trabalho natildeo existiria E que simultaneamente
como dissemos permitem o aprimoramento e a expansatildeo das fronteiras da vida
humana (individual e coletiva) para muito aleacutem daquelas a que estatildeo restritos os
seres vivos naturais[16]
Nesse caso parece-nos oacutebvio que eacute completamente irrelevante saber se
uma atividade produtiva resulta em produtos mais ou menos duraacuteveis ndash por
exemplo em alimentos ou objetos do mobiliaacuterio ndash para classificaacute-la como estando
mais proacutexima ou mais distante da vida propriamente humana Seja numa
sociedade especiacutefica ou ao longo da histoacuteria humana um produto pode durar mais
ou menos tempo devido a um sem-nuacutemero de fatores tais como os materiais e a
tecnologia empregados as relaccedilotildees sociais sob as quais foi produzido as classes
eou grupos sociais que o utilizaratildeo ndash definindo por exemplo a velocidade e o
perfil de sua obsolescecircncia ou seja se esta eacute real materialmente efetiva ou
socialmente condicionada ndash entre outros e natildeo apenas devido agrave maior ou menor
proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica dos indiviacuteduos A rigor a produccedilatildeo de um
alimento ou medicamento por meio de procedimentos complexos e sofisticados
mas cujo consumo eacute quase imediato (para Arendt ldquoproduto do trabalhordquo)
certamente expressa niacuteveis mais elevados de humanizaccedilatildeo do que a produccedilatildeo de
uma tosca mesa de madeira que perdura seacuteculos passando de geraccedilatildeo a
geraccedilatildeo (Marx 1985 ldquoproduto da fabricaccedilatildeordquo)
16
Essas observaccedilotildees acerca da relaccedilatildeo entre as atividades produtivas e a
durabilidade de suas produccedilotildees natildeo significa em hipoacutetese alguma que a
durabilidade ou natildeo de um produto seja irrelevante para os indiviacuteduos e a
sociedade em geral ateacute mesmo porque os produtos satildeo elementos constitutivos e
condicionantes de certas caracteriacutesticas dos processos de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo
das formaccedilotildees sociais Significa apenas que per se ela natildeo eacute relevante para
mensurar o niacutevel de humanizaccedilatildeo da atividade e das qualificaccedilotildees subjetivas nela
envolvidas Assim nas sociedades capitalistas por exemplo saber se um
determinado objeto constitui parte do maquinaacuterio ou da edificaccedilatildeo (capital fixo) ou
entatildeo se eacute apenas insumo mateacuteria-prima ou meio de subsistecircncia (capital
circulante) eacute significativo prioritariamente em razatildeo de que as proporccedilotildees de seus
respectivos usos e o seu periacuteodo de rotaccedilatildeo afetam de maneira decisiva as taxas
de lucro do capital investido Aleacutem do mais ldquoo fato de um valor de uso aparecer
como mateacuteria-prima meio de trabalho ou produto depende totalmente de sua
funccedilatildeo determinada no processo de trabalho da posiccedilatildeo que nele ocupa e com a
mudanccedila dessa posiccedilatildeo variam essas determinaccedilotildeesrdquo (Marx 1985 p 152)
Quase desnecessaacuterio dizer que tal posiccedilatildeo tambeacutem varia de acordo com o niacutevel
de desenvolvimento das forccedilas produtivas e das relaccedilotildees sociais que constituem a
sociedade em questatildeo Em siacutentese se natildeo podemos definir um objeto como
sendo o resultado de uma atividade inferior ou superior na hierarquia das
atividades humanas (da vita activa arendtiana) devido agrave sua durabilidade[17] ou agrave
sua proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica (agrave manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo do corpo)
qualquer tentativa de mensuraccedilatildeo sob este prisma nos parece completamente
arbitraacuteria inclusive eacute claro a que se funda na distinccedilatildeo arendtiana entre trabalho
e fabricaccedilatildeo
Enfatizar estas caracteriacutesticas do trabalho tambeacutem eacute importante porque
contrariamente agraves qualificaccedilotildees inerentes a ele e agrave fabricaccedilatildeo que de acordo com
Arendt estatildeo diretamente relacionadas agraves qualidades do Animal laborans e do
Homo faber no pensamento marxiano inexiste qualquer menccedilatildeo a uma essecircncia
a-histoacuterica do trabalho isto eacute uma essecircncia que agrave revelia da forma societaacuteria em
17
que a atividade se realiza imprime agrave subjetividade daquele que o executa
inelutaacuteveis qualificaccedilotildees Muito ao contraacuterio As anaacutelises marxianas satildeo
profundamente ancoradas na historicidade dos fenocircmenos naturais e sociais
negando qualquer essencialismo em relaccedilatildeo ao trabalho ou a qualquer outra
atividade bem como ao indiviacuteduo ou grupo de indiviacuteduos que o executa Para
Marx ldquoa essecircncia humana natildeo eacute uma abstraccedilatildeo inerente ao indiviacuteduo singular
Em sua realidade eacute o conjunto das relaccedilotildees sociaisrdquo (Marx 1987 p 13) Por
conseguinte em aberta oposiccedilatildeo agraves proposiccedilotildees arendtianas afirmamos que o
produtivismo natildeo constitui uma caracteriacutestica inerente ao trabalho ndash que com a
ascensatildeo deste agrave esfera puacuteblica teria transbordado as fronteiras da vida privada e
se generalizado socialmente ndash mas sim uma caracteriacutestica que possui suas raiacutezes
nas formas de sociabilidade vigentes no mundo contemporacircneo sejam estas
formas capitalistas ou poacutes-capitalistas[18] Dito de outro modo se o trabalho
assalariado alienado constitui cada vez mais a forma predominante da atividade
produtiva e reprodutiva dos indiviacuteduos nestas sociedades tal desventura natildeo
decorre de uma essecircncia que seja inerente a ele tanto quanto agraves formas preteacuteritas
de trabalho e que tenha se desvencilhado na atualidade das amarras que
limitavam sua expansatildeo A raiz deste fenocircmeno reside no fato de o capital
constituir a relaccedilatildeo social baacutesica das sociedades assinaladas generalizando
aquela forma de trabalho E a propoacutesito do essencialismo produtivista do trabalho
em vaacuterias passagens de sua obra Marx nos mostrou as diferenccedilas existentes
entre as sociedades antigas e as modernas sociedades capitalistas Numa dessas
passagens ele lembra que
Entre os antigos natildeo encontramos uma uacutenica investigaccedilatildeo a propoacutesito de qual a
forma de propriedade etc que seria a mais produtiva que geraria o maacuteximo de
riqueza A riqueza natildeo constituiacutea o objetivo da produccedilatildeo A pesquisa sempre
era sobre qual o tipo de propriedade que geraria os melhores cidadatildeos (Marx
1975 p 80 grifos nossos)
Mesmo em seu acircmbito estritamente privado a propriedade natildeo estava
relacionada prioritariamente aos interesses egoiacutestas do indiviacuteduo mas eram os 18
interesses deste ndash e portanto o uso que fazia daquela ndash que estavam
circunscritos e condicionados pelos interesses da comunidade da qual fazia parte
por mais restrita que esta fosse em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo total Desse modo nestas
formaccedilotildees sociais as atividades produtivas natildeo eram movidas por uma ldquoinerenterdquo
racionalidade produtivista uma racionalidade cujo suposto transbordamento das
fronteiras privadas e o estabelecimento do domiacutenio sobre as outras atividades
caracterizariam ndash segundo Arendt ndash o mundo moderno Em relaccedilatildeo a este sua
principal caracteriacutestica consiste na centralidade na generalizaccedilatildeo e no crescente
predomiacutenio do capital no conjunto das relaccedilotildees sociais Enfim eacute justamente esta
centralidade do capital e suas consequumlecircncias que produz o assalariamento
generalizado dos indiviacuteduos e a subsunccedilatildeo da reproduccedilatildeo socioeconocircmica como
um todo agrave loacutegica produtivista
Numa pequena digressatildeo visando apenas a estreitar as margens de accedilatildeo
das leituras vulgares do marxismo eacute necessaacuterio ressaltar que esta afirmaccedilatildeo da
centralidade do capital nas relaccedilotildees sociais contemporacircneas e do espraiamento
de sua influecircncia pela totalidade social natildeo implica reducionismo econocircmico Na
verdade ela significa apenas a explicitaccedilatildeo de caracteriacutesticas inerentes ao capital
cuja tendecircncia a subsumir a multiplicidade de dimensotildees da vida humana agrave sua
loacutegica acumulatoacuteria expansionista eacute um fato incontestaacutevel ontologicamente
enraizado e racionalmente apreensiacutevel e natildeo um grave equiacutevoco teoacuterico de um
pensamento incapaz de atentar para a complexidade do real Eacute nesse sentido que
comentando a famosa proposiccedilatildeo de Marx segundo a qual ldquoNatildeo eacute a consciecircncia
dos homens que determina o seu ser mas ao contraacuterio eacute o seu ser social que
determina sua consciecircnciardquo[19] (Marx 1982 p 25) Lukaacutecs afirma ldquonesse trecho o
mundo das formas de consciecircncia e seus conteuacutedos natildeo eacute visto como um produto
direto da estrutura econocircmica mas da totalidade do ser social A determinaccedilatildeo da
consciecircncia pelo ser social portanto eacute entendida em seu sentido mais geralrdquo
(Lukaacutecs 1979 p 41) ndash e natildeo como expressatildeo direta mecacircnica e restrita dos
processos econocircmicos
19
Neste toacutepico ateacute o momento detivemo-nos nas distintas concepccedilotildees
acerca do trabalho presentes em Arendt e Marx O caso poreacutem eacute que apesar de
significativas tais concepccedilotildees natildeo circunscrevem sua influecircncia agraves fronteiras
econocircmicas mas extravasam a economia e deitam raiacutezes na totalidade de suas
reflexotildees sobre a vida humana Assim se Arendt tem razatildeo em afirmar que para
Marx o trabalho ndash e a fabricaccedilatildeo apesar da irrelevacircncia desta distinccedilatildeo (trabalho x
fabricaccedilatildeo) no quadro conceitual marxiano ndash eacute tratado como uma atividade
teleoloacutegica cujas relaccedilotildees que estabelece com as outras atividades constitutivas
da vida humana satildeo fundamentais para delinear as caracteriacutesticas da totalidade
social nada justifica sua transposiccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos do trabalho
(concreto) para a concepccedilatildeo de histoacuteria marxiana No entanto eacute justamente isto
que ela faz ao afirmar que em Marx a histoacuteria eacute entendida como um processo
similar ao da fabricaccedilatildeo do artesanato um processo que contemporaneamente
exige a intervenccedilatildeo consciente de um sujeito demiuacutergico ndash o proletariado ndash para
plasmar a nova forma societaacuteria tal como o artesatildeo faz com sua mateacuteria-prima E
igualmente ao afirmar que do mesmo modo que a materializaccedilatildeo do objeto preacute-
ideado expressa o fim do processo gerido pelo artesatildeo a realizaccedilatildeo da sociedade
ldquopreacute-ideadardquo pelo proletariado significaria o fim da histoacuteria
Ora uma das questotildees mais complexas do pensamento social fruto de
inuacutemeras polecircmicas teorias e tratados ao longo dos uacuteltimos seacuteculos ndash
especialmente apoacutes o advento da sociologia ndash eacute a articulaccedilatildeo das accedilotildees
individuais e a reproduccedilatildeo da totalidade social E mesmo certos da impossibilidade
de adentrar no emaranhado de questotildees suscitado pelo tema natildeo podemos omitir
a informaccedilatildeo de que uma leitura criteriosa dos textos marxianos demonstra sem
grande dificuldade a improcedecircncia das criacuteticas de Hannah Arendt De modo
algum condiz com o ldquoespiacuteritordquo da obra marxiana a identificaccedilatildeo da reproduccedilatildeo
social como um todo e nem dos processos de transiccedilatildeo de uma forma societaacuteria a
outra ao modus operandi do trabalho O que natildeo significa por sua vez que a
instabilidade econocircmica e social natildeo fosse objeto de suas preocupaccedilotildees A bem
da verdade sendo o primeiro a entender a centralidade do trabalho e suas
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consequumlecircncias na produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana Marx se assenhoreou
desde os Manuscritos de 1844 de conhecimentos suficientemente significativos
para criticar em relaccedilatildeo agravequele aspecto inicialmente citado das relaccedilotildees entre
indiviacuteduo e sociedade tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo Assim em
vez da naturalizaccedilatildeo da histoacuteria humana ou da arbitrariedade da vontade e da
razatildeo em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmaccedilatildeo dos
seres humanos como autoprodutores de sua proacutepria histoacuteria e simultaneamente
uma criacutetica agrave hipostasia das potencialidades da razatildeo e das forccedilas humanas nesta
autoproduccedilatildeo Invariavelmente suas anaacutelises reiteram que ldquoOs homens fazem
sua proacutepria histoacuteria mas natildeo a fazem como querem natildeo a fazem sob
circunstacircncias de sua proacutepria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam
diretamente legadas e transmitidas pelo passadordquo (Marx 1986 p 17 grifos
nossos) Nos dias atuais natildeo eacute difiacutecil perceber como por si soacute esta frase nos
mostra quatildeo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e
da realpolitik que cada qual ao seu modo como faces de uma mesma moeda
dominam os discursos poliacuteticos e econocircmicos em voga
Ainda no que diz respeito agrave questatildeo do sujeito demiuacutergico e do finalismo
histoacuterico eacute necessaacuterio que se entenda que mesmo em sua fastidiosa reproduccedilatildeo
cotidiana o trabalho eacute sempre um ato de criaccedilatildeo criaccedilatildeo natildeo apenas de coisas
novas de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma
humanamente apropriada mas criaccedilatildeo da proacutepria subjetividade humana que se
renova a partir das experiecircncias possibilitadas pelos meios e resultados de sua
produccedilatildeo e pelas relaccedilotildees sociais que os envolvem Tendo em mente esta
dinacircmica intriacutenseca agrave atividade vital dos seres humanos e ao mesmo tempo o
caraacuteter que para Marx a totalidade do real[20] assume como concreto pensado
(Marx 1982 p 15) nem a mais poderosa das inteligecircncias humanas tampouco o
concurso delas sob a forma do coletivo partidaacuterio pode em termos conceituais
apreender subsumir absolutamente o real ao pensamento ndash e muito menos
sujeitar as proacuteprias relaccedilotildees sociais a um controle assemelhado ao das teacutecnicas
produtivas
21
Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final
entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja
rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz
consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de
Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo
sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele
ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von
Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia
hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas
sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais
geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de
onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta
observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica
especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente
pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto
natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o
proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela
histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e
seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o
conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade
histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens
em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo
possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas
Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo
de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos
individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica
intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos
altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que
nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que
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em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a
divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente
a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de
todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada
espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das
diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como
reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori
e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do
trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural
interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado
subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo
social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo
reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo
exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo
que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as
condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)
Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais
de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente
as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de
posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo
(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa
O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias
normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de
finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem
realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute
inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)
Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante
entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de
indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de
eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a
23
casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece
porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da
ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas
significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias
sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca
controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias
objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que
encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano
Em sua Ontologia do ser social ele afirma
Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada
vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as
decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da
totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse
conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa
relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso
porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o
movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da
histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas
etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local
tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que
tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de
transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que
satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do
que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e
consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso
aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)
Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos
individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha
ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias
mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade
oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem
econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo
24
social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve
ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que
historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os
processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem
uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle
destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou
A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a
anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo
incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do
trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer
controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma
infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo
autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais
entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda
organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a
sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)
Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus
ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os
limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de
intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal
qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos
uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana
(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do
pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os
limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir
para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta
ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo
No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras
experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao
nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25
pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas
relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi
drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente
desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses
capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de
regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo
resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica
reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas
experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da
humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua
loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a
accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com
seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social
passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees
marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de
regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos
moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a
consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria
redenccedilatildeo universal
O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos
ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as
acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels
salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido
um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o
movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)
O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se
realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico
do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana
de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo
comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o
26
comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a
forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo
nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao
desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma
sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o
comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no
fim da histoacuteria[22]
Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento
marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute
capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e
desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo
ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso
numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]
mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou
natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana
Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees
que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim
contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das
caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da
limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os
homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara
manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal
Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos
extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a
violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo
Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do
capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre
a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os
revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila
27
material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a
utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de
recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o
revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico
Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder
material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria
se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz
de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e
argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar
o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p
497)
Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos
(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o
discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista
muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)
que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no
encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as
sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece
ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um
discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos
constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das
individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades
eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano
mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em
campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar
plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de
sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar
sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio
colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel
convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e
28
culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem
respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes
subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]
Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)
de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio
das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto
natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive
atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie
No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias
naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o
crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda
escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-
sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo
contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da
incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees
materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos
afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus
processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos
inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos
da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades
humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute
o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses
trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)
Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas
produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa
penetrante passagem sobre o tema lemos
O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto
dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de
29
desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse
nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos
demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua
vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado
naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo
determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas
relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu
proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx
1973 pp 89-90)
Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos
sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a
centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos
aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza
e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham
vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a
intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o
equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente
econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida
social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da
permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas
relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito
da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas
universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada
das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os
homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria
mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das
forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo
adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos
homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia
O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se
compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30
neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo
do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo
pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso
histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive
violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste
(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso
resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na
sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os
antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por
ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses
das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos
Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica
natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades
reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a
estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico
Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da
cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios
juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da
sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela
que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de
duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que
complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo
concreto
O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em
oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem
de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade
desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem
leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da
realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na
comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na
31
sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como
meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes
estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser
profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real
eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem
eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma
soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de
uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)
Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e
imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos
privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma
revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res
publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja
eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da
proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a
violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica
consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a
accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a
vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma
alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento
Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a
essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o
proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua
violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre
dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo
de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a
perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a
violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt
segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser
a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente
32
pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o
antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as
relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de
supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano
Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder
dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se
faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de
violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o
poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa
revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades
viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento
humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo
profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma
resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como
desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo
Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado
como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos
do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute
poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de
propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)
Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de
dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao
contraacuterio
Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como
classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como
classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as
condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em
geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)
33
Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx
1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo
poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer
forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas
formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar
em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis
Quanto a isso eacute importante relembrar que
O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos
limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute
capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade
Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais
ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e
espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a
fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)
Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-
violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo
violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-
socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo
(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-
humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo
humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a
rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios
quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de
coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras
A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um
anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo
(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim
negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se
natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para
natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a
34
contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo
(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-
humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-
violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que
assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)
Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx
caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu
proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios
empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo
entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez
de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do
humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-
capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo
dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os
torna incompatiacuteveis[27]
IV Agrave guisa de conclusatildeo
Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de
Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda
distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de
Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do
pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas
que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio
da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente
sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir
de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns
aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram
envolvidos pela leitura arendtiana
35
Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem
ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem
duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho
Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e
estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do
solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo
neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade
com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se
reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos
intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro
porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento
marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual
formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco
em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e
Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para
o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e
revolucionaacuterios
Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo
XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho
caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos
revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso
imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob
muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes
natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca
demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo
sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas
proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os
argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro
sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas
ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma
36
verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto
que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute
cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido
V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio
1983
______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002
Notas
38
Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo
Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo
teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a
estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o
ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque
somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a
abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos
que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e
isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a
accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num
constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas
produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou
menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de
consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados
a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo
antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em
termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e
inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho
como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt
1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels
segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte
daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos
homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e
39
osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida
real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos
desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo
corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade
efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa
produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma
aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio
Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para
produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas
necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a
Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de
qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas
formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na
constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso
ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro
Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se
distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo
reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele
duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo
(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute
afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels
1986 p 19)
40
[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade
esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas
daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades
capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas
carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e
propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que
determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a
p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que
sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram
transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em
grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos
paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital
Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo
crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos
estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem
consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo
social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas
conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento
marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo
implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de
estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo
significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo
dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma
luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude
do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de
uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o
41
entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada
dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas
caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos
do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no
fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje
muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o
sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e
saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente
a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente
severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de
personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de
objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de
produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e
personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar
condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua
perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento
universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social
como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p
85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que
apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo
aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do
esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e
complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em
relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios
revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA
transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em
42
43
massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
-
Naquilo que diz respeito ao trabalho e agrave fabricaccedilatildeo Arendt acredita que
ambas as atividades apesar de serem constitutivas da esfera das necessidades
possuem diferenccedilas significativas entre si E analisando estas categorias em sua
pureza praacutetica observa que enquanto o trabalho satisfaz demandas bioloacutegicas da
vida humana produz bens de consumo natildeo-duraacuteveis ndash e que por isso estaacute
envolvido num processo ciacuteclico e interminaacutevel da produccedilatildeo material ndash a
fabricaccedilatildeo consiste naquela atividade responsaacutevel pela produccedilatildeo das demandas
materiais da vida humana que escapam agrave dimensatildeo meramente bioloacutegica em
seus termos os bens de consumo duraacuteveis Por conseguinte ao contraacuterio do
trabalho atividade ciacuteclica interminaacutevel repetitiva e cujo resultado satildeo produtos
desprovidos de durabilidade e da identidade do produtor a fabricaccedilatildeo constitui-se
originalmente de atividades cujo iniacutecio meio e fim satildeo perfeitamente delineados e
cujos resultados aleacutem de duraacuteveis expressam a individualidade de quem os
produziu Entre outras coisas isto significa que comparada ao trabalho a
fabricaccedilatildeo constitui uma atividade mais humana (porque se encontra mais distante
da mera reproduccedilatildeo bioloacutegica) Eacute evidente que pelas caracteriacutesticas
discriminadas e antes do advento da induacutestria a fabricaccedilatildeo identificava-se agrave
atividade artesanal
Ademais na condiccedilatildeo de atividade produtora do mundo humano objetivo
duradouro e ldquocomum a todosrdquo a fabricaccedilatildeo tambeacutem eacute fundamental para a vida
puacuteblica para a liberdade pois se ldquoo termo puacuteblico significa o proacuteprio mundo na
medida em que eacute comum a todos noacutes e diferente do lugar que nos cabe dentro
delerdquo (Arendt 1998 p 52) a fabricaccedilatildeo ndash e seu produto a obra ndash eacute fundamental
para sua existecircncia E isto porque aquilo que eacute puacuteblico
tem a ver com o artefato humano com a fabricaccedilatildeo das matildeos humanas com os
negoacutecios realizados entre os que juntos habitam o mundo feito pelo homem
Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto
entre os que nele habitam em comum como uma mesa se interpotildee entre os que
4
se assentam ao seu redor o mundo como todo intermediaacuterio ao mesmo tempo
separa e estabelece uma relaccedilatildeo entre os homens (Arendt 1998 p 52)
Num primeiro momento eacute fundamental entender que nem mesmo a
percepccedilatildeo do importante papel da fabricaccedilatildeo e evidentemente da obra em razatildeo
do caraacuteter humano (e natildeo meramente fisioloacutegico) daquela e da durabilidade desta
para a sustentaccedilatildeo material dos assuntos humanos concede ao Homo faber as
qualificaccedilotildees necessaacuterias para participar da vida puacuteblica da vida poliacutetica Na
verdade esta percepccedilatildeo da importacircncia da fabricaccedilatildeo para a vida puacuteblica serve
como um contraponto ainda mais niacutetido agrave condiccedilatildeo inferior do trabalho e agrave sua
problemaacutetica valorizaccedilatildeo no mundo moderno E isto porque sendo os produtos do
trabalho objetos de consumo raacutepido ligados agraves necessidades vitais (bioloacutegicas) e
sustentados por uma atividade incessante ela vecirc na atual valorizaccedilatildeo desta
atividade (trabalho) os fundamentos do produtivismo contemporacircneo cuja
caracteriacutestica central eacute a de submeter cada vez mais aspectos da produccedilatildeo ndash
inclusive a proacutepria fabricaccedilatildeo[2] ndash e da accedilatildeo agrave sua loacutegica agrave sua racionalidade
Assim em relaccedilatildeo ao mundo moderno
O ponto [central] natildeo eacute que pela primeira vez na histoacuteria os trabalhadores tenham
sido admitidos com direitos iguais na esfera puacuteblica mas sim que noacutes quase
obtivemos sucesso em nivelar todas as atividades humanas ao denominador
comum de assegurar as coisas necessaacuterias agrave vida e de produzi-las em abundacircncia
(Arendt 1998 p 126)
Natildeo eacute difiacutecil a partir do exposto perceber que eacute no crescente predomiacutenio
do trabalho marcado pela racionalidade produtivista e por praacuteticas vinculadas agraves
necessidades vitais que se assenta sua visatildeo de que eacute fundamental distinguirmos
esta atividade (o trabalho) da fabricaccedilatildeo dado que a construccedilatildeo de um verdadeiro
espaccedilo puacuteblico implica a delimitaccedilatildeo de um espaccedilo social especiacutefico para o
trabalho em sua separaccedilatildeo da fabricaccedilatildeo e na valorizaccedilatildeo das atividades que
possam fornecer sustentaacuteculo agravequele espaccedilo agrave esfera puacuteblica[3] ndash fabricaccedilatildeo e
accedilatildeo Por conseguinte somente a fabricaccedilatildeo produz as condiccedilotildees objetivas da
5
vida efetivamente humana produz uma espeacutecie de segunda natureza que
possibilita e daacute forma objetiva agraves relaccedilotildees entre os homens ou seja fornece a
base material que transcende as demandas fisioloacutegicas e ao mesmo tempo as
individualidades humanas (histoacuterica e espacialmente) sedimentando a vida em
sociedade a proacutepria vida humana[4]
A subsunccedilatildeo da produccedilatildeo dos objetos duraacuteveis[5] agrave loacutegica e agraves demandas
do Animal laborans ndash ou seja ao inesgotaacutevel ciclo produccedilatildeo-consumo ndash implica o
decliacutenio de um mundo humano objetivo e duraacutevel de um mundo imprescindiacutevel
para o desenvolvimento de uma vida efetivamente humana tanto no acircmbito
individualfamiliar quanto no coletivopoliacutetico Em razatildeo disso numa sociedade que
valoriza o trabalho em detrimento da fabricaccedilatildeo e com isso faz que as praacuteticas e
ideais que regem o trabalho predominem na produccedilatildeo de objetos o mundo
objetivo torna-se cada vez mais desqualificado para sustentar a proacutepria vida
humana[6]
Jaacute sabemos entretanto que as atividades da vita activa natildeo se resumem
ao trabalho e agrave fabricaccedilatildeo Haacute tambeacutem a accedilatildeo a mais elevada de suas
atividades Sinteticamente podemos defini-la como a uacutenica atividade livre e a
mediadora par excellence da plural relaccedilatildeo homem-homem cujo ambiente de
exerciacutecio eacute a esfera poliacutetica Eacute por meio da accedilatildeo e do discurso que a explicita (isto
eacute que torna possiacutevel o debate para aclarar e legitimar a proacutepria finalidade e os
meios da accedilatildeo do agente ou agentes poliacuteticos) que os homens relacionam-se
como seres livres natildeo vinculados a demandas materiais e portanto natildeo tendo
por objeto de sua atividade o mundo material mas a si mesmos (indiviacuteduos e
gecircnero humano) e a suas autopostas preocupaccedilotildees com os bens comum e
individual
Ainda no que diz respeito agrave accedilatildeo Arendt observa que se a esfera poliacutetica
relaciona os homens como iguais sendo cada individualidade dotada dos mesmos
direitos que as outras ndash primordialmente dos direitos de agir e discursar ndash este
6
relacionamento soacute eacute possiacutevel porque apesar de iguais em direitos os homens satildeo
diferentes entre si
Se os homens natildeo se distinguissem se cada ser humano natildeo diferisse de todos
os que existiram existem ou viratildeo a existir eles natildeo necessitariam da fala ou da
accedilatildeo para se fazerem entender Sinais e sons seriam suficientes para comunicar
suas necessidades e desejos imediatos e idecircnticos (Arendt 1998 p 176)
Se portanto sob a condiccedilatildeo de igualdade juriacutedica os homens se
relacionam de fato apenas porque satildeo diferentes entre si eacute por meio do discurso e
da accedilatildeo que esta diferenccedila pode vir agrave tona visto que ldquoEacute com palavras e atos que
nos inserimos no mundo humano e esta inserccedilatildeo eacute como um segundo
nascimento no qual confirmamos e assumimos o fato nu bruto do nosso
aparecimento fiacutesico originalrdquo (Arendt 1998 pp 176-7) Tal nascimento em vez de
produzir algo que eacute preacute-ideado pode ser refeito eou consertado aleacutem de carregar
em si as marcas do indiviacuteduo que o plasmou resultando numa produccedilatildeo anocircnima
irreversiacutevel e que aleacutem do mais traz em si forte dose de imprevisibilidade jaacute que
a pluralidade de indiviacuteduos o debate de ideacuteias e a realizaccedilatildeo destas nos negoacutecios
humanos (isto eacute natildeo em objetos mas em indiviacuteduos dotados de razatildeo) natildeo
permitem o controle sobre os resultados da accedilatildeo nos mesmos moldes a que estaacute
sujeito por exemplo o objeto nas matildeos do artesatildeo
Eacute esta inseguranccedila em relaccedilatildeo aos seus resultados que desde a
Antiguumlidade segundo Arendt motiva os seres humanos a tomarem a fabricaccedilatildeo
por modelo para a accedilatildeo Esta substituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeo ndash ou o que daacute
no mesmo uma accedilatildeo inspirada no modus operandi da fabricaccedilatildeo ndash visando a
aumentar o controle sobre os negoacutecios humanos natildeo eacute uma caracteriacutestica
especiacutefica da modernidade haacute muito a fabricaccedilatildeo constitui uma espeacutecie de
modelo desvirtuador da atividade tiacutepica da esfera poliacutetica da accedilatildeo[7] E a este
respeito o mundo moderno se destaca pelo fato de ter passado a valorizar as
atividades que nas eacutepocas anteriores eram relegadas a um plano secundaacuterio
como o trabalho e a fabricaccedilatildeo De acordo com Arendt mesmo que em inuacutemeros 7
casos tomassem a fabricaccedilatildeo por modelo para a accedilatildeo as eacutepocas anteriores agrave
modernidade valorizavam a accedilatildeo e a contemplaccedilatildeo como atividades propriamente
humanas ndash o homem era reconhecido como Animal rationale No mundo moderno
as coisas tomaram outro rumo
a convicccedilatildeo de que o homem pode conhecer somente aquilo que ele faz de que
suas capacidades supostamente superiores dependem da fabricaccedilatildeo e de que ele
eacute portanto primariamente um Homo faber e natildeo um Animal rationale trouxe agrave
tona as implicaccedilotildees muito mais antigas da inerente violecircncia em todas as
interpretaccedilotildees das esferas de negoacutecios humanos como uma esfera de fabricaccedilatildeo
(Arendt 1998 p 228)
Assim aleacutem de ressaltar uma suposta confusatildeo entre trabalho e fabricaccedilatildeo
permitindo o predomiacutenio daquele em espaccedilos antes restritos apenas agrave atividade
do artesatildeo ndash e atraveacutes dele a subsunccedilatildeo dos ideais e praacuteticas do Homo faber aos
do Animal laborans ndash Arendt enfatiza que o mundo moderno tambeacutem acabou
confundindo a fabricaccedilatildeo com a accedilatildeo o que fez com que a primeira se tornasse o
modelo da praacutexis poliacutetica da accedilatildeo Nessa ldquosubstituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeordquo
(Arendt 1998) o Animal rationale cedeu seu lugar ao Homo faber ndash ou melhor
incorporou as caracteriacutesticas deste ndash e com isso a accedilatildeo passou a ter como
principal referecircncia o modus operandi da fabricaccedilatildeo (work) da atividade produtiva
da obra[8] Isso significa que a racionalidade orientada para a adequaccedilatildeo de meios
a fins determinados preacute-ideados ndash ou seja a racionalidade que deve conduzir a
organizaccedilatildeo dos meios de acordo com um ldquomodelordquo (mental conceitual) a ser
objetivado ndash tiacutepica da fabricaccedilatildeo tambeacutem estaacute presente de maneira decisiva na
accedilatildeo na praacutexis poliacutetica do mundo moderno Ou seja justamente na accedilatildeo que eacute
(ou ao menos deveria ser) a atividade humana que estabelece a relaccedilatildeo entre
indiviacuteduos livres e iguais na esfera puacuteblica na vida poliacutetica
Enfim essa substituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeo expressa que a violecircncia
tatildeo necessaacuteria ao Homo faber em sua luta para arrancar da natureza os
elementos (os materiais) sobre os quais incide sua atividade e com isso adequaacute-
8
los a fins natildeo-naturais torna-se tambeacutem necessaacuteria e valorizada nesta atividade
(uma espeacutecie de accedilatildeo corrompida) que toma a fabricaccedilatildeo por modelo
II Poliacutetica e violecircncia
Ao considerar a violecircncia detentora um papel decisivo na fabricaccedilatildeo e por
meio dela na accedilatildeo especialmente na transiccedilatildeo de uma formaccedilatildeo social a outra
Arendt considera a poliacutetica no mundo moderno agraves voltas com um problema
fundamental toma por caracteriacutestica da accedilatildeo aquilo que na verdade constitui
caracteriacutestica da fabricaccedilatildeo E eacute justamente no cerne dessa confusatildeo conceitual
que segundo ela o pensamento de Marx se encontra ndash mais constitui um caso
exemplar Sendo assim deixemos que nesse aspecto decisivo Arendt fale por si
mesma
A afirmaccedilatildeo de Marx de que a ldquoviolecircncia eacute a parteira de toda velha sociedade
prenhe de uma sociedade novardquo ou seja de toda mudanccedila histoacuterica ou poliacutetica
somente sintetiza a convicccedilatildeo dominante em toda a era moderna e deduz as
consequumlecircncias de sua crenccedila mais iacutentima de que a histoacuteria eacute ldquofeitardquo pelo homem
do mesmo modo que a natureza eacute ldquofeitardquo por Deus
Como tem sido persistente e bem sucedida a transformaccedilatildeo da accedilatildeo em
modalidade da fabricaccedilatildeo eacute facilmente atestada por toda terminologia da teoria e
do pensamento poliacutetico a qual torna quase impossiacutevel discutir esses assuntos sem
que se utilize a categoria de meios e fins e se raciocine em termos de
instrumentalidade (Arendt 1998 pp 228-9)
Num artigo de 1953 intitulado ldquoReligiatildeo e poliacuteticardquo logo apoacutes apoiar-se em
Karl Mannheim para ressaltar a dimensatildeo ideoloacutegica do marxismo e desqualificar
a abordagem acerca da relaccedilatildeo entre ser e consciecircncia por este preconizada[9]
Arendt diz
9
A relutacircncia de Marx em levar a seacuterio ldquoo que cada eacutepoca diz sobre si e imagina
serrdquo derivava de sua convicccedilatildeo de que a accedilatildeo poliacutetica era basicamente violecircncia e
que a violecircncia era a parteira da histoacuteria Tal convicccedilatildeo natildeo se devia agrave ferocidade
gratuita de um temperamento revolucionaacuterio mas tem seu lugar na filosofia da
histoacuteria de Marx que sustenta que a histoacuteria representada pelos homens na
modalidade da falsa consciecircncia isto eacute na modalidade das ideologias pode ser
feita pelos homens tendo eles plena consciecircncia do que estatildeo fazendo Eacute
justamente esse lado humanista dos ensinamentos de Marx que o levou a insistir
no caraacuteter violento da accedilatildeo poliacutetica ele via o fazer da histoacuteria em termos de
fabricaccedilatildeo o homem histoacuterico era para ele basicamente Homo faber A fabricaccedilatildeo
de todas as coisas feitas pelo homem implica necessariamente alguma violecircncia
que incidiraacute sobre a coisa que se torna a mateacuteria baacutesica do que foi fabricado
(Arendt 2002 pp 62-3)
Marx assim teria compreendido a histoacuteria como resultado do ldquofazerrdquo
humano como resultado de atos teleoloacutegicos que nos moldes da atividade
artesanal ndash da fabricaccedilatildeo ndash fazem do ldquoHomemrdquo ndash e natildeo dos homens ndash o artesatildeo
consciente de sua histoacuteria (cf Canovan 1998) Eacute como se Marx tivesse
transformado o processo histoacuterico resultante de muacuteltiplas interaccedilotildees dos seres
humanos entre si (e simultaneamente destes com a natureza) num processo
instrumental Ou dito de outro modo eacute como se tal qual um Hegel materialista
ele concebesse a proacutepria sociedade como um ser demiuacutergico dotado de
capacidades e formas de atuaccedilatildeo semelhantes agravequelas do indiviacuteduo singular que
substituiacutesse o Espiacuterito e o seu processo de sua autoconscientizaccedilatildeo pelos
proacuteprios homens ndash ou pelo ldquoHomemrdquo ndash e seus atos de ldquofazer a histoacuteriardquo de
ldquofabricarrdquo a sociedade ideal (comunista) Neste caso a consciecircncia de classe
cumpriria o mesmo papel que a hegeliana ldquoastuacutecia da Razatildeordquo De qualquer modo
em ambos os casos natildeo satildeo exatamente os homens em sua multiplicidade de
experiecircncias e expectativas que agem em parte de maneira coordenada e
consciente e em parte conflitiva e inconscientemente mas ao contraacuterio eacute o
ldquoHomemrdquo a humanidade unificada que age de maneira coordenada consciente e
controlada como se fosse o ldquoartesatildeo do mundordquo
10
A visatildeo marxista da atividade revolucionaacuteria seria entatildeo o resultado da
imputaccedilatildeo inconsciente de qualidades da fabricaccedilatildeo agrave accedilatildeo a qual por meio da
violecircncia[10] e orientada pelos mesmos criteacuterios de meios e fins que regem a
fabricaccedilatildeo faria os homens efetuarem o parto da nova sociedade cujo rebento
encontra-se emaranhado nas iacutentimas contradiccedilotildees da velha formaccedilatildeo social Seria
justamente esta exaltaccedilatildeo da violecircncia da ldquouacuteltima ratiordquo tiacutepica das relaccedilotildees entre
os baacuterbaros e caracteriacutestica da condiccedilatildeo do escravo[11] a demonstraccedilatildeo de que
em Marx predomina uma ldquohostilidade antitradicional ao discursordquo agrave busca do
consenso agrave poliacutetica (Arendt 1972 p 50)
Nesse contexto o pensamento poliacutetico de Marx representa segundo Arendt
o fim de uma trajetoacuteria do pensamento poliacutetico tradicional iniciada pelas filosofias
de Platatildeo e Aristoacuteteles Pois com esses pensadores a filosofia teria num duplo
salto se distanciado dos assuntos humanos onde reina a confusatildeo e a ilusatildeo
para retornar a eles ilustrada pela razatildeo isto eacute ldquopara [esta a razatildeo] impor seus
padrotildees aos assuntos humanosrdquo (Arendt 1972 p 44) fato altamente positivo que
teria demarcado o iniacutecio de uma fecunda relaccedilatildeo entre a filosofia e os assuntos
humanos entre ela e a poliacutetica Enquanto com Marx desgraccediladamente teria
acontecido o oposto visto que ele ldquorepudiou a Filosofia para poder lsquorealizaacute-larsquo na
poliacuteticardquo (Arendt 1972 p 44) Para ele em vez de a filosofia permanecer uma
espeacutecie de reflexatildeo sistemaacutetica e criacutetica constituiacuteda de certo modo apartada do
processo histoacuterico ela passou a emanar da proacutepria histoacuteria ldquoou antes a
consciecircncia poliacutetica [deriva] da consciecircncia histoacutericardquo (Arendt 1972 p 114) E
ainda segundo Arendt um dos fundamentos desta concepccedilatildeo reside na
identificaccedilatildeo estabelecida no mundo moderno entre sentido e fim Por meio dela
o sentido como termo que expressa o significado de um acontecimento ndash portanto
resultante de uma explicaccedilatildeo post factum ndash foi transformado em fim de
significado de acontecimentos passados passou a preacute-idear situaccedilotildees futuras
Com isso as accedilotildees individuais e instrumentais (realizadas com a finalidade de)
que explicam o processo de trabalho e seus resultados passaram a servir de
modelo para a explicaccedilatildeo do porquecirc de o indiviacuteduo (eou a sociedade) ser o que eacute
11
e portanto executar esta atividade (eou possuir tais caracteriacutesticas) ndash ie como
se o presente fosse a manifestaccedilatildeo ldquoaqui e agorardquo da necessidade imanente de
atos passados Enfim ao considerar as sociedades modernas degradadoras do
sentido em fim Arendt avalia que o marxismo parte integrante desta modernidade
levou esta degradaccedilatildeo agraves uacuteltimas consequumlecircncias e assim transformou a histoacuteria
em teleologia
Pois bem se ainda segundo Arendt a teoria da histoacuteria como fabricaccedilatildeo
natildeo eacute exclusiva do pensamento marxista mas constitui uma caracteriacutestica do
pensamento poliacutetico moderno aquele se distingue
de todas as demais teorias em que a noccedilatildeo de ldquofazer a histoacuteriardquo encontrou abrigo
somente [pelo] fato de apenas ele ter percebido que se se toma a histoacuteria como o
objeto de um processo de fabricaccedilatildeo ou elaboraccedilatildeo deve sobrevir um momento
em que esse objeto eacute completado e que desde que se imagina ser possiacutevel fazer
a histoacuteria natildeo se pode escapar agrave consequumlecircncia de que haveraacute um fim para a
histoacuteria (Arendt 1972 p 114)
Para que entatildeo os marxistas respondem aos apocaliacutepticos que
advogam o fim das ideologias e da histoacuteria se com um golpe de matildeo o proacuteprio
Marx eliminou a ambas Nesta visatildeo tal como o objeto que inicialmente preacute-
ideado na cabeccedila do artesatildeo completa seu ciclo de produccedilatildeo torna-se objetivo
finda a histoacuteria chegaria ao seu fim com a realizaccedilatildeo da filosofia pelo proletariado
ndash nos invertidos termos hegelianos seria este o momento da autoconscientizaccedilatildeo
do Espiacuterito da plena identificaccedilatildeo entre conceito e objeto entre pensamento e
realidade ndash fato que demarcaria o controle da vida humana nos mesmos moldes
em que o artesatildeo domina a mateacuteria a ser plasmada e lhe fornece uma forma final
Mas se Marx eacute tratado como uma espeacutecie de Hegel materialista eacute certo que
as ideacuteias de ambos natildeo satildeo idecircnticas Tanto que em oposiccedilatildeo agrave sua
predecessora hegeliana a coruja de Minerva marxiana natildeo alccedila vocirco somente ao
crepuacutesculo ela capta conceitualmente as condiccedilotildees em que este pode ocorrer e
12
assim auxilia na sua realizaccedilatildeo Outrossim mais importante do que saber se esta
caracteriacutestica do pensamento de Marx eacute adequadamente entendida por Arendt eacute
saber que para ela esta caracteriacutestica expressa um determinismo que torna
supeacuterflua qualquer discussatildeo sobre as finalidades e o conteuacutedo dos processos
sociais dado que a histoacuteria fabricada modelada como se fosse um objeto pelo
proletariado demiuacutergico torna a palavra o discurso um mero instrumento de
justificaccedilatildeo ideoloacutegica de ideacuteias preconcebidas a serem materializadas Foi
partindo desses pressupostos que Arendt pocircde afirmar
O que era entatildeo inexplicaacutevel na histoacuteria [a saber os muacuteltiplos interesses
conflitantes que tornam a accedilatildeo poliacutetica ineficaz no alcance de seus objetivos e a
existecircncia de um sentido no processo histoacuterico] passa agora a ser visto como o
reflexo de um significado que seguramente era tanto um produto humano quanto o
desenvolvimento teacutecnico do mundo O problema de humanizar os assuntos
poliacutetico-histoacutericos resumia-se consequumlentemente em descobrir como dominar
nossas proacuteprias accedilotildees assim como dominamos nossa capacidade produtiva ou
em outras palavras como ldquofazerrdquo histoacuteria assim como fazemos outras coisas Uma
vez que isso seja alcanccedilado com a vitoacuteria do proletariado natildeo precisaremos mais
de ideologias Mas ateacute laacute todas as accedilotildees poliacuteticas preceitos legais e
pensamentos espirituais continuaratildeo escondendo os motivos inconfessos de uma
sociedade que somente finge agir politicamente mas que na verdade ldquofaz
histoacuteriardquo ainda que de uma maneira inconsciente isto eacute natildeo-humana (Arendt
2002 p 63)
Natildeo constituindo a esfera do pleno exerciacutecio do debate de ideacuteias entre
indiviacuteduos livres e iguais ndash indiviacuteduos que por meio do uso intenso da palavra do
discurso do muacutetuo esclarecimento estabelecem consensos mais ou menos gerais
sobre os fundamentos e as finalidades da accedilatildeo ndash a poliacutetica atual constitui um
simulacro da poliacutetica autecircntica Tal como a entende Arendt esta constitui uma
esfera (puacuteblica) que antes de qualquer outra coisa deve estar apartada da
violecircncia na medida em que esta nega a palavra o discurso o debate e portanto
a accedilatildeo Definindo assim o que satildeo meios e fins o que eacute essencial e o que eacute
imposiccedilatildeo extriacutenseca agrave poliacutetica Arendt reitera que ldquoo poder eacute de fato a essecircncia
13
de todo governo mas natildeo a violecircnciardquo (Arendt 1994 p 40) Por conseguinte
sendo de natureza instrumental a violecircncia ldquocomo todos os meios sempre
depende da orientaccedilatildeo e da justificaccedilatildeo pelo fim que almeja E aquilo que
necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser a essecircncia de nadardquo (Arendt
1994 p 41) O poder encontra sua legitimidade no passado a violecircncia se
justifica pelas consequumlecircncias futuras aquele pela sua constituiccedilatildeo esta pelos
seus objetivos Em razatildeo disso ldquoa violecircncia pode ser justificaacutevel mas nunca seraacute
legiacutetimardquo (Arendt 1994 p 41) Enfim ao vincularem a violecircncia ao poder as
concepccedilotildees poliacuteticas hegemocircnicas dentre elas o marxismo demonstram a
incompreensatildeo de que aqueles satildeo na verdade opostos ldquoonde um domina
absolutamente o outro estaacute ausenterdquo (Arendt 1994 p 44)
Para natildeo cindir a argumentaccedilatildeo criacutetica e com isso tornaacute-la
demasiadamente prolixa retornaremos mais adiante a estas afirmaccedilotildees de
Hannah Arendt sobre poliacutetica e violecircncia Por ora apoacutes termos descrito algumas
categorias centrais do pensamento arendtiano e em especiacutefico os fundamentos
de sua criacutetica agrave relaccedilatildeo entre poliacutetica e violecircncia em Marx passemos na mesma
sequumlecircncia de ideacuteias desenvolvida ateacute aqui ao confronto dessas reflexotildees com
aquelas que a nosso ver correspondem adequadamente tanto ao corpo quanto
ao espiacuterito da obra marxiana
III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
Consideramos desnecessaacuterio demonstrar ad nauseam como a concepccedilatildeo
de trabalho em Marx difere substancialmente daquelas atividades que Arendt
denomina pelos vocaacutebulos trabalho e fabricaccedilatildeo pois para o nosso objetivo
basta que o realizemos apenas em suas linhas gerais Assim em primeiro lugar eacute
necessaacuterio relembrar que ao contraacuterio da concepccedilatildeo arendtiana na obra de Marx
o trabalho natildeo consiste numa atividade que nos vincularia mais ao mundo dos
animais do que ao dos seres humanos propriamente ditos Para ele muito distante
14
de qualquer ilusatildeo acerca de uma vida sem trabalho[12] esta atividade constitui um
momento efetivamente fundante e fundamental da vida humana sem a qual aiacute
sim natildeo nos distinguiriacuteamos em absolutamente nada dos proacuteprios animais[13] Em
termos precisos podemos dizer que o animal natildeo se relaciona com a natureza
ele apenas vive nela eacute sua parte integrante[14] natildeo se distinguindo dela como um
ser consciente o animal eacute portanto incapaz de estabelecer uma mediaccedilatildeo
regulada conscientemente controlada com a natureza (Marx 1985 p 149)
apenas respondendo com maior ou menor labilidade agraves determinaccedilotildees e agraves
constantes mudanccedilas de seu haacutebitat O ser humano por sua vez age de maneira
preacute-ideada em sua atividade metaboacutelica pois em todos os momentos do processo
de trabalho lhe ldquoeacute exigida a vontade orientada a um fimrdquo (Marx 1985 p 150)
Assim o sujeito que trabalha ldquonatildeo apenas efetua uma transformaccedilatildeo da forma da
mateacuteria natural realiza ao mesmo tempo na mateacuteria natural seu objetivo que ele
sabe que determina como lei a espeacutecie e o modo de sua atividade e ao qual tem
de subordinar sua vontaderdquo (Marx 1985 p 150) Natildeo sendo portanto a mera
expressatildeo de determinaccedilotildees ou epifenocircmenos bioloacutegicos o trabalho eacute uma
atividade na qual inevitavelmente entrelaccedilam-se o pensar e o fazer a
consciecircncia e a accedilatildeo com aquela orientando esta para transformar a mateacuteria com
vistas a dar-lhe uma forma adequada agrave satisfaccedilatildeo de alguma necessidade
humana A ideacuteia mediada pelo trabalho cristaliza-se no objeto objeto que longe
de ser meramente natural eacute a manifestaccedilatildeo material da subjetividade humana
posto que soacute existe em razatildeo desta Tanto que no final temos que ldquoo trabalho
estaacute objetivado e o objeto trabalhadordquo (Marx 1985 p 151) num mesmo ato a
subjetividade exteriorizou-se e a materialidade tornou-se subjetiva[15] E eacute claro
como esta objetivaccedilatildeo eacute resultado de accedilotildees conscientes o metabolismo dos
homens em relaccedilatildeo agrave natureza eacute muito mais dinacircmico mutante do que aquele
efetuado pelos animais resultando em formas materiais e sociais
permanentemente alteradas ocorrendo a mesma coisa com a proacutepria
subjetividade humana
15
Sendo uma atividade humanamente produtiva o trabalho natildeo eacute apenas a
relaccedilatildeo do homem com a natureza eacute tambeacutem uma relaccedilatildeo que ocorre entre os
proacuteprios homens ndash e verdadeiramente como trabalho soacute existe a partir desta
relaccedilatildeo Ainda em sua juventude num texto seminal para a elaboraccedilatildeo de suas
reflexotildees posteriores Marx nos diz que o homem ldquosoacute eacute um ser consciente quer
dizer a sua vida constitui para ele um objeto porque eacute um ser geneacuterico
Unicamente por isso eacute que sua atividade surge como atividade livrerdquo (Marx 1985
p 165) Se natildeo fosse um ser social geneacuterico produto e produtor de si e do
gecircnero o ser humano natildeo possuiria as faculdades (consciecircncia linguagem) sem
as quais paradoxalmente o proacuteprio trabalho natildeo existiria E que simultaneamente
como dissemos permitem o aprimoramento e a expansatildeo das fronteiras da vida
humana (individual e coletiva) para muito aleacutem daquelas a que estatildeo restritos os
seres vivos naturais[16]
Nesse caso parece-nos oacutebvio que eacute completamente irrelevante saber se
uma atividade produtiva resulta em produtos mais ou menos duraacuteveis ndash por
exemplo em alimentos ou objetos do mobiliaacuterio ndash para classificaacute-la como estando
mais proacutexima ou mais distante da vida propriamente humana Seja numa
sociedade especiacutefica ou ao longo da histoacuteria humana um produto pode durar mais
ou menos tempo devido a um sem-nuacutemero de fatores tais como os materiais e a
tecnologia empregados as relaccedilotildees sociais sob as quais foi produzido as classes
eou grupos sociais que o utilizaratildeo ndash definindo por exemplo a velocidade e o
perfil de sua obsolescecircncia ou seja se esta eacute real materialmente efetiva ou
socialmente condicionada ndash entre outros e natildeo apenas devido agrave maior ou menor
proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica dos indiviacuteduos A rigor a produccedilatildeo de um
alimento ou medicamento por meio de procedimentos complexos e sofisticados
mas cujo consumo eacute quase imediato (para Arendt ldquoproduto do trabalhordquo)
certamente expressa niacuteveis mais elevados de humanizaccedilatildeo do que a produccedilatildeo de
uma tosca mesa de madeira que perdura seacuteculos passando de geraccedilatildeo a
geraccedilatildeo (Marx 1985 ldquoproduto da fabricaccedilatildeordquo)
16
Essas observaccedilotildees acerca da relaccedilatildeo entre as atividades produtivas e a
durabilidade de suas produccedilotildees natildeo significa em hipoacutetese alguma que a
durabilidade ou natildeo de um produto seja irrelevante para os indiviacuteduos e a
sociedade em geral ateacute mesmo porque os produtos satildeo elementos constitutivos e
condicionantes de certas caracteriacutesticas dos processos de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo
das formaccedilotildees sociais Significa apenas que per se ela natildeo eacute relevante para
mensurar o niacutevel de humanizaccedilatildeo da atividade e das qualificaccedilotildees subjetivas nela
envolvidas Assim nas sociedades capitalistas por exemplo saber se um
determinado objeto constitui parte do maquinaacuterio ou da edificaccedilatildeo (capital fixo) ou
entatildeo se eacute apenas insumo mateacuteria-prima ou meio de subsistecircncia (capital
circulante) eacute significativo prioritariamente em razatildeo de que as proporccedilotildees de seus
respectivos usos e o seu periacuteodo de rotaccedilatildeo afetam de maneira decisiva as taxas
de lucro do capital investido Aleacutem do mais ldquoo fato de um valor de uso aparecer
como mateacuteria-prima meio de trabalho ou produto depende totalmente de sua
funccedilatildeo determinada no processo de trabalho da posiccedilatildeo que nele ocupa e com a
mudanccedila dessa posiccedilatildeo variam essas determinaccedilotildeesrdquo (Marx 1985 p 152)
Quase desnecessaacuterio dizer que tal posiccedilatildeo tambeacutem varia de acordo com o niacutevel
de desenvolvimento das forccedilas produtivas e das relaccedilotildees sociais que constituem a
sociedade em questatildeo Em siacutentese se natildeo podemos definir um objeto como
sendo o resultado de uma atividade inferior ou superior na hierarquia das
atividades humanas (da vita activa arendtiana) devido agrave sua durabilidade[17] ou agrave
sua proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica (agrave manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo do corpo)
qualquer tentativa de mensuraccedilatildeo sob este prisma nos parece completamente
arbitraacuteria inclusive eacute claro a que se funda na distinccedilatildeo arendtiana entre trabalho
e fabricaccedilatildeo
Enfatizar estas caracteriacutesticas do trabalho tambeacutem eacute importante porque
contrariamente agraves qualificaccedilotildees inerentes a ele e agrave fabricaccedilatildeo que de acordo com
Arendt estatildeo diretamente relacionadas agraves qualidades do Animal laborans e do
Homo faber no pensamento marxiano inexiste qualquer menccedilatildeo a uma essecircncia
a-histoacuterica do trabalho isto eacute uma essecircncia que agrave revelia da forma societaacuteria em
17
que a atividade se realiza imprime agrave subjetividade daquele que o executa
inelutaacuteveis qualificaccedilotildees Muito ao contraacuterio As anaacutelises marxianas satildeo
profundamente ancoradas na historicidade dos fenocircmenos naturais e sociais
negando qualquer essencialismo em relaccedilatildeo ao trabalho ou a qualquer outra
atividade bem como ao indiviacuteduo ou grupo de indiviacuteduos que o executa Para
Marx ldquoa essecircncia humana natildeo eacute uma abstraccedilatildeo inerente ao indiviacuteduo singular
Em sua realidade eacute o conjunto das relaccedilotildees sociaisrdquo (Marx 1987 p 13) Por
conseguinte em aberta oposiccedilatildeo agraves proposiccedilotildees arendtianas afirmamos que o
produtivismo natildeo constitui uma caracteriacutestica inerente ao trabalho ndash que com a
ascensatildeo deste agrave esfera puacuteblica teria transbordado as fronteiras da vida privada e
se generalizado socialmente ndash mas sim uma caracteriacutestica que possui suas raiacutezes
nas formas de sociabilidade vigentes no mundo contemporacircneo sejam estas
formas capitalistas ou poacutes-capitalistas[18] Dito de outro modo se o trabalho
assalariado alienado constitui cada vez mais a forma predominante da atividade
produtiva e reprodutiva dos indiviacuteduos nestas sociedades tal desventura natildeo
decorre de uma essecircncia que seja inerente a ele tanto quanto agraves formas preteacuteritas
de trabalho e que tenha se desvencilhado na atualidade das amarras que
limitavam sua expansatildeo A raiz deste fenocircmeno reside no fato de o capital
constituir a relaccedilatildeo social baacutesica das sociedades assinaladas generalizando
aquela forma de trabalho E a propoacutesito do essencialismo produtivista do trabalho
em vaacuterias passagens de sua obra Marx nos mostrou as diferenccedilas existentes
entre as sociedades antigas e as modernas sociedades capitalistas Numa dessas
passagens ele lembra que
Entre os antigos natildeo encontramos uma uacutenica investigaccedilatildeo a propoacutesito de qual a
forma de propriedade etc que seria a mais produtiva que geraria o maacuteximo de
riqueza A riqueza natildeo constituiacutea o objetivo da produccedilatildeo A pesquisa sempre
era sobre qual o tipo de propriedade que geraria os melhores cidadatildeos (Marx
1975 p 80 grifos nossos)
Mesmo em seu acircmbito estritamente privado a propriedade natildeo estava
relacionada prioritariamente aos interesses egoiacutestas do indiviacuteduo mas eram os 18
interesses deste ndash e portanto o uso que fazia daquela ndash que estavam
circunscritos e condicionados pelos interesses da comunidade da qual fazia parte
por mais restrita que esta fosse em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo total Desse modo nestas
formaccedilotildees sociais as atividades produtivas natildeo eram movidas por uma ldquoinerenterdquo
racionalidade produtivista uma racionalidade cujo suposto transbordamento das
fronteiras privadas e o estabelecimento do domiacutenio sobre as outras atividades
caracterizariam ndash segundo Arendt ndash o mundo moderno Em relaccedilatildeo a este sua
principal caracteriacutestica consiste na centralidade na generalizaccedilatildeo e no crescente
predomiacutenio do capital no conjunto das relaccedilotildees sociais Enfim eacute justamente esta
centralidade do capital e suas consequumlecircncias que produz o assalariamento
generalizado dos indiviacuteduos e a subsunccedilatildeo da reproduccedilatildeo socioeconocircmica como
um todo agrave loacutegica produtivista
Numa pequena digressatildeo visando apenas a estreitar as margens de accedilatildeo
das leituras vulgares do marxismo eacute necessaacuterio ressaltar que esta afirmaccedilatildeo da
centralidade do capital nas relaccedilotildees sociais contemporacircneas e do espraiamento
de sua influecircncia pela totalidade social natildeo implica reducionismo econocircmico Na
verdade ela significa apenas a explicitaccedilatildeo de caracteriacutesticas inerentes ao capital
cuja tendecircncia a subsumir a multiplicidade de dimensotildees da vida humana agrave sua
loacutegica acumulatoacuteria expansionista eacute um fato incontestaacutevel ontologicamente
enraizado e racionalmente apreensiacutevel e natildeo um grave equiacutevoco teoacuterico de um
pensamento incapaz de atentar para a complexidade do real Eacute nesse sentido que
comentando a famosa proposiccedilatildeo de Marx segundo a qual ldquoNatildeo eacute a consciecircncia
dos homens que determina o seu ser mas ao contraacuterio eacute o seu ser social que
determina sua consciecircnciardquo[19] (Marx 1982 p 25) Lukaacutecs afirma ldquonesse trecho o
mundo das formas de consciecircncia e seus conteuacutedos natildeo eacute visto como um produto
direto da estrutura econocircmica mas da totalidade do ser social A determinaccedilatildeo da
consciecircncia pelo ser social portanto eacute entendida em seu sentido mais geralrdquo
(Lukaacutecs 1979 p 41) ndash e natildeo como expressatildeo direta mecacircnica e restrita dos
processos econocircmicos
19
Neste toacutepico ateacute o momento detivemo-nos nas distintas concepccedilotildees
acerca do trabalho presentes em Arendt e Marx O caso poreacutem eacute que apesar de
significativas tais concepccedilotildees natildeo circunscrevem sua influecircncia agraves fronteiras
econocircmicas mas extravasam a economia e deitam raiacutezes na totalidade de suas
reflexotildees sobre a vida humana Assim se Arendt tem razatildeo em afirmar que para
Marx o trabalho ndash e a fabricaccedilatildeo apesar da irrelevacircncia desta distinccedilatildeo (trabalho x
fabricaccedilatildeo) no quadro conceitual marxiano ndash eacute tratado como uma atividade
teleoloacutegica cujas relaccedilotildees que estabelece com as outras atividades constitutivas
da vida humana satildeo fundamentais para delinear as caracteriacutesticas da totalidade
social nada justifica sua transposiccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos do trabalho
(concreto) para a concepccedilatildeo de histoacuteria marxiana No entanto eacute justamente isto
que ela faz ao afirmar que em Marx a histoacuteria eacute entendida como um processo
similar ao da fabricaccedilatildeo do artesanato um processo que contemporaneamente
exige a intervenccedilatildeo consciente de um sujeito demiuacutergico ndash o proletariado ndash para
plasmar a nova forma societaacuteria tal como o artesatildeo faz com sua mateacuteria-prima E
igualmente ao afirmar que do mesmo modo que a materializaccedilatildeo do objeto preacute-
ideado expressa o fim do processo gerido pelo artesatildeo a realizaccedilatildeo da sociedade
ldquopreacute-ideadardquo pelo proletariado significaria o fim da histoacuteria
Ora uma das questotildees mais complexas do pensamento social fruto de
inuacutemeras polecircmicas teorias e tratados ao longo dos uacuteltimos seacuteculos ndash
especialmente apoacutes o advento da sociologia ndash eacute a articulaccedilatildeo das accedilotildees
individuais e a reproduccedilatildeo da totalidade social E mesmo certos da impossibilidade
de adentrar no emaranhado de questotildees suscitado pelo tema natildeo podemos omitir
a informaccedilatildeo de que uma leitura criteriosa dos textos marxianos demonstra sem
grande dificuldade a improcedecircncia das criacuteticas de Hannah Arendt De modo
algum condiz com o ldquoespiacuteritordquo da obra marxiana a identificaccedilatildeo da reproduccedilatildeo
social como um todo e nem dos processos de transiccedilatildeo de uma forma societaacuteria a
outra ao modus operandi do trabalho O que natildeo significa por sua vez que a
instabilidade econocircmica e social natildeo fosse objeto de suas preocupaccedilotildees A bem
da verdade sendo o primeiro a entender a centralidade do trabalho e suas
20
consequumlecircncias na produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana Marx se assenhoreou
desde os Manuscritos de 1844 de conhecimentos suficientemente significativos
para criticar em relaccedilatildeo agravequele aspecto inicialmente citado das relaccedilotildees entre
indiviacuteduo e sociedade tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo Assim em
vez da naturalizaccedilatildeo da histoacuteria humana ou da arbitrariedade da vontade e da
razatildeo em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmaccedilatildeo dos
seres humanos como autoprodutores de sua proacutepria histoacuteria e simultaneamente
uma criacutetica agrave hipostasia das potencialidades da razatildeo e das forccedilas humanas nesta
autoproduccedilatildeo Invariavelmente suas anaacutelises reiteram que ldquoOs homens fazem
sua proacutepria histoacuteria mas natildeo a fazem como querem natildeo a fazem sob
circunstacircncias de sua proacutepria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam
diretamente legadas e transmitidas pelo passadordquo (Marx 1986 p 17 grifos
nossos) Nos dias atuais natildeo eacute difiacutecil perceber como por si soacute esta frase nos
mostra quatildeo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e
da realpolitik que cada qual ao seu modo como faces de uma mesma moeda
dominam os discursos poliacuteticos e econocircmicos em voga
Ainda no que diz respeito agrave questatildeo do sujeito demiuacutergico e do finalismo
histoacuterico eacute necessaacuterio que se entenda que mesmo em sua fastidiosa reproduccedilatildeo
cotidiana o trabalho eacute sempre um ato de criaccedilatildeo criaccedilatildeo natildeo apenas de coisas
novas de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma
humanamente apropriada mas criaccedilatildeo da proacutepria subjetividade humana que se
renova a partir das experiecircncias possibilitadas pelos meios e resultados de sua
produccedilatildeo e pelas relaccedilotildees sociais que os envolvem Tendo em mente esta
dinacircmica intriacutenseca agrave atividade vital dos seres humanos e ao mesmo tempo o
caraacuteter que para Marx a totalidade do real[20] assume como concreto pensado
(Marx 1982 p 15) nem a mais poderosa das inteligecircncias humanas tampouco o
concurso delas sob a forma do coletivo partidaacuterio pode em termos conceituais
apreender subsumir absolutamente o real ao pensamento ndash e muito menos
sujeitar as proacuteprias relaccedilotildees sociais a um controle assemelhado ao das teacutecnicas
produtivas
21
Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final
entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja
rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz
consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de
Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo
sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele
ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von
Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia
hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas
sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais
geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de
onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta
observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica
especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente
pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto
natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o
proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela
histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e
seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o
conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade
histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens
em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo
possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas
Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo
de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos
individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica
intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos
altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que
nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que
22
em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a
divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente
a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de
todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada
espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das
diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como
reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori
e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do
trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural
interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado
subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo
social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo
reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo
exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo
que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as
condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)
Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais
de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente
as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de
posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo
(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa
O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias
normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de
finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem
realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute
inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)
Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante
entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de
indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de
eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a
23
casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece
porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da
ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas
significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias
sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca
controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias
objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que
encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano
Em sua Ontologia do ser social ele afirma
Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada
vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as
decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da
totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse
conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa
relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso
porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o
movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da
histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas
etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local
tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que
tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de
transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que
satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do
que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e
consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso
aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)
Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos
individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha
ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias
mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade
oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem
econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo
24
social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve
ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que
historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os
processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem
uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle
destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou
A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a
anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo
incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do
trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer
controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma
infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo
autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais
entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda
organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a
sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)
Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus
ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os
limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de
intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal
qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos
uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana
(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do
pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os
limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir
para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta
ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo
No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras
experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao
nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25
pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas
relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi
drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente
desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses
capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de
regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo
resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica
reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas
experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da
humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua
loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a
accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com
seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social
passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees
marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de
regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos
moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a
consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria
redenccedilatildeo universal
O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos
ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as
acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels
salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido
um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o
movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)
O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se
realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico
do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana
de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo
comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o
26
comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a
forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo
nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao
desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma
sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o
comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no
fim da histoacuteria[22]
Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento
marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute
capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e
desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo
ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso
numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]
mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou
natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana
Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees
que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim
contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das
caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da
limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os
homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara
manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal
Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos
extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a
violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo
Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do
capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre
a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os
revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila
27
material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a
utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de
recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o
revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico
Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder
material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria
se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz
de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e
argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar
o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p
497)
Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos
(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o
discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista
muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)
que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no
encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as
sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece
ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um
discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos
constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das
individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades
eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano
mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em
campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar
plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de
sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar
sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio
colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel
convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e
28
culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem
respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes
subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]
Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)
de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio
das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto
natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive
atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie
No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias
naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o
crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda
escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-
sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo
contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da
incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees
materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos
afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus
processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos
inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos
da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades
humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute
o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses
trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)
Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas
produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa
penetrante passagem sobre o tema lemos
O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto
dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de
29
desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse
nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos
demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua
vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado
naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo
determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas
relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu
proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx
1973 pp 89-90)
Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos
sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a
centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos
aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza
e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham
vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a
intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o
equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente
econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida
social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da
permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas
relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito
da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas
universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada
das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os
homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria
mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das
forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo
adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos
homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia
O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se
compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30
neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo
do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo
pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso
histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive
violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste
(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso
resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na
sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os
antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por
ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses
das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos
Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica
natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades
reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a
estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico
Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da
cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios
juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da
sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela
que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de
duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que
complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo
concreto
O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em
oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem
de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade
desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem
leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da
realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na
comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na
31
sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como
meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes
estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser
profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real
eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem
eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma
soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de
uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)
Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e
imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos
privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma
revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res
publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja
eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da
proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a
violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica
consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a
accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a
vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma
alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento
Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a
essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o
proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua
violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre
dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo
de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a
perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a
violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt
segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser
a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente
32
pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o
antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as
relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de
supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano
Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder
dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se
faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de
violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o
poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa
revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades
viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento
humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo
profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma
resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como
desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo
Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado
como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos
do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute
poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de
propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)
Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de
dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao
contraacuterio
Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como
classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como
classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as
condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em
geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)
33
Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx
1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo
poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer
forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas
formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar
em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis
Quanto a isso eacute importante relembrar que
O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos
limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute
capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade
Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais
ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e
espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a
fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)
Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-
violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo
violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-
socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo
(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-
humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo
humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a
rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios
quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de
coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras
A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um
anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo
(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim
negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se
natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para
natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a
34
contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo
(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-
humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-
violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que
assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)
Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx
caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu
proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios
empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo
entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez
de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do
humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-
capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo
dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os
torna incompatiacuteveis[27]
IV Agrave guisa de conclusatildeo
Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de
Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda
distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de
Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do
pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas
que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio
da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente
sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir
de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns
aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram
envolvidos pela leitura arendtiana
35
Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem
ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem
duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho
Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e
estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do
solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo
neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade
com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se
reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos
intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro
porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento
marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual
formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco
em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e
Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para
o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e
revolucionaacuterios
Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo
XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho
caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos
revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso
imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob
muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes
natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca
demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo
sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas
proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os
argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro
sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas
ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma
36
verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto
que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute
cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido
V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002
Notas
38
Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo
Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo
teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a
estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o
ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque
somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a
abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos
que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e
isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a
accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num
constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas
produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou
menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de
consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados
a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo
antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em
termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e
inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho
como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt
1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels
segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte
daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos
homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e
39
osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida
real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos
desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo
corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade
efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa
produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma
aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio
Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para
produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas
necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a
Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de
qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas
formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na
constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso
ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro
Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se
distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo
reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele
duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo
(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute
afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels
1986 p 19)
40
[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade
esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas
daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades
capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas
carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e
propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que
determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a
p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que
sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram
transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em
grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos
paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital
Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo
crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos
estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem
consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo
social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas
conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento
marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo
implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de
estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo
significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo
dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma
luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude
do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de
uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o
41
entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada
dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas
caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos
do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no
fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje
muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o
sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e
saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente
a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente
severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de
personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de
objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de
produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e
personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar
condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua
perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento
universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social
como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p
85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que
apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo
aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do
esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e
complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em
relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios
revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA
transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em
42
43
massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
-
se assentam ao seu redor o mundo como todo intermediaacuterio ao mesmo tempo
separa e estabelece uma relaccedilatildeo entre os homens (Arendt 1998 p 52)
Num primeiro momento eacute fundamental entender que nem mesmo a
percepccedilatildeo do importante papel da fabricaccedilatildeo e evidentemente da obra em razatildeo
do caraacuteter humano (e natildeo meramente fisioloacutegico) daquela e da durabilidade desta
para a sustentaccedilatildeo material dos assuntos humanos concede ao Homo faber as
qualificaccedilotildees necessaacuterias para participar da vida puacuteblica da vida poliacutetica Na
verdade esta percepccedilatildeo da importacircncia da fabricaccedilatildeo para a vida puacuteblica serve
como um contraponto ainda mais niacutetido agrave condiccedilatildeo inferior do trabalho e agrave sua
problemaacutetica valorizaccedilatildeo no mundo moderno E isto porque sendo os produtos do
trabalho objetos de consumo raacutepido ligados agraves necessidades vitais (bioloacutegicas) e
sustentados por uma atividade incessante ela vecirc na atual valorizaccedilatildeo desta
atividade (trabalho) os fundamentos do produtivismo contemporacircneo cuja
caracteriacutestica central eacute a de submeter cada vez mais aspectos da produccedilatildeo ndash
inclusive a proacutepria fabricaccedilatildeo[2] ndash e da accedilatildeo agrave sua loacutegica agrave sua racionalidade
Assim em relaccedilatildeo ao mundo moderno
O ponto [central] natildeo eacute que pela primeira vez na histoacuteria os trabalhadores tenham
sido admitidos com direitos iguais na esfera puacuteblica mas sim que noacutes quase
obtivemos sucesso em nivelar todas as atividades humanas ao denominador
comum de assegurar as coisas necessaacuterias agrave vida e de produzi-las em abundacircncia
(Arendt 1998 p 126)
Natildeo eacute difiacutecil a partir do exposto perceber que eacute no crescente predomiacutenio
do trabalho marcado pela racionalidade produtivista e por praacuteticas vinculadas agraves
necessidades vitais que se assenta sua visatildeo de que eacute fundamental distinguirmos
esta atividade (o trabalho) da fabricaccedilatildeo dado que a construccedilatildeo de um verdadeiro
espaccedilo puacuteblico implica a delimitaccedilatildeo de um espaccedilo social especiacutefico para o
trabalho em sua separaccedilatildeo da fabricaccedilatildeo e na valorizaccedilatildeo das atividades que
possam fornecer sustentaacuteculo agravequele espaccedilo agrave esfera puacuteblica[3] ndash fabricaccedilatildeo e
accedilatildeo Por conseguinte somente a fabricaccedilatildeo produz as condiccedilotildees objetivas da
5
vida efetivamente humana produz uma espeacutecie de segunda natureza que
possibilita e daacute forma objetiva agraves relaccedilotildees entre os homens ou seja fornece a
base material que transcende as demandas fisioloacutegicas e ao mesmo tempo as
individualidades humanas (histoacuterica e espacialmente) sedimentando a vida em
sociedade a proacutepria vida humana[4]
A subsunccedilatildeo da produccedilatildeo dos objetos duraacuteveis[5] agrave loacutegica e agraves demandas
do Animal laborans ndash ou seja ao inesgotaacutevel ciclo produccedilatildeo-consumo ndash implica o
decliacutenio de um mundo humano objetivo e duraacutevel de um mundo imprescindiacutevel
para o desenvolvimento de uma vida efetivamente humana tanto no acircmbito
individualfamiliar quanto no coletivopoliacutetico Em razatildeo disso numa sociedade que
valoriza o trabalho em detrimento da fabricaccedilatildeo e com isso faz que as praacuteticas e
ideais que regem o trabalho predominem na produccedilatildeo de objetos o mundo
objetivo torna-se cada vez mais desqualificado para sustentar a proacutepria vida
humana[6]
Jaacute sabemos entretanto que as atividades da vita activa natildeo se resumem
ao trabalho e agrave fabricaccedilatildeo Haacute tambeacutem a accedilatildeo a mais elevada de suas
atividades Sinteticamente podemos defini-la como a uacutenica atividade livre e a
mediadora par excellence da plural relaccedilatildeo homem-homem cujo ambiente de
exerciacutecio eacute a esfera poliacutetica Eacute por meio da accedilatildeo e do discurso que a explicita (isto
eacute que torna possiacutevel o debate para aclarar e legitimar a proacutepria finalidade e os
meios da accedilatildeo do agente ou agentes poliacuteticos) que os homens relacionam-se
como seres livres natildeo vinculados a demandas materiais e portanto natildeo tendo
por objeto de sua atividade o mundo material mas a si mesmos (indiviacuteduos e
gecircnero humano) e a suas autopostas preocupaccedilotildees com os bens comum e
individual
Ainda no que diz respeito agrave accedilatildeo Arendt observa que se a esfera poliacutetica
relaciona os homens como iguais sendo cada individualidade dotada dos mesmos
direitos que as outras ndash primordialmente dos direitos de agir e discursar ndash este
6
relacionamento soacute eacute possiacutevel porque apesar de iguais em direitos os homens satildeo
diferentes entre si
Se os homens natildeo se distinguissem se cada ser humano natildeo diferisse de todos
os que existiram existem ou viratildeo a existir eles natildeo necessitariam da fala ou da
accedilatildeo para se fazerem entender Sinais e sons seriam suficientes para comunicar
suas necessidades e desejos imediatos e idecircnticos (Arendt 1998 p 176)
Se portanto sob a condiccedilatildeo de igualdade juriacutedica os homens se
relacionam de fato apenas porque satildeo diferentes entre si eacute por meio do discurso e
da accedilatildeo que esta diferenccedila pode vir agrave tona visto que ldquoEacute com palavras e atos que
nos inserimos no mundo humano e esta inserccedilatildeo eacute como um segundo
nascimento no qual confirmamos e assumimos o fato nu bruto do nosso
aparecimento fiacutesico originalrdquo (Arendt 1998 pp 176-7) Tal nascimento em vez de
produzir algo que eacute preacute-ideado pode ser refeito eou consertado aleacutem de carregar
em si as marcas do indiviacuteduo que o plasmou resultando numa produccedilatildeo anocircnima
irreversiacutevel e que aleacutem do mais traz em si forte dose de imprevisibilidade jaacute que
a pluralidade de indiviacuteduos o debate de ideacuteias e a realizaccedilatildeo destas nos negoacutecios
humanos (isto eacute natildeo em objetos mas em indiviacuteduos dotados de razatildeo) natildeo
permitem o controle sobre os resultados da accedilatildeo nos mesmos moldes a que estaacute
sujeito por exemplo o objeto nas matildeos do artesatildeo
Eacute esta inseguranccedila em relaccedilatildeo aos seus resultados que desde a
Antiguumlidade segundo Arendt motiva os seres humanos a tomarem a fabricaccedilatildeo
por modelo para a accedilatildeo Esta substituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeo ndash ou o que daacute
no mesmo uma accedilatildeo inspirada no modus operandi da fabricaccedilatildeo ndash visando a
aumentar o controle sobre os negoacutecios humanos natildeo eacute uma caracteriacutestica
especiacutefica da modernidade haacute muito a fabricaccedilatildeo constitui uma espeacutecie de
modelo desvirtuador da atividade tiacutepica da esfera poliacutetica da accedilatildeo[7] E a este
respeito o mundo moderno se destaca pelo fato de ter passado a valorizar as
atividades que nas eacutepocas anteriores eram relegadas a um plano secundaacuterio
como o trabalho e a fabricaccedilatildeo De acordo com Arendt mesmo que em inuacutemeros 7
casos tomassem a fabricaccedilatildeo por modelo para a accedilatildeo as eacutepocas anteriores agrave
modernidade valorizavam a accedilatildeo e a contemplaccedilatildeo como atividades propriamente
humanas ndash o homem era reconhecido como Animal rationale No mundo moderno
as coisas tomaram outro rumo
a convicccedilatildeo de que o homem pode conhecer somente aquilo que ele faz de que
suas capacidades supostamente superiores dependem da fabricaccedilatildeo e de que ele
eacute portanto primariamente um Homo faber e natildeo um Animal rationale trouxe agrave
tona as implicaccedilotildees muito mais antigas da inerente violecircncia em todas as
interpretaccedilotildees das esferas de negoacutecios humanos como uma esfera de fabricaccedilatildeo
(Arendt 1998 p 228)
Assim aleacutem de ressaltar uma suposta confusatildeo entre trabalho e fabricaccedilatildeo
permitindo o predomiacutenio daquele em espaccedilos antes restritos apenas agrave atividade
do artesatildeo ndash e atraveacutes dele a subsunccedilatildeo dos ideais e praacuteticas do Homo faber aos
do Animal laborans ndash Arendt enfatiza que o mundo moderno tambeacutem acabou
confundindo a fabricaccedilatildeo com a accedilatildeo o que fez com que a primeira se tornasse o
modelo da praacutexis poliacutetica da accedilatildeo Nessa ldquosubstituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeordquo
(Arendt 1998) o Animal rationale cedeu seu lugar ao Homo faber ndash ou melhor
incorporou as caracteriacutesticas deste ndash e com isso a accedilatildeo passou a ter como
principal referecircncia o modus operandi da fabricaccedilatildeo (work) da atividade produtiva
da obra[8] Isso significa que a racionalidade orientada para a adequaccedilatildeo de meios
a fins determinados preacute-ideados ndash ou seja a racionalidade que deve conduzir a
organizaccedilatildeo dos meios de acordo com um ldquomodelordquo (mental conceitual) a ser
objetivado ndash tiacutepica da fabricaccedilatildeo tambeacutem estaacute presente de maneira decisiva na
accedilatildeo na praacutexis poliacutetica do mundo moderno Ou seja justamente na accedilatildeo que eacute
(ou ao menos deveria ser) a atividade humana que estabelece a relaccedilatildeo entre
indiviacuteduos livres e iguais na esfera puacuteblica na vida poliacutetica
Enfim essa substituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeo expressa que a violecircncia
tatildeo necessaacuteria ao Homo faber em sua luta para arrancar da natureza os
elementos (os materiais) sobre os quais incide sua atividade e com isso adequaacute-
8
los a fins natildeo-naturais torna-se tambeacutem necessaacuteria e valorizada nesta atividade
(uma espeacutecie de accedilatildeo corrompida) que toma a fabricaccedilatildeo por modelo
II Poliacutetica e violecircncia
Ao considerar a violecircncia detentora um papel decisivo na fabricaccedilatildeo e por
meio dela na accedilatildeo especialmente na transiccedilatildeo de uma formaccedilatildeo social a outra
Arendt considera a poliacutetica no mundo moderno agraves voltas com um problema
fundamental toma por caracteriacutestica da accedilatildeo aquilo que na verdade constitui
caracteriacutestica da fabricaccedilatildeo E eacute justamente no cerne dessa confusatildeo conceitual
que segundo ela o pensamento de Marx se encontra ndash mais constitui um caso
exemplar Sendo assim deixemos que nesse aspecto decisivo Arendt fale por si
mesma
A afirmaccedilatildeo de Marx de que a ldquoviolecircncia eacute a parteira de toda velha sociedade
prenhe de uma sociedade novardquo ou seja de toda mudanccedila histoacuterica ou poliacutetica
somente sintetiza a convicccedilatildeo dominante em toda a era moderna e deduz as
consequumlecircncias de sua crenccedila mais iacutentima de que a histoacuteria eacute ldquofeitardquo pelo homem
do mesmo modo que a natureza eacute ldquofeitardquo por Deus
Como tem sido persistente e bem sucedida a transformaccedilatildeo da accedilatildeo em
modalidade da fabricaccedilatildeo eacute facilmente atestada por toda terminologia da teoria e
do pensamento poliacutetico a qual torna quase impossiacutevel discutir esses assuntos sem
que se utilize a categoria de meios e fins e se raciocine em termos de
instrumentalidade (Arendt 1998 pp 228-9)
Num artigo de 1953 intitulado ldquoReligiatildeo e poliacuteticardquo logo apoacutes apoiar-se em
Karl Mannheim para ressaltar a dimensatildeo ideoloacutegica do marxismo e desqualificar
a abordagem acerca da relaccedilatildeo entre ser e consciecircncia por este preconizada[9]
Arendt diz
9
A relutacircncia de Marx em levar a seacuterio ldquoo que cada eacutepoca diz sobre si e imagina
serrdquo derivava de sua convicccedilatildeo de que a accedilatildeo poliacutetica era basicamente violecircncia e
que a violecircncia era a parteira da histoacuteria Tal convicccedilatildeo natildeo se devia agrave ferocidade
gratuita de um temperamento revolucionaacuterio mas tem seu lugar na filosofia da
histoacuteria de Marx que sustenta que a histoacuteria representada pelos homens na
modalidade da falsa consciecircncia isto eacute na modalidade das ideologias pode ser
feita pelos homens tendo eles plena consciecircncia do que estatildeo fazendo Eacute
justamente esse lado humanista dos ensinamentos de Marx que o levou a insistir
no caraacuteter violento da accedilatildeo poliacutetica ele via o fazer da histoacuteria em termos de
fabricaccedilatildeo o homem histoacuterico era para ele basicamente Homo faber A fabricaccedilatildeo
de todas as coisas feitas pelo homem implica necessariamente alguma violecircncia
que incidiraacute sobre a coisa que se torna a mateacuteria baacutesica do que foi fabricado
(Arendt 2002 pp 62-3)
Marx assim teria compreendido a histoacuteria como resultado do ldquofazerrdquo
humano como resultado de atos teleoloacutegicos que nos moldes da atividade
artesanal ndash da fabricaccedilatildeo ndash fazem do ldquoHomemrdquo ndash e natildeo dos homens ndash o artesatildeo
consciente de sua histoacuteria (cf Canovan 1998) Eacute como se Marx tivesse
transformado o processo histoacuterico resultante de muacuteltiplas interaccedilotildees dos seres
humanos entre si (e simultaneamente destes com a natureza) num processo
instrumental Ou dito de outro modo eacute como se tal qual um Hegel materialista
ele concebesse a proacutepria sociedade como um ser demiuacutergico dotado de
capacidades e formas de atuaccedilatildeo semelhantes agravequelas do indiviacuteduo singular que
substituiacutesse o Espiacuterito e o seu processo de sua autoconscientizaccedilatildeo pelos
proacuteprios homens ndash ou pelo ldquoHomemrdquo ndash e seus atos de ldquofazer a histoacuteriardquo de
ldquofabricarrdquo a sociedade ideal (comunista) Neste caso a consciecircncia de classe
cumpriria o mesmo papel que a hegeliana ldquoastuacutecia da Razatildeordquo De qualquer modo
em ambos os casos natildeo satildeo exatamente os homens em sua multiplicidade de
experiecircncias e expectativas que agem em parte de maneira coordenada e
consciente e em parte conflitiva e inconscientemente mas ao contraacuterio eacute o
ldquoHomemrdquo a humanidade unificada que age de maneira coordenada consciente e
controlada como se fosse o ldquoartesatildeo do mundordquo
10
A visatildeo marxista da atividade revolucionaacuteria seria entatildeo o resultado da
imputaccedilatildeo inconsciente de qualidades da fabricaccedilatildeo agrave accedilatildeo a qual por meio da
violecircncia[10] e orientada pelos mesmos criteacuterios de meios e fins que regem a
fabricaccedilatildeo faria os homens efetuarem o parto da nova sociedade cujo rebento
encontra-se emaranhado nas iacutentimas contradiccedilotildees da velha formaccedilatildeo social Seria
justamente esta exaltaccedilatildeo da violecircncia da ldquouacuteltima ratiordquo tiacutepica das relaccedilotildees entre
os baacuterbaros e caracteriacutestica da condiccedilatildeo do escravo[11] a demonstraccedilatildeo de que
em Marx predomina uma ldquohostilidade antitradicional ao discursordquo agrave busca do
consenso agrave poliacutetica (Arendt 1972 p 50)
Nesse contexto o pensamento poliacutetico de Marx representa segundo Arendt
o fim de uma trajetoacuteria do pensamento poliacutetico tradicional iniciada pelas filosofias
de Platatildeo e Aristoacuteteles Pois com esses pensadores a filosofia teria num duplo
salto se distanciado dos assuntos humanos onde reina a confusatildeo e a ilusatildeo
para retornar a eles ilustrada pela razatildeo isto eacute ldquopara [esta a razatildeo] impor seus
padrotildees aos assuntos humanosrdquo (Arendt 1972 p 44) fato altamente positivo que
teria demarcado o iniacutecio de uma fecunda relaccedilatildeo entre a filosofia e os assuntos
humanos entre ela e a poliacutetica Enquanto com Marx desgraccediladamente teria
acontecido o oposto visto que ele ldquorepudiou a Filosofia para poder lsquorealizaacute-larsquo na
poliacuteticardquo (Arendt 1972 p 44) Para ele em vez de a filosofia permanecer uma
espeacutecie de reflexatildeo sistemaacutetica e criacutetica constituiacuteda de certo modo apartada do
processo histoacuterico ela passou a emanar da proacutepria histoacuteria ldquoou antes a
consciecircncia poliacutetica [deriva] da consciecircncia histoacutericardquo (Arendt 1972 p 114) E
ainda segundo Arendt um dos fundamentos desta concepccedilatildeo reside na
identificaccedilatildeo estabelecida no mundo moderno entre sentido e fim Por meio dela
o sentido como termo que expressa o significado de um acontecimento ndash portanto
resultante de uma explicaccedilatildeo post factum ndash foi transformado em fim de
significado de acontecimentos passados passou a preacute-idear situaccedilotildees futuras
Com isso as accedilotildees individuais e instrumentais (realizadas com a finalidade de)
que explicam o processo de trabalho e seus resultados passaram a servir de
modelo para a explicaccedilatildeo do porquecirc de o indiviacuteduo (eou a sociedade) ser o que eacute
11
e portanto executar esta atividade (eou possuir tais caracteriacutesticas) ndash ie como
se o presente fosse a manifestaccedilatildeo ldquoaqui e agorardquo da necessidade imanente de
atos passados Enfim ao considerar as sociedades modernas degradadoras do
sentido em fim Arendt avalia que o marxismo parte integrante desta modernidade
levou esta degradaccedilatildeo agraves uacuteltimas consequumlecircncias e assim transformou a histoacuteria
em teleologia
Pois bem se ainda segundo Arendt a teoria da histoacuteria como fabricaccedilatildeo
natildeo eacute exclusiva do pensamento marxista mas constitui uma caracteriacutestica do
pensamento poliacutetico moderno aquele se distingue
de todas as demais teorias em que a noccedilatildeo de ldquofazer a histoacuteriardquo encontrou abrigo
somente [pelo] fato de apenas ele ter percebido que se se toma a histoacuteria como o
objeto de um processo de fabricaccedilatildeo ou elaboraccedilatildeo deve sobrevir um momento
em que esse objeto eacute completado e que desde que se imagina ser possiacutevel fazer
a histoacuteria natildeo se pode escapar agrave consequumlecircncia de que haveraacute um fim para a
histoacuteria (Arendt 1972 p 114)
Para que entatildeo os marxistas respondem aos apocaliacutepticos que
advogam o fim das ideologias e da histoacuteria se com um golpe de matildeo o proacuteprio
Marx eliminou a ambas Nesta visatildeo tal como o objeto que inicialmente preacute-
ideado na cabeccedila do artesatildeo completa seu ciclo de produccedilatildeo torna-se objetivo
finda a histoacuteria chegaria ao seu fim com a realizaccedilatildeo da filosofia pelo proletariado
ndash nos invertidos termos hegelianos seria este o momento da autoconscientizaccedilatildeo
do Espiacuterito da plena identificaccedilatildeo entre conceito e objeto entre pensamento e
realidade ndash fato que demarcaria o controle da vida humana nos mesmos moldes
em que o artesatildeo domina a mateacuteria a ser plasmada e lhe fornece uma forma final
Mas se Marx eacute tratado como uma espeacutecie de Hegel materialista eacute certo que
as ideacuteias de ambos natildeo satildeo idecircnticas Tanto que em oposiccedilatildeo agrave sua
predecessora hegeliana a coruja de Minerva marxiana natildeo alccedila vocirco somente ao
crepuacutesculo ela capta conceitualmente as condiccedilotildees em que este pode ocorrer e
12
assim auxilia na sua realizaccedilatildeo Outrossim mais importante do que saber se esta
caracteriacutestica do pensamento de Marx eacute adequadamente entendida por Arendt eacute
saber que para ela esta caracteriacutestica expressa um determinismo que torna
supeacuterflua qualquer discussatildeo sobre as finalidades e o conteuacutedo dos processos
sociais dado que a histoacuteria fabricada modelada como se fosse um objeto pelo
proletariado demiuacutergico torna a palavra o discurso um mero instrumento de
justificaccedilatildeo ideoloacutegica de ideacuteias preconcebidas a serem materializadas Foi
partindo desses pressupostos que Arendt pocircde afirmar
O que era entatildeo inexplicaacutevel na histoacuteria [a saber os muacuteltiplos interesses
conflitantes que tornam a accedilatildeo poliacutetica ineficaz no alcance de seus objetivos e a
existecircncia de um sentido no processo histoacuterico] passa agora a ser visto como o
reflexo de um significado que seguramente era tanto um produto humano quanto o
desenvolvimento teacutecnico do mundo O problema de humanizar os assuntos
poliacutetico-histoacutericos resumia-se consequumlentemente em descobrir como dominar
nossas proacuteprias accedilotildees assim como dominamos nossa capacidade produtiva ou
em outras palavras como ldquofazerrdquo histoacuteria assim como fazemos outras coisas Uma
vez que isso seja alcanccedilado com a vitoacuteria do proletariado natildeo precisaremos mais
de ideologias Mas ateacute laacute todas as accedilotildees poliacuteticas preceitos legais e
pensamentos espirituais continuaratildeo escondendo os motivos inconfessos de uma
sociedade que somente finge agir politicamente mas que na verdade ldquofaz
histoacuteriardquo ainda que de uma maneira inconsciente isto eacute natildeo-humana (Arendt
2002 p 63)
Natildeo constituindo a esfera do pleno exerciacutecio do debate de ideacuteias entre
indiviacuteduos livres e iguais ndash indiviacuteduos que por meio do uso intenso da palavra do
discurso do muacutetuo esclarecimento estabelecem consensos mais ou menos gerais
sobre os fundamentos e as finalidades da accedilatildeo ndash a poliacutetica atual constitui um
simulacro da poliacutetica autecircntica Tal como a entende Arendt esta constitui uma
esfera (puacuteblica) que antes de qualquer outra coisa deve estar apartada da
violecircncia na medida em que esta nega a palavra o discurso o debate e portanto
a accedilatildeo Definindo assim o que satildeo meios e fins o que eacute essencial e o que eacute
imposiccedilatildeo extriacutenseca agrave poliacutetica Arendt reitera que ldquoo poder eacute de fato a essecircncia
13
de todo governo mas natildeo a violecircnciardquo (Arendt 1994 p 40) Por conseguinte
sendo de natureza instrumental a violecircncia ldquocomo todos os meios sempre
depende da orientaccedilatildeo e da justificaccedilatildeo pelo fim que almeja E aquilo que
necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser a essecircncia de nadardquo (Arendt
1994 p 41) O poder encontra sua legitimidade no passado a violecircncia se
justifica pelas consequumlecircncias futuras aquele pela sua constituiccedilatildeo esta pelos
seus objetivos Em razatildeo disso ldquoa violecircncia pode ser justificaacutevel mas nunca seraacute
legiacutetimardquo (Arendt 1994 p 41) Enfim ao vincularem a violecircncia ao poder as
concepccedilotildees poliacuteticas hegemocircnicas dentre elas o marxismo demonstram a
incompreensatildeo de que aqueles satildeo na verdade opostos ldquoonde um domina
absolutamente o outro estaacute ausenterdquo (Arendt 1994 p 44)
Para natildeo cindir a argumentaccedilatildeo criacutetica e com isso tornaacute-la
demasiadamente prolixa retornaremos mais adiante a estas afirmaccedilotildees de
Hannah Arendt sobre poliacutetica e violecircncia Por ora apoacutes termos descrito algumas
categorias centrais do pensamento arendtiano e em especiacutefico os fundamentos
de sua criacutetica agrave relaccedilatildeo entre poliacutetica e violecircncia em Marx passemos na mesma
sequumlecircncia de ideacuteias desenvolvida ateacute aqui ao confronto dessas reflexotildees com
aquelas que a nosso ver correspondem adequadamente tanto ao corpo quanto
ao espiacuterito da obra marxiana
III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
Consideramos desnecessaacuterio demonstrar ad nauseam como a concepccedilatildeo
de trabalho em Marx difere substancialmente daquelas atividades que Arendt
denomina pelos vocaacutebulos trabalho e fabricaccedilatildeo pois para o nosso objetivo
basta que o realizemos apenas em suas linhas gerais Assim em primeiro lugar eacute
necessaacuterio relembrar que ao contraacuterio da concepccedilatildeo arendtiana na obra de Marx
o trabalho natildeo consiste numa atividade que nos vincularia mais ao mundo dos
animais do que ao dos seres humanos propriamente ditos Para ele muito distante
14
de qualquer ilusatildeo acerca de uma vida sem trabalho[12] esta atividade constitui um
momento efetivamente fundante e fundamental da vida humana sem a qual aiacute
sim natildeo nos distinguiriacuteamos em absolutamente nada dos proacuteprios animais[13] Em
termos precisos podemos dizer que o animal natildeo se relaciona com a natureza
ele apenas vive nela eacute sua parte integrante[14] natildeo se distinguindo dela como um
ser consciente o animal eacute portanto incapaz de estabelecer uma mediaccedilatildeo
regulada conscientemente controlada com a natureza (Marx 1985 p 149)
apenas respondendo com maior ou menor labilidade agraves determinaccedilotildees e agraves
constantes mudanccedilas de seu haacutebitat O ser humano por sua vez age de maneira
preacute-ideada em sua atividade metaboacutelica pois em todos os momentos do processo
de trabalho lhe ldquoeacute exigida a vontade orientada a um fimrdquo (Marx 1985 p 150)
Assim o sujeito que trabalha ldquonatildeo apenas efetua uma transformaccedilatildeo da forma da
mateacuteria natural realiza ao mesmo tempo na mateacuteria natural seu objetivo que ele
sabe que determina como lei a espeacutecie e o modo de sua atividade e ao qual tem
de subordinar sua vontaderdquo (Marx 1985 p 150) Natildeo sendo portanto a mera
expressatildeo de determinaccedilotildees ou epifenocircmenos bioloacutegicos o trabalho eacute uma
atividade na qual inevitavelmente entrelaccedilam-se o pensar e o fazer a
consciecircncia e a accedilatildeo com aquela orientando esta para transformar a mateacuteria com
vistas a dar-lhe uma forma adequada agrave satisfaccedilatildeo de alguma necessidade
humana A ideacuteia mediada pelo trabalho cristaliza-se no objeto objeto que longe
de ser meramente natural eacute a manifestaccedilatildeo material da subjetividade humana
posto que soacute existe em razatildeo desta Tanto que no final temos que ldquoo trabalho
estaacute objetivado e o objeto trabalhadordquo (Marx 1985 p 151) num mesmo ato a
subjetividade exteriorizou-se e a materialidade tornou-se subjetiva[15] E eacute claro
como esta objetivaccedilatildeo eacute resultado de accedilotildees conscientes o metabolismo dos
homens em relaccedilatildeo agrave natureza eacute muito mais dinacircmico mutante do que aquele
efetuado pelos animais resultando em formas materiais e sociais
permanentemente alteradas ocorrendo a mesma coisa com a proacutepria
subjetividade humana
15
Sendo uma atividade humanamente produtiva o trabalho natildeo eacute apenas a
relaccedilatildeo do homem com a natureza eacute tambeacutem uma relaccedilatildeo que ocorre entre os
proacuteprios homens ndash e verdadeiramente como trabalho soacute existe a partir desta
relaccedilatildeo Ainda em sua juventude num texto seminal para a elaboraccedilatildeo de suas
reflexotildees posteriores Marx nos diz que o homem ldquosoacute eacute um ser consciente quer
dizer a sua vida constitui para ele um objeto porque eacute um ser geneacuterico
Unicamente por isso eacute que sua atividade surge como atividade livrerdquo (Marx 1985
p 165) Se natildeo fosse um ser social geneacuterico produto e produtor de si e do
gecircnero o ser humano natildeo possuiria as faculdades (consciecircncia linguagem) sem
as quais paradoxalmente o proacuteprio trabalho natildeo existiria E que simultaneamente
como dissemos permitem o aprimoramento e a expansatildeo das fronteiras da vida
humana (individual e coletiva) para muito aleacutem daquelas a que estatildeo restritos os
seres vivos naturais[16]
Nesse caso parece-nos oacutebvio que eacute completamente irrelevante saber se
uma atividade produtiva resulta em produtos mais ou menos duraacuteveis ndash por
exemplo em alimentos ou objetos do mobiliaacuterio ndash para classificaacute-la como estando
mais proacutexima ou mais distante da vida propriamente humana Seja numa
sociedade especiacutefica ou ao longo da histoacuteria humana um produto pode durar mais
ou menos tempo devido a um sem-nuacutemero de fatores tais como os materiais e a
tecnologia empregados as relaccedilotildees sociais sob as quais foi produzido as classes
eou grupos sociais que o utilizaratildeo ndash definindo por exemplo a velocidade e o
perfil de sua obsolescecircncia ou seja se esta eacute real materialmente efetiva ou
socialmente condicionada ndash entre outros e natildeo apenas devido agrave maior ou menor
proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica dos indiviacuteduos A rigor a produccedilatildeo de um
alimento ou medicamento por meio de procedimentos complexos e sofisticados
mas cujo consumo eacute quase imediato (para Arendt ldquoproduto do trabalhordquo)
certamente expressa niacuteveis mais elevados de humanizaccedilatildeo do que a produccedilatildeo de
uma tosca mesa de madeira que perdura seacuteculos passando de geraccedilatildeo a
geraccedilatildeo (Marx 1985 ldquoproduto da fabricaccedilatildeordquo)
16
Essas observaccedilotildees acerca da relaccedilatildeo entre as atividades produtivas e a
durabilidade de suas produccedilotildees natildeo significa em hipoacutetese alguma que a
durabilidade ou natildeo de um produto seja irrelevante para os indiviacuteduos e a
sociedade em geral ateacute mesmo porque os produtos satildeo elementos constitutivos e
condicionantes de certas caracteriacutesticas dos processos de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo
das formaccedilotildees sociais Significa apenas que per se ela natildeo eacute relevante para
mensurar o niacutevel de humanizaccedilatildeo da atividade e das qualificaccedilotildees subjetivas nela
envolvidas Assim nas sociedades capitalistas por exemplo saber se um
determinado objeto constitui parte do maquinaacuterio ou da edificaccedilatildeo (capital fixo) ou
entatildeo se eacute apenas insumo mateacuteria-prima ou meio de subsistecircncia (capital
circulante) eacute significativo prioritariamente em razatildeo de que as proporccedilotildees de seus
respectivos usos e o seu periacuteodo de rotaccedilatildeo afetam de maneira decisiva as taxas
de lucro do capital investido Aleacutem do mais ldquoo fato de um valor de uso aparecer
como mateacuteria-prima meio de trabalho ou produto depende totalmente de sua
funccedilatildeo determinada no processo de trabalho da posiccedilatildeo que nele ocupa e com a
mudanccedila dessa posiccedilatildeo variam essas determinaccedilotildeesrdquo (Marx 1985 p 152)
Quase desnecessaacuterio dizer que tal posiccedilatildeo tambeacutem varia de acordo com o niacutevel
de desenvolvimento das forccedilas produtivas e das relaccedilotildees sociais que constituem a
sociedade em questatildeo Em siacutentese se natildeo podemos definir um objeto como
sendo o resultado de uma atividade inferior ou superior na hierarquia das
atividades humanas (da vita activa arendtiana) devido agrave sua durabilidade[17] ou agrave
sua proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica (agrave manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo do corpo)
qualquer tentativa de mensuraccedilatildeo sob este prisma nos parece completamente
arbitraacuteria inclusive eacute claro a que se funda na distinccedilatildeo arendtiana entre trabalho
e fabricaccedilatildeo
Enfatizar estas caracteriacutesticas do trabalho tambeacutem eacute importante porque
contrariamente agraves qualificaccedilotildees inerentes a ele e agrave fabricaccedilatildeo que de acordo com
Arendt estatildeo diretamente relacionadas agraves qualidades do Animal laborans e do
Homo faber no pensamento marxiano inexiste qualquer menccedilatildeo a uma essecircncia
a-histoacuterica do trabalho isto eacute uma essecircncia que agrave revelia da forma societaacuteria em
17
que a atividade se realiza imprime agrave subjetividade daquele que o executa
inelutaacuteveis qualificaccedilotildees Muito ao contraacuterio As anaacutelises marxianas satildeo
profundamente ancoradas na historicidade dos fenocircmenos naturais e sociais
negando qualquer essencialismo em relaccedilatildeo ao trabalho ou a qualquer outra
atividade bem como ao indiviacuteduo ou grupo de indiviacuteduos que o executa Para
Marx ldquoa essecircncia humana natildeo eacute uma abstraccedilatildeo inerente ao indiviacuteduo singular
Em sua realidade eacute o conjunto das relaccedilotildees sociaisrdquo (Marx 1987 p 13) Por
conseguinte em aberta oposiccedilatildeo agraves proposiccedilotildees arendtianas afirmamos que o
produtivismo natildeo constitui uma caracteriacutestica inerente ao trabalho ndash que com a
ascensatildeo deste agrave esfera puacuteblica teria transbordado as fronteiras da vida privada e
se generalizado socialmente ndash mas sim uma caracteriacutestica que possui suas raiacutezes
nas formas de sociabilidade vigentes no mundo contemporacircneo sejam estas
formas capitalistas ou poacutes-capitalistas[18] Dito de outro modo se o trabalho
assalariado alienado constitui cada vez mais a forma predominante da atividade
produtiva e reprodutiva dos indiviacuteduos nestas sociedades tal desventura natildeo
decorre de uma essecircncia que seja inerente a ele tanto quanto agraves formas preteacuteritas
de trabalho e que tenha se desvencilhado na atualidade das amarras que
limitavam sua expansatildeo A raiz deste fenocircmeno reside no fato de o capital
constituir a relaccedilatildeo social baacutesica das sociedades assinaladas generalizando
aquela forma de trabalho E a propoacutesito do essencialismo produtivista do trabalho
em vaacuterias passagens de sua obra Marx nos mostrou as diferenccedilas existentes
entre as sociedades antigas e as modernas sociedades capitalistas Numa dessas
passagens ele lembra que
Entre os antigos natildeo encontramos uma uacutenica investigaccedilatildeo a propoacutesito de qual a
forma de propriedade etc que seria a mais produtiva que geraria o maacuteximo de
riqueza A riqueza natildeo constituiacutea o objetivo da produccedilatildeo A pesquisa sempre
era sobre qual o tipo de propriedade que geraria os melhores cidadatildeos (Marx
1975 p 80 grifos nossos)
Mesmo em seu acircmbito estritamente privado a propriedade natildeo estava
relacionada prioritariamente aos interesses egoiacutestas do indiviacuteduo mas eram os 18
interesses deste ndash e portanto o uso que fazia daquela ndash que estavam
circunscritos e condicionados pelos interesses da comunidade da qual fazia parte
por mais restrita que esta fosse em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo total Desse modo nestas
formaccedilotildees sociais as atividades produtivas natildeo eram movidas por uma ldquoinerenterdquo
racionalidade produtivista uma racionalidade cujo suposto transbordamento das
fronteiras privadas e o estabelecimento do domiacutenio sobre as outras atividades
caracterizariam ndash segundo Arendt ndash o mundo moderno Em relaccedilatildeo a este sua
principal caracteriacutestica consiste na centralidade na generalizaccedilatildeo e no crescente
predomiacutenio do capital no conjunto das relaccedilotildees sociais Enfim eacute justamente esta
centralidade do capital e suas consequumlecircncias que produz o assalariamento
generalizado dos indiviacuteduos e a subsunccedilatildeo da reproduccedilatildeo socioeconocircmica como
um todo agrave loacutegica produtivista
Numa pequena digressatildeo visando apenas a estreitar as margens de accedilatildeo
das leituras vulgares do marxismo eacute necessaacuterio ressaltar que esta afirmaccedilatildeo da
centralidade do capital nas relaccedilotildees sociais contemporacircneas e do espraiamento
de sua influecircncia pela totalidade social natildeo implica reducionismo econocircmico Na
verdade ela significa apenas a explicitaccedilatildeo de caracteriacutesticas inerentes ao capital
cuja tendecircncia a subsumir a multiplicidade de dimensotildees da vida humana agrave sua
loacutegica acumulatoacuteria expansionista eacute um fato incontestaacutevel ontologicamente
enraizado e racionalmente apreensiacutevel e natildeo um grave equiacutevoco teoacuterico de um
pensamento incapaz de atentar para a complexidade do real Eacute nesse sentido que
comentando a famosa proposiccedilatildeo de Marx segundo a qual ldquoNatildeo eacute a consciecircncia
dos homens que determina o seu ser mas ao contraacuterio eacute o seu ser social que
determina sua consciecircnciardquo[19] (Marx 1982 p 25) Lukaacutecs afirma ldquonesse trecho o
mundo das formas de consciecircncia e seus conteuacutedos natildeo eacute visto como um produto
direto da estrutura econocircmica mas da totalidade do ser social A determinaccedilatildeo da
consciecircncia pelo ser social portanto eacute entendida em seu sentido mais geralrdquo
(Lukaacutecs 1979 p 41) ndash e natildeo como expressatildeo direta mecacircnica e restrita dos
processos econocircmicos
19
Neste toacutepico ateacute o momento detivemo-nos nas distintas concepccedilotildees
acerca do trabalho presentes em Arendt e Marx O caso poreacutem eacute que apesar de
significativas tais concepccedilotildees natildeo circunscrevem sua influecircncia agraves fronteiras
econocircmicas mas extravasam a economia e deitam raiacutezes na totalidade de suas
reflexotildees sobre a vida humana Assim se Arendt tem razatildeo em afirmar que para
Marx o trabalho ndash e a fabricaccedilatildeo apesar da irrelevacircncia desta distinccedilatildeo (trabalho x
fabricaccedilatildeo) no quadro conceitual marxiano ndash eacute tratado como uma atividade
teleoloacutegica cujas relaccedilotildees que estabelece com as outras atividades constitutivas
da vida humana satildeo fundamentais para delinear as caracteriacutesticas da totalidade
social nada justifica sua transposiccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos do trabalho
(concreto) para a concepccedilatildeo de histoacuteria marxiana No entanto eacute justamente isto
que ela faz ao afirmar que em Marx a histoacuteria eacute entendida como um processo
similar ao da fabricaccedilatildeo do artesanato um processo que contemporaneamente
exige a intervenccedilatildeo consciente de um sujeito demiuacutergico ndash o proletariado ndash para
plasmar a nova forma societaacuteria tal como o artesatildeo faz com sua mateacuteria-prima E
igualmente ao afirmar que do mesmo modo que a materializaccedilatildeo do objeto preacute-
ideado expressa o fim do processo gerido pelo artesatildeo a realizaccedilatildeo da sociedade
ldquopreacute-ideadardquo pelo proletariado significaria o fim da histoacuteria
Ora uma das questotildees mais complexas do pensamento social fruto de
inuacutemeras polecircmicas teorias e tratados ao longo dos uacuteltimos seacuteculos ndash
especialmente apoacutes o advento da sociologia ndash eacute a articulaccedilatildeo das accedilotildees
individuais e a reproduccedilatildeo da totalidade social E mesmo certos da impossibilidade
de adentrar no emaranhado de questotildees suscitado pelo tema natildeo podemos omitir
a informaccedilatildeo de que uma leitura criteriosa dos textos marxianos demonstra sem
grande dificuldade a improcedecircncia das criacuteticas de Hannah Arendt De modo
algum condiz com o ldquoespiacuteritordquo da obra marxiana a identificaccedilatildeo da reproduccedilatildeo
social como um todo e nem dos processos de transiccedilatildeo de uma forma societaacuteria a
outra ao modus operandi do trabalho O que natildeo significa por sua vez que a
instabilidade econocircmica e social natildeo fosse objeto de suas preocupaccedilotildees A bem
da verdade sendo o primeiro a entender a centralidade do trabalho e suas
20
consequumlecircncias na produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana Marx se assenhoreou
desde os Manuscritos de 1844 de conhecimentos suficientemente significativos
para criticar em relaccedilatildeo agravequele aspecto inicialmente citado das relaccedilotildees entre
indiviacuteduo e sociedade tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo Assim em
vez da naturalizaccedilatildeo da histoacuteria humana ou da arbitrariedade da vontade e da
razatildeo em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmaccedilatildeo dos
seres humanos como autoprodutores de sua proacutepria histoacuteria e simultaneamente
uma criacutetica agrave hipostasia das potencialidades da razatildeo e das forccedilas humanas nesta
autoproduccedilatildeo Invariavelmente suas anaacutelises reiteram que ldquoOs homens fazem
sua proacutepria histoacuteria mas natildeo a fazem como querem natildeo a fazem sob
circunstacircncias de sua proacutepria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam
diretamente legadas e transmitidas pelo passadordquo (Marx 1986 p 17 grifos
nossos) Nos dias atuais natildeo eacute difiacutecil perceber como por si soacute esta frase nos
mostra quatildeo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e
da realpolitik que cada qual ao seu modo como faces de uma mesma moeda
dominam os discursos poliacuteticos e econocircmicos em voga
Ainda no que diz respeito agrave questatildeo do sujeito demiuacutergico e do finalismo
histoacuterico eacute necessaacuterio que se entenda que mesmo em sua fastidiosa reproduccedilatildeo
cotidiana o trabalho eacute sempre um ato de criaccedilatildeo criaccedilatildeo natildeo apenas de coisas
novas de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma
humanamente apropriada mas criaccedilatildeo da proacutepria subjetividade humana que se
renova a partir das experiecircncias possibilitadas pelos meios e resultados de sua
produccedilatildeo e pelas relaccedilotildees sociais que os envolvem Tendo em mente esta
dinacircmica intriacutenseca agrave atividade vital dos seres humanos e ao mesmo tempo o
caraacuteter que para Marx a totalidade do real[20] assume como concreto pensado
(Marx 1982 p 15) nem a mais poderosa das inteligecircncias humanas tampouco o
concurso delas sob a forma do coletivo partidaacuterio pode em termos conceituais
apreender subsumir absolutamente o real ao pensamento ndash e muito menos
sujeitar as proacuteprias relaccedilotildees sociais a um controle assemelhado ao das teacutecnicas
produtivas
21
Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final
entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja
rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz
consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de
Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo
sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele
ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von
Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia
hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas
sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais
geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de
onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta
observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica
especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente
pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto
natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o
proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela
histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e
seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o
conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade
histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens
em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo
possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas
Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo
de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos
individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica
intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos
altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que
nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que
22
em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a
divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente
a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de
todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada
espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das
diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como
reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori
e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do
trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural
interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado
subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo
social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo
reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo
exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo
que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as
condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)
Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais
de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente
as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de
posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo
(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa
O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias
normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de
finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem
realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute
inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)
Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante
entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de
indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de
eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a
23
casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece
porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da
ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas
significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias
sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca
controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias
objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que
encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano
Em sua Ontologia do ser social ele afirma
Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada
vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as
decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da
totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse
conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa
relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso
porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o
movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da
histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas
etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local
tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que
tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de
transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que
satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do
que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e
consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso
aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)
Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos
individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha
ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias
mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade
oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem
econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo
24
social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve
ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que
historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os
processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem
uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle
destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou
A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a
anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo
incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do
trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer
controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma
infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo
autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais
entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda
organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a
sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)
Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus
ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os
limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de
intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal
qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos
uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana
(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do
pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os
limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir
para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta
ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo
No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras
experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao
nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25
pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas
relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi
drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente
desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses
capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de
regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo
resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica
reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas
experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da
humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua
loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a
accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com
seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social
passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees
marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de
regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos
moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a
consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria
redenccedilatildeo universal
O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos
ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as
acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels
salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido
um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o
movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)
O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se
realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico
do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana
de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo
comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o
26
comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a
forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo
nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao
desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma
sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o
comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no
fim da histoacuteria[22]
Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento
marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute
capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e
desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo
ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso
numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]
mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou
natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana
Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees
que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim
contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das
caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da
limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os
homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara
manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal
Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos
extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a
violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo
Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do
capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre
a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os
revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila
27
material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a
utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de
recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o
revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico
Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder
material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria
se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz
de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e
argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar
o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p
497)
Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos
(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o
discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista
muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)
que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no
encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as
sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece
ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um
discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos
constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das
individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades
eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano
mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em
campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar
plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de
sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar
sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio
colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel
convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e
28
culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem
respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes
subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]
Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)
de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio
das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto
natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive
atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie
No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias
naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o
crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda
escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-
sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo
contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da
incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees
materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos
afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus
processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos
inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos
da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades
humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute
o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses
trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)
Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas
produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa
penetrante passagem sobre o tema lemos
O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto
dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de
29
desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse
nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos
demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua
vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado
naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo
determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas
relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu
proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx
1973 pp 89-90)
Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos
sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a
centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos
aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza
e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham
vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a
intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o
equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente
econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida
social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da
permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas
relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito
da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas
universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada
das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os
homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria
mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das
forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo
adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos
homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia
O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se
compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30
neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo
do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo
pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso
histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive
violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste
(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso
resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na
sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os
antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por
ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses
das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos
Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica
natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades
reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a
estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico
Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da
cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios
juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da
sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela
que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de
duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que
complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo
concreto
O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em
oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem
de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade
desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem
leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da
realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na
comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na
31
sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como
meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes
estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser
profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real
eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem
eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma
soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de
uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)
Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e
imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos
privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma
revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res
publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja
eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da
proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a
violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica
consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a
accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a
vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma
alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento
Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a
essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o
proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua
violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre
dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo
de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a
perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a
violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt
segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser
a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente
32
pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o
antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as
relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de
supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano
Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder
dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se
faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de
violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o
poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa
revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades
viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento
humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo
profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma
resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como
desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo
Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado
como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos
do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute
poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de
propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)
Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de
dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao
contraacuterio
Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como
classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como
classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as
condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em
geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)
33
Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx
1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo
poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer
forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas
formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar
em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis
Quanto a isso eacute importante relembrar que
O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos
limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute
capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade
Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais
ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e
espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a
fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)
Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-
violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo
violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-
socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo
(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-
humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo
humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a
rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios
quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de
coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras
A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um
anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo
(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim
negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se
natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para
natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a
34
contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo
(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-
humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-
violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que
assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)
Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx
caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu
proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios
empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo
entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez
de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do
humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-
capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo
dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os
torna incompatiacuteveis[27]
IV Agrave guisa de conclusatildeo
Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de
Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda
distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de
Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do
pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas
que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio
da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente
sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir
de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns
aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram
envolvidos pela leitura arendtiana
35
Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem
ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem
duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho
Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e
estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do
solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo
neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade
com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se
reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos
intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro
porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento
marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual
formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco
em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e
Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para
o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e
revolucionaacuterios
Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo
XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho
caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos
revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso
imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob
muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes
natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca
demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo
sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas
proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os
argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro
sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas
ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma
36
verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto
que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute
cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido
V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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Notas
38
Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo
Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo
teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a
estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o
ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque
somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a
abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos
que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e
isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a
accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num
constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas
produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou
menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de
consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados
a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo
antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em
termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e
inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho
como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt
1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels
segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte
daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos
homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e
39
osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida
real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos
desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo
corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade
efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa
produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma
aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio
Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para
produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas
necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a
Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de
qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas
formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na
constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso
ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro
Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se
distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo
reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele
duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo
(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute
afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels
1986 p 19)
40
[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade
esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas
daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades
capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas
carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e
propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que
determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a
p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que
sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram
transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em
grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos
paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital
Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo
crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos
estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem
consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo
social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas
conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento
marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo
implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de
estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo
significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo
dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma
luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude
do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de
uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o
41
entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada
dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas
caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos
do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no
fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje
muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o
sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e
saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente
a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente
severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de
personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de
objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de
produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e
personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar
condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua
perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento
universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social
como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p
85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que
apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo
aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do
esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e
complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em
relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios
revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA
transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em
42
43
massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
-
vida efetivamente humana produz uma espeacutecie de segunda natureza que
possibilita e daacute forma objetiva agraves relaccedilotildees entre os homens ou seja fornece a
base material que transcende as demandas fisioloacutegicas e ao mesmo tempo as
individualidades humanas (histoacuterica e espacialmente) sedimentando a vida em
sociedade a proacutepria vida humana[4]
A subsunccedilatildeo da produccedilatildeo dos objetos duraacuteveis[5] agrave loacutegica e agraves demandas
do Animal laborans ndash ou seja ao inesgotaacutevel ciclo produccedilatildeo-consumo ndash implica o
decliacutenio de um mundo humano objetivo e duraacutevel de um mundo imprescindiacutevel
para o desenvolvimento de uma vida efetivamente humana tanto no acircmbito
individualfamiliar quanto no coletivopoliacutetico Em razatildeo disso numa sociedade que
valoriza o trabalho em detrimento da fabricaccedilatildeo e com isso faz que as praacuteticas e
ideais que regem o trabalho predominem na produccedilatildeo de objetos o mundo
objetivo torna-se cada vez mais desqualificado para sustentar a proacutepria vida
humana[6]
Jaacute sabemos entretanto que as atividades da vita activa natildeo se resumem
ao trabalho e agrave fabricaccedilatildeo Haacute tambeacutem a accedilatildeo a mais elevada de suas
atividades Sinteticamente podemos defini-la como a uacutenica atividade livre e a
mediadora par excellence da plural relaccedilatildeo homem-homem cujo ambiente de
exerciacutecio eacute a esfera poliacutetica Eacute por meio da accedilatildeo e do discurso que a explicita (isto
eacute que torna possiacutevel o debate para aclarar e legitimar a proacutepria finalidade e os
meios da accedilatildeo do agente ou agentes poliacuteticos) que os homens relacionam-se
como seres livres natildeo vinculados a demandas materiais e portanto natildeo tendo
por objeto de sua atividade o mundo material mas a si mesmos (indiviacuteduos e
gecircnero humano) e a suas autopostas preocupaccedilotildees com os bens comum e
individual
Ainda no que diz respeito agrave accedilatildeo Arendt observa que se a esfera poliacutetica
relaciona os homens como iguais sendo cada individualidade dotada dos mesmos
direitos que as outras ndash primordialmente dos direitos de agir e discursar ndash este
6
relacionamento soacute eacute possiacutevel porque apesar de iguais em direitos os homens satildeo
diferentes entre si
Se os homens natildeo se distinguissem se cada ser humano natildeo diferisse de todos
os que existiram existem ou viratildeo a existir eles natildeo necessitariam da fala ou da
accedilatildeo para se fazerem entender Sinais e sons seriam suficientes para comunicar
suas necessidades e desejos imediatos e idecircnticos (Arendt 1998 p 176)
Se portanto sob a condiccedilatildeo de igualdade juriacutedica os homens se
relacionam de fato apenas porque satildeo diferentes entre si eacute por meio do discurso e
da accedilatildeo que esta diferenccedila pode vir agrave tona visto que ldquoEacute com palavras e atos que
nos inserimos no mundo humano e esta inserccedilatildeo eacute como um segundo
nascimento no qual confirmamos e assumimos o fato nu bruto do nosso
aparecimento fiacutesico originalrdquo (Arendt 1998 pp 176-7) Tal nascimento em vez de
produzir algo que eacute preacute-ideado pode ser refeito eou consertado aleacutem de carregar
em si as marcas do indiviacuteduo que o plasmou resultando numa produccedilatildeo anocircnima
irreversiacutevel e que aleacutem do mais traz em si forte dose de imprevisibilidade jaacute que
a pluralidade de indiviacuteduos o debate de ideacuteias e a realizaccedilatildeo destas nos negoacutecios
humanos (isto eacute natildeo em objetos mas em indiviacuteduos dotados de razatildeo) natildeo
permitem o controle sobre os resultados da accedilatildeo nos mesmos moldes a que estaacute
sujeito por exemplo o objeto nas matildeos do artesatildeo
Eacute esta inseguranccedila em relaccedilatildeo aos seus resultados que desde a
Antiguumlidade segundo Arendt motiva os seres humanos a tomarem a fabricaccedilatildeo
por modelo para a accedilatildeo Esta substituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeo ndash ou o que daacute
no mesmo uma accedilatildeo inspirada no modus operandi da fabricaccedilatildeo ndash visando a
aumentar o controle sobre os negoacutecios humanos natildeo eacute uma caracteriacutestica
especiacutefica da modernidade haacute muito a fabricaccedilatildeo constitui uma espeacutecie de
modelo desvirtuador da atividade tiacutepica da esfera poliacutetica da accedilatildeo[7] E a este
respeito o mundo moderno se destaca pelo fato de ter passado a valorizar as
atividades que nas eacutepocas anteriores eram relegadas a um plano secundaacuterio
como o trabalho e a fabricaccedilatildeo De acordo com Arendt mesmo que em inuacutemeros 7
casos tomassem a fabricaccedilatildeo por modelo para a accedilatildeo as eacutepocas anteriores agrave
modernidade valorizavam a accedilatildeo e a contemplaccedilatildeo como atividades propriamente
humanas ndash o homem era reconhecido como Animal rationale No mundo moderno
as coisas tomaram outro rumo
a convicccedilatildeo de que o homem pode conhecer somente aquilo que ele faz de que
suas capacidades supostamente superiores dependem da fabricaccedilatildeo e de que ele
eacute portanto primariamente um Homo faber e natildeo um Animal rationale trouxe agrave
tona as implicaccedilotildees muito mais antigas da inerente violecircncia em todas as
interpretaccedilotildees das esferas de negoacutecios humanos como uma esfera de fabricaccedilatildeo
(Arendt 1998 p 228)
Assim aleacutem de ressaltar uma suposta confusatildeo entre trabalho e fabricaccedilatildeo
permitindo o predomiacutenio daquele em espaccedilos antes restritos apenas agrave atividade
do artesatildeo ndash e atraveacutes dele a subsunccedilatildeo dos ideais e praacuteticas do Homo faber aos
do Animal laborans ndash Arendt enfatiza que o mundo moderno tambeacutem acabou
confundindo a fabricaccedilatildeo com a accedilatildeo o que fez com que a primeira se tornasse o
modelo da praacutexis poliacutetica da accedilatildeo Nessa ldquosubstituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeordquo
(Arendt 1998) o Animal rationale cedeu seu lugar ao Homo faber ndash ou melhor
incorporou as caracteriacutesticas deste ndash e com isso a accedilatildeo passou a ter como
principal referecircncia o modus operandi da fabricaccedilatildeo (work) da atividade produtiva
da obra[8] Isso significa que a racionalidade orientada para a adequaccedilatildeo de meios
a fins determinados preacute-ideados ndash ou seja a racionalidade que deve conduzir a
organizaccedilatildeo dos meios de acordo com um ldquomodelordquo (mental conceitual) a ser
objetivado ndash tiacutepica da fabricaccedilatildeo tambeacutem estaacute presente de maneira decisiva na
accedilatildeo na praacutexis poliacutetica do mundo moderno Ou seja justamente na accedilatildeo que eacute
(ou ao menos deveria ser) a atividade humana que estabelece a relaccedilatildeo entre
indiviacuteduos livres e iguais na esfera puacuteblica na vida poliacutetica
Enfim essa substituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeo expressa que a violecircncia
tatildeo necessaacuteria ao Homo faber em sua luta para arrancar da natureza os
elementos (os materiais) sobre os quais incide sua atividade e com isso adequaacute-
8
los a fins natildeo-naturais torna-se tambeacutem necessaacuteria e valorizada nesta atividade
(uma espeacutecie de accedilatildeo corrompida) que toma a fabricaccedilatildeo por modelo
II Poliacutetica e violecircncia
Ao considerar a violecircncia detentora um papel decisivo na fabricaccedilatildeo e por
meio dela na accedilatildeo especialmente na transiccedilatildeo de uma formaccedilatildeo social a outra
Arendt considera a poliacutetica no mundo moderno agraves voltas com um problema
fundamental toma por caracteriacutestica da accedilatildeo aquilo que na verdade constitui
caracteriacutestica da fabricaccedilatildeo E eacute justamente no cerne dessa confusatildeo conceitual
que segundo ela o pensamento de Marx se encontra ndash mais constitui um caso
exemplar Sendo assim deixemos que nesse aspecto decisivo Arendt fale por si
mesma
A afirmaccedilatildeo de Marx de que a ldquoviolecircncia eacute a parteira de toda velha sociedade
prenhe de uma sociedade novardquo ou seja de toda mudanccedila histoacuterica ou poliacutetica
somente sintetiza a convicccedilatildeo dominante em toda a era moderna e deduz as
consequumlecircncias de sua crenccedila mais iacutentima de que a histoacuteria eacute ldquofeitardquo pelo homem
do mesmo modo que a natureza eacute ldquofeitardquo por Deus
Como tem sido persistente e bem sucedida a transformaccedilatildeo da accedilatildeo em
modalidade da fabricaccedilatildeo eacute facilmente atestada por toda terminologia da teoria e
do pensamento poliacutetico a qual torna quase impossiacutevel discutir esses assuntos sem
que se utilize a categoria de meios e fins e se raciocine em termos de
instrumentalidade (Arendt 1998 pp 228-9)
Num artigo de 1953 intitulado ldquoReligiatildeo e poliacuteticardquo logo apoacutes apoiar-se em
Karl Mannheim para ressaltar a dimensatildeo ideoloacutegica do marxismo e desqualificar
a abordagem acerca da relaccedilatildeo entre ser e consciecircncia por este preconizada[9]
Arendt diz
9
A relutacircncia de Marx em levar a seacuterio ldquoo que cada eacutepoca diz sobre si e imagina
serrdquo derivava de sua convicccedilatildeo de que a accedilatildeo poliacutetica era basicamente violecircncia e
que a violecircncia era a parteira da histoacuteria Tal convicccedilatildeo natildeo se devia agrave ferocidade
gratuita de um temperamento revolucionaacuterio mas tem seu lugar na filosofia da
histoacuteria de Marx que sustenta que a histoacuteria representada pelos homens na
modalidade da falsa consciecircncia isto eacute na modalidade das ideologias pode ser
feita pelos homens tendo eles plena consciecircncia do que estatildeo fazendo Eacute
justamente esse lado humanista dos ensinamentos de Marx que o levou a insistir
no caraacuteter violento da accedilatildeo poliacutetica ele via o fazer da histoacuteria em termos de
fabricaccedilatildeo o homem histoacuterico era para ele basicamente Homo faber A fabricaccedilatildeo
de todas as coisas feitas pelo homem implica necessariamente alguma violecircncia
que incidiraacute sobre a coisa que se torna a mateacuteria baacutesica do que foi fabricado
(Arendt 2002 pp 62-3)
Marx assim teria compreendido a histoacuteria como resultado do ldquofazerrdquo
humano como resultado de atos teleoloacutegicos que nos moldes da atividade
artesanal ndash da fabricaccedilatildeo ndash fazem do ldquoHomemrdquo ndash e natildeo dos homens ndash o artesatildeo
consciente de sua histoacuteria (cf Canovan 1998) Eacute como se Marx tivesse
transformado o processo histoacuterico resultante de muacuteltiplas interaccedilotildees dos seres
humanos entre si (e simultaneamente destes com a natureza) num processo
instrumental Ou dito de outro modo eacute como se tal qual um Hegel materialista
ele concebesse a proacutepria sociedade como um ser demiuacutergico dotado de
capacidades e formas de atuaccedilatildeo semelhantes agravequelas do indiviacuteduo singular que
substituiacutesse o Espiacuterito e o seu processo de sua autoconscientizaccedilatildeo pelos
proacuteprios homens ndash ou pelo ldquoHomemrdquo ndash e seus atos de ldquofazer a histoacuteriardquo de
ldquofabricarrdquo a sociedade ideal (comunista) Neste caso a consciecircncia de classe
cumpriria o mesmo papel que a hegeliana ldquoastuacutecia da Razatildeordquo De qualquer modo
em ambos os casos natildeo satildeo exatamente os homens em sua multiplicidade de
experiecircncias e expectativas que agem em parte de maneira coordenada e
consciente e em parte conflitiva e inconscientemente mas ao contraacuterio eacute o
ldquoHomemrdquo a humanidade unificada que age de maneira coordenada consciente e
controlada como se fosse o ldquoartesatildeo do mundordquo
10
A visatildeo marxista da atividade revolucionaacuteria seria entatildeo o resultado da
imputaccedilatildeo inconsciente de qualidades da fabricaccedilatildeo agrave accedilatildeo a qual por meio da
violecircncia[10] e orientada pelos mesmos criteacuterios de meios e fins que regem a
fabricaccedilatildeo faria os homens efetuarem o parto da nova sociedade cujo rebento
encontra-se emaranhado nas iacutentimas contradiccedilotildees da velha formaccedilatildeo social Seria
justamente esta exaltaccedilatildeo da violecircncia da ldquouacuteltima ratiordquo tiacutepica das relaccedilotildees entre
os baacuterbaros e caracteriacutestica da condiccedilatildeo do escravo[11] a demonstraccedilatildeo de que
em Marx predomina uma ldquohostilidade antitradicional ao discursordquo agrave busca do
consenso agrave poliacutetica (Arendt 1972 p 50)
Nesse contexto o pensamento poliacutetico de Marx representa segundo Arendt
o fim de uma trajetoacuteria do pensamento poliacutetico tradicional iniciada pelas filosofias
de Platatildeo e Aristoacuteteles Pois com esses pensadores a filosofia teria num duplo
salto se distanciado dos assuntos humanos onde reina a confusatildeo e a ilusatildeo
para retornar a eles ilustrada pela razatildeo isto eacute ldquopara [esta a razatildeo] impor seus
padrotildees aos assuntos humanosrdquo (Arendt 1972 p 44) fato altamente positivo que
teria demarcado o iniacutecio de uma fecunda relaccedilatildeo entre a filosofia e os assuntos
humanos entre ela e a poliacutetica Enquanto com Marx desgraccediladamente teria
acontecido o oposto visto que ele ldquorepudiou a Filosofia para poder lsquorealizaacute-larsquo na
poliacuteticardquo (Arendt 1972 p 44) Para ele em vez de a filosofia permanecer uma
espeacutecie de reflexatildeo sistemaacutetica e criacutetica constituiacuteda de certo modo apartada do
processo histoacuterico ela passou a emanar da proacutepria histoacuteria ldquoou antes a
consciecircncia poliacutetica [deriva] da consciecircncia histoacutericardquo (Arendt 1972 p 114) E
ainda segundo Arendt um dos fundamentos desta concepccedilatildeo reside na
identificaccedilatildeo estabelecida no mundo moderno entre sentido e fim Por meio dela
o sentido como termo que expressa o significado de um acontecimento ndash portanto
resultante de uma explicaccedilatildeo post factum ndash foi transformado em fim de
significado de acontecimentos passados passou a preacute-idear situaccedilotildees futuras
Com isso as accedilotildees individuais e instrumentais (realizadas com a finalidade de)
que explicam o processo de trabalho e seus resultados passaram a servir de
modelo para a explicaccedilatildeo do porquecirc de o indiviacuteduo (eou a sociedade) ser o que eacute
11
e portanto executar esta atividade (eou possuir tais caracteriacutesticas) ndash ie como
se o presente fosse a manifestaccedilatildeo ldquoaqui e agorardquo da necessidade imanente de
atos passados Enfim ao considerar as sociedades modernas degradadoras do
sentido em fim Arendt avalia que o marxismo parte integrante desta modernidade
levou esta degradaccedilatildeo agraves uacuteltimas consequumlecircncias e assim transformou a histoacuteria
em teleologia
Pois bem se ainda segundo Arendt a teoria da histoacuteria como fabricaccedilatildeo
natildeo eacute exclusiva do pensamento marxista mas constitui uma caracteriacutestica do
pensamento poliacutetico moderno aquele se distingue
de todas as demais teorias em que a noccedilatildeo de ldquofazer a histoacuteriardquo encontrou abrigo
somente [pelo] fato de apenas ele ter percebido que se se toma a histoacuteria como o
objeto de um processo de fabricaccedilatildeo ou elaboraccedilatildeo deve sobrevir um momento
em que esse objeto eacute completado e que desde que se imagina ser possiacutevel fazer
a histoacuteria natildeo se pode escapar agrave consequumlecircncia de que haveraacute um fim para a
histoacuteria (Arendt 1972 p 114)
Para que entatildeo os marxistas respondem aos apocaliacutepticos que
advogam o fim das ideologias e da histoacuteria se com um golpe de matildeo o proacuteprio
Marx eliminou a ambas Nesta visatildeo tal como o objeto que inicialmente preacute-
ideado na cabeccedila do artesatildeo completa seu ciclo de produccedilatildeo torna-se objetivo
finda a histoacuteria chegaria ao seu fim com a realizaccedilatildeo da filosofia pelo proletariado
ndash nos invertidos termos hegelianos seria este o momento da autoconscientizaccedilatildeo
do Espiacuterito da plena identificaccedilatildeo entre conceito e objeto entre pensamento e
realidade ndash fato que demarcaria o controle da vida humana nos mesmos moldes
em que o artesatildeo domina a mateacuteria a ser plasmada e lhe fornece uma forma final
Mas se Marx eacute tratado como uma espeacutecie de Hegel materialista eacute certo que
as ideacuteias de ambos natildeo satildeo idecircnticas Tanto que em oposiccedilatildeo agrave sua
predecessora hegeliana a coruja de Minerva marxiana natildeo alccedila vocirco somente ao
crepuacutesculo ela capta conceitualmente as condiccedilotildees em que este pode ocorrer e
12
assim auxilia na sua realizaccedilatildeo Outrossim mais importante do que saber se esta
caracteriacutestica do pensamento de Marx eacute adequadamente entendida por Arendt eacute
saber que para ela esta caracteriacutestica expressa um determinismo que torna
supeacuterflua qualquer discussatildeo sobre as finalidades e o conteuacutedo dos processos
sociais dado que a histoacuteria fabricada modelada como se fosse um objeto pelo
proletariado demiuacutergico torna a palavra o discurso um mero instrumento de
justificaccedilatildeo ideoloacutegica de ideacuteias preconcebidas a serem materializadas Foi
partindo desses pressupostos que Arendt pocircde afirmar
O que era entatildeo inexplicaacutevel na histoacuteria [a saber os muacuteltiplos interesses
conflitantes que tornam a accedilatildeo poliacutetica ineficaz no alcance de seus objetivos e a
existecircncia de um sentido no processo histoacuterico] passa agora a ser visto como o
reflexo de um significado que seguramente era tanto um produto humano quanto o
desenvolvimento teacutecnico do mundo O problema de humanizar os assuntos
poliacutetico-histoacutericos resumia-se consequumlentemente em descobrir como dominar
nossas proacuteprias accedilotildees assim como dominamos nossa capacidade produtiva ou
em outras palavras como ldquofazerrdquo histoacuteria assim como fazemos outras coisas Uma
vez que isso seja alcanccedilado com a vitoacuteria do proletariado natildeo precisaremos mais
de ideologias Mas ateacute laacute todas as accedilotildees poliacuteticas preceitos legais e
pensamentos espirituais continuaratildeo escondendo os motivos inconfessos de uma
sociedade que somente finge agir politicamente mas que na verdade ldquofaz
histoacuteriardquo ainda que de uma maneira inconsciente isto eacute natildeo-humana (Arendt
2002 p 63)
Natildeo constituindo a esfera do pleno exerciacutecio do debate de ideacuteias entre
indiviacuteduos livres e iguais ndash indiviacuteduos que por meio do uso intenso da palavra do
discurso do muacutetuo esclarecimento estabelecem consensos mais ou menos gerais
sobre os fundamentos e as finalidades da accedilatildeo ndash a poliacutetica atual constitui um
simulacro da poliacutetica autecircntica Tal como a entende Arendt esta constitui uma
esfera (puacuteblica) que antes de qualquer outra coisa deve estar apartada da
violecircncia na medida em que esta nega a palavra o discurso o debate e portanto
a accedilatildeo Definindo assim o que satildeo meios e fins o que eacute essencial e o que eacute
imposiccedilatildeo extriacutenseca agrave poliacutetica Arendt reitera que ldquoo poder eacute de fato a essecircncia
13
de todo governo mas natildeo a violecircnciardquo (Arendt 1994 p 40) Por conseguinte
sendo de natureza instrumental a violecircncia ldquocomo todos os meios sempre
depende da orientaccedilatildeo e da justificaccedilatildeo pelo fim que almeja E aquilo que
necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser a essecircncia de nadardquo (Arendt
1994 p 41) O poder encontra sua legitimidade no passado a violecircncia se
justifica pelas consequumlecircncias futuras aquele pela sua constituiccedilatildeo esta pelos
seus objetivos Em razatildeo disso ldquoa violecircncia pode ser justificaacutevel mas nunca seraacute
legiacutetimardquo (Arendt 1994 p 41) Enfim ao vincularem a violecircncia ao poder as
concepccedilotildees poliacuteticas hegemocircnicas dentre elas o marxismo demonstram a
incompreensatildeo de que aqueles satildeo na verdade opostos ldquoonde um domina
absolutamente o outro estaacute ausenterdquo (Arendt 1994 p 44)
Para natildeo cindir a argumentaccedilatildeo criacutetica e com isso tornaacute-la
demasiadamente prolixa retornaremos mais adiante a estas afirmaccedilotildees de
Hannah Arendt sobre poliacutetica e violecircncia Por ora apoacutes termos descrito algumas
categorias centrais do pensamento arendtiano e em especiacutefico os fundamentos
de sua criacutetica agrave relaccedilatildeo entre poliacutetica e violecircncia em Marx passemos na mesma
sequumlecircncia de ideacuteias desenvolvida ateacute aqui ao confronto dessas reflexotildees com
aquelas que a nosso ver correspondem adequadamente tanto ao corpo quanto
ao espiacuterito da obra marxiana
III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
Consideramos desnecessaacuterio demonstrar ad nauseam como a concepccedilatildeo
de trabalho em Marx difere substancialmente daquelas atividades que Arendt
denomina pelos vocaacutebulos trabalho e fabricaccedilatildeo pois para o nosso objetivo
basta que o realizemos apenas em suas linhas gerais Assim em primeiro lugar eacute
necessaacuterio relembrar que ao contraacuterio da concepccedilatildeo arendtiana na obra de Marx
o trabalho natildeo consiste numa atividade que nos vincularia mais ao mundo dos
animais do que ao dos seres humanos propriamente ditos Para ele muito distante
14
de qualquer ilusatildeo acerca de uma vida sem trabalho[12] esta atividade constitui um
momento efetivamente fundante e fundamental da vida humana sem a qual aiacute
sim natildeo nos distinguiriacuteamos em absolutamente nada dos proacuteprios animais[13] Em
termos precisos podemos dizer que o animal natildeo se relaciona com a natureza
ele apenas vive nela eacute sua parte integrante[14] natildeo se distinguindo dela como um
ser consciente o animal eacute portanto incapaz de estabelecer uma mediaccedilatildeo
regulada conscientemente controlada com a natureza (Marx 1985 p 149)
apenas respondendo com maior ou menor labilidade agraves determinaccedilotildees e agraves
constantes mudanccedilas de seu haacutebitat O ser humano por sua vez age de maneira
preacute-ideada em sua atividade metaboacutelica pois em todos os momentos do processo
de trabalho lhe ldquoeacute exigida a vontade orientada a um fimrdquo (Marx 1985 p 150)
Assim o sujeito que trabalha ldquonatildeo apenas efetua uma transformaccedilatildeo da forma da
mateacuteria natural realiza ao mesmo tempo na mateacuteria natural seu objetivo que ele
sabe que determina como lei a espeacutecie e o modo de sua atividade e ao qual tem
de subordinar sua vontaderdquo (Marx 1985 p 150) Natildeo sendo portanto a mera
expressatildeo de determinaccedilotildees ou epifenocircmenos bioloacutegicos o trabalho eacute uma
atividade na qual inevitavelmente entrelaccedilam-se o pensar e o fazer a
consciecircncia e a accedilatildeo com aquela orientando esta para transformar a mateacuteria com
vistas a dar-lhe uma forma adequada agrave satisfaccedilatildeo de alguma necessidade
humana A ideacuteia mediada pelo trabalho cristaliza-se no objeto objeto que longe
de ser meramente natural eacute a manifestaccedilatildeo material da subjetividade humana
posto que soacute existe em razatildeo desta Tanto que no final temos que ldquoo trabalho
estaacute objetivado e o objeto trabalhadordquo (Marx 1985 p 151) num mesmo ato a
subjetividade exteriorizou-se e a materialidade tornou-se subjetiva[15] E eacute claro
como esta objetivaccedilatildeo eacute resultado de accedilotildees conscientes o metabolismo dos
homens em relaccedilatildeo agrave natureza eacute muito mais dinacircmico mutante do que aquele
efetuado pelos animais resultando em formas materiais e sociais
permanentemente alteradas ocorrendo a mesma coisa com a proacutepria
subjetividade humana
15
Sendo uma atividade humanamente produtiva o trabalho natildeo eacute apenas a
relaccedilatildeo do homem com a natureza eacute tambeacutem uma relaccedilatildeo que ocorre entre os
proacuteprios homens ndash e verdadeiramente como trabalho soacute existe a partir desta
relaccedilatildeo Ainda em sua juventude num texto seminal para a elaboraccedilatildeo de suas
reflexotildees posteriores Marx nos diz que o homem ldquosoacute eacute um ser consciente quer
dizer a sua vida constitui para ele um objeto porque eacute um ser geneacuterico
Unicamente por isso eacute que sua atividade surge como atividade livrerdquo (Marx 1985
p 165) Se natildeo fosse um ser social geneacuterico produto e produtor de si e do
gecircnero o ser humano natildeo possuiria as faculdades (consciecircncia linguagem) sem
as quais paradoxalmente o proacuteprio trabalho natildeo existiria E que simultaneamente
como dissemos permitem o aprimoramento e a expansatildeo das fronteiras da vida
humana (individual e coletiva) para muito aleacutem daquelas a que estatildeo restritos os
seres vivos naturais[16]
Nesse caso parece-nos oacutebvio que eacute completamente irrelevante saber se
uma atividade produtiva resulta em produtos mais ou menos duraacuteveis ndash por
exemplo em alimentos ou objetos do mobiliaacuterio ndash para classificaacute-la como estando
mais proacutexima ou mais distante da vida propriamente humana Seja numa
sociedade especiacutefica ou ao longo da histoacuteria humana um produto pode durar mais
ou menos tempo devido a um sem-nuacutemero de fatores tais como os materiais e a
tecnologia empregados as relaccedilotildees sociais sob as quais foi produzido as classes
eou grupos sociais que o utilizaratildeo ndash definindo por exemplo a velocidade e o
perfil de sua obsolescecircncia ou seja se esta eacute real materialmente efetiva ou
socialmente condicionada ndash entre outros e natildeo apenas devido agrave maior ou menor
proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica dos indiviacuteduos A rigor a produccedilatildeo de um
alimento ou medicamento por meio de procedimentos complexos e sofisticados
mas cujo consumo eacute quase imediato (para Arendt ldquoproduto do trabalhordquo)
certamente expressa niacuteveis mais elevados de humanizaccedilatildeo do que a produccedilatildeo de
uma tosca mesa de madeira que perdura seacuteculos passando de geraccedilatildeo a
geraccedilatildeo (Marx 1985 ldquoproduto da fabricaccedilatildeordquo)
16
Essas observaccedilotildees acerca da relaccedilatildeo entre as atividades produtivas e a
durabilidade de suas produccedilotildees natildeo significa em hipoacutetese alguma que a
durabilidade ou natildeo de um produto seja irrelevante para os indiviacuteduos e a
sociedade em geral ateacute mesmo porque os produtos satildeo elementos constitutivos e
condicionantes de certas caracteriacutesticas dos processos de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo
das formaccedilotildees sociais Significa apenas que per se ela natildeo eacute relevante para
mensurar o niacutevel de humanizaccedilatildeo da atividade e das qualificaccedilotildees subjetivas nela
envolvidas Assim nas sociedades capitalistas por exemplo saber se um
determinado objeto constitui parte do maquinaacuterio ou da edificaccedilatildeo (capital fixo) ou
entatildeo se eacute apenas insumo mateacuteria-prima ou meio de subsistecircncia (capital
circulante) eacute significativo prioritariamente em razatildeo de que as proporccedilotildees de seus
respectivos usos e o seu periacuteodo de rotaccedilatildeo afetam de maneira decisiva as taxas
de lucro do capital investido Aleacutem do mais ldquoo fato de um valor de uso aparecer
como mateacuteria-prima meio de trabalho ou produto depende totalmente de sua
funccedilatildeo determinada no processo de trabalho da posiccedilatildeo que nele ocupa e com a
mudanccedila dessa posiccedilatildeo variam essas determinaccedilotildeesrdquo (Marx 1985 p 152)
Quase desnecessaacuterio dizer que tal posiccedilatildeo tambeacutem varia de acordo com o niacutevel
de desenvolvimento das forccedilas produtivas e das relaccedilotildees sociais que constituem a
sociedade em questatildeo Em siacutentese se natildeo podemos definir um objeto como
sendo o resultado de uma atividade inferior ou superior na hierarquia das
atividades humanas (da vita activa arendtiana) devido agrave sua durabilidade[17] ou agrave
sua proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica (agrave manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo do corpo)
qualquer tentativa de mensuraccedilatildeo sob este prisma nos parece completamente
arbitraacuteria inclusive eacute claro a que se funda na distinccedilatildeo arendtiana entre trabalho
e fabricaccedilatildeo
Enfatizar estas caracteriacutesticas do trabalho tambeacutem eacute importante porque
contrariamente agraves qualificaccedilotildees inerentes a ele e agrave fabricaccedilatildeo que de acordo com
Arendt estatildeo diretamente relacionadas agraves qualidades do Animal laborans e do
Homo faber no pensamento marxiano inexiste qualquer menccedilatildeo a uma essecircncia
a-histoacuterica do trabalho isto eacute uma essecircncia que agrave revelia da forma societaacuteria em
17
que a atividade se realiza imprime agrave subjetividade daquele que o executa
inelutaacuteveis qualificaccedilotildees Muito ao contraacuterio As anaacutelises marxianas satildeo
profundamente ancoradas na historicidade dos fenocircmenos naturais e sociais
negando qualquer essencialismo em relaccedilatildeo ao trabalho ou a qualquer outra
atividade bem como ao indiviacuteduo ou grupo de indiviacuteduos que o executa Para
Marx ldquoa essecircncia humana natildeo eacute uma abstraccedilatildeo inerente ao indiviacuteduo singular
Em sua realidade eacute o conjunto das relaccedilotildees sociaisrdquo (Marx 1987 p 13) Por
conseguinte em aberta oposiccedilatildeo agraves proposiccedilotildees arendtianas afirmamos que o
produtivismo natildeo constitui uma caracteriacutestica inerente ao trabalho ndash que com a
ascensatildeo deste agrave esfera puacuteblica teria transbordado as fronteiras da vida privada e
se generalizado socialmente ndash mas sim uma caracteriacutestica que possui suas raiacutezes
nas formas de sociabilidade vigentes no mundo contemporacircneo sejam estas
formas capitalistas ou poacutes-capitalistas[18] Dito de outro modo se o trabalho
assalariado alienado constitui cada vez mais a forma predominante da atividade
produtiva e reprodutiva dos indiviacuteduos nestas sociedades tal desventura natildeo
decorre de uma essecircncia que seja inerente a ele tanto quanto agraves formas preteacuteritas
de trabalho e que tenha se desvencilhado na atualidade das amarras que
limitavam sua expansatildeo A raiz deste fenocircmeno reside no fato de o capital
constituir a relaccedilatildeo social baacutesica das sociedades assinaladas generalizando
aquela forma de trabalho E a propoacutesito do essencialismo produtivista do trabalho
em vaacuterias passagens de sua obra Marx nos mostrou as diferenccedilas existentes
entre as sociedades antigas e as modernas sociedades capitalistas Numa dessas
passagens ele lembra que
Entre os antigos natildeo encontramos uma uacutenica investigaccedilatildeo a propoacutesito de qual a
forma de propriedade etc que seria a mais produtiva que geraria o maacuteximo de
riqueza A riqueza natildeo constituiacutea o objetivo da produccedilatildeo A pesquisa sempre
era sobre qual o tipo de propriedade que geraria os melhores cidadatildeos (Marx
1975 p 80 grifos nossos)
Mesmo em seu acircmbito estritamente privado a propriedade natildeo estava
relacionada prioritariamente aos interesses egoiacutestas do indiviacuteduo mas eram os 18
interesses deste ndash e portanto o uso que fazia daquela ndash que estavam
circunscritos e condicionados pelos interesses da comunidade da qual fazia parte
por mais restrita que esta fosse em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo total Desse modo nestas
formaccedilotildees sociais as atividades produtivas natildeo eram movidas por uma ldquoinerenterdquo
racionalidade produtivista uma racionalidade cujo suposto transbordamento das
fronteiras privadas e o estabelecimento do domiacutenio sobre as outras atividades
caracterizariam ndash segundo Arendt ndash o mundo moderno Em relaccedilatildeo a este sua
principal caracteriacutestica consiste na centralidade na generalizaccedilatildeo e no crescente
predomiacutenio do capital no conjunto das relaccedilotildees sociais Enfim eacute justamente esta
centralidade do capital e suas consequumlecircncias que produz o assalariamento
generalizado dos indiviacuteduos e a subsunccedilatildeo da reproduccedilatildeo socioeconocircmica como
um todo agrave loacutegica produtivista
Numa pequena digressatildeo visando apenas a estreitar as margens de accedilatildeo
das leituras vulgares do marxismo eacute necessaacuterio ressaltar que esta afirmaccedilatildeo da
centralidade do capital nas relaccedilotildees sociais contemporacircneas e do espraiamento
de sua influecircncia pela totalidade social natildeo implica reducionismo econocircmico Na
verdade ela significa apenas a explicitaccedilatildeo de caracteriacutesticas inerentes ao capital
cuja tendecircncia a subsumir a multiplicidade de dimensotildees da vida humana agrave sua
loacutegica acumulatoacuteria expansionista eacute um fato incontestaacutevel ontologicamente
enraizado e racionalmente apreensiacutevel e natildeo um grave equiacutevoco teoacuterico de um
pensamento incapaz de atentar para a complexidade do real Eacute nesse sentido que
comentando a famosa proposiccedilatildeo de Marx segundo a qual ldquoNatildeo eacute a consciecircncia
dos homens que determina o seu ser mas ao contraacuterio eacute o seu ser social que
determina sua consciecircnciardquo[19] (Marx 1982 p 25) Lukaacutecs afirma ldquonesse trecho o
mundo das formas de consciecircncia e seus conteuacutedos natildeo eacute visto como um produto
direto da estrutura econocircmica mas da totalidade do ser social A determinaccedilatildeo da
consciecircncia pelo ser social portanto eacute entendida em seu sentido mais geralrdquo
(Lukaacutecs 1979 p 41) ndash e natildeo como expressatildeo direta mecacircnica e restrita dos
processos econocircmicos
19
Neste toacutepico ateacute o momento detivemo-nos nas distintas concepccedilotildees
acerca do trabalho presentes em Arendt e Marx O caso poreacutem eacute que apesar de
significativas tais concepccedilotildees natildeo circunscrevem sua influecircncia agraves fronteiras
econocircmicas mas extravasam a economia e deitam raiacutezes na totalidade de suas
reflexotildees sobre a vida humana Assim se Arendt tem razatildeo em afirmar que para
Marx o trabalho ndash e a fabricaccedilatildeo apesar da irrelevacircncia desta distinccedilatildeo (trabalho x
fabricaccedilatildeo) no quadro conceitual marxiano ndash eacute tratado como uma atividade
teleoloacutegica cujas relaccedilotildees que estabelece com as outras atividades constitutivas
da vida humana satildeo fundamentais para delinear as caracteriacutesticas da totalidade
social nada justifica sua transposiccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos do trabalho
(concreto) para a concepccedilatildeo de histoacuteria marxiana No entanto eacute justamente isto
que ela faz ao afirmar que em Marx a histoacuteria eacute entendida como um processo
similar ao da fabricaccedilatildeo do artesanato um processo que contemporaneamente
exige a intervenccedilatildeo consciente de um sujeito demiuacutergico ndash o proletariado ndash para
plasmar a nova forma societaacuteria tal como o artesatildeo faz com sua mateacuteria-prima E
igualmente ao afirmar que do mesmo modo que a materializaccedilatildeo do objeto preacute-
ideado expressa o fim do processo gerido pelo artesatildeo a realizaccedilatildeo da sociedade
ldquopreacute-ideadardquo pelo proletariado significaria o fim da histoacuteria
Ora uma das questotildees mais complexas do pensamento social fruto de
inuacutemeras polecircmicas teorias e tratados ao longo dos uacuteltimos seacuteculos ndash
especialmente apoacutes o advento da sociologia ndash eacute a articulaccedilatildeo das accedilotildees
individuais e a reproduccedilatildeo da totalidade social E mesmo certos da impossibilidade
de adentrar no emaranhado de questotildees suscitado pelo tema natildeo podemos omitir
a informaccedilatildeo de que uma leitura criteriosa dos textos marxianos demonstra sem
grande dificuldade a improcedecircncia das criacuteticas de Hannah Arendt De modo
algum condiz com o ldquoespiacuteritordquo da obra marxiana a identificaccedilatildeo da reproduccedilatildeo
social como um todo e nem dos processos de transiccedilatildeo de uma forma societaacuteria a
outra ao modus operandi do trabalho O que natildeo significa por sua vez que a
instabilidade econocircmica e social natildeo fosse objeto de suas preocupaccedilotildees A bem
da verdade sendo o primeiro a entender a centralidade do trabalho e suas
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consequumlecircncias na produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana Marx se assenhoreou
desde os Manuscritos de 1844 de conhecimentos suficientemente significativos
para criticar em relaccedilatildeo agravequele aspecto inicialmente citado das relaccedilotildees entre
indiviacuteduo e sociedade tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo Assim em
vez da naturalizaccedilatildeo da histoacuteria humana ou da arbitrariedade da vontade e da
razatildeo em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmaccedilatildeo dos
seres humanos como autoprodutores de sua proacutepria histoacuteria e simultaneamente
uma criacutetica agrave hipostasia das potencialidades da razatildeo e das forccedilas humanas nesta
autoproduccedilatildeo Invariavelmente suas anaacutelises reiteram que ldquoOs homens fazem
sua proacutepria histoacuteria mas natildeo a fazem como querem natildeo a fazem sob
circunstacircncias de sua proacutepria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam
diretamente legadas e transmitidas pelo passadordquo (Marx 1986 p 17 grifos
nossos) Nos dias atuais natildeo eacute difiacutecil perceber como por si soacute esta frase nos
mostra quatildeo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e
da realpolitik que cada qual ao seu modo como faces de uma mesma moeda
dominam os discursos poliacuteticos e econocircmicos em voga
Ainda no que diz respeito agrave questatildeo do sujeito demiuacutergico e do finalismo
histoacuterico eacute necessaacuterio que se entenda que mesmo em sua fastidiosa reproduccedilatildeo
cotidiana o trabalho eacute sempre um ato de criaccedilatildeo criaccedilatildeo natildeo apenas de coisas
novas de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma
humanamente apropriada mas criaccedilatildeo da proacutepria subjetividade humana que se
renova a partir das experiecircncias possibilitadas pelos meios e resultados de sua
produccedilatildeo e pelas relaccedilotildees sociais que os envolvem Tendo em mente esta
dinacircmica intriacutenseca agrave atividade vital dos seres humanos e ao mesmo tempo o
caraacuteter que para Marx a totalidade do real[20] assume como concreto pensado
(Marx 1982 p 15) nem a mais poderosa das inteligecircncias humanas tampouco o
concurso delas sob a forma do coletivo partidaacuterio pode em termos conceituais
apreender subsumir absolutamente o real ao pensamento ndash e muito menos
sujeitar as proacuteprias relaccedilotildees sociais a um controle assemelhado ao das teacutecnicas
produtivas
21
Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final
entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja
rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz
consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de
Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo
sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele
ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von
Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia
hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas
sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais
geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de
onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta
observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica
especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente
pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto
natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o
proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela
histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e
seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o
conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade
histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens
em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo
possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas
Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo
de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos
individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica
intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos
altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que
nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que
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em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a
divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente
a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de
todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada
espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das
diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como
reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori
e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do
trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural
interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado
subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo
social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo
reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo
exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo
que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as
condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)
Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais
de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente
as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de
posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo
(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa
O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias
normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de
finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem
realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute
inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)
Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante
entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de
indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de
eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a
23
casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece
porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da
ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas
significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias
sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca
controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias
objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que
encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano
Em sua Ontologia do ser social ele afirma
Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada
vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as
decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da
totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse
conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa
relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso
porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o
movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da
histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas
etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local
tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que
tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de
transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que
satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do
que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e
consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso
aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)
Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos
individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha
ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias
mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade
oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem
econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo
24
social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve
ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que
historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os
processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem
uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle
destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou
A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a
anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo
incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do
trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer
controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma
infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo
autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais
entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda
organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a
sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)
Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus
ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os
limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de
intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal
qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos
uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana
(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do
pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os
limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir
para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta
ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo
No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras
experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao
nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25
pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas
relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi
drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente
desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses
capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de
regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo
resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica
reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas
experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da
humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua
loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a
accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com
seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social
passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees
marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de
regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos
moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a
consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria
redenccedilatildeo universal
O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos
ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as
acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels
salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido
um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o
movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)
O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se
realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico
do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana
de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo
comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o
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comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a
forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo
nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao
desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma
sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o
comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no
fim da histoacuteria[22]
Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento
marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute
capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e
desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo
ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso
numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]
mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou
natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana
Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees
que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim
contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das
caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da
limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os
homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara
manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal
Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos
extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a
violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo
Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do
capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre
a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os
revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila
27
material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a
utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de
recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o
revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico
Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder
material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria
se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz
de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e
argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar
o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p
497)
Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos
(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o
discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista
muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)
que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no
encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as
sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece
ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um
discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos
constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das
individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades
eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano
mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em
campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar
plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de
sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar
sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio
colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel
convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e
28
culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem
respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes
subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]
Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)
de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio
das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto
natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive
atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie
No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias
naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o
crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda
escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-
sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo
contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da
incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees
materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos
afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus
processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos
inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos
da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades
humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute
o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses
trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)
Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas
produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa
penetrante passagem sobre o tema lemos
O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto
dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de
29
desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse
nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos
demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua
vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado
naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo
determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas
relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu
proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx
1973 pp 89-90)
Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos
sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a
centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos
aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza
e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham
vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a
intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o
equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente
econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida
social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da
permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas
relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito
da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas
universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada
das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os
homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria
mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das
forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo
adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos
homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia
O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se
compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30
neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo
do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo
pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso
histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive
violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste
(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso
resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na
sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os
antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por
ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses
das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos
Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica
natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades
reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a
estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico
Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da
cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios
juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da
sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela
que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de
duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que
complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo
concreto
O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em
oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem
de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade
desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem
leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da
realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na
comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na
31
sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como
meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes
estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser
profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real
eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem
eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma
soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de
uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)
Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e
imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos
privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma
revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res
publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja
eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da
proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a
violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica
consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a
accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a
vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma
alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento
Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a
essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o
proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua
violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre
dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo
de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a
perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a
violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt
segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser
a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente
32
pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o
antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as
relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de
supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano
Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder
dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se
faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de
violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o
poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa
revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades
viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento
humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo
profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma
resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como
desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo
Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado
como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos
do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute
poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de
propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)
Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de
dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao
contraacuterio
Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como
classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como
classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as
condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em
geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)
33
Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx
1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo
poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer
forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas
formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar
em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis
Quanto a isso eacute importante relembrar que
O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos
limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute
capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade
Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais
ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e
espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a
fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)
Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-
violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo
violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-
socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo
(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-
humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo
humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a
rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios
quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de
coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras
A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um
anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo
(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim
negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se
natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para
natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a
34
contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo
(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-
humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-
violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que
assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)
Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx
caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu
proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios
empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo
entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez
de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do
humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-
capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo
dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os
torna incompatiacuteveis[27]
IV Agrave guisa de conclusatildeo
Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de
Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda
distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de
Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do
pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas
que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio
da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente
sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir
de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns
aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram
envolvidos pela leitura arendtiana
35
Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem
ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem
duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho
Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e
estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do
solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo
neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade
com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se
reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos
intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro
porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento
marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual
formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco
em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e
Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para
o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e
revolucionaacuterios
Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo
XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho
caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos
revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso
imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob
muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes
natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca
demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo
sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas
proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os
argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro
sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas
ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma
36
verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto
que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute
cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido
V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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Notas
38
Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo
Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo
teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a
estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o
ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque
somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a
abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos
que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e
isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a
accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num
constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas
produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou
menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de
consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados
a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo
antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em
termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e
inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho
como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt
1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels
segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte
daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos
homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e
39
osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida
real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos
desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo
corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade
efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa
produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma
aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio
Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para
produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas
necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a
Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de
qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas
formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na
constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso
ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro
Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se
distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo
reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele
duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo
(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute
afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels
1986 p 19)
40
[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade
esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas
daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades
capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas
carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e
propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que
determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a
p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que
sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram
transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em
grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos
paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital
Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo
crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos
estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem
consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo
social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas
conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento
marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo
implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de
estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo
significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo
dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma
luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude
do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de
uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o
41
entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada
dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas
caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos
do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no
fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje
muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o
sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e
saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente
a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente
severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de
personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de
objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de
produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e
personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar
condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua
perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento
universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social
como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p
85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que
apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo
aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do
esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e
complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em
relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios
revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA
transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em
42
43
massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
-
relacionamento soacute eacute possiacutevel porque apesar de iguais em direitos os homens satildeo
diferentes entre si
Se os homens natildeo se distinguissem se cada ser humano natildeo diferisse de todos
os que existiram existem ou viratildeo a existir eles natildeo necessitariam da fala ou da
accedilatildeo para se fazerem entender Sinais e sons seriam suficientes para comunicar
suas necessidades e desejos imediatos e idecircnticos (Arendt 1998 p 176)
Se portanto sob a condiccedilatildeo de igualdade juriacutedica os homens se
relacionam de fato apenas porque satildeo diferentes entre si eacute por meio do discurso e
da accedilatildeo que esta diferenccedila pode vir agrave tona visto que ldquoEacute com palavras e atos que
nos inserimos no mundo humano e esta inserccedilatildeo eacute como um segundo
nascimento no qual confirmamos e assumimos o fato nu bruto do nosso
aparecimento fiacutesico originalrdquo (Arendt 1998 pp 176-7) Tal nascimento em vez de
produzir algo que eacute preacute-ideado pode ser refeito eou consertado aleacutem de carregar
em si as marcas do indiviacuteduo que o plasmou resultando numa produccedilatildeo anocircnima
irreversiacutevel e que aleacutem do mais traz em si forte dose de imprevisibilidade jaacute que
a pluralidade de indiviacuteduos o debate de ideacuteias e a realizaccedilatildeo destas nos negoacutecios
humanos (isto eacute natildeo em objetos mas em indiviacuteduos dotados de razatildeo) natildeo
permitem o controle sobre os resultados da accedilatildeo nos mesmos moldes a que estaacute
sujeito por exemplo o objeto nas matildeos do artesatildeo
Eacute esta inseguranccedila em relaccedilatildeo aos seus resultados que desde a
Antiguumlidade segundo Arendt motiva os seres humanos a tomarem a fabricaccedilatildeo
por modelo para a accedilatildeo Esta substituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeo ndash ou o que daacute
no mesmo uma accedilatildeo inspirada no modus operandi da fabricaccedilatildeo ndash visando a
aumentar o controle sobre os negoacutecios humanos natildeo eacute uma caracteriacutestica
especiacutefica da modernidade haacute muito a fabricaccedilatildeo constitui uma espeacutecie de
modelo desvirtuador da atividade tiacutepica da esfera poliacutetica da accedilatildeo[7] E a este
respeito o mundo moderno se destaca pelo fato de ter passado a valorizar as
atividades que nas eacutepocas anteriores eram relegadas a um plano secundaacuterio
como o trabalho e a fabricaccedilatildeo De acordo com Arendt mesmo que em inuacutemeros 7
casos tomassem a fabricaccedilatildeo por modelo para a accedilatildeo as eacutepocas anteriores agrave
modernidade valorizavam a accedilatildeo e a contemplaccedilatildeo como atividades propriamente
humanas ndash o homem era reconhecido como Animal rationale No mundo moderno
as coisas tomaram outro rumo
a convicccedilatildeo de que o homem pode conhecer somente aquilo que ele faz de que
suas capacidades supostamente superiores dependem da fabricaccedilatildeo e de que ele
eacute portanto primariamente um Homo faber e natildeo um Animal rationale trouxe agrave
tona as implicaccedilotildees muito mais antigas da inerente violecircncia em todas as
interpretaccedilotildees das esferas de negoacutecios humanos como uma esfera de fabricaccedilatildeo
(Arendt 1998 p 228)
Assim aleacutem de ressaltar uma suposta confusatildeo entre trabalho e fabricaccedilatildeo
permitindo o predomiacutenio daquele em espaccedilos antes restritos apenas agrave atividade
do artesatildeo ndash e atraveacutes dele a subsunccedilatildeo dos ideais e praacuteticas do Homo faber aos
do Animal laborans ndash Arendt enfatiza que o mundo moderno tambeacutem acabou
confundindo a fabricaccedilatildeo com a accedilatildeo o que fez com que a primeira se tornasse o
modelo da praacutexis poliacutetica da accedilatildeo Nessa ldquosubstituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeordquo
(Arendt 1998) o Animal rationale cedeu seu lugar ao Homo faber ndash ou melhor
incorporou as caracteriacutesticas deste ndash e com isso a accedilatildeo passou a ter como
principal referecircncia o modus operandi da fabricaccedilatildeo (work) da atividade produtiva
da obra[8] Isso significa que a racionalidade orientada para a adequaccedilatildeo de meios
a fins determinados preacute-ideados ndash ou seja a racionalidade que deve conduzir a
organizaccedilatildeo dos meios de acordo com um ldquomodelordquo (mental conceitual) a ser
objetivado ndash tiacutepica da fabricaccedilatildeo tambeacutem estaacute presente de maneira decisiva na
accedilatildeo na praacutexis poliacutetica do mundo moderno Ou seja justamente na accedilatildeo que eacute
(ou ao menos deveria ser) a atividade humana que estabelece a relaccedilatildeo entre
indiviacuteduos livres e iguais na esfera puacuteblica na vida poliacutetica
Enfim essa substituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeo expressa que a violecircncia
tatildeo necessaacuteria ao Homo faber em sua luta para arrancar da natureza os
elementos (os materiais) sobre os quais incide sua atividade e com isso adequaacute-
8
los a fins natildeo-naturais torna-se tambeacutem necessaacuteria e valorizada nesta atividade
(uma espeacutecie de accedilatildeo corrompida) que toma a fabricaccedilatildeo por modelo
II Poliacutetica e violecircncia
Ao considerar a violecircncia detentora um papel decisivo na fabricaccedilatildeo e por
meio dela na accedilatildeo especialmente na transiccedilatildeo de uma formaccedilatildeo social a outra
Arendt considera a poliacutetica no mundo moderno agraves voltas com um problema
fundamental toma por caracteriacutestica da accedilatildeo aquilo que na verdade constitui
caracteriacutestica da fabricaccedilatildeo E eacute justamente no cerne dessa confusatildeo conceitual
que segundo ela o pensamento de Marx se encontra ndash mais constitui um caso
exemplar Sendo assim deixemos que nesse aspecto decisivo Arendt fale por si
mesma
A afirmaccedilatildeo de Marx de que a ldquoviolecircncia eacute a parteira de toda velha sociedade
prenhe de uma sociedade novardquo ou seja de toda mudanccedila histoacuterica ou poliacutetica
somente sintetiza a convicccedilatildeo dominante em toda a era moderna e deduz as
consequumlecircncias de sua crenccedila mais iacutentima de que a histoacuteria eacute ldquofeitardquo pelo homem
do mesmo modo que a natureza eacute ldquofeitardquo por Deus
Como tem sido persistente e bem sucedida a transformaccedilatildeo da accedilatildeo em
modalidade da fabricaccedilatildeo eacute facilmente atestada por toda terminologia da teoria e
do pensamento poliacutetico a qual torna quase impossiacutevel discutir esses assuntos sem
que se utilize a categoria de meios e fins e se raciocine em termos de
instrumentalidade (Arendt 1998 pp 228-9)
Num artigo de 1953 intitulado ldquoReligiatildeo e poliacuteticardquo logo apoacutes apoiar-se em
Karl Mannheim para ressaltar a dimensatildeo ideoloacutegica do marxismo e desqualificar
a abordagem acerca da relaccedilatildeo entre ser e consciecircncia por este preconizada[9]
Arendt diz
9
A relutacircncia de Marx em levar a seacuterio ldquoo que cada eacutepoca diz sobre si e imagina
serrdquo derivava de sua convicccedilatildeo de que a accedilatildeo poliacutetica era basicamente violecircncia e
que a violecircncia era a parteira da histoacuteria Tal convicccedilatildeo natildeo se devia agrave ferocidade
gratuita de um temperamento revolucionaacuterio mas tem seu lugar na filosofia da
histoacuteria de Marx que sustenta que a histoacuteria representada pelos homens na
modalidade da falsa consciecircncia isto eacute na modalidade das ideologias pode ser
feita pelos homens tendo eles plena consciecircncia do que estatildeo fazendo Eacute
justamente esse lado humanista dos ensinamentos de Marx que o levou a insistir
no caraacuteter violento da accedilatildeo poliacutetica ele via o fazer da histoacuteria em termos de
fabricaccedilatildeo o homem histoacuterico era para ele basicamente Homo faber A fabricaccedilatildeo
de todas as coisas feitas pelo homem implica necessariamente alguma violecircncia
que incidiraacute sobre a coisa que se torna a mateacuteria baacutesica do que foi fabricado
(Arendt 2002 pp 62-3)
Marx assim teria compreendido a histoacuteria como resultado do ldquofazerrdquo
humano como resultado de atos teleoloacutegicos que nos moldes da atividade
artesanal ndash da fabricaccedilatildeo ndash fazem do ldquoHomemrdquo ndash e natildeo dos homens ndash o artesatildeo
consciente de sua histoacuteria (cf Canovan 1998) Eacute como se Marx tivesse
transformado o processo histoacuterico resultante de muacuteltiplas interaccedilotildees dos seres
humanos entre si (e simultaneamente destes com a natureza) num processo
instrumental Ou dito de outro modo eacute como se tal qual um Hegel materialista
ele concebesse a proacutepria sociedade como um ser demiuacutergico dotado de
capacidades e formas de atuaccedilatildeo semelhantes agravequelas do indiviacuteduo singular que
substituiacutesse o Espiacuterito e o seu processo de sua autoconscientizaccedilatildeo pelos
proacuteprios homens ndash ou pelo ldquoHomemrdquo ndash e seus atos de ldquofazer a histoacuteriardquo de
ldquofabricarrdquo a sociedade ideal (comunista) Neste caso a consciecircncia de classe
cumpriria o mesmo papel que a hegeliana ldquoastuacutecia da Razatildeordquo De qualquer modo
em ambos os casos natildeo satildeo exatamente os homens em sua multiplicidade de
experiecircncias e expectativas que agem em parte de maneira coordenada e
consciente e em parte conflitiva e inconscientemente mas ao contraacuterio eacute o
ldquoHomemrdquo a humanidade unificada que age de maneira coordenada consciente e
controlada como se fosse o ldquoartesatildeo do mundordquo
10
A visatildeo marxista da atividade revolucionaacuteria seria entatildeo o resultado da
imputaccedilatildeo inconsciente de qualidades da fabricaccedilatildeo agrave accedilatildeo a qual por meio da
violecircncia[10] e orientada pelos mesmos criteacuterios de meios e fins que regem a
fabricaccedilatildeo faria os homens efetuarem o parto da nova sociedade cujo rebento
encontra-se emaranhado nas iacutentimas contradiccedilotildees da velha formaccedilatildeo social Seria
justamente esta exaltaccedilatildeo da violecircncia da ldquouacuteltima ratiordquo tiacutepica das relaccedilotildees entre
os baacuterbaros e caracteriacutestica da condiccedilatildeo do escravo[11] a demonstraccedilatildeo de que
em Marx predomina uma ldquohostilidade antitradicional ao discursordquo agrave busca do
consenso agrave poliacutetica (Arendt 1972 p 50)
Nesse contexto o pensamento poliacutetico de Marx representa segundo Arendt
o fim de uma trajetoacuteria do pensamento poliacutetico tradicional iniciada pelas filosofias
de Platatildeo e Aristoacuteteles Pois com esses pensadores a filosofia teria num duplo
salto se distanciado dos assuntos humanos onde reina a confusatildeo e a ilusatildeo
para retornar a eles ilustrada pela razatildeo isto eacute ldquopara [esta a razatildeo] impor seus
padrotildees aos assuntos humanosrdquo (Arendt 1972 p 44) fato altamente positivo que
teria demarcado o iniacutecio de uma fecunda relaccedilatildeo entre a filosofia e os assuntos
humanos entre ela e a poliacutetica Enquanto com Marx desgraccediladamente teria
acontecido o oposto visto que ele ldquorepudiou a Filosofia para poder lsquorealizaacute-larsquo na
poliacuteticardquo (Arendt 1972 p 44) Para ele em vez de a filosofia permanecer uma
espeacutecie de reflexatildeo sistemaacutetica e criacutetica constituiacuteda de certo modo apartada do
processo histoacuterico ela passou a emanar da proacutepria histoacuteria ldquoou antes a
consciecircncia poliacutetica [deriva] da consciecircncia histoacutericardquo (Arendt 1972 p 114) E
ainda segundo Arendt um dos fundamentos desta concepccedilatildeo reside na
identificaccedilatildeo estabelecida no mundo moderno entre sentido e fim Por meio dela
o sentido como termo que expressa o significado de um acontecimento ndash portanto
resultante de uma explicaccedilatildeo post factum ndash foi transformado em fim de
significado de acontecimentos passados passou a preacute-idear situaccedilotildees futuras
Com isso as accedilotildees individuais e instrumentais (realizadas com a finalidade de)
que explicam o processo de trabalho e seus resultados passaram a servir de
modelo para a explicaccedilatildeo do porquecirc de o indiviacuteduo (eou a sociedade) ser o que eacute
11
e portanto executar esta atividade (eou possuir tais caracteriacutesticas) ndash ie como
se o presente fosse a manifestaccedilatildeo ldquoaqui e agorardquo da necessidade imanente de
atos passados Enfim ao considerar as sociedades modernas degradadoras do
sentido em fim Arendt avalia que o marxismo parte integrante desta modernidade
levou esta degradaccedilatildeo agraves uacuteltimas consequumlecircncias e assim transformou a histoacuteria
em teleologia
Pois bem se ainda segundo Arendt a teoria da histoacuteria como fabricaccedilatildeo
natildeo eacute exclusiva do pensamento marxista mas constitui uma caracteriacutestica do
pensamento poliacutetico moderno aquele se distingue
de todas as demais teorias em que a noccedilatildeo de ldquofazer a histoacuteriardquo encontrou abrigo
somente [pelo] fato de apenas ele ter percebido que se se toma a histoacuteria como o
objeto de um processo de fabricaccedilatildeo ou elaboraccedilatildeo deve sobrevir um momento
em que esse objeto eacute completado e que desde que se imagina ser possiacutevel fazer
a histoacuteria natildeo se pode escapar agrave consequumlecircncia de que haveraacute um fim para a
histoacuteria (Arendt 1972 p 114)
Para que entatildeo os marxistas respondem aos apocaliacutepticos que
advogam o fim das ideologias e da histoacuteria se com um golpe de matildeo o proacuteprio
Marx eliminou a ambas Nesta visatildeo tal como o objeto que inicialmente preacute-
ideado na cabeccedila do artesatildeo completa seu ciclo de produccedilatildeo torna-se objetivo
finda a histoacuteria chegaria ao seu fim com a realizaccedilatildeo da filosofia pelo proletariado
ndash nos invertidos termos hegelianos seria este o momento da autoconscientizaccedilatildeo
do Espiacuterito da plena identificaccedilatildeo entre conceito e objeto entre pensamento e
realidade ndash fato que demarcaria o controle da vida humana nos mesmos moldes
em que o artesatildeo domina a mateacuteria a ser plasmada e lhe fornece uma forma final
Mas se Marx eacute tratado como uma espeacutecie de Hegel materialista eacute certo que
as ideacuteias de ambos natildeo satildeo idecircnticas Tanto que em oposiccedilatildeo agrave sua
predecessora hegeliana a coruja de Minerva marxiana natildeo alccedila vocirco somente ao
crepuacutesculo ela capta conceitualmente as condiccedilotildees em que este pode ocorrer e
12
assim auxilia na sua realizaccedilatildeo Outrossim mais importante do que saber se esta
caracteriacutestica do pensamento de Marx eacute adequadamente entendida por Arendt eacute
saber que para ela esta caracteriacutestica expressa um determinismo que torna
supeacuterflua qualquer discussatildeo sobre as finalidades e o conteuacutedo dos processos
sociais dado que a histoacuteria fabricada modelada como se fosse um objeto pelo
proletariado demiuacutergico torna a palavra o discurso um mero instrumento de
justificaccedilatildeo ideoloacutegica de ideacuteias preconcebidas a serem materializadas Foi
partindo desses pressupostos que Arendt pocircde afirmar
O que era entatildeo inexplicaacutevel na histoacuteria [a saber os muacuteltiplos interesses
conflitantes que tornam a accedilatildeo poliacutetica ineficaz no alcance de seus objetivos e a
existecircncia de um sentido no processo histoacuterico] passa agora a ser visto como o
reflexo de um significado que seguramente era tanto um produto humano quanto o
desenvolvimento teacutecnico do mundo O problema de humanizar os assuntos
poliacutetico-histoacutericos resumia-se consequumlentemente em descobrir como dominar
nossas proacuteprias accedilotildees assim como dominamos nossa capacidade produtiva ou
em outras palavras como ldquofazerrdquo histoacuteria assim como fazemos outras coisas Uma
vez que isso seja alcanccedilado com a vitoacuteria do proletariado natildeo precisaremos mais
de ideologias Mas ateacute laacute todas as accedilotildees poliacuteticas preceitos legais e
pensamentos espirituais continuaratildeo escondendo os motivos inconfessos de uma
sociedade que somente finge agir politicamente mas que na verdade ldquofaz
histoacuteriardquo ainda que de uma maneira inconsciente isto eacute natildeo-humana (Arendt
2002 p 63)
Natildeo constituindo a esfera do pleno exerciacutecio do debate de ideacuteias entre
indiviacuteduos livres e iguais ndash indiviacuteduos que por meio do uso intenso da palavra do
discurso do muacutetuo esclarecimento estabelecem consensos mais ou menos gerais
sobre os fundamentos e as finalidades da accedilatildeo ndash a poliacutetica atual constitui um
simulacro da poliacutetica autecircntica Tal como a entende Arendt esta constitui uma
esfera (puacuteblica) que antes de qualquer outra coisa deve estar apartada da
violecircncia na medida em que esta nega a palavra o discurso o debate e portanto
a accedilatildeo Definindo assim o que satildeo meios e fins o que eacute essencial e o que eacute
imposiccedilatildeo extriacutenseca agrave poliacutetica Arendt reitera que ldquoo poder eacute de fato a essecircncia
13
de todo governo mas natildeo a violecircnciardquo (Arendt 1994 p 40) Por conseguinte
sendo de natureza instrumental a violecircncia ldquocomo todos os meios sempre
depende da orientaccedilatildeo e da justificaccedilatildeo pelo fim que almeja E aquilo que
necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser a essecircncia de nadardquo (Arendt
1994 p 41) O poder encontra sua legitimidade no passado a violecircncia se
justifica pelas consequumlecircncias futuras aquele pela sua constituiccedilatildeo esta pelos
seus objetivos Em razatildeo disso ldquoa violecircncia pode ser justificaacutevel mas nunca seraacute
legiacutetimardquo (Arendt 1994 p 41) Enfim ao vincularem a violecircncia ao poder as
concepccedilotildees poliacuteticas hegemocircnicas dentre elas o marxismo demonstram a
incompreensatildeo de que aqueles satildeo na verdade opostos ldquoonde um domina
absolutamente o outro estaacute ausenterdquo (Arendt 1994 p 44)
Para natildeo cindir a argumentaccedilatildeo criacutetica e com isso tornaacute-la
demasiadamente prolixa retornaremos mais adiante a estas afirmaccedilotildees de
Hannah Arendt sobre poliacutetica e violecircncia Por ora apoacutes termos descrito algumas
categorias centrais do pensamento arendtiano e em especiacutefico os fundamentos
de sua criacutetica agrave relaccedilatildeo entre poliacutetica e violecircncia em Marx passemos na mesma
sequumlecircncia de ideacuteias desenvolvida ateacute aqui ao confronto dessas reflexotildees com
aquelas que a nosso ver correspondem adequadamente tanto ao corpo quanto
ao espiacuterito da obra marxiana
III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
Consideramos desnecessaacuterio demonstrar ad nauseam como a concepccedilatildeo
de trabalho em Marx difere substancialmente daquelas atividades que Arendt
denomina pelos vocaacutebulos trabalho e fabricaccedilatildeo pois para o nosso objetivo
basta que o realizemos apenas em suas linhas gerais Assim em primeiro lugar eacute
necessaacuterio relembrar que ao contraacuterio da concepccedilatildeo arendtiana na obra de Marx
o trabalho natildeo consiste numa atividade que nos vincularia mais ao mundo dos
animais do que ao dos seres humanos propriamente ditos Para ele muito distante
14
de qualquer ilusatildeo acerca de uma vida sem trabalho[12] esta atividade constitui um
momento efetivamente fundante e fundamental da vida humana sem a qual aiacute
sim natildeo nos distinguiriacuteamos em absolutamente nada dos proacuteprios animais[13] Em
termos precisos podemos dizer que o animal natildeo se relaciona com a natureza
ele apenas vive nela eacute sua parte integrante[14] natildeo se distinguindo dela como um
ser consciente o animal eacute portanto incapaz de estabelecer uma mediaccedilatildeo
regulada conscientemente controlada com a natureza (Marx 1985 p 149)
apenas respondendo com maior ou menor labilidade agraves determinaccedilotildees e agraves
constantes mudanccedilas de seu haacutebitat O ser humano por sua vez age de maneira
preacute-ideada em sua atividade metaboacutelica pois em todos os momentos do processo
de trabalho lhe ldquoeacute exigida a vontade orientada a um fimrdquo (Marx 1985 p 150)
Assim o sujeito que trabalha ldquonatildeo apenas efetua uma transformaccedilatildeo da forma da
mateacuteria natural realiza ao mesmo tempo na mateacuteria natural seu objetivo que ele
sabe que determina como lei a espeacutecie e o modo de sua atividade e ao qual tem
de subordinar sua vontaderdquo (Marx 1985 p 150) Natildeo sendo portanto a mera
expressatildeo de determinaccedilotildees ou epifenocircmenos bioloacutegicos o trabalho eacute uma
atividade na qual inevitavelmente entrelaccedilam-se o pensar e o fazer a
consciecircncia e a accedilatildeo com aquela orientando esta para transformar a mateacuteria com
vistas a dar-lhe uma forma adequada agrave satisfaccedilatildeo de alguma necessidade
humana A ideacuteia mediada pelo trabalho cristaliza-se no objeto objeto que longe
de ser meramente natural eacute a manifestaccedilatildeo material da subjetividade humana
posto que soacute existe em razatildeo desta Tanto que no final temos que ldquoo trabalho
estaacute objetivado e o objeto trabalhadordquo (Marx 1985 p 151) num mesmo ato a
subjetividade exteriorizou-se e a materialidade tornou-se subjetiva[15] E eacute claro
como esta objetivaccedilatildeo eacute resultado de accedilotildees conscientes o metabolismo dos
homens em relaccedilatildeo agrave natureza eacute muito mais dinacircmico mutante do que aquele
efetuado pelos animais resultando em formas materiais e sociais
permanentemente alteradas ocorrendo a mesma coisa com a proacutepria
subjetividade humana
15
Sendo uma atividade humanamente produtiva o trabalho natildeo eacute apenas a
relaccedilatildeo do homem com a natureza eacute tambeacutem uma relaccedilatildeo que ocorre entre os
proacuteprios homens ndash e verdadeiramente como trabalho soacute existe a partir desta
relaccedilatildeo Ainda em sua juventude num texto seminal para a elaboraccedilatildeo de suas
reflexotildees posteriores Marx nos diz que o homem ldquosoacute eacute um ser consciente quer
dizer a sua vida constitui para ele um objeto porque eacute um ser geneacuterico
Unicamente por isso eacute que sua atividade surge como atividade livrerdquo (Marx 1985
p 165) Se natildeo fosse um ser social geneacuterico produto e produtor de si e do
gecircnero o ser humano natildeo possuiria as faculdades (consciecircncia linguagem) sem
as quais paradoxalmente o proacuteprio trabalho natildeo existiria E que simultaneamente
como dissemos permitem o aprimoramento e a expansatildeo das fronteiras da vida
humana (individual e coletiva) para muito aleacutem daquelas a que estatildeo restritos os
seres vivos naturais[16]
Nesse caso parece-nos oacutebvio que eacute completamente irrelevante saber se
uma atividade produtiva resulta em produtos mais ou menos duraacuteveis ndash por
exemplo em alimentos ou objetos do mobiliaacuterio ndash para classificaacute-la como estando
mais proacutexima ou mais distante da vida propriamente humana Seja numa
sociedade especiacutefica ou ao longo da histoacuteria humana um produto pode durar mais
ou menos tempo devido a um sem-nuacutemero de fatores tais como os materiais e a
tecnologia empregados as relaccedilotildees sociais sob as quais foi produzido as classes
eou grupos sociais que o utilizaratildeo ndash definindo por exemplo a velocidade e o
perfil de sua obsolescecircncia ou seja se esta eacute real materialmente efetiva ou
socialmente condicionada ndash entre outros e natildeo apenas devido agrave maior ou menor
proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica dos indiviacuteduos A rigor a produccedilatildeo de um
alimento ou medicamento por meio de procedimentos complexos e sofisticados
mas cujo consumo eacute quase imediato (para Arendt ldquoproduto do trabalhordquo)
certamente expressa niacuteveis mais elevados de humanizaccedilatildeo do que a produccedilatildeo de
uma tosca mesa de madeira que perdura seacuteculos passando de geraccedilatildeo a
geraccedilatildeo (Marx 1985 ldquoproduto da fabricaccedilatildeordquo)
16
Essas observaccedilotildees acerca da relaccedilatildeo entre as atividades produtivas e a
durabilidade de suas produccedilotildees natildeo significa em hipoacutetese alguma que a
durabilidade ou natildeo de um produto seja irrelevante para os indiviacuteduos e a
sociedade em geral ateacute mesmo porque os produtos satildeo elementos constitutivos e
condicionantes de certas caracteriacutesticas dos processos de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo
das formaccedilotildees sociais Significa apenas que per se ela natildeo eacute relevante para
mensurar o niacutevel de humanizaccedilatildeo da atividade e das qualificaccedilotildees subjetivas nela
envolvidas Assim nas sociedades capitalistas por exemplo saber se um
determinado objeto constitui parte do maquinaacuterio ou da edificaccedilatildeo (capital fixo) ou
entatildeo se eacute apenas insumo mateacuteria-prima ou meio de subsistecircncia (capital
circulante) eacute significativo prioritariamente em razatildeo de que as proporccedilotildees de seus
respectivos usos e o seu periacuteodo de rotaccedilatildeo afetam de maneira decisiva as taxas
de lucro do capital investido Aleacutem do mais ldquoo fato de um valor de uso aparecer
como mateacuteria-prima meio de trabalho ou produto depende totalmente de sua
funccedilatildeo determinada no processo de trabalho da posiccedilatildeo que nele ocupa e com a
mudanccedila dessa posiccedilatildeo variam essas determinaccedilotildeesrdquo (Marx 1985 p 152)
Quase desnecessaacuterio dizer que tal posiccedilatildeo tambeacutem varia de acordo com o niacutevel
de desenvolvimento das forccedilas produtivas e das relaccedilotildees sociais que constituem a
sociedade em questatildeo Em siacutentese se natildeo podemos definir um objeto como
sendo o resultado de uma atividade inferior ou superior na hierarquia das
atividades humanas (da vita activa arendtiana) devido agrave sua durabilidade[17] ou agrave
sua proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica (agrave manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo do corpo)
qualquer tentativa de mensuraccedilatildeo sob este prisma nos parece completamente
arbitraacuteria inclusive eacute claro a que se funda na distinccedilatildeo arendtiana entre trabalho
e fabricaccedilatildeo
Enfatizar estas caracteriacutesticas do trabalho tambeacutem eacute importante porque
contrariamente agraves qualificaccedilotildees inerentes a ele e agrave fabricaccedilatildeo que de acordo com
Arendt estatildeo diretamente relacionadas agraves qualidades do Animal laborans e do
Homo faber no pensamento marxiano inexiste qualquer menccedilatildeo a uma essecircncia
a-histoacuterica do trabalho isto eacute uma essecircncia que agrave revelia da forma societaacuteria em
17
que a atividade se realiza imprime agrave subjetividade daquele que o executa
inelutaacuteveis qualificaccedilotildees Muito ao contraacuterio As anaacutelises marxianas satildeo
profundamente ancoradas na historicidade dos fenocircmenos naturais e sociais
negando qualquer essencialismo em relaccedilatildeo ao trabalho ou a qualquer outra
atividade bem como ao indiviacuteduo ou grupo de indiviacuteduos que o executa Para
Marx ldquoa essecircncia humana natildeo eacute uma abstraccedilatildeo inerente ao indiviacuteduo singular
Em sua realidade eacute o conjunto das relaccedilotildees sociaisrdquo (Marx 1987 p 13) Por
conseguinte em aberta oposiccedilatildeo agraves proposiccedilotildees arendtianas afirmamos que o
produtivismo natildeo constitui uma caracteriacutestica inerente ao trabalho ndash que com a
ascensatildeo deste agrave esfera puacuteblica teria transbordado as fronteiras da vida privada e
se generalizado socialmente ndash mas sim uma caracteriacutestica que possui suas raiacutezes
nas formas de sociabilidade vigentes no mundo contemporacircneo sejam estas
formas capitalistas ou poacutes-capitalistas[18] Dito de outro modo se o trabalho
assalariado alienado constitui cada vez mais a forma predominante da atividade
produtiva e reprodutiva dos indiviacuteduos nestas sociedades tal desventura natildeo
decorre de uma essecircncia que seja inerente a ele tanto quanto agraves formas preteacuteritas
de trabalho e que tenha se desvencilhado na atualidade das amarras que
limitavam sua expansatildeo A raiz deste fenocircmeno reside no fato de o capital
constituir a relaccedilatildeo social baacutesica das sociedades assinaladas generalizando
aquela forma de trabalho E a propoacutesito do essencialismo produtivista do trabalho
em vaacuterias passagens de sua obra Marx nos mostrou as diferenccedilas existentes
entre as sociedades antigas e as modernas sociedades capitalistas Numa dessas
passagens ele lembra que
Entre os antigos natildeo encontramos uma uacutenica investigaccedilatildeo a propoacutesito de qual a
forma de propriedade etc que seria a mais produtiva que geraria o maacuteximo de
riqueza A riqueza natildeo constituiacutea o objetivo da produccedilatildeo A pesquisa sempre
era sobre qual o tipo de propriedade que geraria os melhores cidadatildeos (Marx
1975 p 80 grifos nossos)
Mesmo em seu acircmbito estritamente privado a propriedade natildeo estava
relacionada prioritariamente aos interesses egoiacutestas do indiviacuteduo mas eram os 18
interesses deste ndash e portanto o uso que fazia daquela ndash que estavam
circunscritos e condicionados pelos interesses da comunidade da qual fazia parte
por mais restrita que esta fosse em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo total Desse modo nestas
formaccedilotildees sociais as atividades produtivas natildeo eram movidas por uma ldquoinerenterdquo
racionalidade produtivista uma racionalidade cujo suposto transbordamento das
fronteiras privadas e o estabelecimento do domiacutenio sobre as outras atividades
caracterizariam ndash segundo Arendt ndash o mundo moderno Em relaccedilatildeo a este sua
principal caracteriacutestica consiste na centralidade na generalizaccedilatildeo e no crescente
predomiacutenio do capital no conjunto das relaccedilotildees sociais Enfim eacute justamente esta
centralidade do capital e suas consequumlecircncias que produz o assalariamento
generalizado dos indiviacuteduos e a subsunccedilatildeo da reproduccedilatildeo socioeconocircmica como
um todo agrave loacutegica produtivista
Numa pequena digressatildeo visando apenas a estreitar as margens de accedilatildeo
das leituras vulgares do marxismo eacute necessaacuterio ressaltar que esta afirmaccedilatildeo da
centralidade do capital nas relaccedilotildees sociais contemporacircneas e do espraiamento
de sua influecircncia pela totalidade social natildeo implica reducionismo econocircmico Na
verdade ela significa apenas a explicitaccedilatildeo de caracteriacutesticas inerentes ao capital
cuja tendecircncia a subsumir a multiplicidade de dimensotildees da vida humana agrave sua
loacutegica acumulatoacuteria expansionista eacute um fato incontestaacutevel ontologicamente
enraizado e racionalmente apreensiacutevel e natildeo um grave equiacutevoco teoacuterico de um
pensamento incapaz de atentar para a complexidade do real Eacute nesse sentido que
comentando a famosa proposiccedilatildeo de Marx segundo a qual ldquoNatildeo eacute a consciecircncia
dos homens que determina o seu ser mas ao contraacuterio eacute o seu ser social que
determina sua consciecircnciardquo[19] (Marx 1982 p 25) Lukaacutecs afirma ldquonesse trecho o
mundo das formas de consciecircncia e seus conteuacutedos natildeo eacute visto como um produto
direto da estrutura econocircmica mas da totalidade do ser social A determinaccedilatildeo da
consciecircncia pelo ser social portanto eacute entendida em seu sentido mais geralrdquo
(Lukaacutecs 1979 p 41) ndash e natildeo como expressatildeo direta mecacircnica e restrita dos
processos econocircmicos
19
Neste toacutepico ateacute o momento detivemo-nos nas distintas concepccedilotildees
acerca do trabalho presentes em Arendt e Marx O caso poreacutem eacute que apesar de
significativas tais concepccedilotildees natildeo circunscrevem sua influecircncia agraves fronteiras
econocircmicas mas extravasam a economia e deitam raiacutezes na totalidade de suas
reflexotildees sobre a vida humana Assim se Arendt tem razatildeo em afirmar que para
Marx o trabalho ndash e a fabricaccedilatildeo apesar da irrelevacircncia desta distinccedilatildeo (trabalho x
fabricaccedilatildeo) no quadro conceitual marxiano ndash eacute tratado como uma atividade
teleoloacutegica cujas relaccedilotildees que estabelece com as outras atividades constitutivas
da vida humana satildeo fundamentais para delinear as caracteriacutesticas da totalidade
social nada justifica sua transposiccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos do trabalho
(concreto) para a concepccedilatildeo de histoacuteria marxiana No entanto eacute justamente isto
que ela faz ao afirmar que em Marx a histoacuteria eacute entendida como um processo
similar ao da fabricaccedilatildeo do artesanato um processo que contemporaneamente
exige a intervenccedilatildeo consciente de um sujeito demiuacutergico ndash o proletariado ndash para
plasmar a nova forma societaacuteria tal como o artesatildeo faz com sua mateacuteria-prima E
igualmente ao afirmar que do mesmo modo que a materializaccedilatildeo do objeto preacute-
ideado expressa o fim do processo gerido pelo artesatildeo a realizaccedilatildeo da sociedade
ldquopreacute-ideadardquo pelo proletariado significaria o fim da histoacuteria
Ora uma das questotildees mais complexas do pensamento social fruto de
inuacutemeras polecircmicas teorias e tratados ao longo dos uacuteltimos seacuteculos ndash
especialmente apoacutes o advento da sociologia ndash eacute a articulaccedilatildeo das accedilotildees
individuais e a reproduccedilatildeo da totalidade social E mesmo certos da impossibilidade
de adentrar no emaranhado de questotildees suscitado pelo tema natildeo podemos omitir
a informaccedilatildeo de que uma leitura criteriosa dos textos marxianos demonstra sem
grande dificuldade a improcedecircncia das criacuteticas de Hannah Arendt De modo
algum condiz com o ldquoespiacuteritordquo da obra marxiana a identificaccedilatildeo da reproduccedilatildeo
social como um todo e nem dos processos de transiccedilatildeo de uma forma societaacuteria a
outra ao modus operandi do trabalho O que natildeo significa por sua vez que a
instabilidade econocircmica e social natildeo fosse objeto de suas preocupaccedilotildees A bem
da verdade sendo o primeiro a entender a centralidade do trabalho e suas
20
consequumlecircncias na produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana Marx se assenhoreou
desde os Manuscritos de 1844 de conhecimentos suficientemente significativos
para criticar em relaccedilatildeo agravequele aspecto inicialmente citado das relaccedilotildees entre
indiviacuteduo e sociedade tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo Assim em
vez da naturalizaccedilatildeo da histoacuteria humana ou da arbitrariedade da vontade e da
razatildeo em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmaccedilatildeo dos
seres humanos como autoprodutores de sua proacutepria histoacuteria e simultaneamente
uma criacutetica agrave hipostasia das potencialidades da razatildeo e das forccedilas humanas nesta
autoproduccedilatildeo Invariavelmente suas anaacutelises reiteram que ldquoOs homens fazem
sua proacutepria histoacuteria mas natildeo a fazem como querem natildeo a fazem sob
circunstacircncias de sua proacutepria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam
diretamente legadas e transmitidas pelo passadordquo (Marx 1986 p 17 grifos
nossos) Nos dias atuais natildeo eacute difiacutecil perceber como por si soacute esta frase nos
mostra quatildeo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e
da realpolitik que cada qual ao seu modo como faces de uma mesma moeda
dominam os discursos poliacuteticos e econocircmicos em voga
Ainda no que diz respeito agrave questatildeo do sujeito demiuacutergico e do finalismo
histoacuterico eacute necessaacuterio que se entenda que mesmo em sua fastidiosa reproduccedilatildeo
cotidiana o trabalho eacute sempre um ato de criaccedilatildeo criaccedilatildeo natildeo apenas de coisas
novas de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma
humanamente apropriada mas criaccedilatildeo da proacutepria subjetividade humana que se
renova a partir das experiecircncias possibilitadas pelos meios e resultados de sua
produccedilatildeo e pelas relaccedilotildees sociais que os envolvem Tendo em mente esta
dinacircmica intriacutenseca agrave atividade vital dos seres humanos e ao mesmo tempo o
caraacuteter que para Marx a totalidade do real[20] assume como concreto pensado
(Marx 1982 p 15) nem a mais poderosa das inteligecircncias humanas tampouco o
concurso delas sob a forma do coletivo partidaacuterio pode em termos conceituais
apreender subsumir absolutamente o real ao pensamento ndash e muito menos
sujeitar as proacuteprias relaccedilotildees sociais a um controle assemelhado ao das teacutecnicas
produtivas
21
Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final
entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja
rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz
consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de
Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo
sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele
ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von
Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia
hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas
sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais
geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de
onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta
observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica
especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente
pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto
natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o
proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela
histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e
seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o
conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade
histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens
em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo
possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas
Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo
de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos
individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica
intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos
altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que
nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que
22
em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a
divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente
a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de
todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada
espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das
diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como
reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori
e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do
trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural
interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado
subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo
social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo
reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo
exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo
que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as
condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)
Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais
de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente
as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de
posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo
(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa
O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias
normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de
finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem
realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute
inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)
Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante
entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de
indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de
eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a
23
casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece
porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da
ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas
significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias
sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca
controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias
objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que
encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano
Em sua Ontologia do ser social ele afirma
Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada
vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as
decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da
totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse
conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa
relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso
porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o
movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da
histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas
etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local
tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que
tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de
transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que
satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do
que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e
consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso
aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)
Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos
individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha
ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias
mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade
oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem
econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo
24
social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve
ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que
historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os
processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem
uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle
destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou
A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a
anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo
incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do
trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer
controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma
infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo
autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais
entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda
organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a
sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)
Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus
ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os
limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de
intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal
qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos
uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana
(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do
pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os
limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir
para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta
ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo
No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras
experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao
nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25
pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas
relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi
drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente
desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses
capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de
regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo
resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica
reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas
experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da
humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua
loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a
accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com
seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social
passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees
marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de
regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos
moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a
consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria
redenccedilatildeo universal
O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos
ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as
acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels
salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido
um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o
movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)
O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se
realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico
do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana
de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo
comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o
26
comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a
forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo
nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao
desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma
sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o
comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no
fim da histoacuteria[22]
Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento
marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute
capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e
desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo
ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso
numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]
mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou
natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana
Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees
que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim
contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das
caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da
limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os
homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara
manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal
Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos
extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a
violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo
Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do
capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre
a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os
revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila
27
material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a
utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de
recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o
revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico
Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder
material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria
se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz
de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e
argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar
o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p
497)
Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos
(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o
discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista
muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)
que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no
encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as
sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece
ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um
discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos
constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das
individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades
eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano
mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em
campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar
plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de
sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar
sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio
colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel
convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e
28
culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem
respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes
subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]
Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)
de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio
das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto
natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive
atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie
No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias
naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o
crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda
escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-
sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo
contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da
incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees
materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos
afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus
processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos
inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos
da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades
humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute
o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses
trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)
Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas
produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa
penetrante passagem sobre o tema lemos
O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto
dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de
29
desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse
nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos
demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua
vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado
naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo
determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas
relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu
proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx
1973 pp 89-90)
Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos
sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a
centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos
aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza
e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham
vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a
intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o
equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente
econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida
social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da
permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas
relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito
da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas
universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada
das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os
homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria
mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das
forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo
adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos
homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia
O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se
compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30
neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo
do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo
pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso
histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive
violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste
(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso
resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na
sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os
antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por
ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses
das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos
Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica
natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades
reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a
estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico
Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da
cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios
juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da
sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela
que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de
duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que
complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo
concreto
O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em
oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem
de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade
desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem
leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da
realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na
comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na
31
sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como
meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes
estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser
profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real
eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem
eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma
soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de
uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)
Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e
imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos
privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma
revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res
publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja
eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da
proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a
violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica
consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a
accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a
vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma
alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento
Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a
essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o
proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua
violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre
dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo
de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a
perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a
violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt
segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser
a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente
32
pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o
antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as
relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de
supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano
Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder
dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se
faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de
violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o
poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa
revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades
viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento
humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo
profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma
resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como
desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo
Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado
como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos
do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute
poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de
propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)
Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de
dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao
contraacuterio
Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como
classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como
classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as
condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em
geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)
33
Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx
1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo
poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer
forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas
formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar
em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis
Quanto a isso eacute importante relembrar que
O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos
limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute
capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade
Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais
ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e
espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a
fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)
Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-
violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo
violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-
socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo
(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-
humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo
humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a
rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios
quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de
coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras
A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um
anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo
(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim
negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se
natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para
natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a
34
contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo
(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-
humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-
violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que
assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)
Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx
caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu
proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios
empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo
entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez
de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do
humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-
capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo
dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os
torna incompatiacuteveis[27]
IV Agrave guisa de conclusatildeo
Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de
Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda
distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de
Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do
pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas
que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio
da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente
sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir
de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns
aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram
envolvidos pela leitura arendtiana
35
Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem
ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem
duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho
Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e
estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do
solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo
neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade
com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se
reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos
intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro
porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento
marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual
formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco
em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e
Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para
o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e
revolucionaacuterios
Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo
XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho
caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos
revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso
imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob
muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes
natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca
demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo
sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas
proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os
argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro
sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas
ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma
36
verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto
que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute
cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido
V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio
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______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002
Notas
38
Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo
Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo
teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a
estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o
ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque
somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a
abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos
que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e
isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a
accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num
constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas
produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou
menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de
consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados
a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo
antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em
termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e
inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho
como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt
1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels
segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte
daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos
homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e
39
osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida
real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos
desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo
corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade
efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa
produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma
aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio
Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para
produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas
necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a
Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de
qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas
formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na
constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso
ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro
Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se
distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo
reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele
duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo
(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute
afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels
1986 p 19)
40
[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade
esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas
daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades
capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas
carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e
propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que
determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a
p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que
sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram
transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em
grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos
paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital
Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo
crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos
estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem
consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo
social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas
conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento
marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo
implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de
estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo
significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo
dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma
luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude
do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de
uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o
41
entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada
dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas
caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos
do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no
fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje
muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o
sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e
saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente
a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente
severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de
personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de
objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de
produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e
personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar
condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua
perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento
universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social
como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p
85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que
apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo
aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do
esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e
complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em
relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios
revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA
transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em
42
43
massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
-
casos tomassem a fabricaccedilatildeo por modelo para a accedilatildeo as eacutepocas anteriores agrave
modernidade valorizavam a accedilatildeo e a contemplaccedilatildeo como atividades propriamente
humanas ndash o homem era reconhecido como Animal rationale No mundo moderno
as coisas tomaram outro rumo
a convicccedilatildeo de que o homem pode conhecer somente aquilo que ele faz de que
suas capacidades supostamente superiores dependem da fabricaccedilatildeo e de que ele
eacute portanto primariamente um Homo faber e natildeo um Animal rationale trouxe agrave
tona as implicaccedilotildees muito mais antigas da inerente violecircncia em todas as
interpretaccedilotildees das esferas de negoacutecios humanos como uma esfera de fabricaccedilatildeo
(Arendt 1998 p 228)
Assim aleacutem de ressaltar uma suposta confusatildeo entre trabalho e fabricaccedilatildeo
permitindo o predomiacutenio daquele em espaccedilos antes restritos apenas agrave atividade
do artesatildeo ndash e atraveacutes dele a subsunccedilatildeo dos ideais e praacuteticas do Homo faber aos
do Animal laborans ndash Arendt enfatiza que o mundo moderno tambeacutem acabou
confundindo a fabricaccedilatildeo com a accedilatildeo o que fez com que a primeira se tornasse o
modelo da praacutexis poliacutetica da accedilatildeo Nessa ldquosubstituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeordquo
(Arendt 1998) o Animal rationale cedeu seu lugar ao Homo faber ndash ou melhor
incorporou as caracteriacutesticas deste ndash e com isso a accedilatildeo passou a ter como
principal referecircncia o modus operandi da fabricaccedilatildeo (work) da atividade produtiva
da obra[8] Isso significa que a racionalidade orientada para a adequaccedilatildeo de meios
a fins determinados preacute-ideados ndash ou seja a racionalidade que deve conduzir a
organizaccedilatildeo dos meios de acordo com um ldquomodelordquo (mental conceitual) a ser
objetivado ndash tiacutepica da fabricaccedilatildeo tambeacutem estaacute presente de maneira decisiva na
accedilatildeo na praacutexis poliacutetica do mundo moderno Ou seja justamente na accedilatildeo que eacute
(ou ao menos deveria ser) a atividade humana que estabelece a relaccedilatildeo entre
indiviacuteduos livres e iguais na esfera puacuteblica na vida poliacutetica
Enfim essa substituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeo expressa que a violecircncia
tatildeo necessaacuteria ao Homo faber em sua luta para arrancar da natureza os
elementos (os materiais) sobre os quais incide sua atividade e com isso adequaacute-
8
los a fins natildeo-naturais torna-se tambeacutem necessaacuteria e valorizada nesta atividade
(uma espeacutecie de accedilatildeo corrompida) que toma a fabricaccedilatildeo por modelo
II Poliacutetica e violecircncia
Ao considerar a violecircncia detentora um papel decisivo na fabricaccedilatildeo e por
meio dela na accedilatildeo especialmente na transiccedilatildeo de uma formaccedilatildeo social a outra
Arendt considera a poliacutetica no mundo moderno agraves voltas com um problema
fundamental toma por caracteriacutestica da accedilatildeo aquilo que na verdade constitui
caracteriacutestica da fabricaccedilatildeo E eacute justamente no cerne dessa confusatildeo conceitual
que segundo ela o pensamento de Marx se encontra ndash mais constitui um caso
exemplar Sendo assim deixemos que nesse aspecto decisivo Arendt fale por si
mesma
A afirmaccedilatildeo de Marx de que a ldquoviolecircncia eacute a parteira de toda velha sociedade
prenhe de uma sociedade novardquo ou seja de toda mudanccedila histoacuterica ou poliacutetica
somente sintetiza a convicccedilatildeo dominante em toda a era moderna e deduz as
consequumlecircncias de sua crenccedila mais iacutentima de que a histoacuteria eacute ldquofeitardquo pelo homem
do mesmo modo que a natureza eacute ldquofeitardquo por Deus
Como tem sido persistente e bem sucedida a transformaccedilatildeo da accedilatildeo em
modalidade da fabricaccedilatildeo eacute facilmente atestada por toda terminologia da teoria e
do pensamento poliacutetico a qual torna quase impossiacutevel discutir esses assuntos sem
que se utilize a categoria de meios e fins e se raciocine em termos de
instrumentalidade (Arendt 1998 pp 228-9)
Num artigo de 1953 intitulado ldquoReligiatildeo e poliacuteticardquo logo apoacutes apoiar-se em
Karl Mannheim para ressaltar a dimensatildeo ideoloacutegica do marxismo e desqualificar
a abordagem acerca da relaccedilatildeo entre ser e consciecircncia por este preconizada[9]
Arendt diz
9
A relutacircncia de Marx em levar a seacuterio ldquoo que cada eacutepoca diz sobre si e imagina
serrdquo derivava de sua convicccedilatildeo de que a accedilatildeo poliacutetica era basicamente violecircncia e
que a violecircncia era a parteira da histoacuteria Tal convicccedilatildeo natildeo se devia agrave ferocidade
gratuita de um temperamento revolucionaacuterio mas tem seu lugar na filosofia da
histoacuteria de Marx que sustenta que a histoacuteria representada pelos homens na
modalidade da falsa consciecircncia isto eacute na modalidade das ideologias pode ser
feita pelos homens tendo eles plena consciecircncia do que estatildeo fazendo Eacute
justamente esse lado humanista dos ensinamentos de Marx que o levou a insistir
no caraacuteter violento da accedilatildeo poliacutetica ele via o fazer da histoacuteria em termos de
fabricaccedilatildeo o homem histoacuterico era para ele basicamente Homo faber A fabricaccedilatildeo
de todas as coisas feitas pelo homem implica necessariamente alguma violecircncia
que incidiraacute sobre a coisa que se torna a mateacuteria baacutesica do que foi fabricado
(Arendt 2002 pp 62-3)
Marx assim teria compreendido a histoacuteria como resultado do ldquofazerrdquo
humano como resultado de atos teleoloacutegicos que nos moldes da atividade
artesanal ndash da fabricaccedilatildeo ndash fazem do ldquoHomemrdquo ndash e natildeo dos homens ndash o artesatildeo
consciente de sua histoacuteria (cf Canovan 1998) Eacute como se Marx tivesse
transformado o processo histoacuterico resultante de muacuteltiplas interaccedilotildees dos seres
humanos entre si (e simultaneamente destes com a natureza) num processo
instrumental Ou dito de outro modo eacute como se tal qual um Hegel materialista
ele concebesse a proacutepria sociedade como um ser demiuacutergico dotado de
capacidades e formas de atuaccedilatildeo semelhantes agravequelas do indiviacuteduo singular que
substituiacutesse o Espiacuterito e o seu processo de sua autoconscientizaccedilatildeo pelos
proacuteprios homens ndash ou pelo ldquoHomemrdquo ndash e seus atos de ldquofazer a histoacuteriardquo de
ldquofabricarrdquo a sociedade ideal (comunista) Neste caso a consciecircncia de classe
cumpriria o mesmo papel que a hegeliana ldquoastuacutecia da Razatildeordquo De qualquer modo
em ambos os casos natildeo satildeo exatamente os homens em sua multiplicidade de
experiecircncias e expectativas que agem em parte de maneira coordenada e
consciente e em parte conflitiva e inconscientemente mas ao contraacuterio eacute o
ldquoHomemrdquo a humanidade unificada que age de maneira coordenada consciente e
controlada como se fosse o ldquoartesatildeo do mundordquo
10
A visatildeo marxista da atividade revolucionaacuteria seria entatildeo o resultado da
imputaccedilatildeo inconsciente de qualidades da fabricaccedilatildeo agrave accedilatildeo a qual por meio da
violecircncia[10] e orientada pelos mesmos criteacuterios de meios e fins que regem a
fabricaccedilatildeo faria os homens efetuarem o parto da nova sociedade cujo rebento
encontra-se emaranhado nas iacutentimas contradiccedilotildees da velha formaccedilatildeo social Seria
justamente esta exaltaccedilatildeo da violecircncia da ldquouacuteltima ratiordquo tiacutepica das relaccedilotildees entre
os baacuterbaros e caracteriacutestica da condiccedilatildeo do escravo[11] a demonstraccedilatildeo de que
em Marx predomina uma ldquohostilidade antitradicional ao discursordquo agrave busca do
consenso agrave poliacutetica (Arendt 1972 p 50)
Nesse contexto o pensamento poliacutetico de Marx representa segundo Arendt
o fim de uma trajetoacuteria do pensamento poliacutetico tradicional iniciada pelas filosofias
de Platatildeo e Aristoacuteteles Pois com esses pensadores a filosofia teria num duplo
salto se distanciado dos assuntos humanos onde reina a confusatildeo e a ilusatildeo
para retornar a eles ilustrada pela razatildeo isto eacute ldquopara [esta a razatildeo] impor seus
padrotildees aos assuntos humanosrdquo (Arendt 1972 p 44) fato altamente positivo que
teria demarcado o iniacutecio de uma fecunda relaccedilatildeo entre a filosofia e os assuntos
humanos entre ela e a poliacutetica Enquanto com Marx desgraccediladamente teria
acontecido o oposto visto que ele ldquorepudiou a Filosofia para poder lsquorealizaacute-larsquo na
poliacuteticardquo (Arendt 1972 p 44) Para ele em vez de a filosofia permanecer uma
espeacutecie de reflexatildeo sistemaacutetica e criacutetica constituiacuteda de certo modo apartada do
processo histoacuterico ela passou a emanar da proacutepria histoacuteria ldquoou antes a
consciecircncia poliacutetica [deriva] da consciecircncia histoacutericardquo (Arendt 1972 p 114) E
ainda segundo Arendt um dos fundamentos desta concepccedilatildeo reside na
identificaccedilatildeo estabelecida no mundo moderno entre sentido e fim Por meio dela
o sentido como termo que expressa o significado de um acontecimento ndash portanto
resultante de uma explicaccedilatildeo post factum ndash foi transformado em fim de
significado de acontecimentos passados passou a preacute-idear situaccedilotildees futuras
Com isso as accedilotildees individuais e instrumentais (realizadas com a finalidade de)
que explicam o processo de trabalho e seus resultados passaram a servir de
modelo para a explicaccedilatildeo do porquecirc de o indiviacuteduo (eou a sociedade) ser o que eacute
11
e portanto executar esta atividade (eou possuir tais caracteriacutesticas) ndash ie como
se o presente fosse a manifestaccedilatildeo ldquoaqui e agorardquo da necessidade imanente de
atos passados Enfim ao considerar as sociedades modernas degradadoras do
sentido em fim Arendt avalia que o marxismo parte integrante desta modernidade
levou esta degradaccedilatildeo agraves uacuteltimas consequumlecircncias e assim transformou a histoacuteria
em teleologia
Pois bem se ainda segundo Arendt a teoria da histoacuteria como fabricaccedilatildeo
natildeo eacute exclusiva do pensamento marxista mas constitui uma caracteriacutestica do
pensamento poliacutetico moderno aquele se distingue
de todas as demais teorias em que a noccedilatildeo de ldquofazer a histoacuteriardquo encontrou abrigo
somente [pelo] fato de apenas ele ter percebido que se se toma a histoacuteria como o
objeto de um processo de fabricaccedilatildeo ou elaboraccedilatildeo deve sobrevir um momento
em que esse objeto eacute completado e que desde que se imagina ser possiacutevel fazer
a histoacuteria natildeo se pode escapar agrave consequumlecircncia de que haveraacute um fim para a
histoacuteria (Arendt 1972 p 114)
Para que entatildeo os marxistas respondem aos apocaliacutepticos que
advogam o fim das ideologias e da histoacuteria se com um golpe de matildeo o proacuteprio
Marx eliminou a ambas Nesta visatildeo tal como o objeto que inicialmente preacute-
ideado na cabeccedila do artesatildeo completa seu ciclo de produccedilatildeo torna-se objetivo
finda a histoacuteria chegaria ao seu fim com a realizaccedilatildeo da filosofia pelo proletariado
ndash nos invertidos termos hegelianos seria este o momento da autoconscientizaccedilatildeo
do Espiacuterito da plena identificaccedilatildeo entre conceito e objeto entre pensamento e
realidade ndash fato que demarcaria o controle da vida humana nos mesmos moldes
em que o artesatildeo domina a mateacuteria a ser plasmada e lhe fornece uma forma final
Mas se Marx eacute tratado como uma espeacutecie de Hegel materialista eacute certo que
as ideacuteias de ambos natildeo satildeo idecircnticas Tanto que em oposiccedilatildeo agrave sua
predecessora hegeliana a coruja de Minerva marxiana natildeo alccedila vocirco somente ao
crepuacutesculo ela capta conceitualmente as condiccedilotildees em que este pode ocorrer e
12
assim auxilia na sua realizaccedilatildeo Outrossim mais importante do que saber se esta
caracteriacutestica do pensamento de Marx eacute adequadamente entendida por Arendt eacute
saber que para ela esta caracteriacutestica expressa um determinismo que torna
supeacuterflua qualquer discussatildeo sobre as finalidades e o conteuacutedo dos processos
sociais dado que a histoacuteria fabricada modelada como se fosse um objeto pelo
proletariado demiuacutergico torna a palavra o discurso um mero instrumento de
justificaccedilatildeo ideoloacutegica de ideacuteias preconcebidas a serem materializadas Foi
partindo desses pressupostos que Arendt pocircde afirmar
O que era entatildeo inexplicaacutevel na histoacuteria [a saber os muacuteltiplos interesses
conflitantes que tornam a accedilatildeo poliacutetica ineficaz no alcance de seus objetivos e a
existecircncia de um sentido no processo histoacuterico] passa agora a ser visto como o
reflexo de um significado que seguramente era tanto um produto humano quanto o
desenvolvimento teacutecnico do mundo O problema de humanizar os assuntos
poliacutetico-histoacutericos resumia-se consequumlentemente em descobrir como dominar
nossas proacuteprias accedilotildees assim como dominamos nossa capacidade produtiva ou
em outras palavras como ldquofazerrdquo histoacuteria assim como fazemos outras coisas Uma
vez que isso seja alcanccedilado com a vitoacuteria do proletariado natildeo precisaremos mais
de ideologias Mas ateacute laacute todas as accedilotildees poliacuteticas preceitos legais e
pensamentos espirituais continuaratildeo escondendo os motivos inconfessos de uma
sociedade que somente finge agir politicamente mas que na verdade ldquofaz
histoacuteriardquo ainda que de uma maneira inconsciente isto eacute natildeo-humana (Arendt
2002 p 63)
Natildeo constituindo a esfera do pleno exerciacutecio do debate de ideacuteias entre
indiviacuteduos livres e iguais ndash indiviacuteduos que por meio do uso intenso da palavra do
discurso do muacutetuo esclarecimento estabelecem consensos mais ou menos gerais
sobre os fundamentos e as finalidades da accedilatildeo ndash a poliacutetica atual constitui um
simulacro da poliacutetica autecircntica Tal como a entende Arendt esta constitui uma
esfera (puacuteblica) que antes de qualquer outra coisa deve estar apartada da
violecircncia na medida em que esta nega a palavra o discurso o debate e portanto
a accedilatildeo Definindo assim o que satildeo meios e fins o que eacute essencial e o que eacute
imposiccedilatildeo extriacutenseca agrave poliacutetica Arendt reitera que ldquoo poder eacute de fato a essecircncia
13
de todo governo mas natildeo a violecircnciardquo (Arendt 1994 p 40) Por conseguinte
sendo de natureza instrumental a violecircncia ldquocomo todos os meios sempre
depende da orientaccedilatildeo e da justificaccedilatildeo pelo fim que almeja E aquilo que
necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser a essecircncia de nadardquo (Arendt
1994 p 41) O poder encontra sua legitimidade no passado a violecircncia se
justifica pelas consequumlecircncias futuras aquele pela sua constituiccedilatildeo esta pelos
seus objetivos Em razatildeo disso ldquoa violecircncia pode ser justificaacutevel mas nunca seraacute
legiacutetimardquo (Arendt 1994 p 41) Enfim ao vincularem a violecircncia ao poder as
concepccedilotildees poliacuteticas hegemocircnicas dentre elas o marxismo demonstram a
incompreensatildeo de que aqueles satildeo na verdade opostos ldquoonde um domina
absolutamente o outro estaacute ausenterdquo (Arendt 1994 p 44)
Para natildeo cindir a argumentaccedilatildeo criacutetica e com isso tornaacute-la
demasiadamente prolixa retornaremos mais adiante a estas afirmaccedilotildees de
Hannah Arendt sobre poliacutetica e violecircncia Por ora apoacutes termos descrito algumas
categorias centrais do pensamento arendtiano e em especiacutefico os fundamentos
de sua criacutetica agrave relaccedilatildeo entre poliacutetica e violecircncia em Marx passemos na mesma
sequumlecircncia de ideacuteias desenvolvida ateacute aqui ao confronto dessas reflexotildees com
aquelas que a nosso ver correspondem adequadamente tanto ao corpo quanto
ao espiacuterito da obra marxiana
III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
Consideramos desnecessaacuterio demonstrar ad nauseam como a concepccedilatildeo
de trabalho em Marx difere substancialmente daquelas atividades que Arendt
denomina pelos vocaacutebulos trabalho e fabricaccedilatildeo pois para o nosso objetivo
basta que o realizemos apenas em suas linhas gerais Assim em primeiro lugar eacute
necessaacuterio relembrar que ao contraacuterio da concepccedilatildeo arendtiana na obra de Marx
o trabalho natildeo consiste numa atividade que nos vincularia mais ao mundo dos
animais do que ao dos seres humanos propriamente ditos Para ele muito distante
14
de qualquer ilusatildeo acerca de uma vida sem trabalho[12] esta atividade constitui um
momento efetivamente fundante e fundamental da vida humana sem a qual aiacute
sim natildeo nos distinguiriacuteamos em absolutamente nada dos proacuteprios animais[13] Em
termos precisos podemos dizer que o animal natildeo se relaciona com a natureza
ele apenas vive nela eacute sua parte integrante[14] natildeo se distinguindo dela como um
ser consciente o animal eacute portanto incapaz de estabelecer uma mediaccedilatildeo
regulada conscientemente controlada com a natureza (Marx 1985 p 149)
apenas respondendo com maior ou menor labilidade agraves determinaccedilotildees e agraves
constantes mudanccedilas de seu haacutebitat O ser humano por sua vez age de maneira
preacute-ideada em sua atividade metaboacutelica pois em todos os momentos do processo
de trabalho lhe ldquoeacute exigida a vontade orientada a um fimrdquo (Marx 1985 p 150)
Assim o sujeito que trabalha ldquonatildeo apenas efetua uma transformaccedilatildeo da forma da
mateacuteria natural realiza ao mesmo tempo na mateacuteria natural seu objetivo que ele
sabe que determina como lei a espeacutecie e o modo de sua atividade e ao qual tem
de subordinar sua vontaderdquo (Marx 1985 p 150) Natildeo sendo portanto a mera
expressatildeo de determinaccedilotildees ou epifenocircmenos bioloacutegicos o trabalho eacute uma
atividade na qual inevitavelmente entrelaccedilam-se o pensar e o fazer a
consciecircncia e a accedilatildeo com aquela orientando esta para transformar a mateacuteria com
vistas a dar-lhe uma forma adequada agrave satisfaccedilatildeo de alguma necessidade
humana A ideacuteia mediada pelo trabalho cristaliza-se no objeto objeto que longe
de ser meramente natural eacute a manifestaccedilatildeo material da subjetividade humana
posto que soacute existe em razatildeo desta Tanto que no final temos que ldquoo trabalho
estaacute objetivado e o objeto trabalhadordquo (Marx 1985 p 151) num mesmo ato a
subjetividade exteriorizou-se e a materialidade tornou-se subjetiva[15] E eacute claro
como esta objetivaccedilatildeo eacute resultado de accedilotildees conscientes o metabolismo dos
homens em relaccedilatildeo agrave natureza eacute muito mais dinacircmico mutante do que aquele
efetuado pelos animais resultando em formas materiais e sociais
permanentemente alteradas ocorrendo a mesma coisa com a proacutepria
subjetividade humana
15
Sendo uma atividade humanamente produtiva o trabalho natildeo eacute apenas a
relaccedilatildeo do homem com a natureza eacute tambeacutem uma relaccedilatildeo que ocorre entre os
proacuteprios homens ndash e verdadeiramente como trabalho soacute existe a partir desta
relaccedilatildeo Ainda em sua juventude num texto seminal para a elaboraccedilatildeo de suas
reflexotildees posteriores Marx nos diz que o homem ldquosoacute eacute um ser consciente quer
dizer a sua vida constitui para ele um objeto porque eacute um ser geneacuterico
Unicamente por isso eacute que sua atividade surge como atividade livrerdquo (Marx 1985
p 165) Se natildeo fosse um ser social geneacuterico produto e produtor de si e do
gecircnero o ser humano natildeo possuiria as faculdades (consciecircncia linguagem) sem
as quais paradoxalmente o proacuteprio trabalho natildeo existiria E que simultaneamente
como dissemos permitem o aprimoramento e a expansatildeo das fronteiras da vida
humana (individual e coletiva) para muito aleacutem daquelas a que estatildeo restritos os
seres vivos naturais[16]
Nesse caso parece-nos oacutebvio que eacute completamente irrelevante saber se
uma atividade produtiva resulta em produtos mais ou menos duraacuteveis ndash por
exemplo em alimentos ou objetos do mobiliaacuterio ndash para classificaacute-la como estando
mais proacutexima ou mais distante da vida propriamente humana Seja numa
sociedade especiacutefica ou ao longo da histoacuteria humana um produto pode durar mais
ou menos tempo devido a um sem-nuacutemero de fatores tais como os materiais e a
tecnologia empregados as relaccedilotildees sociais sob as quais foi produzido as classes
eou grupos sociais que o utilizaratildeo ndash definindo por exemplo a velocidade e o
perfil de sua obsolescecircncia ou seja se esta eacute real materialmente efetiva ou
socialmente condicionada ndash entre outros e natildeo apenas devido agrave maior ou menor
proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica dos indiviacuteduos A rigor a produccedilatildeo de um
alimento ou medicamento por meio de procedimentos complexos e sofisticados
mas cujo consumo eacute quase imediato (para Arendt ldquoproduto do trabalhordquo)
certamente expressa niacuteveis mais elevados de humanizaccedilatildeo do que a produccedilatildeo de
uma tosca mesa de madeira que perdura seacuteculos passando de geraccedilatildeo a
geraccedilatildeo (Marx 1985 ldquoproduto da fabricaccedilatildeordquo)
16
Essas observaccedilotildees acerca da relaccedilatildeo entre as atividades produtivas e a
durabilidade de suas produccedilotildees natildeo significa em hipoacutetese alguma que a
durabilidade ou natildeo de um produto seja irrelevante para os indiviacuteduos e a
sociedade em geral ateacute mesmo porque os produtos satildeo elementos constitutivos e
condicionantes de certas caracteriacutesticas dos processos de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo
das formaccedilotildees sociais Significa apenas que per se ela natildeo eacute relevante para
mensurar o niacutevel de humanizaccedilatildeo da atividade e das qualificaccedilotildees subjetivas nela
envolvidas Assim nas sociedades capitalistas por exemplo saber se um
determinado objeto constitui parte do maquinaacuterio ou da edificaccedilatildeo (capital fixo) ou
entatildeo se eacute apenas insumo mateacuteria-prima ou meio de subsistecircncia (capital
circulante) eacute significativo prioritariamente em razatildeo de que as proporccedilotildees de seus
respectivos usos e o seu periacuteodo de rotaccedilatildeo afetam de maneira decisiva as taxas
de lucro do capital investido Aleacutem do mais ldquoo fato de um valor de uso aparecer
como mateacuteria-prima meio de trabalho ou produto depende totalmente de sua
funccedilatildeo determinada no processo de trabalho da posiccedilatildeo que nele ocupa e com a
mudanccedila dessa posiccedilatildeo variam essas determinaccedilotildeesrdquo (Marx 1985 p 152)
Quase desnecessaacuterio dizer que tal posiccedilatildeo tambeacutem varia de acordo com o niacutevel
de desenvolvimento das forccedilas produtivas e das relaccedilotildees sociais que constituem a
sociedade em questatildeo Em siacutentese se natildeo podemos definir um objeto como
sendo o resultado de uma atividade inferior ou superior na hierarquia das
atividades humanas (da vita activa arendtiana) devido agrave sua durabilidade[17] ou agrave
sua proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica (agrave manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo do corpo)
qualquer tentativa de mensuraccedilatildeo sob este prisma nos parece completamente
arbitraacuteria inclusive eacute claro a que se funda na distinccedilatildeo arendtiana entre trabalho
e fabricaccedilatildeo
Enfatizar estas caracteriacutesticas do trabalho tambeacutem eacute importante porque
contrariamente agraves qualificaccedilotildees inerentes a ele e agrave fabricaccedilatildeo que de acordo com
Arendt estatildeo diretamente relacionadas agraves qualidades do Animal laborans e do
Homo faber no pensamento marxiano inexiste qualquer menccedilatildeo a uma essecircncia
a-histoacuterica do trabalho isto eacute uma essecircncia que agrave revelia da forma societaacuteria em
17
que a atividade se realiza imprime agrave subjetividade daquele que o executa
inelutaacuteveis qualificaccedilotildees Muito ao contraacuterio As anaacutelises marxianas satildeo
profundamente ancoradas na historicidade dos fenocircmenos naturais e sociais
negando qualquer essencialismo em relaccedilatildeo ao trabalho ou a qualquer outra
atividade bem como ao indiviacuteduo ou grupo de indiviacuteduos que o executa Para
Marx ldquoa essecircncia humana natildeo eacute uma abstraccedilatildeo inerente ao indiviacuteduo singular
Em sua realidade eacute o conjunto das relaccedilotildees sociaisrdquo (Marx 1987 p 13) Por
conseguinte em aberta oposiccedilatildeo agraves proposiccedilotildees arendtianas afirmamos que o
produtivismo natildeo constitui uma caracteriacutestica inerente ao trabalho ndash que com a
ascensatildeo deste agrave esfera puacuteblica teria transbordado as fronteiras da vida privada e
se generalizado socialmente ndash mas sim uma caracteriacutestica que possui suas raiacutezes
nas formas de sociabilidade vigentes no mundo contemporacircneo sejam estas
formas capitalistas ou poacutes-capitalistas[18] Dito de outro modo se o trabalho
assalariado alienado constitui cada vez mais a forma predominante da atividade
produtiva e reprodutiva dos indiviacuteduos nestas sociedades tal desventura natildeo
decorre de uma essecircncia que seja inerente a ele tanto quanto agraves formas preteacuteritas
de trabalho e que tenha se desvencilhado na atualidade das amarras que
limitavam sua expansatildeo A raiz deste fenocircmeno reside no fato de o capital
constituir a relaccedilatildeo social baacutesica das sociedades assinaladas generalizando
aquela forma de trabalho E a propoacutesito do essencialismo produtivista do trabalho
em vaacuterias passagens de sua obra Marx nos mostrou as diferenccedilas existentes
entre as sociedades antigas e as modernas sociedades capitalistas Numa dessas
passagens ele lembra que
Entre os antigos natildeo encontramos uma uacutenica investigaccedilatildeo a propoacutesito de qual a
forma de propriedade etc que seria a mais produtiva que geraria o maacuteximo de
riqueza A riqueza natildeo constituiacutea o objetivo da produccedilatildeo A pesquisa sempre
era sobre qual o tipo de propriedade que geraria os melhores cidadatildeos (Marx
1975 p 80 grifos nossos)
Mesmo em seu acircmbito estritamente privado a propriedade natildeo estava
relacionada prioritariamente aos interesses egoiacutestas do indiviacuteduo mas eram os 18
interesses deste ndash e portanto o uso que fazia daquela ndash que estavam
circunscritos e condicionados pelos interesses da comunidade da qual fazia parte
por mais restrita que esta fosse em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo total Desse modo nestas
formaccedilotildees sociais as atividades produtivas natildeo eram movidas por uma ldquoinerenterdquo
racionalidade produtivista uma racionalidade cujo suposto transbordamento das
fronteiras privadas e o estabelecimento do domiacutenio sobre as outras atividades
caracterizariam ndash segundo Arendt ndash o mundo moderno Em relaccedilatildeo a este sua
principal caracteriacutestica consiste na centralidade na generalizaccedilatildeo e no crescente
predomiacutenio do capital no conjunto das relaccedilotildees sociais Enfim eacute justamente esta
centralidade do capital e suas consequumlecircncias que produz o assalariamento
generalizado dos indiviacuteduos e a subsunccedilatildeo da reproduccedilatildeo socioeconocircmica como
um todo agrave loacutegica produtivista
Numa pequena digressatildeo visando apenas a estreitar as margens de accedilatildeo
das leituras vulgares do marxismo eacute necessaacuterio ressaltar que esta afirmaccedilatildeo da
centralidade do capital nas relaccedilotildees sociais contemporacircneas e do espraiamento
de sua influecircncia pela totalidade social natildeo implica reducionismo econocircmico Na
verdade ela significa apenas a explicitaccedilatildeo de caracteriacutesticas inerentes ao capital
cuja tendecircncia a subsumir a multiplicidade de dimensotildees da vida humana agrave sua
loacutegica acumulatoacuteria expansionista eacute um fato incontestaacutevel ontologicamente
enraizado e racionalmente apreensiacutevel e natildeo um grave equiacutevoco teoacuterico de um
pensamento incapaz de atentar para a complexidade do real Eacute nesse sentido que
comentando a famosa proposiccedilatildeo de Marx segundo a qual ldquoNatildeo eacute a consciecircncia
dos homens que determina o seu ser mas ao contraacuterio eacute o seu ser social que
determina sua consciecircnciardquo[19] (Marx 1982 p 25) Lukaacutecs afirma ldquonesse trecho o
mundo das formas de consciecircncia e seus conteuacutedos natildeo eacute visto como um produto
direto da estrutura econocircmica mas da totalidade do ser social A determinaccedilatildeo da
consciecircncia pelo ser social portanto eacute entendida em seu sentido mais geralrdquo
(Lukaacutecs 1979 p 41) ndash e natildeo como expressatildeo direta mecacircnica e restrita dos
processos econocircmicos
19
Neste toacutepico ateacute o momento detivemo-nos nas distintas concepccedilotildees
acerca do trabalho presentes em Arendt e Marx O caso poreacutem eacute que apesar de
significativas tais concepccedilotildees natildeo circunscrevem sua influecircncia agraves fronteiras
econocircmicas mas extravasam a economia e deitam raiacutezes na totalidade de suas
reflexotildees sobre a vida humana Assim se Arendt tem razatildeo em afirmar que para
Marx o trabalho ndash e a fabricaccedilatildeo apesar da irrelevacircncia desta distinccedilatildeo (trabalho x
fabricaccedilatildeo) no quadro conceitual marxiano ndash eacute tratado como uma atividade
teleoloacutegica cujas relaccedilotildees que estabelece com as outras atividades constitutivas
da vida humana satildeo fundamentais para delinear as caracteriacutesticas da totalidade
social nada justifica sua transposiccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos do trabalho
(concreto) para a concepccedilatildeo de histoacuteria marxiana No entanto eacute justamente isto
que ela faz ao afirmar que em Marx a histoacuteria eacute entendida como um processo
similar ao da fabricaccedilatildeo do artesanato um processo que contemporaneamente
exige a intervenccedilatildeo consciente de um sujeito demiuacutergico ndash o proletariado ndash para
plasmar a nova forma societaacuteria tal como o artesatildeo faz com sua mateacuteria-prima E
igualmente ao afirmar que do mesmo modo que a materializaccedilatildeo do objeto preacute-
ideado expressa o fim do processo gerido pelo artesatildeo a realizaccedilatildeo da sociedade
ldquopreacute-ideadardquo pelo proletariado significaria o fim da histoacuteria
Ora uma das questotildees mais complexas do pensamento social fruto de
inuacutemeras polecircmicas teorias e tratados ao longo dos uacuteltimos seacuteculos ndash
especialmente apoacutes o advento da sociologia ndash eacute a articulaccedilatildeo das accedilotildees
individuais e a reproduccedilatildeo da totalidade social E mesmo certos da impossibilidade
de adentrar no emaranhado de questotildees suscitado pelo tema natildeo podemos omitir
a informaccedilatildeo de que uma leitura criteriosa dos textos marxianos demonstra sem
grande dificuldade a improcedecircncia das criacuteticas de Hannah Arendt De modo
algum condiz com o ldquoespiacuteritordquo da obra marxiana a identificaccedilatildeo da reproduccedilatildeo
social como um todo e nem dos processos de transiccedilatildeo de uma forma societaacuteria a
outra ao modus operandi do trabalho O que natildeo significa por sua vez que a
instabilidade econocircmica e social natildeo fosse objeto de suas preocupaccedilotildees A bem
da verdade sendo o primeiro a entender a centralidade do trabalho e suas
20
consequumlecircncias na produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana Marx se assenhoreou
desde os Manuscritos de 1844 de conhecimentos suficientemente significativos
para criticar em relaccedilatildeo agravequele aspecto inicialmente citado das relaccedilotildees entre
indiviacuteduo e sociedade tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo Assim em
vez da naturalizaccedilatildeo da histoacuteria humana ou da arbitrariedade da vontade e da
razatildeo em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmaccedilatildeo dos
seres humanos como autoprodutores de sua proacutepria histoacuteria e simultaneamente
uma criacutetica agrave hipostasia das potencialidades da razatildeo e das forccedilas humanas nesta
autoproduccedilatildeo Invariavelmente suas anaacutelises reiteram que ldquoOs homens fazem
sua proacutepria histoacuteria mas natildeo a fazem como querem natildeo a fazem sob
circunstacircncias de sua proacutepria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam
diretamente legadas e transmitidas pelo passadordquo (Marx 1986 p 17 grifos
nossos) Nos dias atuais natildeo eacute difiacutecil perceber como por si soacute esta frase nos
mostra quatildeo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e
da realpolitik que cada qual ao seu modo como faces de uma mesma moeda
dominam os discursos poliacuteticos e econocircmicos em voga
Ainda no que diz respeito agrave questatildeo do sujeito demiuacutergico e do finalismo
histoacuterico eacute necessaacuterio que se entenda que mesmo em sua fastidiosa reproduccedilatildeo
cotidiana o trabalho eacute sempre um ato de criaccedilatildeo criaccedilatildeo natildeo apenas de coisas
novas de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma
humanamente apropriada mas criaccedilatildeo da proacutepria subjetividade humana que se
renova a partir das experiecircncias possibilitadas pelos meios e resultados de sua
produccedilatildeo e pelas relaccedilotildees sociais que os envolvem Tendo em mente esta
dinacircmica intriacutenseca agrave atividade vital dos seres humanos e ao mesmo tempo o
caraacuteter que para Marx a totalidade do real[20] assume como concreto pensado
(Marx 1982 p 15) nem a mais poderosa das inteligecircncias humanas tampouco o
concurso delas sob a forma do coletivo partidaacuterio pode em termos conceituais
apreender subsumir absolutamente o real ao pensamento ndash e muito menos
sujeitar as proacuteprias relaccedilotildees sociais a um controle assemelhado ao das teacutecnicas
produtivas
21
Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final
entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja
rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz
consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de
Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo
sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele
ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von
Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia
hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas
sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais
geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de
onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta
observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica
especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente
pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto
natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o
proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela
histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e
seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o
conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade
histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens
em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo
possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas
Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo
de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos
individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica
intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos
altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que
nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que
22
em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a
divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente
a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de
todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada
espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das
diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como
reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori
e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do
trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural
interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado
subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo
social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo
reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo
exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo
que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as
condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)
Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais
de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente
as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de
posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo
(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa
O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias
normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de
finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem
realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute
inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)
Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante
entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de
indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de
eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a
23
casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece
porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da
ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas
significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias
sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca
controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias
objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que
encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano
Em sua Ontologia do ser social ele afirma
Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada
vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as
decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da
totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse
conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa
relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso
porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o
movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da
histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas
etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local
tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que
tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de
transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que
satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do
que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e
consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso
aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)
Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos
individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha
ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias
mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade
oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem
econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo
24
social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve
ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que
historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os
processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem
uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle
destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou
A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a
anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo
incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do
trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer
controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma
infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo
autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais
entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda
organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a
sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)
Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus
ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os
limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de
intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal
qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos
uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana
(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do
pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os
limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir
para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta
ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo
No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras
experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao
nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25
pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas
relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi
drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente
desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses
capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de
regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo
resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica
reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas
experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da
humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua
loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a
accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com
seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social
passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees
marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de
regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos
moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a
consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria
redenccedilatildeo universal
O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos
ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as
acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels
salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido
um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o
movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)
O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se
realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico
do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana
de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo
comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o
26
comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a
forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo
nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao
desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma
sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o
comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no
fim da histoacuteria[22]
Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento
marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute
capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e
desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo
ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso
numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]
mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou
natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana
Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees
que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim
contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das
caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da
limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os
homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara
manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal
Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos
extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a
violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo
Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do
capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre
a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os
revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila
27
material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a
utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de
recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o
revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico
Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder
material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria
se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz
de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e
argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar
o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p
497)
Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos
(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o
discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista
muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)
que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no
encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as
sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece
ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um
discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos
constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das
individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades
eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano
mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em
campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar
plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de
sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar
sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio
colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel
convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e
28
culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem
respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes
subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]
Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)
de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio
das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto
natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive
atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie
No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias
naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o
crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda
escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-
sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo
contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da
incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees
materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos
afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus
processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos
inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos
da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades
humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute
o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses
trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)
Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas
produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa
penetrante passagem sobre o tema lemos
O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto
dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de
29
desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse
nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos
demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua
vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado
naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo
determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas
relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu
proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx
1973 pp 89-90)
Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos
sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a
centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos
aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza
e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham
vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a
intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o
equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente
econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida
social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da
permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas
relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito
da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas
universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada
das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os
homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria
mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das
forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo
adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos
homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia
O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se
compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30
neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo
do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo
pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso
histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive
violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste
(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso
resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na
sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os
antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por
ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses
das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos
Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica
natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades
reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a
estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico
Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da
cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios
juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da
sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela
que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de
duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que
complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo
concreto
O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em
oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem
de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade
desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem
leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da
realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na
comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na
31
sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como
meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes
estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser
profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real
eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem
eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma
soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de
uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)
Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e
imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos
privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma
revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res
publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja
eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da
proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a
violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica
consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a
accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a
vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma
alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento
Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a
essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o
proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua
violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre
dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo
de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a
perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a
violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt
segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser
a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente
32
pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o
antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as
relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de
supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano
Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder
dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se
faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de
violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o
poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa
revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades
viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento
humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo
profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma
resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como
desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo
Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado
como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos
do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute
poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de
propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)
Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de
dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao
contraacuterio
Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como
classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como
classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as
condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em
geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)
33
Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx
1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo
poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer
forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas
formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar
em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis
Quanto a isso eacute importante relembrar que
O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos
limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute
capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade
Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais
ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e
espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a
fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)
Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-
violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo
violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-
socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo
(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-
humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo
humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a
rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios
quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de
coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras
A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um
anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo
(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim
negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se
natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para
natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a
34
contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo
(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-
humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-
violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que
assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)
Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx
caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu
proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios
empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo
entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez
de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do
humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-
capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo
dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os
torna incompatiacuteveis[27]
IV Agrave guisa de conclusatildeo
Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de
Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda
distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de
Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do
pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas
que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio
da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente
sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir
de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns
aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram
envolvidos pela leitura arendtiana
35
Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem
ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem
duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho
Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e
estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do
solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo
neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade
com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se
reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos
intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro
porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento
marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual
formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco
em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e
Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para
o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e
revolucionaacuterios
Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo
XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho
caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos
revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso
imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob
muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes
natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca
demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo
sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas
proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os
argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro
sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas
ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma
36
verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto
que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute
cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido
V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio
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______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002
Notas
38
Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo
Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo
teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a
estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o
ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque
somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a
abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos
que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e
isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a
accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num
constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas
produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou
menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de
consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados
a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo
antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em
termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e
inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho
como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt
1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels
segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte
daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos
homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e
39
osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida
real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos
desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo
corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade
efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa
produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma
aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio
Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para
produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas
necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a
Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de
qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas
formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na
constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso
ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro
Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se
distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo
reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele
duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo
(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute
afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels
1986 p 19)
40
[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade
esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas
daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades
capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas
carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e
propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que
determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a
p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que
sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram
transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em
grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos
paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital
Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo
crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos
estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem
consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo
social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas
conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento
marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo
implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de
estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo
significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo
dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma
luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude
do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de
uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o
41
entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada
dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas
caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos
do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no
fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje
muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o
sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e
saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente
a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente
severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de
personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de
objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de
produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e
personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar
condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua
perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento
universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social
como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p
85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que
apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo
aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do
esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e
complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em
relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios
revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA
transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em
42
43
massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
-
los a fins natildeo-naturais torna-se tambeacutem necessaacuteria e valorizada nesta atividade
(uma espeacutecie de accedilatildeo corrompida) que toma a fabricaccedilatildeo por modelo
II Poliacutetica e violecircncia
Ao considerar a violecircncia detentora um papel decisivo na fabricaccedilatildeo e por
meio dela na accedilatildeo especialmente na transiccedilatildeo de uma formaccedilatildeo social a outra
Arendt considera a poliacutetica no mundo moderno agraves voltas com um problema
fundamental toma por caracteriacutestica da accedilatildeo aquilo que na verdade constitui
caracteriacutestica da fabricaccedilatildeo E eacute justamente no cerne dessa confusatildeo conceitual
que segundo ela o pensamento de Marx se encontra ndash mais constitui um caso
exemplar Sendo assim deixemos que nesse aspecto decisivo Arendt fale por si
mesma
A afirmaccedilatildeo de Marx de que a ldquoviolecircncia eacute a parteira de toda velha sociedade
prenhe de uma sociedade novardquo ou seja de toda mudanccedila histoacuterica ou poliacutetica
somente sintetiza a convicccedilatildeo dominante em toda a era moderna e deduz as
consequumlecircncias de sua crenccedila mais iacutentima de que a histoacuteria eacute ldquofeitardquo pelo homem
do mesmo modo que a natureza eacute ldquofeitardquo por Deus
Como tem sido persistente e bem sucedida a transformaccedilatildeo da accedilatildeo em
modalidade da fabricaccedilatildeo eacute facilmente atestada por toda terminologia da teoria e
do pensamento poliacutetico a qual torna quase impossiacutevel discutir esses assuntos sem
que se utilize a categoria de meios e fins e se raciocine em termos de
instrumentalidade (Arendt 1998 pp 228-9)
Num artigo de 1953 intitulado ldquoReligiatildeo e poliacuteticardquo logo apoacutes apoiar-se em
Karl Mannheim para ressaltar a dimensatildeo ideoloacutegica do marxismo e desqualificar
a abordagem acerca da relaccedilatildeo entre ser e consciecircncia por este preconizada[9]
Arendt diz
9
A relutacircncia de Marx em levar a seacuterio ldquoo que cada eacutepoca diz sobre si e imagina
serrdquo derivava de sua convicccedilatildeo de que a accedilatildeo poliacutetica era basicamente violecircncia e
que a violecircncia era a parteira da histoacuteria Tal convicccedilatildeo natildeo se devia agrave ferocidade
gratuita de um temperamento revolucionaacuterio mas tem seu lugar na filosofia da
histoacuteria de Marx que sustenta que a histoacuteria representada pelos homens na
modalidade da falsa consciecircncia isto eacute na modalidade das ideologias pode ser
feita pelos homens tendo eles plena consciecircncia do que estatildeo fazendo Eacute
justamente esse lado humanista dos ensinamentos de Marx que o levou a insistir
no caraacuteter violento da accedilatildeo poliacutetica ele via o fazer da histoacuteria em termos de
fabricaccedilatildeo o homem histoacuterico era para ele basicamente Homo faber A fabricaccedilatildeo
de todas as coisas feitas pelo homem implica necessariamente alguma violecircncia
que incidiraacute sobre a coisa que se torna a mateacuteria baacutesica do que foi fabricado
(Arendt 2002 pp 62-3)
Marx assim teria compreendido a histoacuteria como resultado do ldquofazerrdquo
humano como resultado de atos teleoloacutegicos que nos moldes da atividade
artesanal ndash da fabricaccedilatildeo ndash fazem do ldquoHomemrdquo ndash e natildeo dos homens ndash o artesatildeo
consciente de sua histoacuteria (cf Canovan 1998) Eacute como se Marx tivesse
transformado o processo histoacuterico resultante de muacuteltiplas interaccedilotildees dos seres
humanos entre si (e simultaneamente destes com a natureza) num processo
instrumental Ou dito de outro modo eacute como se tal qual um Hegel materialista
ele concebesse a proacutepria sociedade como um ser demiuacutergico dotado de
capacidades e formas de atuaccedilatildeo semelhantes agravequelas do indiviacuteduo singular que
substituiacutesse o Espiacuterito e o seu processo de sua autoconscientizaccedilatildeo pelos
proacuteprios homens ndash ou pelo ldquoHomemrdquo ndash e seus atos de ldquofazer a histoacuteriardquo de
ldquofabricarrdquo a sociedade ideal (comunista) Neste caso a consciecircncia de classe
cumpriria o mesmo papel que a hegeliana ldquoastuacutecia da Razatildeordquo De qualquer modo
em ambos os casos natildeo satildeo exatamente os homens em sua multiplicidade de
experiecircncias e expectativas que agem em parte de maneira coordenada e
consciente e em parte conflitiva e inconscientemente mas ao contraacuterio eacute o
ldquoHomemrdquo a humanidade unificada que age de maneira coordenada consciente e
controlada como se fosse o ldquoartesatildeo do mundordquo
10
A visatildeo marxista da atividade revolucionaacuteria seria entatildeo o resultado da
imputaccedilatildeo inconsciente de qualidades da fabricaccedilatildeo agrave accedilatildeo a qual por meio da
violecircncia[10] e orientada pelos mesmos criteacuterios de meios e fins que regem a
fabricaccedilatildeo faria os homens efetuarem o parto da nova sociedade cujo rebento
encontra-se emaranhado nas iacutentimas contradiccedilotildees da velha formaccedilatildeo social Seria
justamente esta exaltaccedilatildeo da violecircncia da ldquouacuteltima ratiordquo tiacutepica das relaccedilotildees entre
os baacuterbaros e caracteriacutestica da condiccedilatildeo do escravo[11] a demonstraccedilatildeo de que
em Marx predomina uma ldquohostilidade antitradicional ao discursordquo agrave busca do
consenso agrave poliacutetica (Arendt 1972 p 50)
Nesse contexto o pensamento poliacutetico de Marx representa segundo Arendt
o fim de uma trajetoacuteria do pensamento poliacutetico tradicional iniciada pelas filosofias
de Platatildeo e Aristoacuteteles Pois com esses pensadores a filosofia teria num duplo
salto se distanciado dos assuntos humanos onde reina a confusatildeo e a ilusatildeo
para retornar a eles ilustrada pela razatildeo isto eacute ldquopara [esta a razatildeo] impor seus
padrotildees aos assuntos humanosrdquo (Arendt 1972 p 44) fato altamente positivo que
teria demarcado o iniacutecio de uma fecunda relaccedilatildeo entre a filosofia e os assuntos
humanos entre ela e a poliacutetica Enquanto com Marx desgraccediladamente teria
acontecido o oposto visto que ele ldquorepudiou a Filosofia para poder lsquorealizaacute-larsquo na
poliacuteticardquo (Arendt 1972 p 44) Para ele em vez de a filosofia permanecer uma
espeacutecie de reflexatildeo sistemaacutetica e criacutetica constituiacuteda de certo modo apartada do
processo histoacuterico ela passou a emanar da proacutepria histoacuteria ldquoou antes a
consciecircncia poliacutetica [deriva] da consciecircncia histoacutericardquo (Arendt 1972 p 114) E
ainda segundo Arendt um dos fundamentos desta concepccedilatildeo reside na
identificaccedilatildeo estabelecida no mundo moderno entre sentido e fim Por meio dela
o sentido como termo que expressa o significado de um acontecimento ndash portanto
resultante de uma explicaccedilatildeo post factum ndash foi transformado em fim de
significado de acontecimentos passados passou a preacute-idear situaccedilotildees futuras
Com isso as accedilotildees individuais e instrumentais (realizadas com a finalidade de)
que explicam o processo de trabalho e seus resultados passaram a servir de
modelo para a explicaccedilatildeo do porquecirc de o indiviacuteduo (eou a sociedade) ser o que eacute
11
e portanto executar esta atividade (eou possuir tais caracteriacutesticas) ndash ie como
se o presente fosse a manifestaccedilatildeo ldquoaqui e agorardquo da necessidade imanente de
atos passados Enfim ao considerar as sociedades modernas degradadoras do
sentido em fim Arendt avalia que o marxismo parte integrante desta modernidade
levou esta degradaccedilatildeo agraves uacuteltimas consequumlecircncias e assim transformou a histoacuteria
em teleologia
Pois bem se ainda segundo Arendt a teoria da histoacuteria como fabricaccedilatildeo
natildeo eacute exclusiva do pensamento marxista mas constitui uma caracteriacutestica do
pensamento poliacutetico moderno aquele se distingue
de todas as demais teorias em que a noccedilatildeo de ldquofazer a histoacuteriardquo encontrou abrigo
somente [pelo] fato de apenas ele ter percebido que se se toma a histoacuteria como o
objeto de um processo de fabricaccedilatildeo ou elaboraccedilatildeo deve sobrevir um momento
em que esse objeto eacute completado e que desde que se imagina ser possiacutevel fazer
a histoacuteria natildeo se pode escapar agrave consequumlecircncia de que haveraacute um fim para a
histoacuteria (Arendt 1972 p 114)
Para que entatildeo os marxistas respondem aos apocaliacutepticos que
advogam o fim das ideologias e da histoacuteria se com um golpe de matildeo o proacuteprio
Marx eliminou a ambas Nesta visatildeo tal como o objeto que inicialmente preacute-
ideado na cabeccedila do artesatildeo completa seu ciclo de produccedilatildeo torna-se objetivo
finda a histoacuteria chegaria ao seu fim com a realizaccedilatildeo da filosofia pelo proletariado
ndash nos invertidos termos hegelianos seria este o momento da autoconscientizaccedilatildeo
do Espiacuterito da plena identificaccedilatildeo entre conceito e objeto entre pensamento e
realidade ndash fato que demarcaria o controle da vida humana nos mesmos moldes
em que o artesatildeo domina a mateacuteria a ser plasmada e lhe fornece uma forma final
Mas se Marx eacute tratado como uma espeacutecie de Hegel materialista eacute certo que
as ideacuteias de ambos natildeo satildeo idecircnticas Tanto que em oposiccedilatildeo agrave sua
predecessora hegeliana a coruja de Minerva marxiana natildeo alccedila vocirco somente ao
crepuacutesculo ela capta conceitualmente as condiccedilotildees em que este pode ocorrer e
12
assim auxilia na sua realizaccedilatildeo Outrossim mais importante do que saber se esta
caracteriacutestica do pensamento de Marx eacute adequadamente entendida por Arendt eacute
saber que para ela esta caracteriacutestica expressa um determinismo que torna
supeacuterflua qualquer discussatildeo sobre as finalidades e o conteuacutedo dos processos
sociais dado que a histoacuteria fabricada modelada como se fosse um objeto pelo
proletariado demiuacutergico torna a palavra o discurso um mero instrumento de
justificaccedilatildeo ideoloacutegica de ideacuteias preconcebidas a serem materializadas Foi
partindo desses pressupostos que Arendt pocircde afirmar
O que era entatildeo inexplicaacutevel na histoacuteria [a saber os muacuteltiplos interesses
conflitantes que tornam a accedilatildeo poliacutetica ineficaz no alcance de seus objetivos e a
existecircncia de um sentido no processo histoacuterico] passa agora a ser visto como o
reflexo de um significado que seguramente era tanto um produto humano quanto o
desenvolvimento teacutecnico do mundo O problema de humanizar os assuntos
poliacutetico-histoacutericos resumia-se consequumlentemente em descobrir como dominar
nossas proacuteprias accedilotildees assim como dominamos nossa capacidade produtiva ou
em outras palavras como ldquofazerrdquo histoacuteria assim como fazemos outras coisas Uma
vez que isso seja alcanccedilado com a vitoacuteria do proletariado natildeo precisaremos mais
de ideologias Mas ateacute laacute todas as accedilotildees poliacuteticas preceitos legais e
pensamentos espirituais continuaratildeo escondendo os motivos inconfessos de uma
sociedade que somente finge agir politicamente mas que na verdade ldquofaz
histoacuteriardquo ainda que de uma maneira inconsciente isto eacute natildeo-humana (Arendt
2002 p 63)
Natildeo constituindo a esfera do pleno exerciacutecio do debate de ideacuteias entre
indiviacuteduos livres e iguais ndash indiviacuteduos que por meio do uso intenso da palavra do
discurso do muacutetuo esclarecimento estabelecem consensos mais ou menos gerais
sobre os fundamentos e as finalidades da accedilatildeo ndash a poliacutetica atual constitui um
simulacro da poliacutetica autecircntica Tal como a entende Arendt esta constitui uma
esfera (puacuteblica) que antes de qualquer outra coisa deve estar apartada da
violecircncia na medida em que esta nega a palavra o discurso o debate e portanto
a accedilatildeo Definindo assim o que satildeo meios e fins o que eacute essencial e o que eacute
imposiccedilatildeo extriacutenseca agrave poliacutetica Arendt reitera que ldquoo poder eacute de fato a essecircncia
13
de todo governo mas natildeo a violecircnciardquo (Arendt 1994 p 40) Por conseguinte
sendo de natureza instrumental a violecircncia ldquocomo todos os meios sempre
depende da orientaccedilatildeo e da justificaccedilatildeo pelo fim que almeja E aquilo que
necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser a essecircncia de nadardquo (Arendt
1994 p 41) O poder encontra sua legitimidade no passado a violecircncia se
justifica pelas consequumlecircncias futuras aquele pela sua constituiccedilatildeo esta pelos
seus objetivos Em razatildeo disso ldquoa violecircncia pode ser justificaacutevel mas nunca seraacute
legiacutetimardquo (Arendt 1994 p 41) Enfim ao vincularem a violecircncia ao poder as
concepccedilotildees poliacuteticas hegemocircnicas dentre elas o marxismo demonstram a
incompreensatildeo de que aqueles satildeo na verdade opostos ldquoonde um domina
absolutamente o outro estaacute ausenterdquo (Arendt 1994 p 44)
Para natildeo cindir a argumentaccedilatildeo criacutetica e com isso tornaacute-la
demasiadamente prolixa retornaremos mais adiante a estas afirmaccedilotildees de
Hannah Arendt sobre poliacutetica e violecircncia Por ora apoacutes termos descrito algumas
categorias centrais do pensamento arendtiano e em especiacutefico os fundamentos
de sua criacutetica agrave relaccedilatildeo entre poliacutetica e violecircncia em Marx passemos na mesma
sequumlecircncia de ideacuteias desenvolvida ateacute aqui ao confronto dessas reflexotildees com
aquelas que a nosso ver correspondem adequadamente tanto ao corpo quanto
ao espiacuterito da obra marxiana
III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
Consideramos desnecessaacuterio demonstrar ad nauseam como a concepccedilatildeo
de trabalho em Marx difere substancialmente daquelas atividades que Arendt
denomina pelos vocaacutebulos trabalho e fabricaccedilatildeo pois para o nosso objetivo
basta que o realizemos apenas em suas linhas gerais Assim em primeiro lugar eacute
necessaacuterio relembrar que ao contraacuterio da concepccedilatildeo arendtiana na obra de Marx
o trabalho natildeo consiste numa atividade que nos vincularia mais ao mundo dos
animais do que ao dos seres humanos propriamente ditos Para ele muito distante
14
de qualquer ilusatildeo acerca de uma vida sem trabalho[12] esta atividade constitui um
momento efetivamente fundante e fundamental da vida humana sem a qual aiacute
sim natildeo nos distinguiriacuteamos em absolutamente nada dos proacuteprios animais[13] Em
termos precisos podemos dizer que o animal natildeo se relaciona com a natureza
ele apenas vive nela eacute sua parte integrante[14] natildeo se distinguindo dela como um
ser consciente o animal eacute portanto incapaz de estabelecer uma mediaccedilatildeo
regulada conscientemente controlada com a natureza (Marx 1985 p 149)
apenas respondendo com maior ou menor labilidade agraves determinaccedilotildees e agraves
constantes mudanccedilas de seu haacutebitat O ser humano por sua vez age de maneira
preacute-ideada em sua atividade metaboacutelica pois em todos os momentos do processo
de trabalho lhe ldquoeacute exigida a vontade orientada a um fimrdquo (Marx 1985 p 150)
Assim o sujeito que trabalha ldquonatildeo apenas efetua uma transformaccedilatildeo da forma da
mateacuteria natural realiza ao mesmo tempo na mateacuteria natural seu objetivo que ele
sabe que determina como lei a espeacutecie e o modo de sua atividade e ao qual tem
de subordinar sua vontaderdquo (Marx 1985 p 150) Natildeo sendo portanto a mera
expressatildeo de determinaccedilotildees ou epifenocircmenos bioloacutegicos o trabalho eacute uma
atividade na qual inevitavelmente entrelaccedilam-se o pensar e o fazer a
consciecircncia e a accedilatildeo com aquela orientando esta para transformar a mateacuteria com
vistas a dar-lhe uma forma adequada agrave satisfaccedilatildeo de alguma necessidade
humana A ideacuteia mediada pelo trabalho cristaliza-se no objeto objeto que longe
de ser meramente natural eacute a manifestaccedilatildeo material da subjetividade humana
posto que soacute existe em razatildeo desta Tanto que no final temos que ldquoo trabalho
estaacute objetivado e o objeto trabalhadordquo (Marx 1985 p 151) num mesmo ato a
subjetividade exteriorizou-se e a materialidade tornou-se subjetiva[15] E eacute claro
como esta objetivaccedilatildeo eacute resultado de accedilotildees conscientes o metabolismo dos
homens em relaccedilatildeo agrave natureza eacute muito mais dinacircmico mutante do que aquele
efetuado pelos animais resultando em formas materiais e sociais
permanentemente alteradas ocorrendo a mesma coisa com a proacutepria
subjetividade humana
15
Sendo uma atividade humanamente produtiva o trabalho natildeo eacute apenas a
relaccedilatildeo do homem com a natureza eacute tambeacutem uma relaccedilatildeo que ocorre entre os
proacuteprios homens ndash e verdadeiramente como trabalho soacute existe a partir desta
relaccedilatildeo Ainda em sua juventude num texto seminal para a elaboraccedilatildeo de suas
reflexotildees posteriores Marx nos diz que o homem ldquosoacute eacute um ser consciente quer
dizer a sua vida constitui para ele um objeto porque eacute um ser geneacuterico
Unicamente por isso eacute que sua atividade surge como atividade livrerdquo (Marx 1985
p 165) Se natildeo fosse um ser social geneacuterico produto e produtor de si e do
gecircnero o ser humano natildeo possuiria as faculdades (consciecircncia linguagem) sem
as quais paradoxalmente o proacuteprio trabalho natildeo existiria E que simultaneamente
como dissemos permitem o aprimoramento e a expansatildeo das fronteiras da vida
humana (individual e coletiva) para muito aleacutem daquelas a que estatildeo restritos os
seres vivos naturais[16]
Nesse caso parece-nos oacutebvio que eacute completamente irrelevante saber se
uma atividade produtiva resulta em produtos mais ou menos duraacuteveis ndash por
exemplo em alimentos ou objetos do mobiliaacuterio ndash para classificaacute-la como estando
mais proacutexima ou mais distante da vida propriamente humana Seja numa
sociedade especiacutefica ou ao longo da histoacuteria humana um produto pode durar mais
ou menos tempo devido a um sem-nuacutemero de fatores tais como os materiais e a
tecnologia empregados as relaccedilotildees sociais sob as quais foi produzido as classes
eou grupos sociais que o utilizaratildeo ndash definindo por exemplo a velocidade e o
perfil de sua obsolescecircncia ou seja se esta eacute real materialmente efetiva ou
socialmente condicionada ndash entre outros e natildeo apenas devido agrave maior ou menor
proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica dos indiviacuteduos A rigor a produccedilatildeo de um
alimento ou medicamento por meio de procedimentos complexos e sofisticados
mas cujo consumo eacute quase imediato (para Arendt ldquoproduto do trabalhordquo)
certamente expressa niacuteveis mais elevados de humanizaccedilatildeo do que a produccedilatildeo de
uma tosca mesa de madeira que perdura seacuteculos passando de geraccedilatildeo a
geraccedilatildeo (Marx 1985 ldquoproduto da fabricaccedilatildeordquo)
16
Essas observaccedilotildees acerca da relaccedilatildeo entre as atividades produtivas e a
durabilidade de suas produccedilotildees natildeo significa em hipoacutetese alguma que a
durabilidade ou natildeo de um produto seja irrelevante para os indiviacuteduos e a
sociedade em geral ateacute mesmo porque os produtos satildeo elementos constitutivos e
condicionantes de certas caracteriacutesticas dos processos de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo
das formaccedilotildees sociais Significa apenas que per se ela natildeo eacute relevante para
mensurar o niacutevel de humanizaccedilatildeo da atividade e das qualificaccedilotildees subjetivas nela
envolvidas Assim nas sociedades capitalistas por exemplo saber se um
determinado objeto constitui parte do maquinaacuterio ou da edificaccedilatildeo (capital fixo) ou
entatildeo se eacute apenas insumo mateacuteria-prima ou meio de subsistecircncia (capital
circulante) eacute significativo prioritariamente em razatildeo de que as proporccedilotildees de seus
respectivos usos e o seu periacuteodo de rotaccedilatildeo afetam de maneira decisiva as taxas
de lucro do capital investido Aleacutem do mais ldquoo fato de um valor de uso aparecer
como mateacuteria-prima meio de trabalho ou produto depende totalmente de sua
funccedilatildeo determinada no processo de trabalho da posiccedilatildeo que nele ocupa e com a
mudanccedila dessa posiccedilatildeo variam essas determinaccedilotildeesrdquo (Marx 1985 p 152)
Quase desnecessaacuterio dizer que tal posiccedilatildeo tambeacutem varia de acordo com o niacutevel
de desenvolvimento das forccedilas produtivas e das relaccedilotildees sociais que constituem a
sociedade em questatildeo Em siacutentese se natildeo podemos definir um objeto como
sendo o resultado de uma atividade inferior ou superior na hierarquia das
atividades humanas (da vita activa arendtiana) devido agrave sua durabilidade[17] ou agrave
sua proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica (agrave manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo do corpo)
qualquer tentativa de mensuraccedilatildeo sob este prisma nos parece completamente
arbitraacuteria inclusive eacute claro a que se funda na distinccedilatildeo arendtiana entre trabalho
e fabricaccedilatildeo
Enfatizar estas caracteriacutesticas do trabalho tambeacutem eacute importante porque
contrariamente agraves qualificaccedilotildees inerentes a ele e agrave fabricaccedilatildeo que de acordo com
Arendt estatildeo diretamente relacionadas agraves qualidades do Animal laborans e do
Homo faber no pensamento marxiano inexiste qualquer menccedilatildeo a uma essecircncia
a-histoacuterica do trabalho isto eacute uma essecircncia que agrave revelia da forma societaacuteria em
17
que a atividade se realiza imprime agrave subjetividade daquele que o executa
inelutaacuteveis qualificaccedilotildees Muito ao contraacuterio As anaacutelises marxianas satildeo
profundamente ancoradas na historicidade dos fenocircmenos naturais e sociais
negando qualquer essencialismo em relaccedilatildeo ao trabalho ou a qualquer outra
atividade bem como ao indiviacuteduo ou grupo de indiviacuteduos que o executa Para
Marx ldquoa essecircncia humana natildeo eacute uma abstraccedilatildeo inerente ao indiviacuteduo singular
Em sua realidade eacute o conjunto das relaccedilotildees sociaisrdquo (Marx 1987 p 13) Por
conseguinte em aberta oposiccedilatildeo agraves proposiccedilotildees arendtianas afirmamos que o
produtivismo natildeo constitui uma caracteriacutestica inerente ao trabalho ndash que com a
ascensatildeo deste agrave esfera puacuteblica teria transbordado as fronteiras da vida privada e
se generalizado socialmente ndash mas sim uma caracteriacutestica que possui suas raiacutezes
nas formas de sociabilidade vigentes no mundo contemporacircneo sejam estas
formas capitalistas ou poacutes-capitalistas[18] Dito de outro modo se o trabalho
assalariado alienado constitui cada vez mais a forma predominante da atividade
produtiva e reprodutiva dos indiviacuteduos nestas sociedades tal desventura natildeo
decorre de uma essecircncia que seja inerente a ele tanto quanto agraves formas preteacuteritas
de trabalho e que tenha se desvencilhado na atualidade das amarras que
limitavam sua expansatildeo A raiz deste fenocircmeno reside no fato de o capital
constituir a relaccedilatildeo social baacutesica das sociedades assinaladas generalizando
aquela forma de trabalho E a propoacutesito do essencialismo produtivista do trabalho
em vaacuterias passagens de sua obra Marx nos mostrou as diferenccedilas existentes
entre as sociedades antigas e as modernas sociedades capitalistas Numa dessas
passagens ele lembra que
Entre os antigos natildeo encontramos uma uacutenica investigaccedilatildeo a propoacutesito de qual a
forma de propriedade etc que seria a mais produtiva que geraria o maacuteximo de
riqueza A riqueza natildeo constituiacutea o objetivo da produccedilatildeo A pesquisa sempre
era sobre qual o tipo de propriedade que geraria os melhores cidadatildeos (Marx
1975 p 80 grifos nossos)
Mesmo em seu acircmbito estritamente privado a propriedade natildeo estava
relacionada prioritariamente aos interesses egoiacutestas do indiviacuteduo mas eram os 18
interesses deste ndash e portanto o uso que fazia daquela ndash que estavam
circunscritos e condicionados pelos interesses da comunidade da qual fazia parte
por mais restrita que esta fosse em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo total Desse modo nestas
formaccedilotildees sociais as atividades produtivas natildeo eram movidas por uma ldquoinerenterdquo
racionalidade produtivista uma racionalidade cujo suposto transbordamento das
fronteiras privadas e o estabelecimento do domiacutenio sobre as outras atividades
caracterizariam ndash segundo Arendt ndash o mundo moderno Em relaccedilatildeo a este sua
principal caracteriacutestica consiste na centralidade na generalizaccedilatildeo e no crescente
predomiacutenio do capital no conjunto das relaccedilotildees sociais Enfim eacute justamente esta
centralidade do capital e suas consequumlecircncias que produz o assalariamento
generalizado dos indiviacuteduos e a subsunccedilatildeo da reproduccedilatildeo socioeconocircmica como
um todo agrave loacutegica produtivista
Numa pequena digressatildeo visando apenas a estreitar as margens de accedilatildeo
das leituras vulgares do marxismo eacute necessaacuterio ressaltar que esta afirmaccedilatildeo da
centralidade do capital nas relaccedilotildees sociais contemporacircneas e do espraiamento
de sua influecircncia pela totalidade social natildeo implica reducionismo econocircmico Na
verdade ela significa apenas a explicitaccedilatildeo de caracteriacutesticas inerentes ao capital
cuja tendecircncia a subsumir a multiplicidade de dimensotildees da vida humana agrave sua
loacutegica acumulatoacuteria expansionista eacute um fato incontestaacutevel ontologicamente
enraizado e racionalmente apreensiacutevel e natildeo um grave equiacutevoco teoacuterico de um
pensamento incapaz de atentar para a complexidade do real Eacute nesse sentido que
comentando a famosa proposiccedilatildeo de Marx segundo a qual ldquoNatildeo eacute a consciecircncia
dos homens que determina o seu ser mas ao contraacuterio eacute o seu ser social que
determina sua consciecircnciardquo[19] (Marx 1982 p 25) Lukaacutecs afirma ldquonesse trecho o
mundo das formas de consciecircncia e seus conteuacutedos natildeo eacute visto como um produto
direto da estrutura econocircmica mas da totalidade do ser social A determinaccedilatildeo da
consciecircncia pelo ser social portanto eacute entendida em seu sentido mais geralrdquo
(Lukaacutecs 1979 p 41) ndash e natildeo como expressatildeo direta mecacircnica e restrita dos
processos econocircmicos
19
Neste toacutepico ateacute o momento detivemo-nos nas distintas concepccedilotildees
acerca do trabalho presentes em Arendt e Marx O caso poreacutem eacute que apesar de
significativas tais concepccedilotildees natildeo circunscrevem sua influecircncia agraves fronteiras
econocircmicas mas extravasam a economia e deitam raiacutezes na totalidade de suas
reflexotildees sobre a vida humana Assim se Arendt tem razatildeo em afirmar que para
Marx o trabalho ndash e a fabricaccedilatildeo apesar da irrelevacircncia desta distinccedilatildeo (trabalho x
fabricaccedilatildeo) no quadro conceitual marxiano ndash eacute tratado como uma atividade
teleoloacutegica cujas relaccedilotildees que estabelece com as outras atividades constitutivas
da vida humana satildeo fundamentais para delinear as caracteriacutesticas da totalidade
social nada justifica sua transposiccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos do trabalho
(concreto) para a concepccedilatildeo de histoacuteria marxiana No entanto eacute justamente isto
que ela faz ao afirmar que em Marx a histoacuteria eacute entendida como um processo
similar ao da fabricaccedilatildeo do artesanato um processo que contemporaneamente
exige a intervenccedilatildeo consciente de um sujeito demiuacutergico ndash o proletariado ndash para
plasmar a nova forma societaacuteria tal como o artesatildeo faz com sua mateacuteria-prima E
igualmente ao afirmar que do mesmo modo que a materializaccedilatildeo do objeto preacute-
ideado expressa o fim do processo gerido pelo artesatildeo a realizaccedilatildeo da sociedade
ldquopreacute-ideadardquo pelo proletariado significaria o fim da histoacuteria
Ora uma das questotildees mais complexas do pensamento social fruto de
inuacutemeras polecircmicas teorias e tratados ao longo dos uacuteltimos seacuteculos ndash
especialmente apoacutes o advento da sociologia ndash eacute a articulaccedilatildeo das accedilotildees
individuais e a reproduccedilatildeo da totalidade social E mesmo certos da impossibilidade
de adentrar no emaranhado de questotildees suscitado pelo tema natildeo podemos omitir
a informaccedilatildeo de que uma leitura criteriosa dos textos marxianos demonstra sem
grande dificuldade a improcedecircncia das criacuteticas de Hannah Arendt De modo
algum condiz com o ldquoespiacuteritordquo da obra marxiana a identificaccedilatildeo da reproduccedilatildeo
social como um todo e nem dos processos de transiccedilatildeo de uma forma societaacuteria a
outra ao modus operandi do trabalho O que natildeo significa por sua vez que a
instabilidade econocircmica e social natildeo fosse objeto de suas preocupaccedilotildees A bem
da verdade sendo o primeiro a entender a centralidade do trabalho e suas
20
consequumlecircncias na produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana Marx se assenhoreou
desde os Manuscritos de 1844 de conhecimentos suficientemente significativos
para criticar em relaccedilatildeo agravequele aspecto inicialmente citado das relaccedilotildees entre
indiviacuteduo e sociedade tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo Assim em
vez da naturalizaccedilatildeo da histoacuteria humana ou da arbitrariedade da vontade e da
razatildeo em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmaccedilatildeo dos
seres humanos como autoprodutores de sua proacutepria histoacuteria e simultaneamente
uma criacutetica agrave hipostasia das potencialidades da razatildeo e das forccedilas humanas nesta
autoproduccedilatildeo Invariavelmente suas anaacutelises reiteram que ldquoOs homens fazem
sua proacutepria histoacuteria mas natildeo a fazem como querem natildeo a fazem sob
circunstacircncias de sua proacutepria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam
diretamente legadas e transmitidas pelo passadordquo (Marx 1986 p 17 grifos
nossos) Nos dias atuais natildeo eacute difiacutecil perceber como por si soacute esta frase nos
mostra quatildeo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e
da realpolitik que cada qual ao seu modo como faces de uma mesma moeda
dominam os discursos poliacuteticos e econocircmicos em voga
Ainda no que diz respeito agrave questatildeo do sujeito demiuacutergico e do finalismo
histoacuterico eacute necessaacuterio que se entenda que mesmo em sua fastidiosa reproduccedilatildeo
cotidiana o trabalho eacute sempre um ato de criaccedilatildeo criaccedilatildeo natildeo apenas de coisas
novas de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma
humanamente apropriada mas criaccedilatildeo da proacutepria subjetividade humana que se
renova a partir das experiecircncias possibilitadas pelos meios e resultados de sua
produccedilatildeo e pelas relaccedilotildees sociais que os envolvem Tendo em mente esta
dinacircmica intriacutenseca agrave atividade vital dos seres humanos e ao mesmo tempo o
caraacuteter que para Marx a totalidade do real[20] assume como concreto pensado
(Marx 1982 p 15) nem a mais poderosa das inteligecircncias humanas tampouco o
concurso delas sob a forma do coletivo partidaacuterio pode em termos conceituais
apreender subsumir absolutamente o real ao pensamento ndash e muito menos
sujeitar as proacuteprias relaccedilotildees sociais a um controle assemelhado ao das teacutecnicas
produtivas
21
Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final
entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja
rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz
consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de
Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo
sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele
ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von
Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia
hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas
sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais
geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de
onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta
observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica
especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente
pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto
natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o
proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela
histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e
seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o
conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade
histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens
em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo
possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas
Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo
de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos
individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica
intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos
altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que
nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que
22
em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a
divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente
a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de
todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada
espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das
diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como
reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori
e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do
trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural
interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado
subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo
social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo
reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo
exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo
que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as
condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)
Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais
de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente
as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de
posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo
(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa
O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias
normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de
finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem
realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute
inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)
Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante
entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de
indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de
eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a
23
casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece
porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da
ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas
significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias
sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca
controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias
objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que
encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano
Em sua Ontologia do ser social ele afirma
Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada
vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as
decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da
totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse
conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa
relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso
porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o
movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da
histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas
etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local
tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que
tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de
transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que
satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do
que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e
consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso
aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)
Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos
individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha
ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias
mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade
oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem
econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo
24
social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve
ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que
historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os
processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem
uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle
destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou
A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a
anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo
incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do
trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer
controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma
infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo
autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais
entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda
organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a
sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)
Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus
ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os
limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de
intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal
qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos
uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana
(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do
pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os
limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir
para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta
ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo
No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras
experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao
nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25
pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas
relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi
drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente
desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses
capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de
regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo
resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica
reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas
experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da
humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua
loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a
accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com
seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social
passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees
marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de
regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos
moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a
consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria
redenccedilatildeo universal
O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos
ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as
acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels
salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido
um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o
movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)
O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se
realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico
do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana
de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo
comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o
26
comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a
forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo
nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao
desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma
sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o
comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no
fim da histoacuteria[22]
Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento
marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute
capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e
desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo
ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso
numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]
mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou
natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana
Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees
que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim
contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das
caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da
limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os
homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara
manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal
Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos
extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a
violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo
Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do
capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre
a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os
revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila
27
material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a
utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de
recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o
revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico
Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder
material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria
se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz
de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e
argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar
o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p
497)
Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos
(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o
discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista
muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)
que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no
encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as
sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece
ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um
discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos
constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das
individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades
eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano
mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em
campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar
plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de
sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar
sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio
colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel
convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e
28
culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem
respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes
subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]
Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)
de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio
das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto
natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive
atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie
No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias
naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o
crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda
escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-
sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo
contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da
incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees
materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos
afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus
processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos
inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos
da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades
humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute
o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses
trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)
Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas
produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa
penetrante passagem sobre o tema lemos
O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto
dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de
29
desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse
nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos
demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua
vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado
naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo
determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas
relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu
proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx
1973 pp 89-90)
Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos
sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a
centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos
aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza
e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham
vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a
intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o
equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente
econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida
social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da
permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas
relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito
da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas
universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada
das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os
homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria
mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das
forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo
adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos
homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia
O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se
compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30
neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo
do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo
pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso
histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive
violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste
(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso
resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na
sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os
antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por
ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses
das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos
Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica
natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades
reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a
estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico
Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da
cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios
juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da
sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela
que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de
duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que
complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo
concreto
O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em
oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem
de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade
desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem
leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da
realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na
comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na
31
sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como
meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes
estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser
profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real
eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem
eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma
soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de
uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)
Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e
imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos
privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma
revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res
publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja
eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da
proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a
violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica
consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a
accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a
vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma
alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento
Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a
essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o
proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua
violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre
dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo
de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a
perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a
violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt
segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser
a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente
32
pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o
antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as
relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de
supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano
Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder
dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se
faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de
violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o
poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa
revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades
viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento
humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo
profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma
resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como
desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo
Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado
como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos
do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute
poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de
propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)
Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de
dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao
contraacuterio
Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como
classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como
classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as
condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em
geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)
33
Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx
1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo
poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer
forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas
formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar
em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis
Quanto a isso eacute importante relembrar que
O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos
limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute
capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade
Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais
ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e
espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a
fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)
Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-
violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo
violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-
socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo
(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-
humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo
humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a
rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios
quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de
coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras
A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um
anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo
(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim
negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se
natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para
natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a
34
contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo
(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-
humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-
violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que
assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)
Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx
caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu
proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios
empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo
entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez
de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do
humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-
capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo
dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os
torna incompatiacuteveis[27]
IV Agrave guisa de conclusatildeo
Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de
Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda
distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de
Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do
pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas
que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio
da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente
sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir
de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns
aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram
envolvidos pela leitura arendtiana
35
Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem
ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem
duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho
Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e
estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do
solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo
neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade
com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se
reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos
intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro
porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento
marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual
formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco
em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e
Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para
o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e
revolucionaacuterios
Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo
XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho
caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos
revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso
imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob
muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes
natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca
demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo
sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas
proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os
argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro
sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas
ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma
36
verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto
que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute
cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido
V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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______ Manifesto comunista Satildeo Paulo Boitempo 1998
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centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio
1983
______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002
Notas
38
Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo
Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo
teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a
estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o
ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque
somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a
abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos
que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e
isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a
accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num
constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas
produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou
menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de
consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados
a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo
antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em
termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e
inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho
como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt
1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels
segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte
daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos
homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e
39
osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida
real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos
desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo
corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade
efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa
produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma
aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio
Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para
produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas
necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a
Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de
qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas
formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na
constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso
ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro
Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se
distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo
reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele
duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo
(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute
afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels
1986 p 19)
40
[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade
esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas
daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades
capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas
carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e
propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que
determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a
p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que
sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram
transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em
grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos
paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital
Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo
crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos
estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem
consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo
social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas
conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento
marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo
implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de
estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo
significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo
dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma
luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude
do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de
uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o
41
entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada
dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas
caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos
do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no
fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje
muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o
sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e
saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente
a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente
severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de
personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de
objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de
produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e
personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar
condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua
perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento
universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social
como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p
85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que
apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo
aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do
esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e
complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em
relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios
revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA
transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em
42
43
massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
-
A relutacircncia de Marx em levar a seacuterio ldquoo que cada eacutepoca diz sobre si e imagina
serrdquo derivava de sua convicccedilatildeo de que a accedilatildeo poliacutetica era basicamente violecircncia e
que a violecircncia era a parteira da histoacuteria Tal convicccedilatildeo natildeo se devia agrave ferocidade
gratuita de um temperamento revolucionaacuterio mas tem seu lugar na filosofia da
histoacuteria de Marx que sustenta que a histoacuteria representada pelos homens na
modalidade da falsa consciecircncia isto eacute na modalidade das ideologias pode ser
feita pelos homens tendo eles plena consciecircncia do que estatildeo fazendo Eacute
justamente esse lado humanista dos ensinamentos de Marx que o levou a insistir
no caraacuteter violento da accedilatildeo poliacutetica ele via o fazer da histoacuteria em termos de
fabricaccedilatildeo o homem histoacuterico era para ele basicamente Homo faber A fabricaccedilatildeo
de todas as coisas feitas pelo homem implica necessariamente alguma violecircncia
que incidiraacute sobre a coisa que se torna a mateacuteria baacutesica do que foi fabricado
(Arendt 2002 pp 62-3)
Marx assim teria compreendido a histoacuteria como resultado do ldquofazerrdquo
humano como resultado de atos teleoloacutegicos que nos moldes da atividade
artesanal ndash da fabricaccedilatildeo ndash fazem do ldquoHomemrdquo ndash e natildeo dos homens ndash o artesatildeo
consciente de sua histoacuteria (cf Canovan 1998) Eacute como se Marx tivesse
transformado o processo histoacuterico resultante de muacuteltiplas interaccedilotildees dos seres
humanos entre si (e simultaneamente destes com a natureza) num processo
instrumental Ou dito de outro modo eacute como se tal qual um Hegel materialista
ele concebesse a proacutepria sociedade como um ser demiuacutergico dotado de
capacidades e formas de atuaccedilatildeo semelhantes agravequelas do indiviacuteduo singular que
substituiacutesse o Espiacuterito e o seu processo de sua autoconscientizaccedilatildeo pelos
proacuteprios homens ndash ou pelo ldquoHomemrdquo ndash e seus atos de ldquofazer a histoacuteriardquo de
ldquofabricarrdquo a sociedade ideal (comunista) Neste caso a consciecircncia de classe
cumpriria o mesmo papel que a hegeliana ldquoastuacutecia da Razatildeordquo De qualquer modo
em ambos os casos natildeo satildeo exatamente os homens em sua multiplicidade de
experiecircncias e expectativas que agem em parte de maneira coordenada e
consciente e em parte conflitiva e inconscientemente mas ao contraacuterio eacute o
ldquoHomemrdquo a humanidade unificada que age de maneira coordenada consciente e
controlada como se fosse o ldquoartesatildeo do mundordquo
10
A visatildeo marxista da atividade revolucionaacuteria seria entatildeo o resultado da
imputaccedilatildeo inconsciente de qualidades da fabricaccedilatildeo agrave accedilatildeo a qual por meio da
violecircncia[10] e orientada pelos mesmos criteacuterios de meios e fins que regem a
fabricaccedilatildeo faria os homens efetuarem o parto da nova sociedade cujo rebento
encontra-se emaranhado nas iacutentimas contradiccedilotildees da velha formaccedilatildeo social Seria
justamente esta exaltaccedilatildeo da violecircncia da ldquouacuteltima ratiordquo tiacutepica das relaccedilotildees entre
os baacuterbaros e caracteriacutestica da condiccedilatildeo do escravo[11] a demonstraccedilatildeo de que
em Marx predomina uma ldquohostilidade antitradicional ao discursordquo agrave busca do
consenso agrave poliacutetica (Arendt 1972 p 50)
Nesse contexto o pensamento poliacutetico de Marx representa segundo Arendt
o fim de uma trajetoacuteria do pensamento poliacutetico tradicional iniciada pelas filosofias
de Platatildeo e Aristoacuteteles Pois com esses pensadores a filosofia teria num duplo
salto se distanciado dos assuntos humanos onde reina a confusatildeo e a ilusatildeo
para retornar a eles ilustrada pela razatildeo isto eacute ldquopara [esta a razatildeo] impor seus
padrotildees aos assuntos humanosrdquo (Arendt 1972 p 44) fato altamente positivo que
teria demarcado o iniacutecio de uma fecunda relaccedilatildeo entre a filosofia e os assuntos
humanos entre ela e a poliacutetica Enquanto com Marx desgraccediladamente teria
acontecido o oposto visto que ele ldquorepudiou a Filosofia para poder lsquorealizaacute-larsquo na
poliacuteticardquo (Arendt 1972 p 44) Para ele em vez de a filosofia permanecer uma
espeacutecie de reflexatildeo sistemaacutetica e criacutetica constituiacuteda de certo modo apartada do
processo histoacuterico ela passou a emanar da proacutepria histoacuteria ldquoou antes a
consciecircncia poliacutetica [deriva] da consciecircncia histoacutericardquo (Arendt 1972 p 114) E
ainda segundo Arendt um dos fundamentos desta concepccedilatildeo reside na
identificaccedilatildeo estabelecida no mundo moderno entre sentido e fim Por meio dela
o sentido como termo que expressa o significado de um acontecimento ndash portanto
resultante de uma explicaccedilatildeo post factum ndash foi transformado em fim de
significado de acontecimentos passados passou a preacute-idear situaccedilotildees futuras
Com isso as accedilotildees individuais e instrumentais (realizadas com a finalidade de)
que explicam o processo de trabalho e seus resultados passaram a servir de
modelo para a explicaccedilatildeo do porquecirc de o indiviacuteduo (eou a sociedade) ser o que eacute
11
e portanto executar esta atividade (eou possuir tais caracteriacutesticas) ndash ie como
se o presente fosse a manifestaccedilatildeo ldquoaqui e agorardquo da necessidade imanente de
atos passados Enfim ao considerar as sociedades modernas degradadoras do
sentido em fim Arendt avalia que o marxismo parte integrante desta modernidade
levou esta degradaccedilatildeo agraves uacuteltimas consequumlecircncias e assim transformou a histoacuteria
em teleologia
Pois bem se ainda segundo Arendt a teoria da histoacuteria como fabricaccedilatildeo
natildeo eacute exclusiva do pensamento marxista mas constitui uma caracteriacutestica do
pensamento poliacutetico moderno aquele se distingue
de todas as demais teorias em que a noccedilatildeo de ldquofazer a histoacuteriardquo encontrou abrigo
somente [pelo] fato de apenas ele ter percebido que se se toma a histoacuteria como o
objeto de um processo de fabricaccedilatildeo ou elaboraccedilatildeo deve sobrevir um momento
em que esse objeto eacute completado e que desde que se imagina ser possiacutevel fazer
a histoacuteria natildeo se pode escapar agrave consequumlecircncia de que haveraacute um fim para a
histoacuteria (Arendt 1972 p 114)
Para que entatildeo os marxistas respondem aos apocaliacutepticos que
advogam o fim das ideologias e da histoacuteria se com um golpe de matildeo o proacuteprio
Marx eliminou a ambas Nesta visatildeo tal como o objeto que inicialmente preacute-
ideado na cabeccedila do artesatildeo completa seu ciclo de produccedilatildeo torna-se objetivo
finda a histoacuteria chegaria ao seu fim com a realizaccedilatildeo da filosofia pelo proletariado
ndash nos invertidos termos hegelianos seria este o momento da autoconscientizaccedilatildeo
do Espiacuterito da plena identificaccedilatildeo entre conceito e objeto entre pensamento e
realidade ndash fato que demarcaria o controle da vida humana nos mesmos moldes
em que o artesatildeo domina a mateacuteria a ser plasmada e lhe fornece uma forma final
Mas se Marx eacute tratado como uma espeacutecie de Hegel materialista eacute certo que
as ideacuteias de ambos natildeo satildeo idecircnticas Tanto que em oposiccedilatildeo agrave sua
predecessora hegeliana a coruja de Minerva marxiana natildeo alccedila vocirco somente ao
crepuacutesculo ela capta conceitualmente as condiccedilotildees em que este pode ocorrer e
12
assim auxilia na sua realizaccedilatildeo Outrossim mais importante do que saber se esta
caracteriacutestica do pensamento de Marx eacute adequadamente entendida por Arendt eacute
saber que para ela esta caracteriacutestica expressa um determinismo que torna
supeacuterflua qualquer discussatildeo sobre as finalidades e o conteuacutedo dos processos
sociais dado que a histoacuteria fabricada modelada como se fosse um objeto pelo
proletariado demiuacutergico torna a palavra o discurso um mero instrumento de
justificaccedilatildeo ideoloacutegica de ideacuteias preconcebidas a serem materializadas Foi
partindo desses pressupostos que Arendt pocircde afirmar
O que era entatildeo inexplicaacutevel na histoacuteria [a saber os muacuteltiplos interesses
conflitantes que tornam a accedilatildeo poliacutetica ineficaz no alcance de seus objetivos e a
existecircncia de um sentido no processo histoacuterico] passa agora a ser visto como o
reflexo de um significado que seguramente era tanto um produto humano quanto o
desenvolvimento teacutecnico do mundo O problema de humanizar os assuntos
poliacutetico-histoacutericos resumia-se consequumlentemente em descobrir como dominar
nossas proacuteprias accedilotildees assim como dominamos nossa capacidade produtiva ou
em outras palavras como ldquofazerrdquo histoacuteria assim como fazemos outras coisas Uma
vez que isso seja alcanccedilado com a vitoacuteria do proletariado natildeo precisaremos mais
de ideologias Mas ateacute laacute todas as accedilotildees poliacuteticas preceitos legais e
pensamentos espirituais continuaratildeo escondendo os motivos inconfessos de uma
sociedade que somente finge agir politicamente mas que na verdade ldquofaz
histoacuteriardquo ainda que de uma maneira inconsciente isto eacute natildeo-humana (Arendt
2002 p 63)
Natildeo constituindo a esfera do pleno exerciacutecio do debate de ideacuteias entre
indiviacuteduos livres e iguais ndash indiviacuteduos que por meio do uso intenso da palavra do
discurso do muacutetuo esclarecimento estabelecem consensos mais ou menos gerais
sobre os fundamentos e as finalidades da accedilatildeo ndash a poliacutetica atual constitui um
simulacro da poliacutetica autecircntica Tal como a entende Arendt esta constitui uma
esfera (puacuteblica) que antes de qualquer outra coisa deve estar apartada da
violecircncia na medida em que esta nega a palavra o discurso o debate e portanto
a accedilatildeo Definindo assim o que satildeo meios e fins o que eacute essencial e o que eacute
imposiccedilatildeo extriacutenseca agrave poliacutetica Arendt reitera que ldquoo poder eacute de fato a essecircncia
13
de todo governo mas natildeo a violecircnciardquo (Arendt 1994 p 40) Por conseguinte
sendo de natureza instrumental a violecircncia ldquocomo todos os meios sempre
depende da orientaccedilatildeo e da justificaccedilatildeo pelo fim que almeja E aquilo que
necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser a essecircncia de nadardquo (Arendt
1994 p 41) O poder encontra sua legitimidade no passado a violecircncia se
justifica pelas consequumlecircncias futuras aquele pela sua constituiccedilatildeo esta pelos
seus objetivos Em razatildeo disso ldquoa violecircncia pode ser justificaacutevel mas nunca seraacute
legiacutetimardquo (Arendt 1994 p 41) Enfim ao vincularem a violecircncia ao poder as
concepccedilotildees poliacuteticas hegemocircnicas dentre elas o marxismo demonstram a
incompreensatildeo de que aqueles satildeo na verdade opostos ldquoonde um domina
absolutamente o outro estaacute ausenterdquo (Arendt 1994 p 44)
Para natildeo cindir a argumentaccedilatildeo criacutetica e com isso tornaacute-la
demasiadamente prolixa retornaremos mais adiante a estas afirmaccedilotildees de
Hannah Arendt sobre poliacutetica e violecircncia Por ora apoacutes termos descrito algumas
categorias centrais do pensamento arendtiano e em especiacutefico os fundamentos
de sua criacutetica agrave relaccedilatildeo entre poliacutetica e violecircncia em Marx passemos na mesma
sequumlecircncia de ideacuteias desenvolvida ateacute aqui ao confronto dessas reflexotildees com
aquelas que a nosso ver correspondem adequadamente tanto ao corpo quanto
ao espiacuterito da obra marxiana
III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
Consideramos desnecessaacuterio demonstrar ad nauseam como a concepccedilatildeo
de trabalho em Marx difere substancialmente daquelas atividades que Arendt
denomina pelos vocaacutebulos trabalho e fabricaccedilatildeo pois para o nosso objetivo
basta que o realizemos apenas em suas linhas gerais Assim em primeiro lugar eacute
necessaacuterio relembrar que ao contraacuterio da concepccedilatildeo arendtiana na obra de Marx
o trabalho natildeo consiste numa atividade que nos vincularia mais ao mundo dos
animais do que ao dos seres humanos propriamente ditos Para ele muito distante
14
de qualquer ilusatildeo acerca de uma vida sem trabalho[12] esta atividade constitui um
momento efetivamente fundante e fundamental da vida humana sem a qual aiacute
sim natildeo nos distinguiriacuteamos em absolutamente nada dos proacuteprios animais[13] Em
termos precisos podemos dizer que o animal natildeo se relaciona com a natureza
ele apenas vive nela eacute sua parte integrante[14] natildeo se distinguindo dela como um
ser consciente o animal eacute portanto incapaz de estabelecer uma mediaccedilatildeo
regulada conscientemente controlada com a natureza (Marx 1985 p 149)
apenas respondendo com maior ou menor labilidade agraves determinaccedilotildees e agraves
constantes mudanccedilas de seu haacutebitat O ser humano por sua vez age de maneira
preacute-ideada em sua atividade metaboacutelica pois em todos os momentos do processo
de trabalho lhe ldquoeacute exigida a vontade orientada a um fimrdquo (Marx 1985 p 150)
Assim o sujeito que trabalha ldquonatildeo apenas efetua uma transformaccedilatildeo da forma da
mateacuteria natural realiza ao mesmo tempo na mateacuteria natural seu objetivo que ele
sabe que determina como lei a espeacutecie e o modo de sua atividade e ao qual tem
de subordinar sua vontaderdquo (Marx 1985 p 150) Natildeo sendo portanto a mera
expressatildeo de determinaccedilotildees ou epifenocircmenos bioloacutegicos o trabalho eacute uma
atividade na qual inevitavelmente entrelaccedilam-se o pensar e o fazer a
consciecircncia e a accedilatildeo com aquela orientando esta para transformar a mateacuteria com
vistas a dar-lhe uma forma adequada agrave satisfaccedilatildeo de alguma necessidade
humana A ideacuteia mediada pelo trabalho cristaliza-se no objeto objeto que longe
de ser meramente natural eacute a manifestaccedilatildeo material da subjetividade humana
posto que soacute existe em razatildeo desta Tanto que no final temos que ldquoo trabalho
estaacute objetivado e o objeto trabalhadordquo (Marx 1985 p 151) num mesmo ato a
subjetividade exteriorizou-se e a materialidade tornou-se subjetiva[15] E eacute claro
como esta objetivaccedilatildeo eacute resultado de accedilotildees conscientes o metabolismo dos
homens em relaccedilatildeo agrave natureza eacute muito mais dinacircmico mutante do que aquele
efetuado pelos animais resultando em formas materiais e sociais
permanentemente alteradas ocorrendo a mesma coisa com a proacutepria
subjetividade humana
15
Sendo uma atividade humanamente produtiva o trabalho natildeo eacute apenas a
relaccedilatildeo do homem com a natureza eacute tambeacutem uma relaccedilatildeo que ocorre entre os
proacuteprios homens ndash e verdadeiramente como trabalho soacute existe a partir desta
relaccedilatildeo Ainda em sua juventude num texto seminal para a elaboraccedilatildeo de suas
reflexotildees posteriores Marx nos diz que o homem ldquosoacute eacute um ser consciente quer
dizer a sua vida constitui para ele um objeto porque eacute um ser geneacuterico
Unicamente por isso eacute que sua atividade surge como atividade livrerdquo (Marx 1985
p 165) Se natildeo fosse um ser social geneacuterico produto e produtor de si e do
gecircnero o ser humano natildeo possuiria as faculdades (consciecircncia linguagem) sem
as quais paradoxalmente o proacuteprio trabalho natildeo existiria E que simultaneamente
como dissemos permitem o aprimoramento e a expansatildeo das fronteiras da vida
humana (individual e coletiva) para muito aleacutem daquelas a que estatildeo restritos os
seres vivos naturais[16]
Nesse caso parece-nos oacutebvio que eacute completamente irrelevante saber se
uma atividade produtiva resulta em produtos mais ou menos duraacuteveis ndash por
exemplo em alimentos ou objetos do mobiliaacuterio ndash para classificaacute-la como estando
mais proacutexima ou mais distante da vida propriamente humana Seja numa
sociedade especiacutefica ou ao longo da histoacuteria humana um produto pode durar mais
ou menos tempo devido a um sem-nuacutemero de fatores tais como os materiais e a
tecnologia empregados as relaccedilotildees sociais sob as quais foi produzido as classes
eou grupos sociais que o utilizaratildeo ndash definindo por exemplo a velocidade e o
perfil de sua obsolescecircncia ou seja se esta eacute real materialmente efetiva ou
socialmente condicionada ndash entre outros e natildeo apenas devido agrave maior ou menor
proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica dos indiviacuteduos A rigor a produccedilatildeo de um
alimento ou medicamento por meio de procedimentos complexos e sofisticados
mas cujo consumo eacute quase imediato (para Arendt ldquoproduto do trabalhordquo)
certamente expressa niacuteveis mais elevados de humanizaccedilatildeo do que a produccedilatildeo de
uma tosca mesa de madeira que perdura seacuteculos passando de geraccedilatildeo a
geraccedilatildeo (Marx 1985 ldquoproduto da fabricaccedilatildeordquo)
16
Essas observaccedilotildees acerca da relaccedilatildeo entre as atividades produtivas e a
durabilidade de suas produccedilotildees natildeo significa em hipoacutetese alguma que a
durabilidade ou natildeo de um produto seja irrelevante para os indiviacuteduos e a
sociedade em geral ateacute mesmo porque os produtos satildeo elementos constitutivos e
condicionantes de certas caracteriacutesticas dos processos de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo
das formaccedilotildees sociais Significa apenas que per se ela natildeo eacute relevante para
mensurar o niacutevel de humanizaccedilatildeo da atividade e das qualificaccedilotildees subjetivas nela
envolvidas Assim nas sociedades capitalistas por exemplo saber se um
determinado objeto constitui parte do maquinaacuterio ou da edificaccedilatildeo (capital fixo) ou
entatildeo se eacute apenas insumo mateacuteria-prima ou meio de subsistecircncia (capital
circulante) eacute significativo prioritariamente em razatildeo de que as proporccedilotildees de seus
respectivos usos e o seu periacuteodo de rotaccedilatildeo afetam de maneira decisiva as taxas
de lucro do capital investido Aleacutem do mais ldquoo fato de um valor de uso aparecer
como mateacuteria-prima meio de trabalho ou produto depende totalmente de sua
funccedilatildeo determinada no processo de trabalho da posiccedilatildeo que nele ocupa e com a
mudanccedila dessa posiccedilatildeo variam essas determinaccedilotildeesrdquo (Marx 1985 p 152)
Quase desnecessaacuterio dizer que tal posiccedilatildeo tambeacutem varia de acordo com o niacutevel
de desenvolvimento das forccedilas produtivas e das relaccedilotildees sociais que constituem a
sociedade em questatildeo Em siacutentese se natildeo podemos definir um objeto como
sendo o resultado de uma atividade inferior ou superior na hierarquia das
atividades humanas (da vita activa arendtiana) devido agrave sua durabilidade[17] ou agrave
sua proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica (agrave manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo do corpo)
qualquer tentativa de mensuraccedilatildeo sob este prisma nos parece completamente
arbitraacuteria inclusive eacute claro a que se funda na distinccedilatildeo arendtiana entre trabalho
e fabricaccedilatildeo
Enfatizar estas caracteriacutesticas do trabalho tambeacutem eacute importante porque
contrariamente agraves qualificaccedilotildees inerentes a ele e agrave fabricaccedilatildeo que de acordo com
Arendt estatildeo diretamente relacionadas agraves qualidades do Animal laborans e do
Homo faber no pensamento marxiano inexiste qualquer menccedilatildeo a uma essecircncia
a-histoacuterica do trabalho isto eacute uma essecircncia que agrave revelia da forma societaacuteria em
17
que a atividade se realiza imprime agrave subjetividade daquele que o executa
inelutaacuteveis qualificaccedilotildees Muito ao contraacuterio As anaacutelises marxianas satildeo
profundamente ancoradas na historicidade dos fenocircmenos naturais e sociais
negando qualquer essencialismo em relaccedilatildeo ao trabalho ou a qualquer outra
atividade bem como ao indiviacuteduo ou grupo de indiviacuteduos que o executa Para
Marx ldquoa essecircncia humana natildeo eacute uma abstraccedilatildeo inerente ao indiviacuteduo singular
Em sua realidade eacute o conjunto das relaccedilotildees sociaisrdquo (Marx 1987 p 13) Por
conseguinte em aberta oposiccedilatildeo agraves proposiccedilotildees arendtianas afirmamos que o
produtivismo natildeo constitui uma caracteriacutestica inerente ao trabalho ndash que com a
ascensatildeo deste agrave esfera puacuteblica teria transbordado as fronteiras da vida privada e
se generalizado socialmente ndash mas sim uma caracteriacutestica que possui suas raiacutezes
nas formas de sociabilidade vigentes no mundo contemporacircneo sejam estas
formas capitalistas ou poacutes-capitalistas[18] Dito de outro modo se o trabalho
assalariado alienado constitui cada vez mais a forma predominante da atividade
produtiva e reprodutiva dos indiviacuteduos nestas sociedades tal desventura natildeo
decorre de uma essecircncia que seja inerente a ele tanto quanto agraves formas preteacuteritas
de trabalho e que tenha se desvencilhado na atualidade das amarras que
limitavam sua expansatildeo A raiz deste fenocircmeno reside no fato de o capital
constituir a relaccedilatildeo social baacutesica das sociedades assinaladas generalizando
aquela forma de trabalho E a propoacutesito do essencialismo produtivista do trabalho
em vaacuterias passagens de sua obra Marx nos mostrou as diferenccedilas existentes
entre as sociedades antigas e as modernas sociedades capitalistas Numa dessas
passagens ele lembra que
Entre os antigos natildeo encontramos uma uacutenica investigaccedilatildeo a propoacutesito de qual a
forma de propriedade etc que seria a mais produtiva que geraria o maacuteximo de
riqueza A riqueza natildeo constituiacutea o objetivo da produccedilatildeo A pesquisa sempre
era sobre qual o tipo de propriedade que geraria os melhores cidadatildeos (Marx
1975 p 80 grifos nossos)
Mesmo em seu acircmbito estritamente privado a propriedade natildeo estava
relacionada prioritariamente aos interesses egoiacutestas do indiviacuteduo mas eram os 18
interesses deste ndash e portanto o uso que fazia daquela ndash que estavam
circunscritos e condicionados pelos interesses da comunidade da qual fazia parte
por mais restrita que esta fosse em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo total Desse modo nestas
formaccedilotildees sociais as atividades produtivas natildeo eram movidas por uma ldquoinerenterdquo
racionalidade produtivista uma racionalidade cujo suposto transbordamento das
fronteiras privadas e o estabelecimento do domiacutenio sobre as outras atividades
caracterizariam ndash segundo Arendt ndash o mundo moderno Em relaccedilatildeo a este sua
principal caracteriacutestica consiste na centralidade na generalizaccedilatildeo e no crescente
predomiacutenio do capital no conjunto das relaccedilotildees sociais Enfim eacute justamente esta
centralidade do capital e suas consequumlecircncias que produz o assalariamento
generalizado dos indiviacuteduos e a subsunccedilatildeo da reproduccedilatildeo socioeconocircmica como
um todo agrave loacutegica produtivista
Numa pequena digressatildeo visando apenas a estreitar as margens de accedilatildeo
das leituras vulgares do marxismo eacute necessaacuterio ressaltar que esta afirmaccedilatildeo da
centralidade do capital nas relaccedilotildees sociais contemporacircneas e do espraiamento
de sua influecircncia pela totalidade social natildeo implica reducionismo econocircmico Na
verdade ela significa apenas a explicitaccedilatildeo de caracteriacutesticas inerentes ao capital
cuja tendecircncia a subsumir a multiplicidade de dimensotildees da vida humana agrave sua
loacutegica acumulatoacuteria expansionista eacute um fato incontestaacutevel ontologicamente
enraizado e racionalmente apreensiacutevel e natildeo um grave equiacutevoco teoacuterico de um
pensamento incapaz de atentar para a complexidade do real Eacute nesse sentido que
comentando a famosa proposiccedilatildeo de Marx segundo a qual ldquoNatildeo eacute a consciecircncia
dos homens que determina o seu ser mas ao contraacuterio eacute o seu ser social que
determina sua consciecircnciardquo[19] (Marx 1982 p 25) Lukaacutecs afirma ldquonesse trecho o
mundo das formas de consciecircncia e seus conteuacutedos natildeo eacute visto como um produto
direto da estrutura econocircmica mas da totalidade do ser social A determinaccedilatildeo da
consciecircncia pelo ser social portanto eacute entendida em seu sentido mais geralrdquo
(Lukaacutecs 1979 p 41) ndash e natildeo como expressatildeo direta mecacircnica e restrita dos
processos econocircmicos
19
Neste toacutepico ateacute o momento detivemo-nos nas distintas concepccedilotildees
acerca do trabalho presentes em Arendt e Marx O caso poreacutem eacute que apesar de
significativas tais concepccedilotildees natildeo circunscrevem sua influecircncia agraves fronteiras
econocircmicas mas extravasam a economia e deitam raiacutezes na totalidade de suas
reflexotildees sobre a vida humana Assim se Arendt tem razatildeo em afirmar que para
Marx o trabalho ndash e a fabricaccedilatildeo apesar da irrelevacircncia desta distinccedilatildeo (trabalho x
fabricaccedilatildeo) no quadro conceitual marxiano ndash eacute tratado como uma atividade
teleoloacutegica cujas relaccedilotildees que estabelece com as outras atividades constitutivas
da vida humana satildeo fundamentais para delinear as caracteriacutesticas da totalidade
social nada justifica sua transposiccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos do trabalho
(concreto) para a concepccedilatildeo de histoacuteria marxiana No entanto eacute justamente isto
que ela faz ao afirmar que em Marx a histoacuteria eacute entendida como um processo
similar ao da fabricaccedilatildeo do artesanato um processo que contemporaneamente
exige a intervenccedilatildeo consciente de um sujeito demiuacutergico ndash o proletariado ndash para
plasmar a nova forma societaacuteria tal como o artesatildeo faz com sua mateacuteria-prima E
igualmente ao afirmar que do mesmo modo que a materializaccedilatildeo do objeto preacute-
ideado expressa o fim do processo gerido pelo artesatildeo a realizaccedilatildeo da sociedade
ldquopreacute-ideadardquo pelo proletariado significaria o fim da histoacuteria
Ora uma das questotildees mais complexas do pensamento social fruto de
inuacutemeras polecircmicas teorias e tratados ao longo dos uacuteltimos seacuteculos ndash
especialmente apoacutes o advento da sociologia ndash eacute a articulaccedilatildeo das accedilotildees
individuais e a reproduccedilatildeo da totalidade social E mesmo certos da impossibilidade
de adentrar no emaranhado de questotildees suscitado pelo tema natildeo podemos omitir
a informaccedilatildeo de que uma leitura criteriosa dos textos marxianos demonstra sem
grande dificuldade a improcedecircncia das criacuteticas de Hannah Arendt De modo
algum condiz com o ldquoespiacuteritordquo da obra marxiana a identificaccedilatildeo da reproduccedilatildeo
social como um todo e nem dos processos de transiccedilatildeo de uma forma societaacuteria a
outra ao modus operandi do trabalho O que natildeo significa por sua vez que a
instabilidade econocircmica e social natildeo fosse objeto de suas preocupaccedilotildees A bem
da verdade sendo o primeiro a entender a centralidade do trabalho e suas
20
consequumlecircncias na produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana Marx se assenhoreou
desde os Manuscritos de 1844 de conhecimentos suficientemente significativos
para criticar em relaccedilatildeo agravequele aspecto inicialmente citado das relaccedilotildees entre
indiviacuteduo e sociedade tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo Assim em
vez da naturalizaccedilatildeo da histoacuteria humana ou da arbitrariedade da vontade e da
razatildeo em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmaccedilatildeo dos
seres humanos como autoprodutores de sua proacutepria histoacuteria e simultaneamente
uma criacutetica agrave hipostasia das potencialidades da razatildeo e das forccedilas humanas nesta
autoproduccedilatildeo Invariavelmente suas anaacutelises reiteram que ldquoOs homens fazem
sua proacutepria histoacuteria mas natildeo a fazem como querem natildeo a fazem sob
circunstacircncias de sua proacutepria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam
diretamente legadas e transmitidas pelo passadordquo (Marx 1986 p 17 grifos
nossos) Nos dias atuais natildeo eacute difiacutecil perceber como por si soacute esta frase nos
mostra quatildeo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e
da realpolitik que cada qual ao seu modo como faces de uma mesma moeda
dominam os discursos poliacuteticos e econocircmicos em voga
Ainda no que diz respeito agrave questatildeo do sujeito demiuacutergico e do finalismo
histoacuterico eacute necessaacuterio que se entenda que mesmo em sua fastidiosa reproduccedilatildeo
cotidiana o trabalho eacute sempre um ato de criaccedilatildeo criaccedilatildeo natildeo apenas de coisas
novas de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma
humanamente apropriada mas criaccedilatildeo da proacutepria subjetividade humana que se
renova a partir das experiecircncias possibilitadas pelos meios e resultados de sua
produccedilatildeo e pelas relaccedilotildees sociais que os envolvem Tendo em mente esta
dinacircmica intriacutenseca agrave atividade vital dos seres humanos e ao mesmo tempo o
caraacuteter que para Marx a totalidade do real[20] assume como concreto pensado
(Marx 1982 p 15) nem a mais poderosa das inteligecircncias humanas tampouco o
concurso delas sob a forma do coletivo partidaacuterio pode em termos conceituais
apreender subsumir absolutamente o real ao pensamento ndash e muito menos
sujeitar as proacuteprias relaccedilotildees sociais a um controle assemelhado ao das teacutecnicas
produtivas
21
Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final
entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja
rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz
consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de
Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo
sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele
ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von
Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia
hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas
sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais
geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de
onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta
observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica
especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente
pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto
natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o
proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela
histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e
seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o
conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade
histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens
em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo
possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas
Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo
de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos
individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica
intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos
altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que
nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que
22
em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a
divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente
a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de
todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada
espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das
diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como
reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori
e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do
trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural
interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado
subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo
social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo
reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo
exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo
que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as
condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)
Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais
de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente
as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de
posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo
(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa
O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias
normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de
finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem
realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute
inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)
Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante
entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de
indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de
eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a
23
casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece
porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da
ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas
significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias
sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca
controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias
objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que
encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano
Em sua Ontologia do ser social ele afirma
Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada
vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as
decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da
totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse
conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa
relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso
porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o
movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da
histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas
etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local
tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que
tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de
transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que
satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do
que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e
consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso
aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)
Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos
individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha
ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias
mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade
oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem
econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo
24
social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve
ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que
historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os
processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem
uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle
destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou
A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a
anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo
incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do
trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer
controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma
infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo
autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais
entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda
organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a
sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)
Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus
ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os
limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de
intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal
qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos
uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana
(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do
pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os
limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir
para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta
ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo
No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras
experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao
nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25
pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas
relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi
drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente
desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses
capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de
regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo
resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica
reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas
experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da
humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua
loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a
accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com
seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social
passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees
marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de
regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos
moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a
consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria
redenccedilatildeo universal
O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos
ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as
acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels
salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido
um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o
movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)
O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se
realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico
do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana
de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo
comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o
26
comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a
forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo
nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao
desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma
sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o
comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no
fim da histoacuteria[22]
Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento
marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute
capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e
desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo
ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso
numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]
mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou
natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana
Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees
que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim
contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das
caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da
limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os
homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara
manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal
Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos
extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a
violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo
Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do
capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre
a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os
revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila
27
material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a
utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de
recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o
revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico
Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder
material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria
se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz
de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e
argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar
o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p
497)
Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos
(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o
discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista
muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)
que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no
encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as
sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece
ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um
discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos
constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das
individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades
eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano
mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em
campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar
plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de
sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar
sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio
colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel
convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e
28
culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem
respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes
subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]
Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)
de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio
das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto
natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive
atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie
No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias
naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o
crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda
escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-
sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo
contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da
incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees
materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos
afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus
processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos
inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos
da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades
humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute
o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses
trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)
Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas
produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa
penetrante passagem sobre o tema lemos
O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto
dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de
29
desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse
nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos
demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua
vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado
naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo
determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas
relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu
proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx
1973 pp 89-90)
Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos
sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a
centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos
aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza
e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham
vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a
intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o
equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente
econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida
social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da
permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas
relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito
da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas
universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada
das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os
homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria
mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das
forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo
adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos
homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia
O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se
compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30
neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo
do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo
pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso
histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive
violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste
(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso
resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na
sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os
antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por
ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses
das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos
Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica
natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades
reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a
estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico
Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da
cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios
juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da
sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela
que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de
duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que
complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo
concreto
O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em
oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem
de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade
desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem
leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da
realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na
comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na
31
sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como
meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes
estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser
profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real
eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem
eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma
soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de
uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)
Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e
imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos
privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma
revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res
publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja
eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da
proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a
violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica
consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a
accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a
vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma
alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento
Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a
essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o
proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua
violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre
dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo
de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a
perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a
violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt
segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser
a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente
32
pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o
antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as
relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de
supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano
Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder
dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se
faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de
violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o
poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa
revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades
viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento
humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo
profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma
resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como
desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo
Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado
como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos
do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute
poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de
propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)
Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de
dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao
contraacuterio
Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como
classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como
classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as
condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em
geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)
33
Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx
1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo
poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer
forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas
formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar
em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis
Quanto a isso eacute importante relembrar que
O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos
limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute
capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade
Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais
ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e
espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a
fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)
Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-
violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo
violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-
socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo
(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-
humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo
humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a
rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios
quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de
coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras
A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um
anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo
(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim
negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se
natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para
natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a
34
contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo
(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-
humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-
violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que
assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)
Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx
caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu
proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios
empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo
entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez
de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do
humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-
capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo
dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os
torna incompatiacuteveis[27]
IV Agrave guisa de conclusatildeo
Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de
Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda
distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de
Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do
pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas
que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio
da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente
sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir
de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns
aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram
envolvidos pela leitura arendtiana
35
Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem
ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem
duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho
Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e
estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do
solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo
neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade
com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se
reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos
intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro
porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento
marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual
formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco
em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e
Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para
o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e
revolucionaacuterios
Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo
XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho
caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos
revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso
imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob
muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes
natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca
demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo
sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas
proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os
argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro
sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas
ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma
36
verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto
que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute
cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido
V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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Notas
38
Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo
Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo
teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a
estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o
ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque
somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a
abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos
que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e
isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a
accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num
constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas
produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou
menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de
consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados
a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo
antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em
termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e
inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho
como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt
1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels
segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte
daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos
homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e
39
osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida
real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos
desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo
corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade
efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa
produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma
aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio
Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para
produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas
necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a
Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de
qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas
formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na
constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso
ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro
Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se
distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo
reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele
duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo
(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute
afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels
1986 p 19)
40
[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade
esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas
daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades
capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas
carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e
propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que
determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a
p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que
sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram
transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em
grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos
paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital
Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo
crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos
estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem
consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo
social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas
conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento
marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo
implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de
estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo
significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo
dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma
luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude
do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de
uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o
41
entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada
dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas
caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos
do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no
fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje
muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o
sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e
saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente
a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente
severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de
personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de
objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de
produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e
personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar
condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua
perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento
universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social
como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p
85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que
apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo
aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do
esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e
complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em
relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios
revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA
transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em
42
43
massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
-
A visatildeo marxista da atividade revolucionaacuteria seria entatildeo o resultado da
imputaccedilatildeo inconsciente de qualidades da fabricaccedilatildeo agrave accedilatildeo a qual por meio da
violecircncia[10] e orientada pelos mesmos criteacuterios de meios e fins que regem a
fabricaccedilatildeo faria os homens efetuarem o parto da nova sociedade cujo rebento
encontra-se emaranhado nas iacutentimas contradiccedilotildees da velha formaccedilatildeo social Seria
justamente esta exaltaccedilatildeo da violecircncia da ldquouacuteltima ratiordquo tiacutepica das relaccedilotildees entre
os baacuterbaros e caracteriacutestica da condiccedilatildeo do escravo[11] a demonstraccedilatildeo de que
em Marx predomina uma ldquohostilidade antitradicional ao discursordquo agrave busca do
consenso agrave poliacutetica (Arendt 1972 p 50)
Nesse contexto o pensamento poliacutetico de Marx representa segundo Arendt
o fim de uma trajetoacuteria do pensamento poliacutetico tradicional iniciada pelas filosofias
de Platatildeo e Aristoacuteteles Pois com esses pensadores a filosofia teria num duplo
salto se distanciado dos assuntos humanos onde reina a confusatildeo e a ilusatildeo
para retornar a eles ilustrada pela razatildeo isto eacute ldquopara [esta a razatildeo] impor seus
padrotildees aos assuntos humanosrdquo (Arendt 1972 p 44) fato altamente positivo que
teria demarcado o iniacutecio de uma fecunda relaccedilatildeo entre a filosofia e os assuntos
humanos entre ela e a poliacutetica Enquanto com Marx desgraccediladamente teria
acontecido o oposto visto que ele ldquorepudiou a Filosofia para poder lsquorealizaacute-larsquo na
poliacuteticardquo (Arendt 1972 p 44) Para ele em vez de a filosofia permanecer uma
espeacutecie de reflexatildeo sistemaacutetica e criacutetica constituiacuteda de certo modo apartada do
processo histoacuterico ela passou a emanar da proacutepria histoacuteria ldquoou antes a
consciecircncia poliacutetica [deriva] da consciecircncia histoacutericardquo (Arendt 1972 p 114) E
ainda segundo Arendt um dos fundamentos desta concepccedilatildeo reside na
identificaccedilatildeo estabelecida no mundo moderno entre sentido e fim Por meio dela
o sentido como termo que expressa o significado de um acontecimento ndash portanto
resultante de uma explicaccedilatildeo post factum ndash foi transformado em fim de
significado de acontecimentos passados passou a preacute-idear situaccedilotildees futuras
Com isso as accedilotildees individuais e instrumentais (realizadas com a finalidade de)
que explicam o processo de trabalho e seus resultados passaram a servir de
modelo para a explicaccedilatildeo do porquecirc de o indiviacuteduo (eou a sociedade) ser o que eacute
11
e portanto executar esta atividade (eou possuir tais caracteriacutesticas) ndash ie como
se o presente fosse a manifestaccedilatildeo ldquoaqui e agorardquo da necessidade imanente de
atos passados Enfim ao considerar as sociedades modernas degradadoras do
sentido em fim Arendt avalia que o marxismo parte integrante desta modernidade
levou esta degradaccedilatildeo agraves uacuteltimas consequumlecircncias e assim transformou a histoacuteria
em teleologia
Pois bem se ainda segundo Arendt a teoria da histoacuteria como fabricaccedilatildeo
natildeo eacute exclusiva do pensamento marxista mas constitui uma caracteriacutestica do
pensamento poliacutetico moderno aquele se distingue
de todas as demais teorias em que a noccedilatildeo de ldquofazer a histoacuteriardquo encontrou abrigo
somente [pelo] fato de apenas ele ter percebido que se se toma a histoacuteria como o
objeto de um processo de fabricaccedilatildeo ou elaboraccedilatildeo deve sobrevir um momento
em que esse objeto eacute completado e que desde que se imagina ser possiacutevel fazer
a histoacuteria natildeo se pode escapar agrave consequumlecircncia de que haveraacute um fim para a
histoacuteria (Arendt 1972 p 114)
Para que entatildeo os marxistas respondem aos apocaliacutepticos que
advogam o fim das ideologias e da histoacuteria se com um golpe de matildeo o proacuteprio
Marx eliminou a ambas Nesta visatildeo tal como o objeto que inicialmente preacute-
ideado na cabeccedila do artesatildeo completa seu ciclo de produccedilatildeo torna-se objetivo
finda a histoacuteria chegaria ao seu fim com a realizaccedilatildeo da filosofia pelo proletariado
ndash nos invertidos termos hegelianos seria este o momento da autoconscientizaccedilatildeo
do Espiacuterito da plena identificaccedilatildeo entre conceito e objeto entre pensamento e
realidade ndash fato que demarcaria o controle da vida humana nos mesmos moldes
em que o artesatildeo domina a mateacuteria a ser plasmada e lhe fornece uma forma final
Mas se Marx eacute tratado como uma espeacutecie de Hegel materialista eacute certo que
as ideacuteias de ambos natildeo satildeo idecircnticas Tanto que em oposiccedilatildeo agrave sua
predecessora hegeliana a coruja de Minerva marxiana natildeo alccedila vocirco somente ao
crepuacutesculo ela capta conceitualmente as condiccedilotildees em que este pode ocorrer e
12
assim auxilia na sua realizaccedilatildeo Outrossim mais importante do que saber se esta
caracteriacutestica do pensamento de Marx eacute adequadamente entendida por Arendt eacute
saber que para ela esta caracteriacutestica expressa um determinismo que torna
supeacuterflua qualquer discussatildeo sobre as finalidades e o conteuacutedo dos processos
sociais dado que a histoacuteria fabricada modelada como se fosse um objeto pelo
proletariado demiuacutergico torna a palavra o discurso um mero instrumento de
justificaccedilatildeo ideoloacutegica de ideacuteias preconcebidas a serem materializadas Foi
partindo desses pressupostos que Arendt pocircde afirmar
O que era entatildeo inexplicaacutevel na histoacuteria [a saber os muacuteltiplos interesses
conflitantes que tornam a accedilatildeo poliacutetica ineficaz no alcance de seus objetivos e a
existecircncia de um sentido no processo histoacuterico] passa agora a ser visto como o
reflexo de um significado que seguramente era tanto um produto humano quanto o
desenvolvimento teacutecnico do mundo O problema de humanizar os assuntos
poliacutetico-histoacutericos resumia-se consequumlentemente em descobrir como dominar
nossas proacuteprias accedilotildees assim como dominamos nossa capacidade produtiva ou
em outras palavras como ldquofazerrdquo histoacuteria assim como fazemos outras coisas Uma
vez que isso seja alcanccedilado com a vitoacuteria do proletariado natildeo precisaremos mais
de ideologias Mas ateacute laacute todas as accedilotildees poliacuteticas preceitos legais e
pensamentos espirituais continuaratildeo escondendo os motivos inconfessos de uma
sociedade que somente finge agir politicamente mas que na verdade ldquofaz
histoacuteriardquo ainda que de uma maneira inconsciente isto eacute natildeo-humana (Arendt
2002 p 63)
Natildeo constituindo a esfera do pleno exerciacutecio do debate de ideacuteias entre
indiviacuteduos livres e iguais ndash indiviacuteduos que por meio do uso intenso da palavra do
discurso do muacutetuo esclarecimento estabelecem consensos mais ou menos gerais
sobre os fundamentos e as finalidades da accedilatildeo ndash a poliacutetica atual constitui um
simulacro da poliacutetica autecircntica Tal como a entende Arendt esta constitui uma
esfera (puacuteblica) que antes de qualquer outra coisa deve estar apartada da
violecircncia na medida em que esta nega a palavra o discurso o debate e portanto
a accedilatildeo Definindo assim o que satildeo meios e fins o que eacute essencial e o que eacute
imposiccedilatildeo extriacutenseca agrave poliacutetica Arendt reitera que ldquoo poder eacute de fato a essecircncia
13
de todo governo mas natildeo a violecircnciardquo (Arendt 1994 p 40) Por conseguinte
sendo de natureza instrumental a violecircncia ldquocomo todos os meios sempre
depende da orientaccedilatildeo e da justificaccedilatildeo pelo fim que almeja E aquilo que
necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser a essecircncia de nadardquo (Arendt
1994 p 41) O poder encontra sua legitimidade no passado a violecircncia se
justifica pelas consequumlecircncias futuras aquele pela sua constituiccedilatildeo esta pelos
seus objetivos Em razatildeo disso ldquoa violecircncia pode ser justificaacutevel mas nunca seraacute
legiacutetimardquo (Arendt 1994 p 41) Enfim ao vincularem a violecircncia ao poder as
concepccedilotildees poliacuteticas hegemocircnicas dentre elas o marxismo demonstram a
incompreensatildeo de que aqueles satildeo na verdade opostos ldquoonde um domina
absolutamente o outro estaacute ausenterdquo (Arendt 1994 p 44)
Para natildeo cindir a argumentaccedilatildeo criacutetica e com isso tornaacute-la
demasiadamente prolixa retornaremos mais adiante a estas afirmaccedilotildees de
Hannah Arendt sobre poliacutetica e violecircncia Por ora apoacutes termos descrito algumas
categorias centrais do pensamento arendtiano e em especiacutefico os fundamentos
de sua criacutetica agrave relaccedilatildeo entre poliacutetica e violecircncia em Marx passemos na mesma
sequumlecircncia de ideacuteias desenvolvida ateacute aqui ao confronto dessas reflexotildees com
aquelas que a nosso ver correspondem adequadamente tanto ao corpo quanto
ao espiacuterito da obra marxiana
III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
Consideramos desnecessaacuterio demonstrar ad nauseam como a concepccedilatildeo
de trabalho em Marx difere substancialmente daquelas atividades que Arendt
denomina pelos vocaacutebulos trabalho e fabricaccedilatildeo pois para o nosso objetivo
basta que o realizemos apenas em suas linhas gerais Assim em primeiro lugar eacute
necessaacuterio relembrar que ao contraacuterio da concepccedilatildeo arendtiana na obra de Marx
o trabalho natildeo consiste numa atividade que nos vincularia mais ao mundo dos
animais do que ao dos seres humanos propriamente ditos Para ele muito distante
14
de qualquer ilusatildeo acerca de uma vida sem trabalho[12] esta atividade constitui um
momento efetivamente fundante e fundamental da vida humana sem a qual aiacute
sim natildeo nos distinguiriacuteamos em absolutamente nada dos proacuteprios animais[13] Em
termos precisos podemos dizer que o animal natildeo se relaciona com a natureza
ele apenas vive nela eacute sua parte integrante[14] natildeo se distinguindo dela como um
ser consciente o animal eacute portanto incapaz de estabelecer uma mediaccedilatildeo
regulada conscientemente controlada com a natureza (Marx 1985 p 149)
apenas respondendo com maior ou menor labilidade agraves determinaccedilotildees e agraves
constantes mudanccedilas de seu haacutebitat O ser humano por sua vez age de maneira
preacute-ideada em sua atividade metaboacutelica pois em todos os momentos do processo
de trabalho lhe ldquoeacute exigida a vontade orientada a um fimrdquo (Marx 1985 p 150)
Assim o sujeito que trabalha ldquonatildeo apenas efetua uma transformaccedilatildeo da forma da
mateacuteria natural realiza ao mesmo tempo na mateacuteria natural seu objetivo que ele
sabe que determina como lei a espeacutecie e o modo de sua atividade e ao qual tem
de subordinar sua vontaderdquo (Marx 1985 p 150) Natildeo sendo portanto a mera
expressatildeo de determinaccedilotildees ou epifenocircmenos bioloacutegicos o trabalho eacute uma
atividade na qual inevitavelmente entrelaccedilam-se o pensar e o fazer a
consciecircncia e a accedilatildeo com aquela orientando esta para transformar a mateacuteria com
vistas a dar-lhe uma forma adequada agrave satisfaccedilatildeo de alguma necessidade
humana A ideacuteia mediada pelo trabalho cristaliza-se no objeto objeto que longe
de ser meramente natural eacute a manifestaccedilatildeo material da subjetividade humana
posto que soacute existe em razatildeo desta Tanto que no final temos que ldquoo trabalho
estaacute objetivado e o objeto trabalhadordquo (Marx 1985 p 151) num mesmo ato a
subjetividade exteriorizou-se e a materialidade tornou-se subjetiva[15] E eacute claro
como esta objetivaccedilatildeo eacute resultado de accedilotildees conscientes o metabolismo dos
homens em relaccedilatildeo agrave natureza eacute muito mais dinacircmico mutante do que aquele
efetuado pelos animais resultando em formas materiais e sociais
permanentemente alteradas ocorrendo a mesma coisa com a proacutepria
subjetividade humana
15
Sendo uma atividade humanamente produtiva o trabalho natildeo eacute apenas a
relaccedilatildeo do homem com a natureza eacute tambeacutem uma relaccedilatildeo que ocorre entre os
proacuteprios homens ndash e verdadeiramente como trabalho soacute existe a partir desta
relaccedilatildeo Ainda em sua juventude num texto seminal para a elaboraccedilatildeo de suas
reflexotildees posteriores Marx nos diz que o homem ldquosoacute eacute um ser consciente quer
dizer a sua vida constitui para ele um objeto porque eacute um ser geneacuterico
Unicamente por isso eacute que sua atividade surge como atividade livrerdquo (Marx 1985
p 165) Se natildeo fosse um ser social geneacuterico produto e produtor de si e do
gecircnero o ser humano natildeo possuiria as faculdades (consciecircncia linguagem) sem
as quais paradoxalmente o proacuteprio trabalho natildeo existiria E que simultaneamente
como dissemos permitem o aprimoramento e a expansatildeo das fronteiras da vida
humana (individual e coletiva) para muito aleacutem daquelas a que estatildeo restritos os
seres vivos naturais[16]
Nesse caso parece-nos oacutebvio que eacute completamente irrelevante saber se
uma atividade produtiva resulta em produtos mais ou menos duraacuteveis ndash por
exemplo em alimentos ou objetos do mobiliaacuterio ndash para classificaacute-la como estando
mais proacutexima ou mais distante da vida propriamente humana Seja numa
sociedade especiacutefica ou ao longo da histoacuteria humana um produto pode durar mais
ou menos tempo devido a um sem-nuacutemero de fatores tais como os materiais e a
tecnologia empregados as relaccedilotildees sociais sob as quais foi produzido as classes
eou grupos sociais que o utilizaratildeo ndash definindo por exemplo a velocidade e o
perfil de sua obsolescecircncia ou seja se esta eacute real materialmente efetiva ou
socialmente condicionada ndash entre outros e natildeo apenas devido agrave maior ou menor
proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica dos indiviacuteduos A rigor a produccedilatildeo de um
alimento ou medicamento por meio de procedimentos complexos e sofisticados
mas cujo consumo eacute quase imediato (para Arendt ldquoproduto do trabalhordquo)
certamente expressa niacuteveis mais elevados de humanizaccedilatildeo do que a produccedilatildeo de
uma tosca mesa de madeira que perdura seacuteculos passando de geraccedilatildeo a
geraccedilatildeo (Marx 1985 ldquoproduto da fabricaccedilatildeordquo)
16
Essas observaccedilotildees acerca da relaccedilatildeo entre as atividades produtivas e a
durabilidade de suas produccedilotildees natildeo significa em hipoacutetese alguma que a
durabilidade ou natildeo de um produto seja irrelevante para os indiviacuteduos e a
sociedade em geral ateacute mesmo porque os produtos satildeo elementos constitutivos e
condicionantes de certas caracteriacutesticas dos processos de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo
das formaccedilotildees sociais Significa apenas que per se ela natildeo eacute relevante para
mensurar o niacutevel de humanizaccedilatildeo da atividade e das qualificaccedilotildees subjetivas nela
envolvidas Assim nas sociedades capitalistas por exemplo saber se um
determinado objeto constitui parte do maquinaacuterio ou da edificaccedilatildeo (capital fixo) ou
entatildeo se eacute apenas insumo mateacuteria-prima ou meio de subsistecircncia (capital
circulante) eacute significativo prioritariamente em razatildeo de que as proporccedilotildees de seus
respectivos usos e o seu periacuteodo de rotaccedilatildeo afetam de maneira decisiva as taxas
de lucro do capital investido Aleacutem do mais ldquoo fato de um valor de uso aparecer
como mateacuteria-prima meio de trabalho ou produto depende totalmente de sua
funccedilatildeo determinada no processo de trabalho da posiccedilatildeo que nele ocupa e com a
mudanccedila dessa posiccedilatildeo variam essas determinaccedilotildeesrdquo (Marx 1985 p 152)
Quase desnecessaacuterio dizer que tal posiccedilatildeo tambeacutem varia de acordo com o niacutevel
de desenvolvimento das forccedilas produtivas e das relaccedilotildees sociais que constituem a
sociedade em questatildeo Em siacutentese se natildeo podemos definir um objeto como
sendo o resultado de uma atividade inferior ou superior na hierarquia das
atividades humanas (da vita activa arendtiana) devido agrave sua durabilidade[17] ou agrave
sua proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica (agrave manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo do corpo)
qualquer tentativa de mensuraccedilatildeo sob este prisma nos parece completamente
arbitraacuteria inclusive eacute claro a que se funda na distinccedilatildeo arendtiana entre trabalho
e fabricaccedilatildeo
Enfatizar estas caracteriacutesticas do trabalho tambeacutem eacute importante porque
contrariamente agraves qualificaccedilotildees inerentes a ele e agrave fabricaccedilatildeo que de acordo com
Arendt estatildeo diretamente relacionadas agraves qualidades do Animal laborans e do
Homo faber no pensamento marxiano inexiste qualquer menccedilatildeo a uma essecircncia
a-histoacuterica do trabalho isto eacute uma essecircncia que agrave revelia da forma societaacuteria em
17
que a atividade se realiza imprime agrave subjetividade daquele que o executa
inelutaacuteveis qualificaccedilotildees Muito ao contraacuterio As anaacutelises marxianas satildeo
profundamente ancoradas na historicidade dos fenocircmenos naturais e sociais
negando qualquer essencialismo em relaccedilatildeo ao trabalho ou a qualquer outra
atividade bem como ao indiviacuteduo ou grupo de indiviacuteduos que o executa Para
Marx ldquoa essecircncia humana natildeo eacute uma abstraccedilatildeo inerente ao indiviacuteduo singular
Em sua realidade eacute o conjunto das relaccedilotildees sociaisrdquo (Marx 1987 p 13) Por
conseguinte em aberta oposiccedilatildeo agraves proposiccedilotildees arendtianas afirmamos que o
produtivismo natildeo constitui uma caracteriacutestica inerente ao trabalho ndash que com a
ascensatildeo deste agrave esfera puacuteblica teria transbordado as fronteiras da vida privada e
se generalizado socialmente ndash mas sim uma caracteriacutestica que possui suas raiacutezes
nas formas de sociabilidade vigentes no mundo contemporacircneo sejam estas
formas capitalistas ou poacutes-capitalistas[18] Dito de outro modo se o trabalho
assalariado alienado constitui cada vez mais a forma predominante da atividade
produtiva e reprodutiva dos indiviacuteduos nestas sociedades tal desventura natildeo
decorre de uma essecircncia que seja inerente a ele tanto quanto agraves formas preteacuteritas
de trabalho e que tenha se desvencilhado na atualidade das amarras que
limitavam sua expansatildeo A raiz deste fenocircmeno reside no fato de o capital
constituir a relaccedilatildeo social baacutesica das sociedades assinaladas generalizando
aquela forma de trabalho E a propoacutesito do essencialismo produtivista do trabalho
em vaacuterias passagens de sua obra Marx nos mostrou as diferenccedilas existentes
entre as sociedades antigas e as modernas sociedades capitalistas Numa dessas
passagens ele lembra que
Entre os antigos natildeo encontramos uma uacutenica investigaccedilatildeo a propoacutesito de qual a
forma de propriedade etc que seria a mais produtiva que geraria o maacuteximo de
riqueza A riqueza natildeo constituiacutea o objetivo da produccedilatildeo A pesquisa sempre
era sobre qual o tipo de propriedade que geraria os melhores cidadatildeos (Marx
1975 p 80 grifos nossos)
Mesmo em seu acircmbito estritamente privado a propriedade natildeo estava
relacionada prioritariamente aos interesses egoiacutestas do indiviacuteduo mas eram os 18
interesses deste ndash e portanto o uso que fazia daquela ndash que estavam
circunscritos e condicionados pelos interesses da comunidade da qual fazia parte
por mais restrita que esta fosse em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo total Desse modo nestas
formaccedilotildees sociais as atividades produtivas natildeo eram movidas por uma ldquoinerenterdquo
racionalidade produtivista uma racionalidade cujo suposto transbordamento das
fronteiras privadas e o estabelecimento do domiacutenio sobre as outras atividades
caracterizariam ndash segundo Arendt ndash o mundo moderno Em relaccedilatildeo a este sua
principal caracteriacutestica consiste na centralidade na generalizaccedilatildeo e no crescente
predomiacutenio do capital no conjunto das relaccedilotildees sociais Enfim eacute justamente esta
centralidade do capital e suas consequumlecircncias que produz o assalariamento
generalizado dos indiviacuteduos e a subsunccedilatildeo da reproduccedilatildeo socioeconocircmica como
um todo agrave loacutegica produtivista
Numa pequena digressatildeo visando apenas a estreitar as margens de accedilatildeo
das leituras vulgares do marxismo eacute necessaacuterio ressaltar que esta afirmaccedilatildeo da
centralidade do capital nas relaccedilotildees sociais contemporacircneas e do espraiamento
de sua influecircncia pela totalidade social natildeo implica reducionismo econocircmico Na
verdade ela significa apenas a explicitaccedilatildeo de caracteriacutesticas inerentes ao capital
cuja tendecircncia a subsumir a multiplicidade de dimensotildees da vida humana agrave sua
loacutegica acumulatoacuteria expansionista eacute um fato incontestaacutevel ontologicamente
enraizado e racionalmente apreensiacutevel e natildeo um grave equiacutevoco teoacuterico de um
pensamento incapaz de atentar para a complexidade do real Eacute nesse sentido que
comentando a famosa proposiccedilatildeo de Marx segundo a qual ldquoNatildeo eacute a consciecircncia
dos homens que determina o seu ser mas ao contraacuterio eacute o seu ser social que
determina sua consciecircnciardquo[19] (Marx 1982 p 25) Lukaacutecs afirma ldquonesse trecho o
mundo das formas de consciecircncia e seus conteuacutedos natildeo eacute visto como um produto
direto da estrutura econocircmica mas da totalidade do ser social A determinaccedilatildeo da
consciecircncia pelo ser social portanto eacute entendida em seu sentido mais geralrdquo
(Lukaacutecs 1979 p 41) ndash e natildeo como expressatildeo direta mecacircnica e restrita dos
processos econocircmicos
19
Neste toacutepico ateacute o momento detivemo-nos nas distintas concepccedilotildees
acerca do trabalho presentes em Arendt e Marx O caso poreacutem eacute que apesar de
significativas tais concepccedilotildees natildeo circunscrevem sua influecircncia agraves fronteiras
econocircmicas mas extravasam a economia e deitam raiacutezes na totalidade de suas
reflexotildees sobre a vida humana Assim se Arendt tem razatildeo em afirmar que para
Marx o trabalho ndash e a fabricaccedilatildeo apesar da irrelevacircncia desta distinccedilatildeo (trabalho x
fabricaccedilatildeo) no quadro conceitual marxiano ndash eacute tratado como uma atividade
teleoloacutegica cujas relaccedilotildees que estabelece com as outras atividades constitutivas
da vida humana satildeo fundamentais para delinear as caracteriacutesticas da totalidade
social nada justifica sua transposiccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos do trabalho
(concreto) para a concepccedilatildeo de histoacuteria marxiana No entanto eacute justamente isto
que ela faz ao afirmar que em Marx a histoacuteria eacute entendida como um processo
similar ao da fabricaccedilatildeo do artesanato um processo que contemporaneamente
exige a intervenccedilatildeo consciente de um sujeito demiuacutergico ndash o proletariado ndash para
plasmar a nova forma societaacuteria tal como o artesatildeo faz com sua mateacuteria-prima E
igualmente ao afirmar que do mesmo modo que a materializaccedilatildeo do objeto preacute-
ideado expressa o fim do processo gerido pelo artesatildeo a realizaccedilatildeo da sociedade
ldquopreacute-ideadardquo pelo proletariado significaria o fim da histoacuteria
Ora uma das questotildees mais complexas do pensamento social fruto de
inuacutemeras polecircmicas teorias e tratados ao longo dos uacuteltimos seacuteculos ndash
especialmente apoacutes o advento da sociologia ndash eacute a articulaccedilatildeo das accedilotildees
individuais e a reproduccedilatildeo da totalidade social E mesmo certos da impossibilidade
de adentrar no emaranhado de questotildees suscitado pelo tema natildeo podemos omitir
a informaccedilatildeo de que uma leitura criteriosa dos textos marxianos demonstra sem
grande dificuldade a improcedecircncia das criacuteticas de Hannah Arendt De modo
algum condiz com o ldquoespiacuteritordquo da obra marxiana a identificaccedilatildeo da reproduccedilatildeo
social como um todo e nem dos processos de transiccedilatildeo de uma forma societaacuteria a
outra ao modus operandi do trabalho O que natildeo significa por sua vez que a
instabilidade econocircmica e social natildeo fosse objeto de suas preocupaccedilotildees A bem
da verdade sendo o primeiro a entender a centralidade do trabalho e suas
20
consequumlecircncias na produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana Marx se assenhoreou
desde os Manuscritos de 1844 de conhecimentos suficientemente significativos
para criticar em relaccedilatildeo agravequele aspecto inicialmente citado das relaccedilotildees entre
indiviacuteduo e sociedade tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo Assim em
vez da naturalizaccedilatildeo da histoacuteria humana ou da arbitrariedade da vontade e da
razatildeo em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmaccedilatildeo dos
seres humanos como autoprodutores de sua proacutepria histoacuteria e simultaneamente
uma criacutetica agrave hipostasia das potencialidades da razatildeo e das forccedilas humanas nesta
autoproduccedilatildeo Invariavelmente suas anaacutelises reiteram que ldquoOs homens fazem
sua proacutepria histoacuteria mas natildeo a fazem como querem natildeo a fazem sob
circunstacircncias de sua proacutepria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam
diretamente legadas e transmitidas pelo passadordquo (Marx 1986 p 17 grifos
nossos) Nos dias atuais natildeo eacute difiacutecil perceber como por si soacute esta frase nos
mostra quatildeo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e
da realpolitik que cada qual ao seu modo como faces de uma mesma moeda
dominam os discursos poliacuteticos e econocircmicos em voga
Ainda no que diz respeito agrave questatildeo do sujeito demiuacutergico e do finalismo
histoacuterico eacute necessaacuterio que se entenda que mesmo em sua fastidiosa reproduccedilatildeo
cotidiana o trabalho eacute sempre um ato de criaccedilatildeo criaccedilatildeo natildeo apenas de coisas
novas de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma
humanamente apropriada mas criaccedilatildeo da proacutepria subjetividade humana que se
renova a partir das experiecircncias possibilitadas pelos meios e resultados de sua
produccedilatildeo e pelas relaccedilotildees sociais que os envolvem Tendo em mente esta
dinacircmica intriacutenseca agrave atividade vital dos seres humanos e ao mesmo tempo o
caraacuteter que para Marx a totalidade do real[20] assume como concreto pensado
(Marx 1982 p 15) nem a mais poderosa das inteligecircncias humanas tampouco o
concurso delas sob a forma do coletivo partidaacuterio pode em termos conceituais
apreender subsumir absolutamente o real ao pensamento ndash e muito menos
sujeitar as proacuteprias relaccedilotildees sociais a um controle assemelhado ao das teacutecnicas
produtivas
21
Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final
entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja
rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz
consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de
Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo
sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele
ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von
Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia
hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas
sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais
geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de
onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta
observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica
especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente
pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto
natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o
proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela
histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e
seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o
conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade
histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens
em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo
possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas
Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo
de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos
individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica
intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos
altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que
nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que
22
em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a
divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente
a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de
todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada
espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das
diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como
reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori
e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do
trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural
interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado
subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo
social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo
reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo
exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo
que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as
condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)
Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais
de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente
as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de
posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo
(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa
O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias
normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de
finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem
realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute
inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)
Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante
entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de
indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de
eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a
23
casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece
porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da
ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas
significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias
sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca
controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias
objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que
encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano
Em sua Ontologia do ser social ele afirma
Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada
vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as
decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da
totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse
conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa
relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso
porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o
movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da
histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas
etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local
tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que
tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de
transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que
satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do
que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e
consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso
aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)
Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos
individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha
ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias
mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade
oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem
econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo
24
social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve
ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que
historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os
processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem
uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle
destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou
A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a
anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo
incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do
trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer
controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma
infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo
autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais
entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda
organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a
sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)
Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus
ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os
limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de
intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal
qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos
uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana
(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do
pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os
limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir
para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta
ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo
No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras
experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao
nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25
pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas
relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi
drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente
desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses
capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de
regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo
resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica
reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas
experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da
humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua
loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a
accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com
seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social
passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees
marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de
regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos
moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a
consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria
redenccedilatildeo universal
O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos
ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as
acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels
salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido
um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o
movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)
O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se
realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico
do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana
de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo
comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o
26
comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a
forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo
nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao
desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma
sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o
comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no
fim da histoacuteria[22]
Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento
marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute
capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e
desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo
ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso
numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]
mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou
natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana
Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees
que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim
contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das
caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da
limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os
homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara
manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal
Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos
extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a
violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo
Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do
capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre
a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os
revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila
27
material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a
utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de
recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o
revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico
Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder
material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria
se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz
de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e
argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar
o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p
497)
Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos
(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o
discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista
muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)
que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no
encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as
sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece
ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um
discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos
constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das
individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades
eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano
mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em
campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar
plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de
sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar
sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio
colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel
convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e
28
culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem
respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes
subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]
Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)
de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio
das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto
natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive
atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie
No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias
naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o
crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda
escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-
sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo
contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da
incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees
materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos
afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus
processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos
inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos
da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades
humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute
o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses
trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)
Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas
produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa
penetrante passagem sobre o tema lemos
O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto
dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de
29
desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse
nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos
demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua
vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado
naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo
determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas
relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu
proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx
1973 pp 89-90)
Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos
sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a
centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos
aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza
e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham
vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a
intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o
equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente
econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida
social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da
permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas
relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito
da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas
universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada
das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os
homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria
mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das
forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo
adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos
homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia
O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se
compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30
neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo
do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo
pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso
histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive
violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste
(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso
resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na
sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os
antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por
ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses
das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos
Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica
natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades
reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a
estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico
Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da
cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios
juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da
sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela
que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de
duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que
complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo
concreto
O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em
oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem
de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade
desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem
leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da
realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na
comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na
31
sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como
meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes
estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser
profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real
eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem
eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma
soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de
uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)
Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e
imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos
privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma
revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res
publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja
eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da
proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a
violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica
consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a
accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a
vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma
alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento
Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a
essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o
proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua
violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre
dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo
de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a
perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a
violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt
segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser
a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente
32
pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o
antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as
relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de
supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano
Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder
dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se
faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de
violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o
poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa
revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades
viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento
humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo
profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma
resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como
desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo
Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado
como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos
do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute
poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de
propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)
Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de
dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao
contraacuterio
Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como
classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como
classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as
condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em
geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)
33
Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx
1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo
poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer
forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas
formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar
em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis
Quanto a isso eacute importante relembrar que
O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos
limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute
capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade
Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais
ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e
espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a
fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)
Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-
violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo
violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-
socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo
(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-
humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo
humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a
rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios
quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de
coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras
A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um
anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo
(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim
negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se
natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para
natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a
34
contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo
(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-
humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-
violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que
assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)
Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx
caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu
proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios
empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo
entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez
de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do
humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-
capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo
dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os
torna incompatiacuteveis[27]
IV Agrave guisa de conclusatildeo
Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de
Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda
distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de
Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do
pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas
que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio
da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente
sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir
de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns
aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram
envolvidos pela leitura arendtiana
35
Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem
ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem
duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho
Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e
estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do
solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo
neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade
com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se
reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos
intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro
porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento
marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual
formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco
em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e
Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para
o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e
revolucionaacuterios
Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo
XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho
caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos
revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso
imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob
muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes
natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca
demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo
sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas
proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os
argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro
sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas
ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma
36
verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto
que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute
cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido
V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio
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______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002
Notas
38
Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo
Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo
teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a
estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o
ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque
somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a
abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos
que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e
isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a
accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num
constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas
produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou
menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de
consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados
a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo
antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em
termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e
inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho
como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt
1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels
segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte
daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos
homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e
39
osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida
real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos
desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo
corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade
efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa
produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma
aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio
Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para
produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas
necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a
Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de
qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas
formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na
constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso
ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro
Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se
distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo
reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele
duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo
(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute
afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels
1986 p 19)
40
[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade
esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas
daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades
capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas
carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e
propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que
determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a
p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que
sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram
transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em
grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos
paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital
Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo
crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos
estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem
consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo
social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas
conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento
marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo
implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de
estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo
significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo
dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma
luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude
do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de
uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o
41
entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada
dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas
caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos
do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no
fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje
muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o
sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e
saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente
a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente
severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de
personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de
objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de
produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e
personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar
condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua
perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento
universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social
como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p
85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que
apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo
aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do
esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e
complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em
relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios
revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA
transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em
42
43
massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
-
e portanto executar esta atividade (eou possuir tais caracteriacutesticas) ndash ie como
se o presente fosse a manifestaccedilatildeo ldquoaqui e agorardquo da necessidade imanente de
atos passados Enfim ao considerar as sociedades modernas degradadoras do
sentido em fim Arendt avalia que o marxismo parte integrante desta modernidade
levou esta degradaccedilatildeo agraves uacuteltimas consequumlecircncias e assim transformou a histoacuteria
em teleologia
Pois bem se ainda segundo Arendt a teoria da histoacuteria como fabricaccedilatildeo
natildeo eacute exclusiva do pensamento marxista mas constitui uma caracteriacutestica do
pensamento poliacutetico moderno aquele se distingue
de todas as demais teorias em que a noccedilatildeo de ldquofazer a histoacuteriardquo encontrou abrigo
somente [pelo] fato de apenas ele ter percebido que se se toma a histoacuteria como o
objeto de um processo de fabricaccedilatildeo ou elaboraccedilatildeo deve sobrevir um momento
em que esse objeto eacute completado e que desde que se imagina ser possiacutevel fazer
a histoacuteria natildeo se pode escapar agrave consequumlecircncia de que haveraacute um fim para a
histoacuteria (Arendt 1972 p 114)
Para que entatildeo os marxistas respondem aos apocaliacutepticos que
advogam o fim das ideologias e da histoacuteria se com um golpe de matildeo o proacuteprio
Marx eliminou a ambas Nesta visatildeo tal como o objeto que inicialmente preacute-
ideado na cabeccedila do artesatildeo completa seu ciclo de produccedilatildeo torna-se objetivo
finda a histoacuteria chegaria ao seu fim com a realizaccedilatildeo da filosofia pelo proletariado
ndash nos invertidos termos hegelianos seria este o momento da autoconscientizaccedilatildeo
do Espiacuterito da plena identificaccedilatildeo entre conceito e objeto entre pensamento e
realidade ndash fato que demarcaria o controle da vida humana nos mesmos moldes
em que o artesatildeo domina a mateacuteria a ser plasmada e lhe fornece uma forma final
Mas se Marx eacute tratado como uma espeacutecie de Hegel materialista eacute certo que
as ideacuteias de ambos natildeo satildeo idecircnticas Tanto que em oposiccedilatildeo agrave sua
predecessora hegeliana a coruja de Minerva marxiana natildeo alccedila vocirco somente ao
crepuacutesculo ela capta conceitualmente as condiccedilotildees em que este pode ocorrer e
12
assim auxilia na sua realizaccedilatildeo Outrossim mais importante do que saber se esta
caracteriacutestica do pensamento de Marx eacute adequadamente entendida por Arendt eacute
saber que para ela esta caracteriacutestica expressa um determinismo que torna
supeacuterflua qualquer discussatildeo sobre as finalidades e o conteuacutedo dos processos
sociais dado que a histoacuteria fabricada modelada como se fosse um objeto pelo
proletariado demiuacutergico torna a palavra o discurso um mero instrumento de
justificaccedilatildeo ideoloacutegica de ideacuteias preconcebidas a serem materializadas Foi
partindo desses pressupostos que Arendt pocircde afirmar
O que era entatildeo inexplicaacutevel na histoacuteria [a saber os muacuteltiplos interesses
conflitantes que tornam a accedilatildeo poliacutetica ineficaz no alcance de seus objetivos e a
existecircncia de um sentido no processo histoacuterico] passa agora a ser visto como o
reflexo de um significado que seguramente era tanto um produto humano quanto o
desenvolvimento teacutecnico do mundo O problema de humanizar os assuntos
poliacutetico-histoacutericos resumia-se consequumlentemente em descobrir como dominar
nossas proacuteprias accedilotildees assim como dominamos nossa capacidade produtiva ou
em outras palavras como ldquofazerrdquo histoacuteria assim como fazemos outras coisas Uma
vez que isso seja alcanccedilado com a vitoacuteria do proletariado natildeo precisaremos mais
de ideologias Mas ateacute laacute todas as accedilotildees poliacuteticas preceitos legais e
pensamentos espirituais continuaratildeo escondendo os motivos inconfessos de uma
sociedade que somente finge agir politicamente mas que na verdade ldquofaz
histoacuteriardquo ainda que de uma maneira inconsciente isto eacute natildeo-humana (Arendt
2002 p 63)
Natildeo constituindo a esfera do pleno exerciacutecio do debate de ideacuteias entre
indiviacuteduos livres e iguais ndash indiviacuteduos que por meio do uso intenso da palavra do
discurso do muacutetuo esclarecimento estabelecem consensos mais ou menos gerais
sobre os fundamentos e as finalidades da accedilatildeo ndash a poliacutetica atual constitui um
simulacro da poliacutetica autecircntica Tal como a entende Arendt esta constitui uma
esfera (puacuteblica) que antes de qualquer outra coisa deve estar apartada da
violecircncia na medida em que esta nega a palavra o discurso o debate e portanto
a accedilatildeo Definindo assim o que satildeo meios e fins o que eacute essencial e o que eacute
imposiccedilatildeo extriacutenseca agrave poliacutetica Arendt reitera que ldquoo poder eacute de fato a essecircncia
13
de todo governo mas natildeo a violecircnciardquo (Arendt 1994 p 40) Por conseguinte
sendo de natureza instrumental a violecircncia ldquocomo todos os meios sempre
depende da orientaccedilatildeo e da justificaccedilatildeo pelo fim que almeja E aquilo que
necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser a essecircncia de nadardquo (Arendt
1994 p 41) O poder encontra sua legitimidade no passado a violecircncia se
justifica pelas consequumlecircncias futuras aquele pela sua constituiccedilatildeo esta pelos
seus objetivos Em razatildeo disso ldquoa violecircncia pode ser justificaacutevel mas nunca seraacute
legiacutetimardquo (Arendt 1994 p 41) Enfim ao vincularem a violecircncia ao poder as
concepccedilotildees poliacuteticas hegemocircnicas dentre elas o marxismo demonstram a
incompreensatildeo de que aqueles satildeo na verdade opostos ldquoonde um domina
absolutamente o outro estaacute ausenterdquo (Arendt 1994 p 44)
Para natildeo cindir a argumentaccedilatildeo criacutetica e com isso tornaacute-la
demasiadamente prolixa retornaremos mais adiante a estas afirmaccedilotildees de
Hannah Arendt sobre poliacutetica e violecircncia Por ora apoacutes termos descrito algumas
categorias centrais do pensamento arendtiano e em especiacutefico os fundamentos
de sua criacutetica agrave relaccedilatildeo entre poliacutetica e violecircncia em Marx passemos na mesma
sequumlecircncia de ideacuteias desenvolvida ateacute aqui ao confronto dessas reflexotildees com
aquelas que a nosso ver correspondem adequadamente tanto ao corpo quanto
ao espiacuterito da obra marxiana
III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
Consideramos desnecessaacuterio demonstrar ad nauseam como a concepccedilatildeo
de trabalho em Marx difere substancialmente daquelas atividades que Arendt
denomina pelos vocaacutebulos trabalho e fabricaccedilatildeo pois para o nosso objetivo
basta que o realizemos apenas em suas linhas gerais Assim em primeiro lugar eacute
necessaacuterio relembrar que ao contraacuterio da concepccedilatildeo arendtiana na obra de Marx
o trabalho natildeo consiste numa atividade que nos vincularia mais ao mundo dos
animais do que ao dos seres humanos propriamente ditos Para ele muito distante
14
de qualquer ilusatildeo acerca de uma vida sem trabalho[12] esta atividade constitui um
momento efetivamente fundante e fundamental da vida humana sem a qual aiacute
sim natildeo nos distinguiriacuteamos em absolutamente nada dos proacuteprios animais[13] Em
termos precisos podemos dizer que o animal natildeo se relaciona com a natureza
ele apenas vive nela eacute sua parte integrante[14] natildeo se distinguindo dela como um
ser consciente o animal eacute portanto incapaz de estabelecer uma mediaccedilatildeo
regulada conscientemente controlada com a natureza (Marx 1985 p 149)
apenas respondendo com maior ou menor labilidade agraves determinaccedilotildees e agraves
constantes mudanccedilas de seu haacutebitat O ser humano por sua vez age de maneira
preacute-ideada em sua atividade metaboacutelica pois em todos os momentos do processo
de trabalho lhe ldquoeacute exigida a vontade orientada a um fimrdquo (Marx 1985 p 150)
Assim o sujeito que trabalha ldquonatildeo apenas efetua uma transformaccedilatildeo da forma da
mateacuteria natural realiza ao mesmo tempo na mateacuteria natural seu objetivo que ele
sabe que determina como lei a espeacutecie e o modo de sua atividade e ao qual tem
de subordinar sua vontaderdquo (Marx 1985 p 150) Natildeo sendo portanto a mera
expressatildeo de determinaccedilotildees ou epifenocircmenos bioloacutegicos o trabalho eacute uma
atividade na qual inevitavelmente entrelaccedilam-se o pensar e o fazer a
consciecircncia e a accedilatildeo com aquela orientando esta para transformar a mateacuteria com
vistas a dar-lhe uma forma adequada agrave satisfaccedilatildeo de alguma necessidade
humana A ideacuteia mediada pelo trabalho cristaliza-se no objeto objeto que longe
de ser meramente natural eacute a manifestaccedilatildeo material da subjetividade humana
posto que soacute existe em razatildeo desta Tanto que no final temos que ldquoo trabalho
estaacute objetivado e o objeto trabalhadordquo (Marx 1985 p 151) num mesmo ato a
subjetividade exteriorizou-se e a materialidade tornou-se subjetiva[15] E eacute claro
como esta objetivaccedilatildeo eacute resultado de accedilotildees conscientes o metabolismo dos
homens em relaccedilatildeo agrave natureza eacute muito mais dinacircmico mutante do que aquele
efetuado pelos animais resultando em formas materiais e sociais
permanentemente alteradas ocorrendo a mesma coisa com a proacutepria
subjetividade humana
15
Sendo uma atividade humanamente produtiva o trabalho natildeo eacute apenas a
relaccedilatildeo do homem com a natureza eacute tambeacutem uma relaccedilatildeo que ocorre entre os
proacuteprios homens ndash e verdadeiramente como trabalho soacute existe a partir desta
relaccedilatildeo Ainda em sua juventude num texto seminal para a elaboraccedilatildeo de suas
reflexotildees posteriores Marx nos diz que o homem ldquosoacute eacute um ser consciente quer
dizer a sua vida constitui para ele um objeto porque eacute um ser geneacuterico
Unicamente por isso eacute que sua atividade surge como atividade livrerdquo (Marx 1985
p 165) Se natildeo fosse um ser social geneacuterico produto e produtor de si e do
gecircnero o ser humano natildeo possuiria as faculdades (consciecircncia linguagem) sem
as quais paradoxalmente o proacuteprio trabalho natildeo existiria E que simultaneamente
como dissemos permitem o aprimoramento e a expansatildeo das fronteiras da vida
humana (individual e coletiva) para muito aleacutem daquelas a que estatildeo restritos os
seres vivos naturais[16]
Nesse caso parece-nos oacutebvio que eacute completamente irrelevante saber se
uma atividade produtiva resulta em produtos mais ou menos duraacuteveis ndash por
exemplo em alimentos ou objetos do mobiliaacuterio ndash para classificaacute-la como estando
mais proacutexima ou mais distante da vida propriamente humana Seja numa
sociedade especiacutefica ou ao longo da histoacuteria humana um produto pode durar mais
ou menos tempo devido a um sem-nuacutemero de fatores tais como os materiais e a
tecnologia empregados as relaccedilotildees sociais sob as quais foi produzido as classes
eou grupos sociais que o utilizaratildeo ndash definindo por exemplo a velocidade e o
perfil de sua obsolescecircncia ou seja se esta eacute real materialmente efetiva ou
socialmente condicionada ndash entre outros e natildeo apenas devido agrave maior ou menor
proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica dos indiviacuteduos A rigor a produccedilatildeo de um
alimento ou medicamento por meio de procedimentos complexos e sofisticados
mas cujo consumo eacute quase imediato (para Arendt ldquoproduto do trabalhordquo)
certamente expressa niacuteveis mais elevados de humanizaccedilatildeo do que a produccedilatildeo de
uma tosca mesa de madeira que perdura seacuteculos passando de geraccedilatildeo a
geraccedilatildeo (Marx 1985 ldquoproduto da fabricaccedilatildeordquo)
16
Essas observaccedilotildees acerca da relaccedilatildeo entre as atividades produtivas e a
durabilidade de suas produccedilotildees natildeo significa em hipoacutetese alguma que a
durabilidade ou natildeo de um produto seja irrelevante para os indiviacuteduos e a
sociedade em geral ateacute mesmo porque os produtos satildeo elementos constitutivos e
condicionantes de certas caracteriacutesticas dos processos de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo
das formaccedilotildees sociais Significa apenas que per se ela natildeo eacute relevante para
mensurar o niacutevel de humanizaccedilatildeo da atividade e das qualificaccedilotildees subjetivas nela
envolvidas Assim nas sociedades capitalistas por exemplo saber se um
determinado objeto constitui parte do maquinaacuterio ou da edificaccedilatildeo (capital fixo) ou
entatildeo se eacute apenas insumo mateacuteria-prima ou meio de subsistecircncia (capital
circulante) eacute significativo prioritariamente em razatildeo de que as proporccedilotildees de seus
respectivos usos e o seu periacuteodo de rotaccedilatildeo afetam de maneira decisiva as taxas
de lucro do capital investido Aleacutem do mais ldquoo fato de um valor de uso aparecer
como mateacuteria-prima meio de trabalho ou produto depende totalmente de sua
funccedilatildeo determinada no processo de trabalho da posiccedilatildeo que nele ocupa e com a
mudanccedila dessa posiccedilatildeo variam essas determinaccedilotildeesrdquo (Marx 1985 p 152)
Quase desnecessaacuterio dizer que tal posiccedilatildeo tambeacutem varia de acordo com o niacutevel
de desenvolvimento das forccedilas produtivas e das relaccedilotildees sociais que constituem a
sociedade em questatildeo Em siacutentese se natildeo podemos definir um objeto como
sendo o resultado de uma atividade inferior ou superior na hierarquia das
atividades humanas (da vita activa arendtiana) devido agrave sua durabilidade[17] ou agrave
sua proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica (agrave manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo do corpo)
qualquer tentativa de mensuraccedilatildeo sob este prisma nos parece completamente
arbitraacuteria inclusive eacute claro a que se funda na distinccedilatildeo arendtiana entre trabalho
e fabricaccedilatildeo
Enfatizar estas caracteriacutesticas do trabalho tambeacutem eacute importante porque
contrariamente agraves qualificaccedilotildees inerentes a ele e agrave fabricaccedilatildeo que de acordo com
Arendt estatildeo diretamente relacionadas agraves qualidades do Animal laborans e do
Homo faber no pensamento marxiano inexiste qualquer menccedilatildeo a uma essecircncia
a-histoacuterica do trabalho isto eacute uma essecircncia que agrave revelia da forma societaacuteria em
17
que a atividade se realiza imprime agrave subjetividade daquele que o executa
inelutaacuteveis qualificaccedilotildees Muito ao contraacuterio As anaacutelises marxianas satildeo
profundamente ancoradas na historicidade dos fenocircmenos naturais e sociais
negando qualquer essencialismo em relaccedilatildeo ao trabalho ou a qualquer outra
atividade bem como ao indiviacuteduo ou grupo de indiviacuteduos que o executa Para
Marx ldquoa essecircncia humana natildeo eacute uma abstraccedilatildeo inerente ao indiviacuteduo singular
Em sua realidade eacute o conjunto das relaccedilotildees sociaisrdquo (Marx 1987 p 13) Por
conseguinte em aberta oposiccedilatildeo agraves proposiccedilotildees arendtianas afirmamos que o
produtivismo natildeo constitui uma caracteriacutestica inerente ao trabalho ndash que com a
ascensatildeo deste agrave esfera puacuteblica teria transbordado as fronteiras da vida privada e
se generalizado socialmente ndash mas sim uma caracteriacutestica que possui suas raiacutezes
nas formas de sociabilidade vigentes no mundo contemporacircneo sejam estas
formas capitalistas ou poacutes-capitalistas[18] Dito de outro modo se o trabalho
assalariado alienado constitui cada vez mais a forma predominante da atividade
produtiva e reprodutiva dos indiviacuteduos nestas sociedades tal desventura natildeo
decorre de uma essecircncia que seja inerente a ele tanto quanto agraves formas preteacuteritas
de trabalho e que tenha se desvencilhado na atualidade das amarras que
limitavam sua expansatildeo A raiz deste fenocircmeno reside no fato de o capital
constituir a relaccedilatildeo social baacutesica das sociedades assinaladas generalizando
aquela forma de trabalho E a propoacutesito do essencialismo produtivista do trabalho
em vaacuterias passagens de sua obra Marx nos mostrou as diferenccedilas existentes
entre as sociedades antigas e as modernas sociedades capitalistas Numa dessas
passagens ele lembra que
Entre os antigos natildeo encontramos uma uacutenica investigaccedilatildeo a propoacutesito de qual a
forma de propriedade etc que seria a mais produtiva que geraria o maacuteximo de
riqueza A riqueza natildeo constituiacutea o objetivo da produccedilatildeo A pesquisa sempre
era sobre qual o tipo de propriedade que geraria os melhores cidadatildeos (Marx
1975 p 80 grifos nossos)
Mesmo em seu acircmbito estritamente privado a propriedade natildeo estava
relacionada prioritariamente aos interesses egoiacutestas do indiviacuteduo mas eram os 18
interesses deste ndash e portanto o uso que fazia daquela ndash que estavam
circunscritos e condicionados pelos interesses da comunidade da qual fazia parte
por mais restrita que esta fosse em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo total Desse modo nestas
formaccedilotildees sociais as atividades produtivas natildeo eram movidas por uma ldquoinerenterdquo
racionalidade produtivista uma racionalidade cujo suposto transbordamento das
fronteiras privadas e o estabelecimento do domiacutenio sobre as outras atividades
caracterizariam ndash segundo Arendt ndash o mundo moderno Em relaccedilatildeo a este sua
principal caracteriacutestica consiste na centralidade na generalizaccedilatildeo e no crescente
predomiacutenio do capital no conjunto das relaccedilotildees sociais Enfim eacute justamente esta
centralidade do capital e suas consequumlecircncias que produz o assalariamento
generalizado dos indiviacuteduos e a subsunccedilatildeo da reproduccedilatildeo socioeconocircmica como
um todo agrave loacutegica produtivista
Numa pequena digressatildeo visando apenas a estreitar as margens de accedilatildeo
das leituras vulgares do marxismo eacute necessaacuterio ressaltar que esta afirmaccedilatildeo da
centralidade do capital nas relaccedilotildees sociais contemporacircneas e do espraiamento
de sua influecircncia pela totalidade social natildeo implica reducionismo econocircmico Na
verdade ela significa apenas a explicitaccedilatildeo de caracteriacutesticas inerentes ao capital
cuja tendecircncia a subsumir a multiplicidade de dimensotildees da vida humana agrave sua
loacutegica acumulatoacuteria expansionista eacute um fato incontestaacutevel ontologicamente
enraizado e racionalmente apreensiacutevel e natildeo um grave equiacutevoco teoacuterico de um
pensamento incapaz de atentar para a complexidade do real Eacute nesse sentido que
comentando a famosa proposiccedilatildeo de Marx segundo a qual ldquoNatildeo eacute a consciecircncia
dos homens que determina o seu ser mas ao contraacuterio eacute o seu ser social que
determina sua consciecircnciardquo[19] (Marx 1982 p 25) Lukaacutecs afirma ldquonesse trecho o
mundo das formas de consciecircncia e seus conteuacutedos natildeo eacute visto como um produto
direto da estrutura econocircmica mas da totalidade do ser social A determinaccedilatildeo da
consciecircncia pelo ser social portanto eacute entendida em seu sentido mais geralrdquo
(Lukaacutecs 1979 p 41) ndash e natildeo como expressatildeo direta mecacircnica e restrita dos
processos econocircmicos
19
Neste toacutepico ateacute o momento detivemo-nos nas distintas concepccedilotildees
acerca do trabalho presentes em Arendt e Marx O caso poreacutem eacute que apesar de
significativas tais concepccedilotildees natildeo circunscrevem sua influecircncia agraves fronteiras
econocircmicas mas extravasam a economia e deitam raiacutezes na totalidade de suas
reflexotildees sobre a vida humana Assim se Arendt tem razatildeo em afirmar que para
Marx o trabalho ndash e a fabricaccedilatildeo apesar da irrelevacircncia desta distinccedilatildeo (trabalho x
fabricaccedilatildeo) no quadro conceitual marxiano ndash eacute tratado como uma atividade
teleoloacutegica cujas relaccedilotildees que estabelece com as outras atividades constitutivas
da vida humana satildeo fundamentais para delinear as caracteriacutesticas da totalidade
social nada justifica sua transposiccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos do trabalho
(concreto) para a concepccedilatildeo de histoacuteria marxiana No entanto eacute justamente isto
que ela faz ao afirmar que em Marx a histoacuteria eacute entendida como um processo
similar ao da fabricaccedilatildeo do artesanato um processo que contemporaneamente
exige a intervenccedilatildeo consciente de um sujeito demiuacutergico ndash o proletariado ndash para
plasmar a nova forma societaacuteria tal como o artesatildeo faz com sua mateacuteria-prima E
igualmente ao afirmar que do mesmo modo que a materializaccedilatildeo do objeto preacute-
ideado expressa o fim do processo gerido pelo artesatildeo a realizaccedilatildeo da sociedade
ldquopreacute-ideadardquo pelo proletariado significaria o fim da histoacuteria
Ora uma das questotildees mais complexas do pensamento social fruto de
inuacutemeras polecircmicas teorias e tratados ao longo dos uacuteltimos seacuteculos ndash
especialmente apoacutes o advento da sociologia ndash eacute a articulaccedilatildeo das accedilotildees
individuais e a reproduccedilatildeo da totalidade social E mesmo certos da impossibilidade
de adentrar no emaranhado de questotildees suscitado pelo tema natildeo podemos omitir
a informaccedilatildeo de que uma leitura criteriosa dos textos marxianos demonstra sem
grande dificuldade a improcedecircncia das criacuteticas de Hannah Arendt De modo
algum condiz com o ldquoespiacuteritordquo da obra marxiana a identificaccedilatildeo da reproduccedilatildeo
social como um todo e nem dos processos de transiccedilatildeo de uma forma societaacuteria a
outra ao modus operandi do trabalho O que natildeo significa por sua vez que a
instabilidade econocircmica e social natildeo fosse objeto de suas preocupaccedilotildees A bem
da verdade sendo o primeiro a entender a centralidade do trabalho e suas
20
consequumlecircncias na produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana Marx se assenhoreou
desde os Manuscritos de 1844 de conhecimentos suficientemente significativos
para criticar em relaccedilatildeo agravequele aspecto inicialmente citado das relaccedilotildees entre
indiviacuteduo e sociedade tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo Assim em
vez da naturalizaccedilatildeo da histoacuteria humana ou da arbitrariedade da vontade e da
razatildeo em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmaccedilatildeo dos
seres humanos como autoprodutores de sua proacutepria histoacuteria e simultaneamente
uma criacutetica agrave hipostasia das potencialidades da razatildeo e das forccedilas humanas nesta
autoproduccedilatildeo Invariavelmente suas anaacutelises reiteram que ldquoOs homens fazem
sua proacutepria histoacuteria mas natildeo a fazem como querem natildeo a fazem sob
circunstacircncias de sua proacutepria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam
diretamente legadas e transmitidas pelo passadordquo (Marx 1986 p 17 grifos
nossos) Nos dias atuais natildeo eacute difiacutecil perceber como por si soacute esta frase nos
mostra quatildeo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e
da realpolitik que cada qual ao seu modo como faces de uma mesma moeda
dominam os discursos poliacuteticos e econocircmicos em voga
Ainda no que diz respeito agrave questatildeo do sujeito demiuacutergico e do finalismo
histoacuterico eacute necessaacuterio que se entenda que mesmo em sua fastidiosa reproduccedilatildeo
cotidiana o trabalho eacute sempre um ato de criaccedilatildeo criaccedilatildeo natildeo apenas de coisas
novas de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma
humanamente apropriada mas criaccedilatildeo da proacutepria subjetividade humana que se
renova a partir das experiecircncias possibilitadas pelos meios e resultados de sua
produccedilatildeo e pelas relaccedilotildees sociais que os envolvem Tendo em mente esta
dinacircmica intriacutenseca agrave atividade vital dos seres humanos e ao mesmo tempo o
caraacuteter que para Marx a totalidade do real[20] assume como concreto pensado
(Marx 1982 p 15) nem a mais poderosa das inteligecircncias humanas tampouco o
concurso delas sob a forma do coletivo partidaacuterio pode em termos conceituais
apreender subsumir absolutamente o real ao pensamento ndash e muito menos
sujeitar as proacuteprias relaccedilotildees sociais a um controle assemelhado ao das teacutecnicas
produtivas
21
Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final
entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja
rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz
consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de
Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo
sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele
ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von
Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia
hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas
sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais
geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de
onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta
observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica
especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente
pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto
natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o
proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela
histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e
seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o
conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade
histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens
em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo
possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas
Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo
de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos
individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica
intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos
altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que
nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que
22
em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a
divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente
a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de
todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada
espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das
diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como
reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori
e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do
trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural
interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado
subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo
social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo
reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo
exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo
que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as
condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)
Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais
de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente
as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de
posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo
(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa
O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias
normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de
finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem
realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute
inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)
Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante
entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de
indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de
eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a
23
casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece
porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da
ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas
significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias
sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca
controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias
objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que
encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano
Em sua Ontologia do ser social ele afirma
Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada
vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as
decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da
totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse
conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa
relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso
porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o
movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da
histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas
etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local
tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que
tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de
transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que
satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do
que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e
consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso
aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)
Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos
individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha
ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias
mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade
oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem
econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo
24
social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve
ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que
historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os
processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem
uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle
destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou
A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a
anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo
incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do
trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer
controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma
infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo
autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais
entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda
organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a
sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)
Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus
ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os
limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de
intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal
qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos
uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana
(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do
pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os
limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir
para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta
ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo
No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras
experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao
nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25
pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas
relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi
drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente
desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses
capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de
regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo
resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica
reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas
experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da
humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua
loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a
accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com
seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social
passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees
marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de
regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos
moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a
consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria
redenccedilatildeo universal
O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos
ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as
acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels
salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido
um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o
movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)
O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se
realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico
do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana
de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo
comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o
26
comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a
forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo
nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao
desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma
sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o
comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no
fim da histoacuteria[22]
Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento
marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute
capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e
desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo
ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso
numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]
mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou
natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana
Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees
que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim
contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das
caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da
limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os
homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara
manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal
Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos
extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a
violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo
Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do
capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre
a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os
revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila
27
material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a
utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de
recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o
revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico
Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder
material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria
se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz
de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e
argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar
o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p
497)
Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos
(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o
discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista
muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)
que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no
encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as
sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece
ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um
discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos
constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das
individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades
eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano
mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em
campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar
plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de
sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar
sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio
colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel
convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e
28
culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem
respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes
subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]
Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)
de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio
das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto
natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive
atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie
No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias
naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o
crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda
escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-
sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo
contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da
incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees
materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos
afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus
processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos
inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos
da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades
humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute
o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses
trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)
Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas
produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa
penetrante passagem sobre o tema lemos
O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto
dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de
29
desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse
nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos
demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua
vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado
naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo
determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas
relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu
proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx
1973 pp 89-90)
Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos
sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a
centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos
aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza
e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham
vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a
intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o
equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente
econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida
social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da
permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas
relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito
da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas
universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada
das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os
homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria
mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das
forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo
adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos
homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia
O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se
compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30
neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo
do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo
pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso
histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive
violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste
(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso
resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na
sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os
antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por
ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses
das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos
Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica
natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades
reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a
estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico
Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da
cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios
juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da
sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela
que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de
duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que
complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo
concreto
O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em
oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem
de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade
desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem
leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da
realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na
comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na
31
sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como
meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes
estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser
profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real
eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem
eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma
soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de
uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)
Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e
imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos
privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma
revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res
publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja
eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da
proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a
violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica
consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a
accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a
vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma
alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento
Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a
essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o
proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua
violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre
dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo
de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a
perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a
violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt
segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser
a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente
32
pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o
antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as
relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de
supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano
Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder
dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se
faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de
violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o
poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa
revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades
viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento
humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo
profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma
resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como
desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo
Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado
como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos
do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute
poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de
propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)
Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de
dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao
contraacuterio
Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como
classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como
classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as
condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em
geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)
33
Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx
1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo
poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer
forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas
formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar
em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis
Quanto a isso eacute importante relembrar que
O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos
limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute
capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade
Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais
ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e
espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a
fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)
Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-
violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo
violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-
socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo
(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-
humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo
humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a
rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios
quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de
coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras
A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um
anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo
(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim
negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se
natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para
natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a
34
contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo
(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-
humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-
violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que
assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)
Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx
caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu
proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios
empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo
entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez
de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do
humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-
capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo
dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os
torna incompatiacuteveis[27]
IV Agrave guisa de conclusatildeo
Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de
Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda
distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de
Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do
pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas
que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio
da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente
sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir
de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns
aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram
envolvidos pela leitura arendtiana
35
Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem
ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem
duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho
Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e
estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do
solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo
neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade
com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se
reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos
intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro
porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento
marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual
formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco
em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e
Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para
o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e
revolucionaacuterios
Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo
XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho
caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos
revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso
imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob
muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes
natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca
demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo
sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas
proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os
argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro
sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas
ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma
36
verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto
que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute
cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido
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Notas
38
Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo
Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo
teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a
estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o
ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque
somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a
abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos
que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e
isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a
accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num
constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas
produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou
menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de
consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados
a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo
antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em
termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e
inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho
como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt
1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels
segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte
daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos
homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e
39
osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida
real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos
desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo
corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade
efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa
produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma
aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio
Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para
produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas
necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a
Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de
qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas
formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na
constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso
ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro
Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se
distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo
reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele
duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo
(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute
afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels
1986 p 19)
40
[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade
esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas
daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades
capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas
carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e
propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que
determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a
p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que
sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram
transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em
grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos
paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital
Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo
crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos
estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem
consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo
social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas
conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento
marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo
implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de
estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo
significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo
dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma
luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude
do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de
uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o
41
entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada
dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas
caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos
do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no
fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje
muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o
sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e
saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente
a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente
severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de
personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de
objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de
produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e
personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar
condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua
perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento
universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social
como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p
85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que
apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo
aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do
esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e
complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em
relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios
revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA
transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em
42
43
massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
-
assim auxilia na sua realizaccedilatildeo Outrossim mais importante do que saber se esta
caracteriacutestica do pensamento de Marx eacute adequadamente entendida por Arendt eacute
saber que para ela esta caracteriacutestica expressa um determinismo que torna
supeacuterflua qualquer discussatildeo sobre as finalidades e o conteuacutedo dos processos
sociais dado que a histoacuteria fabricada modelada como se fosse um objeto pelo
proletariado demiuacutergico torna a palavra o discurso um mero instrumento de
justificaccedilatildeo ideoloacutegica de ideacuteias preconcebidas a serem materializadas Foi
partindo desses pressupostos que Arendt pocircde afirmar
O que era entatildeo inexplicaacutevel na histoacuteria [a saber os muacuteltiplos interesses
conflitantes que tornam a accedilatildeo poliacutetica ineficaz no alcance de seus objetivos e a
existecircncia de um sentido no processo histoacuterico] passa agora a ser visto como o
reflexo de um significado que seguramente era tanto um produto humano quanto o
desenvolvimento teacutecnico do mundo O problema de humanizar os assuntos
poliacutetico-histoacutericos resumia-se consequumlentemente em descobrir como dominar
nossas proacuteprias accedilotildees assim como dominamos nossa capacidade produtiva ou
em outras palavras como ldquofazerrdquo histoacuteria assim como fazemos outras coisas Uma
vez que isso seja alcanccedilado com a vitoacuteria do proletariado natildeo precisaremos mais
de ideologias Mas ateacute laacute todas as accedilotildees poliacuteticas preceitos legais e
pensamentos espirituais continuaratildeo escondendo os motivos inconfessos de uma
sociedade que somente finge agir politicamente mas que na verdade ldquofaz
histoacuteriardquo ainda que de uma maneira inconsciente isto eacute natildeo-humana (Arendt
2002 p 63)
Natildeo constituindo a esfera do pleno exerciacutecio do debate de ideacuteias entre
indiviacuteduos livres e iguais ndash indiviacuteduos que por meio do uso intenso da palavra do
discurso do muacutetuo esclarecimento estabelecem consensos mais ou menos gerais
sobre os fundamentos e as finalidades da accedilatildeo ndash a poliacutetica atual constitui um
simulacro da poliacutetica autecircntica Tal como a entende Arendt esta constitui uma
esfera (puacuteblica) que antes de qualquer outra coisa deve estar apartada da
violecircncia na medida em que esta nega a palavra o discurso o debate e portanto
a accedilatildeo Definindo assim o que satildeo meios e fins o que eacute essencial e o que eacute
imposiccedilatildeo extriacutenseca agrave poliacutetica Arendt reitera que ldquoo poder eacute de fato a essecircncia
13
de todo governo mas natildeo a violecircnciardquo (Arendt 1994 p 40) Por conseguinte
sendo de natureza instrumental a violecircncia ldquocomo todos os meios sempre
depende da orientaccedilatildeo e da justificaccedilatildeo pelo fim que almeja E aquilo que
necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser a essecircncia de nadardquo (Arendt
1994 p 41) O poder encontra sua legitimidade no passado a violecircncia se
justifica pelas consequumlecircncias futuras aquele pela sua constituiccedilatildeo esta pelos
seus objetivos Em razatildeo disso ldquoa violecircncia pode ser justificaacutevel mas nunca seraacute
legiacutetimardquo (Arendt 1994 p 41) Enfim ao vincularem a violecircncia ao poder as
concepccedilotildees poliacuteticas hegemocircnicas dentre elas o marxismo demonstram a
incompreensatildeo de que aqueles satildeo na verdade opostos ldquoonde um domina
absolutamente o outro estaacute ausenterdquo (Arendt 1994 p 44)
Para natildeo cindir a argumentaccedilatildeo criacutetica e com isso tornaacute-la
demasiadamente prolixa retornaremos mais adiante a estas afirmaccedilotildees de
Hannah Arendt sobre poliacutetica e violecircncia Por ora apoacutes termos descrito algumas
categorias centrais do pensamento arendtiano e em especiacutefico os fundamentos
de sua criacutetica agrave relaccedilatildeo entre poliacutetica e violecircncia em Marx passemos na mesma
sequumlecircncia de ideacuteias desenvolvida ateacute aqui ao confronto dessas reflexotildees com
aquelas que a nosso ver correspondem adequadamente tanto ao corpo quanto
ao espiacuterito da obra marxiana
III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
Consideramos desnecessaacuterio demonstrar ad nauseam como a concepccedilatildeo
de trabalho em Marx difere substancialmente daquelas atividades que Arendt
denomina pelos vocaacutebulos trabalho e fabricaccedilatildeo pois para o nosso objetivo
basta que o realizemos apenas em suas linhas gerais Assim em primeiro lugar eacute
necessaacuterio relembrar que ao contraacuterio da concepccedilatildeo arendtiana na obra de Marx
o trabalho natildeo consiste numa atividade que nos vincularia mais ao mundo dos
animais do que ao dos seres humanos propriamente ditos Para ele muito distante
14
de qualquer ilusatildeo acerca de uma vida sem trabalho[12] esta atividade constitui um
momento efetivamente fundante e fundamental da vida humana sem a qual aiacute
sim natildeo nos distinguiriacuteamos em absolutamente nada dos proacuteprios animais[13] Em
termos precisos podemos dizer que o animal natildeo se relaciona com a natureza
ele apenas vive nela eacute sua parte integrante[14] natildeo se distinguindo dela como um
ser consciente o animal eacute portanto incapaz de estabelecer uma mediaccedilatildeo
regulada conscientemente controlada com a natureza (Marx 1985 p 149)
apenas respondendo com maior ou menor labilidade agraves determinaccedilotildees e agraves
constantes mudanccedilas de seu haacutebitat O ser humano por sua vez age de maneira
preacute-ideada em sua atividade metaboacutelica pois em todos os momentos do processo
de trabalho lhe ldquoeacute exigida a vontade orientada a um fimrdquo (Marx 1985 p 150)
Assim o sujeito que trabalha ldquonatildeo apenas efetua uma transformaccedilatildeo da forma da
mateacuteria natural realiza ao mesmo tempo na mateacuteria natural seu objetivo que ele
sabe que determina como lei a espeacutecie e o modo de sua atividade e ao qual tem
de subordinar sua vontaderdquo (Marx 1985 p 150) Natildeo sendo portanto a mera
expressatildeo de determinaccedilotildees ou epifenocircmenos bioloacutegicos o trabalho eacute uma
atividade na qual inevitavelmente entrelaccedilam-se o pensar e o fazer a
consciecircncia e a accedilatildeo com aquela orientando esta para transformar a mateacuteria com
vistas a dar-lhe uma forma adequada agrave satisfaccedilatildeo de alguma necessidade
humana A ideacuteia mediada pelo trabalho cristaliza-se no objeto objeto que longe
de ser meramente natural eacute a manifestaccedilatildeo material da subjetividade humana
posto que soacute existe em razatildeo desta Tanto que no final temos que ldquoo trabalho
estaacute objetivado e o objeto trabalhadordquo (Marx 1985 p 151) num mesmo ato a
subjetividade exteriorizou-se e a materialidade tornou-se subjetiva[15] E eacute claro
como esta objetivaccedilatildeo eacute resultado de accedilotildees conscientes o metabolismo dos
homens em relaccedilatildeo agrave natureza eacute muito mais dinacircmico mutante do que aquele
efetuado pelos animais resultando em formas materiais e sociais
permanentemente alteradas ocorrendo a mesma coisa com a proacutepria
subjetividade humana
15
Sendo uma atividade humanamente produtiva o trabalho natildeo eacute apenas a
relaccedilatildeo do homem com a natureza eacute tambeacutem uma relaccedilatildeo que ocorre entre os
proacuteprios homens ndash e verdadeiramente como trabalho soacute existe a partir desta
relaccedilatildeo Ainda em sua juventude num texto seminal para a elaboraccedilatildeo de suas
reflexotildees posteriores Marx nos diz que o homem ldquosoacute eacute um ser consciente quer
dizer a sua vida constitui para ele um objeto porque eacute um ser geneacuterico
Unicamente por isso eacute que sua atividade surge como atividade livrerdquo (Marx 1985
p 165) Se natildeo fosse um ser social geneacuterico produto e produtor de si e do
gecircnero o ser humano natildeo possuiria as faculdades (consciecircncia linguagem) sem
as quais paradoxalmente o proacuteprio trabalho natildeo existiria E que simultaneamente
como dissemos permitem o aprimoramento e a expansatildeo das fronteiras da vida
humana (individual e coletiva) para muito aleacutem daquelas a que estatildeo restritos os
seres vivos naturais[16]
Nesse caso parece-nos oacutebvio que eacute completamente irrelevante saber se
uma atividade produtiva resulta em produtos mais ou menos duraacuteveis ndash por
exemplo em alimentos ou objetos do mobiliaacuterio ndash para classificaacute-la como estando
mais proacutexima ou mais distante da vida propriamente humana Seja numa
sociedade especiacutefica ou ao longo da histoacuteria humana um produto pode durar mais
ou menos tempo devido a um sem-nuacutemero de fatores tais como os materiais e a
tecnologia empregados as relaccedilotildees sociais sob as quais foi produzido as classes
eou grupos sociais que o utilizaratildeo ndash definindo por exemplo a velocidade e o
perfil de sua obsolescecircncia ou seja se esta eacute real materialmente efetiva ou
socialmente condicionada ndash entre outros e natildeo apenas devido agrave maior ou menor
proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica dos indiviacuteduos A rigor a produccedilatildeo de um
alimento ou medicamento por meio de procedimentos complexos e sofisticados
mas cujo consumo eacute quase imediato (para Arendt ldquoproduto do trabalhordquo)
certamente expressa niacuteveis mais elevados de humanizaccedilatildeo do que a produccedilatildeo de
uma tosca mesa de madeira que perdura seacuteculos passando de geraccedilatildeo a
geraccedilatildeo (Marx 1985 ldquoproduto da fabricaccedilatildeordquo)
16
Essas observaccedilotildees acerca da relaccedilatildeo entre as atividades produtivas e a
durabilidade de suas produccedilotildees natildeo significa em hipoacutetese alguma que a
durabilidade ou natildeo de um produto seja irrelevante para os indiviacuteduos e a
sociedade em geral ateacute mesmo porque os produtos satildeo elementos constitutivos e
condicionantes de certas caracteriacutesticas dos processos de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo
das formaccedilotildees sociais Significa apenas que per se ela natildeo eacute relevante para
mensurar o niacutevel de humanizaccedilatildeo da atividade e das qualificaccedilotildees subjetivas nela
envolvidas Assim nas sociedades capitalistas por exemplo saber se um
determinado objeto constitui parte do maquinaacuterio ou da edificaccedilatildeo (capital fixo) ou
entatildeo se eacute apenas insumo mateacuteria-prima ou meio de subsistecircncia (capital
circulante) eacute significativo prioritariamente em razatildeo de que as proporccedilotildees de seus
respectivos usos e o seu periacuteodo de rotaccedilatildeo afetam de maneira decisiva as taxas
de lucro do capital investido Aleacutem do mais ldquoo fato de um valor de uso aparecer
como mateacuteria-prima meio de trabalho ou produto depende totalmente de sua
funccedilatildeo determinada no processo de trabalho da posiccedilatildeo que nele ocupa e com a
mudanccedila dessa posiccedilatildeo variam essas determinaccedilotildeesrdquo (Marx 1985 p 152)
Quase desnecessaacuterio dizer que tal posiccedilatildeo tambeacutem varia de acordo com o niacutevel
de desenvolvimento das forccedilas produtivas e das relaccedilotildees sociais que constituem a
sociedade em questatildeo Em siacutentese se natildeo podemos definir um objeto como
sendo o resultado de uma atividade inferior ou superior na hierarquia das
atividades humanas (da vita activa arendtiana) devido agrave sua durabilidade[17] ou agrave
sua proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica (agrave manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo do corpo)
qualquer tentativa de mensuraccedilatildeo sob este prisma nos parece completamente
arbitraacuteria inclusive eacute claro a que se funda na distinccedilatildeo arendtiana entre trabalho
e fabricaccedilatildeo
Enfatizar estas caracteriacutesticas do trabalho tambeacutem eacute importante porque
contrariamente agraves qualificaccedilotildees inerentes a ele e agrave fabricaccedilatildeo que de acordo com
Arendt estatildeo diretamente relacionadas agraves qualidades do Animal laborans e do
Homo faber no pensamento marxiano inexiste qualquer menccedilatildeo a uma essecircncia
a-histoacuterica do trabalho isto eacute uma essecircncia que agrave revelia da forma societaacuteria em
17
que a atividade se realiza imprime agrave subjetividade daquele que o executa
inelutaacuteveis qualificaccedilotildees Muito ao contraacuterio As anaacutelises marxianas satildeo
profundamente ancoradas na historicidade dos fenocircmenos naturais e sociais
negando qualquer essencialismo em relaccedilatildeo ao trabalho ou a qualquer outra
atividade bem como ao indiviacuteduo ou grupo de indiviacuteduos que o executa Para
Marx ldquoa essecircncia humana natildeo eacute uma abstraccedilatildeo inerente ao indiviacuteduo singular
Em sua realidade eacute o conjunto das relaccedilotildees sociaisrdquo (Marx 1987 p 13) Por
conseguinte em aberta oposiccedilatildeo agraves proposiccedilotildees arendtianas afirmamos que o
produtivismo natildeo constitui uma caracteriacutestica inerente ao trabalho ndash que com a
ascensatildeo deste agrave esfera puacuteblica teria transbordado as fronteiras da vida privada e
se generalizado socialmente ndash mas sim uma caracteriacutestica que possui suas raiacutezes
nas formas de sociabilidade vigentes no mundo contemporacircneo sejam estas
formas capitalistas ou poacutes-capitalistas[18] Dito de outro modo se o trabalho
assalariado alienado constitui cada vez mais a forma predominante da atividade
produtiva e reprodutiva dos indiviacuteduos nestas sociedades tal desventura natildeo
decorre de uma essecircncia que seja inerente a ele tanto quanto agraves formas preteacuteritas
de trabalho e que tenha se desvencilhado na atualidade das amarras que
limitavam sua expansatildeo A raiz deste fenocircmeno reside no fato de o capital
constituir a relaccedilatildeo social baacutesica das sociedades assinaladas generalizando
aquela forma de trabalho E a propoacutesito do essencialismo produtivista do trabalho
em vaacuterias passagens de sua obra Marx nos mostrou as diferenccedilas existentes
entre as sociedades antigas e as modernas sociedades capitalistas Numa dessas
passagens ele lembra que
Entre os antigos natildeo encontramos uma uacutenica investigaccedilatildeo a propoacutesito de qual a
forma de propriedade etc que seria a mais produtiva que geraria o maacuteximo de
riqueza A riqueza natildeo constituiacutea o objetivo da produccedilatildeo A pesquisa sempre
era sobre qual o tipo de propriedade que geraria os melhores cidadatildeos (Marx
1975 p 80 grifos nossos)
Mesmo em seu acircmbito estritamente privado a propriedade natildeo estava
relacionada prioritariamente aos interesses egoiacutestas do indiviacuteduo mas eram os 18
interesses deste ndash e portanto o uso que fazia daquela ndash que estavam
circunscritos e condicionados pelos interesses da comunidade da qual fazia parte
por mais restrita que esta fosse em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo total Desse modo nestas
formaccedilotildees sociais as atividades produtivas natildeo eram movidas por uma ldquoinerenterdquo
racionalidade produtivista uma racionalidade cujo suposto transbordamento das
fronteiras privadas e o estabelecimento do domiacutenio sobre as outras atividades
caracterizariam ndash segundo Arendt ndash o mundo moderno Em relaccedilatildeo a este sua
principal caracteriacutestica consiste na centralidade na generalizaccedilatildeo e no crescente
predomiacutenio do capital no conjunto das relaccedilotildees sociais Enfim eacute justamente esta
centralidade do capital e suas consequumlecircncias que produz o assalariamento
generalizado dos indiviacuteduos e a subsunccedilatildeo da reproduccedilatildeo socioeconocircmica como
um todo agrave loacutegica produtivista
Numa pequena digressatildeo visando apenas a estreitar as margens de accedilatildeo
das leituras vulgares do marxismo eacute necessaacuterio ressaltar que esta afirmaccedilatildeo da
centralidade do capital nas relaccedilotildees sociais contemporacircneas e do espraiamento
de sua influecircncia pela totalidade social natildeo implica reducionismo econocircmico Na
verdade ela significa apenas a explicitaccedilatildeo de caracteriacutesticas inerentes ao capital
cuja tendecircncia a subsumir a multiplicidade de dimensotildees da vida humana agrave sua
loacutegica acumulatoacuteria expansionista eacute um fato incontestaacutevel ontologicamente
enraizado e racionalmente apreensiacutevel e natildeo um grave equiacutevoco teoacuterico de um
pensamento incapaz de atentar para a complexidade do real Eacute nesse sentido que
comentando a famosa proposiccedilatildeo de Marx segundo a qual ldquoNatildeo eacute a consciecircncia
dos homens que determina o seu ser mas ao contraacuterio eacute o seu ser social que
determina sua consciecircnciardquo[19] (Marx 1982 p 25) Lukaacutecs afirma ldquonesse trecho o
mundo das formas de consciecircncia e seus conteuacutedos natildeo eacute visto como um produto
direto da estrutura econocircmica mas da totalidade do ser social A determinaccedilatildeo da
consciecircncia pelo ser social portanto eacute entendida em seu sentido mais geralrdquo
(Lukaacutecs 1979 p 41) ndash e natildeo como expressatildeo direta mecacircnica e restrita dos
processos econocircmicos
19
Neste toacutepico ateacute o momento detivemo-nos nas distintas concepccedilotildees
acerca do trabalho presentes em Arendt e Marx O caso poreacutem eacute que apesar de
significativas tais concepccedilotildees natildeo circunscrevem sua influecircncia agraves fronteiras
econocircmicas mas extravasam a economia e deitam raiacutezes na totalidade de suas
reflexotildees sobre a vida humana Assim se Arendt tem razatildeo em afirmar que para
Marx o trabalho ndash e a fabricaccedilatildeo apesar da irrelevacircncia desta distinccedilatildeo (trabalho x
fabricaccedilatildeo) no quadro conceitual marxiano ndash eacute tratado como uma atividade
teleoloacutegica cujas relaccedilotildees que estabelece com as outras atividades constitutivas
da vida humana satildeo fundamentais para delinear as caracteriacutesticas da totalidade
social nada justifica sua transposiccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos do trabalho
(concreto) para a concepccedilatildeo de histoacuteria marxiana No entanto eacute justamente isto
que ela faz ao afirmar que em Marx a histoacuteria eacute entendida como um processo
similar ao da fabricaccedilatildeo do artesanato um processo que contemporaneamente
exige a intervenccedilatildeo consciente de um sujeito demiuacutergico ndash o proletariado ndash para
plasmar a nova forma societaacuteria tal como o artesatildeo faz com sua mateacuteria-prima E
igualmente ao afirmar que do mesmo modo que a materializaccedilatildeo do objeto preacute-
ideado expressa o fim do processo gerido pelo artesatildeo a realizaccedilatildeo da sociedade
ldquopreacute-ideadardquo pelo proletariado significaria o fim da histoacuteria
Ora uma das questotildees mais complexas do pensamento social fruto de
inuacutemeras polecircmicas teorias e tratados ao longo dos uacuteltimos seacuteculos ndash
especialmente apoacutes o advento da sociologia ndash eacute a articulaccedilatildeo das accedilotildees
individuais e a reproduccedilatildeo da totalidade social E mesmo certos da impossibilidade
de adentrar no emaranhado de questotildees suscitado pelo tema natildeo podemos omitir
a informaccedilatildeo de que uma leitura criteriosa dos textos marxianos demonstra sem
grande dificuldade a improcedecircncia das criacuteticas de Hannah Arendt De modo
algum condiz com o ldquoespiacuteritordquo da obra marxiana a identificaccedilatildeo da reproduccedilatildeo
social como um todo e nem dos processos de transiccedilatildeo de uma forma societaacuteria a
outra ao modus operandi do trabalho O que natildeo significa por sua vez que a
instabilidade econocircmica e social natildeo fosse objeto de suas preocupaccedilotildees A bem
da verdade sendo o primeiro a entender a centralidade do trabalho e suas
20
consequumlecircncias na produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana Marx se assenhoreou
desde os Manuscritos de 1844 de conhecimentos suficientemente significativos
para criticar em relaccedilatildeo agravequele aspecto inicialmente citado das relaccedilotildees entre
indiviacuteduo e sociedade tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo Assim em
vez da naturalizaccedilatildeo da histoacuteria humana ou da arbitrariedade da vontade e da
razatildeo em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmaccedilatildeo dos
seres humanos como autoprodutores de sua proacutepria histoacuteria e simultaneamente
uma criacutetica agrave hipostasia das potencialidades da razatildeo e das forccedilas humanas nesta
autoproduccedilatildeo Invariavelmente suas anaacutelises reiteram que ldquoOs homens fazem
sua proacutepria histoacuteria mas natildeo a fazem como querem natildeo a fazem sob
circunstacircncias de sua proacutepria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam
diretamente legadas e transmitidas pelo passadordquo (Marx 1986 p 17 grifos
nossos) Nos dias atuais natildeo eacute difiacutecil perceber como por si soacute esta frase nos
mostra quatildeo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e
da realpolitik que cada qual ao seu modo como faces de uma mesma moeda
dominam os discursos poliacuteticos e econocircmicos em voga
Ainda no que diz respeito agrave questatildeo do sujeito demiuacutergico e do finalismo
histoacuterico eacute necessaacuterio que se entenda que mesmo em sua fastidiosa reproduccedilatildeo
cotidiana o trabalho eacute sempre um ato de criaccedilatildeo criaccedilatildeo natildeo apenas de coisas
novas de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma
humanamente apropriada mas criaccedilatildeo da proacutepria subjetividade humana que se
renova a partir das experiecircncias possibilitadas pelos meios e resultados de sua
produccedilatildeo e pelas relaccedilotildees sociais que os envolvem Tendo em mente esta
dinacircmica intriacutenseca agrave atividade vital dos seres humanos e ao mesmo tempo o
caraacuteter que para Marx a totalidade do real[20] assume como concreto pensado
(Marx 1982 p 15) nem a mais poderosa das inteligecircncias humanas tampouco o
concurso delas sob a forma do coletivo partidaacuterio pode em termos conceituais
apreender subsumir absolutamente o real ao pensamento ndash e muito menos
sujeitar as proacuteprias relaccedilotildees sociais a um controle assemelhado ao das teacutecnicas
produtivas
21
Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final
entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja
rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz
consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de
Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo
sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele
ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von
Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia
hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas
sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais
geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de
onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta
observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica
especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente
pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto
natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o
proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela
histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e
seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o
conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade
histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens
em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo
possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas
Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo
de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos
individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica
intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos
altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que
nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que
22
em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a
divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente
a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de
todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada
espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das
diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como
reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori
e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do
trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural
interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado
subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo
social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo
reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo
exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo
que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as
condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)
Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais
de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente
as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de
posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo
(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa
O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias
normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de
finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem
realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute
inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)
Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante
entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de
indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de
eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a
23
casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece
porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da
ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas
significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias
sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca
controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias
objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que
encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano
Em sua Ontologia do ser social ele afirma
Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada
vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as
decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da
totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse
conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa
relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso
porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o
movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da
histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas
etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local
tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que
tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de
transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que
satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do
que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e
consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso
aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)
Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos
individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha
ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias
mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade
oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem
econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo
24
social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve
ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que
historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os
processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem
uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle
destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou
A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a
anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo
incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do
trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer
controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma
infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo
autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais
entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda
organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a
sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)
Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus
ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os
limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de
intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal
qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos
uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana
(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do
pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os
limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir
para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta
ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo
No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras
experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao
nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25
pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas
relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi
drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente
desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses
capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de
regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo
resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica
reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas
experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da
humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua
loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a
accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com
seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social
passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees
marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de
regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos
moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a
consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria
redenccedilatildeo universal
O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos
ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as
acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels
salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido
um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o
movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)
O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se
realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico
do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana
de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo
comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o
26
comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a
forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo
nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao
desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma
sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o
comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no
fim da histoacuteria[22]
Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento
marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute
capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e
desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo
ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso
numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]
mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou
natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana
Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees
que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim
contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das
caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da
limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os
homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara
manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal
Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos
extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a
violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo
Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do
capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre
a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os
revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila
27
material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a
utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de
recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o
revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico
Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder
material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria
se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz
de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e
argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar
o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p
497)
Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos
(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o
discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista
muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)
que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no
encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as
sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece
ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um
discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos
constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das
individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades
eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano
mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em
campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar
plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de
sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar
sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio
colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel
convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e
28
culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem
respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes
subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]
Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)
de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio
das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto
natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive
atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie
No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias
naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o
crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda
escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-
sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo
contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da
incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees
materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos
afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus
processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos
inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos
da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades
humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute
o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses
trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)
Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas
produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa
penetrante passagem sobre o tema lemos
O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto
dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de
29
desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse
nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos
demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua
vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado
naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo
determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas
relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu
proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx
1973 pp 89-90)
Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos
sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a
centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos
aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza
e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham
vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a
intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o
equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente
econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida
social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da
permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas
relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito
da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas
universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada
das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os
homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria
mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das
forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo
adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos
homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia
O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se
compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30
neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo
do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo
pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso
histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive
violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste
(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso
resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na
sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os
antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por
ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses
das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos
Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica
natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades
reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a
estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico
Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da
cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios
juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da
sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela
que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de
duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que
complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo
concreto
O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em
oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem
de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade
desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem
leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da
realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na
comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na
31
sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como
meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes
estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser
profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real
eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem
eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma
soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de
uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)
Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e
imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos
privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma
revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res
publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja
eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da
proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a
violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica
consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a
accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a
vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma
alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento
Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a
essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o
proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua
violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre
dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo
de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a
perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a
violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt
segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser
a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente
32
pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o
antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as
relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de
supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano
Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder
dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se
faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de
violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o
poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa
revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades
viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento
humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo
profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma
resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como
desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo
Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado
como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos
do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute
poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de
propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)
Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de
dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao
contraacuterio
Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como
classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como
classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as
condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em
geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)
33
Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx
1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo
poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer
forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas
formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar
em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis
Quanto a isso eacute importante relembrar que
O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos
limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute
capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade
Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais
ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e
espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a
fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)
Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-
violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo
violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-
socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo
(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-
humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo
humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a
rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios
quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de
coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras
A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um
anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo
(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim
negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se
natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para
natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a
34
contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo
(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-
humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-
violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que
assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)
Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx
caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu
proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios
empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo
entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez
de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do
humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-
capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo
dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os
torna incompatiacuteveis[27]
IV Agrave guisa de conclusatildeo
Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de
Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda
distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de
Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do
pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas
que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio
da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente
sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir
de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns
aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram
envolvidos pela leitura arendtiana
35
Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem
ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem
duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho
Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e
estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do
solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo
neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade
com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se
reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos
intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro
porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento
marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual
formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco
em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e
Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para
o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e
revolucionaacuterios
Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo
XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho
caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos
revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso
imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob
muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes
natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca
demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo
sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas
proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os
argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro
sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas
ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma
36
verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto
que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute
cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido
V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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______ Manifesto comunista Satildeo Paulo Boitempo 1998
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centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio
1983
______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002
Notas
38
Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo
Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo
teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a
estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o
ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque
somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a
abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos
que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e
isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a
accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num
constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas
produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou
menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de
consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados
a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo
antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em
termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e
inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho
como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt
1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels
segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte
daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos
homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e
39
osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida
real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos
desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo
corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade
efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa
produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma
aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio
Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para
produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas
necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a
Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de
qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas
formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na
constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso
ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro
Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se
distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo
reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele
duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo
(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute
afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels
1986 p 19)
40
[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade
esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas
daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades
capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas
carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e
propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que
determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a
p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que
sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram
transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em
grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos
paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital
Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo
crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos
estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem
consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo
social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas
conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento
marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo
implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de
estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo
significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo
dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma
luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude
do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de
uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o
41
entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada
dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas
caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos
do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no
fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje
muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o
sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e
saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente
a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente
severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de
personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de
objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de
produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e
personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar
condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua
perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento
universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social
como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p
85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que
apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo
aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do
esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e
complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em
relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios
revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA
transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em
42
43
massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
-
de todo governo mas natildeo a violecircnciardquo (Arendt 1994 p 40) Por conseguinte
sendo de natureza instrumental a violecircncia ldquocomo todos os meios sempre
depende da orientaccedilatildeo e da justificaccedilatildeo pelo fim que almeja E aquilo que
necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser a essecircncia de nadardquo (Arendt
1994 p 41) O poder encontra sua legitimidade no passado a violecircncia se
justifica pelas consequumlecircncias futuras aquele pela sua constituiccedilatildeo esta pelos
seus objetivos Em razatildeo disso ldquoa violecircncia pode ser justificaacutevel mas nunca seraacute
legiacutetimardquo (Arendt 1994 p 41) Enfim ao vincularem a violecircncia ao poder as
concepccedilotildees poliacuteticas hegemocircnicas dentre elas o marxismo demonstram a
incompreensatildeo de que aqueles satildeo na verdade opostos ldquoonde um domina
absolutamente o outro estaacute ausenterdquo (Arendt 1994 p 44)
Para natildeo cindir a argumentaccedilatildeo criacutetica e com isso tornaacute-la
demasiadamente prolixa retornaremos mais adiante a estas afirmaccedilotildees de
Hannah Arendt sobre poliacutetica e violecircncia Por ora apoacutes termos descrito algumas
categorias centrais do pensamento arendtiano e em especiacutefico os fundamentos
de sua criacutetica agrave relaccedilatildeo entre poliacutetica e violecircncia em Marx passemos na mesma
sequumlecircncia de ideacuteias desenvolvida ateacute aqui ao confronto dessas reflexotildees com
aquelas que a nosso ver correspondem adequadamente tanto ao corpo quanto
ao espiacuterito da obra marxiana
III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
Consideramos desnecessaacuterio demonstrar ad nauseam como a concepccedilatildeo
de trabalho em Marx difere substancialmente daquelas atividades que Arendt
denomina pelos vocaacutebulos trabalho e fabricaccedilatildeo pois para o nosso objetivo
basta que o realizemos apenas em suas linhas gerais Assim em primeiro lugar eacute
necessaacuterio relembrar que ao contraacuterio da concepccedilatildeo arendtiana na obra de Marx
o trabalho natildeo consiste numa atividade que nos vincularia mais ao mundo dos
animais do que ao dos seres humanos propriamente ditos Para ele muito distante
14
de qualquer ilusatildeo acerca de uma vida sem trabalho[12] esta atividade constitui um
momento efetivamente fundante e fundamental da vida humana sem a qual aiacute
sim natildeo nos distinguiriacuteamos em absolutamente nada dos proacuteprios animais[13] Em
termos precisos podemos dizer que o animal natildeo se relaciona com a natureza
ele apenas vive nela eacute sua parte integrante[14] natildeo se distinguindo dela como um
ser consciente o animal eacute portanto incapaz de estabelecer uma mediaccedilatildeo
regulada conscientemente controlada com a natureza (Marx 1985 p 149)
apenas respondendo com maior ou menor labilidade agraves determinaccedilotildees e agraves
constantes mudanccedilas de seu haacutebitat O ser humano por sua vez age de maneira
preacute-ideada em sua atividade metaboacutelica pois em todos os momentos do processo
de trabalho lhe ldquoeacute exigida a vontade orientada a um fimrdquo (Marx 1985 p 150)
Assim o sujeito que trabalha ldquonatildeo apenas efetua uma transformaccedilatildeo da forma da
mateacuteria natural realiza ao mesmo tempo na mateacuteria natural seu objetivo que ele
sabe que determina como lei a espeacutecie e o modo de sua atividade e ao qual tem
de subordinar sua vontaderdquo (Marx 1985 p 150) Natildeo sendo portanto a mera
expressatildeo de determinaccedilotildees ou epifenocircmenos bioloacutegicos o trabalho eacute uma
atividade na qual inevitavelmente entrelaccedilam-se o pensar e o fazer a
consciecircncia e a accedilatildeo com aquela orientando esta para transformar a mateacuteria com
vistas a dar-lhe uma forma adequada agrave satisfaccedilatildeo de alguma necessidade
humana A ideacuteia mediada pelo trabalho cristaliza-se no objeto objeto que longe
de ser meramente natural eacute a manifestaccedilatildeo material da subjetividade humana
posto que soacute existe em razatildeo desta Tanto que no final temos que ldquoo trabalho
estaacute objetivado e o objeto trabalhadordquo (Marx 1985 p 151) num mesmo ato a
subjetividade exteriorizou-se e a materialidade tornou-se subjetiva[15] E eacute claro
como esta objetivaccedilatildeo eacute resultado de accedilotildees conscientes o metabolismo dos
homens em relaccedilatildeo agrave natureza eacute muito mais dinacircmico mutante do que aquele
efetuado pelos animais resultando em formas materiais e sociais
permanentemente alteradas ocorrendo a mesma coisa com a proacutepria
subjetividade humana
15
Sendo uma atividade humanamente produtiva o trabalho natildeo eacute apenas a
relaccedilatildeo do homem com a natureza eacute tambeacutem uma relaccedilatildeo que ocorre entre os
proacuteprios homens ndash e verdadeiramente como trabalho soacute existe a partir desta
relaccedilatildeo Ainda em sua juventude num texto seminal para a elaboraccedilatildeo de suas
reflexotildees posteriores Marx nos diz que o homem ldquosoacute eacute um ser consciente quer
dizer a sua vida constitui para ele um objeto porque eacute um ser geneacuterico
Unicamente por isso eacute que sua atividade surge como atividade livrerdquo (Marx 1985
p 165) Se natildeo fosse um ser social geneacuterico produto e produtor de si e do
gecircnero o ser humano natildeo possuiria as faculdades (consciecircncia linguagem) sem
as quais paradoxalmente o proacuteprio trabalho natildeo existiria E que simultaneamente
como dissemos permitem o aprimoramento e a expansatildeo das fronteiras da vida
humana (individual e coletiva) para muito aleacutem daquelas a que estatildeo restritos os
seres vivos naturais[16]
Nesse caso parece-nos oacutebvio que eacute completamente irrelevante saber se
uma atividade produtiva resulta em produtos mais ou menos duraacuteveis ndash por
exemplo em alimentos ou objetos do mobiliaacuterio ndash para classificaacute-la como estando
mais proacutexima ou mais distante da vida propriamente humana Seja numa
sociedade especiacutefica ou ao longo da histoacuteria humana um produto pode durar mais
ou menos tempo devido a um sem-nuacutemero de fatores tais como os materiais e a
tecnologia empregados as relaccedilotildees sociais sob as quais foi produzido as classes
eou grupos sociais que o utilizaratildeo ndash definindo por exemplo a velocidade e o
perfil de sua obsolescecircncia ou seja se esta eacute real materialmente efetiva ou
socialmente condicionada ndash entre outros e natildeo apenas devido agrave maior ou menor
proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica dos indiviacuteduos A rigor a produccedilatildeo de um
alimento ou medicamento por meio de procedimentos complexos e sofisticados
mas cujo consumo eacute quase imediato (para Arendt ldquoproduto do trabalhordquo)
certamente expressa niacuteveis mais elevados de humanizaccedilatildeo do que a produccedilatildeo de
uma tosca mesa de madeira que perdura seacuteculos passando de geraccedilatildeo a
geraccedilatildeo (Marx 1985 ldquoproduto da fabricaccedilatildeordquo)
16
Essas observaccedilotildees acerca da relaccedilatildeo entre as atividades produtivas e a
durabilidade de suas produccedilotildees natildeo significa em hipoacutetese alguma que a
durabilidade ou natildeo de um produto seja irrelevante para os indiviacuteduos e a
sociedade em geral ateacute mesmo porque os produtos satildeo elementos constitutivos e
condicionantes de certas caracteriacutesticas dos processos de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo
das formaccedilotildees sociais Significa apenas que per se ela natildeo eacute relevante para
mensurar o niacutevel de humanizaccedilatildeo da atividade e das qualificaccedilotildees subjetivas nela
envolvidas Assim nas sociedades capitalistas por exemplo saber se um
determinado objeto constitui parte do maquinaacuterio ou da edificaccedilatildeo (capital fixo) ou
entatildeo se eacute apenas insumo mateacuteria-prima ou meio de subsistecircncia (capital
circulante) eacute significativo prioritariamente em razatildeo de que as proporccedilotildees de seus
respectivos usos e o seu periacuteodo de rotaccedilatildeo afetam de maneira decisiva as taxas
de lucro do capital investido Aleacutem do mais ldquoo fato de um valor de uso aparecer
como mateacuteria-prima meio de trabalho ou produto depende totalmente de sua
funccedilatildeo determinada no processo de trabalho da posiccedilatildeo que nele ocupa e com a
mudanccedila dessa posiccedilatildeo variam essas determinaccedilotildeesrdquo (Marx 1985 p 152)
Quase desnecessaacuterio dizer que tal posiccedilatildeo tambeacutem varia de acordo com o niacutevel
de desenvolvimento das forccedilas produtivas e das relaccedilotildees sociais que constituem a
sociedade em questatildeo Em siacutentese se natildeo podemos definir um objeto como
sendo o resultado de uma atividade inferior ou superior na hierarquia das
atividades humanas (da vita activa arendtiana) devido agrave sua durabilidade[17] ou agrave
sua proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica (agrave manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo do corpo)
qualquer tentativa de mensuraccedilatildeo sob este prisma nos parece completamente
arbitraacuteria inclusive eacute claro a que se funda na distinccedilatildeo arendtiana entre trabalho
e fabricaccedilatildeo
Enfatizar estas caracteriacutesticas do trabalho tambeacutem eacute importante porque
contrariamente agraves qualificaccedilotildees inerentes a ele e agrave fabricaccedilatildeo que de acordo com
Arendt estatildeo diretamente relacionadas agraves qualidades do Animal laborans e do
Homo faber no pensamento marxiano inexiste qualquer menccedilatildeo a uma essecircncia
a-histoacuterica do trabalho isto eacute uma essecircncia que agrave revelia da forma societaacuteria em
17
que a atividade se realiza imprime agrave subjetividade daquele que o executa
inelutaacuteveis qualificaccedilotildees Muito ao contraacuterio As anaacutelises marxianas satildeo
profundamente ancoradas na historicidade dos fenocircmenos naturais e sociais
negando qualquer essencialismo em relaccedilatildeo ao trabalho ou a qualquer outra
atividade bem como ao indiviacuteduo ou grupo de indiviacuteduos que o executa Para
Marx ldquoa essecircncia humana natildeo eacute uma abstraccedilatildeo inerente ao indiviacuteduo singular
Em sua realidade eacute o conjunto das relaccedilotildees sociaisrdquo (Marx 1987 p 13) Por
conseguinte em aberta oposiccedilatildeo agraves proposiccedilotildees arendtianas afirmamos que o
produtivismo natildeo constitui uma caracteriacutestica inerente ao trabalho ndash que com a
ascensatildeo deste agrave esfera puacuteblica teria transbordado as fronteiras da vida privada e
se generalizado socialmente ndash mas sim uma caracteriacutestica que possui suas raiacutezes
nas formas de sociabilidade vigentes no mundo contemporacircneo sejam estas
formas capitalistas ou poacutes-capitalistas[18] Dito de outro modo se o trabalho
assalariado alienado constitui cada vez mais a forma predominante da atividade
produtiva e reprodutiva dos indiviacuteduos nestas sociedades tal desventura natildeo
decorre de uma essecircncia que seja inerente a ele tanto quanto agraves formas preteacuteritas
de trabalho e que tenha se desvencilhado na atualidade das amarras que
limitavam sua expansatildeo A raiz deste fenocircmeno reside no fato de o capital
constituir a relaccedilatildeo social baacutesica das sociedades assinaladas generalizando
aquela forma de trabalho E a propoacutesito do essencialismo produtivista do trabalho
em vaacuterias passagens de sua obra Marx nos mostrou as diferenccedilas existentes
entre as sociedades antigas e as modernas sociedades capitalistas Numa dessas
passagens ele lembra que
Entre os antigos natildeo encontramos uma uacutenica investigaccedilatildeo a propoacutesito de qual a
forma de propriedade etc que seria a mais produtiva que geraria o maacuteximo de
riqueza A riqueza natildeo constituiacutea o objetivo da produccedilatildeo A pesquisa sempre
era sobre qual o tipo de propriedade que geraria os melhores cidadatildeos (Marx
1975 p 80 grifos nossos)
Mesmo em seu acircmbito estritamente privado a propriedade natildeo estava
relacionada prioritariamente aos interesses egoiacutestas do indiviacuteduo mas eram os 18
interesses deste ndash e portanto o uso que fazia daquela ndash que estavam
circunscritos e condicionados pelos interesses da comunidade da qual fazia parte
por mais restrita que esta fosse em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo total Desse modo nestas
formaccedilotildees sociais as atividades produtivas natildeo eram movidas por uma ldquoinerenterdquo
racionalidade produtivista uma racionalidade cujo suposto transbordamento das
fronteiras privadas e o estabelecimento do domiacutenio sobre as outras atividades
caracterizariam ndash segundo Arendt ndash o mundo moderno Em relaccedilatildeo a este sua
principal caracteriacutestica consiste na centralidade na generalizaccedilatildeo e no crescente
predomiacutenio do capital no conjunto das relaccedilotildees sociais Enfim eacute justamente esta
centralidade do capital e suas consequumlecircncias que produz o assalariamento
generalizado dos indiviacuteduos e a subsunccedilatildeo da reproduccedilatildeo socioeconocircmica como
um todo agrave loacutegica produtivista
Numa pequena digressatildeo visando apenas a estreitar as margens de accedilatildeo
das leituras vulgares do marxismo eacute necessaacuterio ressaltar que esta afirmaccedilatildeo da
centralidade do capital nas relaccedilotildees sociais contemporacircneas e do espraiamento
de sua influecircncia pela totalidade social natildeo implica reducionismo econocircmico Na
verdade ela significa apenas a explicitaccedilatildeo de caracteriacutesticas inerentes ao capital
cuja tendecircncia a subsumir a multiplicidade de dimensotildees da vida humana agrave sua
loacutegica acumulatoacuteria expansionista eacute um fato incontestaacutevel ontologicamente
enraizado e racionalmente apreensiacutevel e natildeo um grave equiacutevoco teoacuterico de um
pensamento incapaz de atentar para a complexidade do real Eacute nesse sentido que
comentando a famosa proposiccedilatildeo de Marx segundo a qual ldquoNatildeo eacute a consciecircncia
dos homens que determina o seu ser mas ao contraacuterio eacute o seu ser social que
determina sua consciecircnciardquo[19] (Marx 1982 p 25) Lukaacutecs afirma ldquonesse trecho o
mundo das formas de consciecircncia e seus conteuacutedos natildeo eacute visto como um produto
direto da estrutura econocircmica mas da totalidade do ser social A determinaccedilatildeo da
consciecircncia pelo ser social portanto eacute entendida em seu sentido mais geralrdquo
(Lukaacutecs 1979 p 41) ndash e natildeo como expressatildeo direta mecacircnica e restrita dos
processos econocircmicos
19
Neste toacutepico ateacute o momento detivemo-nos nas distintas concepccedilotildees
acerca do trabalho presentes em Arendt e Marx O caso poreacutem eacute que apesar de
significativas tais concepccedilotildees natildeo circunscrevem sua influecircncia agraves fronteiras
econocircmicas mas extravasam a economia e deitam raiacutezes na totalidade de suas
reflexotildees sobre a vida humana Assim se Arendt tem razatildeo em afirmar que para
Marx o trabalho ndash e a fabricaccedilatildeo apesar da irrelevacircncia desta distinccedilatildeo (trabalho x
fabricaccedilatildeo) no quadro conceitual marxiano ndash eacute tratado como uma atividade
teleoloacutegica cujas relaccedilotildees que estabelece com as outras atividades constitutivas
da vida humana satildeo fundamentais para delinear as caracteriacutesticas da totalidade
social nada justifica sua transposiccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos do trabalho
(concreto) para a concepccedilatildeo de histoacuteria marxiana No entanto eacute justamente isto
que ela faz ao afirmar que em Marx a histoacuteria eacute entendida como um processo
similar ao da fabricaccedilatildeo do artesanato um processo que contemporaneamente
exige a intervenccedilatildeo consciente de um sujeito demiuacutergico ndash o proletariado ndash para
plasmar a nova forma societaacuteria tal como o artesatildeo faz com sua mateacuteria-prima E
igualmente ao afirmar que do mesmo modo que a materializaccedilatildeo do objeto preacute-
ideado expressa o fim do processo gerido pelo artesatildeo a realizaccedilatildeo da sociedade
ldquopreacute-ideadardquo pelo proletariado significaria o fim da histoacuteria
Ora uma das questotildees mais complexas do pensamento social fruto de
inuacutemeras polecircmicas teorias e tratados ao longo dos uacuteltimos seacuteculos ndash
especialmente apoacutes o advento da sociologia ndash eacute a articulaccedilatildeo das accedilotildees
individuais e a reproduccedilatildeo da totalidade social E mesmo certos da impossibilidade
de adentrar no emaranhado de questotildees suscitado pelo tema natildeo podemos omitir
a informaccedilatildeo de que uma leitura criteriosa dos textos marxianos demonstra sem
grande dificuldade a improcedecircncia das criacuteticas de Hannah Arendt De modo
algum condiz com o ldquoespiacuteritordquo da obra marxiana a identificaccedilatildeo da reproduccedilatildeo
social como um todo e nem dos processos de transiccedilatildeo de uma forma societaacuteria a
outra ao modus operandi do trabalho O que natildeo significa por sua vez que a
instabilidade econocircmica e social natildeo fosse objeto de suas preocupaccedilotildees A bem
da verdade sendo o primeiro a entender a centralidade do trabalho e suas
20
consequumlecircncias na produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana Marx se assenhoreou
desde os Manuscritos de 1844 de conhecimentos suficientemente significativos
para criticar em relaccedilatildeo agravequele aspecto inicialmente citado das relaccedilotildees entre
indiviacuteduo e sociedade tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo Assim em
vez da naturalizaccedilatildeo da histoacuteria humana ou da arbitrariedade da vontade e da
razatildeo em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmaccedilatildeo dos
seres humanos como autoprodutores de sua proacutepria histoacuteria e simultaneamente
uma criacutetica agrave hipostasia das potencialidades da razatildeo e das forccedilas humanas nesta
autoproduccedilatildeo Invariavelmente suas anaacutelises reiteram que ldquoOs homens fazem
sua proacutepria histoacuteria mas natildeo a fazem como querem natildeo a fazem sob
circunstacircncias de sua proacutepria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam
diretamente legadas e transmitidas pelo passadordquo (Marx 1986 p 17 grifos
nossos) Nos dias atuais natildeo eacute difiacutecil perceber como por si soacute esta frase nos
mostra quatildeo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e
da realpolitik que cada qual ao seu modo como faces de uma mesma moeda
dominam os discursos poliacuteticos e econocircmicos em voga
Ainda no que diz respeito agrave questatildeo do sujeito demiuacutergico e do finalismo
histoacuterico eacute necessaacuterio que se entenda que mesmo em sua fastidiosa reproduccedilatildeo
cotidiana o trabalho eacute sempre um ato de criaccedilatildeo criaccedilatildeo natildeo apenas de coisas
novas de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma
humanamente apropriada mas criaccedilatildeo da proacutepria subjetividade humana que se
renova a partir das experiecircncias possibilitadas pelos meios e resultados de sua
produccedilatildeo e pelas relaccedilotildees sociais que os envolvem Tendo em mente esta
dinacircmica intriacutenseca agrave atividade vital dos seres humanos e ao mesmo tempo o
caraacuteter que para Marx a totalidade do real[20] assume como concreto pensado
(Marx 1982 p 15) nem a mais poderosa das inteligecircncias humanas tampouco o
concurso delas sob a forma do coletivo partidaacuterio pode em termos conceituais
apreender subsumir absolutamente o real ao pensamento ndash e muito menos
sujeitar as proacuteprias relaccedilotildees sociais a um controle assemelhado ao das teacutecnicas
produtivas
21
Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final
entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja
rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz
consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de
Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo
sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele
ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von
Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia
hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas
sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais
geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de
onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta
observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica
especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente
pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto
natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o
proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela
histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e
seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o
conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade
histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens
em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo
possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas
Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo
de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos
individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica
intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos
altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que
nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que
22
em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a
divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente
a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de
todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada
espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das
diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como
reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori
e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do
trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural
interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado
subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo
social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo
reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo
exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo
que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as
condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)
Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais
de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente
as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de
posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo
(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa
O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias
normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de
finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem
realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute
inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)
Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante
entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de
indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de
eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a
23
casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece
porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da
ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas
significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias
sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca
controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias
objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que
encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano
Em sua Ontologia do ser social ele afirma
Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada
vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as
decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da
totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse
conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa
relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso
porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o
movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da
histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas
etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local
tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que
tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de
transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que
satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do
que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e
consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso
aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)
Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos
individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha
ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias
mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade
oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem
econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo
24
social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve
ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que
historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os
processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem
uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle
destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou
A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a
anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo
incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do
trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer
controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma
infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo
autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais
entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda
organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a
sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)
Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus
ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os
limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de
intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal
qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos
uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana
(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do
pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os
limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir
para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta
ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo
No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras
experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao
nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25
pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas
relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi
drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente
desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses
capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de
regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo
resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica
reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas
experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da
humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua
loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a
accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com
seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social
passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees
marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de
regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos
moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a
consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria
redenccedilatildeo universal
O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos
ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as
acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels
salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido
um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o
movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)
O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se
realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico
do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana
de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo
comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o
26
comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a
forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo
nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao
desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma
sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o
comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no
fim da histoacuteria[22]
Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento
marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute
capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e
desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo
ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso
numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]
mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou
natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana
Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees
que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim
contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das
caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da
limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os
homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara
manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal
Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos
extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a
violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo
Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do
capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre
a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os
revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila
27
material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a
utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de
recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o
revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico
Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder
material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria
se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz
de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e
argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar
o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p
497)
Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos
(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o
discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista
muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)
que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no
encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as
sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece
ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um
discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos
constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das
individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades
eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano
mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em
campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar
plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de
sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar
sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio
colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel
convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e
28
culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem
respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes
subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]
Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)
de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio
das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto
natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive
atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie
No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias
naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o
crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda
escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-
sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo
contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da
incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees
materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos
afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus
processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos
inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos
da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades
humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute
o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses
trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)
Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas
produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa
penetrante passagem sobre o tema lemos
O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto
dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de
29
desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse
nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos
demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua
vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado
naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo
determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas
relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu
proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx
1973 pp 89-90)
Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos
sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a
centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos
aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza
e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham
vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a
intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o
equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente
econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida
social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da
permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas
relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito
da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas
universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada
das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os
homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria
mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das
forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo
adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos
homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia
O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se
compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30
neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo
do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo
pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso
histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive
violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste
(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso
resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na
sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os
antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por
ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses
das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos
Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica
natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades
reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a
estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico
Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da
cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios
juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da
sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela
que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de
duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que
complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo
concreto
O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em
oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem
de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade
desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem
leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da
realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na
comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na
31
sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como
meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes
estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser
profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real
eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem
eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma
soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de
uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)
Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e
imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos
privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma
revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res
publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja
eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da
proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a
violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica
consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a
accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a
vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma
alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento
Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a
essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o
proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua
violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre
dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo
de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a
perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a
violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt
segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser
a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente
32
pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o
antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as
relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de
supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano
Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder
dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se
faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de
violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o
poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa
revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades
viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento
humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo
profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma
resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como
desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo
Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado
como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos
do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute
poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de
propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)
Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de
dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao
contraacuterio
Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como
classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como
classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as
condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em
geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)
33
Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx
1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo
poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer
forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas
formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar
em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis
Quanto a isso eacute importante relembrar que
O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos
limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute
capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade
Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais
ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e
espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a
fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)
Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-
violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo
violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-
socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo
(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-
humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo
humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a
rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios
quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de
coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras
A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um
anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo
(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim
negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se
natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para
natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a
34
contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo
(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-
humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-
violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que
assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)
Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx
caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu
proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios
empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo
entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez
de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do
humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-
capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo
dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os
torna incompatiacuteveis[27]
IV Agrave guisa de conclusatildeo
Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de
Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda
distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de
Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do
pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas
que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio
da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente
sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir
de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns
aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram
envolvidos pela leitura arendtiana
35
Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem
ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem
duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho
Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e
estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do
solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo
neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade
com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se
reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos
intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro
porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento
marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual
formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco
em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e
Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para
o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e
revolucionaacuterios
Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo
XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho
caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos
revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso
imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob
muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes
natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca
demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo
sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas
proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os
argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro
sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas
ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma
36
verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto
que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute
cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido
V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002
Notas
38
Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo
Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo
teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a
estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o
ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque
somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a
abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos
que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e
isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a
accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num
constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas
produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou
menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de
consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados
a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo
antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em
termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e
inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho
como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt
1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels
segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte
daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos
homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e
39
osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida
real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos
desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo
corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade
efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa
produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma
aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio
Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para
produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas
necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a
Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de
qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas
formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na
constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso
ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro
Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se
distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo
reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele
duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo
(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute
afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels
1986 p 19)
40
[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade
esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas
daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades
capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas
carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e
propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que
determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a
p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que
sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram
transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em
grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos
paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital
Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo
crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos
estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem
consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo
social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas
conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento
marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo
implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de
estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo
significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo
dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma
luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude
do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de
uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o
41
entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada
dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas
caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos
do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no
fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje
muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o
sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e
saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente
a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente
severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de
personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de
objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de
produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e
personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar
condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua
perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento
universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social
como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p
85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que
apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo
aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do
esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e
complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em
relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios
revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA
transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em
42
43
massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
-
de qualquer ilusatildeo acerca de uma vida sem trabalho[12] esta atividade constitui um
momento efetivamente fundante e fundamental da vida humana sem a qual aiacute
sim natildeo nos distinguiriacuteamos em absolutamente nada dos proacuteprios animais[13] Em
termos precisos podemos dizer que o animal natildeo se relaciona com a natureza
ele apenas vive nela eacute sua parte integrante[14] natildeo se distinguindo dela como um
ser consciente o animal eacute portanto incapaz de estabelecer uma mediaccedilatildeo
regulada conscientemente controlada com a natureza (Marx 1985 p 149)
apenas respondendo com maior ou menor labilidade agraves determinaccedilotildees e agraves
constantes mudanccedilas de seu haacutebitat O ser humano por sua vez age de maneira
preacute-ideada em sua atividade metaboacutelica pois em todos os momentos do processo
de trabalho lhe ldquoeacute exigida a vontade orientada a um fimrdquo (Marx 1985 p 150)
Assim o sujeito que trabalha ldquonatildeo apenas efetua uma transformaccedilatildeo da forma da
mateacuteria natural realiza ao mesmo tempo na mateacuteria natural seu objetivo que ele
sabe que determina como lei a espeacutecie e o modo de sua atividade e ao qual tem
de subordinar sua vontaderdquo (Marx 1985 p 150) Natildeo sendo portanto a mera
expressatildeo de determinaccedilotildees ou epifenocircmenos bioloacutegicos o trabalho eacute uma
atividade na qual inevitavelmente entrelaccedilam-se o pensar e o fazer a
consciecircncia e a accedilatildeo com aquela orientando esta para transformar a mateacuteria com
vistas a dar-lhe uma forma adequada agrave satisfaccedilatildeo de alguma necessidade
humana A ideacuteia mediada pelo trabalho cristaliza-se no objeto objeto que longe
de ser meramente natural eacute a manifestaccedilatildeo material da subjetividade humana
posto que soacute existe em razatildeo desta Tanto que no final temos que ldquoo trabalho
estaacute objetivado e o objeto trabalhadordquo (Marx 1985 p 151) num mesmo ato a
subjetividade exteriorizou-se e a materialidade tornou-se subjetiva[15] E eacute claro
como esta objetivaccedilatildeo eacute resultado de accedilotildees conscientes o metabolismo dos
homens em relaccedilatildeo agrave natureza eacute muito mais dinacircmico mutante do que aquele
efetuado pelos animais resultando em formas materiais e sociais
permanentemente alteradas ocorrendo a mesma coisa com a proacutepria
subjetividade humana
15
Sendo uma atividade humanamente produtiva o trabalho natildeo eacute apenas a
relaccedilatildeo do homem com a natureza eacute tambeacutem uma relaccedilatildeo que ocorre entre os
proacuteprios homens ndash e verdadeiramente como trabalho soacute existe a partir desta
relaccedilatildeo Ainda em sua juventude num texto seminal para a elaboraccedilatildeo de suas
reflexotildees posteriores Marx nos diz que o homem ldquosoacute eacute um ser consciente quer
dizer a sua vida constitui para ele um objeto porque eacute um ser geneacuterico
Unicamente por isso eacute que sua atividade surge como atividade livrerdquo (Marx 1985
p 165) Se natildeo fosse um ser social geneacuterico produto e produtor de si e do
gecircnero o ser humano natildeo possuiria as faculdades (consciecircncia linguagem) sem
as quais paradoxalmente o proacuteprio trabalho natildeo existiria E que simultaneamente
como dissemos permitem o aprimoramento e a expansatildeo das fronteiras da vida
humana (individual e coletiva) para muito aleacutem daquelas a que estatildeo restritos os
seres vivos naturais[16]
Nesse caso parece-nos oacutebvio que eacute completamente irrelevante saber se
uma atividade produtiva resulta em produtos mais ou menos duraacuteveis ndash por
exemplo em alimentos ou objetos do mobiliaacuterio ndash para classificaacute-la como estando
mais proacutexima ou mais distante da vida propriamente humana Seja numa
sociedade especiacutefica ou ao longo da histoacuteria humana um produto pode durar mais
ou menos tempo devido a um sem-nuacutemero de fatores tais como os materiais e a
tecnologia empregados as relaccedilotildees sociais sob as quais foi produzido as classes
eou grupos sociais que o utilizaratildeo ndash definindo por exemplo a velocidade e o
perfil de sua obsolescecircncia ou seja se esta eacute real materialmente efetiva ou
socialmente condicionada ndash entre outros e natildeo apenas devido agrave maior ou menor
proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica dos indiviacuteduos A rigor a produccedilatildeo de um
alimento ou medicamento por meio de procedimentos complexos e sofisticados
mas cujo consumo eacute quase imediato (para Arendt ldquoproduto do trabalhordquo)
certamente expressa niacuteveis mais elevados de humanizaccedilatildeo do que a produccedilatildeo de
uma tosca mesa de madeira que perdura seacuteculos passando de geraccedilatildeo a
geraccedilatildeo (Marx 1985 ldquoproduto da fabricaccedilatildeordquo)
16
Essas observaccedilotildees acerca da relaccedilatildeo entre as atividades produtivas e a
durabilidade de suas produccedilotildees natildeo significa em hipoacutetese alguma que a
durabilidade ou natildeo de um produto seja irrelevante para os indiviacuteduos e a
sociedade em geral ateacute mesmo porque os produtos satildeo elementos constitutivos e
condicionantes de certas caracteriacutesticas dos processos de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo
das formaccedilotildees sociais Significa apenas que per se ela natildeo eacute relevante para
mensurar o niacutevel de humanizaccedilatildeo da atividade e das qualificaccedilotildees subjetivas nela
envolvidas Assim nas sociedades capitalistas por exemplo saber se um
determinado objeto constitui parte do maquinaacuterio ou da edificaccedilatildeo (capital fixo) ou
entatildeo se eacute apenas insumo mateacuteria-prima ou meio de subsistecircncia (capital
circulante) eacute significativo prioritariamente em razatildeo de que as proporccedilotildees de seus
respectivos usos e o seu periacuteodo de rotaccedilatildeo afetam de maneira decisiva as taxas
de lucro do capital investido Aleacutem do mais ldquoo fato de um valor de uso aparecer
como mateacuteria-prima meio de trabalho ou produto depende totalmente de sua
funccedilatildeo determinada no processo de trabalho da posiccedilatildeo que nele ocupa e com a
mudanccedila dessa posiccedilatildeo variam essas determinaccedilotildeesrdquo (Marx 1985 p 152)
Quase desnecessaacuterio dizer que tal posiccedilatildeo tambeacutem varia de acordo com o niacutevel
de desenvolvimento das forccedilas produtivas e das relaccedilotildees sociais que constituem a
sociedade em questatildeo Em siacutentese se natildeo podemos definir um objeto como
sendo o resultado de uma atividade inferior ou superior na hierarquia das
atividades humanas (da vita activa arendtiana) devido agrave sua durabilidade[17] ou agrave
sua proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica (agrave manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo do corpo)
qualquer tentativa de mensuraccedilatildeo sob este prisma nos parece completamente
arbitraacuteria inclusive eacute claro a que se funda na distinccedilatildeo arendtiana entre trabalho
e fabricaccedilatildeo
Enfatizar estas caracteriacutesticas do trabalho tambeacutem eacute importante porque
contrariamente agraves qualificaccedilotildees inerentes a ele e agrave fabricaccedilatildeo que de acordo com
Arendt estatildeo diretamente relacionadas agraves qualidades do Animal laborans e do
Homo faber no pensamento marxiano inexiste qualquer menccedilatildeo a uma essecircncia
a-histoacuterica do trabalho isto eacute uma essecircncia que agrave revelia da forma societaacuteria em
17
que a atividade se realiza imprime agrave subjetividade daquele que o executa
inelutaacuteveis qualificaccedilotildees Muito ao contraacuterio As anaacutelises marxianas satildeo
profundamente ancoradas na historicidade dos fenocircmenos naturais e sociais
negando qualquer essencialismo em relaccedilatildeo ao trabalho ou a qualquer outra
atividade bem como ao indiviacuteduo ou grupo de indiviacuteduos que o executa Para
Marx ldquoa essecircncia humana natildeo eacute uma abstraccedilatildeo inerente ao indiviacuteduo singular
Em sua realidade eacute o conjunto das relaccedilotildees sociaisrdquo (Marx 1987 p 13) Por
conseguinte em aberta oposiccedilatildeo agraves proposiccedilotildees arendtianas afirmamos que o
produtivismo natildeo constitui uma caracteriacutestica inerente ao trabalho ndash que com a
ascensatildeo deste agrave esfera puacuteblica teria transbordado as fronteiras da vida privada e
se generalizado socialmente ndash mas sim uma caracteriacutestica que possui suas raiacutezes
nas formas de sociabilidade vigentes no mundo contemporacircneo sejam estas
formas capitalistas ou poacutes-capitalistas[18] Dito de outro modo se o trabalho
assalariado alienado constitui cada vez mais a forma predominante da atividade
produtiva e reprodutiva dos indiviacuteduos nestas sociedades tal desventura natildeo
decorre de uma essecircncia que seja inerente a ele tanto quanto agraves formas preteacuteritas
de trabalho e que tenha se desvencilhado na atualidade das amarras que
limitavam sua expansatildeo A raiz deste fenocircmeno reside no fato de o capital
constituir a relaccedilatildeo social baacutesica das sociedades assinaladas generalizando
aquela forma de trabalho E a propoacutesito do essencialismo produtivista do trabalho
em vaacuterias passagens de sua obra Marx nos mostrou as diferenccedilas existentes
entre as sociedades antigas e as modernas sociedades capitalistas Numa dessas
passagens ele lembra que
Entre os antigos natildeo encontramos uma uacutenica investigaccedilatildeo a propoacutesito de qual a
forma de propriedade etc que seria a mais produtiva que geraria o maacuteximo de
riqueza A riqueza natildeo constituiacutea o objetivo da produccedilatildeo A pesquisa sempre
era sobre qual o tipo de propriedade que geraria os melhores cidadatildeos (Marx
1975 p 80 grifos nossos)
Mesmo em seu acircmbito estritamente privado a propriedade natildeo estava
relacionada prioritariamente aos interesses egoiacutestas do indiviacuteduo mas eram os 18
interesses deste ndash e portanto o uso que fazia daquela ndash que estavam
circunscritos e condicionados pelos interesses da comunidade da qual fazia parte
por mais restrita que esta fosse em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo total Desse modo nestas
formaccedilotildees sociais as atividades produtivas natildeo eram movidas por uma ldquoinerenterdquo
racionalidade produtivista uma racionalidade cujo suposto transbordamento das
fronteiras privadas e o estabelecimento do domiacutenio sobre as outras atividades
caracterizariam ndash segundo Arendt ndash o mundo moderno Em relaccedilatildeo a este sua
principal caracteriacutestica consiste na centralidade na generalizaccedilatildeo e no crescente
predomiacutenio do capital no conjunto das relaccedilotildees sociais Enfim eacute justamente esta
centralidade do capital e suas consequumlecircncias que produz o assalariamento
generalizado dos indiviacuteduos e a subsunccedilatildeo da reproduccedilatildeo socioeconocircmica como
um todo agrave loacutegica produtivista
Numa pequena digressatildeo visando apenas a estreitar as margens de accedilatildeo
das leituras vulgares do marxismo eacute necessaacuterio ressaltar que esta afirmaccedilatildeo da
centralidade do capital nas relaccedilotildees sociais contemporacircneas e do espraiamento
de sua influecircncia pela totalidade social natildeo implica reducionismo econocircmico Na
verdade ela significa apenas a explicitaccedilatildeo de caracteriacutesticas inerentes ao capital
cuja tendecircncia a subsumir a multiplicidade de dimensotildees da vida humana agrave sua
loacutegica acumulatoacuteria expansionista eacute um fato incontestaacutevel ontologicamente
enraizado e racionalmente apreensiacutevel e natildeo um grave equiacutevoco teoacuterico de um
pensamento incapaz de atentar para a complexidade do real Eacute nesse sentido que
comentando a famosa proposiccedilatildeo de Marx segundo a qual ldquoNatildeo eacute a consciecircncia
dos homens que determina o seu ser mas ao contraacuterio eacute o seu ser social que
determina sua consciecircnciardquo[19] (Marx 1982 p 25) Lukaacutecs afirma ldquonesse trecho o
mundo das formas de consciecircncia e seus conteuacutedos natildeo eacute visto como um produto
direto da estrutura econocircmica mas da totalidade do ser social A determinaccedilatildeo da
consciecircncia pelo ser social portanto eacute entendida em seu sentido mais geralrdquo
(Lukaacutecs 1979 p 41) ndash e natildeo como expressatildeo direta mecacircnica e restrita dos
processos econocircmicos
19
Neste toacutepico ateacute o momento detivemo-nos nas distintas concepccedilotildees
acerca do trabalho presentes em Arendt e Marx O caso poreacutem eacute que apesar de
significativas tais concepccedilotildees natildeo circunscrevem sua influecircncia agraves fronteiras
econocircmicas mas extravasam a economia e deitam raiacutezes na totalidade de suas
reflexotildees sobre a vida humana Assim se Arendt tem razatildeo em afirmar que para
Marx o trabalho ndash e a fabricaccedilatildeo apesar da irrelevacircncia desta distinccedilatildeo (trabalho x
fabricaccedilatildeo) no quadro conceitual marxiano ndash eacute tratado como uma atividade
teleoloacutegica cujas relaccedilotildees que estabelece com as outras atividades constitutivas
da vida humana satildeo fundamentais para delinear as caracteriacutesticas da totalidade
social nada justifica sua transposiccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos do trabalho
(concreto) para a concepccedilatildeo de histoacuteria marxiana No entanto eacute justamente isto
que ela faz ao afirmar que em Marx a histoacuteria eacute entendida como um processo
similar ao da fabricaccedilatildeo do artesanato um processo que contemporaneamente
exige a intervenccedilatildeo consciente de um sujeito demiuacutergico ndash o proletariado ndash para
plasmar a nova forma societaacuteria tal como o artesatildeo faz com sua mateacuteria-prima E
igualmente ao afirmar que do mesmo modo que a materializaccedilatildeo do objeto preacute-
ideado expressa o fim do processo gerido pelo artesatildeo a realizaccedilatildeo da sociedade
ldquopreacute-ideadardquo pelo proletariado significaria o fim da histoacuteria
Ora uma das questotildees mais complexas do pensamento social fruto de
inuacutemeras polecircmicas teorias e tratados ao longo dos uacuteltimos seacuteculos ndash
especialmente apoacutes o advento da sociologia ndash eacute a articulaccedilatildeo das accedilotildees
individuais e a reproduccedilatildeo da totalidade social E mesmo certos da impossibilidade
de adentrar no emaranhado de questotildees suscitado pelo tema natildeo podemos omitir
a informaccedilatildeo de que uma leitura criteriosa dos textos marxianos demonstra sem
grande dificuldade a improcedecircncia das criacuteticas de Hannah Arendt De modo
algum condiz com o ldquoespiacuteritordquo da obra marxiana a identificaccedilatildeo da reproduccedilatildeo
social como um todo e nem dos processos de transiccedilatildeo de uma forma societaacuteria a
outra ao modus operandi do trabalho O que natildeo significa por sua vez que a
instabilidade econocircmica e social natildeo fosse objeto de suas preocupaccedilotildees A bem
da verdade sendo o primeiro a entender a centralidade do trabalho e suas
20
consequumlecircncias na produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana Marx se assenhoreou
desde os Manuscritos de 1844 de conhecimentos suficientemente significativos
para criticar em relaccedilatildeo agravequele aspecto inicialmente citado das relaccedilotildees entre
indiviacuteduo e sociedade tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo Assim em
vez da naturalizaccedilatildeo da histoacuteria humana ou da arbitrariedade da vontade e da
razatildeo em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmaccedilatildeo dos
seres humanos como autoprodutores de sua proacutepria histoacuteria e simultaneamente
uma criacutetica agrave hipostasia das potencialidades da razatildeo e das forccedilas humanas nesta
autoproduccedilatildeo Invariavelmente suas anaacutelises reiteram que ldquoOs homens fazem
sua proacutepria histoacuteria mas natildeo a fazem como querem natildeo a fazem sob
circunstacircncias de sua proacutepria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam
diretamente legadas e transmitidas pelo passadordquo (Marx 1986 p 17 grifos
nossos) Nos dias atuais natildeo eacute difiacutecil perceber como por si soacute esta frase nos
mostra quatildeo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e
da realpolitik que cada qual ao seu modo como faces de uma mesma moeda
dominam os discursos poliacuteticos e econocircmicos em voga
Ainda no que diz respeito agrave questatildeo do sujeito demiuacutergico e do finalismo
histoacuterico eacute necessaacuterio que se entenda que mesmo em sua fastidiosa reproduccedilatildeo
cotidiana o trabalho eacute sempre um ato de criaccedilatildeo criaccedilatildeo natildeo apenas de coisas
novas de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma
humanamente apropriada mas criaccedilatildeo da proacutepria subjetividade humana que se
renova a partir das experiecircncias possibilitadas pelos meios e resultados de sua
produccedilatildeo e pelas relaccedilotildees sociais que os envolvem Tendo em mente esta
dinacircmica intriacutenseca agrave atividade vital dos seres humanos e ao mesmo tempo o
caraacuteter que para Marx a totalidade do real[20] assume como concreto pensado
(Marx 1982 p 15) nem a mais poderosa das inteligecircncias humanas tampouco o
concurso delas sob a forma do coletivo partidaacuterio pode em termos conceituais
apreender subsumir absolutamente o real ao pensamento ndash e muito menos
sujeitar as proacuteprias relaccedilotildees sociais a um controle assemelhado ao das teacutecnicas
produtivas
21
Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final
entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja
rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz
consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de
Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo
sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele
ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von
Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia
hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas
sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais
geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de
onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta
observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica
especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente
pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto
natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o
proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela
histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e
seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o
conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade
histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens
em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo
possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas
Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo
de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos
individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica
intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos
altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que
nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que
22
em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a
divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente
a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de
todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada
espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das
diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como
reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori
e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do
trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural
interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado
subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo
social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo
reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo
exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo
que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as
condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)
Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais
de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente
as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de
posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo
(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa
O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias
normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de
finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem
realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute
inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)
Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante
entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de
indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de
eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a
23
casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece
porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da
ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas
significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias
sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca
controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias
objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que
encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano
Em sua Ontologia do ser social ele afirma
Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada
vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as
decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da
totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse
conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa
relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso
porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o
movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da
histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas
etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local
tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que
tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de
transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que
satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do
que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e
consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso
aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)
Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos
individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha
ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias
mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade
oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem
econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo
24
social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve
ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que
historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os
processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem
uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle
destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou
A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a
anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo
incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do
trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer
controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma
infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo
autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais
entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda
organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a
sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)
Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus
ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os
limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de
intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal
qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos
uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana
(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do
pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os
limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir
para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta
ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo
No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras
experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao
nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25
pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas
relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi
drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente
desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses
capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de
regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo
resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica
reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas
experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da
humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua
loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a
accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com
seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social
passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees
marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de
regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos
moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a
consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria
redenccedilatildeo universal
O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos
ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as
acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels
salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido
um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o
movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)
O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se
realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico
do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana
de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo
comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o
26
comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a
forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo
nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao
desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma
sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o
comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no
fim da histoacuteria[22]
Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento
marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute
capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e
desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo
ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso
numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]
mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou
natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana
Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees
que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim
contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das
caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da
limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os
homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara
manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal
Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos
extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a
violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo
Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do
capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre
a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os
revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila
27
material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a
utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de
recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o
revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico
Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder
material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria
se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz
de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e
argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar
o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p
497)
Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos
(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o
discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista
muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)
que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no
encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as
sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece
ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um
discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos
constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das
individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades
eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano
mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em
campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar
plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de
sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar
sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio
colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel
convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e
28
culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem
respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes
subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]
Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)
de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio
das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto
natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive
atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie
No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias
naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o
crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda
escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-
sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo
contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da
incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees
materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos
afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus
processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos
inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos
da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades
humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute
o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses
trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)
Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas
produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa
penetrante passagem sobre o tema lemos
O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto
dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de
29
desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse
nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos
demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua
vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado
naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo
determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas
relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu
proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx
1973 pp 89-90)
Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos
sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a
centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos
aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza
e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham
vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a
intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o
equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente
econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida
social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da
permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas
relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito
da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas
universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada
das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os
homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria
mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das
forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo
adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos
homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia
O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se
compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30
neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo
do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo
pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso
histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive
violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste
(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso
resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na
sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os
antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por
ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses
das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos
Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica
natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades
reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a
estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico
Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da
cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios
juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da
sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela
que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de
duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que
complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo
concreto
O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em
oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem
de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade
desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem
leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da
realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na
comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na
31
sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como
meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes
estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser
profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real
eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem
eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma
soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de
uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)
Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e
imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos
privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma
revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res
publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja
eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da
proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a
violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica
consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a
accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a
vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma
alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento
Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a
essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o
proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua
violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre
dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo
de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a
perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a
violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt
segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser
a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente
32
pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o
antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as
relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de
supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano
Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder
dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se
faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de
violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o
poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa
revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades
viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento
humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo
profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma
resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como
desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo
Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado
como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos
do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute
poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de
propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)
Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de
dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao
contraacuterio
Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como
classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como
classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as
condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em
geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)
33
Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx
1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo
poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer
forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas
formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar
em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis
Quanto a isso eacute importante relembrar que
O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos
limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute
capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade
Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais
ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e
espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a
fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)
Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-
violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo
violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-
socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo
(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-
humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo
humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a
rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios
quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de
coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras
A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um
anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo
(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim
negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se
natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para
natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a
34
contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo
(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-
humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-
violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que
assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)
Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx
caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu
proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios
empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo
entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez
de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do
humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-
capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo
dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os
torna incompatiacuteveis[27]
IV Agrave guisa de conclusatildeo
Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de
Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda
distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de
Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do
pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas
que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio
da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente
sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir
de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns
aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram
envolvidos pela leitura arendtiana
35
Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem
ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem
duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho
Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e
estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do
solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo
neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade
com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se
reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos
intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro
porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento
marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual
formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco
em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e
Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para
o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e
revolucionaacuterios
Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo
XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho
caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos
revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso
imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob
muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes
natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca
demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo
sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas
proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os
argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro
sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas
ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma
36
verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto
que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute
cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido
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Notas
38
Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo
Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo
teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a
estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o
ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque
somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a
abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos
que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e
isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a
accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num
constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas
produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou
menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de
consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados
a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo
antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em
termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e
inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho
como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt
1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels
segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte
daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos
homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e
39
osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida
real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos
desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo
corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade
efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa
produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma
aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio
Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para
produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas
necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a
Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de
qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas
formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na
constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso
ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro
Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se
distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo
reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele
duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo
(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute
afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels
1986 p 19)
40
[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade
esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas
daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades
capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas
carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e
propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que
determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a
p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que
sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram
transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em
grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos
paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital
Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo
crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos
estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem
consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo
social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas
conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento
marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo
implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de
estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo
significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo
dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma
luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude
do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de
uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o
41
entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada
dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas
caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos
do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no
fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje
muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o
sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e
saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente
a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente
severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de
personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de
objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de
produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e
personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar
condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua
perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento
universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social
como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p
85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que
apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo
aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do
esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e
complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em
relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios
revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA
transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em
42
43
massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
-
Sendo uma atividade humanamente produtiva o trabalho natildeo eacute apenas a
relaccedilatildeo do homem com a natureza eacute tambeacutem uma relaccedilatildeo que ocorre entre os
proacuteprios homens ndash e verdadeiramente como trabalho soacute existe a partir desta
relaccedilatildeo Ainda em sua juventude num texto seminal para a elaboraccedilatildeo de suas
reflexotildees posteriores Marx nos diz que o homem ldquosoacute eacute um ser consciente quer
dizer a sua vida constitui para ele um objeto porque eacute um ser geneacuterico
Unicamente por isso eacute que sua atividade surge como atividade livrerdquo (Marx 1985
p 165) Se natildeo fosse um ser social geneacuterico produto e produtor de si e do
gecircnero o ser humano natildeo possuiria as faculdades (consciecircncia linguagem) sem
as quais paradoxalmente o proacuteprio trabalho natildeo existiria E que simultaneamente
como dissemos permitem o aprimoramento e a expansatildeo das fronteiras da vida
humana (individual e coletiva) para muito aleacutem daquelas a que estatildeo restritos os
seres vivos naturais[16]
Nesse caso parece-nos oacutebvio que eacute completamente irrelevante saber se
uma atividade produtiva resulta em produtos mais ou menos duraacuteveis ndash por
exemplo em alimentos ou objetos do mobiliaacuterio ndash para classificaacute-la como estando
mais proacutexima ou mais distante da vida propriamente humana Seja numa
sociedade especiacutefica ou ao longo da histoacuteria humana um produto pode durar mais
ou menos tempo devido a um sem-nuacutemero de fatores tais como os materiais e a
tecnologia empregados as relaccedilotildees sociais sob as quais foi produzido as classes
eou grupos sociais que o utilizaratildeo ndash definindo por exemplo a velocidade e o
perfil de sua obsolescecircncia ou seja se esta eacute real materialmente efetiva ou
socialmente condicionada ndash entre outros e natildeo apenas devido agrave maior ou menor
proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica dos indiviacuteduos A rigor a produccedilatildeo de um
alimento ou medicamento por meio de procedimentos complexos e sofisticados
mas cujo consumo eacute quase imediato (para Arendt ldquoproduto do trabalhordquo)
certamente expressa niacuteveis mais elevados de humanizaccedilatildeo do que a produccedilatildeo de
uma tosca mesa de madeira que perdura seacuteculos passando de geraccedilatildeo a
geraccedilatildeo (Marx 1985 ldquoproduto da fabricaccedilatildeordquo)
16
Essas observaccedilotildees acerca da relaccedilatildeo entre as atividades produtivas e a
durabilidade de suas produccedilotildees natildeo significa em hipoacutetese alguma que a
durabilidade ou natildeo de um produto seja irrelevante para os indiviacuteduos e a
sociedade em geral ateacute mesmo porque os produtos satildeo elementos constitutivos e
condicionantes de certas caracteriacutesticas dos processos de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo
das formaccedilotildees sociais Significa apenas que per se ela natildeo eacute relevante para
mensurar o niacutevel de humanizaccedilatildeo da atividade e das qualificaccedilotildees subjetivas nela
envolvidas Assim nas sociedades capitalistas por exemplo saber se um
determinado objeto constitui parte do maquinaacuterio ou da edificaccedilatildeo (capital fixo) ou
entatildeo se eacute apenas insumo mateacuteria-prima ou meio de subsistecircncia (capital
circulante) eacute significativo prioritariamente em razatildeo de que as proporccedilotildees de seus
respectivos usos e o seu periacuteodo de rotaccedilatildeo afetam de maneira decisiva as taxas
de lucro do capital investido Aleacutem do mais ldquoo fato de um valor de uso aparecer
como mateacuteria-prima meio de trabalho ou produto depende totalmente de sua
funccedilatildeo determinada no processo de trabalho da posiccedilatildeo que nele ocupa e com a
mudanccedila dessa posiccedilatildeo variam essas determinaccedilotildeesrdquo (Marx 1985 p 152)
Quase desnecessaacuterio dizer que tal posiccedilatildeo tambeacutem varia de acordo com o niacutevel
de desenvolvimento das forccedilas produtivas e das relaccedilotildees sociais que constituem a
sociedade em questatildeo Em siacutentese se natildeo podemos definir um objeto como
sendo o resultado de uma atividade inferior ou superior na hierarquia das
atividades humanas (da vita activa arendtiana) devido agrave sua durabilidade[17] ou agrave
sua proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica (agrave manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo do corpo)
qualquer tentativa de mensuraccedilatildeo sob este prisma nos parece completamente
arbitraacuteria inclusive eacute claro a que se funda na distinccedilatildeo arendtiana entre trabalho
e fabricaccedilatildeo
Enfatizar estas caracteriacutesticas do trabalho tambeacutem eacute importante porque
contrariamente agraves qualificaccedilotildees inerentes a ele e agrave fabricaccedilatildeo que de acordo com
Arendt estatildeo diretamente relacionadas agraves qualidades do Animal laborans e do
Homo faber no pensamento marxiano inexiste qualquer menccedilatildeo a uma essecircncia
a-histoacuterica do trabalho isto eacute uma essecircncia que agrave revelia da forma societaacuteria em
17
que a atividade se realiza imprime agrave subjetividade daquele que o executa
inelutaacuteveis qualificaccedilotildees Muito ao contraacuterio As anaacutelises marxianas satildeo
profundamente ancoradas na historicidade dos fenocircmenos naturais e sociais
negando qualquer essencialismo em relaccedilatildeo ao trabalho ou a qualquer outra
atividade bem como ao indiviacuteduo ou grupo de indiviacuteduos que o executa Para
Marx ldquoa essecircncia humana natildeo eacute uma abstraccedilatildeo inerente ao indiviacuteduo singular
Em sua realidade eacute o conjunto das relaccedilotildees sociaisrdquo (Marx 1987 p 13) Por
conseguinte em aberta oposiccedilatildeo agraves proposiccedilotildees arendtianas afirmamos que o
produtivismo natildeo constitui uma caracteriacutestica inerente ao trabalho ndash que com a
ascensatildeo deste agrave esfera puacuteblica teria transbordado as fronteiras da vida privada e
se generalizado socialmente ndash mas sim uma caracteriacutestica que possui suas raiacutezes
nas formas de sociabilidade vigentes no mundo contemporacircneo sejam estas
formas capitalistas ou poacutes-capitalistas[18] Dito de outro modo se o trabalho
assalariado alienado constitui cada vez mais a forma predominante da atividade
produtiva e reprodutiva dos indiviacuteduos nestas sociedades tal desventura natildeo
decorre de uma essecircncia que seja inerente a ele tanto quanto agraves formas preteacuteritas
de trabalho e que tenha se desvencilhado na atualidade das amarras que
limitavam sua expansatildeo A raiz deste fenocircmeno reside no fato de o capital
constituir a relaccedilatildeo social baacutesica das sociedades assinaladas generalizando
aquela forma de trabalho E a propoacutesito do essencialismo produtivista do trabalho
em vaacuterias passagens de sua obra Marx nos mostrou as diferenccedilas existentes
entre as sociedades antigas e as modernas sociedades capitalistas Numa dessas
passagens ele lembra que
Entre os antigos natildeo encontramos uma uacutenica investigaccedilatildeo a propoacutesito de qual a
forma de propriedade etc que seria a mais produtiva que geraria o maacuteximo de
riqueza A riqueza natildeo constituiacutea o objetivo da produccedilatildeo A pesquisa sempre
era sobre qual o tipo de propriedade que geraria os melhores cidadatildeos (Marx
1975 p 80 grifos nossos)
Mesmo em seu acircmbito estritamente privado a propriedade natildeo estava
relacionada prioritariamente aos interesses egoiacutestas do indiviacuteduo mas eram os 18
interesses deste ndash e portanto o uso que fazia daquela ndash que estavam
circunscritos e condicionados pelos interesses da comunidade da qual fazia parte
por mais restrita que esta fosse em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo total Desse modo nestas
formaccedilotildees sociais as atividades produtivas natildeo eram movidas por uma ldquoinerenterdquo
racionalidade produtivista uma racionalidade cujo suposto transbordamento das
fronteiras privadas e o estabelecimento do domiacutenio sobre as outras atividades
caracterizariam ndash segundo Arendt ndash o mundo moderno Em relaccedilatildeo a este sua
principal caracteriacutestica consiste na centralidade na generalizaccedilatildeo e no crescente
predomiacutenio do capital no conjunto das relaccedilotildees sociais Enfim eacute justamente esta
centralidade do capital e suas consequumlecircncias que produz o assalariamento
generalizado dos indiviacuteduos e a subsunccedilatildeo da reproduccedilatildeo socioeconocircmica como
um todo agrave loacutegica produtivista
Numa pequena digressatildeo visando apenas a estreitar as margens de accedilatildeo
das leituras vulgares do marxismo eacute necessaacuterio ressaltar que esta afirmaccedilatildeo da
centralidade do capital nas relaccedilotildees sociais contemporacircneas e do espraiamento
de sua influecircncia pela totalidade social natildeo implica reducionismo econocircmico Na
verdade ela significa apenas a explicitaccedilatildeo de caracteriacutesticas inerentes ao capital
cuja tendecircncia a subsumir a multiplicidade de dimensotildees da vida humana agrave sua
loacutegica acumulatoacuteria expansionista eacute um fato incontestaacutevel ontologicamente
enraizado e racionalmente apreensiacutevel e natildeo um grave equiacutevoco teoacuterico de um
pensamento incapaz de atentar para a complexidade do real Eacute nesse sentido que
comentando a famosa proposiccedilatildeo de Marx segundo a qual ldquoNatildeo eacute a consciecircncia
dos homens que determina o seu ser mas ao contraacuterio eacute o seu ser social que
determina sua consciecircnciardquo[19] (Marx 1982 p 25) Lukaacutecs afirma ldquonesse trecho o
mundo das formas de consciecircncia e seus conteuacutedos natildeo eacute visto como um produto
direto da estrutura econocircmica mas da totalidade do ser social A determinaccedilatildeo da
consciecircncia pelo ser social portanto eacute entendida em seu sentido mais geralrdquo
(Lukaacutecs 1979 p 41) ndash e natildeo como expressatildeo direta mecacircnica e restrita dos
processos econocircmicos
19
Neste toacutepico ateacute o momento detivemo-nos nas distintas concepccedilotildees
acerca do trabalho presentes em Arendt e Marx O caso poreacutem eacute que apesar de
significativas tais concepccedilotildees natildeo circunscrevem sua influecircncia agraves fronteiras
econocircmicas mas extravasam a economia e deitam raiacutezes na totalidade de suas
reflexotildees sobre a vida humana Assim se Arendt tem razatildeo em afirmar que para
Marx o trabalho ndash e a fabricaccedilatildeo apesar da irrelevacircncia desta distinccedilatildeo (trabalho x
fabricaccedilatildeo) no quadro conceitual marxiano ndash eacute tratado como uma atividade
teleoloacutegica cujas relaccedilotildees que estabelece com as outras atividades constitutivas
da vida humana satildeo fundamentais para delinear as caracteriacutesticas da totalidade
social nada justifica sua transposiccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos do trabalho
(concreto) para a concepccedilatildeo de histoacuteria marxiana No entanto eacute justamente isto
que ela faz ao afirmar que em Marx a histoacuteria eacute entendida como um processo
similar ao da fabricaccedilatildeo do artesanato um processo que contemporaneamente
exige a intervenccedilatildeo consciente de um sujeito demiuacutergico ndash o proletariado ndash para
plasmar a nova forma societaacuteria tal como o artesatildeo faz com sua mateacuteria-prima E
igualmente ao afirmar que do mesmo modo que a materializaccedilatildeo do objeto preacute-
ideado expressa o fim do processo gerido pelo artesatildeo a realizaccedilatildeo da sociedade
ldquopreacute-ideadardquo pelo proletariado significaria o fim da histoacuteria
Ora uma das questotildees mais complexas do pensamento social fruto de
inuacutemeras polecircmicas teorias e tratados ao longo dos uacuteltimos seacuteculos ndash
especialmente apoacutes o advento da sociologia ndash eacute a articulaccedilatildeo das accedilotildees
individuais e a reproduccedilatildeo da totalidade social E mesmo certos da impossibilidade
de adentrar no emaranhado de questotildees suscitado pelo tema natildeo podemos omitir
a informaccedilatildeo de que uma leitura criteriosa dos textos marxianos demonstra sem
grande dificuldade a improcedecircncia das criacuteticas de Hannah Arendt De modo
algum condiz com o ldquoespiacuteritordquo da obra marxiana a identificaccedilatildeo da reproduccedilatildeo
social como um todo e nem dos processos de transiccedilatildeo de uma forma societaacuteria a
outra ao modus operandi do trabalho O que natildeo significa por sua vez que a
instabilidade econocircmica e social natildeo fosse objeto de suas preocupaccedilotildees A bem
da verdade sendo o primeiro a entender a centralidade do trabalho e suas
20
consequumlecircncias na produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana Marx se assenhoreou
desde os Manuscritos de 1844 de conhecimentos suficientemente significativos
para criticar em relaccedilatildeo agravequele aspecto inicialmente citado das relaccedilotildees entre
indiviacuteduo e sociedade tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo Assim em
vez da naturalizaccedilatildeo da histoacuteria humana ou da arbitrariedade da vontade e da
razatildeo em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmaccedilatildeo dos
seres humanos como autoprodutores de sua proacutepria histoacuteria e simultaneamente
uma criacutetica agrave hipostasia das potencialidades da razatildeo e das forccedilas humanas nesta
autoproduccedilatildeo Invariavelmente suas anaacutelises reiteram que ldquoOs homens fazem
sua proacutepria histoacuteria mas natildeo a fazem como querem natildeo a fazem sob
circunstacircncias de sua proacutepria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam
diretamente legadas e transmitidas pelo passadordquo (Marx 1986 p 17 grifos
nossos) Nos dias atuais natildeo eacute difiacutecil perceber como por si soacute esta frase nos
mostra quatildeo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e
da realpolitik que cada qual ao seu modo como faces de uma mesma moeda
dominam os discursos poliacuteticos e econocircmicos em voga
Ainda no que diz respeito agrave questatildeo do sujeito demiuacutergico e do finalismo
histoacuterico eacute necessaacuterio que se entenda que mesmo em sua fastidiosa reproduccedilatildeo
cotidiana o trabalho eacute sempre um ato de criaccedilatildeo criaccedilatildeo natildeo apenas de coisas
novas de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma
humanamente apropriada mas criaccedilatildeo da proacutepria subjetividade humana que se
renova a partir das experiecircncias possibilitadas pelos meios e resultados de sua
produccedilatildeo e pelas relaccedilotildees sociais que os envolvem Tendo em mente esta
dinacircmica intriacutenseca agrave atividade vital dos seres humanos e ao mesmo tempo o
caraacuteter que para Marx a totalidade do real[20] assume como concreto pensado
(Marx 1982 p 15) nem a mais poderosa das inteligecircncias humanas tampouco o
concurso delas sob a forma do coletivo partidaacuterio pode em termos conceituais
apreender subsumir absolutamente o real ao pensamento ndash e muito menos
sujeitar as proacuteprias relaccedilotildees sociais a um controle assemelhado ao das teacutecnicas
produtivas
21
Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final
entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja
rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz
consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de
Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo
sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele
ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von
Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia
hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas
sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais
geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de
onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta
observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica
especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente
pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto
natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o
proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela
histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e
seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o
conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade
histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens
em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo
possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas
Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo
de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos
individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica
intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos
altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que
nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que
22
em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a
divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente
a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de
todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada
espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das
diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como
reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori
e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do
trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural
interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado
subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo
social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo
reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo
exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo
que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as
condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)
Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais
de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente
as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de
posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo
(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa
O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias
normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de
finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem
realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute
inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)
Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante
entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de
indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de
eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a
23
casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece
porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da
ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas
significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias
sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca
controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias
objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que
encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano
Em sua Ontologia do ser social ele afirma
Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada
vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as
decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da
totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse
conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa
relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso
porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o
movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da
histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas
etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local
tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que
tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de
transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que
satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do
que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e
consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso
aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)
Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos
individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha
ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias
mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade
oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem
econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo
24
social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve
ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que
historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os
processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem
uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle
destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou
A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a
anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo
incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do
trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer
controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma
infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo
autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais
entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda
organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a
sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)
Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus
ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os
limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de
intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal
qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos
uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana
(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do
pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os
limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir
para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta
ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo
No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras
experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao
nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25
pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas
relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi
drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente
desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses
capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de
regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo
resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica
reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas
experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da
humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua
loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a
accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com
seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social
passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees
marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de
regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos
moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a
consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria
redenccedilatildeo universal
O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos
ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as
acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels
salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido
um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o
movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)
O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se
realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico
do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana
de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo
comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o
26
comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a
forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo
nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao
desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma
sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o
comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no
fim da histoacuteria[22]
Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento
marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute
capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e
desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo
ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso
numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]
mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou
natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana
Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees
que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim
contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das
caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da
limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os
homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara
manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal
Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos
extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a
violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo
Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do
capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre
a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os
revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila
27
material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a
utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de
recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o
revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico
Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder
material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria
se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz
de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e
argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar
o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p
497)
Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos
(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o
discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista
muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)
que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no
encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as
sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece
ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um
discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos
constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das
individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades
eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano
mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em
campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar
plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de
sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar
sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio
colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel
convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e
28
culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem
respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes
subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]
Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)
de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio
das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto
natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive
atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie
No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias
naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o
crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda
escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-
sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo
contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da
incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees
materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos
afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus
processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos
inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos
da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades
humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute
o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses
trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)
Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas
produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa
penetrante passagem sobre o tema lemos
O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto
dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de
29
desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse
nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos
demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua
vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado
naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo
determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas
relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu
proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx
1973 pp 89-90)
Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos
sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a
centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos
aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza
e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham
vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a
intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o
equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente
econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida
social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da
permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas
relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito
da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas
universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada
das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os
homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria
mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das
forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo
adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos
homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia
O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se
compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30
neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo
do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo
pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso
histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive
violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste
(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso
resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na
sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os
antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por
ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses
das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos
Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica
natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades
reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a
estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico
Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da
cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios
juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da
sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela
que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de
duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que
complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo
concreto
O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em
oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem
de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade
desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem
leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da
realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na
comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na
31
sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como
meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes
estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser
profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real
eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem
eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma
soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de
uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)
Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e
imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos
privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma
revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res
publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja
eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da
proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a
violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica
consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a
accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a
vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma
alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento
Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a
essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o
proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua
violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre
dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo
de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a
perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a
violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt
segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser
a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente
32
pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o
antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as
relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de
supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano
Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder
dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se
faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de
violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o
poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa
revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades
viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento
humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo
profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma
resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como
desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo
Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado
como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos
do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute
poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de
propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)
Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de
dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao
contraacuterio
Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como
classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como
classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as
condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em
geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)
33
Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx
1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo
poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer
forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas
formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar
em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis
Quanto a isso eacute importante relembrar que
O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos
limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute
capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade
Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais
ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e
espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a
fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)
Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-
violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo
violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-
socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo
(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-
humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo
humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a
rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios
quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de
coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras
A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um
anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo
(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim
negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se
natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para
natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a
34
contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo
(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-
humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-
violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que
assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)
Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx
caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu
proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios
empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo
entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez
de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do
humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-
capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo
dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os
torna incompatiacuteveis[27]
IV Agrave guisa de conclusatildeo
Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de
Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda
distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de
Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do
pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas
que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio
da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente
sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir
de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns
aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram
envolvidos pela leitura arendtiana
35
Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem
ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem
duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho
Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e
estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do
solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo
neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade
com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se
reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos
intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro
porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento
marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual
formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco
em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e
Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para
o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e
revolucionaacuterios
Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo
XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho
caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos
revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso
imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob
muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes
natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca
demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo
sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas
proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os
argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro
sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas
ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma
36
verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto
que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute
cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido
V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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MAGALHAtildeES Maria Thereza C A categoria de trabalho (labor) em H Arendt
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37
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Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987a
______ Glosas criacuteticas al artiacuteculo ldquoEl rey de Prusia y la reforma social Por un
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de Carlos Marx Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987b
______ Manuscritos econocircmico-filosoacuteficos Lisboa Ediccedilotildees 70 1989a
______ A miseacuteria da filosofia 2 ed Satildeo Paulo Global 1989b
______ A questatildeo judaica 2 ed Satildeo Paulo Moraes 1991
MARX K ENGELS F A ideologia alematilde (Feuerbach) 6 ed Satildeo Paulo Hucitec
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______ A sagrada famiacutelia Satildeo Paulo Moraes 1987b
______ Manifesto comunista Satildeo Paulo Boitempo 1998
MEacuteSZAacuteROS I Poliacutetica radical e transiccedilatildeo para o socialismo reflexotildees sobre o
centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio
1983
______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002
Notas
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Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo
Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo
teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a
estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o
ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque
somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a
abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos
que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e
isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a
accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num
constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas
produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou
menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de
consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados
a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo
antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em
termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e
inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho
como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt
1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels
segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte
daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos
homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e
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osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida
real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos
desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo
corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade
efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa
produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma
aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio
Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para
produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas
necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a
Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de
qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas
formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na
constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso
ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro
Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se
distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo
reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele
duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo
(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute
afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels
1986 p 19)
40
[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade
esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas
daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades
capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas
carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e
propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que
determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a
p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que
sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram
transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em
grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos
paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital
Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo
crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos
estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem
consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo
social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas
conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento
marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo
implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de
estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo
significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo
dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma
luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude
do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de
uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o
41
entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada
dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas
caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos
do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no
fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje
muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o
sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e
saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente
a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente
severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de
personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de
objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de
produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e
personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar
condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua
perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento
universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social
como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p
85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que
apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo
aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do
esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e
complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em
relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios
revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA
transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em
42
43
massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
-
Essas observaccedilotildees acerca da relaccedilatildeo entre as atividades produtivas e a
durabilidade de suas produccedilotildees natildeo significa em hipoacutetese alguma que a
durabilidade ou natildeo de um produto seja irrelevante para os indiviacuteduos e a
sociedade em geral ateacute mesmo porque os produtos satildeo elementos constitutivos e
condicionantes de certas caracteriacutesticas dos processos de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo
das formaccedilotildees sociais Significa apenas que per se ela natildeo eacute relevante para
mensurar o niacutevel de humanizaccedilatildeo da atividade e das qualificaccedilotildees subjetivas nela
envolvidas Assim nas sociedades capitalistas por exemplo saber se um
determinado objeto constitui parte do maquinaacuterio ou da edificaccedilatildeo (capital fixo) ou
entatildeo se eacute apenas insumo mateacuteria-prima ou meio de subsistecircncia (capital
circulante) eacute significativo prioritariamente em razatildeo de que as proporccedilotildees de seus
respectivos usos e o seu periacuteodo de rotaccedilatildeo afetam de maneira decisiva as taxas
de lucro do capital investido Aleacutem do mais ldquoo fato de um valor de uso aparecer
como mateacuteria-prima meio de trabalho ou produto depende totalmente de sua
funccedilatildeo determinada no processo de trabalho da posiccedilatildeo que nele ocupa e com a
mudanccedila dessa posiccedilatildeo variam essas determinaccedilotildeesrdquo (Marx 1985 p 152)
Quase desnecessaacuterio dizer que tal posiccedilatildeo tambeacutem varia de acordo com o niacutevel
de desenvolvimento das forccedilas produtivas e das relaccedilotildees sociais que constituem a
sociedade em questatildeo Em siacutentese se natildeo podemos definir um objeto como
sendo o resultado de uma atividade inferior ou superior na hierarquia das
atividades humanas (da vita activa arendtiana) devido agrave sua durabilidade[17] ou agrave
sua proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica (agrave manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo do corpo)
qualquer tentativa de mensuraccedilatildeo sob este prisma nos parece completamente
arbitraacuteria inclusive eacute claro a que se funda na distinccedilatildeo arendtiana entre trabalho
e fabricaccedilatildeo
Enfatizar estas caracteriacutesticas do trabalho tambeacutem eacute importante porque
contrariamente agraves qualificaccedilotildees inerentes a ele e agrave fabricaccedilatildeo que de acordo com
Arendt estatildeo diretamente relacionadas agraves qualidades do Animal laborans e do
Homo faber no pensamento marxiano inexiste qualquer menccedilatildeo a uma essecircncia
a-histoacuterica do trabalho isto eacute uma essecircncia que agrave revelia da forma societaacuteria em
17
que a atividade se realiza imprime agrave subjetividade daquele que o executa
inelutaacuteveis qualificaccedilotildees Muito ao contraacuterio As anaacutelises marxianas satildeo
profundamente ancoradas na historicidade dos fenocircmenos naturais e sociais
negando qualquer essencialismo em relaccedilatildeo ao trabalho ou a qualquer outra
atividade bem como ao indiviacuteduo ou grupo de indiviacuteduos que o executa Para
Marx ldquoa essecircncia humana natildeo eacute uma abstraccedilatildeo inerente ao indiviacuteduo singular
Em sua realidade eacute o conjunto das relaccedilotildees sociaisrdquo (Marx 1987 p 13) Por
conseguinte em aberta oposiccedilatildeo agraves proposiccedilotildees arendtianas afirmamos que o
produtivismo natildeo constitui uma caracteriacutestica inerente ao trabalho ndash que com a
ascensatildeo deste agrave esfera puacuteblica teria transbordado as fronteiras da vida privada e
se generalizado socialmente ndash mas sim uma caracteriacutestica que possui suas raiacutezes
nas formas de sociabilidade vigentes no mundo contemporacircneo sejam estas
formas capitalistas ou poacutes-capitalistas[18] Dito de outro modo se o trabalho
assalariado alienado constitui cada vez mais a forma predominante da atividade
produtiva e reprodutiva dos indiviacuteduos nestas sociedades tal desventura natildeo
decorre de uma essecircncia que seja inerente a ele tanto quanto agraves formas preteacuteritas
de trabalho e que tenha se desvencilhado na atualidade das amarras que
limitavam sua expansatildeo A raiz deste fenocircmeno reside no fato de o capital
constituir a relaccedilatildeo social baacutesica das sociedades assinaladas generalizando
aquela forma de trabalho E a propoacutesito do essencialismo produtivista do trabalho
em vaacuterias passagens de sua obra Marx nos mostrou as diferenccedilas existentes
entre as sociedades antigas e as modernas sociedades capitalistas Numa dessas
passagens ele lembra que
Entre os antigos natildeo encontramos uma uacutenica investigaccedilatildeo a propoacutesito de qual a
forma de propriedade etc que seria a mais produtiva que geraria o maacuteximo de
riqueza A riqueza natildeo constituiacutea o objetivo da produccedilatildeo A pesquisa sempre
era sobre qual o tipo de propriedade que geraria os melhores cidadatildeos (Marx
1975 p 80 grifos nossos)
Mesmo em seu acircmbito estritamente privado a propriedade natildeo estava
relacionada prioritariamente aos interesses egoiacutestas do indiviacuteduo mas eram os 18
interesses deste ndash e portanto o uso que fazia daquela ndash que estavam
circunscritos e condicionados pelos interesses da comunidade da qual fazia parte
por mais restrita que esta fosse em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo total Desse modo nestas
formaccedilotildees sociais as atividades produtivas natildeo eram movidas por uma ldquoinerenterdquo
racionalidade produtivista uma racionalidade cujo suposto transbordamento das
fronteiras privadas e o estabelecimento do domiacutenio sobre as outras atividades
caracterizariam ndash segundo Arendt ndash o mundo moderno Em relaccedilatildeo a este sua
principal caracteriacutestica consiste na centralidade na generalizaccedilatildeo e no crescente
predomiacutenio do capital no conjunto das relaccedilotildees sociais Enfim eacute justamente esta
centralidade do capital e suas consequumlecircncias que produz o assalariamento
generalizado dos indiviacuteduos e a subsunccedilatildeo da reproduccedilatildeo socioeconocircmica como
um todo agrave loacutegica produtivista
Numa pequena digressatildeo visando apenas a estreitar as margens de accedilatildeo
das leituras vulgares do marxismo eacute necessaacuterio ressaltar que esta afirmaccedilatildeo da
centralidade do capital nas relaccedilotildees sociais contemporacircneas e do espraiamento
de sua influecircncia pela totalidade social natildeo implica reducionismo econocircmico Na
verdade ela significa apenas a explicitaccedilatildeo de caracteriacutesticas inerentes ao capital
cuja tendecircncia a subsumir a multiplicidade de dimensotildees da vida humana agrave sua
loacutegica acumulatoacuteria expansionista eacute um fato incontestaacutevel ontologicamente
enraizado e racionalmente apreensiacutevel e natildeo um grave equiacutevoco teoacuterico de um
pensamento incapaz de atentar para a complexidade do real Eacute nesse sentido que
comentando a famosa proposiccedilatildeo de Marx segundo a qual ldquoNatildeo eacute a consciecircncia
dos homens que determina o seu ser mas ao contraacuterio eacute o seu ser social que
determina sua consciecircnciardquo[19] (Marx 1982 p 25) Lukaacutecs afirma ldquonesse trecho o
mundo das formas de consciecircncia e seus conteuacutedos natildeo eacute visto como um produto
direto da estrutura econocircmica mas da totalidade do ser social A determinaccedilatildeo da
consciecircncia pelo ser social portanto eacute entendida em seu sentido mais geralrdquo
(Lukaacutecs 1979 p 41) ndash e natildeo como expressatildeo direta mecacircnica e restrita dos
processos econocircmicos
19
Neste toacutepico ateacute o momento detivemo-nos nas distintas concepccedilotildees
acerca do trabalho presentes em Arendt e Marx O caso poreacutem eacute que apesar de
significativas tais concepccedilotildees natildeo circunscrevem sua influecircncia agraves fronteiras
econocircmicas mas extravasam a economia e deitam raiacutezes na totalidade de suas
reflexotildees sobre a vida humana Assim se Arendt tem razatildeo em afirmar que para
Marx o trabalho ndash e a fabricaccedilatildeo apesar da irrelevacircncia desta distinccedilatildeo (trabalho x
fabricaccedilatildeo) no quadro conceitual marxiano ndash eacute tratado como uma atividade
teleoloacutegica cujas relaccedilotildees que estabelece com as outras atividades constitutivas
da vida humana satildeo fundamentais para delinear as caracteriacutesticas da totalidade
social nada justifica sua transposiccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos do trabalho
(concreto) para a concepccedilatildeo de histoacuteria marxiana No entanto eacute justamente isto
que ela faz ao afirmar que em Marx a histoacuteria eacute entendida como um processo
similar ao da fabricaccedilatildeo do artesanato um processo que contemporaneamente
exige a intervenccedilatildeo consciente de um sujeito demiuacutergico ndash o proletariado ndash para
plasmar a nova forma societaacuteria tal como o artesatildeo faz com sua mateacuteria-prima E
igualmente ao afirmar que do mesmo modo que a materializaccedilatildeo do objeto preacute-
ideado expressa o fim do processo gerido pelo artesatildeo a realizaccedilatildeo da sociedade
ldquopreacute-ideadardquo pelo proletariado significaria o fim da histoacuteria
Ora uma das questotildees mais complexas do pensamento social fruto de
inuacutemeras polecircmicas teorias e tratados ao longo dos uacuteltimos seacuteculos ndash
especialmente apoacutes o advento da sociologia ndash eacute a articulaccedilatildeo das accedilotildees
individuais e a reproduccedilatildeo da totalidade social E mesmo certos da impossibilidade
de adentrar no emaranhado de questotildees suscitado pelo tema natildeo podemos omitir
a informaccedilatildeo de que uma leitura criteriosa dos textos marxianos demonstra sem
grande dificuldade a improcedecircncia das criacuteticas de Hannah Arendt De modo
algum condiz com o ldquoespiacuteritordquo da obra marxiana a identificaccedilatildeo da reproduccedilatildeo
social como um todo e nem dos processos de transiccedilatildeo de uma forma societaacuteria a
outra ao modus operandi do trabalho O que natildeo significa por sua vez que a
instabilidade econocircmica e social natildeo fosse objeto de suas preocupaccedilotildees A bem
da verdade sendo o primeiro a entender a centralidade do trabalho e suas
20
consequumlecircncias na produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana Marx se assenhoreou
desde os Manuscritos de 1844 de conhecimentos suficientemente significativos
para criticar em relaccedilatildeo agravequele aspecto inicialmente citado das relaccedilotildees entre
indiviacuteduo e sociedade tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo Assim em
vez da naturalizaccedilatildeo da histoacuteria humana ou da arbitrariedade da vontade e da
razatildeo em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmaccedilatildeo dos
seres humanos como autoprodutores de sua proacutepria histoacuteria e simultaneamente
uma criacutetica agrave hipostasia das potencialidades da razatildeo e das forccedilas humanas nesta
autoproduccedilatildeo Invariavelmente suas anaacutelises reiteram que ldquoOs homens fazem
sua proacutepria histoacuteria mas natildeo a fazem como querem natildeo a fazem sob
circunstacircncias de sua proacutepria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam
diretamente legadas e transmitidas pelo passadordquo (Marx 1986 p 17 grifos
nossos) Nos dias atuais natildeo eacute difiacutecil perceber como por si soacute esta frase nos
mostra quatildeo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e
da realpolitik que cada qual ao seu modo como faces de uma mesma moeda
dominam os discursos poliacuteticos e econocircmicos em voga
Ainda no que diz respeito agrave questatildeo do sujeito demiuacutergico e do finalismo
histoacuterico eacute necessaacuterio que se entenda que mesmo em sua fastidiosa reproduccedilatildeo
cotidiana o trabalho eacute sempre um ato de criaccedilatildeo criaccedilatildeo natildeo apenas de coisas
novas de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma
humanamente apropriada mas criaccedilatildeo da proacutepria subjetividade humana que se
renova a partir das experiecircncias possibilitadas pelos meios e resultados de sua
produccedilatildeo e pelas relaccedilotildees sociais que os envolvem Tendo em mente esta
dinacircmica intriacutenseca agrave atividade vital dos seres humanos e ao mesmo tempo o
caraacuteter que para Marx a totalidade do real[20] assume como concreto pensado
(Marx 1982 p 15) nem a mais poderosa das inteligecircncias humanas tampouco o
concurso delas sob a forma do coletivo partidaacuterio pode em termos conceituais
apreender subsumir absolutamente o real ao pensamento ndash e muito menos
sujeitar as proacuteprias relaccedilotildees sociais a um controle assemelhado ao das teacutecnicas
produtivas
21
Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final
entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja
rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz
consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de
Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo
sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele
ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von
Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia
hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas
sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais
geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de
onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta
observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica
especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente
pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto
natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o
proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela
histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e
seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o
conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade
histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens
em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo
possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas
Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo
de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos
individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica
intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos
altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que
nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que
22
em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a
divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente
a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de
todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada
espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das
diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como
reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori
e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do
trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural
interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado
subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo
social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo
reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo
exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo
que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as
condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)
Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais
de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente
as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de
posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo
(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa
O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias
normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de
finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem
realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute
inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)
Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante
entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de
indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de
eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a
23
casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece
porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da
ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas
significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias
sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca
controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias
objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que
encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano
Em sua Ontologia do ser social ele afirma
Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada
vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as
decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da
totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse
conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa
relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso
porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o
movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da
histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas
etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local
tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que
tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de
transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que
satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do
que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e
consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso
aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)
Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos
individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha
ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias
mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade
oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem
econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo
24
social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve
ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que
historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os
processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem
uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle
destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou
A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a
anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo
incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do
trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer
controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma
infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo
autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais
entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda
organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a
sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)
Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus
ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os
limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de
intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal
qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos
uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana
(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do
pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os
limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir
para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta
ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo
No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras
experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao
nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25
pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas
relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi
drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente
desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses
capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de
regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo
resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica
reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas
experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da
humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua
loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a
accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com
seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social
passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees
marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de
regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos
moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a
consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria
redenccedilatildeo universal
O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos
ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as
acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels
salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido
um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o
movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)
O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se
realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico
do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana
de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo
comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o
26
comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a
forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo
nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao
desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma
sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o
comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no
fim da histoacuteria[22]
Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento
marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute
capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e
desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo
ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso
numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]
mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou
natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana
Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees
que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim
contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das
caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da
limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os
homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara
manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal
Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos
extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a
violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo
Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do
capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre
a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os
revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila
27
material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a
utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de
recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o
revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico
Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder
material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria
se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz
de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e
argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar
o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p
497)
Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos
(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o
discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista
muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)
que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no
encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as
sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece
ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um
discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos
constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das
individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades
eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano
mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em
campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar
plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de
sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar
sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio
colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel
convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e
28
culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem
respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes
subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]
Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)
de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio
das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto
natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive
atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie
No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias
naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o
crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda
escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-
sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo
contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da
incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees
materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos
afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus
processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos
inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos
da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades
humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute
o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses
trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)
Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas
produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa
penetrante passagem sobre o tema lemos
O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto
dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de
29
desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse
nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos
demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua
vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado
naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo
determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas
relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu
proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx
1973 pp 89-90)
Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos
sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a
centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos
aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza
e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham
vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a
intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o
equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente
econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida
social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da
permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas
relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito
da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas
universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada
das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os
homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria
mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das
forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo
adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos
homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia
O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se
compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30
neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo
do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo
pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso
histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive
violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste
(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso
resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na
sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os
antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por
ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses
das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos
Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica
natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades
reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a
estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico
Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da
cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios
juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da
sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela
que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de
duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que
complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo
concreto
O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em
oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem
de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade
desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem
leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da
realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na
comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na
31
sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como
meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes
estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser
profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real
eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem
eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma
soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de
uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)
Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e
imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos
privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma
revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res
publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja
eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da
proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a
violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica
consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a
accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a
vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma
alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento
Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a
essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o
proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua
violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre
dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo
de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a
perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a
violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt
segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser
a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente
32
pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o
antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as
relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de
supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano
Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder
dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se
faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de
violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o
poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa
revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades
viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento
humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo
profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma
resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como
desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo
Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado
como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos
do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute
poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de
propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)
Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de
dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao
contraacuterio
Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como
classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como
classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as
condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em
geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)
33
Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx
1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo
poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer
forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas
formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar
em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis
Quanto a isso eacute importante relembrar que
O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos
limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute
capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade
Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais
ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e
espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a
fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)
Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-
violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo
violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-
socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo
(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-
humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo
humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a
rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios
quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de
coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras
A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um
anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo
(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim
negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se
natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para
natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a
34
contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo
(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-
humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-
violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que
assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)
Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx
caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu
proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios
empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo
entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez
de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do
humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-
capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo
dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os
torna incompatiacuteveis[27]
IV Agrave guisa de conclusatildeo
Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de
Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda
distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de
Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do
pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas
que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio
da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente
sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir
de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns
aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram
envolvidos pela leitura arendtiana
35
Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem
ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem
duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho
Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e
estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do
solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo
neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade
com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se
reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos
intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro
porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento
marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual
formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco
em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e
Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para
o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e
revolucionaacuterios
Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo
XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho
caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos
revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso
imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob
muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes
natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca
demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo
sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas
proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os
argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro
sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas
ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma
36
verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto
que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute
cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido
V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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1983
______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002
Notas
38
Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo
Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo
teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a
estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o
ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque
somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a
abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos
que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e
isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a
accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num
constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas
produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou
menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de
consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados
a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo
antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em
termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e
inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho
como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt
1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels
segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte
daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos
homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e
39
osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida
real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos
desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo
corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade
efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa
produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma
aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio
Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para
produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas
necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a
Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de
qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas
formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na
constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso
ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro
Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se
distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo
reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele
duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo
(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute
afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels
1986 p 19)
40
[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade
esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas
daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades
capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas
carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e
propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que
determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a
p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que
sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram
transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em
grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos
paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital
Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo
crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos
estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem
consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo
social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas
conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento
marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo
implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de
estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo
significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo
dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma
luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude
do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de
uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o
41
entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada
dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas
caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos
do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no
fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje
muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o
sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e
saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente
a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente
severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de
personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de
objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de
produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e
personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar
condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua
perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento
universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social
como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p
85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que
apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo
aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do
esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e
complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em
relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios
revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA
transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em
42
43
massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
-
que a atividade se realiza imprime agrave subjetividade daquele que o executa
inelutaacuteveis qualificaccedilotildees Muito ao contraacuterio As anaacutelises marxianas satildeo
profundamente ancoradas na historicidade dos fenocircmenos naturais e sociais
negando qualquer essencialismo em relaccedilatildeo ao trabalho ou a qualquer outra
atividade bem como ao indiviacuteduo ou grupo de indiviacuteduos que o executa Para
Marx ldquoa essecircncia humana natildeo eacute uma abstraccedilatildeo inerente ao indiviacuteduo singular
Em sua realidade eacute o conjunto das relaccedilotildees sociaisrdquo (Marx 1987 p 13) Por
conseguinte em aberta oposiccedilatildeo agraves proposiccedilotildees arendtianas afirmamos que o
produtivismo natildeo constitui uma caracteriacutestica inerente ao trabalho ndash que com a
ascensatildeo deste agrave esfera puacuteblica teria transbordado as fronteiras da vida privada e
se generalizado socialmente ndash mas sim uma caracteriacutestica que possui suas raiacutezes
nas formas de sociabilidade vigentes no mundo contemporacircneo sejam estas
formas capitalistas ou poacutes-capitalistas[18] Dito de outro modo se o trabalho
assalariado alienado constitui cada vez mais a forma predominante da atividade
produtiva e reprodutiva dos indiviacuteduos nestas sociedades tal desventura natildeo
decorre de uma essecircncia que seja inerente a ele tanto quanto agraves formas preteacuteritas
de trabalho e que tenha se desvencilhado na atualidade das amarras que
limitavam sua expansatildeo A raiz deste fenocircmeno reside no fato de o capital
constituir a relaccedilatildeo social baacutesica das sociedades assinaladas generalizando
aquela forma de trabalho E a propoacutesito do essencialismo produtivista do trabalho
em vaacuterias passagens de sua obra Marx nos mostrou as diferenccedilas existentes
entre as sociedades antigas e as modernas sociedades capitalistas Numa dessas
passagens ele lembra que
Entre os antigos natildeo encontramos uma uacutenica investigaccedilatildeo a propoacutesito de qual a
forma de propriedade etc que seria a mais produtiva que geraria o maacuteximo de
riqueza A riqueza natildeo constituiacutea o objetivo da produccedilatildeo A pesquisa sempre
era sobre qual o tipo de propriedade que geraria os melhores cidadatildeos (Marx
1975 p 80 grifos nossos)
Mesmo em seu acircmbito estritamente privado a propriedade natildeo estava
relacionada prioritariamente aos interesses egoiacutestas do indiviacuteduo mas eram os 18
interesses deste ndash e portanto o uso que fazia daquela ndash que estavam
circunscritos e condicionados pelos interesses da comunidade da qual fazia parte
por mais restrita que esta fosse em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo total Desse modo nestas
formaccedilotildees sociais as atividades produtivas natildeo eram movidas por uma ldquoinerenterdquo
racionalidade produtivista uma racionalidade cujo suposto transbordamento das
fronteiras privadas e o estabelecimento do domiacutenio sobre as outras atividades
caracterizariam ndash segundo Arendt ndash o mundo moderno Em relaccedilatildeo a este sua
principal caracteriacutestica consiste na centralidade na generalizaccedilatildeo e no crescente
predomiacutenio do capital no conjunto das relaccedilotildees sociais Enfim eacute justamente esta
centralidade do capital e suas consequumlecircncias que produz o assalariamento
generalizado dos indiviacuteduos e a subsunccedilatildeo da reproduccedilatildeo socioeconocircmica como
um todo agrave loacutegica produtivista
Numa pequena digressatildeo visando apenas a estreitar as margens de accedilatildeo
das leituras vulgares do marxismo eacute necessaacuterio ressaltar que esta afirmaccedilatildeo da
centralidade do capital nas relaccedilotildees sociais contemporacircneas e do espraiamento
de sua influecircncia pela totalidade social natildeo implica reducionismo econocircmico Na
verdade ela significa apenas a explicitaccedilatildeo de caracteriacutesticas inerentes ao capital
cuja tendecircncia a subsumir a multiplicidade de dimensotildees da vida humana agrave sua
loacutegica acumulatoacuteria expansionista eacute um fato incontestaacutevel ontologicamente
enraizado e racionalmente apreensiacutevel e natildeo um grave equiacutevoco teoacuterico de um
pensamento incapaz de atentar para a complexidade do real Eacute nesse sentido que
comentando a famosa proposiccedilatildeo de Marx segundo a qual ldquoNatildeo eacute a consciecircncia
dos homens que determina o seu ser mas ao contraacuterio eacute o seu ser social que
determina sua consciecircnciardquo[19] (Marx 1982 p 25) Lukaacutecs afirma ldquonesse trecho o
mundo das formas de consciecircncia e seus conteuacutedos natildeo eacute visto como um produto
direto da estrutura econocircmica mas da totalidade do ser social A determinaccedilatildeo da
consciecircncia pelo ser social portanto eacute entendida em seu sentido mais geralrdquo
(Lukaacutecs 1979 p 41) ndash e natildeo como expressatildeo direta mecacircnica e restrita dos
processos econocircmicos
19
Neste toacutepico ateacute o momento detivemo-nos nas distintas concepccedilotildees
acerca do trabalho presentes em Arendt e Marx O caso poreacutem eacute que apesar de
significativas tais concepccedilotildees natildeo circunscrevem sua influecircncia agraves fronteiras
econocircmicas mas extravasam a economia e deitam raiacutezes na totalidade de suas
reflexotildees sobre a vida humana Assim se Arendt tem razatildeo em afirmar que para
Marx o trabalho ndash e a fabricaccedilatildeo apesar da irrelevacircncia desta distinccedilatildeo (trabalho x
fabricaccedilatildeo) no quadro conceitual marxiano ndash eacute tratado como uma atividade
teleoloacutegica cujas relaccedilotildees que estabelece com as outras atividades constitutivas
da vida humana satildeo fundamentais para delinear as caracteriacutesticas da totalidade
social nada justifica sua transposiccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos do trabalho
(concreto) para a concepccedilatildeo de histoacuteria marxiana No entanto eacute justamente isto
que ela faz ao afirmar que em Marx a histoacuteria eacute entendida como um processo
similar ao da fabricaccedilatildeo do artesanato um processo que contemporaneamente
exige a intervenccedilatildeo consciente de um sujeito demiuacutergico ndash o proletariado ndash para
plasmar a nova forma societaacuteria tal como o artesatildeo faz com sua mateacuteria-prima E
igualmente ao afirmar que do mesmo modo que a materializaccedilatildeo do objeto preacute-
ideado expressa o fim do processo gerido pelo artesatildeo a realizaccedilatildeo da sociedade
ldquopreacute-ideadardquo pelo proletariado significaria o fim da histoacuteria
Ora uma das questotildees mais complexas do pensamento social fruto de
inuacutemeras polecircmicas teorias e tratados ao longo dos uacuteltimos seacuteculos ndash
especialmente apoacutes o advento da sociologia ndash eacute a articulaccedilatildeo das accedilotildees
individuais e a reproduccedilatildeo da totalidade social E mesmo certos da impossibilidade
de adentrar no emaranhado de questotildees suscitado pelo tema natildeo podemos omitir
a informaccedilatildeo de que uma leitura criteriosa dos textos marxianos demonstra sem
grande dificuldade a improcedecircncia das criacuteticas de Hannah Arendt De modo
algum condiz com o ldquoespiacuteritordquo da obra marxiana a identificaccedilatildeo da reproduccedilatildeo
social como um todo e nem dos processos de transiccedilatildeo de uma forma societaacuteria a
outra ao modus operandi do trabalho O que natildeo significa por sua vez que a
instabilidade econocircmica e social natildeo fosse objeto de suas preocupaccedilotildees A bem
da verdade sendo o primeiro a entender a centralidade do trabalho e suas
20
consequumlecircncias na produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana Marx se assenhoreou
desde os Manuscritos de 1844 de conhecimentos suficientemente significativos
para criticar em relaccedilatildeo agravequele aspecto inicialmente citado das relaccedilotildees entre
indiviacuteduo e sociedade tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo Assim em
vez da naturalizaccedilatildeo da histoacuteria humana ou da arbitrariedade da vontade e da
razatildeo em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmaccedilatildeo dos
seres humanos como autoprodutores de sua proacutepria histoacuteria e simultaneamente
uma criacutetica agrave hipostasia das potencialidades da razatildeo e das forccedilas humanas nesta
autoproduccedilatildeo Invariavelmente suas anaacutelises reiteram que ldquoOs homens fazem
sua proacutepria histoacuteria mas natildeo a fazem como querem natildeo a fazem sob
circunstacircncias de sua proacutepria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam
diretamente legadas e transmitidas pelo passadordquo (Marx 1986 p 17 grifos
nossos) Nos dias atuais natildeo eacute difiacutecil perceber como por si soacute esta frase nos
mostra quatildeo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e
da realpolitik que cada qual ao seu modo como faces de uma mesma moeda
dominam os discursos poliacuteticos e econocircmicos em voga
Ainda no que diz respeito agrave questatildeo do sujeito demiuacutergico e do finalismo
histoacuterico eacute necessaacuterio que se entenda que mesmo em sua fastidiosa reproduccedilatildeo
cotidiana o trabalho eacute sempre um ato de criaccedilatildeo criaccedilatildeo natildeo apenas de coisas
novas de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma
humanamente apropriada mas criaccedilatildeo da proacutepria subjetividade humana que se
renova a partir das experiecircncias possibilitadas pelos meios e resultados de sua
produccedilatildeo e pelas relaccedilotildees sociais que os envolvem Tendo em mente esta
dinacircmica intriacutenseca agrave atividade vital dos seres humanos e ao mesmo tempo o
caraacuteter que para Marx a totalidade do real[20] assume como concreto pensado
(Marx 1982 p 15) nem a mais poderosa das inteligecircncias humanas tampouco o
concurso delas sob a forma do coletivo partidaacuterio pode em termos conceituais
apreender subsumir absolutamente o real ao pensamento ndash e muito menos
sujeitar as proacuteprias relaccedilotildees sociais a um controle assemelhado ao das teacutecnicas
produtivas
21
Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final
entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja
rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz
consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de
Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo
sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele
ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von
Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia
hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas
sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais
geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de
onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta
observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica
especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente
pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto
natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o
proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela
histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e
seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o
conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade
histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens
em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo
possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas
Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo
de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos
individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica
intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos
altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que
nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que
22
em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a
divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente
a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de
todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada
espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das
diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como
reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori
e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do
trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural
interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado
subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo
social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo
reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo
exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo
que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as
condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)
Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais
de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente
as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de
posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo
(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa
O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias
normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de
finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem
realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute
inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)
Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante
entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de
indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de
eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a
23
casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece
porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da
ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas
significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias
sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca
controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias
objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que
encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano
Em sua Ontologia do ser social ele afirma
Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada
vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as
decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da
totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse
conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa
relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso
porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o
movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da
histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas
etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local
tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que
tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de
transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que
satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do
que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e
consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso
aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)
Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos
individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha
ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias
mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade
oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem
econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo
24
social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve
ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que
historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os
processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem
uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle
destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou
A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a
anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo
incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do
trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer
controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma
infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo
autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais
entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda
organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a
sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)
Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus
ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os
limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de
intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal
qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos
uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana
(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do
pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os
limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir
para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta
ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo
No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras
experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao
nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25
pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas
relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi
drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente
desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses
capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de
regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo
resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica
reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas
experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da
humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua
loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a
accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com
seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social
passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees
marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de
regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos
moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a
consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria
redenccedilatildeo universal
O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos
ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as
acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels
salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido
um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o
movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)
O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se
realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico
do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana
de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo
comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o
26
comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a
forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo
nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao
desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma
sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o
comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no
fim da histoacuteria[22]
Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento
marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute
capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e
desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo
ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso
numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]
mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou
natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana
Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees
que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim
contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das
caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da
limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os
homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara
manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal
Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos
extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a
violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo
Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do
capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre
a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os
revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila
27
material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a
utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de
recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o
revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico
Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder
material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria
se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz
de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e
argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar
o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p
497)
Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos
(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o
discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista
muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)
que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no
encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as
sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece
ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um
discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos
constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das
individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades
eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano
mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em
campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar
plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de
sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar
sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio
colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel
convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e
28
culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem
respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes
subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]
Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)
de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio
das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto
natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive
atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie
No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias
naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o
crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda
escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-
sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo
contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da
incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees
materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos
afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus
processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos
inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos
da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades
humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute
o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses
trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)
Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas
produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa
penetrante passagem sobre o tema lemos
O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto
dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de
29
desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse
nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos
demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua
vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado
naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo
determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas
relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu
proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx
1973 pp 89-90)
Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos
sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a
centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos
aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza
e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham
vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a
intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o
equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente
econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida
social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da
permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas
relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito
da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas
universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada
das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os
homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria
mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das
forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo
adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos
homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia
O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se
compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30
neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo
do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo
pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso
histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive
violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste
(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso
resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na
sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os
antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por
ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses
das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos
Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica
natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades
reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a
estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico
Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da
cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios
juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da
sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela
que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de
duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que
complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo
concreto
O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em
oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem
de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade
desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem
leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da
realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na
comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na
31
sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como
meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes
estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser
profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real
eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem
eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma
soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de
uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)
Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e
imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos
privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma
revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res
publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja
eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da
proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a
violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica
consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a
accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a
vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma
alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento
Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a
essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o
proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua
violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre
dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo
de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a
perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a
violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt
segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser
a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente
32
pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o
antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as
relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de
supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano
Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder
dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se
faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de
violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o
poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa
revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades
viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento
humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo
profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma
resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como
desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo
Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado
como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos
do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute
poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de
propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)
Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de
dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao
contraacuterio
Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como
classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como
classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as
condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em
geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)
33
Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx
1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo
poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer
forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas
formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar
em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis
Quanto a isso eacute importante relembrar que
O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos
limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute
capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade
Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais
ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e
espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a
fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)
Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-
violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo
violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-
socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo
(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-
humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo
humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a
rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios
quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de
coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras
A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um
anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo
(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim
negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se
natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para
natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a
34
contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo
(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-
humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-
violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que
assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)
Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx
caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu
proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios
empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo
entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez
de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do
humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-
capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo
dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os
torna incompatiacuteveis[27]
IV Agrave guisa de conclusatildeo
Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de
Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda
distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de
Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do
pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas
que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio
da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente
sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir
de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns
aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram
envolvidos pela leitura arendtiana
35
Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem
ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem
duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho
Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e
estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do
solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo
neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade
com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se
reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos
intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro
porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento
marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual
formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco
em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e
Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para
o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e
revolucionaacuterios
Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo
XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho
caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos
revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso
imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob
muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes
natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca
demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo
sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas
proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os
argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro
sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas
ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma
36
verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto
que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute
cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido
V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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1983
______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002
Notas
38
Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo
Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo
teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a
estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o
ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque
somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a
abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos
que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e
isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a
accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num
constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas
produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou
menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de
consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados
a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo
antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em
termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e
inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho
como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt
1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels
segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte
daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos
homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e
39
osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida
real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos
desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo
corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade
efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa
produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma
aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio
Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para
produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas
necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a
Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de
qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas
formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na
constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso
ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro
Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se
distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo
reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele
duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo
(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute
afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels
1986 p 19)
40
[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade
esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas
daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades
capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas
carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e
propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que
determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a
p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que
sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram
transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em
grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos
paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital
Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo
crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos
estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem
consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo
social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas
conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento
marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo
implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de
estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo
significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo
dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma
luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude
do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de
uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o
41
entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada
dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas
caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos
do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no
fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje
muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o
sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e
saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente
a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente
severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de
personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de
objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de
produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e
personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar
condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua
perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento
universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social
como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p
85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que
apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo
aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do
esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e
complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em
relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios
revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA
transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em
42
43
massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
-
interesses deste ndash e portanto o uso que fazia daquela ndash que estavam
circunscritos e condicionados pelos interesses da comunidade da qual fazia parte
por mais restrita que esta fosse em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo total Desse modo nestas
formaccedilotildees sociais as atividades produtivas natildeo eram movidas por uma ldquoinerenterdquo
racionalidade produtivista uma racionalidade cujo suposto transbordamento das
fronteiras privadas e o estabelecimento do domiacutenio sobre as outras atividades
caracterizariam ndash segundo Arendt ndash o mundo moderno Em relaccedilatildeo a este sua
principal caracteriacutestica consiste na centralidade na generalizaccedilatildeo e no crescente
predomiacutenio do capital no conjunto das relaccedilotildees sociais Enfim eacute justamente esta
centralidade do capital e suas consequumlecircncias que produz o assalariamento
generalizado dos indiviacuteduos e a subsunccedilatildeo da reproduccedilatildeo socioeconocircmica como
um todo agrave loacutegica produtivista
Numa pequena digressatildeo visando apenas a estreitar as margens de accedilatildeo
das leituras vulgares do marxismo eacute necessaacuterio ressaltar que esta afirmaccedilatildeo da
centralidade do capital nas relaccedilotildees sociais contemporacircneas e do espraiamento
de sua influecircncia pela totalidade social natildeo implica reducionismo econocircmico Na
verdade ela significa apenas a explicitaccedilatildeo de caracteriacutesticas inerentes ao capital
cuja tendecircncia a subsumir a multiplicidade de dimensotildees da vida humana agrave sua
loacutegica acumulatoacuteria expansionista eacute um fato incontestaacutevel ontologicamente
enraizado e racionalmente apreensiacutevel e natildeo um grave equiacutevoco teoacuterico de um
pensamento incapaz de atentar para a complexidade do real Eacute nesse sentido que
comentando a famosa proposiccedilatildeo de Marx segundo a qual ldquoNatildeo eacute a consciecircncia
dos homens que determina o seu ser mas ao contraacuterio eacute o seu ser social que
determina sua consciecircnciardquo[19] (Marx 1982 p 25) Lukaacutecs afirma ldquonesse trecho o
mundo das formas de consciecircncia e seus conteuacutedos natildeo eacute visto como um produto
direto da estrutura econocircmica mas da totalidade do ser social A determinaccedilatildeo da
consciecircncia pelo ser social portanto eacute entendida em seu sentido mais geralrdquo
(Lukaacutecs 1979 p 41) ndash e natildeo como expressatildeo direta mecacircnica e restrita dos
processos econocircmicos
19
Neste toacutepico ateacute o momento detivemo-nos nas distintas concepccedilotildees
acerca do trabalho presentes em Arendt e Marx O caso poreacutem eacute que apesar de
significativas tais concepccedilotildees natildeo circunscrevem sua influecircncia agraves fronteiras
econocircmicas mas extravasam a economia e deitam raiacutezes na totalidade de suas
reflexotildees sobre a vida humana Assim se Arendt tem razatildeo em afirmar que para
Marx o trabalho ndash e a fabricaccedilatildeo apesar da irrelevacircncia desta distinccedilatildeo (trabalho x
fabricaccedilatildeo) no quadro conceitual marxiano ndash eacute tratado como uma atividade
teleoloacutegica cujas relaccedilotildees que estabelece com as outras atividades constitutivas
da vida humana satildeo fundamentais para delinear as caracteriacutesticas da totalidade
social nada justifica sua transposiccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos do trabalho
(concreto) para a concepccedilatildeo de histoacuteria marxiana No entanto eacute justamente isto
que ela faz ao afirmar que em Marx a histoacuteria eacute entendida como um processo
similar ao da fabricaccedilatildeo do artesanato um processo que contemporaneamente
exige a intervenccedilatildeo consciente de um sujeito demiuacutergico ndash o proletariado ndash para
plasmar a nova forma societaacuteria tal como o artesatildeo faz com sua mateacuteria-prima E
igualmente ao afirmar que do mesmo modo que a materializaccedilatildeo do objeto preacute-
ideado expressa o fim do processo gerido pelo artesatildeo a realizaccedilatildeo da sociedade
ldquopreacute-ideadardquo pelo proletariado significaria o fim da histoacuteria
Ora uma das questotildees mais complexas do pensamento social fruto de
inuacutemeras polecircmicas teorias e tratados ao longo dos uacuteltimos seacuteculos ndash
especialmente apoacutes o advento da sociologia ndash eacute a articulaccedilatildeo das accedilotildees
individuais e a reproduccedilatildeo da totalidade social E mesmo certos da impossibilidade
de adentrar no emaranhado de questotildees suscitado pelo tema natildeo podemos omitir
a informaccedilatildeo de que uma leitura criteriosa dos textos marxianos demonstra sem
grande dificuldade a improcedecircncia das criacuteticas de Hannah Arendt De modo
algum condiz com o ldquoespiacuteritordquo da obra marxiana a identificaccedilatildeo da reproduccedilatildeo
social como um todo e nem dos processos de transiccedilatildeo de uma forma societaacuteria a
outra ao modus operandi do trabalho O que natildeo significa por sua vez que a
instabilidade econocircmica e social natildeo fosse objeto de suas preocupaccedilotildees A bem
da verdade sendo o primeiro a entender a centralidade do trabalho e suas
20
consequumlecircncias na produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana Marx se assenhoreou
desde os Manuscritos de 1844 de conhecimentos suficientemente significativos
para criticar em relaccedilatildeo agravequele aspecto inicialmente citado das relaccedilotildees entre
indiviacuteduo e sociedade tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo Assim em
vez da naturalizaccedilatildeo da histoacuteria humana ou da arbitrariedade da vontade e da
razatildeo em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmaccedilatildeo dos
seres humanos como autoprodutores de sua proacutepria histoacuteria e simultaneamente
uma criacutetica agrave hipostasia das potencialidades da razatildeo e das forccedilas humanas nesta
autoproduccedilatildeo Invariavelmente suas anaacutelises reiteram que ldquoOs homens fazem
sua proacutepria histoacuteria mas natildeo a fazem como querem natildeo a fazem sob
circunstacircncias de sua proacutepria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam
diretamente legadas e transmitidas pelo passadordquo (Marx 1986 p 17 grifos
nossos) Nos dias atuais natildeo eacute difiacutecil perceber como por si soacute esta frase nos
mostra quatildeo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e
da realpolitik que cada qual ao seu modo como faces de uma mesma moeda
dominam os discursos poliacuteticos e econocircmicos em voga
Ainda no que diz respeito agrave questatildeo do sujeito demiuacutergico e do finalismo
histoacuterico eacute necessaacuterio que se entenda que mesmo em sua fastidiosa reproduccedilatildeo
cotidiana o trabalho eacute sempre um ato de criaccedilatildeo criaccedilatildeo natildeo apenas de coisas
novas de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma
humanamente apropriada mas criaccedilatildeo da proacutepria subjetividade humana que se
renova a partir das experiecircncias possibilitadas pelos meios e resultados de sua
produccedilatildeo e pelas relaccedilotildees sociais que os envolvem Tendo em mente esta
dinacircmica intriacutenseca agrave atividade vital dos seres humanos e ao mesmo tempo o
caraacuteter que para Marx a totalidade do real[20] assume como concreto pensado
(Marx 1982 p 15) nem a mais poderosa das inteligecircncias humanas tampouco o
concurso delas sob a forma do coletivo partidaacuterio pode em termos conceituais
apreender subsumir absolutamente o real ao pensamento ndash e muito menos
sujeitar as proacuteprias relaccedilotildees sociais a um controle assemelhado ao das teacutecnicas
produtivas
21
Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final
entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja
rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz
consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de
Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo
sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele
ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von
Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia
hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas
sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais
geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de
onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta
observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica
especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente
pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto
natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o
proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela
histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e
seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o
conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade
histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens
em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo
possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas
Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo
de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos
individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica
intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos
altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que
nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que
22
em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a
divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente
a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de
todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada
espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das
diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como
reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori
e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do
trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural
interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado
subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo
social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo
reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo
exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo
que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as
condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)
Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais
de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente
as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de
posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo
(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa
O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias
normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de
finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem
realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute
inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)
Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante
entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de
indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de
eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a
23
casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece
porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da
ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas
significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias
sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca
controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias
objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que
encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano
Em sua Ontologia do ser social ele afirma
Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada
vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as
decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da
totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse
conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa
relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso
porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o
movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da
histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas
etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local
tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que
tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de
transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que
satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do
que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e
consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso
aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)
Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos
individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha
ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias
mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade
oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem
econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo
24
social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve
ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que
historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os
processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem
uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle
destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou
A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a
anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo
incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do
trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer
controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma
infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo
autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais
entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda
organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a
sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)
Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus
ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os
limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de
intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal
qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos
uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana
(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do
pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os
limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir
para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta
ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo
No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras
experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao
nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25
pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas
relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi
drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente
desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses
capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de
regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo
resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica
reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas
experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da
humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua
loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a
accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com
seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social
passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees
marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de
regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos
moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a
consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria
redenccedilatildeo universal
O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos
ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as
acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels
salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido
um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o
movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)
O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se
realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico
do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana
de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo
comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o
26
comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a
forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo
nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao
desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma
sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o
comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no
fim da histoacuteria[22]
Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento
marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute
capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e
desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo
ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso
numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]
mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou
natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana
Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees
que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim
contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das
caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da
limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os
homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara
manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal
Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos
extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a
violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo
Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do
capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre
a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os
revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila
27
material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a
utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de
recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o
revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico
Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder
material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria
se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz
de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e
argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar
o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p
497)
Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos
(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o
discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista
muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)
que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no
encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as
sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece
ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um
discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos
constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das
individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades
eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano
mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em
campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar
plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de
sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar
sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio
colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel
convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e
28
culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem
respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes
subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]
Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)
de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio
das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto
natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive
atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie
No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias
naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o
crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda
escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-
sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo
contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da
incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees
materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos
afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus
processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos
inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos
da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades
humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute
o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses
trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)
Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas
produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa
penetrante passagem sobre o tema lemos
O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto
dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de
29
desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse
nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos
demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua
vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado
naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo
determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas
relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu
proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx
1973 pp 89-90)
Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos
sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a
centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos
aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza
e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham
vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a
intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o
equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente
econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida
social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da
permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas
relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito
da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas
universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada
das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os
homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria
mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das
forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo
adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos
homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia
O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se
compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30
neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo
do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo
pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso
histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive
violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste
(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso
resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na
sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os
antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por
ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses
das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos
Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica
natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades
reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a
estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico
Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da
cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios
juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da
sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela
que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de
duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que
complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo
concreto
O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em
oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem
de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade
desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem
leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da
realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na
comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na
31
sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como
meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes
estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser
profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real
eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem
eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma
soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de
uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)
Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e
imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos
privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma
revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res
publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja
eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da
proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a
violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica
consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a
accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a
vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma
alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento
Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a
essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o
proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua
violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre
dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo
de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a
perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a
violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt
segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser
a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente
32
pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o
antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as
relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de
supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano
Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder
dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se
faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de
violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o
poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa
revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades
viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento
humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo
profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma
resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como
desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo
Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado
como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos
do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute
poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de
propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)
Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de
dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao
contraacuterio
Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como
classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como
classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as
condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em
geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)
33
Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx
1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo
poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer
forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas
formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar
em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis
Quanto a isso eacute importante relembrar que
O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos
limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute
capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade
Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais
ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e
espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a
fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)
Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-
violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo
violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-
socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo
(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-
humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo
humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a
rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios
quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de
coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras
A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um
anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo
(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim
negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se
natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para
natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a
34
contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo
(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-
humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-
violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que
assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)
Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx
caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu
proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios
empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo
entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez
de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do
humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-
capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo
dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os
torna incompatiacuteveis[27]
IV Agrave guisa de conclusatildeo
Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de
Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda
distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de
Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do
pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas
que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio
da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente
sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir
de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns
aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram
envolvidos pela leitura arendtiana
35
Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem
ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem
duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho
Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e
estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do
solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo
neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade
com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se
reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos
intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro
porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento
marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual
formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco
em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e
Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para
o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e
revolucionaacuterios
Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo
XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho
caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos
revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso
imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob
muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes
natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca
demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo
sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas
proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os
argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro
sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas
ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma
36
verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto
que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute
cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido
V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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______ Manifesto comunista Satildeo Paulo Boitempo 1998
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centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio
1983
______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002
Notas
38
Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo
Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo
teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a
estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o
ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque
somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a
abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos
que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e
isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a
accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num
constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas
produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou
menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de
consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados
a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo
antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em
termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e
inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho
como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt
1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels
segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte
daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos
homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e
39
osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida
real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos
desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo
corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade
efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa
produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma
aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio
Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para
produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas
necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a
Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de
qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas
formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na
constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso
ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro
Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se
distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo
reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele
duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo
(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute
afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels
1986 p 19)
40
[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade
esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas
daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades
capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas
carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e
propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que
determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a
p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que
sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram
transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em
grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos
paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital
Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo
crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos
estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem
consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo
social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas
conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento
marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo
implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de
estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo
significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo
dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma
luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude
do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de
uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o
41
entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada
dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas
caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos
do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no
fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje
muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o
sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e
saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente
a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente
severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de
personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de
objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de
produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e
personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar
condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua
perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento
universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social
como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p
85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que
apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo
aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do
esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e
complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em
relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios
revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA
transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em
42
43
massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
-
Neste toacutepico ateacute o momento detivemo-nos nas distintas concepccedilotildees
acerca do trabalho presentes em Arendt e Marx O caso poreacutem eacute que apesar de
significativas tais concepccedilotildees natildeo circunscrevem sua influecircncia agraves fronteiras
econocircmicas mas extravasam a economia e deitam raiacutezes na totalidade de suas
reflexotildees sobre a vida humana Assim se Arendt tem razatildeo em afirmar que para
Marx o trabalho ndash e a fabricaccedilatildeo apesar da irrelevacircncia desta distinccedilatildeo (trabalho x
fabricaccedilatildeo) no quadro conceitual marxiano ndash eacute tratado como uma atividade
teleoloacutegica cujas relaccedilotildees que estabelece com as outras atividades constitutivas
da vida humana satildeo fundamentais para delinear as caracteriacutesticas da totalidade
social nada justifica sua transposiccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos do trabalho
(concreto) para a concepccedilatildeo de histoacuteria marxiana No entanto eacute justamente isto
que ela faz ao afirmar que em Marx a histoacuteria eacute entendida como um processo
similar ao da fabricaccedilatildeo do artesanato um processo que contemporaneamente
exige a intervenccedilatildeo consciente de um sujeito demiuacutergico ndash o proletariado ndash para
plasmar a nova forma societaacuteria tal como o artesatildeo faz com sua mateacuteria-prima E
igualmente ao afirmar que do mesmo modo que a materializaccedilatildeo do objeto preacute-
ideado expressa o fim do processo gerido pelo artesatildeo a realizaccedilatildeo da sociedade
ldquopreacute-ideadardquo pelo proletariado significaria o fim da histoacuteria
Ora uma das questotildees mais complexas do pensamento social fruto de
inuacutemeras polecircmicas teorias e tratados ao longo dos uacuteltimos seacuteculos ndash
especialmente apoacutes o advento da sociologia ndash eacute a articulaccedilatildeo das accedilotildees
individuais e a reproduccedilatildeo da totalidade social E mesmo certos da impossibilidade
de adentrar no emaranhado de questotildees suscitado pelo tema natildeo podemos omitir
a informaccedilatildeo de que uma leitura criteriosa dos textos marxianos demonstra sem
grande dificuldade a improcedecircncia das criacuteticas de Hannah Arendt De modo
algum condiz com o ldquoespiacuteritordquo da obra marxiana a identificaccedilatildeo da reproduccedilatildeo
social como um todo e nem dos processos de transiccedilatildeo de uma forma societaacuteria a
outra ao modus operandi do trabalho O que natildeo significa por sua vez que a
instabilidade econocircmica e social natildeo fosse objeto de suas preocupaccedilotildees A bem
da verdade sendo o primeiro a entender a centralidade do trabalho e suas
20
consequumlecircncias na produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana Marx se assenhoreou
desde os Manuscritos de 1844 de conhecimentos suficientemente significativos
para criticar em relaccedilatildeo agravequele aspecto inicialmente citado das relaccedilotildees entre
indiviacuteduo e sociedade tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo Assim em
vez da naturalizaccedilatildeo da histoacuteria humana ou da arbitrariedade da vontade e da
razatildeo em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmaccedilatildeo dos
seres humanos como autoprodutores de sua proacutepria histoacuteria e simultaneamente
uma criacutetica agrave hipostasia das potencialidades da razatildeo e das forccedilas humanas nesta
autoproduccedilatildeo Invariavelmente suas anaacutelises reiteram que ldquoOs homens fazem
sua proacutepria histoacuteria mas natildeo a fazem como querem natildeo a fazem sob
circunstacircncias de sua proacutepria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam
diretamente legadas e transmitidas pelo passadordquo (Marx 1986 p 17 grifos
nossos) Nos dias atuais natildeo eacute difiacutecil perceber como por si soacute esta frase nos
mostra quatildeo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e
da realpolitik que cada qual ao seu modo como faces de uma mesma moeda
dominam os discursos poliacuteticos e econocircmicos em voga
Ainda no que diz respeito agrave questatildeo do sujeito demiuacutergico e do finalismo
histoacuterico eacute necessaacuterio que se entenda que mesmo em sua fastidiosa reproduccedilatildeo
cotidiana o trabalho eacute sempre um ato de criaccedilatildeo criaccedilatildeo natildeo apenas de coisas
novas de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma
humanamente apropriada mas criaccedilatildeo da proacutepria subjetividade humana que se
renova a partir das experiecircncias possibilitadas pelos meios e resultados de sua
produccedilatildeo e pelas relaccedilotildees sociais que os envolvem Tendo em mente esta
dinacircmica intriacutenseca agrave atividade vital dos seres humanos e ao mesmo tempo o
caraacuteter que para Marx a totalidade do real[20] assume como concreto pensado
(Marx 1982 p 15) nem a mais poderosa das inteligecircncias humanas tampouco o
concurso delas sob a forma do coletivo partidaacuterio pode em termos conceituais
apreender subsumir absolutamente o real ao pensamento ndash e muito menos
sujeitar as proacuteprias relaccedilotildees sociais a um controle assemelhado ao das teacutecnicas
produtivas
21
Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final
entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja
rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz
consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de
Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo
sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele
ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von
Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia
hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas
sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais
geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de
onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta
observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica
especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente
pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto
natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o
proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela
histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e
seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o
conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade
histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens
em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo
possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas
Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo
de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos
individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica
intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos
altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que
nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que
22
em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a
divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente
a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de
todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada
espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das
diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como
reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori
e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do
trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural
interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado
subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo
social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo
reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo
exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo
que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as
condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)
Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais
de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente
as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de
posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo
(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa
O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias
normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de
finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem
realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute
inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)
Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante
entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de
indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de
eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a
23
casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece
porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da
ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas
significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias
sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca
controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias
objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que
encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano
Em sua Ontologia do ser social ele afirma
Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada
vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as
decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da
totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse
conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa
relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso
porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o
movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da
histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas
etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local
tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que
tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de
transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que
satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do
que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e
consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso
aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)
Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos
individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha
ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias
mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade
oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem
econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo
24
social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve
ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que
historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os
processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem
uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle
destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou
A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a
anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo
incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do
trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer
controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma
infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo
autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais
entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda
organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a
sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)
Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus
ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os
limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de
intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal
qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos
uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana
(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do
pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os
limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir
para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta
ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo
No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras
experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao
nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25
pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas
relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi
drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente
desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses
capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de
regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo
resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica
reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas
experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da
humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua
loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a
accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com
seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social
passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees
marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de
regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos
moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a
consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria
redenccedilatildeo universal
O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos
ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as
acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels
salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido
um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o
movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)
O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se
realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico
do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana
de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo
comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o
26
comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a
forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo
nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao
desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma
sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o
comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no
fim da histoacuteria[22]
Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento
marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute
capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e
desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo
ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso
numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]
mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou
natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana
Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees
que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim
contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das
caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da
limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os
homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara
manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal
Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos
extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a
violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo
Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do
capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre
a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os
revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila
27
material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a
utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de
recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o
revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico
Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder
material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria
se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz
de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e
argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar
o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p
497)
Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos
(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o
discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista
muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)
que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no
encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as
sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece
ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um
discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos
constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das
individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades
eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano
mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em
campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar
plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de
sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar
sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio
colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel
convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e
28
culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem
respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes
subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]
Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)
de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio
das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto
natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive
atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie
No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias
naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o
crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda
escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-
sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo
contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da
incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees
materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos
afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus
processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos
inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos
da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades
humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute
o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses
trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)
Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas
produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa
penetrante passagem sobre o tema lemos
O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto
dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de
29
desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse
nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos
demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua
vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado
naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo
determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas
relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu
proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx
1973 pp 89-90)
Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos
sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a
centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos
aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza
e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham
vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a
intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o
equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente
econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida
social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da
permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas
relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito
da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas
universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada
das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os
homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria
mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das
forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo
adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos
homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia
O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se
compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30
neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo
do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo
pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso
histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive
violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste
(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso
resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na
sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os
antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por
ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses
das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos
Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica
natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades
reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a
estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico
Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da
cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios
juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da
sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela
que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de
duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que
complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo
concreto
O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em
oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem
de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade
desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem
leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da
realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na
comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na
31
sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como
meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes
estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser
profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real
eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem
eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma
soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de
uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)
Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e
imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos
privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma
revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res
publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja
eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da
proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a
violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica
consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a
accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a
vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma
alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento
Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a
essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o
proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua
violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre
dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo
de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a
perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a
violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt
segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser
a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente
32
pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o
antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as
relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de
supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano
Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder
dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se
faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de
violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o
poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa
revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades
viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento
humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo
profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma
resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como
desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo
Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado
como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos
do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute
poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de
propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)
Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de
dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao
contraacuterio
Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como
classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como
classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as
condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em
geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)
33
Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx
1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo
poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer
forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas
formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar
em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis
Quanto a isso eacute importante relembrar que
O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos
limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute
capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade
Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais
ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e
espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a
fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)
Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-
violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo
violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-
socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo
(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-
humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo
humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a
rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios
quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de
coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras
A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um
anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo
(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim
negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se
natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para
natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a
34
contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo
(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-
humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-
violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que
assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)
Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx
caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu
proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios
empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo
entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez
de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do
humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-
capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo
dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os
torna incompatiacuteveis[27]
IV Agrave guisa de conclusatildeo
Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de
Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda
distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de
Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do
pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas
que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio
da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente
sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir
de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns
aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram
envolvidos pela leitura arendtiana
35
Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem
ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem
duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho
Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e
estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do
solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo
neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade
com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se
reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos
intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro
porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento
marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual
formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco
em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e
Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para
o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e
revolucionaacuterios
Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo
XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho
caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos
revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso
imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob
muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes
natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca
demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo
sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas
proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os
argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro
sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas
ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma
36
verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto
que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute
cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido
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Notas
38
Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo
Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo
teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a
estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o
ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque
somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a
abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos
que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e
isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a
accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num
constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas
produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou
menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de
consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados
a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo
antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em
termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e
inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho
como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt
1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels
segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte
daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos
homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e
39
osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida
real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos
desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo
corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade
efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa
produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma
aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio
Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para
produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas
necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a
Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de
qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas
formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na
constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso
ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro
Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se
distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo
reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele
duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo
(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute
afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels
1986 p 19)
40
[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade
esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas
daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades
capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas
carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e
propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que
determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a
p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que
sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram
transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em
grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos
paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital
Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo
crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos
estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem
consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo
social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas
conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento
marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo
implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de
estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo
significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo
dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma
luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude
do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de
uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o
41
entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada
dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas
caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos
do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no
fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje
muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o
sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e
saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente
a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente
severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de
personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de
objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de
produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e
personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar
condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua
perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento
universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social
como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p
85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que
apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo
aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do
esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e
complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em
relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios
revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA
transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em
42
43
massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
-
consequumlecircncias na produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana Marx se assenhoreou
desde os Manuscritos de 1844 de conhecimentos suficientemente significativos
para criticar em relaccedilatildeo agravequele aspecto inicialmente citado das relaccedilotildees entre
indiviacuteduo e sociedade tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo Assim em
vez da naturalizaccedilatildeo da histoacuteria humana ou da arbitrariedade da vontade e da
razatildeo em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmaccedilatildeo dos
seres humanos como autoprodutores de sua proacutepria histoacuteria e simultaneamente
uma criacutetica agrave hipostasia das potencialidades da razatildeo e das forccedilas humanas nesta
autoproduccedilatildeo Invariavelmente suas anaacutelises reiteram que ldquoOs homens fazem
sua proacutepria histoacuteria mas natildeo a fazem como querem natildeo a fazem sob
circunstacircncias de sua proacutepria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam
diretamente legadas e transmitidas pelo passadordquo (Marx 1986 p 17 grifos
nossos) Nos dias atuais natildeo eacute difiacutecil perceber como por si soacute esta frase nos
mostra quatildeo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e
da realpolitik que cada qual ao seu modo como faces de uma mesma moeda
dominam os discursos poliacuteticos e econocircmicos em voga
Ainda no que diz respeito agrave questatildeo do sujeito demiuacutergico e do finalismo
histoacuterico eacute necessaacuterio que se entenda que mesmo em sua fastidiosa reproduccedilatildeo
cotidiana o trabalho eacute sempre um ato de criaccedilatildeo criaccedilatildeo natildeo apenas de coisas
novas de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma
humanamente apropriada mas criaccedilatildeo da proacutepria subjetividade humana que se
renova a partir das experiecircncias possibilitadas pelos meios e resultados de sua
produccedilatildeo e pelas relaccedilotildees sociais que os envolvem Tendo em mente esta
dinacircmica intriacutenseca agrave atividade vital dos seres humanos e ao mesmo tempo o
caraacuteter que para Marx a totalidade do real[20] assume como concreto pensado
(Marx 1982 p 15) nem a mais poderosa das inteligecircncias humanas tampouco o
concurso delas sob a forma do coletivo partidaacuterio pode em termos conceituais
apreender subsumir absolutamente o real ao pensamento ndash e muito menos
sujeitar as proacuteprias relaccedilotildees sociais a um controle assemelhado ao das teacutecnicas
produtivas
21
Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final
entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja
rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz
consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de
Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo
sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele
ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von
Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia
hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas
sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais
geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de
onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta
observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica
especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente
pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto
natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o
proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela
histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e
seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o
conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade
histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens
em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo
possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas
Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo
de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos
individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica
intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos
altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que
nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que
22
em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a
divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente
a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de
todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada
espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das
diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como
reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori
e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do
trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural
interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado
subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo
social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo
reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo
exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo
que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as
condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)
Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais
de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente
as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de
posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo
(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa
O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias
normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de
finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem
realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute
inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)
Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante
entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de
indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de
eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a
23
casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece
porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da
ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas
significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias
sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca
controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias
objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que
encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano
Em sua Ontologia do ser social ele afirma
Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada
vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as
decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da
totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse
conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa
relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso
porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o
movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da
histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas
etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local
tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que
tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de
transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que
satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do
que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e
consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso
aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)
Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos
individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha
ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias
mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade
oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem
econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo
24
social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve
ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que
historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os
processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem
uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle
destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou
A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a
anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo
incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do
trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer
controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma
infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo
autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais
entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda
organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a
sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)
Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus
ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os
limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de
intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal
qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos
uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana
(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do
pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os
limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir
para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta
ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo
No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras
experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao
nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25
pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas
relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi
drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente
desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses
capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de
regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo
resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica
reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas
experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da
humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua
loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a
accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com
seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social
passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees
marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de
regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos
moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a
consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria
redenccedilatildeo universal
O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos
ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as
acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels
salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido
um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o
movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)
O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se
realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico
do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana
de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo
comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o
26
comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a
forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo
nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao
desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma
sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o
comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no
fim da histoacuteria[22]
Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento
marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute
capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e
desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo
ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso
numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]
mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou
natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana
Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees
que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim
contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das
caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da
limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os
homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara
manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal
Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos
extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a
violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo
Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do
capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre
a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os
revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila
27
material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a
utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de
recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o
revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico
Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder
material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria
se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz
de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e
argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar
o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p
497)
Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos
(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o
discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista
muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)
que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no
encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as
sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece
ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um
discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos
constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das
individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades
eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano
mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em
campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar
plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de
sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar
sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio
colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel
convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e
28
culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem
respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes
subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]
Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)
de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio
das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto
natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive
atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie
No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias
naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o
crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda
escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-
sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo
contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da
incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees
materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos
afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus
processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos
inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos
da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades
humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute
o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses
trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)
Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas
produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa
penetrante passagem sobre o tema lemos
O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto
dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de
29
desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse
nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos
demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua
vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado
naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo
determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas
relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu
proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx
1973 pp 89-90)
Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos
sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a
centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos
aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza
e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham
vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a
intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o
equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente
econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida
social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da
permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas
relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito
da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas
universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada
das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os
homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria
mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das
forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo
adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos
homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia
O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se
compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30
neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo
do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo
pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso
histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive
violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste
(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso
resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na
sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os
antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por
ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses
das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos
Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica
natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades
reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a
estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico
Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da
cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios
juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da
sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela
que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de
duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que
complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo
concreto
O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em
oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem
de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade
desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem
leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da
realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na
comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na
31
sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como
meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes
estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser
profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real
eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem
eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma
soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de
uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)
Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e
imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos
privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma
revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res
publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja
eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da
proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a
violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica
consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a
accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a
vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma
alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento
Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a
essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o
proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua
violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre
dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo
de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a
perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a
violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt
segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser
a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente
32
pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o
antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as
relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de
supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano
Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder
dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se
faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de
violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o
poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa
revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades
viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento
humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo
profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma
resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como
desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo
Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado
como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos
do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute
poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de
propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)
Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de
dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao
contraacuterio
Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como
classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como
classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as
condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em
geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)
33
Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx
1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo
poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer
forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas
formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar
em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis
Quanto a isso eacute importante relembrar que
O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos
limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute
capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade
Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais
ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e
espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a
fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)
Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-
violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo
violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-
socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo
(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-
humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo
humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a
rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios
quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de
coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras
A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um
anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo
(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim
negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se
natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para
natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a
34
contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo
(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-
humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-
violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que
assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)
Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx
caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu
proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios
empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo
entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez
de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do
humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-
capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo
dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os
torna incompatiacuteveis[27]
IV Agrave guisa de conclusatildeo
Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de
Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda
distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de
Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do
pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas
que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio
da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente
sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir
de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns
aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram
envolvidos pela leitura arendtiana
35
Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem
ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem
duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho
Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e
estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do
solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo
neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade
com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se
reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos
intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro
porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento
marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual
formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco
em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e
Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para
o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e
revolucionaacuterios
Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo
XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho
caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos
revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso
imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob
muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes
natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca
demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo
sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas
proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os
argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro
sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas
ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma
36
verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto
que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute
cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido
V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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Notas
38
Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo
Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo
teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a
estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o
ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque
somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a
abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos
que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e
isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a
accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num
constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas
produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou
menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de
consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados
a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo
antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em
termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e
inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho
como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt
1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels
segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte
daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos
homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e
39
osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida
real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos
desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo
corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade
efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa
produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma
aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio
Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para
produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas
necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a
Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de
qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas
formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na
constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso
ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro
Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se
distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo
reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele
duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo
(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute
afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels
1986 p 19)
40
[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade
esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas
daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades
capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas
carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e
propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que
determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a
p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que
sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram
transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em
grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos
paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital
Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo
crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos
estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem
consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo
social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas
conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento
marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo
implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de
estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo
significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo
dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma
luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude
do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de
uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o
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entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada
dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas
caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos
do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no
fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje
muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o
sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e
saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente
a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente
severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de
personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de
objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de
produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e
personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar
condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua
perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento
universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social
como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p
85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que
apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo
aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do
esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e
complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em
relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios
revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA
transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em
42
43
massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
-
Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final
entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja
rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz
consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de
Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo
sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele
ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von
Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia
hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas
sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais
geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de
onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta
observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica
especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente
pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto
natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o
proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela
histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e
seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o
conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade
histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens
em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo
possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas
Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo
de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos
individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica
intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos
altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que
nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que
22
em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a
divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente
a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de
todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada
espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das
diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como
reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori
e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do
trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural
interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado
subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo
social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo
reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo
exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo
que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as
condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)
Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais
de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente
as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de
posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo
(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa
O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias
normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de
finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem
realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute
inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)
Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante
entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de
indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de
eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a
23
casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece
porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da
ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas
significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias
sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca
controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias
objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que
encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano
Em sua Ontologia do ser social ele afirma
Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada
vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as
decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da
totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse
conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa
relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso
porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o
movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da
histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas
etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local
tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que
tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de
transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que
satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do
que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e
consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso
aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)
Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos
individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha
ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias
mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade
oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem
econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo
24
social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve
ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que
historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os
processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem
uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle
destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou
A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a
anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo
incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do
trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer
controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma
infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo
autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais
entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda
organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a
sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)
Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus
ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os
limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de
intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal
qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos
uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana
(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do
pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os
limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir
para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta
ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo
No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras
experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao
nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25
pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas
relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi
drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente
desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses
capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de
regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo
resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica
reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas
experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da
humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua
loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a
accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com
seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social
passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees
marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de
regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos
moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a
consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria
redenccedilatildeo universal
O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos
ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as
acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels
salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido
um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o
movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)
O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se
realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico
do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana
de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo
comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o
26
comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a
forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo
nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao
desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma
sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o
comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no
fim da histoacuteria[22]
Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento
marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute
capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e
desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo
ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso
numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]
mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou
natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana
Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees
que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim
contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das
caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da
limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os
homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara
manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal
Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos
extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a
violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo
Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do
capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre
a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os
revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila
27
material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a
utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de
recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o
revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico
Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder
material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria
se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz
de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e
argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar
o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p
497)
Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos
(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o
discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista
muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)
que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no
encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as
sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece
ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um
discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos
constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das
individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades
eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano
mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em
campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar
plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de
sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar
sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio
colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel
convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e
28
culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem
respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes
subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]
Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)
de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio
das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto
natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive
atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie
No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias
naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o
crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda
escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-
sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo
contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da
incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees
materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos
afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus
processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos
inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos
da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades
humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute
o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses
trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)
Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas
produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa
penetrante passagem sobre o tema lemos
O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto
dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de
29
desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse
nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos
demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua
vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado
naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo
determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas
relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu
proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx
1973 pp 89-90)
Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos
sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a
centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos
aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza
e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham
vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a
intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o
equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente
econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida
social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da
permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas
relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito
da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas
universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada
das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os
homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria
mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das
forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo
adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos
homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia
O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se
compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30
neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo
do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo
pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso
histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive
violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste
(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso
resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na
sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os
antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por
ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses
das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos
Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica
natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades
reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a
estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico
Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da
cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios
juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da
sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela
que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de
duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que
complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo
concreto
O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em
oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem
de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade
desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem
leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da
realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na
comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na
31
sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como
meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes
estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser
profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real
eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem
eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma
soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de
uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)
Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e
imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos
privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma
revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res
publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja
eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da
proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a
violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica
consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a
accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a
vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma
alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento
Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a
essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o
proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua
violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre
dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo
de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a
perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a
violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt
segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser
a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente
32
pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o
antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as
relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de
supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano
Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder
dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se
faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de
violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o
poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa
revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades
viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento
humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo
profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma
resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como
desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo
Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado
como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos
do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute
poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de
propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)
Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de
dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao
contraacuterio
Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como
classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como
classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as
condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em
geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)
33
Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx
1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo
poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer
forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas
formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar
em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis
Quanto a isso eacute importante relembrar que
O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos
limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute
capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade
Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais
ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e
espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a
fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)
Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-
violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo
violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-
socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo
(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-
humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo
humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a
rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios
quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de
coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras
A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um
anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo
(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim
negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se
natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para
natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a
34
contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo
(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-
humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-
violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que
assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)
Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx
caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu
proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios
empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo
entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez
de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do
humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-
capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo
dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os
torna incompatiacuteveis[27]
IV Agrave guisa de conclusatildeo
Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de
Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda
distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de
Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do
pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas
que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio
da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente
sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir
de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns
aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram
envolvidos pela leitura arendtiana
35
Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem
ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem
duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho
Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e
estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do
solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo
neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade
com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se
reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos
intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro
porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento
marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual
formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco
em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e
Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para
o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e
revolucionaacuterios
Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo
XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho
caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos
revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso
imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob
muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes
natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca
demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo
sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas
proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os
argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro
sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas
ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma
36
verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto
que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute
cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido
V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio
1983
______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002
Notas
38
Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo
Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo
teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a
estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o
ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque
somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a
abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos
que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e
isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a
accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num
constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas
produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou
menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de
consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados
a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo
antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em
termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e
inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho
como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt
1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels
segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte
daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos
homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e
39
osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida
real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos
desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo
corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade
efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa
produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma
aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio
Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para
produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas
necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a
Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de
qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas
formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na
constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso
ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro
Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se
distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo
reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele
duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo
(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute
afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels
1986 p 19)
40
[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade
esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas
daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades
capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas
carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e
propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que
determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a
p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que
sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram
transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em
grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos
paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital
Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo
crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos
estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem
consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo
social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas
conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento
marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo
implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de
estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo
significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo
dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma
luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude
do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de
uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o
41
entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada
dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas
caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos
do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no
fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje
muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o
sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e
saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente
a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente
severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de
personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de
objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de
produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e
personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar
condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua
perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento
universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social
como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p
85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que
apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo
aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do
esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e
complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em
relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios
revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA
transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em
42
43
massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
-
em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a
divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente
a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de
todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada
espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das
diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como
reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori
e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do
trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural
interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado
subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo
social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo
reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo
exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo
que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as
condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)
Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais
de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente
as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de
posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo
(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa
O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias
normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de
finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem
realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute
inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)
Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante
entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de
indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de
eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a
23
casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece
porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da
ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas
significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias
sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca
controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias
objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que
encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano
Em sua Ontologia do ser social ele afirma
Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada
vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as
decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da
totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse
conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa
relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso
porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o
movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da
histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas
etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local
tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que
tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de
transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que
satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do
que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e
consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso
aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)
Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos
individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha
ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias
mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade
oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem
econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo
24
social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve
ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que
historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os
processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem
uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle
destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou
A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a
anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo
incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do
trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer
controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma
infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo
autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais
entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda
organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a
sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)
Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus
ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os
limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de
intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal
qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos
uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana
(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do
pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os
limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir
para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta
ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo
No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras
experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao
nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25
pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas
relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi
drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente
desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses
capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de
regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo
resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica
reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas
experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da
humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua
loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a
accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com
seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social
passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees
marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de
regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos
moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a
consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria
redenccedilatildeo universal
O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos
ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as
acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels
salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido
um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o
movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)
O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se
realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico
do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana
de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo
comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o
26
comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a
forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo
nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao
desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma
sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o
comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no
fim da histoacuteria[22]
Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento
marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute
capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e
desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo
ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso
numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]
mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou
natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana
Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees
que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim
contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das
caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da
limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os
homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara
manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal
Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos
extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a
violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo
Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do
capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre
a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os
revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila
27
material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a
utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de
recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o
revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico
Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder
material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria
se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz
de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e
argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar
o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p
497)
Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos
(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o
discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista
muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)
que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no
encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as
sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece
ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um
discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos
constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das
individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades
eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano
mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em
campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar
plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de
sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar
sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio
colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel
convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e
28
culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem
respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes
subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]
Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)
de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio
das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto
natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive
atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie
No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias
naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o
crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda
escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-
sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo
contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da
incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees
materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos
afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus
processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos
inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos
da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades
humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute
o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses
trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)
Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas
produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa
penetrante passagem sobre o tema lemos
O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto
dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de
29
desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse
nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos
demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua
vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado
naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo
determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas
relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu
proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx
1973 pp 89-90)
Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos
sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a
centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos
aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza
e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham
vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a
intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o
equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente
econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida
social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da
permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas
relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito
da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas
universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada
das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os
homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria
mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das
forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo
adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos
homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia
O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se
compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30
neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo
do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo
pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso
histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive
violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste
(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso
resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na
sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os
antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por
ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses
das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos
Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica
natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades
reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a
estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico
Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da
cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios
juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da
sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela
que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de
duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que
complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo
concreto
O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em
oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem
de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade
desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem
leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da
realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na
comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na
31
sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como
meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes
estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser
profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real
eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem
eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma
soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de
uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)
Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e
imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos
privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma
revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res
publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja
eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da
proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a
violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica
consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a
accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a
vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma
alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento
Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a
essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o
proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua
violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre
dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo
de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a
perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a
violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt
segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser
a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente
32
pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o
antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as
relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de
supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano
Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder
dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se
faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de
violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o
poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa
revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades
viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento
humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo
profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma
resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como
desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo
Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado
como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos
do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute
poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de
propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)
Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de
dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao
contraacuterio
Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como
classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como
classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as
condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em
geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)
33
Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx
1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo
poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer
forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas
formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar
em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis
Quanto a isso eacute importante relembrar que
O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos
limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute
capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade
Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais
ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e
espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a
fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)
Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-
violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo
violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-
socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo
(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-
humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo
humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a
rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios
quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de
coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras
A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um
anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo
(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim
negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se
natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para
natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a
34
contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo
(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-
humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-
violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que
assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)
Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx
caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu
proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios
empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo
entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez
de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do
humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-
capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo
dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os
torna incompatiacuteveis[27]
IV Agrave guisa de conclusatildeo
Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de
Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda
distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de
Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do
pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas
que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio
da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente
sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir
de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns
aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram
envolvidos pela leitura arendtiana
35
Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem
ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem
duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho
Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e
estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do
solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo
neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade
com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se
reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos
intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro
porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento
marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual
formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco
em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e
Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para
o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e
revolucionaacuterios
Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo
XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho
caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos
revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso
imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob
muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes
natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca
demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo
sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas
proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os
argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro
sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas
ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma
36
verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto
que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute
cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido
V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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MAGALHAtildeES Maria Thereza C A categoria de trabalho (labor) em H Arendt
Ensaio n 14 Satildeo Paulo Ensaio 1985
37
MARX K Elementos fundamentales para la criacutetica de la economiacutea poliacutetica
(borrador) 1857-1858 (I) Buenos Aires Siglo XXI 1973
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______ O capital Satildeo Paulo Nova Cultural (Col Os Economistas) 1985
______ O 18 brumaacuterio e Cartas a Kugelmann 5 ed Rio de Janeiro Paz e Terra
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______ Criacutetica del derecho del Estado de Hegel Introduccioacuten Obras
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Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987a
______ Glosas criacuteticas al artiacuteculo ldquoEl rey de Prusia y la reforma social Por un
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de Carlos Marx Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987b
______ Manuscritos econocircmico-filosoacuteficos Lisboa Ediccedilotildees 70 1989a
______ A miseacuteria da filosofia 2 ed Satildeo Paulo Global 1989b
______ A questatildeo judaica 2 ed Satildeo Paulo Moraes 1991
MARX K ENGELS F A ideologia alematilde (Feuerbach) 6 ed Satildeo Paulo Hucitec
1987a
______ A sagrada famiacutelia Satildeo Paulo Moraes 1987b
______ Manifesto comunista Satildeo Paulo Boitempo 1998
MEacuteSZAacuteROS I Poliacutetica radical e transiccedilatildeo para o socialismo reflexotildees sobre o
centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio
1983
______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002
Notas
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Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo
Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo
teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a
estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o
ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque
somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a
abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos
que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e
isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a
accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num
constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas
produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou
menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de
consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados
a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo
antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em
termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e
inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho
como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt
1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels
segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte
daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos
homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e
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osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida
real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos
desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo
corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade
efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa
produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma
aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio
Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para
produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas
necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a
Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de
qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas
formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na
constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso
ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro
Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se
distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo
reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele
duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo
(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute
afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels
1986 p 19)
40
[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade
esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas
daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades
capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas
carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e
propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que
determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a
p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que
sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram
transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em
grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos
paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital
Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo
crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos
estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem
consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo
social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas
conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento
marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo
implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de
estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo
significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo
dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma
luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude
do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de
uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o
41
entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada
dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas
caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos
do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no
fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje
muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o
sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e
saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente
a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente
severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de
personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de
objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de
produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e
personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar
condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua
perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento
universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social
como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p
85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que
apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo
aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do
esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e
complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em
relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios
revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA
transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em
42
43
massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
-
casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece
porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da
ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas
significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias
sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca
controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias
objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que
encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano
Em sua Ontologia do ser social ele afirma
Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada
vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as
decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da
totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse
conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa
relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso
porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o
movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da
histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas
etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local
tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que
tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de
transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que
satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do
que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e
consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso
aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)
Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos
individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha
ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias
mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade
oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem
econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo
24
social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve
ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que
historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os
processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem
uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle
destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou
A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a
anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo
incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do
trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer
controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma
infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo
autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais
entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda
organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a
sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)
Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus
ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os
limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de
intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal
qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos
uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana
(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do
pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os
limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir
para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta
ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo
No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras
experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao
nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25
pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas
relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi
drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente
desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses
capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de
regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo
resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica
reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas
experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da
humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua
loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a
accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com
seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social
passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees
marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de
regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos
moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a
consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria
redenccedilatildeo universal
O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos
ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as
acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels
salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido
um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o
movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)
O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se
realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico
do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana
de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo
comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o
26
comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a
forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo
nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao
desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma
sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o
comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no
fim da histoacuteria[22]
Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento
marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute
capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e
desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo
ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso
numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]
mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou
natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana
Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees
que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim
contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das
caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da
limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os
homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara
manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal
Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos
extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a
violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo
Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do
capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre
a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os
revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila
27
material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a
utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de
recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o
revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico
Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder
material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria
se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz
de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e
argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar
o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p
497)
Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos
(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o
discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista
muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)
que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no
encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as
sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece
ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um
discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos
constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das
individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades
eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano
mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em
campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar
plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de
sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar
sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio
colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel
convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e
28
culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem
respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes
subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]
Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)
de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio
das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto
natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive
atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie
No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias
naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o
crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda
escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-
sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo
contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da
incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees
materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos
afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus
processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos
inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos
da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades
humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute
o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses
trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)
Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas
produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa
penetrante passagem sobre o tema lemos
O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto
dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de
29
desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse
nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos
demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua
vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado
naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo
determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas
relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu
proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx
1973 pp 89-90)
Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos
sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a
centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos
aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza
e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham
vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a
intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o
equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente
econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida
social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da
permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas
relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito
da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas
universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada
das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os
homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria
mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das
forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo
adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos
homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia
O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se
compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30
neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo
do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo
pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso
histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive
violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste
(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso
resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na
sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os
antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por
ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses
das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos
Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica
natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades
reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a
estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico
Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da
cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios
juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da
sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela
que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de
duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que
complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo
concreto
O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em
oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem
de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade
desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem
leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da
realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na
comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na
31
sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como
meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes
estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser
profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real
eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem
eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma
soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de
uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)
Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e
imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos
privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma
revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res
publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja
eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da
proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a
violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica
consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a
accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a
vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma
alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento
Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a
essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o
proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua
violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre
dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo
de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a
perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a
violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt
segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser
a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente
32
pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o
antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as
relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de
supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano
Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder
dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se
faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de
violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o
poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa
revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades
viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento
humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo
profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma
resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como
desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo
Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado
como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos
do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute
poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de
propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)
Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de
dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao
contraacuterio
Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como
classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como
classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as
condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em
geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)
33
Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx
1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo
poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer
forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas
formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar
em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis
Quanto a isso eacute importante relembrar que
O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos
limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute
capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade
Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais
ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e
espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a
fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)
Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-
violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo
violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-
socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo
(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-
humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo
humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a
rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios
quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de
coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras
A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um
anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo
(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim
negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se
natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para
natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a
34
contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo
(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-
humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-
violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que
assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)
Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx
caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu
proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios
empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo
entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez
de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do
humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-
capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo
dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os
torna incompatiacuteveis[27]
IV Agrave guisa de conclusatildeo
Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de
Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda
distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de
Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do
pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas
que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio
da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente
sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir
de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns
aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram
envolvidos pela leitura arendtiana
35
Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem
ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem
duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho
Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e
estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do
solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo
neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade
com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se
reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos
intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro
porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento
marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual
formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco
em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e
Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para
o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e
revolucionaacuterios
Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo
XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho
caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos
revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso
imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob
muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes
natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca
demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo
sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas
proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os
argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro
sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas
ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma
36
verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto
que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute
cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido
V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio
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______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002
Notas
38
Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo
Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo
teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a
estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o
ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque
somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a
abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos
que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e
isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a
accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num
constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas
produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou
menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de
consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados
a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo
antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em
termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e
inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho
como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt
1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels
segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte
daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos
homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e
39
osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida
real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos
desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo
corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade
efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa
produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma
aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio
Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para
produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas
necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a
Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de
qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas
formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na
constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso
ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro
Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se
distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo
reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele
duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo
(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute
afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels
1986 p 19)
40
[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade
esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas
daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades
capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas
carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e
propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que
determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a
p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que
sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram
transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em
grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos
paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital
Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo
crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos
estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem
consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo
social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas
conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento
marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo
implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de
estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo
significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo
dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma
luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude
do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de
uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o
41
entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada
dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas
caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos
do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no
fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje
muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o
sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e
saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente
a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente
severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de
personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de
objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de
produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e
personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar
condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua
perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento
universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social
como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p
85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que
apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo
aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do
esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e
complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em
relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios
revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA
transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em
42
43
massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
-
social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve
ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que
historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os
processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem
uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle
destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou
A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a
anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo
incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do
trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer
controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma
infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo
autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais
entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda
organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a
sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)
Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus
ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os
limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de
intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal
qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos
uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana
(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do
pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os
limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir
para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta
ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo
No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras
experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao
nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25
pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas
relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi
drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente
desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses
capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de
regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo
resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica
reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas
experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da
humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua
loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a
accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com
seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social
passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees
marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de
regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos
moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a
consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria
redenccedilatildeo universal
O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos
ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as
acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels
salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido
um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o
movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)
O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se
realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico
do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana
de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo
comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o
26
comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a
forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo
nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao
desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma
sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o
comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no
fim da histoacuteria[22]
Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento
marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute
capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e
desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo
ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso
numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]
mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou
natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana
Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees
que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim
contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das
caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da
limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os
homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara
manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal
Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos
extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a
violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo
Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do
capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre
a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os
revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila
27
material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a
utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de
recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o
revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico
Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder
material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria
se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz
de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e
argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar
o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p
497)
Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos
(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o
discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista
muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)
que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no
encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as
sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece
ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um
discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos
constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das
individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades
eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano
mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em
campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar
plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de
sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar
sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio
colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel
convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e
28
culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem
respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes
subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]
Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)
de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio
das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto
natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive
atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie
No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias
naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o
crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda
escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-
sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo
contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da
incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees
materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos
afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus
processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos
inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos
da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades
humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute
o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses
trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)
Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas
produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa
penetrante passagem sobre o tema lemos
O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto
dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de
29
desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse
nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos
demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua
vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado
naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo
determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas
relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu
proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx
1973 pp 89-90)
Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos
sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a
centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos
aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza
e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham
vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a
intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o
equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente
econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida
social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da
permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas
relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito
da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas
universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada
das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os
homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria
mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das
forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo
adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos
homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia
O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se
compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30
neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo
do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo
pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso
histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive
violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste
(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso
resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na
sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os
antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por
ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses
das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos
Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica
natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades
reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a
estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico
Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da
cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios
juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da
sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela
que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de
duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que
complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo
concreto
O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em
oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem
de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade
desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem
leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da
realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na
comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na
31
sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como
meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes
estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser
profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real
eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem
eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma
soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de
uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)
Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e
imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos
privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma
revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res
publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja
eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da
proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a
violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica
consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a
accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a
vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma
alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento
Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a
essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o
proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua
violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre
dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo
de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a
perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a
violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt
segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser
a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente
32
pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o
antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as
relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de
supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano
Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder
dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se
faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de
violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o
poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa
revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades
viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento
humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo
profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma
resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como
desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo
Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado
como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos
do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute
poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de
propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)
Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de
dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao
contraacuterio
Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como
classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como
classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as
condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em
geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)
33
Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx
1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo
poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer
forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas
formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar
em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis
Quanto a isso eacute importante relembrar que
O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos
limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute
capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade
Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais
ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e
espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a
fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)
Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-
violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo
violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-
socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo
(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-
humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo
humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a
rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios
quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de
coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras
A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um
anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo
(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim
negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se
natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para
natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a
34
contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo
(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-
humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-
violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que
assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)
Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx
caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu
proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios
empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo
entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez
de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do
humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-
capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo
dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os
torna incompatiacuteveis[27]
IV Agrave guisa de conclusatildeo
Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de
Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda
distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de
Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do
pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas
que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio
da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente
sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir
de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns
aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram
envolvidos pela leitura arendtiana
35
Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem
ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem
duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho
Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e
estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do
solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo
neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade
com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se
reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos
intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro
porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento
marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual
formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco
em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e
Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para
o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e
revolucionaacuterios
Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo
XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho
caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos
revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso
imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob
muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes
natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca
demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo
sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas
proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os
argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro
sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas
ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma
36
verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto
que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute
cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido
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______ Para a criacutetica da economia poliacutetica Satildeo Paulo Abril Cultural (Col Os
Economistas) 1982
______ O capital Satildeo Paulo Nova Cultural (Col Os Economistas) 1985
______ O 18 brumaacuterio e Cartas a Kugelmann 5 ed Rio de Janeiro Paz e Terra
1986
______ Criacutetica del derecho del Estado de Hegel Introduccioacuten Obras
fundamentales de Marx y Engels v I ndash Escritos de juventud de Carlos Marx
Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987a
______ Glosas criacuteticas al artiacuteculo ldquoEl rey de Prusia y la reforma social Por un
prusianordquo Obras fundamentales de Marx y Engels v I ndash Escritos de juventud
de Carlos Marx Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987b
______ Manuscritos econocircmico-filosoacuteficos Lisboa Ediccedilotildees 70 1989a
______ A miseacuteria da filosofia 2 ed Satildeo Paulo Global 1989b
______ A questatildeo judaica 2 ed Satildeo Paulo Moraes 1991
MARX K ENGELS F A ideologia alematilde (Feuerbach) 6 ed Satildeo Paulo Hucitec
1987a
______ A sagrada famiacutelia Satildeo Paulo Moraes 1987b
______ Manifesto comunista Satildeo Paulo Boitempo 1998
MEacuteSZAacuteROS I Poliacutetica radical e transiccedilatildeo para o socialismo reflexotildees sobre o
centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio
1983
______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002
Notas
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Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo
Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo
teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a
estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o
ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque
somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a
abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos
que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e
isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a
accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num
constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas
produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou
menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de
consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados
a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo
antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em
termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e
inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho
como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt
1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels
segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte
daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos
homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e
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osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida
real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos
desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo
corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade
efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa
produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma
aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio
Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para
produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas
necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a
Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de
qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas
formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na
constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso
ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro
Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se
distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo
reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele
duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo
(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute
afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels
1986 p 19)
40
[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade
esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas
daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades
capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas
carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e
propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que
determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a
p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que
sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram
transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em
grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos
paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital
Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo
crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos
estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem
consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo
social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas
conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento
marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo
implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de
estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo
significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo
dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma
luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude
do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de
uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o
41
entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada
dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas
caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos
do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no
fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje
muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o
sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e
saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente
a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente
severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de
personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de
objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de
produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e
personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar
condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua
perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento
universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social
como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p
85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que
apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo
aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do
esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e
complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em
relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios
revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA
transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em
42
43
massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
-
pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas
relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi
drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente
desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses
capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de
regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo
resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica
reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas
experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da
humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua
loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a
accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com
seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social
passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees
marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de
regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos
moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a
consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria
redenccedilatildeo universal
O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos
ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as
acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels
salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido
um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o
movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)
O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se
realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico
do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana
de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo
comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o
26
comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a
forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo
nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao
desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma
sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o
comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no
fim da histoacuteria[22]
Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento
marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute
capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e
desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo
ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso
numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]
mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou
natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana
Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees
que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim
contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das
caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da
limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os
homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara
manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal
Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos
extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a
violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo
Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do
capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre
a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os
revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila
27
material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a
utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de
recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o
revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico
Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder
material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria
se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz
de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e
argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar
o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p
497)
Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos
(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o
discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista
muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)
que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no
encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as
sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece
ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um
discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos
constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das
individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades
eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano
mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em
campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar
plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de
sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar
sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio
colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel
convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e
28
culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem
respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes
subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]
Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)
de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio
das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto
natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive
atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie
No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias
naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o
crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda
escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-
sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo
contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da
incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees
materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos
afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus
processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos
inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos
da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades
humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute
o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses
trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)
Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas
produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa
penetrante passagem sobre o tema lemos
O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto
dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de
29
desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse
nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos
demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua
vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado
naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo
determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas
relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu
proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx
1973 pp 89-90)
Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos
sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a
centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos
aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza
e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham
vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a
intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o
equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente
econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida
social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da
permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas
relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito
da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas
universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada
das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os
homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria
mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das
forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo
adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos
homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia
O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se
compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30
neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo
do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo
pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso
histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive
violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste
(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso
resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na
sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os
antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por
ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses
das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos
Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica
natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades
reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a
estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico
Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da
cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios
juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da
sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela
que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de
duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que
complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo
concreto
O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em
oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem
de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade
desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem
leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da
realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na
comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na
31
sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como
meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes
estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser
profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real
eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem
eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma
soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de
uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)
Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e
imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos
privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma
revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res
publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja
eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da
proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a
violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica
consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a
accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a
vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma
alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento
Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a
essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o
proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua
violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre
dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo
de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a
perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a
violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt
segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser
a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente
32
pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o
antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as
relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de
supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano
Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder
dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se
faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de
violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o
poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa
revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades
viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento
humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo
profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma
resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como
desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo
Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado
como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos
do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute
poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de
propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)
Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de
dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao
contraacuterio
Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como
classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como
classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as
condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em
geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)
33
Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx
1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo
poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer
forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas
formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar
em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis
Quanto a isso eacute importante relembrar que
O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos
limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute
capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade
Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais
ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e
espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a
fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)
Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-
violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo
violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-
socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo
(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-
humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo
humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a
rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios
quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de
coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras
A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um
anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo
(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim
negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se
natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para
natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a
34
contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo
(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-
humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-
violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que
assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)
Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx
caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu
proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios
empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo
entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez
de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do
humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-
capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo
dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os
torna incompatiacuteveis[27]
IV Agrave guisa de conclusatildeo
Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de
Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda
distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de
Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do
pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas
que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio
da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente
sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir
de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns
aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram
envolvidos pela leitura arendtiana
35
Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem
ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem
duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho
Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e
estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do
solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo
neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade
com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se
reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos
intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro
porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento
marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual
formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco
em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e
Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para
o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e
revolucionaacuterios
Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo
XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho
caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos
revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso
imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob
muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes
natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca
demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo
sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas
proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os
argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro
sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas
ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma
36
verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto
que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute
cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido
V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio
1983
______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002
Notas
38
Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo
Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo
teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a
estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o
ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque
somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a
abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos
que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e
isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a
accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num
constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas
produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou
menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de
consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados
a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo
antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em
termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e
inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho
como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt
1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels
segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte
daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos
homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e
39
osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida
real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos
desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo
corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade
efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa
produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma
aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio
Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para
produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas
necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a
Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de
qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas
formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na
constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso
ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro
Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se
distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo
reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele
duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo
(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute
afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels
1986 p 19)
40
[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade
esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas
daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades
capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas
carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e
propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que
determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a
p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que
sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram
transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em
grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos
paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital
Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo
crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos
estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem
consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo
social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas
conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento
marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo
implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de
estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo
significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo
dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma
luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude
do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de
uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o
41
entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada
dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas
caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos
do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no
fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje
muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o
sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e
saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente
a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente
severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de
personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de
objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de
produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e
personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar
condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua
perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento
universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social
como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p
85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que
apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo
aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do
esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e
complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em
relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios
revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA
transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em
42
43
massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
-
comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a
forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo
nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao
desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma
sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o
comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no
fim da histoacuteria[22]
Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento
marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute
capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e
desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo
ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso
numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]
mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou
natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana
Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees
que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim
contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das
caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da
limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os
homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara
manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal
Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos
extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a
violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo
Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do
capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre
a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os
revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila
27
material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a
utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de
recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o
revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico
Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder
material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria
se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz
de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e
argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar
o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p
497)
Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos
(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o
discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista
muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)
que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no
encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as
sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece
ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um
discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos
constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das
individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades
eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano
mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em
campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar
plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de
sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar
sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio
colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel
convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e
28
culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem
respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes
subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]
Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)
de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio
das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto
natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive
atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie
No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias
naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o
crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda
escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-
sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo
contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da
incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees
materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos
afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus
processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos
inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos
da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades
humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute
o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses
trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)
Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas
produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa
penetrante passagem sobre o tema lemos
O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto
dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de
29
desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse
nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos
demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua
vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado
naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo
determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas
relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu
proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx
1973 pp 89-90)
Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos
sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a
centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos
aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza
e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham
vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a
intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o
equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente
econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida
social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da
permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas
relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito
da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas
universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada
das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os
homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria
mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das
forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo
adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos
homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia
O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se
compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30
neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo
do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo
pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso
histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive
violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste
(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso
resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na
sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os
antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por
ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses
das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos
Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica
natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades
reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a
estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico
Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da
cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios
juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da
sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela
que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de
duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que
complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo
concreto
O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em
oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem
de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade
desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem
leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da
realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na
comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na
31
sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como
meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes
estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser
profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real
eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem
eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma
soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de
uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)
Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e
imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos
privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma
revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res
publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja
eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da
proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a
violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica
consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a
accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a
vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma
alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento
Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a
essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o
proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua
violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre
dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo
de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a
perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a
violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt
segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser
a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente
32
pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o
antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as
relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de
supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano
Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder
dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se
faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de
violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o
poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa
revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades
viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento
humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo
profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma
resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como
desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo
Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado
como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos
do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute
poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de
propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)
Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de
dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao
contraacuterio
Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como
classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como
classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as
condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em
geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)
33
Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx
1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo
poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer
forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas
formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar
em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis
Quanto a isso eacute importante relembrar que
O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos
limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute
capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade
Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais
ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e
espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a
fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)
Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-
violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo
violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-
socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo
(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-
humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo
humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a
rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios
quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de
coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras
A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um
anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo
(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim
negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se
natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para
natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a
34
contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo
(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-
humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-
violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que
assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)
Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx
caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu
proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios
empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo
entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez
de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do
humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-
capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo
dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os
torna incompatiacuteveis[27]
IV Agrave guisa de conclusatildeo
Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de
Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda
distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de
Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do
pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas
que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio
da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente
sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir
de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns
aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram
envolvidos pela leitura arendtiana
35
Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem
ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem
duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho
Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e
estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do
solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo
neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade
com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se
reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos
intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro
porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento
marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual
formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco
em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e
Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para
o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e
revolucionaacuterios
Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo
XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho
caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos
revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso
imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob
muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes
natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca
demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo
sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas
proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os
argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro
sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas
ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma
36
verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto
que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute
cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido
V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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Notas
38
Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo
Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo
teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a
estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o
ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque
somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a
abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos
que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e
isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a
accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num
constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas
produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou
menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de
consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados
a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo
antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em
termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e
inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho
como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt
1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels
segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte
daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos
homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e
39
osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida
real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos
desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo
corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade
efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa
produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma
aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio
Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para
produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas
necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a
Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de
qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas
formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na
constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso
ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro
Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se
distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo
reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele
duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo
(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute
afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels
1986 p 19)
40
[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade
esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas
daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades
capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas
carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e
propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que
determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a
p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que
sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram
transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em
grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos
paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital
Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo
crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos
estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem
consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo
social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas
conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento
marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo
implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de
estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo
significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo
dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma
luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude
do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de
uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o
41
entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada
dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas
caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos
do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no
fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje
muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o
sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e
saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente
a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente
severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de
personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de
objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de
produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e
personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar
condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua
perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento
universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social
como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p
85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que
apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo
aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do
esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e
complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em
relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios
revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA
transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em
42
43
massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
-
material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a
utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de
recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o
revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico
Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder
material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria
se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz
de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e
argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar
o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p
497)
Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos
(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o
discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista
muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)
que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no
encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as
sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece
ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um
discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos
constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das
individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades
eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano
mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em
campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar
plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de
sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar
sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio
colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel
convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e
28
culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem
respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes
subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]
Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)
de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio
das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto
natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive
atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie
No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias
naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o
crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda
escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-
sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo
contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da
incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees
materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos
afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus
processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos
inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos
da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades
humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute
o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses
trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)
Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas
produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa
penetrante passagem sobre o tema lemos
O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto
dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de
29
desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse
nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos
demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua
vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado
naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo
determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas
relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu
proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx
1973 pp 89-90)
Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos
sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a
centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos
aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza
e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham
vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a
intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o
equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente
econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida
social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da
permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas
relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito
da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas
universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada
das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os
homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria
mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das
forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo
adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos
homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia
O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se
compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30
neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo
do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo
pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso
histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive
violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste
(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso
resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na
sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os
antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por
ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses
das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos
Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica
natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades
reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a
estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico
Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da
cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios
juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da
sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela
que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de
duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que
complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo
concreto
O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em
oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem
de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade
desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem
leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da
realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na
comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na
31
sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como
meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes
estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser
profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real
eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem
eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma
soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de
uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)
Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e
imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos
privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma
revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res
publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja
eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da
proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a
violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica
consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a
accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a
vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma
alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento
Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a
essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o
proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua
violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre
dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo
de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a
perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a
violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt
segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser
a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente
32
pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o
antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as
relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de
supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano
Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder
dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se
faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de
violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o
poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa
revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades
viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento
humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo
profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma
resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como
desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo
Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado
como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos
do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute
poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de
propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)
Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de
dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao
contraacuterio
Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como
classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como
classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as
condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em
geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)
33
Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx
1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo
poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer
forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas
formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar
em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis
Quanto a isso eacute importante relembrar que
O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos
limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute
capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade
Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais
ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e
espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a
fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)
Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-
violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo
violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-
socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo
(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-
humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo
humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a
rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios
quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de
coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras
A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um
anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo
(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim
negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se
natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para
natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a
34
contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo
(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-
humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-
violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que
assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)
Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx
caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu
proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios
empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo
entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez
de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do
humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-
capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo
dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os
torna incompatiacuteveis[27]
IV Agrave guisa de conclusatildeo
Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de
Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda
distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de
Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do
pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas
que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio
da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente
sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir
de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns
aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram
envolvidos pela leitura arendtiana
35
Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem
ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem
duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho
Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e
estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do
solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo
neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade
com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se
reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos
intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro
porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento
marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual
formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco
em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e
Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para
o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e
revolucionaacuterios
Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo
XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho
caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos
revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso
imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob
muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes
natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca
demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo
sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas
proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os
argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro
sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas
ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma
36
verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto
que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute
cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido
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Notas
38
Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo
Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo
teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a
estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o
ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque
somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a
abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos
que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e
isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a
accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num
constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas
produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou
menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de
consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados
a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo
antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em
termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e
inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho
como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt
1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels
segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte
daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos
homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e
39
osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida
real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos
desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo
corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade
efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa
produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma
aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio
Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para
produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas
necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a
Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de
qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas
formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na
constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso
ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro
Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se
distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo
reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele
duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo
(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute
afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels
1986 p 19)
40
[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade
esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas
daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades
capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas
carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e
propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que
determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a
p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que
sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram
transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em
grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos
paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital
Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo
crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos
estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem
consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo
social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas
conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento
marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo
implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de
estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo
significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo
dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma
luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude
do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de
uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o
41
entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada
dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas
caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos
do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no
fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje
muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o
sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e
saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente
a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente
severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de
personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de
objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de
produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e
personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar
condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua
perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento
universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social
como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p
85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que
apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo
aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do
esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e
complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em
relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios
revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA
transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em
42
43
massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
-
culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem
respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes
subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]
Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)
de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio
das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto
natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive
atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie
No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias
naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o
crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda
escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-
sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo
contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da
incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees
materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos
afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus
processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos
inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos
da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades
humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute
o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses
trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)
Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas
produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa
penetrante passagem sobre o tema lemos
O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto
dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de
29
desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse
nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos
demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua
vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado
naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo
determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas
relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu
proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx
1973 pp 89-90)
Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos
sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a
centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos
aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza
e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham
vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a
intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o
equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente
econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida
social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da
permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas
relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito
da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas
universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada
das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os
homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria
mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das
forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo
adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos
homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia
O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se
compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30
neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo
do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo
pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso
histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive
violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste
(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso
resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na
sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os
antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por
ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses
das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos
Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica
natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades
reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a
estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico
Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da
cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios
juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da
sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela
que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de
duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que
complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo
concreto
O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em
oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem
de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade
desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem
leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da
realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na
comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na
31
sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como
meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes
estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser
profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real
eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem
eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma
soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de
uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)
Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e
imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos
privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma
revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res
publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja
eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da
proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a
violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica
consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a
accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a
vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma
alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento
Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a
essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o
proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua
violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre
dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo
de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a
perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a
violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt
segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser
a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente
32
pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o
antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as
relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de
supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano
Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder
dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se
faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de
violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o
poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa
revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades
viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento
humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo
profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma
resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como
desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo
Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado
como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos
do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute
poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de
propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)
Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de
dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao
contraacuterio
Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como
classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como
classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as
condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em
geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)
33
Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx
1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo
poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer
forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas
formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar
em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis
Quanto a isso eacute importante relembrar que
O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos
limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute
capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade
Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais
ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e
espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a
fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)
Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-
violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo
violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-
socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo
(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-
humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo
humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a
rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios
quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de
coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras
A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um
anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo
(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim
negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se
natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para
natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a
34
contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo
(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-
humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-
violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que
assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)
Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx
caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu
proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios
empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo
entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez
de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do
humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-
capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo
dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os
torna incompatiacuteveis[27]
IV Agrave guisa de conclusatildeo
Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de
Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda
distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de
Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do
pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas
que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio
da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente
sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir
de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns
aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram
envolvidos pela leitura arendtiana
35
Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem
ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem
duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho
Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e
estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do
solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo
neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade
com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se
reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos
intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro
porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento
marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual
formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco
em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e
Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para
o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e
revolucionaacuterios
Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo
XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho
caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos
revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso
imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob
muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes
natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca
demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo
sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas
proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os
argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro
sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas
ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma
36
verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto
que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute
cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido
V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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37
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(borrador) 1857-1858 (I) Buenos Aires Siglo XXI 1973
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______ O capital Satildeo Paulo Nova Cultural (Col Os Economistas) 1985
______ O 18 brumaacuterio e Cartas a Kugelmann 5 ed Rio de Janeiro Paz e Terra
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______ Criacutetica del derecho del Estado de Hegel Introduccioacuten Obras
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Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987a
______ Glosas criacuteticas al artiacuteculo ldquoEl rey de Prusia y la reforma social Por un
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de Carlos Marx Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987b
______ Manuscritos econocircmico-filosoacuteficos Lisboa Ediccedilotildees 70 1989a
______ A miseacuteria da filosofia 2 ed Satildeo Paulo Global 1989b
______ A questatildeo judaica 2 ed Satildeo Paulo Moraes 1991
MARX K ENGELS F A ideologia alematilde (Feuerbach) 6 ed Satildeo Paulo Hucitec
1987a
______ A sagrada famiacutelia Satildeo Paulo Moraes 1987b
______ Manifesto comunista Satildeo Paulo Boitempo 1998
MEacuteSZAacuteROS I Poliacutetica radical e transiccedilatildeo para o socialismo reflexotildees sobre o
centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio
1983
______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002
Notas
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Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo
Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo
teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a
estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o
ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque
somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a
abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos
que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e
isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a
accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num
constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas
produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou
menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de
consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados
a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo
antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em
termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e
inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho
como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt
1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels
segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte
daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos
homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e
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osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida
real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos
desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo
corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade
efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa
produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma
aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio
Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para
produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas
necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a
Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de
qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas
formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na
constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso
ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro
Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se
distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo
reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele
duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo
(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute
afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels
1986 p 19)
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[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade
esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas
daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades
capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas
carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e
propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que
determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a
p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que
sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram
transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em
grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos
paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital
Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo
crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos
estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem
consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo
social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas
conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento
marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo
implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de
estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo
significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo
dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma
luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude
do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de
uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o
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entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada
dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas
caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos
do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no
fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje
muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o
sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e
saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente
a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente
severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de
personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de
objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de
produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e
personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar
condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua
perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento
universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social
como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p
85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que
apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo
aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do
esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e
complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em
relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios
revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA
transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em
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massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
-
desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse
nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos
demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua
vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado
naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo
determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas
relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu
proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx
1973 pp 89-90)
Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos
sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a
centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos
aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza
e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham
vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a
intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o
equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente
econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida
social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da
permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas
relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito
da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas
universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada
das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os
homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria
mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das
forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo
adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos
homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia
O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se
compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30
neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo
do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo
pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso
histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive
violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste
(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso
resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na
sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os
antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por
ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses
das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos
Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica
natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades
reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a
estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico
Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da
cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios
juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da
sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela
que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de
duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que
complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo
concreto
O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em
oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem
de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade
desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem
leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da
realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na
comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na
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sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como
meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes
estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser
profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real
eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem
eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma
soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de
uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)
Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e
imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos
privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma
revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res
publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja
eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da
proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a
violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica
consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a
accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a
vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma
alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento
Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a
essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o
proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua
violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre
dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo
de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a
perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a
violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt
segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser
a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente
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pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o
antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as
relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de
supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano
Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder
dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se
faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de
violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o
poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa
revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades
viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento
humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo
profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma
resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como
desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo
Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado
como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos
do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute
poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de
propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)
Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de
dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao
contraacuterio
Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como
classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como
classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as
condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em
geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)
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Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx
1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo
poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer
forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas
formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar
em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis
Quanto a isso eacute importante relembrar que
O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos
limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute
capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade
Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais
ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e
espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a
fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)
Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-
violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo
violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-
socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo
(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-
humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo
humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a
rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios
quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de
coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras
A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um
anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo
(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim
negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se
natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para
natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a
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contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo
(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-
humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-
violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que
assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)
Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx
caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu
proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios
empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo
entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez
de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do
humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-
capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo
dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os
torna incompatiacuteveis[27]
IV Agrave guisa de conclusatildeo
Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de
Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda
distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de
Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do
pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas
que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio
da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente
sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir
de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns
aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram
envolvidos pela leitura arendtiana
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Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem
ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem
duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho
Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e
estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do
solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo
neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade
com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se
reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos
intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro
porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento
marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual
formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco
em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e
Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para
o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e
revolucionaacuterios
Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo
XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho
caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos
revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso
imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob
muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes
natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca
demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo
sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas
proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os
argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro
sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas
ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma
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verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto
que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute
cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido
V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
ARENDT Hannah Entre o passado e o futuro Satildeo Paulo Perspectiva 1972
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Notas
38
Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo
Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo
teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a
estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o
ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque
somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a
abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos
que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e
isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a
accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num
constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas
produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou
menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de
consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados
a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo
antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em
termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e
inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho
como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt
1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels
segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte
daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos
homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e
39
osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida
real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos
desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo
corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade
efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa
produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma
aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio
Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para
produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas
necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a
Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de
qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas
formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na
constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso
ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro
Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se
distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo
reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele
duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo
(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute
afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels
1986 p 19)
40
[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade
esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas
daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades
capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas
carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e
propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que
determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a
p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que
sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram
transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em
grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos
paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital
Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo
crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos
estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem
consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo
social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas
conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento
marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo
implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de
estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo
significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo
dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma
luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude
do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de
uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o
41
entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada
dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas
caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos
do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no
fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje
muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o
sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e
saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente
a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente
severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de
personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de
objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de
produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e
personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar
condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua
perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento
universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social
como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p
85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que
apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo
aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do
esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e
complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em
relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios
revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA
transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em
42
43
massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
-
neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo
do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo
pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso
histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive
violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste
(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso
resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na
sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os
antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por
ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses
das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos
Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica
natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades
reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a
estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico
Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da
cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios
juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da
sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela
que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de
duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que
complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo
concreto
O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em
oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem
de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade
desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem
leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da
realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na
comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na
31
sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como
meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes
estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser
profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real
eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem
eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma
soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de
uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)
Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e
imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos
privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma
revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res
publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja
eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da
proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a
violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica
consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a
accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a
vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma
alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento
Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a
essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o
proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua
violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre
dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo
de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a
perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a
violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt
segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser
a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente
32
pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o
antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as
relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de
supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano
Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder
dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se
faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de
violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o
poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa
revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades
viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento
humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo
profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma
resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como
desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo
Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado
como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos
do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute
poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de
propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)
Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de
dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao
contraacuterio
Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como
classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como
classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as
condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em
geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)
33
Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx
1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo
poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer
forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas
formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar
em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis
Quanto a isso eacute importante relembrar que
O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos
limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute
capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade
Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais
ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e
espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a
fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)
Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-
violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo
violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-
socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo
(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-
humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo
humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a
rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios
quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de
coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras
A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um
anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo
(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim
negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se
natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para
natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a
34
contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo
(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-
humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-
violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que
assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)
Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx
caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu
proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios
empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo
entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez
de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do
humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-
capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo
dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os
torna incompatiacuteveis[27]
IV Agrave guisa de conclusatildeo
Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de
Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda
distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de
Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do
pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas
que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio
da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente
sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir
de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns
aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram
envolvidos pela leitura arendtiana
35
Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem
ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem
duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho
Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e
estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do
solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo
neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade
com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se
reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos
intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro
porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento
marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual
formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco
em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e
Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para
o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e
revolucionaacuterios
Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo
XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho
caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos
revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso
imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob
muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes
natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca
demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo
sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas
proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os
argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro
sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas
ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma
36
verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto
que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute
cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido
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Ensaio n 14 Satildeo Paulo Ensaio 1985
37
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Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987a
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______ A questatildeo judaica 2 ed Satildeo Paulo Moraes 1991
MARX K ENGELS F A ideologia alematilde (Feuerbach) 6 ed Satildeo Paulo Hucitec
1987a
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______ Manifesto comunista Satildeo Paulo Boitempo 1998
MEacuteSZAacuteROS I Poliacutetica radical e transiccedilatildeo para o socialismo reflexotildees sobre o
centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio
1983
______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002
Notas
38
Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo
Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo
teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a
estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o
ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque
somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a
abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos
que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e
isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a
accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num
constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas
produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou
menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de
consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados
a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo
antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em
termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e
inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho
como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt
1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels
segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte
daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos
homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e
39
osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida
real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos
desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo
corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade
efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa
produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma
aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio
Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para
produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas
necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a
Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de
qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas
formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na
constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso
ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro
Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se
distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo
reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele
duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo
(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute
afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels
1986 p 19)
40
[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade
esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas
daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades
capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas
carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e
propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que
determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a
p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que
sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram
transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em
grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos
paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital
Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo
crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos
estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem
consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo
social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas
conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento
marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo
implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de
estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo
significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo
dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma
luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude
do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de
uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o
41
entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada
dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas
caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos
do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no
fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje
muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o
sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e
saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente
a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente
severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de
personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de
objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de
produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e
personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar
condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua
perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento
universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social
como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p
85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que
apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo
aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do
esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e
complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em
relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios
revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA
transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em
42
43
massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
-
sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como
meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes
estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser
profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real
eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem
eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma
soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de
uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)
Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e
imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos
privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma
revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res
publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja
eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da
proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a
violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica
consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a
accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a
vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma
alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento
Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a
essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o
proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua
violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre
dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo
de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a
perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a
violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt
segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser
a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente
32
pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o
antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as
relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de
supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano
Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder
dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se
faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de
violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o
poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa
revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades
viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento
humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo
profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma
resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como
desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo
Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado
como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos
do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute
poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de
propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)
Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de
dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao
contraacuterio
Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como
classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como
classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as
condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em
geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)
33
Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx
1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo
poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer
forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas
formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar
em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis
Quanto a isso eacute importante relembrar que
O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos
limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute
capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade
Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais
ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e
espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a
fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)
Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-
violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo
violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-
socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo
(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-
humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo
humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a
rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios
quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de
coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras
A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um
anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo
(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim
negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se
natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para
natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a
34
contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo
(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-
humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-
violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que
assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)
Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx
caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu
proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios
empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo
entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez
de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do
humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-
capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo
dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os
torna incompatiacuteveis[27]
IV Agrave guisa de conclusatildeo
Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de
Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda
distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de
Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do
pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas
que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio
da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente
sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir
de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns
aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram
envolvidos pela leitura arendtiana
35
Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem
ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem
duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho
Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e
estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do
solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo
neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade
com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se
reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos
intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro
porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento
marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual
formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco
em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e
Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para
o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e
revolucionaacuterios
Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo
XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho
caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos
revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso
imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob
muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes
natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca
demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo
sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas
proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os
argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro
sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas
ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma
36
verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto
que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute
cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido
V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo
Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo
teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a
estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o
ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque
somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a
abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos
que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e
isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a
accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num
constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas
produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou
menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de
consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados
a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo
antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em
termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e
inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho
como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt
1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels
segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte
daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos
homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e
39
osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida
real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos
desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo
corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade
efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa
produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma
aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio
Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para
produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas
necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a
Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de
qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas
formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na
constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso
ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro
Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se
distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo
reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele
duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo
(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute
afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels
1986 p 19)
40
[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade
esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas
daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades
capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas
carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e
propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que
determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a
p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que
sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram
transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em
grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos
paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital
Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo
crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos
estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem
consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo
social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas
conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento
marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo
implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de
estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo
significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo
dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma
luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude
do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de
uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o
41
entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada
dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas
caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos
do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no
fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje
muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o
sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e
saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente
a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente
severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de
personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de
objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de
produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e
personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar
condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua
perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento
universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social
como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p
85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que
apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo
aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do
esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e
complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em
relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios
revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA
transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em
42
43
massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
-
pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o
antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as
relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de
supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano
Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder
dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se
faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de
violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o
poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa
revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades
viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento
humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo
profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma
resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como
desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo
Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado
como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos
do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute
poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de
propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)
Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de
dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao
contraacuterio
Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como
classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como
classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as
condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em
geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)
33
Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx
1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo
poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer
forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas
formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar
em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis
Quanto a isso eacute importante relembrar que
O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos
limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute
capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade
Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais
ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e
espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a
fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)
Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-
violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo
violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-
socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo
(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-
humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo
humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a
rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios
quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de
coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras
A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um
anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo
(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim
negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se
natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para
natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a
34
contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo
(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-
humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-
violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que
assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)
Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx
caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu
proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios
empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo
entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez
de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do
humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-
capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo
dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os
torna incompatiacuteveis[27]
IV Agrave guisa de conclusatildeo
Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de
Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda
distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de
Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do
pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas
que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio
da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente
sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir
de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns
aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram
envolvidos pela leitura arendtiana
35
Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem
ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem
duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho
Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e
estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do
solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo
neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade
com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se
reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos
intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro
porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento
marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual
formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco
em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e
Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para
o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e
revolucionaacuterios
Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo
XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho
caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos
revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso
imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob
muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes
natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca
demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo
sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas
proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os
argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro
sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas
ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma
36
verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto
que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute
cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido
V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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Relume-Dumaraacute 2002
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37
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1987a
______ A sagrada famiacutelia Satildeo Paulo Moraes 1987b
______ Manifesto comunista Satildeo Paulo Boitempo 1998
MEacuteSZAacuteROS I Poliacutetica radical e transiccedilatildeo para o socialismo reflexotildees sobre o
centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio
1983
______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002
Notas
38
Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo
Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo
teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a
estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o
ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque
somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a
abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos
que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e
isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a
accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num
constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas
produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou
menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de
consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados
a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo
antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em
termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e
inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho
como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt
1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels
segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte
daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos
homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e
39
osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida
real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos
desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo
corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade
efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa
produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma
aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio
Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para
produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas
necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a
Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de
qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas
formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na
constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso
ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro
Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se
distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo
reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele
duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo
(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute
afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels
1986 p 19)
40
[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade
esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas
daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades
capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas
carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e
propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que
determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a
p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que
sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram
transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em
grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos
paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital
Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo
crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos
estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem
consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo
social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas
conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento
marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo
implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de
estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo
significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo
dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma
luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude
do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de
uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o
41
entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada
dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas
caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos
do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no
fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje
muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o
sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e
saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente
a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente
severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de
personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de
objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de
produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e
personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar
condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua
perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento
universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social
como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p
85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que
apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo
aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do
esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e
complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em
relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios
revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA
transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em
42
43
massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
-
Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx
1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo
poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer
forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas
formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar
em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis
Quanto a isso eacute importante relembrar que
O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos
limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute
capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade
Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais
ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e
espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a
fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)
Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-
violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo
violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-
socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo
(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-
humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo
humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a
rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios
quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de
coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras
A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um
anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo
(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim
negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se
natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para
natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a
34
contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo
(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-
humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-
violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que
assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)
Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx
caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu
proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios
empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo
entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez
de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do
humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-
capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo
dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os
torna incompatiacuteveis[27]
IV Agrave guisa de conclusatildeo
Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de
Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda
distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de
Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do
pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas
que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio
da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente
sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir
de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns
aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram
envolvidos pela leitura arendtiana
35
Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem
ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem
duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho
Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e
estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do
solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo
neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade
com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se
reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos
intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro
porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento
marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual
formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco
em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e
Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para
o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e
revolucionaacuterios
Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo
XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho
caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos
revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso
imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob
muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes
natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca
demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo
sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas
proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os
argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro
sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas
ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma
36
verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto
que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute
cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido
V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
ARENDT Hannah Entre o passado e o futuro Satildeo Paulo Perspectiva 1972
______ Da revoluccedilatildeo Satildeo PauloBrasiacutelia AacuteticaEditora da UnB 1990
______ Sobre a violecircncia Satildeo Paulo Relume-Dumaraacute 1994
______ The human condition Chicago University of Chicago Press 1998
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Relume-Dumaraacute 2002
CANOVAN Margareth ldquoIntroductionrdquo In ARENDT Hannah The human condition
Chicago University of Chicago Press 1998
CHASIN J Rota e prospectiva de um projeto marxista Ensaios Ad Hominem n 1
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ENGELS Friedrich O papel do trabalho na transformaccedilatildeo do macaco em homem
Satildeo Paulo Global 1986
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KOSIK Karel A dialeacutetica do concreto Rio de Janeiro Paz e Terra 1976
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Paz e Terra 1979
LUKAacuteCS Georg As bases ontoloacutegicas da atividade humana Temas Satildeo Paulo
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______ Os princiacutepios ontoloacutegicos fundamentais de Marx Satildeo Paulo Ciecircncias
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MAGALHAtildeES Maria Thereza C A categoria de trabalho (labor) em H Arendt
Ensaio n 14 Satildeo Paulo Ensaio 1985
37
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1975
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Economistas) 1982
______ O capital Satildeo Paulo Nova Cultural (Col Os Economistas) 1985
______ O 18 brumaacuterio e Cartas a Kugelmann 5 ed Rio de Janeiro Paz e Terra
1986
______ Criacutetica del derecho del Estado de Hegel Introduccioacuten Obras
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Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987a
______ Glosas criacuteticas al artiacuteculo ldquoEl rey de Prusia y la reforma social Por un
prusianordquo Obras fundamentales de Marx y Engels v I ndash Escritos de juventud
de Carlos Marx Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987b
______ Manuscritos econocircmico-filosoacuteficos Lisboa Ediccedilotildees 70 1989a
______ A miseacuteria da filosofia 2 ed Satildeo Paulo Global 1989b
______ A questatildeo judaica 2 ed Satildeo Paulo Moraes 1991
MARX K ENGELS F A ideologia alematilde (Feuerbach) 6 ed Satildeo Paulo Hucitec
1987a
______ A sagrada famiacutelia Satildeo Paulo Moraes 1987b
______ Manifesto comunista Satildeo Paulo Boitempo 1998
MEacuteSZAacuteROS I Poliacutetica radical e transiccedilatildeo para o socialismo reflexotildees sobre o
centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio
1983
______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002
Notas
38
Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo
Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo
teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a
estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o
ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque
somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a
abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos
que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e
isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a
accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num
constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas
produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou
menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de
consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados
a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo
antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em
termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e
inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho
como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt
1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels
segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte
daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos
homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e
39
osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida
real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos
desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo
corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade
efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa
produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma
aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio
Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para
produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas
necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a
Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de
qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas
formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na
constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso
ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro
Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se
distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo
reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele
duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo
(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute
afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels
1986 p 19)
40
[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade
esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas
daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades
capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas
carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e
propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que
determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a
p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que
sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram
transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em
grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos
paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital
Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo
crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos
estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem
consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo
social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas
conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento
marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo
implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de
estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo
significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo
dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma
luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude
do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de
uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o
41
entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada
dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas
caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos
do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no
fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje
muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o
sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e
saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente
a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente
severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de
personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de
objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de
produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e
personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar
condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua
perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento
universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social
como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p
85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que
apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo
aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do
esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e
complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em
relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios
revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA
transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em
42
43
massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
-
contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo
(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-
humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-
violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que
assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)
Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx
caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu
proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios
empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo
entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez
de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do
humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-
capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo
dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os
torna incompatiacuteveis[27]
IV Agrave guisa de conclusatildeo
Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de
Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda
distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de
Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do
pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas
que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio
da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente
sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir
de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns
aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram
envolvidos pela leitura arendtiana
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Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem
ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem
duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho
Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e
estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do
solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo
neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade
com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se
reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos
intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro
porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento
marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual
formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco
em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e
Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para
o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e
revolucionaacuterios
Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo
XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho
caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos
revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso
imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob
muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes
natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca
demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo
sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas
proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os
argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro
sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas
ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma
36
verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto
que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute
cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido
V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
ARENDT Hannah Entre o passado e o futuro Satildeo Paulo Perspectiva 1972
______ Da revoluccedilatildeo Satildeo PauloBrasiacutelia AacuteticaEditora da UnB 1990
______ Sobre a violecircncia Satildeo Paulo Relume-Dumaraacute 1994
______ The human condition Chicago University of Chicago Press 1998
______ A dignidade da poliacutetica ensaios e conferecircncias 3 ed Satildeo Paulo
Relume-Dumaraacute 2002
CANOVAN Margareth ldquoIntroductionrdquo In ARENDT Hannah The human condition
Chicago University of Chicago Press 1998
CHASIN J Rota e prospectiva de um projeto marxista Ensaios Ad Hominem n 1
t III Santo Andreacute Ad Hominem 2000
DUSSEL Enrique As quatro redaccedilotildees de O capital (1857-1880) Ensaios Ad
Hominem n 1 t I Santo Andreacute Ad Hominem 1999
ENGELS Friedrich O papel do trabalho na transformaccedilatildeo do macaco em homem
Satildeo Paulo Global 1986
FAUSTO Ruy Loacutegica e poliacutetica v I Satildeo Paulo Brasiliense 1983
HOBSBAWM Eric A era dos extremos Satildeo Paulo Cia das Letras 1995
KOSIK Karel A dialeacutetica do concreto Rio de Janeiro Paz e Terra 1976
LAFER Celso Hannah Arendt pensamento persuasatildeo e poder Rio de Janeiro
Paz e Terra 1979
LUKAacuteCS Georg As bases ontoloacutegicas da atividade humana Temas Satildeo Paulo
n4 Ciecircncias Humanas 1978
______ Os princiacutepios ontoloacutegicos fundamentais de Marx Satildeo Paulo Ciecircncias
Humanas 1979
MAGALHAtildeES Maria Thereza C A categoria de trabalho (labor) em H Arendt
Ensaio n 14 Satildeo Paulo Ensaio 1985
37
MARX K Elementos fundamentales para la criacutetica de la economiacutea poliacutetica
(borrador) 1857-1858 (I) Buenos Aires Siglo XXI 1973
______ Formaccedilotildees econocircmicas preacute-capitalistas Rio de Janeiro Paz e Terra
1975
______ Para a criacutetica da economia poliacutetica Satildeo Paulo Abril Cultural (Col Os
Economistas) 1982
______ O capital Satildeo Paulo Nova Cultural (Col Os Economistas) 1985
______ O 18 brumaacuterio e Cartas a Kugelmann 5 ed Rio de Janeiro Paz e Terra
1986
______ Criacutetica del derecho del Estado de Hegel Introduccioacuten Obras
fundamentales de Marx y Engels v I ndash Escritos de juventud de Carlos Marx
Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987a
______ Glosas criacuteticas al artiacuteculo ldquoEl rey de Prusia y la reforma social Por un
prusianordquo Obras fundamentales de Marx y Engels v I ndash Escritos de juventud
de Carlos Marx Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987b
______ Manuscritos econocircmico-filosoacuteficos Lisboa Ediccedilotildees 70 1989a
______ A miseacuteria da filosofia 2 ed Satildeo Paulo Global 1989b
______ A questatildeo judaica 2 ed Satildeo Paulo Moraes 1991
MARX K ENGELS F A ideologia alematilde (Feuerbach) 6 ed Satildeo Paulo Hucitec
1987a
______ A sagrada famiacutelia Satildeo Paulo Moraes 1987b
______ Manifesto comunista Satildeo Paulo Boitempo 1998
MEacuteSZAacuteROS I Poliacutetica radical e transiccedilatildeo para o socialismo reflexotildees sobre o
centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio
1983
______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002
Notas
38
Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo
Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo
teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a
estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o
ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque
somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a
abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos
que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e
isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a
accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num
constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas
produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou
menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de
consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados
a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo
antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em
termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e
inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho
como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt
1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels
segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte
daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos
homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e
39
osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida
real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos
desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo
corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade
efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa
produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma
aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio
Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para
produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas
necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a
Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de
qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas
formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na
constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso
ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro
Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se
distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo
reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele
duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo
(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute
afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels
1986 p 19)
40
[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade
esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas
daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades
capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas
carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e
propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que
determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a
p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que
sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram
transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em
grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos
paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital
Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo
crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos
estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem
consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo
social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas
conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento
marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo
implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de
estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo
significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo
dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma
luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude
do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de
uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o
41
entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada
dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas
caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos
do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no
fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje
muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o
sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e
saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente
a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente
severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de
personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de
objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de
produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e
personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar
condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua
perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento
universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social
como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p
85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que
apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo
aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do
esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e
complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em
relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios
revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA
transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em
42
43
massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
-
Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem
ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem
duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho
Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e
estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do
solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo
neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade
com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se
reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos
intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro
porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento
marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual
formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco
em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e
Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para
o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e
revolucionaacuterios
Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo
XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho
caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos
revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso
imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob
muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes
natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca
demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo
sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas
proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os
argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro
sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas
ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma
36
verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto
que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute
cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido
V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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______ Da revoluccedilatildeo Satildeo PauloBrasiacutelia AacuteticaEditora da UnB 1990
______ Sobre a violecircncia Satildeo Paulo Relume-Dumaraacute 1994
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CANOVAN Margareth ldquoIntroductionrdquo In ARENDT Hannah The human condition
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Ensaio n 14 Satildeo Paulo Ensaio 1985
37
MARX K Elementos fundamentales para la criacutetica de la economiacutea poliacutetica
(borrador) 1857-1858 (I) Buenos Aires Siglo XXI 1973
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Economistas) 1982
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______ Glosas criacuteticas al artiacuteculo ldquoEl rey de Prusia y la reforma social Por un
prusianordquo Obras fundamentales de Marx y Engels v I ndash Escritos de juventud
de Carlos Marx Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987b
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MARX K ENGELS F A ideologia alematilde (Feuerbach) 6 ed Satildeo Paulo Hucitec
1987a
______ A sagrada famiacutelia Satildeo Paulo Moraes 1987b
______ Manifesto comunista Satildeo Paulo Boitempo 1998
MEacuteSZAacuteROS I Poliacutetica radical e transiccedilatildeo para o socialismo reflexotildees sobre o
centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio
1983
______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002
Notas
38
Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo
Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo
teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a
estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o
ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque
somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a
abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos
que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e
isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a
accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num
constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas
produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou
menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de
consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados
a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo
antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em
termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e
inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho
como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt
1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels
segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte
daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos
homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e
39
osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida
real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos
desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo
corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade
efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa
produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma
aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio
Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para
produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas
necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a
Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de
qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas
formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na
constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso
ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro
Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se
distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo
reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele
duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo
(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute
afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels
1986 p 19)
40
[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade
esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas
daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades
capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas
carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e
propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que
determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a
p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que
sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram
transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em
grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos
paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital
Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo
crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos
estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem
consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo
social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas
conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento
marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo
implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de
estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo
significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo
dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma
luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude
do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de
uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o
41
entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada
dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas
caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos
do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no
fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje
muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o
sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e
saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente
a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente
severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de
personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de
objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de
produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e
personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar
condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua
perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento
universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social
como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p
85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que
apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo
aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do
esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e
complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em
relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios
revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA
transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em
42
43
massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
-
verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto
que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute
cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido
V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
ARENDT Hannah Entre o passado e o futuro Satildeo Paulo Perspectiva 1972
______ Da revoluccedilatildeo Satildeo PauloBrasiacutelia AacuteticaEditora da UnB 1990
______ Sobre a violecircncia Satildeo Paulo Relume-Dumaraacute 1994
______ The human condition Chicago University of Chicago Press 1998
______ A dignidade da poliacutetica ensaios e conferecircncias 3 ed Satildeo Paulo
Relume-Dumaraacute 2002
CANOVAN Margareth ldquoIntroductionrdquo In ARENDT Hannah The human condition
Chicago University of Chicago Press 1998
CHASIN J Rota e prospectiva de um projeto marxista Ensaios Ad Hominem n 1
t III Santo Andreacute Ad Hominem 2000
DUSSEL Enrique As quatro redaccedilotildees de O capital (1857-1880) Ensaios Ad
Hominem n 1 t I Santo Andreacute Ad Hominem 1999
ENGELS Friedrich O papel do trabalho na transformaccedilatildeo do macaco em homem
Satildeo Paulo Global 1986
FAUSTO Ruy Loacutegica e poliacutetica v I Satildeo Paulo Brasiliense 1983
HOBSBAWM Eric A era dos extremos Satildeo Paulo Cia das Letras 1995
KOSIK Karel A dialeacutetica do concreto Rio de Janeiro Paz e Terra 1976
LAFER Celso Hannah Arendt pensamento persuasatildeo e poder Rio de Janeiro
Paz e Terra 1979
LUKAacuteCS Georg As bases ontoloacutegicas da atividade humana Temas Satildeo Paulo
n4 Ciecircncias Humanas 1978
______ Os princiacutepios ontoloacutegicos fundamentais de Marx Satildeo Paulo Ciecircncias
Humanas 1979
MAGALHAtildeES Maria Thereza C A categoria de trabalho (labor) em H Arendt
Ensaio n 14 Satildeo Paulo Ensaio 1985
37
MARX K Elementos fundamentales para la criacutetica de la economiacutea poliacutetica
(borrador) 1857-1858 (I) Buenos Aires Siglo XXI 1973
______ Formaccedilotildees econocircmicas preacute-capitalistas Rio de Janeiro Paz e Terra
1975
______ Para a criacutetica da economia poliacutetica Satildeo Paulo Abril Cultural (Col Os
Economistas) 1982
______ O capital Satildeo Paulo Nova Cultural (Col Os Economistas) 1985
______ O 18 brumaacuterio e Cartas a Kugelmann 5 ed Rio de Janeiro Paz e Terra
1986
______ Criacutetica del derecho del Estado de Hegel Introduccioacuten Obras
fundamentales de Marx y Engels v I ndash Escritos de juventud de Carlos Marx
Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987a
______ Glosas criacuteticas al artiacuteculo ldquoEl rey de Prusia y la reforma social Por un
prusianordquo Obras fundamentales de Marx y Engels v I ndash Escritos de juventud
de Carlos Marx Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987b
______ Manuscritos econocircmico-filosoacuteficos Lisboa Ediccedilotildees 70 1989a
______ A miseacuteria da filosofia 2 ed Satildeo Paulo Global 1989b
______ A questatildeo judaica 2 ed Satildeo Paulo Moraes 1991
MARX K ENGELS F A ideologia alematilde (Feuerbach) 6 ed Satildeo Paulo Hucitec
1987a
______ A sagrada famiacutelia Satildeo Paulo Moraes 1987b
______ Manifesto comunista Satildeo Paulo Boitempo 1998
MEacuteSZAacuteROS I Poliacutetica radical e transiccedilatildeo para o socialismo reflexotildees sobre o
centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio
1983
______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002
Notas
38
Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo
Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo
teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a
estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o
ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque
somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a
abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos
que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e
isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a
accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num
constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas
produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou
menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de
consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados
a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo
antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em
termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e
inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho
como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt
1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels
segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte
daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos
homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e
39
osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida
real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos
desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo
corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade
efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa
produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma
aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio
Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para
produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas
necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a
Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de
qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas
formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na
constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso
ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro
Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se
distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo
reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele
duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo
(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute
afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels
1986 p 19)
40
[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade
esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas
daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades
capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas
carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e
propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que
determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a
p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que
sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram
transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em
grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos
paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital
Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo
crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos
estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem
consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo
social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas
conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento
marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo
implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de
estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo
significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo
dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma
luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude
do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de
uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o
41
entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada
dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas
caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos
do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no
fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje
muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o
sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e
saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente
a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente
severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de
personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de
objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de
produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e
personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar
condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua
perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento
universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social
como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p
85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que
apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo
aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do
esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e
complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em
relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios
revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA
transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em
42
43
massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
-
MARX K Elementos fundamentales para la criacutetica de la economiacutea poliacutetica
(borrador) 1857-1858 (I) Buenos Aires Siglo XXI 1973
______ Formaccedilotildees econocircmicas preacute-capitalistas Rio de Janeiro Paz e Terra
1975
______ Para a criacutetica da economia poliacutetica Satildeo Paulo Abril Cultural (Col Os
Economistas) 1982
______ O capital Satildeo Paulo Nova Cultural (Col Os Economistas) 1985
______ O 18 brumaacuterio e Cartas a Kugelmann 5 ed Rio de Janeiro Paz e Terra
1986
______ Criacutetica del derecho del Estado de Hegel Introduccioacuten Obras
fundamentales de Marx y Engels v I ndash Escritos de juventud de Carlos Marx
Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987a
______ Glosas criacuteticas al artiacuteculo ldquoEl rey de Prusia y la reforma social Por un
prusianordquo Obras fundamentales de Marx y Engels v I ndash Escritos de juventud
de Carlos Marx Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987b
______ Manuscritos econocircmico-filosoacuteficos Lisboa Ediccedilotildees 70 1989a
______ A miseacuteria da filosofia 2 ed Satildeo Paulo Global 1989b
______ A questatildeo judaica 2 ed Satildeo Paulo Moraes 1991
MARX K ENGELS F A ideologia alematilde (Feuerbach) 6 ed Satildeo Paulo Hucitec
1987a
______ A sagrada famiacutelia Satildeo Paulo Moraes 1987b
______ Manifesto comunista Satildeo Paulo Boitempo 1998
MEacuteSZAacuteROS I Poliacutetica radical e transiccedilatildeo para o socialismo reflexotildees sobre o
centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio
1983
______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002
Notas
38
Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo
Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo
teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a
estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o
ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque
somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a
abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos
que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e
isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a
accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num
constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas
produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou
menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de
consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados
a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo
antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em
termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e
inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho
como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt
1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels
segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte
daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos
homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e
39
osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida
real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos
desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo
corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade
efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa
produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma
aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio
Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para
produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas
necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a
Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de
qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas
formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na
constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso
ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro
Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se
distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo
reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele
duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo
(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute
afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels
1986 p 19)
40
[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade
esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas
daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades
capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas
carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e
propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que
determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a
p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que
sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram
transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em
grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos
paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital
Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo
crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos
estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem
consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo
social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas
conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento
marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo
implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de
estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo
significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo
dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma
luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude
do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de
uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o
41
entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada
dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas
caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos
do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no
fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje
muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o
sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e
saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente
a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente
severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de
personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de
objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de
produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e
personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar
condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua
perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento
universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social
como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p
85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que
apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo
aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do
esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e
complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em
relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios
revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA
transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em
42
43
massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
-
Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo
Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo
teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a
estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o
ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque
somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a
abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos
que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e
isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a
accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num
constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas
produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou
menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de
consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados
a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo
antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em
termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e
inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho
como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt
1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels
segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte
daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos
homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e
39
osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida
real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos
desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo
corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade
efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa
produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma
aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio
Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para
produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas
necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a
Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de
qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas
formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na
constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso
ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro
Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se
distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo
reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele
duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo
(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute
afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels
1986 p 19)
40
[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade
esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas
daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades
capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas
carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e
propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que
determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a
p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que
sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram
transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em
grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos
paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital
Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo
crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos
estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem
consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo
social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas
conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento
marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo
implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de
estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo
significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo
dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma
luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude
do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de
uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o
41
entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada
dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas
caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos
do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no
fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje
muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o
sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e
saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente
a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente
severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de
personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de
objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de
produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e
personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar
condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua
perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento
universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social
como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p
85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que
apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo
aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do
esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e
complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em
relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios
revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA
transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em
42
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massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
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osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida
real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos
desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo
corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade
efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa
produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma
aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio
Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para
produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas
necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a
Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de
qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas
formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na
constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso
ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro
Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se
distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo
reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele
duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo
(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute
afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels
1986 p 19)
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[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade
esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas
daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades
capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas
carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e
propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que
determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a
p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que
sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram
transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em
grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos
paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital
Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo
crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos
estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem
consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo
social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas
conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento
marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo
implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de
estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo
significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo
dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma
luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude
do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de
uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o
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entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada
dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas
caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos
do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no
fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje
muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o
sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e
saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente
a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente
severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de
personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de
objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de
produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e
personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar
condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua
perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento
universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social
como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p
85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que
apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo
aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do
esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e
complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em
relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios
revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA
transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em
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massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
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[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade
esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas
daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades
capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas
carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e
propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que
determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a
p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que
sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram
transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em
grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos
paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital
Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo
crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos
estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem
consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo
social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas
conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento
marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo
implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de
estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo
significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo
dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma
luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude
do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de
uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o
41
entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada
dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas
caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos
do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no
fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje
muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o
sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e
saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente
a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente
severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de
personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de
objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de
produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e
personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar
condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua
perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento
universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social
como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p
85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que
apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo
aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do
esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e
complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em
relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios
revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA
transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em
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massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
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entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada
dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas
caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos
do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no
fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje
muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o
sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e
saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente
a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente
severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de
personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de
objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de
produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e
personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar
condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua
perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento
universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social
como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p
85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que
apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo
aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do
esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e
complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em
relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios
revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA
transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em
42
43
massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
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massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria
causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por
uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico
meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo
permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a
p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo
- I Vita activa
- II Poliacutetica e violecircncia
- III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
- IV Agrave guisa de conclusatildeo
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