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Realização: Manoel de Oliveira Argumento: Manoel de Oliveira, baseado na peça homónima de Paul Claudel Conselheiro literário: Jacques Parsi Direção de Fotografia: Elso Roque Música: João Paes Décors: António Casimiro, Maria José Branco, José Luís Oliveira, Eduardo Filipe e Luís Monteiro Guarda-roupa: Jasmim de Matos Casting: Danielle Beracha Som: Jean Paul Loublier Assistentes de realização: Jaime Silva e Pedro Ruivo Anotação: Júlia Buísel Interpretação: Luís Miguel Cintra (D. Rodrigo e o Jesuíta), Patrícia Barzyk (Dona Prouhèze), Anne Consigny (Dona Sept-Epées), Jean-Pierre Bernard (D. Camillo), Anne Gautier (Dona Musique), Franck Oger (D. Pélage), Jean Badin (D. Balthazar), Manuela de Freitas (Dona Isabel), Henri Serre (1º Rei), Jean Yves Berteloot (2º Rei), Catherine Jarret (1ª atriz), Anny Romand (2ª atriz), Isabelle Weingarten (O Anjo da Guarda), Denise Gence (Santiago), Marie Christine Barrault (a Lua), Maria Barroso (a Voz dos Anjos), Marthe Moudiki-Moreau (a criada preta), Bernard Alane (o Vice-Rei de Nápoles), Yann Roussel (o chinês), Diogo Dória (Almagro), Berangere Jean (a talhante), Jorge Silva Melo (1º Chanceler e padre Lourenço Vivas), Paulo Rocha (frei João da Conceição), Yves Lobregart (o Irrepressível), Odete Barrois (Dona Honória), Takashi Kawahara (o japonês), etc. Produção: Paulo Branco para Les Filmes du Passage (Paris) - Metro e Tal (Lisboa), em associação com o Institut de la Communication et de L’audiovisuel (Paris), W.D.R. (Colónia), S.S.R. (Genebra) e com a participação do Instituto Português de Cinema e dos LE SOULIER DE SATIN 1985 Ministérios da Cultura de França e de Portugal Cópia: 35mm, cor Duração: 410 minutos Estreia mundial: Festival de Veneza, 3 de setembro de 1985 Primeira apresentação em Portugal: Cinemateca Portuguesa, a 24 de setembro de 1985 Inédito comercialmente em Portugal. MANOEL DE OLIVEIRA NA COVA DOS LEÕES Descoberto pela Itália nos anos 70, lançado internacionalmente pela França nos princípios da nossa década [1980], a fama de Manoel de Oliveira cresce dia a dia. “O último dos grandes mestres do cinema”, disseram em tempos os jornais de Paris. “O mais jovem de todos, o futuro do cinema é ele”, diz agora o Corriere della Sera a propósito deste homem de 77 anos. Da Francisca, T. Kezich, e grande crítico de Roma, escreveu no La Republica: “há o filme da semana, há o filme do mês, há o filme do ano Francisca é o filme da década. Os anos 80 fica- rão conhecidos como – os anos de Francisca.” Habituados a só celebrar os seus maiores de- pois de mortos, o esplendor impetuoso deste final de carreira deixa os portugueses descon- fiados. Pessoa morreu desconhecido... Camões passou fome... Para “o Judeu” foi a fogueira, para tantos foi a tísica. FAZER SOFRER O PÚBLICO E não é só a glória que escandaliza. É a juventude insolente que o leva a reinventar o cinema aos 75 anos, é o vigor desportivo de filmar uma maratona de 7 horas em 6 meses, sem um dia sequer doente.

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Page 1: , T. Kezich, e grande crítico de LE SOULIER DE SATIN 1985...o Institut de la Communication et de L’audiovisuel (Paris), W.D.R. (Colónia), S.S.R. (Genebra) e com a participação

Realização: Manoel de Oliveira

Argumento: Manoel de Oliveira, baseado na peça

homónima de Paul Claudel

Conselheiro literário: Jacques Parsi

Direção de Fotografia: Elso Roque

Música: João Paes

Décors: António Casimiro, Maria José Branco, José

Luís Oliveira, Eduardo Filipe e Luís Monteiro

Guarda-roupa: Jasmim de Matos

Casting: Danielle Beracha

Som: Jean Paul Loublier

Assistentes de realização: Jaime Silva e Pedro Ruivo

Anotação: Júlia Buísel

Interpretação: Luís Miguel Cintra (D. Rodrigo e o

Jesuíta), Patrícia Barzyk (Dona Prouhèze), Anne

Consigny (Dona Sept-Epées), Jean-Pierre Bernard (D.

Camillo), Anne Gautier (Dona Musique), Franck Oger

(D. Pélage), Jean Badin (D. Balthazar), Manuela de

Freitas (Dona Isabel), Henri Serre (1º Rei), Jean Yves

Berteloot (2º Rei), Catherine Jarret (1ª atriz), Anny

Romand (2ª atriz), Isabelle Weingarten (O Anjo da

Guarda), Denise Gence (Santiago), Marie Christine

Barrault (a Lua), Maria Barroso (a Voz dos Anjos),

Marthe Moudiki-Moreau (a criada preta), Bernard Alane

(o Vice-Rei de Nápoles), Yann Roussel (o chinês), Diogo

Dória (Almagro), Berangere Jean (a talhante), Jorge

Silva Melo (1º Chanceler e padre Lourenço Vivas),

Paulo Rocha (frei João da Conceição), Yves Lobregart

(o Irrepressível), Odete Barrois (Dona Honória), Takashi

Kawahara (o japonês), etc.

Produção: Paulo Branco para Les Filmes du Passage

(Paris) - Metro e Tal (Lisboa), em associação com

o Institut de la Communication et de L’audiovisuel

(Paris), W.D.R. (Colónia), S.S.R. (Genebra) e com a

participação do Instituto Português de Cinema e dos

LE SOULIER DE SATIN 1985Ministérios da Cultura de França e de Portugal

Cópia: 35mm, cor

Duração: 410 minutos

Estreia mundial: Festival de Veneza, 3 de setembro

de 1985

Primeira apresentação em Portugal: Cinemateca

Portuguesa, a 24 de setembro de 1985

Inédito comercialmente em Portugal.

MANOEL DE OLIVEIRA NA COVA DOS LEÕES

Descoberto pela Itália nos anos 70, lançado internacionalmente pela França nos princípios da nossa década [1980], a fama de Manoel de Oliveira cresce dia a dia. “O último dos grandes mestres do cinema”, disseram em tempos os jornais de Paris. “O mais jovem de todos, o futuro do cinema é ele”, diz agora o Corriere della Sera a propósito deste homem de 77 anos.

Da Francisca, T. Kezich, e grande crítico de Roma, escreveu no La Republica: “há o filme da semana, há o filme do mês, há o filme do ano – Francisca é o filme da década. Os anos 80 fica-rão conhecidos como – os anos de Francisca.”

Habituados a só celebrar os seus maiores de-pois de mortos, o esplendor impetuoso deste final de carreira deixa os portugueses descon-fiados. Pessoa morreu desconhecido... Camões passou fome... Para “o Judeu” foi a fogueira, para tantos foi a tísica.

FAZER SOFRER O PÚBLICO

E não é só a glória que escandaliza. É a juventude insolente que o leva a reinventar o cinema aos 75 anos, é o vigor desportivo de filmar uma maratona de 7 horas em 6 meses, sem um dia sequer doente.

Page 2: , T. Kezich, e grande crítico de LE SOULIER DE SATIN 1985...o Institut de la Communication et de L’audiovisuel (Paris), W.D.R. (Colónia), S.S.R. (Genebra) e com a participação

E há mais: Manoel é perverso. Para fazer sofrer o público os seus filmes são cada vez mais difíceis e mais longos. E em paga disso, dão-lhe cada vez mais dinheiro, (dinheiro nosso!), somas e-n-o-r--m-e-s. Não há dúvida. Há aqui uma conspiração universal... E agora por fim este Leão de Ouro, dado a uma sala às moscas! Ou é vigarice ou é bruxedo.

Antes que lhe ponham velinhas e flores aos pés da campa, como ameaçam fazer os espíritas de Lisboa ao F. Pessoa dos Jerónimos, teremos ainda à nossa frente uns 15 ou 20 anos para lhe tentar fixar os traços verdadeiros, antes que a memória dos homens se desvaneça, e Oliveira e os seus filmes se não transformem em mais um mito tutelar do país, em meras imagens de retó-rica, para vazios discursos oficiais.

Tentemos pois um retrato contraditório, um Oliveira “não maquilhado” pelos seus

admiradores ou inimigos, devotos companheiros de trabalho ou rivais despeitados.

Desde o Amor de Perdição, e para alguns de nós, de cá e de lá fora, ele foi, simplesmente, o maior realizador vivo. Graças a ele, Portugal estava pela primeira vez na fronteira da arte moderna; a vanguarda do cinema mundial fazia--se aqui em Lisboa, não vinha enlatada de Paris, N. Iorque ou Tóquio. Era uma sensação vertigi-nosa, um álcool a subir às nossas cabeças.

Para outros, Oliveira era “o Velho”, irascível, imperioso, desconfiado, um play-boy enve-lhecido, um patético pinga-amor, um egoísta disposto a sacrificar tudo e todos aos seus projetos megalómanos.

Para os devotos foi um homem imprevisível, de uma invenção desmedida, um ser brejeiro,

irónico, malicioso, sensual, o mais zombeteiro dos homens atrevidos. Para os outros foi um interminável sensaborão, um pretensioso pseu-do-místico, uma vergonha nacional, um símbolo do nosso provincianismo.

O SAPATO – OBRA DE ARTE

E que dizer do Sapato? Pelo menos numa coisa devíamos estar todos de acordo: gra-ças ao Soulier criou-se à volta da Tobis uma deslumbrante escola lisboeta de cinema arte-sanal: luzes, décors, telões pintados, “efeitos especiais”, todo um mundo mágico e visionário digno de Méliès e do Teatro Kabuki nasce plano a plano, para encantamento dos sonhadores e das crianças. Um turbilhão de imagens nunca vistas, impossível de criar nos estúdios mais industrializados dos grandes países, onde um “savoir faire” académico destrói no ovo os voos da imaginação.

O Sapato e a enorme equipa técnica que o tor-nou possível abrem para o cinema português perspetivas imensas. São técnicos admiráveis, para os quais não há impossíveis, um verdadeiro tesouro nacional.

Outra virtude deste filme é de ordem mais terra-a-terra: um mapa de trabalho e um plano orçamental cumpridos dia-a-dia, e durante seis meses, é uma coisa rara em qualquer país. Que dizer quando esta boa gestão se aplica a um programa em que tudo era novidade e risco, e com uma verba global apertadíssima? E que dizer de um produtor que consegue trazer lá de fora à volta de 150 mil contos, dos quais quase cem mil em vendas antecipadas? São quantias nunca vistas nem sonhadas entre nós.

Do Soulier – obra de arte, teremos o resto das nossas vidas para o ver e meditar. Por agora só diria uma coisa: neste final de século em que os valores tecnológicos made-in-USA ameaçam calar todas as outras tradições do globo, é com a mais viva emoção que se ouve este tratamen-to derradeiro de um mundo latino e ibérico,

quando o Mediterrâneo era o centro da Terra, e a tradição católica deixava passar ainda os ecos da antiguidade clássica.

Teatro do Mundo, divino e pagão, humano e sobre-humano, cena cósmica criada por esses dinossauros de épocas passadas – Claudel e Oliveira – vozes cada vez mais apagadas pela opressão dos novos tempos, vozes proféticas de uma modernidade radical.

Paulo Rocha

(in Semanário, 21 de setembro de 1985, p. 45).

O BOM MARINHEIRO

Temos de nos resignar a que, mesmo para o génio, haja uma certa lógica e que sejam os rea-lizadores muito grandes aqueles que têm mais fortes chances de fazer grandes filmes. Com O Sapato de Cetim, de que só vimos concluída a “Quarta Jornada”, aguardando-se o resto, Manoel de Oliveira fez algo que toca o sublime. Um sublime que não concederia à peça de teatro ela mesma – seguida palavra a palavra e interpretada admiravelmente – sem alguma re-sistência, moral ou estética, ou as duas coisas.

Há uma expressão conhecida acerca da peça que pretende ser maliciosa: “Felizmente que não tem par”. Se Claudel a ouviu, não a terá levado a mal, ele que quis que o seu drama gigante preservasse, apesar das suas dimensões, algo de vacilante e de desequilibrado – à semelhança dos seus dois heróis, unidos e separados por um amor impossí-vel: a sua Dona Prouhèze, que confia à Virgem um dos seus sapatos, antes de correr para o “Mal” (ou seja, para o amado), e o seu Rodrigue, primo do Cid, que, em toda a quarta jornada, se vê munido de uma perna de pau. A peça foi escrita, como o Segundo Fausto, para ser irrepresentável (durante muito tempo, foi uma versão reduzida e adaptada que se levou à cena), nomeadamente no caso da imensa Quarta Jornada, povoada por cenas secundárias, mais ou menos humorísticas, cuja ligação com a ação principal é muito frouxa.

Fotografias de rodagem do filme Le Soulier de Satin (1985) de Manoel de Oliveira

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“É preciso de tudo para fazer um mundo”, tal é a estética de que se reclama O Sapato de Cetim, expressa de forma mais elevada na epígrafe latina tomada de empréstimo a Santo Agostinho: “Etiam peccata”, o que significa: “mesmo os pecados”, mesmo as “heresias”, os erros, o aces-sório, participam da beleza do mundo e do plano de Deus, desde que seja sob a bandeira do cato-licismo. É necessário tudo integrar, tudo arrumar sob esse guarda-chuva, o mundo, a vida inteira.

O mundo: Claudel, que foi cônsul por todo o planeta, não só por aí passeia o quadro da sua ação, como é também no próprio verbo, sobre o seu mar verbal, que faz flutuar todos os países e todos os continentes: a Inglaterra, o Japão, mas ainda o Oriente e a Europa, a África e a América. Este cônsul, que não é “vice”, ousou, como Marguerite Duras, ligar a mais particular história de amor ao destino mesmo da espécie, e é isso que faz a grandeza do Sapato de Cetim, essa

consciência global do mundo, descrito e pesa-do amorosamente como uma “grande maçã”, território a território, com palavras e imagens extraordinárias capazes de agarrar um país por inteiro do mesmo modo que a sua forma o dese-nha sobre o mapa geográfico.

Só que, a inspiração de Claudel decidiu-se de uma vez por todas a não funcionar senão para uma causa publicitária: para fazer a publicida-de, não digo de Deus, mas do catolicismo mais expansionista e colonizador. Toda a sua obra modula a etimologia da palavra católico, que sig-nifica em grego “universal”, uma universalidade de que o Catolicismo seria o arauto. Donde, nesta peça como noutros textos, uma apologia, no mínimo embaraçosa, das guerras de conquista e pilhagem colonial como Santa Unificação da ter-ra pela Verdadeira Fé (veja-se a peça Cristóvão Colombo [de Claudel], carga odiosa contra as religiões dos outros).

O erro seria tomar Claudel por um devoto obtu-so, quando era na verdade um homem de uma inteligência e de uma fineza de gosto bastante prodigiosas, como testemunham os seus escri-tos sobre a arte. Isso não o impediu de saber posicionar-se sempre do lado do poder: mesmo quando, no final, o seu herói Rodrigue se torna um menos que nada, vivendo a sua “Paixão” até à última gota, é sempre ao poder que retorna e jura fidelidade, na pessoa dessa Irmã sucateira e forte de garganta que o toma ao seu serviço: “Ó voluptuosidade de obedecer” (Claudel dixit).

Claudel, ou a linguagem como autoridade: eu falo e reduzo-te ao silêncio – mas, ainda assim, é a linguagem e não a ordem latida ou o grito. E quando um realizador como Manoel de Oliveira pega neste texto, que ele ama e serve como raramente um texto foi servido e levado ao ci-nema, tudo adquire uma dimensão outra, mais generosa, sem ser naturalizado. A perfeição do “registo” (o cinema é a arte do registo) mantém a justa distância, distância cujo cálculo, cuja organização, estrutura toda a mise en scène, amplia o texto e salva-o, sem o aparar ou neu-tralizar. Essa mesma perfeição que transcende, sem as reduzir ou contornar, as desigualdades da interpretação, de um ator para outro, de um momento para outro.

Manoel de Oliveira, disse-o ele, deixou completa-mente de acreditar na especificidade do cinema, tal como é habitualmente definida. Ainda assim, na ab-soluta devoção ao texto que adota e na confiança na virtude do registo justo, ele recorre às soluções de mise en scène mais simples e mais fortes.

Assim, no princípio e no final da Quarta Jornada, no modo como a sua montagem se nos apre-senta, dá-nos a ver um teatro e um palco sobre o qual a peça vai ser representada: à partida, o mesmo jogo, parece-nos, de A Flauta Encantada, de Bergman. Só que, sobre este palco existe um écran cinematográfico onde entramos – o circuito está fechado, e este circuito, essa osci-lação sem fim entre teatro e cinema é realizada como nunca se havia visto. E como se explica que o simples facto de mostrar uma projeção,

sustentada pelo verbo, pela linguagem, tenha esse poder tão perturbador, antes mesmo que qualquer conteúdo tenha sido apresentado?

Sabemos, de resto, que Claudel, como outros dramaturgos do seu tempo (veja-se o compositor Alban Berg com a sua ópera Lulu) se interessou pela introdução de projeções cinematográficas no palco de teatro: a ideia é, portanto, tão justa rela-tivamente à peça ela mesma quanto genial pela ressacralização do ato banalizado da projeção cinematográfica, colocando-a num palco de teatro que será, por seu turno, filmado.

O registo da peça é, para Manoel de Oliveira, tam-bém o registo de uma oscilação. Toda a Quarta Jornada decorre, com efeito, sobre a água, sobre barcas e navios, por vezes na própria água (a cena de Dona Sept-Epées nadando na direção de Jean de Áustria), o que não deixa de oscilar sobre os intérpretes, eles próprios oscilando e ondu-lando, uma oscilação de cinema, claro está, obra de maquinistas, como em E la nave va. Mas este efeito de oscilação, que no teatro seria fugitivo, o cinema regista-o tal e qual, fielmente e, do mesmo modo que em todo o cinema dos primeiros tem-pos eram as folhas das árvores que se moviam por detrás dos atores-acrobatas, aqui são os movimentos de oscilação do décor e dos corpos, são os salpicos de água verdadeira, absurdamente fixados na sua efemeridade, na sua contingên-cia, que marcam o filme como registo e seguem os seus curtos traçados em torno das falas, em redor dessas palavras carregadas de questões divinas e cósmicas. Como em Tarkovski (Stalker) ou Syberberg (Hitler), à longa meditação proferi-da em voz alta responde o micro-movimento do mundo. Não será isso o cinema, essa banda de sismógrafo que tudo capta e restitui, do insignifi-cante ao universal?

É preciso um homem como Manoel de Oliveira, um imenso realizador, para fazer o cinema reencontrar a virtude mágica e como que sagrada do registo.

Michel Chion

(in Cahiers du Cinéma, n.º 373, junho de 1985, p. 19-21).

Planificação do filme Le Soulier de Satin (1985), depositado na Casa do Cinema Manoel de Oliveira — Fundação de Serralves