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15 . Spartacus (2 de outubro de 2007) O mercado tem sua própria inteligência. Uma espécie de onisciência ma- ligna que determina que fará aquilo que foder com o maior número de pes- soas em determinado momento. Ele conhece suas opções, e conhece seus medos. Você é um pecador nas mãos de um Deus raivoso, e suas posições irão pagar. Tipo Papai Noel, com a diferença de que o mercado não se im- porta com quem foi mau ou legal; com maior frequência os maus vencem. O mercado se preocupa com quem está mais exposto, mais a descoberto e quem assumiu mais risco em determinado momento. E assim que define o ponto de dor máxima, passa a se mover violentamente nessa direção, fazendo com que o maior número de pessoas perca o máximo de dinheiro. Ele estava se movendo desse jeito para mim hoje, tendo acabado de aumentar em 2 milhões ações do IWM, um fundo negociado em bolsa que rastreia a sorte de ações de pequeno capital. Dessa vez o perpetrador foi Spartacus, um monstruoso fundo de hedge que administrava bilhões de dólares em ativos e era comandado por apenas doze homens e rapazes. Sua mesa de negociação consistia em alguns garotos de Staten Island que haviam se deparado grotescamente com um pote de ouro e era encabe- çada por uma espécie de vilão de desenho animado, um gênio do mal russo chamado Yevgeny. Diziam que Yevgeny tinha ganhado 50 milhões de dólares no ano passado selecionando corretores retardados e molengas de ETFs como eu, sugando dinheiro do meu relatório de perdas e ganhos para o dele, em uma brutal transferência diária de riqueza. Yevgeny não se importava se estava negociando ações de pequeno ca- pital. Não tinha opinião sobre se ações de pequeno capital iriam superar ações de grande capital em uma base econômica. Não estava fazendo um

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Page 1: Spartacus (2 de outubro de 2007) · o ponto de dor máxima, passa a se mover violentamente nessa direção, ... e acho que vai ficar sem ... mente de uma bebida. Sinto a ânsia

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. Spartacus (2 de outubro de 2007)

O mercado tem sua própria inteligência. Uma espécie de onisciência ma-ligna que determina que fará aquilo que foder com o maior número de pes-soas em determinado momento. Ele conhece suas opções, e conhece seus medos. Você é um pecador nas mãos de um Deus raivoso, e suas posições irão pagar. Tipo Papai Noel, com a diferença de que o mercado não se im-porta com quem foi mau ou legal; com maior frequência os maus vencem. O mercado se preocupa com quem está mais exposto, mais a descoberto e quem assumiu mais risco em determinado momento. E assim que define o ponto de dor máxima, passa a se mover violentamente nessa direção, fazendo com que o maior número de pessoas perca o máximo de dinheiro.

Ele estava se movendo desse jeito para mim hoje, tendo acabado de aumentar em 2 milhões ações do IWM, um fundo negociado em bolsa que rastreia a sorte de ações de pequeno capital. Dessa vez o perpetrador foi Spartacus, um monstruoso fundo de hedge que administrava bilhões de dólares em ativos e era comandado por apenas doze homens e rapazes. Sua mesa de negociação consistia em alguns garotos de Staten Island que haviam se deparado grotescamente com um pote de ouro e era encabe-çada por uma espécie de vilão de desenho animado, um gênio do mal russo chamado Yevgeny. Diziam que Yevgeny tinha ganhado 50 milhões de dólares no ano passado selecionando corretores retardados e molengas de ETFs como eu, sugando dinheiro do meu relatório de perdas e ganhos para o dele, em uma brutal transferência diária de riqueza.

Yevgeny não se importava se estava negociando ações de pequeno ca-pital. Não tinha opinião sobre se ações de pequeno capital iriam superar ações de grande capital em uma base econômica. Não estava fazendo um

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investimento estratégico para o fundo. Até onde sabia, estava negociando trigo de maio. Só se interessava por pequeno capital porque circulava mais do que grande capital, era mais volátil. E com maior volatilidade surgem mais oportunidades de foder com as pessoas. Sua negociação estava fazendo com que cerca de 70 milhões de dólares fossem enfiados em 2 mil pequenas ações, aumentando o preço de cada uma delas em cerca de 0,2%, deixando 2 mil CEOs momentaneamente excitados com as perspectivas de suas empresas enquanto viam seus códigos ficando verdes no Yahoo! Finance – isto é, até Yevgeny decidir passar para o ou-tro lado e vender.

Esse negócio em particular já estava se tornando um fiasco, porque quando o cansativo e obsessivo vendedor Andrew Duke fez uma oferta, pensei tê-lo ouvido pedir um preço para milhão de ações. Quando o re-cibo eletrônico apareceu na minha tela, dizia o dobro:

B IWM 2.000.000 SPRTC M048392049832

Eu sabia que estava com grandes problemas. Perdera 40 mil dólares antes mesmo de imprimir o negócio, considerando que o ETF havia subido vários centavos e, estando a descoberto em 2 milhões de ações, eu perdia 20 mil dólares por vez. Aquele seria um exercício de enfiar cinco quilos de merda em um saco de dois quilos e meio.

D.C. e eu nos entreolhamos. Trabalhávamos juntos há tempo sufi-ciente para que pudéssemos nos comunicar por sinais visuais.

Quando vi D.C. pela primeira vez não gostei dele. Era um daqueles per-feitos manequins da Ivy League, todo J. Crew e cabelos perfeitos. Também era um sujeito de Garden City. Garden City significa um enorme culto a Wall Street em Long Island, no qual toda pessoa capaz do sexo masculino nascida nos limites da cidade tem o direito inato a um emprego em um grande banco de investimento. A princípio eu nem sequer disfarçava meu desprezo. Mas D.C. não era um mimado qualquer. Ele era, literalmente, tal-vez o melhor jogador de lacrosse do país. Com ,72 metro (sendo generoso) e 68 quilos, você não pensaria nele como o maior atleta do mundo. Ele mal

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levantava pesos, e só fazia corridas eventuais pelo Central Park. Mas D.C. era, muito simplesmente, o ser humano de maior coordenação na Terra, e quase ambidestro. Pessoas talentosas em uma coisa com frequência são talentosas em outras, e como corretor D.C. era o assassino silencioso.

Quando comecei a trabalhar com ele em 2004, gostei dele na mesma hora. Além de seus dons físicos, era a pessoa mais competitiva que eu ha-via conhecido. Eu às vezes me cansava da Guerra dos Cem Anos contra a força de vendas. D.C. nunca recuava. Lutava para ganhar dinheiro em cada negócio. E ficava profundamente desapontado quando não conseguia.

Talvez a coisa mais interessante sobre D.C. fosse o fato de ele ser com-pletamente desinteressante. Não tinha segredos obscuros, nenhum esque-leto no armário, nada de romances ilícitos, nada de vícios, nada de nada. Era impossível acreditar que alguém, sobretudo neste ramo, pudesse ser tão bem-ajustado. D.C. também era notoriamente discreto; portanto, se estivesse cheirando carreiras nos peitos falsos de uma prostituta às duas da manhã no W Hotel, eu jamais iria descobrir. De certa forma, sua profunda banalidade o tornava tão desajustado quanto todos os outros.

Éramos uma grande equipe: eu tinha a inteligência crua e a paixão pelas finanças, e ele, a destreza de negociação e a persistência. Às vezes, porém, alguém conseguia nos ferrar, e tínhamos de dar um jeito na ba-gunça. Dessa vez era Spartacus, e dessa vez era uma bagunça de milhão de dólares.

– Que merda – diz D.C. Eu dou de ombros. Vamos dar um jeito.O mercado tem sua própria química, sua própria pressão. Depois de

certo tempo os corretores aprendem a negociar pelo faro. Uma sala de ne-gociação é uma sala cheia de cães, gatos e esquilos que podem sentir uma tempestade se aproximando. Por toda a manhã as ações tinham estado como uma tampa de bueiro tremendo no chão, pressagiando alguma terrí-vel explosão iminente. Quando Yevgeny comprou, a tampa disparou no ar.

Comprei milhão de ações o mais rápido e descuidadamente que podia. Satisfeito com meu trabalho, sentei-me e senti um tremor ao ver o IWM ser negociado por vinte centavos acima do que havia oferecido por ela. Perdi 70 mil dólares do primeiro milhão que cobrira, e estava a descoberto em

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200 mil no segundo milhão, no qual ainda não havia tocado. Isso é impor-tante, pois teria de comprar ainda mais IWM de modo a sair da posição perigosa, e isso iria apenas aumentar as perdas. Se você tem 00 mil ações para comprar, terá de comprá-las a preços paulatinamente mais altos para completar o pedido. As compras que você faz às 0h30 aumentam o custo das compras que faz às 0h35.

Eu estava tentando me conter. O antigo eu estaria socando a mesa até ferir a base das mãos e gritando “Malditos escrotos!” a plenos pulmões. Mas não importava o que Spartacus ou qualquer dos meus outros clientes fizesse, eu estava determinado a agir com profissionalismo e não perder a calma. Eu me envergonhara vezes demais com uma explosão de nervos na sala de negociação, e ela era sempre acompanhada por uma ressaca emocional na volta para casa. O mercado, juntamente com sua inteligência maligna e sua química, agora tinha meu novo eu: o eu mais-frio-do-que- o-outro-lado-do-travesseiro, o futuro vice-presidente sênior e corretor- geral do Lehman Brothers.

Eu tinha duas escolhas. Podia proteger o negócio agora e assumir per-das de 270 mil dólares, que iriam destruir quaisquer lucros que conseguís-semos no resto do dia. Ou podia esperar para ver o que o mercado faria e torcer para comprar meu IWM de volta depois por um preço mais baixo. O problema era que se eu usasse uma árvore binomial para modelar cada e todos os resultados possíveis, a probabilidade de empatar era de menos de uma em vinte.

A probabilidade na verdade era pior que isso, considerando que era Spartacus. O fundo de hedge era grande e determinado o bastante para empurrar o mercado na sua direção. Quando Spartacus comprava, não comprava apenas de um banco, percorria Wall Street e comprava de todo mundo. Eu via os valores subindo.

09h52min9seg IWM 1.0M 85,44 T

Apenas 42 segundos depois, outra transação de IWM com outro banco, e depois outra, cada uma elevando ainda mais o preço…

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09h52min44seg IWM 2.0M 85,47 T

09h53min30seg IWM 1.0M 85,55 T

09h54min11seg IWM 2.0M 85,61 T

Era o que chamávamos de “ser esmagados”, ou “cagar em nossa folha”. Significava que Spartacus tinha um pedido grande demais para ser dado a uma única contraparte, então estava dividindo e espalhando. É elegante dar o pedido inteiro a um corretor e deixar que ele tenha tempo de tra-balhar e conseguir o melhor preço. É deselegante tomar a rua com seus pedidos dessa maneira – comportamento suficientemente ruim para que você seja afastado da maioria dos lugares –, mas Spartacus sempre negava. Eles mentiam sobre seus negócios mesmo quando havia uma gigantesca pilha de evidências contra eles. Eram caras maus.

Eu me virei para D.C., a quem sempre consultava em momentos de estresse.

– O que você acha? – perguntei. Ele balançou a cabeça solenemente. Aquilo estava fora do seu campo de experiência, levar uma mordida de 250K antes mesmo de um negócio chegar à metade.

– Certo – falei para um D.C. mudo. – Acho que Spartacus está tentando jogar pesado com o mercado, e acho que vai ficar sem gás. Nenhuma chance de eu comprar de volta esses IWM, não até voltarem ao normal.

Quando estou em prejuízo em um negócio meu corpo tem uma reação fisiológica. Não consigo sair da cadeira, sinto-me acorrentado a ela. Me inclino sobre a mesa fitando a tela, vendo a cotação subir, ponto a ponto. Não chego a suar, mas tremo de medo e ódio. Amaldiçoo minha vida e me odeio, a despeito das centenas de milhares de dólares que ganho. Es-tou farto de ser capacho desses moleques arrogantes de fundos de hedge. Quero esganar o vendedor que trouxe o negócio. Preciso desesperada-mente de uma bebida. Sinto a ânsia de destruir verbalmente a primeira pessoa que falar comigo. Começo a pensar que tortura é bom demais para algumas pessoas. Odeio tudo e todos, não vejo nada senão escuridão, e a única coisa que faz com que me sinta melhor é ainda mais ódio; uma forma mais elevada e cínica de repulsa.

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Observei o balanço de perdas e ganhos no meu GPM, o programa que me dava uma visão em tempo real desses números: (330 mil dólares); (375 mil dólares); (420 mil dólares). Isso está ficando ridículo. Estou sendo apenas teimoso? Ou tenho alguma explicação racional para achar que o mercado de re-pente vai inverter na minha direção? Não posso ter uma perda de 420 mil dólares. Não pode ficar pior.

Fica pior. O mercado sobe mais. (60 mil dólares.) (700 mil dólares.)Eu tinha perdido 700 mil dólares e ainda não tocara nas ações.D.C. olhou para mim.

– Isso é um desastre – falou.– É – concordei, mas estava paralisado em minha posição curvada,

olhando para o gráfico, e não conseguia dizer muito mais. Sentia como se tivesse engolido uma bola de basquete de cimento.

Uma coisa é ser atropelado em um negócio. Outra completamente diferente é ser atropelado em % inteiro em quinze minutos. Mesmo para classes de ativos inteiras – ações ou títulos como uma entidade coletiva –, é improvável se deslocar % em quinze minutos. Spartacus é assim. Não é possível ficar do outro lado nos negócios deles; é preciso comprar com eles. Assim que os negócios do Spartacus começam a ser registrados, todo traiçoeiro que estiver de olho vê os pedidos e o preço da ação e começa a puxá-lo ainda mais para cima.

Então algo milagroso aconteceu. O mercado parou de subir. Come-çou a se consolidar. Parecia querer subir, mas não podia. Era possível que Spartacus tivesse atormentado demais o mercado.

O IWM começou a cair. E cair. Ora, o primeiro instinto que um cor-retor tem quando já perdeu 700 mil dólares é encerrar o negócio abaixo de 600 mil e declarar vitória. Repeti para D.C.:

– Não vou comprar nada disso de volta até estabilizar de novo.Estável é o tipo de patamar arbitrário no qual mirar. Behavioristas,

como o ganhador do Prêmio Nobel Daniel Kahneman, acreditam que os mercados são movidos por teoria da decisão e desvios de informação, e chamam isso de “ancorar”. Ninguém gosta de perder dinheiro em um negócio, então arriscarão perder ainda mais – um volume infinito – apenas

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para empatar. Não faz sentido escolher o preço no qual você é salvo como o ponto de ancoragem; de fato, ele é totalmente arbitrário. Mas era o que eu estava fazendo, e sabia disso. Estava envergonhado de mim mesmo, mas cansado de perder dinheiro para esses desgraçados, e iria empatar o negócio mesmo que isso me matasse.

O balanço de perdas e ganhos começou a ir na minha direção: (550 mil dólares); (490 mil dólares); (425 mil dólares). Comecei a relaxar o aperto no mouse. Recostei um pouco na cadeira. Os músculos do pescoço come-çaram a relaxar.

Em algumas áreas dos mercados financeiros é possível para comprador e vendedor ganhar dinheiro em um negócio. Pode soar estranho, mas às vezes acontece. Mas o ETF é um jogo de soma zero. A ação sobe, o comprador ganha, o vendedor perde. A ação cai, o vendedor ganha e o comprador perde. Isso transformava meus clientes, mesmo os amistosos, em meus inimigos.

Todos os dias eu ia trabalhar e entrava em guerra contra Spartacus. Era uma guerra que não podíamos vencer; na maioria dos casos éramos atrope-lados nos negócios deles, e se um dia ganhássemos dinheiro em um negócio, Spartacus iria exigir um preço melhor, ameaçando tirar todos os seus negó-cios caso não concordássemos. Cara eu ganho, coroa você perde. Tudo o que eu podia fazer era reduzir o prejuízo. O fundo nos havia pagado 6 milhões de dólares em comissões este ano, e havíamos perdido tudo isso e mais um pouco; nos vimos tentando usar outros clientes para subsidiar o negócio de perder dinheiro para o Spartacus. Eu só queria que eles desaparecessem.

Andrew Duke não queria que eles desaparecessem. Ele era o vendedor que tinha a desagradável tarefa de cobrir Spartacus em seu grande livro de desgraçados. Ele era um escudo humano. Alto e competente, Duke abrira caminho para o alto saindo da posição de “administrador”, um secretário glorificado, para um lugar nas vendas. Era ranzinza e profundamente cí-nico, assim como eu. Eu gostava dele. Mas não éramos amigos. Wall Street nos tornara inimigos.

Duke era remunerado em função de quanto seus clientes negociavam com a empresa. Fossem ações, ETFs ou opções, seus clientes pagavam comissões. Quanto mais seus clientes negociassem, mais Duke recebia.

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Duke não queria que Spartacus desaparecesse, mas que continuasse a fa-zer negócios, mesmo isso significando que, no final das contas, o Lehman Brothers perdesse dinheiro para ele. Eu era remunerado pelas perdas e ganhos de minha pequena mesa de ETF e não tinha interesse em perder dinheiro. Não importava o quanto reclamasse com Duke que Spartacus era uma fria – ele continuaria a pegar no telefone de qualquer forma.

Duke olhou para mim. Fizemos contato visual. Ele desviou os olhos. Sabia que havíamos sido enganados no negócio, e não estava especialmente interessado em conversar sobre isso.

Enquanto isso, o IWM continuava a cair. Comecei a sacudir as pernas, que era o que fazia quando estava feliz. Estávamos perto de empatar no negócio.

Basta! Eu tinha milhão de ações para comprar, e comecei a fazer ofertas, 00 mil de cada vez, em aumentos minúsculos. Inteiro para cem. Noventa e nove para cem. Noventa e oito para cem. O mercado continuou a cair. Venha para Butt-head. Eu acenei.

Terminei de comprar ações. Olhei para o GPM: (70 mil dólares). Tínha-mos recebido 60 mil dólares em comissões pelo negócio, então eu perdera 0 mil, que era essencialmente empatar.

Festejei com D.C., que estava triste, porque estávamos festejando por perder dinheiro. Então fui até Duke e parei atrás dele.

– Foi ruim demais? – ele perguntou.– Adivinhe.Duke estremeceu.

– Não consigo sequer imaginar – disse. – Lamento pela confusão, mas pensei ter dito claramente 2 milhões…

– Perdemos 0 mil – eu disse, seco.Duke se levantou e estendeu a mão.

– Isso é que é negociar. Eu jamais teria conseguido ficar a descoberto por tanto tempo.

– Acho que é por isso que eles me pagam uma fortuna.Para ser honesto, Duke provavelmente recebia mais do que eu apenas

para atender o telefone.

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Mas eu havia suportado uma perda de quase sete dígitos e resistira até que voltasse ao começo, encarando um dos maiores fundos de hedge da rua. Se a corretagem tivesse um hall da fama, eu estaria nele só por aquele negócio.

Eu me levantei da mesa. Precisava dar uma mijada – havia virado um café enorme e ficado grudado nas telas, cerrando os punhos com o negócio do IWM, durante a maior parte da manhã. Segui pelo corredor de vendedores e olhei por cima dos ombros deles para as telas. Alguns estavam ligados no ESPN.com. Takeareport.com. Uma garota comprava sapatos.

Preguiça. Enquanto abria a porta do banheiro masculino pensei em quanto dinheiro poderíamos fazer se as pessoas tivessem um dia de oito horas de trabalho. Ali estava um grupo de pessoas altamente inteligentes, altamente educadas, com todos os recursos, toda informação, todos os dados de mercado do mundo. Todas as ferramentas e o talento necessá-rio para arrancar dinheiro do mercado, e as pessoas preferiam passar os dias comprando sapatos. As teorias sobre a eficiência do mercado haviam matado a ética de trabalho das pessoas. Se você não pode derrotar o mercado, por que tentar? Mas você pode vencer, pensei. O mercado pode ser derrotado. E ali estavam pessoas improdutivas, esperando que o telefone tocasse. Que tal dar uns telefonemas? Que tal dar uma olhada em uma lista de instituições e contas frias? Que tal fazer algumas análises técni-cas? Que tal ter algumas ideias de negócios para oferecer aos clientes? Aquele era o mais passivo, mimado e desmotivado grupo de cretinos com o qual eu já tivera contato.

Fui até o mictório. Naquele momento eu estava murcho como um cavalo-marinho. O risco mata a libido. Corretores de fundos de hedge vão a boates em busca de “modelos e garrafas” porque estes são um subs-tituto para seu desejo sexual, que desaparece quando são expostos a riscos enormes diariamente. Eu era como um gato castrado. Na maior parte das semanas me esquecia de bater punheta. Sequer tinha fluxo sanguíneo. Eu me preocupava com atrofia. Cristo.

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Na sala de negociação, a agitação de mais cedo havia acabado. O sol estava começando a passar pelas janelas voltadas para a Sétima Avenida. Analistas começavam a pedir almoço. Corretagem, assim como velejar, é 95% tédio e 5% terror absoluto. A atividade se dá em surtos, e a maior parte dela acontece na primeira hora depois da abertura. Há uma sensação de que as coisas ficam agitadas perto do fechamento, mas não é verdade. Dezenas de corretores zanzavam por ali, cada um ganhando pelo menos milhão, e eram pagos por meia hora de trabalho.

Antes mesmo que eu voltasse a me sentar, podia dizer pela expressão fechada no rosto de D.C. que havíamos sido apanhados de novo. Sequer precisei perguntar – Spartacus. D.C. apontou para um gráfico em sua tela do XLE, o ETF de energia. Parecia um priapismo monstruoso.

Droga. Olhei para o registro. Sem dúvida, havia uma compra de 500 mil XLEs. Olhei para o monitor de cotações – havia três outras ordens sendo feitas fora do Lehman. Normalmente, quando o mercado vai em uma direção, as ações em geral estão correlacionadas; isto é, elas tendem a se mover na mesma direção. Naquele instante as ações de energia esta-vam subindo, enquanto o resto do mercado caía. Spartacus tendia a ficar comprado no setor que subia ou vendido no setor que caía. Ou eles eram investidores astutos ou estavam usando técnicas predatórias de negociação para forçar o mercado na sua direção. De qualquer forma, era impossível negociar com alguém que estava sempre certo.

Quanto mais eu pensava nisso, mais raiva sentia. A imensa maioria dos nossos clientes era de bons cidadãos, e havia um escroto fodendo as coisas para todo mundo. Eu passava horas tentando negociar corretamente para conseguir um pouquinho a mais, e esses caras colocavam mostarda nisso e comiam. E havia também um custo adicional: o tempo e a energia psico-lógica que gastávamos administrando as bombas do Spartacus era tempo que poderíamos passar negociando ativamente a nosso favor. O tempo que eu passara olhando para o IWM naquela manhã poderia ter sido pas-sado procurando algo em que pudesse ficar vendido no mercado; D.C. e eu poderíamos ter nos cumprimentado por algo realmente significativo.

– Duke! – berrei. Ele olhou para mim.

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– Que porra é essa? Não acabei de falar com você sobre isso?Ele deu de ombros. Era inútil berrar com ele; era apenas o cara que

recebia o pedido, o canal, o guarda de trânsito.– Desgraçado maldito! Filho da puta!As pessoas estavam começando a prestar atenção em nós, esperando

outra famosa explosão Dillian. Eu não lhes daria essa satisfação. Era um novo homem. Não mais o Dillian esquentado. Era o Dillian budista.

Marty, meu chefe, desvia os olhos de suas guerras robóticas com os futuros e pergunta o que está acontecendo. Marty não consegue deixar de negociar. Parece Tom Hulce em Amadeus interpretando Mozart, que não consegue parar de compor, chegando a ficar verde enquanto concebe o “Réquiem” em seu leito de morte.

– A porra do Spartacus de novo. Eles nos ferraram com o IWM esta manhã e estão fazendo isso de novo com o XLE. O mercado inteiro está vendendo XLE na nossa cara.

– Negócios aumentando fora de nós, como sempre – acrescenta D.C.Marty assume a persona de administrador sóbrio.

– Já falou com Duke?– Falar com ele? Eu falo com ele o tempo todo! Ele não pode fazer nada

a respeito. Isso está acima de Duke. Tem de ser levado a Snake. Ou além.Marty está torcendo os lábios, se preparando para falar a verdade.

– Você não pode ter essa conversa, porque no lado do fluxo estruturado eles têm comprado as piores opções como se estivessem indo para a cadeira elétrica, e temos imprimido dinheiro nesse negócio. Estamos ganhando muito mais dinheiro em opções ruins do que você está perdendo em ETFs.

Esse era um tema conhecido. Os ETFs deveriam ser os líderes de per-das. Uma esponja para mísseis. Devíamos dar capital de graça para que as pessoas negociassem produtos mais sensuais com maior margem. No time de futebol americano da corretagem, éramos o left tackle. Nada de gloriosos touchdowns para nós, só o suadouro diário na linha de partida, acompanhado por um salário nada impressionante de seis dígitos.

Então estávamos presos ao Spartacus. Era como ter a stripper feia se-guindo você e sentando no seu colo a noite toda. Você não pode dizer a ela para ir embora sem fazer uma cena.

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Quanto mais eu pensava nisso, mais deprimido ficava. Entrara para a corretagem para ser um astro do rock, ter lucros de três dígitos, ficar fantas-ticamente rico e ser invejado pela comunidade financeira. Na verdade eu era um dos caramujos que limpavam os tanques dos peixes dos mercados finan-ceiros. Passava a maior parte do tempo jogando na defesa, tentando impedir desastres enquanto conseguia pequenos volumes de dinheiro nas margens. Era um zelador. E ali estávamos nós, com nossa formação de ponta, nossas classes sociais, nossos pedigrees e nossos amigos, e todos em uma sala grande todo dia mijando contra o vento. O número de pessoas que realmente toma-vam decisões financeiras em Wall Street era assustadoramente pequeno. Os Soros, os Falcone, os Paulson – apenas um punhado de pessoas que realmente influenciava os mercados financeiros. Eu não era uma delas. E nunca seria.

O que tornava as coisas ainda piores era que os corretores do lado da venda eram muito malvistos. Basicamente, éramos todos considerados putas; mesmo o corretor de equities ou de credit default swaps merecia al-gum respeito. Eles eram especialistas em empresas isoladas: conheciam e compreendiam suas histórias de sucesso ou fracasso, eram íntimos de tendências do setor e tinham quase o monopólio dos fluxos de investi-mento. Eram muito cobiçados pela comunidade compradora porque todo corretor comprador queria suas opiniões sobre quem estava comprado, quem estava vendido e como eles achavam que a ação XYZ iria se com-portar. Inversamente, ninguém queria conversar com um corretor de ETF. Um corretor de ETF não era um especialista em ações isoladas; era um especialista em liquidez. Um especialista em liquidez decididamente nada sensual. Tinha o cérebro e as ferramentas de um corretor de arbitragem e os clientes vagabundos de um corretor de opções. Era um aspirante, um ninguém, um órfão.

Nunca chegarei a lugar algum nesta organização. ETFs ficavam na correta-gem de volatilidade. A próxima promoção lógica que eu poderia conseguir seria a de chefe de volatilidade. Mas um corretor de ETF não pode se tor-nar chefe de volatilidade; é como ter um rábula nomeado para a Suprema Corte. Eu estava condenado a uma vida de mediocridade.

Odeio o meu trabalho.

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Duke gritou para nós:– Um milhão de SPYs, como?Ele estava pedindo um mercado de mão dupla para milhão de ações

de SPY, o fundo negociado de S&P 500 (Standard & Poor’s). Para Spar-tacus. Novamente. Stripper feia. Eu deveria mostrar a ele um preço pelo qual podia vender milhão de SPYs e um preço pelo qual podia comprar um milhão de SPYs, escolha dele. Era um negócio razoavelmente grande, cerca de 35 milhões de dólares.

D.C. ofereceu o negócio:– Vinte e oito a 32!D.C. estava dizendo que podia vender por 28 centavos ou comprar a

32. O “número grande”, ou “total”, não era relevante para estabelecer o negócio, fosse ele 35,32 ou 36,32.

– Vendido! – gritou Duke.Ao mesmo tempo, o mercado caiu. O preço agora era de 36,20 dólares,

antes mesmo que tivéssemos uma chance de nos proteger. Assim, 80 mil dólares simplesmente desapareceram.

Que merda.Eu surtei.Agarrei um porta-fita adesiva, levantei-o bem acima da cabeça e bati

com ele na mesa com toda a força.– Vou colocar os bagos dele num pote! – gritei para Duke com todo

o fôlego. Só que todos ouviram apenas “bagos num pote!”.Silêncio.Um não-sei-o-que-deveria-significar-bagos-num-pote-mas-é-muito-engra-

çado-bagos-num-pote murmurado se espalhou pela sala.Enquanto isso, uma nuvem de poeira pousou ao meu redor. A peça

havia sido enchida de areia para ganhar peso. Havia areia sobre meu terno, meus cabelos, meus óculos, meu teclado, minha torre, por toda parte. Também havia uma poça de sangue se formando na mesa, misturada à areia, porque a beirada serrilhada do objeto quase havia arrancado meu mindinho. Eu estava ali de pé, tremendo de ódio, coberto de sangue e areia por não ter conseguido impedir uma perda de 80 mil dólares.

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28 Surtando em Wall Street

Oitenta mil dólares pode parecer muito. Mas o que eu não sabia era que a mesa de hipotecas tinha riscos de ordem de grandeza muito supe-rior. Não sabia que a carteira de empréstimos alavancados era grande e tóxica. Não sabia que a carteira de imóveis do Lehman era absolutamente pornográfica. Havia cretinos em todos os andares do prédio que haviam construído enormes posições que não conseguiam liquidar e estavam jo-gando dinheiro na rua. Nossos líderes ignoravam por completo os oitenta anos anteriores de história financeira, aparentemente desconhecendo o fato de que mercados seguem ciclos de crescimento e implosão, e que 25 anos de expansão do crédito haviam levado os mercados financeiros à beira do desastre.

Eu poderia ter sido capaz de salvar 80 mil dólares, mas não seria capaz de salvar o Lehman.