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REBELIÕES DA SENZALA Clovis Moura A QUESTÃO SOCIAL NO BRASIL 6 l

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REBELIÕES DA SENZALA

Clovis Moura

A QUESTÃO SOCIAL NO BRASIL 6l

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\ fA interpretação histórica do Brasil, refle-

tindo as marcas do processo de formação danossa sociedade — cujo traço maior tem sidoa exclusão da massa do povo da cena sócio-po-lítica -, caracterizou-se por ser uma inter-pretação branca. A dominação de classeentrecruzou-se com dados étnicos-raciais e oresultado é conhecido: o negro só saiu doporão da história quando se "branqueou" -ou seja, quando perdeu a sua identidade.Recentemente, alguns desavisados, reagindonaturalmente à historiografia oficial branca,começaram a propor uma história negra. Comose a pura negação equivalesse a uma supe-ração. ..

Para os que recusam a mistificação oficiale se negam ao simplismo de crer que a verdadeestá no avesso, Rebeliões da Senzala é obrade consulta obrigatória. Clóvis Moura procu-rou - e em larga medida com um sucessopioneiro, pois a primeira edição deste livroé de 1959 — compreender o problema negrona formação brasileira a partir da concretaintervenção prático-social do escravo ao longoda colónia e do império, até o compromissoabolicionista.

Armado de um conhecimento historio-gráfico ponderável (obtido através de inves-tigações originais) e enquadrando os eventospertinentes ao escravo na moldura macros-cópica do sistema social emergente no Brasil,Clóvis Moura oferece ao leitor tanto umabrilhante descrição das condições das lutasnegras no interior da nossa sociedade escra-vocrata quanto uma convincente explicaçãodo seu papel nas lutas sociais brasileiras atéfinais do século XIX.

Na escala em que foi capaz de aportarelementos para esclarecer "a participaçãodo escravo como força dinâmica, como contri-buinte ativo no processo histórico" da forma-ção da sociedade brasileira, Clóvis Mouraelaborou uma obra de leitura compulsóriapara todos aqueles que, com Mário de Andrade,acreditam que a história não é exemplo -é lição.

Rebeliões da Senzala

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Capa de:

Yvonne Saruê

© LECH LIVRARIA EDITORA CIÊNCIAS HUMANAS LTDA.

Rua 7 de Abril, 264 - Subsolo B - Sala 5 - CEP 01044 - São Paulo - SP.

Impresso no Brasil Printed in Brazil

Sumário

Características gerais 21

Os escravos nos movimentos políticos 53

Quilombos e guerrilhas 85

Insurreições baianas 129

Durante o domínio holandês 163

O Quilombo dos Palmares 183

Revoltas em São Paulo 197

O Quilombo do Jabaquara ? 219

O escravo negro e o sertão 225

Tática de luta dos escravos 239

Conclusões 247

Bibliografia 255

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As minhas origens,

Francisco de Assis Mourae Elvira Moura,lembrança de filho.

À minha continuidade,

ábraya,lembrança de pai.

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"Um negro é um negro. Apenas dentro de determinadascondições ele se torna um escravo".

K. Marx

"Os escravos, em geral, não sabem ler; não precisam, porém,soletrar a palavra liberdade para sentir a dureza da suacondição".

Joaquim Nabuco

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Duas Palavras Necessárias

Esta terceira edição de "Rebeliões da Senzala" sai com o mesmo texto da segunda.Depois de reflexão sobre a necessidade ou não de ampliá-lo de acordo com novasfontes que possuímos, resolvemos que o trabalho, como foi feito, não deve ser maisalterado. Isto não quer dizer que o consideremos perfeito, mas da nossa parte nãodesejamos mais modificá-lo.

O livro surgiu levantando a temática e a problemática dos conflitos entre senhorese escravos num momento em que os setores mais categorizados da nossa historiografiaafirmavam o contrário. Surgiu solitário e pioneiro numa época em que, por exemplo opróprio Fernando Henrique Cardoso, apesar da sua contribuição à análise do sistemaescravista no Brasil, afirmava que os escravos foram "testemunhos mudos de umahistória para a qual não existem senão como uma espécie de instrumento passivo".Este discurso que leva a se encarar o escravo como coisa reflete-se, por extensão, emmuitos historiadores, sociólogos, antropólogos e economistas que estudaram o nossoescravismo colonial. O escravo praticamente não existia. Era como se fosse umaabstração que funcionava de acordo com aqueles mecanismos que asseguravam a norma-lidade da estrutura.

Em face do aparecimento de "Rebeliões da Senzala" o assunto foi reposicionadoe a discussão sobre o tema/problema adquiriu nova dimensão. Vários trabalhos epesquisas surgiram procurando ver o negro escravo não apenas como objeto históricomas, também, como seu agente coletivo. As discussões aumentaram em face de outrocomponente da realidade: a conscientização progressiva da comunidade negra, especial-mente nas grandes cidades e que iniciou a questionar o problema da história oficialdo Brasil especialmente no que diz respeito ao papel do negro escravo não apenas naconstrução da riqueza comum, mas como contestador da construção desse tipo de ri-queza, da qual ele foi sistemática e totalmente excluído.

O mérito do nosso trabalho poderá ser centrado apenas neste aspecto: haverdespertado não apenas a Inteligência, mas a comunidade negra para o debate de umassunto/problema que era considerado tabu pelos historiadores e sociólogos académicos,especialmente em consequência da herança da obra de Gilberto Freyre que apontava oBrasil como o paraíso da democracia racial, fruto e decorrência da benignidade inicialdo nosso escravismo patriarcal, e, depois, das relações inter-étnicas democráticas sur-

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gidas após o 13 de maio. Esta visão deformada levava a que se repetissem chavões,muitos deles usados ainda hoje no sentido de se escamoteai o conteúdo altamenteviolento das relações entre senhores e escravos.

Na esteira do aparecimento de "Rebeliões da Senzala" outros trabalhos surgiramobjetivando desmitificar o problema. Podemos citar, neste sentido, os trabalhos deDécio Freitas, José Alípio Goulart, Ariosvaldo de Figueiredo, Suely Robles Reis deQueiroz, Martíniano J. da Silva, Luís Luna e alguns outros. Desta forma, a reposiçãodo problema contribuiu para um novo enfoque no qual a passividade do escravo podeser vista como um mito criado pelas classes dominantes para justificar os seus critériosde repressão. O problema continua em discussão e esta reedição vem novamente dialogarcom os leitores no sentido de tentar restabelecer a verdade dos fatos.

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Introdução

Finalmente, depois de alguns anos, estamos entregando ao público a segundaedição de "Rebeliões da Senzala". Aparecido em 1959, somente agora terminamos asua revisão, que foi substancial, para reapresentá-lo. Não apenas foi revisto, mas conside-ravelmente enriquecido, conforme havíamos prometido.

Livro escrito na juventude, tinha uma série de deficiências, muitas das quais nosesforçamos em corrigir. O assunto, por outro lado, era difícil porque poucos foram oshistoriadores que procuraram estudá-lo de forma sistemática. Pelo contrário. Quandoiniciamos as nossas pesquisas, em 1948 — o livro saiu bem depois, pois ficou engavetadovários anos por falta de editor — encontramos pela frente uma série de barreirashistóricas que nos dificultavam enormemente o trabalho. Uma delas, talvez a maisarraigada e difundida mesmo entre historiadores empenhados em conhecer a nossaverdade histórica, e sociólogos era a de que os escravos negros, por uma série de razõespsicológicas, não lutaram contra a escravidão. O processo de acomodação foi promo-vido, por esses estudiosos, à categoria de fator central da dinâmica social no Brasil.Ao invés de procurarem os arquivos, repetem estereótipos muito cómodos, frutosalgumas vezes da nossa inércia mental e outras vezes produtos deliberados daquelesdeformadores profissionais da nossa história. As fontes históricas, além do mais, não seapresentam facilmente ao pesquisador de assunto como o que abordamos, fato queexplica muitos equívocos bem intencionados. É preciso que haja um como acostumar-seà penumbra que existe para podermos ver melhor. Foi o que tentamos fazer: estudar asformas extralegais de que se revestiram as contradições entre senhores e escravos. Essascontradições eram as que, na época, mais influíam na formação e caracterização dasociedade brasileira. Os universos de comportamento, quer da classe senhorial, querdos escravos, de uma forma ou de outra, isto é, positiva ou negativamente, refletiamesta dicotomia.

E mais ainda: as reações, os mecanismos de defesa, tanto de um lado como deoutro, estavam vinculados, através de diversas gradações de subordinação e ligação, àexistência do trabalho escravo no Brasil. Contradição que durou até a Abolição.

O processo social que desembocou no abolicionismo não estava cortado ouextinto, no entanto, com esse acontecimento. Pelo contrário. A própria Abolição, comofoi feita, significou mais um compromisso que uma solução. Os problemas não solvidos

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com o 13 de Maio deixaram aderências e canalizaram forças negativas que até hojecontinuam influindo na. nossa história social.

Nosso trabalho não tem em mira estudar as lutas dos escravos do ponto de vistade simpatia ou piedade para com os oprimidos, vistos através de uma ótica paternalistaou filantrópica. Procurará, pelo contrário, fazer uma análise mais profunda e, na medidado possível, científica do processo histórico que as gerou. Fugimos, portanto, dasdeformações românticas, procurando restaurar a verdade histórica, desfigurada porinúmeros estudiosos. Algumas vezes deliberadamente desfigurada.

O escravo, como classe social, constituía um dos pólos da contradição mais impor-tante do Brasil durante a vigência do regime servil. Toda a nossa estrutura económica,todos os elementos condicionantes da nossa formação tinham de inserir nos seus poros,diversos problemas que advinham disto. Senhores e escravos constituíam a dicotomiabásica brasileira, como já dissemos. Outras que surgiam e que — em determinadosmomentos — apareciam como fundamentais à superfície, eram apenas reflexas ou seconstituíam em contradições suplementares. O escravo, afirmaram inúmeros sociólogos,contaminava a sociedade da época. Mas, não era isto o que acontecia. O escravo era oesqueleto que sustentava os músculos e a carne da sociedade escravista, porque era oprodutor da riqueza geral, através do seu trabalho. Gandavo tinha razão quando diziaque os moradores das Capitanias "a primeira coisa que pretendem adquirir, são osescravos para nelas fazerem suas fazendas e se uma pessoa chega na terra a alcançar doispares, ou meia dúzia deles (ainda que outra coisa não tenha de seu) logo tem remédiopara poder honradamente sustentar sua família porque um lhe pesca e outro lhe caça,os outros lhe cultivam e grangeiam suas roças e desta maneira não fazem os homensnem despesa em mantimentos com seus escravos, nem com suas pessoas. Pois daqui sepode inferir quanto mais serão acrescentadas as fazendas daqueles que tiverem duzentos,trezentos escravos, como há muitos moradores na terra que não têm menos destaquantia, e daí para cima".^

Mas, as relações escravistas também produziam movimentos de reação que sevinculavam à dinâmica de uma sociedade de capilaridade social quase inexistente, comocostumam ser as sociedades de castas. Os diversos escalões, os variados degraus dereação contra o status do escravo defluíam em uma constelação de desajustes naeconomia escravista. Do ponto de vista do próprio escravo essas reações iam desde ossuicídios, fugas individuais ou coletivas, até à formação de quilombos, às guerrilhas,às insurreições citadinas e a sua participação em movimentos organizados por outrasclasses e camadas sociais. O escravo, desta forma, solapava nas suas bases as relaçõesescravistas, criando uma galáxia de desajustes desconhecida pelos dirigentes políticosda época. É verdade que o escravo, ao se rebelar contra a ordem que o subjuga, nãopossui elementos cognitivos capazes de fazê-lo um homem autoconsciente. Sua posiçãode membro de uma classe colocada como entrave ao desenvolvimento das forças produ-tivas, incapaz de dominar técnicas mais avançadas do que as rudimentares do seu labor

(1) Gandavo, Pedro de Magalhães: - "História da Província de Santa Cruz" e "Tratado daTerra do Brasil", S. Paulo, 1964, p. 34-35.

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rotineiro, jungido a um regime de trabalho que o insulava do processo dinâmico demodificações e aperfeiçoamentos técnicos, não podia ter elementos ideológicos capazesde transformá-lo na classe que, através de suas lutas, conseguiria o poder do Estado.A alienação que o envolvia deixava-o como o peru no círculo de carvão. Tal papelestava destinado a outra classe social. Isto se verificou quer na escravidão no seu sentidoclássico, do mundo antigo, quer na escravidão ressuscitada pela expansão das naçõesmercantis, na era moderna.

Com exceção da experiência de conteúdo controvertido do Haiti, nenhum movi-mento de escravos conseguiu estabelecer Estado próprio. O papel dessas lutas foisempre outro: solapar as bases materiais e consequentemente as relações de trabalhoexistentes entre senhor e escravo. Diz Otávio lanni: "Apesar de toda sua atividade'divergente', manifesta em fugas, revoltas individuais ou grupais, atos 'delinquentes'etc., não é possível afirmar-se que ele tivesse desenvolvido uma ação social à qual sepossa atribuir tal significação política. A sua atuação não era diretamente abolicionista,nem deve ser encarada interpretativamente como tal, pois os fins que a orientavam nãoforam caracterizados pela necessidade de destruição do regime. Ela era definida pelanecessidade individual de evadir-se da situação escrava, onde a sobrevivência reduzia-seaos mínimos físicos e não pela exigência coletiva de abolir o regime. (.. .) Exatamenteporque não foi nem podia ser formulado nem estruturado como um movimentocoletivo, da casta dos escravos, o comportamento individual "desajustado" do cativonão teve o caráter revolucionário que necessariamente impregnava a ação dos abolicio-nistas brancos, isto é, livres. Para que assumisse tal significado, seria preciso que ocomportamento da coletividade cativa fosse organizado em função de uma elaboraçãoconsciente da condição escrava: seria necessário que se atribuísse à casta dos cativos apossibilidade de apreender, ainda que fragmentariamente, a situação alienada em que

se encontrava.

E isto consistia na própria negação da natureza da condição escrava, que traz emsi, porque é de sua essência a impossibilidade de consciencialização da total alienaçãoda pessoa, do mancípio, do instrumentum-vocale. O próprio cativo, pois, estava impos-sibilitado de romper o círculo fechado em que se encontrava. (.. .) Por conseguinte,ainda que fornecendo ingredientes políticos para-o movimento, apesar de que todasas formas assumidas pelas tensões sociais, expressas no comportamento de escravo,propiciaram o substrato social para a ação dos abolicionistas, é inegável que a atuaçãodaquele não teve nem pode adquirir imediatamente caráter político. Nota-se, contudo,que não teve, mas assumiu configuração política. Por intermédio de homens livres queorganizam ou lideram o abolicionismo, o comportamento do cativo acaba adquirindouma significação política notável."(2)

Política não no sentido da conscientização por parte do sujeito do fato histórico,neste caso o escravo, mas no sentido de ser ele o elemento material, a massa humanacapaz de impulsionar, embora sem autoconsciência, o processo histórico-social no quediz respeito à sua contradição fundamental, o que foi aproveitado instintivamente,

(2) lanni, Otávio: - "As Metamorfoses do Escravo", São Paulo, 1962, p. 243-45.

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talvez, pelos abolicionistas. A documentação fatual que iremos apresentar em seguidasó tem sentido ramo elemento comprobatório de um processas. Fora disto, perder-nos-emos em detalhes sem visão diacrônica, ficaremos emaranhados em detalhes e questiún-culas sem maior importância. O fato é que, de qualquer maneira, os elementos derealidade de um sociedade de castas só podem ser compreendidos se atentarmos nasua dinâmica dicotômica, no seu processo bipolar de transformação. Na formação dasociedade brasileira foi o escravo o elemento que durante grande tempo conseguiuestabilizar nos tópicos uma economia latifundiária e colonial, baseada na exportaçãode géneros para o mercado mundial.

Mas, ao mesmo tempo, foi o quilombola, o negro fugido nas suas variadas formasde comportamento, isto é, o escravo que se negava, que se transformou em uma dasforças que dinamizaram a passagem de uma forma de trabalho para a outra, ou, emoutras palavras, a passagem da escravidão para o trabalho livre. O escravo visto naperspectiva de um devir.

Carlos M. Roma que estudou os movimentos sociais na América Latina duranteo século XIX, colocava em primeiro plano no Brasil, "as rebeliões típicas dos escravosnegros"/3^

Como podemos ver, o processo contraditório da abolição do trabalho escravo noBrasil, muitas vezes estudado como sendo fruto da magnanimidade da Princesa Isabel,do Parlamento, do Exército ou de modificações racionais no pensamento das elites,tem raízes muito mais profundas. Cabe ao historiador descobri-las. Analisá-las criterio-samente, voltado apenas para a verdade histórica. Fora deste plano cairemos na históriaapologética de homens ou ideias, sem maior dimensão para a ciência histórica.

Nosso trabalho procura estudar a participação do escravo como força dinâmica,como contribuinte ativo no processo histórico. A outra parte, do escravo como ele-mento dócil, masoquista, conservador do regime, termo passivo do processo social jáfoi por demais estudada. Há mesmo uma verdadeira indústria em tal sentido. Por tudoisto, procuramos ver o escravo, no presente livro, como negação de um sistema que,para afirmar-se em sua amplitude, tinha de estabelecer toda uma mecânica de sujeição.Neste sentido procuramos trazer elementos novos, alguns não muito novos mas despre-zados, para melhor se compreender a essência do processo que teve início com oestabelecimento da escravidão e desaguou na Abolição.

Esta segunda edição sai acrescida de inúmeros capítulos especialmente no que dizrespeito às lutas dos escravos em São Paulo. Destacamos, igualmente, a participaçãodos elementos cativos durante a ocupação holandesa. Entre a primeira edição do nossotrabalho e o aparecimento desta segunda, muitos trabalhos valiosos apareceram e forampor nós largamente aproveitados. Todos eles nos ajudaram. O plano da obra, por isto,foi ligeiramente modificado. Inserimos alguns capítulos da primeira edição no segundovolume a fim de dar-lhe maior unidade. O método interpretativo, porém, continua omesmo, como os leitores poderão ver no decorrer da sua leitura.

(3) Roma, Carlos M. - "Os Movimentos Sociais na América Latina durante o Século XIX"- In "Revista de História", Ano VIII, n9 30, abril de 1948, p. 87 ss.

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Levamos em consideração, também, para melhor compreensão do assunto, ainfluência das organizações tribais africanas e o processo de destribalização que ocorreuno Brasil.

Quando os africanos vinham, na qualidade de cativos, conservavam, ainda, a suahierarquia, os diversos elementos de sua organização e os padrões de valores corres-pondentes. Tanto assim, que muitos dos que tinham títulos de mando conservavam aquiesses atributos. De um lado, a destribalização violentava o mundo mental do africano,abrindo a perspectiva de analisar a sua situação, não do ponto de vista das estruturastradicionais africanas nas quais ele se inseria, mas inserido já no conjunto de umasociedade estratificada que o colocava coercitivamente com um status definido einferior.

O seu universo psíquico e o seu comportamento social tinham de sofrer, portanto,com tal fato. Já não eram mais homens que procuravam a sua evolução dentro decompartimentos de normas estabelecidas pelas tribos respectivas. O seu comportamentotradicional era substituído por outro.

O fato foi visto pelas autoridades ao tempo. O Conde dos Arcos, por exemplo,ao defender os batuques dos negros, pondera que esses batuques serviam para que osescravos conservassem as diferenças que os desuniam, pois seria perigoso que eles seesquecessem delas "ante a desgraça comum".'4' O Marquês de Aguiar é da mesmaopinião do Conde.^ Tal fato foi visto igualmente pelos estudiosos modernos queabordavam os diversos caminhos da formação das nações africanas no seu processo deindependência. Stonequist mostrou como uma das preocupações das autoridades

(4) Compreendendo muito bem o fenómeno, o Conde dos Arcos escrevia: "batuques olhadospelo Governo são uma coisa e olhados pelos Particulares da Bahia são outra. Estes olham para osbatuques como para um Acto offensivo dos Direitos dominicaes huns porque querem empregar seusEscravos em serviço útil no Domingo também, e outros porque os querem ter naqueles dias ociososà sua porta, para assim fazer parada de sua riqueza.

O Governo, porém olha para os batuques como para um ato que obriga os Negros, insensívele machinalmente de oito em oito dias, a renovar as ideas de aversão recíproca que lhes eram naturaesdesde que nasceram, e que todavia se vão apagando pouco a pouco com a desgraça commum;ideas que podem considerar-se como o Garante mais poderoso da segurança das Grandes cidades doBrasil, pois que se uma vez differentes Nações da África se esqueceram totalmente da raiva comque a natureza as desuniu, e então os de Agomés vierem a ser irmãos com os Nagôs, os Gêges, comos Aussás, os Tapas com os Sentys, e assim os demais; grandíssimo e inevitável perigo desde entãoassombrará e desolará o Brasil. E quem haverá que duvide que a desgraça tem o poder de fraternizaros desgraçados?". (Citado por Nina Rodrigues: "Os Africanos no Brasil", S. Paulo, 1945, p. 253/4).

(5) MS da Biblioteca Nacional, II - 33,2429. - A mesma política verificou-se em outraspartes do Brasil. Quando uma autoridade excessivamente zelosa proibia tais batuques era semprechamada à realidade pelos superiores como aconteceu com o Governador de Santos que os proibira,em 1818. O Governador Interino da Capitania de São Paulo inteirava de que "não hé dezacertadoo permittir-se aos mizeraveis pretos o seu divertimento nos subúrbios dessa Villa, naquelles diaspróprios para isso suavizando assim o captiveiro fazendo-os observar pelas rondas necessárias paraque não hajão desordens, e hé isto mesmo o que se pratica nesta Cidade" (Ofício do GovernadorInterino da Capitania de São Paulo D. Mateus de Abreu Pereira ao Governador de Santos", inDocumentos Interessantes para a História dos Costumes de São Paulo, vol. 88, 1963, p. 18).

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coloniais era manter essas organizações tribais, pois a destribalização correspondesempre a normas de conduta não controladas.

Diz o conhecido sociólogo: "a destribalização rompe as ideias tradicionais eintroduz algumas do Ocidente; a exploração aguça o desassossego resultante que setorna descontentamento; a educação missionária provê líderes e inconscientementefornece muito da ideologia e padrões de expressão porque as revoltas africanas sãomuitas vezes um misto de fanatismo religioso e sentimento antieuropeu (. . .) Surgemprofetas e operadores de milagres que atiram os nativos em novos movimentos e organi-zações hostis à hegemonia europeia. Em consequência, os governos coloniais têm procu-rado mais e mais evitar a desorganização tribal e controlar os esforços missionários".*6*

No Brasil embora o fenómeno se tenha verificado, conforme já acentuamos, emerece ser levado em consideração na análise que empreendemos, devemos, contudo,acentuar certas ponderações suplementares a fim de destacarmos alguns dados espe-cíficos. O processo de destribalização ao sofrer o impacto do sistema escravocrata nãofoi uniforme. Podemos dizer que para os componentes de certas tribos a destribalizaçãoserviu para uni-los "ante a desgraça comum". Elementos de outras tribos, porém,conservaram os seus traços tribais deixando-se destribalizar em bem menor escala e, aomesmo tempo, usaram esses vínculos tribais como ideologia organizadora de levantes,como é o caso dos aussás cujas revoltas, por isto mesmo, são estudadas, enganosamente,por alguns historiadores, como revoltas religiosas. O processo de destribalização não foiuniforme e os seus efeitos variaram muito/7^ A hierarquia tribal funcionou em certasrevoltas de escravos no Brasil numa constelação nova. Mas o caso que estamos citando —o dos aussás — não invalida o fato de que, no fundamental, a destribalização era peri-gosa para as autoridades. Procuravam, por isto, como vimos nos exemplos do Condedos Arcos e do Marquês de Aguiar, estimular fricções intertribais para que não fossecriada uma consciência da nova situação em que estavam engastados; pelo contrário:procuravam manter as formas tribais de comportamento.

As reminiscências dos traços tribais em alguns casos conservavam e serviam paraque os escravos se organizassem visando a minorar sua situação. Podemos citar, noparticular, a hierarquia conservada nos "cantos", nos batuques, nas festas religiosas,nas irmandades e confrarias, nos próprios quilombos.

Eram filamentos que se interpunham entre a organização tribal e a situação deescravos na sociedade brasileira. Houve inclusive uma organização como o Ogboni quesobreviveu no Brasil e influiu em lutas que os escravos travaram contra o instituto queos oprimia.

Até hoje podemos verificar, em algumas organizações recreativas, elementos sobre-viventes da organização tribal africana. A própria organização política da Repúblicados Palmares foi um reflexo das muitas existentes no continente negro.

(6) Stonequist, Everett V. - "O Homem Marginal", S. Paulo, 1948, p. 87.

(7) O fenómeno a que estamos aludindo foi estudado em relação aos indígenas por FlorestanFernandes: "O Tupi e a reação tribal à Conquista", m "Mudanças Sociais no Brasil", S. Paulo,1960, pp. 287-97 e "Organização Social dos Tupinambás", S. Paulo (2? ed.), 1963, passim.

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Nosso trabalho padece de todos os defeitos de um trabalho artesão. Isto é expli-cável em país como o nosso em que a historiografia científica inicia os seus primeirospassos. As próprias condições sob as quais trabalham nossos historiadores propiciameste clima aleatório que caracteriza a maioria dos estudos e da atividade dos historia-dores brasileiros debruçados sobre assuntos secundários mas aos quais estão ligadospor diversas formas de interesse: até por interesses genealógicos. .. Das centenas decartas que escrevemos a historiadores ou pessoas ligadas aos problemas estudados nestelivro, solicitando dados, informações ou fontes, recebemos resposta de menos de dez.Isto é uma pena, porque História é ciência de equipe, de colaboração, de intercâmbiode opiniões. Mas a culpa não é dos homens que estudam História: é da situação globalem que nos encontramos, todos nós inseridos no mesmo processo, co-partícipes deum universo de comportamento que não nos foi dado escolher, mas foi imposto porcausas diversas. Isto não quer dizer que nos eximimos dos erros ou insuficiênciascometidos por nós. Não. Se não fomos suficientemente providos dos dados que solici-tamos não nos cabe criticar a quem, como nós, deve trabalhar enfrentando as mesmasdificuldades. Dificuldades que aumentam ao invés de diminuírem para todos quantosdesejam fazer História verdadeira e não mero amontoado apologético de datas e atos.Toda ciência tem dificuldades. Especialmente as Ciências Sociais. Daí o nosso empenhoem trabalhar tentando fazer o melhor e, ao mesmo tempo, agradecendo àqueles que nosajudaram com o seu estímulo ou a sua cooperação. Agradecemos especialmente aoprofessor José Honório Rodrigues pela indicação de fontes indispensáveis à ampliaçãodo presente trabalho; ao senhor Waldir da Cunha por haver copiado com eficiência eprobidade, documentos, manuscritos e trechos de obras de difícil acesso para nós,existentes na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro; ao Luiz Henrique pelas indicaçõessuplementares de fontes e fornecimento de publicações do Arquivo Público da Bahia,do qual é Diretor; ao professor Vivaldo Costa Lima por várias ponderações válidas eaceitas como, por exemplo, a influência das organizações tribais nos movimentos derevoltados escravos brasileiros; ao escritor L. Borges pelas informações de fontes sobrea participação dos homens de cor na revolta de 1817; ao escritor Nelson WerneckSodré, pelo empenho de ver terminada esta segunda edição; à socióloga Sílvia MariaSchor pelas opiniões e sugestões, e, finalmente, ao Clóvis Meira pela revisão das originaise das provas.

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Características Gerais

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A escravidão no Brasil surgiu de dois fenómenos distintos, mas con-vergentes. De um lado, foi a continuação do desenvolvimento internoda sociedade colonial nos moldes em que se vinha realizando a sua evo-lução nas primeiras décadas que, de simples aglomerado de feitorias ato-mizadas no vasto território, transformou-se em donatárias com sistemade estratificação social fechado em estrutura praticamente feudal. Aaparente anomalia de instituições feudais trazerem o ressurgimento daescravidão no mundo poderá ser explicada por uma série de fatores queparticularizam essa aparição, conforme veremos mais tarde. Do outrolado, foi consequência dos interesses das nações colonizadoras em fasede expansão comercial e mercantil. Portugal participará desse proces-so expansivo desempenhando o papel de intermediário dos maia fortespaíses europeus, depois de um período em que teve atuação relevantecomo nação marítima, na época das grandes descobertas.

Foi, assim, cortado o processo de desenvolvimento tribal dos gruposindígenas que nos habitavam, com o aparecimento dos primeiros colo-nos, e solapada em suas raízes a estrutura económica em que os índiosbaseavam suas instituições, seus costumes, finalmente a sua cultura, nosentido sociológico da palavra. A nação colonizadora, no caso especí-fico, Portugal, que através de elementos de dominação ocupava a terrae subjugava os seus primitivos habitantes, garroteava o desenvolvimen-to autónomo dessas culturas através de um tampão compressor contrao qual não era possível os nativos lutarem com o instrumental de quedispunham. A expansão mercantil de Portugual, que no caso presente de-sempenhou o papel de nação dominadora, já era fruto e resultado detodo um processo anterior de subversão económica, verificado no VelhoContinente, através de uma série de acontecimentos conhecidos e retra-tados, com maior ou menor profundidade, por todos quantos se ocupa-ram da economia dessa época.1

(1) Sobre a conjuntura econômico-social de Portugal e as causas da sua ex-pansão geográfico-colonizadora bem como o significado das modificações que ali seprocessaram, veja-se o lúcido ensaio de António Sérgio — Sobre a Revolução de1383-85, í» "Ensaios", tomo VI, Lisboa, 1946, p. 155 SB.

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Os primeiros colonizadores portugueses, ao entrarem em contactocom os indígenas, iniciaram o sistema de escambo, dando as populaçõesnativas o seu trabalho na derrubada e condução do pau-brasil — as pri-meiras atividades lusas no Brasil foram meramente extrativas — seusprodutos naturais etc-, em troca de miçangas, espelhos, pentes, fazen-das, animais nativos, utensílios, demarcando a fase que Calógeras compropriedade chamou de "ciclo do intercâmbioi". (1~A) Esse sistema exigiado índio o seu trabalho e nada lhe dava em troca. Degradava-o sociale culturalmente.

Cristalizando posteriormente tal processo de degradação económica,social e cultural, os Jesuítas subordinaram os índios a uma semi-servi-dão disfarçada que não correspondia ao que a servidão tem de especí-fico, mas ao mesmo tempo não era o trabalho livre ou a escravidão nasua pureza conceptual.

Contribuíram ainda os homens da S. J. para o abastardamento cul-tural do índio, destruindo os seus padrões de valores. Esses padrõeseram fruto de experiência adquirida através de longo processo de adap-tação ao meio, processo que criava a cosmovisão empírica necessáriapara que eles solucionassem os problemas surgidos na comunidade. Osjesuítas substituíram esses padrões por outros, aquilatados e impostossegundo estereótipos e julgamentos morais que eram inteiramente estra-nhos aos indígenas.'B Esta defasagem levou a que a população indí-gena se fosse marginalizando progressivamente do processo produtivo.Do ponto de vista meramente económico, foi substituído o conceito depropriedade das diversas tribos, que era comunal-primitivo (2), por outro,

(l-A) Calógeras, P. — "A Política Monetária no Brasi:", m "Revista do Livro"n' 9, Rio, marçe de 1958, p. 185. Cf. Alexandre, Marchant: "Do Escambo à Escra-vidão", S. Paulo. 1943. Aliás, os primeiros cronistas que se referem às relaçõesiniciais entre colonos e Índios salientam que a escravidão não era praticada inicial-mente pelos colonos, motivo pelo qual os indígenas cooperavam a fim de que se ex-traísse o pau-brasil.

(1-B) Escreve com muito acerto Gilberto Freyre que "o que se salvou dos indí-genas no Brasil foi a despeito da influência jesuítica; pelo gosío dos padres não teriasubsistido à conquista portuguesa senão aquela parte mole e vaga de cultura ame-ríndia por eles inteligentemente adaptada à teologia de Roma e à moral europeia.Nem podia ser outra a sua orientação de bons e severos soldados da Igreja; tocadosmais que quaisquer outros da vocação catequista e imperialista. O imperialismo eco.nômico da Europa burguesa antecipou.se no religioso dos padres da S. J.; no ardoreuropeizante dos grandes missionários católicos dos séculos XVI e XVII ( . . . ) Coma segregação dos indígenas em grandes aldeias parece-nos terem os jesuítas desan.volvido uma das influências letais mais profundas. Era todo o ritmo da vida socialque se alterava nos Índios. Os povos acostumados & vida dispersa e nómade sem-pre se degradam quando forçados à grande concentração e à sedentariedade absolu-ta" (Casa Graniie & Senzala", Rio, 1943, Io vol., pp. 214-215).

(2) A existência (ou não) de um comunismo agrário primitivo é problema quevem sendo discutido apaixonadamente. Enquanto a corrente antievolucionista sus.lenta a inexistência dessa fase, historiadores e etnólogos que se filiam às diversascorrentes evolucionlstas apresentam razoes que justificam a tese da existência desseperíodo. Etnólogos como Lowie (História de Ia Etnologia, México, 1946) além denão analisarem na sua complexidade o problema, ficam presos a esquemas ditadosem maior ou menor escala per preconceitos políticos Cf. op. cit. p. 72 es) quan-do analisam a escola morganista. í! também o que fazem outros antropólogos so-

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ciais e etnólogos sem, no entanto, verem com que elasticidade essa fase comunal-primltiva deve ser encarada. Assim, fazendo uma análise dos livros "Trate d« So-ciologle Primitive" (Paris, 1935), de Robert Lowie; L'Economie Primitive (Paris,]93T), de Richard Thurnwald e "Etat Social dês peuptes sauvages" (Paris, 1930, dePaul Deschamps, L. Xavier Teles afirma, depois de implicitamente negar o com unis.mo primitivo que as "sociedades árticas (Esquimaus, Korlks, Tchuktches) obedecema dois princípios: — l» — partilha altruística dos produtos alimentares; 2» necessi-dade de um emprego efetivo dos meios existentes de produção económica" ( . . . "Oselementos individualistas, ainda que esbatidos, semidlluidos, não deixam de existir.Razoes supersticiosas tornam incontestáveis certos direitos individuais" (. . . Há. po-voa caçadores que reconhecem direitos não comunais e hereditários, sobre certas fra.çíSes do território tribal. Thurnwald ensina que a propriedade Imóvel abrange todoo território de onde a horda, o clã ou a aldeia tiram os meios de vida e subsistência,recusando-se em geral os povos primitivos a aceitar a pretensão de um indivíduo depossuir pessoalmente, uma parcela do território comum". (CF. "A Propriedade en.tre os povos Primitivos", *» "Sociologia", vol. I, p. 61 SB.) Em outro tocai Thurn-wald, cujo pensamento o sociólogo brasileiro tentou resumir, afirma que "a constitui-ção da propriedade privada móvel repousa numa estrutura social decorrente de certasconstelações e desenvolvimento descrito no quarto volume desta obra. Somente aquebra dos laços clanicos, autonomia das famílias e a multiplicação de famíliassenhoriais com escravos e criadagem, abriram caminho para a Introdução da proprie-dade privada de terras, ou rebanhos entoe aquelas familias" (Cf. "Origem, Forma-ção e Transformação do Direito", in "Sociologia", Vol. IH, n» 3, agosto de 1941).Vê-se portanto que não há nenhuma rigidez da parte de Thurnwald contra a existên-cia do comunismo primitivo. Partindo de posições metodológicas não de um etno.logo que procura sua documentação entre os chamados "primitivos" mas das posi-çOes de historiador que tem o seu equipamento de conhecimento voltado par» épocasmais recuadas, procurando auxilio na arqueologia e na paleontologia, o professor V.Gordon Childe aceita a hipótese de uma fase comunal-primitiva. (Cf. "Lo que Sucedióen Ia Historia", Buenos Aires, s/d) técnica que vem servindo também aos soviéticosentre os quais muitos, através de um esquematismo injustificável deixam o assuntomais no âmbito da Economia Política. Aliás, Gilberto Freyre dá-nos notícias depesquisas realizadas pelos "Antropologistas da Academia de Ciências da URSS, a umdoa quais, o professor Kaganow, deve.se notável estudo histórico sobre os trabalhosde antropologia na Rússia pós-revolucionária". "Nem todos — continua GilbertoFreyre — acreditam ter sido o comunismo, de modo absoluto, aquela "primeira fasede desenvolvimento social" a que estaríamos próximos a voltar "sob forma mais alta";o professor P. Kushn/er, por exemplo, não vê evidência da açfto do principio de dis-tribuição comunista de alimento entre as comunidades da Austrália (Cf. "Socícjogia",VoL I, Rio, 1645, p. 208). í! que os autores soviéticos, como já afirmamos, deixa-ram o problema mais ligado à Economia Política do que a Etnologia. O professorMauro Olmeda, num alentado e importantíssimo trabalho sobre as sociedades pré-capitalistas, sustenta a existência desse comunismo primitivo, baseado em observa-ções locais'e em dados da pré-história (Cf. "Sociedades Pré-capitalista: I — Intro-duoción a Ias Sociedades Precapitalistas", México, s/d., pp. 197, 203, 268, 269, 271).Etnólogos franceses realizaram também debates interessantes sobre o tema. MaximeRodinson apresentou trabalho onde mostra que mesmo aqueles autores que põem cmdúvida o sentido universal desse comunismo, como R. Thurnwald e A. Goldenwelsernão deixam de admitir de certa forma a validez do conceito de modo relativo. Oprimeiro, citado pelo autor do trabalho, afirma que "Ia théorie qui regarde lê commu-nisme primitif comme ayant precede Ia propriété primitive de 1'histoire ultérieuredoit par conséquent être rejete, au moins sous sã forme rigoureuse (drastic). Ellecontient cepemdant um germe de vérlté dans cette mesure: dans Ia sodeté occidentalemoderne, Ia propriété Individuelle a, comme nous savons, acquis une significaton etun role dépassant de beaucoup llmportance de cette institution chez lês primitifs".Goldenweiser por seu lado, escreve que "Lês conceptions qui soat à Ia base dês droitsde propriété sont de même ordre. Dês objets purement personnels, tels que l'ha-billement, lê Kayak, lê tetineau, lês armes de chasse, etc, sont propriété, et tousceux qul ont trafique avec» lês Esquimoux savent comme cette régle est strictementdbservée; il scrait inconcevable, par exemple, même lês parents, de vendre l'unquelconque dês jouets dês enfants sans s'assurer préalabiement de Ia permission

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no qual a propriedade privada existia, mas não para os produtores, exa-tamente aqueles que eram os habitantes da terra e que tinham o seuconceito de propriedade comunal vinculado à distribuição da produçãoentre os próprios produtores, de acordo com diversas normas tribais quenão cabem ser analisadas aqui. Nos aldeamentos os padres da S. J. ten-taram criar um coletivismo que não tinha nenhuma conexão de conti-nuidade com o que existira nas diversas tribos, mas se baseava na auto-ridade dos padres da Companhia que se arvoraram não apenas em mani-puladores teológicos, mas em autoridades que distribuíam a produçãoe regalavam o consumo.

Antes disto, com o aparecimento das Capitanias Hereditárias ten-tou-se a exploração da terra através do colono reinol exportando-separa o Brasil os braços necessários ao trabalho. Paralelamente — éverdade — processavam-se tentativas violentas de escravização do índio:na sua maioria improdutivas pois o índio apresado mostrou-se mau tra-balhador dentro dos quadros de relações de trabalho a que o queriasubmeter o colonizador. Ainda não bastavam essas relações contudo,para que se caracterizasse a sociedade existente como escravista. Fal-tava ao labor escravo preponderância no bojo das relações de trabalho,já que o jornaleiro, o reinol pobre, o colono, eram, no fundamental, aque-les que constituíam o que de mais estável se possuía na colónia, pois ocolonizador, até o momento, "arranhava a costa como caranguejo", naexpressão feliz de um cronista da época. A escravidão indígena tinhauma desvantagem: pelo próprio material humano que a compunha, vindode um estágio cultural muito mais primitivo do que o existente para astarefas a que o predispunham, era uma peça subsidiária, que desem-penhava — do ponto de vista económico — um trabalho complementare não qualificado. A faina do primeiro ciclo da colonização desempe-nhada pelos índios era, incontestavelmente, a mais dura e rudimentar.

dês jeunes posseurs. Ce qui eat en usage au bénéfice de plusieurs familles, — lêsgrandes maisons oommunes, lês pierres érigées pour Ia chasse au saumen et lêsehasse au caribou, etc, — appartiennent à Ia communauté globalment. En príncipe,Ia situation est celleci: Ia possession personelle est oondltionée par 1'usage, réelde Ia propriété; un homme qui ne se sert pás de sã trappe & renard doit permettreà un autre individu de Ia. placer; au Groeland, un homme qui possédat déja unetente et un. oumiak ne pouvalt pás encore en recevoir, par héritage, car 11 étaitentendu que personne ne pouvait réelamer et utiliser plus d'un exemp'íiire de pa-reils objets".

Finalmente Maxime Rodinson exprime a sua própria opinião. Para ele "en par^lant de communisme primitif, nous ne nions nullement Ia complexlté dês appropria.tions chez cette catégorie de peuples, comme nous en accusent lês ethnographes bour-geois. Nous dlsons seulement qu'il n'y a pás propriété privée dês moyens de produc.tions ou de Ia terre en règle générale et droit quasi.absolu d'user et d'abuser, en de-hors de tout« autre considération que lê droit bourgeois classique a mis en relief."(Rodinson, M. — L'etude dês sociétés "primitives" a Ia lumiere de 1'ouvrage d'En-gels", in "La pensée", n. 66, 1956, pp. 7, ss.

O certo é que, mesmo colocando-se em dúvida o valor universal desta categoria,no caso particular dos índios brasileiros, sua economia estava enquadrada dentrode coordenadas que a colocam entre os povos que não conheciam a propriedade pri-vada dos meios de produção nem um direito que, estratificado garantisse esse tipode propriedade.

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Ò sistema de controle sobre essas populações subjugadas era, portanto,dos mais rígidos.

Mas, os setores que se desenvolviam como elementos dinâmicos (aagricultura, a mineração posteriormente) exigiam material humano maisadaptável, mais predisposto do ponto de vista cultural ao seu desem-penho. E o colono, por este motivo e por outros talvez mais poderososcomo veremos depois, teve de recorrer a um braço muito mais caro —o africano — para possibilitar o posterior desenvolvimento da sociedadecolonial. 2-B

Somente, de fato, com o desenvolvimento dos primeiros núcleos deplantação de cana-de-açúcar o colono verificará a necessidade de apli-car a escravidão não apenas como solução doméstica (nos moldes emque vinha sendo feita em Portugal), mas como solução para todo regimede trabalho que brotava e posteriormente se estratificaria na Colónia.Mas, somada a essa necessidade, para se compreender a substituição doindígena pelo negro na escravidão brasileira, não podemos deixar deanalisar um dos aspectos mais importantes, senão o fundamental: atransformação do tráfico de simples atividade de pirataria em atividademercantil, com o emprego de grandes somas de dinheiro na aquisiçãode veleiros, equipagens, portos e contratação d.e material humano parao comércio de carne humana. Tal transformação exigiu e determinouque o preador de índios fosse esmagado pelo traficante que vinha com

2B) Dizer que o índio foi mau trabalhador dentro dos quadros da escravidãonão Implica absolutamente nenhum Julgamento que o incapacite para o trabalhopor questões biológicas, inatas. O que há no problema, aliás já muito debatido entrenós, é um fato de ordem psicológica que por sua vez foi decorrência de um fatoeconómico e cultural. Sob as condições de trabalho que o colonizador impôs ao Índiofoi que ele se manifestou mau trabalhador. A prova do que afirmamos é que, en-quanto vigorou o sistema de escambo nas relações entre colonos e índios, estes semostraram trabalhadores eficientes. Alexander Marchant, no seu trabalho sobreas relaçOes ecoinômicas entre Indica e portugueses de 1500 a 1580 expõe fatos im-portantes. Afirma o professor norte-americano que, segundo Tevet e Lery "para ga-nhar alguma bugiganga ou enfeite os próprios índios cortavam a madeira e transpor-tavam-na aos navios, a uma distancia, às vezes, de três ou quatro léguas". Em se-guida afirma: "como não havia cavalos ou outros animais de tração ou carga cabiaao homem fazer o trabalho. Não fora a ajuda dos Índios, portanto, e aqueles estra-nhos no país não conseguiriam carregar um simples navio por ano. Em troca de ca-misas, chapéus, facas e outros artigos, e com ferramentas de metal que os franceseslhes davam, os índios cortavam, serravam, falquejavam e toravam o pau.brasil. (Cf.Alexander Marchant: "Do Escambo à Escravidão", S. Paulo, 1943, p. 54-55). Ooutro lado da questão é querer.se apresentar o índio como biologicamente inadequadoà escravidão. São dois pólos do mesmo estereótipo... O que acontece, no particular,é que os indígenas, ainda na fase comunal-primitiva — como já tivemos oportunidadede comentar — não puderam se adaptar à escravidão, principalmente quando apli-cada de modo quase exclusivo à agricultura sedentária, dentro de latifúndios perten-centes a senhores estranhos ao processo de trabalho. A base da economia das tribosindígenas era recoletora. Todo o equipamento psicológico dos índios, portanto, foiatingido quando o tentaram escravizar. Daí a sua reação, coisa que não aconteceucom o negro que, oriundo de culturas já em estágio superior, conhecendo a agricultu-ra e a escravidão, pôde alcançar nível técnico exigido pelo colonizador para os tra-balhos agrícolas. No que, também, na» vai nenhuma inferioridade do negro de ordemibiológioa, mas, pelo contrário, maior evolução social. A prova, no entanto, de queo negro também não foi elemento dócil ou adaptável à escravidão, veremos no decorrerdeste trabalho.

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todo um equipamento de domínio económico pacientemente estruturadoe penetrava nas cartilagens da economia da época com uma série deatividades correlatas altamente compensadoras. O tráfico de escra-vos, como Sombart já demonstrou, contribuiu enormemente para aacumulação capitalista. No momento, o que convém destacar é que essascausas internas foram superadas por uma bem mais importante: os tra-ficantes estavam economicamente em condições de dominar o mercadoescravo brasileiro. Aqui fincou pé o comércio negreiro amparado portoda uma literatura protetora dos índios; por toda uma campanha huma-nitarista de defesa das populações indígenas. Essa campanha surgia exa-tamente como corolário ideológico dessa mudança de situação que já eraprevisível não em decorrência das apóstrofes do Padre Bartholomeu deLãs Casas, mas porque a organização superior dos traficantes não podiapermitir que se vendesse mercadoria muito mais barata — o índio —nas áreas sob seu domínio. As grandes empresas de navegação que pos-teriormente se sucederam ou tiveram vida simultânea ao tráfico no seuesplendor, que vai do século XVII aos primeiros quarenta anos do XIX,têm como elemento de colaboração o traficante. O capital comercial in-vertido nessas empresas, as vastas áreas sob seu domínio, os grandesinteresses nelas comprometidos e, sobretudo, a sua organização interna-cional, exigiam que qualquer concorrente ao então rendoso comérciofosse dele alijado. I2'C)

As grandes companhias navegadoras, das quais as empresas de tra-ficantes de escravos são das mais importantes, com sede nas metrópoles,as grandes plantações nas áreas colonizadas e o monopólio comercialsão o tripé no qual se apoiam a economia e a política das metrópolesda época. Esses três elementos constituem uma unidade contraditóriaque só poderá ser compreendida se analisarmos objetivamente o estágiode desenvolvimento dessa fase da História.

(2.C) "Uma segunda grande razão que tem sido geralmente esquevrida, foi a pres-são dos grupos interessados no tráfico de africanos no sentido de imporem-se ao B:asil(como às demais colónias tropicais) os escravos negros, fonte de polpudos lucros.O tráfico de africanos, ensina-nos Marx, desenvolveu-se na fase histórica da acumu-lação primitiva que precedeu ao surto do capitalismo industrial (sécs. Xvn a XVIII),como uma empresa tipicamente comercial, um fator a mais daquela acumulação.Tratava.se de uma empresa de certo modo autónoma que, se estava condicionadapelo seu mercado, em grande parte também o condicionava. O mercado era a agri-cultura dos géneros tropicais, que se desenvolveu a partir do século XVI como parteintegrante do sistema colonial da fase do capitalismo manufatureiro, vale dizercomo um outro fator da acumulação primitiva. Toda uma série de motivos, ligadosao nível de desenvolvimento das forças produtivas, às condições geográficas, a certascondições ideológicas, etc. (motivos que não será possível analisar aqui) ocasiona-ram essa ligação histórica entre a agricultura dos géneros tropicais e o tráfico deafricanos, e o fato é que onde vicejou a primeira verificou-se a penetração comercialdo segundo; coisa fácil de comprovar-se no caso brasileiro: com exceçâo do surtominerador (há aí razoes particulares), o afluxo dos escravos negros correspondeuno Brasil — geográfica e historicamente — às vicissitudes da agricultura dos géne-ros tropicais (o açúcar, o algodão, o café). Foram portanto esses interesses mer.cantis externos, ligados à agricultura colonial e ao trafico de africanos, uma outragrande razão da predominância da escravidão negra no Brasil" (Tancredo Alves:"Sobre Escravos, índios e Negros no Brasil", in "Para Todos", Rio de Janeiro n' 17,julho, 1952, p. 29) .

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Inicialmente os ingleses, depois os portugueses e brasileiros entra-ram no comércio negreiro e dele usufruíam lucros incalculáveis. Muitosdeles influíam poderosamente nas decisões do governo, tendo em algu-mas ocasiões subornado autoridades e figurões da política e da Justiça.A figura do traficante em determinado momento era todo-poderosa.Não adiantavam denúncias como a de Martim Francisco (em 1837), oqual mostrou que somente uma dessas embarcações, acossada por ventoscontrários, lançava ao mar 250 africanos para não sentir falta de gé-neros. Navios dos Estados Unidos também eram usados no tráfico ne-greiro. Como diz José Honório Rodrigues: "Os traficantes daqui ouda costa africana foram sempre homens ricos e poderosos, capazes deimprovisar novos meios de burlar a vigilância inglesa e de inventar re-cursos legais como esse da compra de navios americanos, ou ilegais, jáque o tráfico foi um dos maiores negócios do Brasil, durante os primei-ros cinquenta anos do século dezenove". (2-D)

À medida que o entrelaçamento das economias nacionais criava anecessidade de um mercado universal; que novas rotas marítimas eramabertas por essas nações (impulsionadas pelas suas burguesias comer-ciais) ; que as populações dos diversos pontos geográficos da terra esta-beleciam relações até então inéditas na história da humanidade e que,por outro lado e em consequência desse fenómeno, um punhado de paí-ses altamente desenvolvidos na Europa tomava a liderança desse comér-cio e por ele lutava encarniçadamente, seu reflexo se fará sentir naColónia — ela própria uma consequência desse processo de expansão —através da procura cada vez maior dos géneros destinados a suprir ummercado que se ampliava em proporções insuspeitas. Assim, "emlugar das antigas necessidades, satisfeitas pelos produtos nacionais, nas-cem novas necessidades que reclamam para sua satisfação os produtosdas regiões mais longínquas e dos climas mais diversos. Em lugar doantigo isolamento das nações que se bastam a si próprias, desenvolve-seo tráfico universal, uma interdependência de nações". < 3<

O apelo à escravidão africana — que já se realizara com êxito naEuropa desde tempos imemoriais — será uma solução lógica a que re-correrá o colono a fim de conseguir estabelecer nos trópicos uma socie-dade para a qual o material humano autóctone era de pouca rentabili-dade (embora mais barato) e o braço europeu que para aqui vinha nãopodia ser arrolado no status de trabalhador que interessava ao colono:o de escravo.

Em São Vicente, segundo alguns historiadores, no ano de 1549, oprimeiro stock de africanos era desembarcado. Para isso D. João IIIconcedera autorização a fim de que cada colono pudesse importar até120 escravos para as suas plantações, fato que provocou protestos por

(2-D) Rodrigues, José Honório: "Brasil e África: outro horizonte": Rio, 1964,2 vol. l» vol., p. 181.

(3) Marx, K. e Engels, F.: "Manifesto Comunista", Rio s/d., p. 25.

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acharem alguns ser número insuficiente. A data exata da entrada dosprimeiros escravos negros não está, porém, aceita pacificamente e nãonos interessa de modo direto averiguar minudências que nenhum signi-ficado essencial têm no conjunto do processo social que analisamos. Sa-bemos que daí em diante, em face do desenvolvimento da Colónia e, con-seqiientemente, das grandes levas que chegavam no bojo dos navios ne-greiros, o número de escravos importados crescerá até pouco antes de1850 quando, através da Lei Eusébio de Queirós, entrará em colapso otráfico que logo depois se extinguira. <4)

Q estabelecimento da escravidão sistemática veio subverter em suasbases o regime de trabalho até então dominante na sociedade brasileira.Essa transformação s« processará em todas as formas de manifestaçõesda vida social. Demograficamente aumentou em ritmo acelerado e inin-terrupto a população da Colónia; do ponto de vista sociológico cindiu asociedade colonial em duas classes fundamentais e antagónicas: uma cons-tituída pelos senhores de escravos, ligados economicamente, em facedo monopólio comercial à metrópole, outra constituída pela massa escrava,inteiramente despojada de bens materiais, que formava a maioria da po-pulação do Brasil Colónia e era quem produzia toda a riqueza social quecirculava nos seus poros.

A subversão do processo de formação inicial dos primeiros núcleoscolonizadores, produzida pela introdução em escala sistemática do tra-balho escravo, veio isolar quase totalmente as populações indígenas dotrabalho agrícola. Especialmente onde se condensava a atividade produ-tiva naquela época: os engenhos de açúcar. Isto porque a estrutura só-ciai dos indígenas se encontrava ainda, como já afirmamos, em um está-gio comunal-primitivo. Viviam quase exclusivamente da caça e da pesca,com uma economia recoletora. Na América, somente na região andinae no México os nativos se ergueram em culturas ponderáveis e dificil-mente se adaptavam ao trabalho agrícola nas grandes plantações, lutan-do desde o primeiro momento contra as tentivas de submissão. Serápor isso que somente nas fainas mais ajustadas ao seu modo de vidaque o seu trabalho se aproveitará. Na expansão da pecuária, principal-mente nas zonas do centro-norte e centro-leste, o elemento humano indí-gena será aproveitado e até hoje prepondera através de cruzamentos comoutros grupos étnicos, estabelecendo nessas zonas um tipo antropológicorelativamente uniforme. O escravo negro não teve papel saliente nessetipo de atividade. Pelo contrário: quando penetrava nessas zonas eracomo perturbador, como quilombola. À agricultura já estavam acostu-madas, no entanto, as populações africanas, inclusive com o instituto da

(4) Em 1829, Walsh dava como entrados no Brasil, somente pelo porto do Riode Janeiro, 52.600 escravos, número que decresce, em 1842, em consequência de maiorrepressão ao trafico, para 17.435, de acordo com cálculos feitos por Pereira Pinto,baseado em dados do "Foreign Office" e citados por Osório Duque Estrada, no seulivro "Da Regência à Queda de Rosas", no capítulo dedicado a "Tráfico, Coloniza-em 1851 para 3.287 escravos contrabandeados. Ainda sobre o tráfico, PanidíáCalógeras, dispondo de documentos do Itamaratl, fornece-nos dados interessantes nolivro "A Abolição" (Rio, 1918). Este total cresceria, para 60.000 em 1848 e cairia,çao. Finanças", p. 321 ss.

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escravidão, existente em inúmeras tribos. 5 Além disto o domínio porparte de grandes grupos africanos de uma técnica agrícola relativamen-te adiantada, o conhecimento da fundição de metais, o seu uso, e outroshábitos trazidos da África, davam aos elementos negros possibilidadesde maior rentabilidade no trabalho de que aos indígenas. 5~A

As antigas feitorias, os primitivos núcleos colonizadores esparsosno litoral, foram substituídos — com a presença do escravo negro —• pelosengenhos, pelos latifúndios agrários e surgiu em seu lugar, já estratifi-cada e com os seus contornos gerais definidos, uma sociedade cheia decontradições internas. Essas contradições chegarão à tona da sociedadeatravés dos movimentos que agitarão todo o período colonial, entrandopelo primeiro e segundo reinados.

As levas sucessivas de escravos que entravam pelos diversos portoseram, de um lado, o elemento fundamental da expansão económica daColónia, criando a renda global que era canalizada para fora e, de outro,a argamassa principal da expansão demográfica verificada então. Paraavaliarmos o crescimento demográfico verificado com o desembarqueininterrupto de escravos, basta dizer que, no ano de 1583, as estimati-vas davam à Colónia uma população de cerca de 57.000 habitantes.Deste total, 25.000 eram brancos, 18.000 índios e 14.000 negros. Se-gundo cálculos de Santa Apolônja, em 1798, para uma população de3.250.000 habitantes havia um total .de 1.582.000 escravos dos quais221.000 eram pardos e 1.361.000 negros, sem contarmos os negros li-bertos que ascendiam a 406.000. Para o biénio de 1817-1818 as estima-tivas de Veloso davam, para um total de 3.817.000 habitantes, a cifrade 1.930.000 escravos dos quais 202.000 eram pardos e 1.361.000 ne-gros. Havia também uma população de negros e pardos livres que chega-vam a 585.000. Há quem estime em 50.000 o número de negros impor-tados anualmente. Foi quando o escravo africano passou a ser chamado"pés e mãos dos senhores" e Angola "nervo das fábricas d.o Brasil".O historiador Afonso de E. Taunay teve oportunidade de estudar o assun-to, analisando criticamente as principais fontes dos historiadores que seocupam do tráfico. Rocha Pombo estima em quinze milhões o montan-

(5) No próprio Quilombo de Palmares, para manter as bases de unia econo-mia que se assentava quase exclusivamente na agricultura, os ex-escravos tiveram dfestabelecer a escravidão interna na república. Os negros feitos prisioneiros à forçaeram transformados em escravos que trabalhavam para aqueles que voluntariamentehaviam fugido para o quilombo. Particuliinzaremos os aspectos mais importantes dofato no capitulo sobre o assunto. Em multas tribos africanas o instituto da escravidãojá era conhecido e algumas levas enviadas para o Brasil eram constituídas de negrosque, na própria África, eram escravos.

(5-A) "Houvessem chegado ao Brasil imigrantes com alguma experiência manu-fatureira, e o mais possível é que as iniciativas surgissem no momento adequado,desenvolvendo-se uma capacidade de organização e técnica que a Colónia não che-gou a conhecer. Exemplo claro disso é o ocorrida com o metalurgia do ferro. Sen-do grande a procura desse metal numa região onde os animais ferrados existiampor dezenas de milhares —• para citar o caso de um só artigo — e sendo tão abun-dantes o minério de ferro e o carvão vegetal, o desenvolvimento que teve a siderurgiafoi o possibilitado pelos conhecimentos técnicos dos escravos africanos" (Celso Fur-tado: "Formação Económica do Brasil", Rio, 1959, p. 99).

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te de negros entrados pelos diversos portos durante a escravidão, núme-ro que Taunay acha exageradíssimo. Renato Mendonça cifra-o em qua-tro milhões oitocentos e trinta mil. Outros números são ainda arrola-dos pelo conhecido historiador paulista.6

No século XVIII que — segundo Calógeras — foi o de maior impor-tação negreira, a média chegou a 55.000 entradas anualmente.7

Essa imensa massa escrava é que irá impulsionar a nossa economiae esmagará quase inteiramente o trabalho livre que existia antes do seuaparecimento em diversas faixas da economia brasileira. O trabalho ma-nual passa, por isto, a ser considerado infamante. Somente praticávelpor escravos- A economia brasileira irá assentar as suas bases nagrande agricultura monocultora, no trabalho escravo produzindo paraos senhores de escravos, terras e engenhos, sob o monopólio político ecomercial da Metrópole. 8

Portugal canalizará para si o resultado de quase toda a renda atra-vés da exportação. Nossa produção era completamente desvinculada domercado interno: existia como parte do mercado mundial e somente cir-culava fora de nossas fronteiras, afora o setor de subsistência. Aquiera imobilizada nas fontes de produção ou nos portos para embarque.O seu valor de uso ficava além das fronteiras. Por isto mesmo o seudinamismo só existia na medida em que essa produção era solicitadapelos mercados europeus. Outros géneros ou produtos que os não desti-nados à exportação para a Metrópole têm o seu plantio ou fabrico proi-bidos, através de alvarás e avisos. A plantação de tabaco será impe-dida. Atividades como as de ourives e outras, eram perseguidas e osseus praticantes punidos. Estava, assim, constituída e estabilizada mo-mentaneamente nossa sociedade em moldes destinados exclusivamente aproduzir géneros exportáveis — no nosso caso particular o açúcar —apoiada socialmente nos donos de terras, os grandes latifundiáriosagrários. "»

(6) Taunay. A. de — "Subsídios para a História do Tráfico Africano no Brasil",S. Paulo, 1941, pp. 245 ss.

(7) As estatísticas — se é que podemos chamar o que dispomos sobre o assun-to de estatísticas — .referentes ao número de escravos entrados são todas discutí-veis . A de Calógeras que citamos acima — extraída do livro "Formação Histórica doBrasil" — é muito contestada. Há inúmeras outras, todas, porém, em maior oumenor número sujeitas a críticas. Existe um trabalho de Artur Ramos com detalhessobre o assunto para o qual remetemos o leitor: "Introdução à Antropologia Brasi-leira", l» vol.. Rio, 1943.

Sobre o tráfico a. bibliografia é extensa, mas não muito exata e, para o cará-ter do nosso trabalho, uma ideia aproximada das suas proporções é suficiente paraa interpretação dos fatos subsequentes.

(8) Para constatar o caráter colonial de nossa economia na época: Cf: — "Cultura e Opulência do Brasil", André João Antonil, Bahia. 1950.

(9) J. Norberto de Souza e Silva escreve, referindo.se a Minas Gerais, maspintando um quadro que podemos generalizar à Colónia no seu conjunto, que "ospovos da rica indústria da capitania viviam no maior descontentamento possível pelaproteção que se dava à indústria manufatureira da mãe-pátria em detrimento dopaís. Para verificar e animar os estabeoimentos do reino e da saída fácil às suasimperfeitas manufaturas era necessário aniquilar as fábricas brasileiras. O sopro,que era vivificante e animador no Reino, torna-se mortífero na Colónia. Não viu

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Dando moldura geral ao quadro do tempo quando estavam as gran-des nações colonjzadoras no seu fastígio, travava-se no mundo renhidaluta entre elas, que marchavam na senda do desenvolvimento capitalista,por vias comerciais e marítimas, fontes de matérias-primas e novosmercados. Portugal decadente tinha de contentar-se com as regiões queele próprio descobrisse, já que não podia disputar a partilha com paísescomo Inglaterra, Holanda e França. Isto não quer dizer que os paísescitados não se interessassem pelas novas terras descobertas. Tambémparticiparam desses acontecimentos, apenas com características diferen-tes. Essas nações dominavam os nativos de áreas geográficas recém-descobertas, exterminando-os sem dó ou piedade, arrancando-lhes as ri-quezas, explorando-lhes o trabalho quando se deixavam dominar ou re-tirando parte de sua própria população para sei- vendida como merca-doria no mercado mundial, como escrava. A Holanda era, então, comoassinalara Marx, a República burguesa típica da Europa e competia coma Inglaterra na posse daquelas rotas e colónias. A Inglaterra, por seuturno, após encarniçada refrega, saiu vitoriosa, tornando-se senhoraabsoluta dos mares, a dominadora do tráfico negreiro. Pela Ata de Na-vegação de 1651 impunha que as mercadorias procedentes da Ásia, Áfri-ca e América só fossem transportadas por navios britânicos, assestandoum golpe mortal na Holanda, sua principal competidora. Um diplomataexclamaria: "É meu dever dizer-vos que agora estamos tanto nós comoo mar em poder da Inglaterra". 9~A O tráfico de escravos africanos foium dos motivos mais importantes no aguçamento das contradições entreessas nações. A burguesia comercial auferia lucros elevadíssimos do co-mércio de carne humana. Como disse Marx: os comerciantes inglesestransformaram a África no "lugar onde eram caçados os homens ne-gros". No começo do século XVIII a Inglaterra assegurou o monopóliodo tráfico negreiro para a Espanha e suas colónias da América do Sul.10

l

o governador D. António d!e Noronha sem. espanto e admiração o aumento oojiside.rável das fábricas mineiras e a diversidade doa géneros de suas manufaturas a pon-to de se lhe afigurar que em pouco tempo ficariam os habitantes da capitania inteira-mente Independentes das fábricas do Reino ( . . . ) Proibindo-as, foi o seu expe-diente adotado pelo governo da Matrópole que não só o sancionou como estendeu aproibição a todas as capitanias do Brasil. Completou o facho dos esbirros incendia,rios por conta do governo a obra de destruição — os teares desapareceram!" (J. N.Souza e Silva: — "História da Conjuração Mineira", I? vol., R. de Janeiro, p. 63).O que o autor narra não é uma atitude esporádica mas a sistemática da política daMetrópole em relação ao Brasil.

(9-A) "Já em 1621 uma ordenança real havia proibido à Virgínia exportar osseus produtos para o estrangeiro, sem os ter previamente desembarcado na Ingla-terra, mas aquela ordenança, fica quase letra morta, graças ao tráfico dos holande.sés que levavam para o seu país uma parte do tabaco de Virgínia e, no retorno, a for-neciam de mercadorias europeias.

Bem mais importante e geral é o Ato de navegação de 1651, estabelecendo emsubstância: l" que as mercadorias provenientes da Ásia, África ou América não po-deriam ser transportadas para a Inglaterra senão por navios pertencente a inglesese cuja equipagem fosse na maioria também inglesa; 2': as mercadorias provenientesda Europa não poderiam ser transportadas para a Inglaterra ou suas dependênciassenão por navios ingleses ou pertencentes ao pais produtor" (Henri See: "As Ori-gens do Capitalismo Moderno", Rio, 1959, p. 136-37).

(10) Efimov; A. e Freiberg, N.: "História da Época do Capitalismo Indus-trial", Rio, 1945, I vol., p. 10

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Em 1776 tinha quinhentos mil escravos em suas colónias da América doNorte. Em 1792 existiam mais de 132 embarcações para essa mesmafinalidade. O tráfico negreiro viria contribuir em escala ponderávelpara a acumulação primitiva do capital que serviu de alicerce à socie-dade atual.

Obtida a supremacia do tráfico de escravos, a Inglaterra dele se be-neficiará enormemente durante dilatado período. O Porto de Liverpoolnasceu de um entreposto de escravos. A África tornou-se — em conse-quência— uni campo de pilhagens e grande parte do seu devassamentogeográfico está subordinado aos interesses dos traficantes de escravos.Desde muito cedo, por isto, o Continente Negro foi vítima das naçõesem fase de expansão capitalista. As populações africanas passaram aser mercadoria de exportação já que o mercado africano não existia deum lado e, ao mesmo tempo, abriam-se áreas novas de exploração quesolicitavam, no trabalho das plantações, mão-de-obra barata, de vezque os exploradores locais do trabalho, embora aparentemente fossemtopp-poderosos nas colónias, tinham de produzir mercadorias a preçoínfimo para suprir as solicitações das metrópoles. Para isto, necessita-vam da mão-de-obra escrava. Como as principais nações haviam trans-formado o tráfico em empresa comercial supridora da mão-de-obra, osprodutores das colónias tinham de estar subordinados, direta on indire-tamente, ao supridor de escravos.

As nações mais importantes digladiavam-se no cenário internacio-nal. A França havia precedido a Inglaterra na política de subordinaçãoda África. Pelo célebre Tratado de Utrecht a Inglaterra obtinha, portrinta anos (1913-1743) o contrato dos asíentos e por ele se comprome-tia a introduzir na América Espanhola 4.800 escravos. O soberano daEspanha recebeu, como recompensa, da "Companhia Inglesa de Guiné",a quantia de 200.000 coroas pela transação.

Muito antes deste fato, porém, (em 1662), era fundada a "Com-pany of Royal Adventures of England", destinada a explorar o comér-cio negreiro. O incremento à pilhagem foi de tal monta que um histo-riador chegou a avaliar em mais de vinte mil almas o número de escra-vos arrancados anualmente da África. Cresciam astronomicamente asproporções do comércio negreiro com a política de Carlos II."

Essa política de pilhagem por parte da Inglaterra, cedo entraráem choque com as outras nações que igualmente desejavam a posse dosmercados negreiros. A França entrará em antagonismo aberto com osingleses e já muito antes iniciará um processo de dominação dos portosafricanos objetivando a proporcionar os escravos necessários ao seucomércio. O arrendamento do asiento será concedido à "Companhia deGuiné" que se comprometerá a fornecer quatro mil e oitocentas "pe-

di) Cf. Artur Ramos: "As Culturas Negras no Novo Mundo" R. de Janeiro,1937, p. 81 BB. '

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ças" "2) anualmente, durante dez anos (1702-1712). Já muito antes, po-rém, inúmeras outras companhias haviam sido fundadas com o fim deexplorar o comércio negreiro. Em 1625 a "Compagnie de lies de 1'Amé-rique" abarrotava os portos antilhanos de escravos. Luís XIV ofereceuum prémio de dez libras por cabeça de negro desembarcado nas ilhasda França, mais uma gratificação especial às tripulações dos navios ne-greiros. Em 1679 a "Companhia de África ou do Senegal" conseguiráo monopólio do tráfico. Pelo tratado firmado com o governo francês,comprometeu-se a desembarcar nos portos das Antilhas francesas 15.000escravos em oito meses, além de fornecer o número solicitado pelo mo-narca para as suas galeras. Como diz Rodolfo Ghioldi "a acumulaçãoprimitiva do capitalismo íez ressurgir a escravidão na América depoisde séculos extinta a escravidão antiga". u

O problema apontado por Ghioldi de modo genérico pode ser com-preendido em termos de análise objetiva somente através de um apanha-do histórico, mostrando-se as diferenças entre o surgimento da escravi-dão clássica, decorrência da decadência da sociedade gentílica antigae o aparecimento da escravidão moderna que surgiu como um elementoconstitutivo inicial do capitalismo. A segunda escravidão surgiuquando, em determinado momento histórico, os setores detentores dopoder económico aplicavam os seus excedentes, as suas reservas mone-tárias, numa empresa comercial que se expandia através do domínio deuma área — África — na qual buscava a mercadoria para venda; e daexploração de outras áreas — Brasil, Antilhas, países outros da Amé-

(12) Sobre o conceito de "peça" escreve Maurício Goulart: "Em minúcias, po-rém, o que era peça de índias f

O .negro sadio, aparentando 30 a 35 anos, de 7 quartas de altura, até ai estãotodos de acordo. De 7 quartas de vara, 1,75 mts., estatura regular de negro adulto,escreve João Lúcio de Azevedo, nas "Spocas de Portugal Económico". De 7 quartas,valendo a quarta cerca, de 26 étc., diz Scelle, na Traite. Cálculo idêntico ao de Rin-chon para o qual, igualmente, a medida padrão seria de 1,82 mts.

Corresponde porém a vara, medida antiga de comprimento a 5 palmos craveirosou, em linguagem mais familiar a 110 cm. Taunay pergunta — acho que com razão— onde João Lúcio foi buscar a sua vara de l metro da qual sete quartas somavam1,75? Onde a encontraram, os outros, de 104 cms. * Por outro lado, no entanto,se atribuímos à quarta 27,5 cm. teríamos desde logo 1,925 m como sendo a estaturaregular do negro adulto, o que é um despropósito.

Mas, de qualquer forma, aceito um ou outro padrão, o mais alto, ou o mais bai-xo, é evidente que a maioria dos negros não podia satisfazer às exigências requeri.das para a peça da índia. O mais comum, ao contrário, era serem necessários ume melo, ou dois pretos, para satisfazer a peça.

Contrariando, por exemplo, com o assentista Marin, em 1693, a, Companhia deCachau e Cabo Verde, ela própria, daí a pouoo, concessionária do contrato, obriga-sea fornecer anualmente 4 mil negros de diversas categorias, de maneira a completar2 500 peças da índia. Previsão de mais de 60% de pretos que de peças.

No ramerrao do tráfico adotara-se uma escala prática de íalores: 2 negros,dos 35 aos 40 anos, valiam l peça, como as crianças entre 4 e 8 anos, 3 molecões,de 6 a 18 anos, 2 peças. As crianças de peito, levadas pelas mães, não entravam nocômputo.

Com o tempo, — de tal modo se comercializa esta indústria assassina, a expres-são é de João Lúcio de Azevedo — a conta das importações passou a ser feita nãomais por peças da índia, mas por tonelfldas". (Maurício Goulart: "A EscravidãoAfricana no Brasil", S. Paulo, 1950 (2» ed), pp. 102-103.

(13) Ghioldi, R. — "Gilberto Freyre, um passo atrás no Pensamento Brasileiro","m "Para Todos", n» 11 (segunda fase).

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rica do Sul — que consumiam a mercadoria que elas levavam: o escravo.Isto é, a escravidão moderna surgiu no momento em que o escravo nãoera mais um homem alienado dentro da sua própria estrutura local, masse alienava por forças exteriores, por um conjunto exógeno de circuns-tâncias. Em outras palavras, a escravidão era explorada pelas metró-poles sem que, nos seus sistemas de estratificação social locais se veri-ficasse esse tipo de trabalho.

O que se verificou foi exatamente o contrário: a existência da escra-vidão nas colónias proporcionou o desenvolvimento do capitalismo indus-trial nas metrópoles.

Podemos dizer, portanto, que, como cimento dos alicerces da socie-dade capitalista, a escravidão durante um período de tempo relativamen-te longo, foi um dos seus elementos mais importantes.

Com a revolução burguesa da Inglaterra (1642-1653) a economiabritânica sofreu uma evolução no sentido de ver substituídas as relaçõespré-capitalistas que ainda subsistiam em determinados setores, especial-mente no setor fundiário, por outras que representavam a estratificaçãodo capitalismo industrial. Inicialmente teve necessidade do tráfico deescravos para que o capitalismo se consolidasse. Mas, a continuação pro-longada da escravidão, quando o capitalismo industrial já se havia con-solidado em toda a sua plenitude, cedo se transformou em entrave aodesenvolvimento da economia inglesa. A África não era apenas umaregião onde se preava o negro. Era para a "altiva Albion" um mercadoem potencial para as suas manufaturas. Lança-se, então, a Inglaterra— depois de ter sido a campeã do tráfico durante anos — na campanhapor todos conhecida de extinguir o tráfico negreiro e a escravidão. Ospaíses que continuam realizando essa espécie de comércio sofrerão ime-diatamente e de maneira frontal as consequências da mudança de ati-tude da Inglaterra frente ao problema da escravidão. Afirma, por isto,um scholar brasileiro: "O todo-poderoso Gladstone ameaçava o Brasil aocumprimento dos tratados a ponta de espada e pela guerra até o exter-mínio." E pode-se acreditar que isto significaria alguma coisa mais quesimples figura de retórica. . .

O governo brasileiro, vendo a ineficácia dos seus platónicos protes-tos, apoiados embora nos mais "sólidos princípios dos direitos das gen-tes", como eruditamente proclamava nas suas notas a chancelaria doImpério, mas que não traziam a sanção dos canhões e das baionetas, teveafinal de ceder.

A lei promulgada em 4 de setembro de 1850 seguida de outras pro-vidências e da enérgica atitude do Ministro Eusébio de Queirós, estan-cou por completo, em menos de d.ois anos, o tráfico africano. Efetua-ram-se depois de 1852 apenas dois desembarques, sendo contudo apre-endidos os negros contrabandeados. Estavam plenamente satisfeitas, asexigências da Inglaterra... "~A

(13-A) Prado Júnior, Caio — "Evolução Política do Brasil e Outros Ensaios",São Paulo, 1957, p. 85.

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Objetivando executar essa política ditada pelos seus interesses eco-nómicos, a Inglaterra tomará atitudes que muitas vezes parecerão con-traditórias mas que, no seu conteúdo mais profundo, refletem o desejode desenvolver suas indústrias, seu comércio, finalmente defender aquiloque exprime o capitalismo — o lucro. No caso específico da escravidãopodemos citar o exemplo da posição assumida pela diplomacia inglesafrente ao regime servil em nosso país e nos Estados Unidos. Enquantocombatia o tráfico e a escravidão no Brasil, a Inglaterra apoiava osConfederados na guerra civil norte-americana.

A Inglaterra necessitava do algodão produzido no Sul dos EstadosUnidos para alimentar a sua indústria têxtil, uma vez que, com a aplica-ção do algodão nesse setor em substituição à lã, os industriais ingleses ti-veram de depender dos mercados produtores do "ouro branco". Mais dequatro milhões de pessoas viviam, direta ou indiretamente, dessa indús-tria. Os Estados Unidos tinham o monopólio do algodão, fato que jáprovocara uma luta sub-reptícia entre as duas nações. Em 1850 a In-glaterra tentou comprar algodão de fontes asiáticas, sem êxito. Exata-mente no ano em que conseguia com a Lei Eusébio de Queirós a extin-ção do tráfico no Brasil...

Na guerra civil estadunidense o bloqueio por parte das forças daUnião dos portos dos Confederados ameaçava seriamente o abastecimen-to das fábricas inglesas. A crise já se fazia sentir nas Ilhas Britânicase algumas fábricas da região de Lancashire passaram a trabalhar ape-nas três dias na semana. Nessa conjuntura os ingleses tinham de apoiaros escravistas do Sul.u

A extinção total e efetiva do tráfico no Brasil — verificada a par-tir de 1850 com a Lei Eusébio de Queirós — além das consequênciaseconómicas que veremos mais adiante — contribuiu para um afluxo de-mográfico, desta vez despovoando as Províncias do Norte em face danecessidade de braços para a lavoura cafeeira, como antes — emborapor outros motivos e em condições diversas —- idêntico movimento setenha verificado para o centro da Colónia.

As Províncias do Norte, decadentes, foram sendo despovoadas par-cialmente do braço escravo e viram-se na contingência d.e substituí-lospelo trabalho livre. As fazendas de café de São Paulo e do Estado doRio escancaravam as bocas ávidas de material humano. Tavares Bastosanalisava no seu tempo a questão: mostrava que o comércio interior deescravos seguia a direção Norte-Sul e, de janeiro de 1850 a abril de1862 — durante os doze anos, portanto, que se seguiram à extinção dotráfico — havia alcançado a cifra de 37.408. Analisando a questão des-tacava o fato de "já estarem em Pernambuco, no Rio Grande do Nortee Paraíba, os homens livres admitidos por salário ao trabalho dos pró-prios engenhos e plantações de açúcar. <15)

(14) Marx, K. e Eng*ls, F.: — "La Guerra Civil em los Estados Unidos",

(15)' "Tavares Bastos, A. C. — "Cartas do Solitário", S. Paulo, 1938, p. 460.

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O mesmo fenómeno registrava Tavares Bastos em relação à lavourado café no Ceará. Em outro local, ainda afirmava, analisando o mesmoproblema o autor das "Cartas do Solitário", que o Amazonas, "onde oíndio é o trabalhador do campo, o barqueiro e o criado, apenas possui851 escravos sobre uma população de 39.408 almas". (16) No Ceará, acres-centava, "a população é de um escravo para 14 homens livres". Em se-guida apontava as Províncias do Eio Grande do Norte, Paraíba e Ala-goas onde o trabalho escravo já não era preponderante na agricultura.

O latifúndio escravista do Nordeste e do Norte entrava em deca-dência e surgia em linha ascendente na economia nacional — o café. E afazenda de café tinha outras características que não se coadunavam coma manutenção do trabalho escravo.

A extinção do tráfico negreiro, de um lado, criou condições propí-cias para que os coronéis decadentes, para quem o escravo .ia era umónus mais do que fonte de receita, pudessem vendê-lo às áreas do café; deoutro lado, permitiu uma fase de especulação em larga escala com movi-mentos de capitais que eram anteriormente aplicados pelos traficantesdo comércio de carne humana e foram transferidos para outros ramosda economia nacional. Inúmeras sociedades anónimas foras criadas. Em1851 funda-se o segundo Banco do Brasil. A primeira linha telegráficaé inaugurada em 1852 e um ano após, funda-se o Banco Rural Hipote-cário, que chegou a distribuir dividendos superiores aos do Banco doBrasil. Em 1854 inaugura-se a primeira linha de estrada de ferro li-gando o porto de Mauá à estação de Fragoso (14 quilómetros). Umano mais tarde teremos outra estrada de ferro funcionando: a que li-gará o Rio de Janeiro a São Paulo. De 1850 a 1860, escreve um econo-mista — se concederam 71 privilégios industriais, para a incorporaçãode 14 bancos de depósitos e descontos e alguns de emissão; criaram-se3 caixas económicas, organizaram-se 20 companhias de navegação avapor, 23 companhias de seguros, 4 de colonização, 8 de estradas deferro, 2 de rodagem, 4 de carris urbanos com tração animal, 8 de mine-ração, 3 de transportes e 2 de gás.17 As primeiras linhas de navegaçãotransoceânicas também datam dessa época. Para a realização de muitosdesses empreendimentos — e não incluímos neles os que podem ser facil-mente identificáveis como sendo de capitais alienígenas — contribuiu ocapital dos antigos traficantes que, como disse Mauá ao explicar as ori-

(16) Tavares Bastos, A. C. — "Jornal do Comércio", n' 239, de 1865, apudPerdigão Malheiro: "A Escravidão no Brasil", S. Paulo, 1944, 2° vol., pp. 356 ss.

117) Holanda, S. B.: — "Raízes do Brasil", R. de Janeiro, 1948, p. 190 ss.Iniimeros outros fatos importantes poderiam ser aduzidos aos mencionados por

Sérgio Buarque de Holanda. Ó impulso da economia nacional poderá ser verificadoatravés do seguinte: "De 1850 a 1860 se concederam 71 privilégios industriais, paraa incorporação de 14 bancos de depósitos e descontos e alguns de emissão; criaram-se 3 -caixas económicas, oraganiearam-se 20 companhias de navegação a vapor, 23companhias de seguros, 4 de colonização, 8 de estradas de ferro, 2 de rodagem, 4 decarris urbanos com tração animal, 8 de mineração, 3 de transporte e 2 de gás."(Cf. Castro Carreira: "História Financeira", citado por Gilberto Amado: "A Margem da História da República", Rio de Janeiro, 1924, pp. 59.60).

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gens do segundo Banco do Brasil, "se viram repentinamente deslocadosdo seu ilícito comércio." 17-A

Viria, por outro lado, a extinção do tráfico incrementar a imigraçãode colonos europeus. Foram criadas 4 companhias de colonização, comovimos — datando mais ou menos dessa época o estabelecimento de umacorrente migratória contínua e estável no país-

Antes disto, porém, já como sintoma de decomposição da escravi-dão, as colónias de estrangeiros eram instaladas em alguns pontos doterritório nacional. Devemos salientar, contudo, que as primeiras ten-tativas de associar o trabalho escravo e o livre fracassaram. As coló-nias, por isto, na sua grande maioria estiolaram-se de maneira lamen-tável. O fato aliás era notado por viajantes que nos visitavam na época,como Burton, que aqui esteve em 1868 e assim se expressou sobre oassunto: "todos estão prevenidos do fato que a imigração e a escravi-dão dificilmente podem coexistir".l8

De fato Burton tinha carradas de razão. As tentativas feitas emalgumas fazendas de café de São Paulo não lograram êxito. Aumentava,

(17A) Mauá escreve textualmente: "Acompanhei com vivo interesse a soluçãodesse grave problema; compreendi que o contrabando .não podia reerguer-se desde quea. vontade nacional estava ao lado do Ministério que decretava a suspensão do tri.fico. Reunir os capitais que se viam repentinamente deslocados do ilícito comércioe fazê-los convergir a um centro donde pudessem ir alimentar as forças produtivasdo pais, foi o pensamento que me surgiu na mente ao ter certeza de que aquelefato era Irrevogável ( . . . ) Consegui formar uma diretoria composta dos melhoresnomes da praça, como é sabido, diretoria que com pequena alteração me acompa-nhou durante a vida curta do primitivo Banco do Brasil" (Visconde de Mauá: "Au-tobiografia" com prefácio e anotações de Cláudio Ganns, R. de Janeiro 1942, pp.126-27).

(18) Burton, R. F.: "Viagens aos Planaltos do Brasil" (1868), S. Paulo, TomoI, p. 432. Zaluar também afirma, em seu livro de viagem que, em município paulistaencontrou um representante dos mais conhecidos da lavoura que com ele discutiu oomeios de "suprir de braços livres os trabalhos da lavooira, tornando os escravos ho-mens morigerados". Cf.: E. Zaluar: "Peregrinação peda Província de S. Paulo", S.Paulo, 1945, p. 12 — Tavares Bastos discutiu também o assunto escrevendo: "Emvez de promover reformas indicadas recentemente lembra.se um ministro de renovara importação de coolies. Fornecer braços à lavoura é o pretexto com que se invocaa intervenção do governo para tal fim .Condenamos, vivamente condenamos, estedesvio da opinião mal esclarecida,: não é essa a imigração de que carecemos. Estérilpara o aumento da população, dispendiosa, bárbara como o próprio tráfico de negros,ela é acompanhoda de um triste cortejo de imoralidades. As colónias francesas,espanholas e inglesas têm de sobra expiado o erro de importarem índios e chins: nãonos aproveitará a sua longa experiência? A indignação do mundo persegue estenovo tráfico: haveremos de afrontá-la? Demais, se vamos emancipar o escravo cum-prindo um dever de humanidade, como é que operamos ao trabalhador liberto, otrabalhador asiático concorrente insuperável pela modalidade de saflário? E quempaga as despesas dessa importação hostil ao liberto? O povo inteiro e, portanto, opróprio liberto prejudicado. Isto é injusto e impolítico: é injusto aumentar comíndios e chins a oferta do trabalho, abaixo do salário ao extremo limite; é taipoliticocriar e dirigir contra o negro indígena, contra o nacional, concorrência formidável doasiático. Não substituiremos a escravidão pelo dissimulado trabalho servil dos chinsembrutecidos ou de negros reduzidos à miséria. Formação da pequena propriedade,independência Industrial do povo, independência do sufrágio tudo isso virá somen-te da verdadeiro trabalho livre remunerado por seu justo valor". (A. C. TavaresBastos: "A Província", Rio de Janeiro, 1937 pp. 273.74).

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por outro lado, eriomiemente, o número de imigrantes que para cá vi-nham após. a abolição, não como membros de colónias, mas como imi-grantes qie tinham a sua viagem financiada, vendiam antecipadamentea sua força de trabalho e eram engajados no processo produtivo comotrabalhadores livres. De 54.990 em 1887 passou a ser 160.000 em 1889.Antes da ibolição com a extinção do tráfico negreiro, houve quem pen-sasse em importar coolies chineses para trabalhar na nossa agricultura.

Alguns chegaram a vir para o Brasil, não se adaptando, porém, aosistema de trabalho vigorante. Teófilo Otôni chegou a levar muitos chi-neses para trabalharem na construção de estradas, mas depois de teremsido importados pelo Ministro do Interior em 1855, ficaram morrendoà míngua. Teófilo Otôni empregou-os naquele mister, no que foi infelizpois "os tratavam dum modo por demais duro", conta uma testemunhade vista.18*

Vejamos, agora, o ritmo em que surgiram as colónias de imigran-tes: em 1812 (antes, portanto, da Independência) é fundada uma emEspírito Santo. Outra — a chamada D. Leopoldina — é instalada, em1817, no Sul da Bahia. Seguem-se inúmeras outras; Nova Priburgo, em1819. Forquilhas e Torres, no Rio Grande do Sul, já após a independên-cia, em 1826; São Leopoldo, na mesma Província, em 1824.

Em Santa Catarina a primeira tentativa de estabelecimento de imi-grantes dá-se no ano de 1827. (I8) Todas porém tinham um caráter mais

(18A) "Para iniciar nova era no desenvolvimento do Brasil, o Ministro doInterior, em 1855, anunciara a importação de chineses e, de fato, logo depois entra-ram algumas centenas de projetistas de rabicho do Celeste Império no Império deS. Cruz. Mas ninguém sabia o que fazer com eles e os pobres-diabos não tardarama verem-se numa situação premente ( . . . ) Teófilo Otôni lembrou-se então de levaro maior número possível desses homens para o Mucuri, tomou a seu cargo grandenúmero deles e empregou-os na construção de estrada. Mas deram.se muito malrevoltaram-se uma vez, porque os tratavam de um modo por demais duro.

— Que fazem esses chineses hoje — perguntou o Dr. Ernesto ao português.E ele respondeu com toda franqueza, que só trabalhavam bem, quando os sovavambastante; bonita conditio sine qna, non para o desenvolvimento da Empresa Mucuri.

Prosseguimos a viagem e, depois de uma hora, deparamos longa fila de chine-ses, guiados por um feitor munido de .um cacete, que. depois do descanso do melo-dla,iam continuar o trabalho iniciado pelos negros ( . . . ) Podiam ser 50 a 60 chineses,na maioria moços, fortes, de menos de 30 anos e bem parecidos. Todos vestiam ape-nas as calças curtas chinesas e muitos quase nem estas, de maneira que mostravambem os corpos musculosos, deixando adivinhar uma raça de homens fortes. Causavaadmiração a cor escura da maior parte deles, tão escura que podiam tomar-se pormulatos escuros ou mesmo por negros pardo-escuros, excetuando, naturalmente, acabeça ( . . . ) Quase impossível ver algo mais miserável do que esse acampamentodos chineses. Certo número de tendas estragadas pela exposição ao tempo, arma-das em dois grupos, permeáveis ao sol e & chuva, servindo igualmente para sãos edoentes, um espetáculo revoltante, repugnante, que a mais calejada desumanidadeacusaria não produziu a menor impressão na fisionomia do feitor." (Robert AveLallemant: "Viagem pelo Norte do Brasil" (no ano de 1859), R. de Janeiro. 2 vols. 1."vol., pp. 184, 185, 186).

(19) Ainda sobre a Imigração como tentativa de substituição do trabalho es-cravo pela mao.de-obra livre, devemos nos referir às experiências feitas pelo SenadorVergueiro na sua Colónia de Ibicaba e às de outros fazendeiros paulistas. No par-ticular um documento Indispensável ao conhecimento do assunto é o livro de ThomazDavatz "Memórias de um Colono no Brasil" (Trad. de Sérgio Buarque de Holanda).

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experimental do que mesmo de participação direta na produção eco-nómica global, vindo efetivamente o imigrante entrar como injeção pon-derável na vida económica após a abolição do tráfico, na área de pro-dução cafeeira.

As consequências diretas na economia trazidas com a extinção dodesembarque de africanos não serão tão profundas como à primei-ra vista poderão parecer. Houve mesmo na agricultura como no setordo comércio e das finanças um equilíbrio que não se esperava. PerdigãoMalheiro mostra como o café, já principal género de exportação — oaçúcar, o algodão, o fumo, a goma-elástica, a erva-mate e o cacau man-tiveram-se em nível ascendente de produção, tendo oscilado apenas a decouro e diminuído a de aguardente, por haver desaparecido um dosprincipais mercados consumidores do produto, que era a África.

A extinção do tráfico foi uma etapa na marcha da Abolição. Ex-tinto o comércio negreiro — e esse fato todos já previam — a aboliçãotornou-se uma simples questão de tempo e oportunidade. O movimentoabolicionista passou para a ordem do dia até 1888, quando será defini-tivamente derrogada a escravidão entre nós. Inicia-se, com a extinçãodo tráfico, uma nova etapa na luta sustentada pelos abolicionistas emvárias frentes, tendo de enfrentar ainda um período de árduas labutas.

A extinção do tráfico garroteou as forças escravocratas, cortando-lhes as raízes económicas, deixando-as sem possibilidade de prolongarpor muitas gerações a escravidão. Isto é, sem o tráfico negreiro, a es-cravidão não podia sobreviver por muito tempo, porque sem as levas deescravos que vinham substituir aqueles que morriam ou servir à solici-tação de novas áreas de atividades, cedo haveria o encarecimento proi-bitivo do escravo. Fato que logo se verificaria.

S. Paulo, s/d., onde as relações de trabalho estabelecidas no chamado "sistema deparceria" são analisadas com cuidado e penetração. A obra traz, ainda, em apêndi-ce, vários documentos Importantes para a compreensão do problema. Aliás, o livrode Davatz não somente neste particular é interessante, mas também como depoimen.to que reflete a situação do pais na época, a decomposição da escravidão e as tenta-tivas de coexistência do trabalho livre e escravo. As limitações do chamado "siste-ma de parceria" e suas insuficiências são também focalizadas num enquadramentorealista e algumas vezes surpreendente. O autor, por sinal, foi mestre-escola no esta-belecimento do Senador Vergueiro e liderou uma revolta de colonos contra a situaçãoem que se encontravam, movimento que despertou grande alarma na época. A expertencia foi analisada, ainda, em números sucessivos da revista "O Auxiliar daIndústria Nacional". Nessa publicação escrevia entre outras coisas o Sr. CarlosPerral Gentil que "os proprietários etc., etc., habituados a só verem empregar-se bra-ços escravos nos trabalhos agrícolas, consideravam os brancos, cultivadores pessoais,como uma raça que apenas a cor diferençava daquela: e baseando seu raciocínio nes-te princípio erróneo, não tinham para os colonos nem tratamento consentâneo co:nos costumes europeus, nem mesmo opinião favorável em razão do valor e considera-ção que em toda a parte merece o homem laborioso" (N° 9, março de 1852, p. 330).A mesma publicação insere em outros números artigos focalizando o problema. Háum trabalho assinado por F. L. C. Burlamaqui sobre "Trabalho Livre", onde oautor mostra a necessidade da substituição da escravidão, não baseado em conside-rações filantrópicas, mas à base de uma análise em que mostra a maior rentabilidade da mão-de.obra livre. (N" l, pp. 6 aã.). Nos diversos números do "Auxiliar daIndústria Nacional" encontram-se trabalhos abordando o problema da colonização,fato que demonstra o interesse que o assunto vinha despertando na época, em con-sequência das próprias necessidades da agricultura.

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Desde o seu início o movimento abolicionista trazia no seu bojo,de modo geral, duas alas: de um lado militavam aqueles que perten-ciam à ala moderada io movimento, chefiada por Joaquim Nabuco; dooutro, estavam osmaii radicais, como Silva Jardim, Luís Gama, Antó-nio Bento, Raul Pompéia e inúmeros mais. <1 9 A>

Luís Gama chegou mesmo a travar luta dentro do Partido Republi-cano Paulista em face Ia oposição da agremiação a que pertencia frenteap problema. Não foi outra, aliás, a posição de Silva Jardim que, emdocumento publicado no ano de 1889, fez vigorosa análise da situaçãoem que se encontrava o Partido Republicano, situação que, às vésperasda República, refletia todo um processo anterior de manobras oportunis-tas e acornodatíciaa. <M|

A primeira ala dos abolicionistas tinha como método de reivindi-cação não a. organiiaçãc dos escravos, mas o trabalho de mostrar às clas-ses dominantes do Império os prejuízos morais da escravidão. Diziamque somente com a persuasão, através do choque de ideias e da raciona-lização da opinião pública, era possível fazer triunfar o abolicionismo.Esta camada, ou melhor, esta ala era a que incorporava no seu bojo oselementos legais da campanha, aqueles que pugnavam por uma simplesmodificação jurídica, sem atentarem na vinculação social profunda domovimento. Joaquim Nabuco, que liderou a corrente moderada, afirmaem um dos seus livros mais conhecidos e onde conta a história do movi-mento: "A propaganda abolicionista, com efeito, não se dirige aos escra-vos. Seria uma cobardia, inepta e criminosa, e além disso, um suicídiopolítico para o partido abolicionista, incitar à insurreição ou ao crimehomens sem defesa e que a Lei de Linch, ou a justiça pública imediata-mente haveria de esmagar". Mais adiante esclarece as razões de sua ati-tude : "Suicídio político porque a nação inteira vendo uma classe, e essaa mais influente e poderosa do Estado, exposta à vingança bárbara eselvagem de uma população mantida até hoje ao nível dos animais cujaspaixões, quebrando o freio do medo, não conheceriam limites no modode satisfazer-se, pensaria que a necessidade urgente era salvar a socie-dade a todo custo por um exemplo tremendo e este seria o sinal de mortedo abolicionismo". |MA)

Isto é, Nabuco desejava, no processo das lutas pela abolição, excluiro escravo, exatamente aquele que representava um dos pólos da contra-

(19A) A divisão que fazemos do movimento abolicionista em duas alas fun-damentais não significa que desconheçamos ou não levemos em conta as várias gra-daçOes ideológicas de que se revestiu, ou queiramos impermeabilizá-las de quaisquerinter-relações. Por questões metodológicas, simplificamos o processo, sem, no entan-to, nos esquecermos de que essa divisão significa apenas um corte à distancia de umproblema histórico muito mais complexo. Como, no entanto, neste capítulo, deseja-mos apenas fazer um apanhado sintético dos acontecimentos que vão do início daescravidão à abolição, terminando com um resumo da evolução ideológica do aboli-cionismo, achamos'que a divisão se justifica porque, de qualquer maneira, eram asalas que, desbastadas as arestas dos detalhes, imprimiam dinamismo às ideias que•e formavam contra o trabalho servil.

(20) Cf. Vinhas de Queirós, M. : "Uma Garganta e Alguns Níqueis" R deJaneiro, 1947.

(20A) Nabuco, J.: "O Abolicionismo", R. de Janeiro — S. Paulo, 1938, p. 26.

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dição fundamental da sociedade brasileira da época. Toda a sua atitudeconfirmará este pensamento expresso em 1883.

A outra ala abolicionista — que poderemos chamar de radical —dirigia por sua vez as vistas e atividades cotidianas mais para os pró-prios escravos do que para os entreveres jurídicos, organizando-os paraque lutassem com as próprias forças contra o cativeiro. Luís Gama seráo mais notável dos seus líderes. Sendo ex-escravo e tendo experimentadoessa situação, tornou-se o porta-voz de centenas de escravos que, de vá-rias formas, através das fugas, da compra de alforria etc. não se con-formavam com o status a que estavam submetidos. Embora não que-rendo diminuir o papel de Joaquim Nabuco — certamente uma das figu-ras mais ativas e respeitáveis do movimento — desejamos dizer, no en-tanto, que enquanto ele tomava posição tímida e de uma prudência quehoje a História não justifica, combatendo a "vingança bárbara e selva-gem" dos escravos, Luís Gama tomava posição diametralmente oposta.Dizia, em pleno tribunal que o acusava de acoitar negros fugidos, queo escravo ofendido no seu direito, que assassinava o seu senhor, praticavaum ato de legítima defesa. <2" Posição que reflete de maneira lapidar aforma de ação de duas alas do abolicionismo. Silva Jardim foi outro po-lítico atacado pelas suas posições "muito radicais". O conhecido tribunovisitava, em companhia de outros abolicionistas, os quilombos que exis-tiam na periferia de Santos, é o que afirma Maurício Vinhas de Quei-rós, um dos seus biógrafos. (22)

Contra a ideia abolicionista, porém, levanta-se a opinião conserva-dora que expressa os interesses dos grandes fazendeiros latifundiáriosdo Nordeste e donos de fazendas de café em São Paulo — postados nosseus pontos de vista de classe. Qualquer tentativa de reforma, mesmode uma timidez que hoje nos faz rir, era recebida no Parlamento comviolentos ataques da maioria escravista. Inúmeros projetos não foramobjeto de discussão. A Lei do Ventre Livre (1871) encontrou no Parla-mento a oposição mais cerrada. O Gabinete Rio Branco era acusado de"Governo comunista, governo de morticínio e de roubo". Segundo RuiBarbosa, certo deputado dissera então que o Gabinete Rio Branco haviadesfraldado as velas por "um oceano onde voga também, o navio piratadenominado "A Internacional".. . (23) Mesmo depois da Abolição, os con-

21) Cena que Sud Menucci dá 'como desenrolada no Júri da cidade de Arara-quara. Cf. "O Precursor do Abolicionismo no Brasil", R. de Janeiro, 1938 e "Re-trato do Poeta Luís Gama", Clóvis Moura, tn "Fundamentos", n» 41, 1956, p. 7 ss.— Raul Pompéia escrevia, também, em artigo de jornal: "A humanidade só tem afelicitar-se, quando um pensamento de revolta passa pelo cérebro oprimido dos re-banhos operários das fazendas. A ideia da insurreição indica que a natureza huma-na ainda vive. Tudas as violências em prol da liberdade — violentamente acabru-nhada devem ser saudadas como vinditas santas. A maior tristeza dos abolicionistasé que estas violências não sejam frequentes e a conflagração não seja geral". EnéiasGalvão, Alberto Torres, Raimundo Correia e Augusto de Lima declararam.se de acor-do com os termos do artigo do romancista de "O Ateneu".

(22) Vinhas de Queirós, M.: cp. cit., p. 108.(23) Pereira, A.: "Interpretações", R. de Janeiro, 1944, nota a página 201.

Ainda segundo Astrojildo Pereira no voto de Sousa Carneiro ao projeto de 15 deJulho lê-se que o mesmo não passava de "pretexto para a agitação, revolução e

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versas Províncias. Em 1883 funda-se a "Confederação Abolicionista"que dirigirá o movimento em todo o território nacional. M

No Ceará houve greve histórica dos jangadeiros contra o embarquede escravos, liderada pelo prático-mor de Fortaleza, Francisco José doNascimento, cognominado "O Dragão do Mar". Francisco José do Nas-cimento foi trazido depois para o Rio de Janeiro onde provocou inci-dente entre elementos escravistas e antiescravistas do Exército.

Por outro lado, o incremento das atividad.es industriais nas últimasdécadas que precedem à Abolição iria formar uma classe operária que,embora pequena, tomou imediatamente posição contra o escravismo.27

Os tipógrafos de Fortaleza negaram-se a executar qualquer im-presso que defendesse a escravidão. A Imperial Associação TipográficaFluminense, ao ter conhecimento de que entre os seus associados haviaum escravo, designou uma comissão para libertá-lo. E Luís Gania, noCentro Operário Italiano, em São Paulo, pronunciou muitas conferênciasabolicionistas. Inúmeras outras manifestações operárias contra o escra-vismo podem ser citadas. António Bento, ao organizar a ordem dos"Caifazes", destinada a dar fuga aos escravos, conseguiu criar uma ver-dadeira rede, ligando-se aos ferroviários de São Paulo. "Não havia tremde passageiro — afirma um historiador — no qual um negro fujão nãoencontrasse .meios de esconder-se, como não havia estação onde direta-mente alguém o não recebesse e orientasse".28

Numa situação como a que apresentamos, o trabalho escravo estavaem decomposição; os escravos na sua maioria já estavam convencidosde sua situação de explorados e, em maior ou menor grau, desobedeciamàs ordens dos seus senhores formando quistos que não era mais circuns-critos aos quilombos mas se manifestavam dentro das próprias senzalas.Mesmo dentro do baixo nível de produtividade médio, a faina dos escra-vos não tinha mais aquela rentabilidade dos primeiros tempos, já pela

(26) Compunha sua comissão os segirntes abolicioniflas: João Clapp, André Re-bouças, Bittencourt Sampaio, João Paulo Gomes de Matos, Júlio de Lemos, AlbertoVítor, Tenente do Exército Manuel Joaquim Ferreira, Eduardo Nogueira, Dr. PauBrasil, José dos Santos Oliveira, Jarbas S. das Chagas e Domingos Gomes dos San.tos. O Conselho Deliberativo era formado por Aristides Lobo, Frederico Júnior, JoãoAugusto do Pinho Batista, Evaristo Rodrigues da Costa, Luís Pires, João FerreiraSerpa Júnior, Procópio Russel, Dr. Leonel Jaguaribe, Adolfo Ebstein Júnior, CapitãoEmiliano Rosa de Sena, Abel Trindade, Tenente do Exército Nabuco de Araújo, Joséde Arimatéa e Silva, Luís Rodrigues da Silva, Eugênio Bittencourt, António S. Brasil,José Maria da Costa, J. Campos Porto, José Maria Barreiro, José do Patrocínio, Dr.José dos Santos e Miguel Dias.

(27) Sobre as primeiras manifestações da classe operária ver: AstrojildoPereira: "Lutas Operárias que Antecederam a Fundação do Partido Comunista doBrasil" in "Problemas", n» 39, março-abril de 1952 — Everaldo Dias "Lutas Operá-rias no Estado de S. Paulo" in "Revista Brasillense" e "História das Lutas Sociais noBrasil" (S. Paulo, 1962) — H. Linhares: "As Greves Operarias no Brasil Duranteo Primeiro Quartel do Século XX", in "Estudos Sociais", junho-agosto, 1958 — Va-mlreh Chacon: "História das Ideias Socialistas no Brasil", Rio, 1965 — Jover Telles:"O Movimento Sindical no Brasil", Rio, 1962.

(28) Maria dos Santos, J.: "Os Republicanos Paulistas e a Abolição", S. Paulo1942, p. 179.

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tomada de consciência dos mesmos da sua situação de oprimidos, o queos levava a posição de revolta e oposição aos senhores, já por questõeseconómicas que escapavam ao seu controle e conhecimento, bem comodos senhores de engenho e fazendas. Assim, famílias inteiras, ante adesagregação das relações institucionais que garantiam os graus de hie-rarquia no campo, não mais podendo estabelecer aquele sistema de bar-ragem social que era inerente à sociedade escravista e sem o qual asrelações senhor-escravo entravam em processo de deterioração, retiram-se para as cidades, vão compor o setor populacional urbano, com receiodas fugas, das revoltas e de outras formas de reação do elemento escravo.Um autor insuspeito no particular, como Oliveira Viana, pinta desta ma-neira o quadro da época que antecede ao abolicionismo: "Os escravosse levantavam, e passavam a desconhecer a autoridade dos senhores.Desertavam das senzalas; partiam em massa; cerca de dez mil desceramas encostas de Cubatão para o asilo de Santos. Outros fizeram-se cons-piradores em conjurações perigosas. Outros, rebelando-se, assassinavamos senhores". Era portanto o fim de um sistema de trabalho que nãomais correspondia às exigências do dinamismo da sociedade brasileira.

O trabalho escravo cai ainda mais de rendimento. E note-se: a suamédia de rentabilidade já era uma das'mais baixas do mundo em con-sequência do desinteresse pelo produto do seu trabalho e da rudimenta-ridade dos meios de produção empregados, já que o escravo era, para osprodutores da época, um animal de carga como outro qualquer. A la-voura arruína-se, especialmente no Leste e Nordeste onde a escravariajá era um peso morto em uma economia não apenas em decadência, masem franco processo de decomposição. Os escravos fluminenses incen-diavam canaviais e fugiam.

Nestas circunstâncias, o povo — já bastante trabalhado pelas ideiasabolicionistas — acoitava os escravos contra perseguições de senhores eautoridades; as leis contra esses atos, por seu turno, não eram aplicadas.Juizes recusavam-se a aplicar a pena de açoite no fim do período emque perdurou essa forma de castigo. Autoridades negavam-se muitas ve-zes, a receber nas cadeias escravos fugitivos, tendo o Clube Militar, queno momento contava com elementos democráticos na sua diretoria, res-pondido ao Trono em 25 de outubro de 1887 salientando a repugnânciade grande número de seus associados em servir de capitão-do-mato.

Dentro desse conjunto de razões havia outras também importantesimpulsionando a marcha do abolicionismo: era, como já dissemos, a poucarentabilidade do trabalho escravo frente ao isalariato. Em alguns ramosda produção nacional o trabalho servil já havia sido abolido parcialou inteiramente. Especialmente na indústria têxtil recém-nascida. Eoutra: o escravo quase não consumia. A burguesia nascente e os indus-triais ingleses que dominavam o mercado interno brasileiro, cada umpor motivos diferentes, ou melhor, antagónicos, tinham interesse, na-quela época, em ampliar esse mercado para que fosse proporcionada aabsorção dos seus produtos. A economia baseada na escravidão não ace-nava com essa perspectiva. Por outro lado, em consequência da deca-dência do Nordeste, debatia-se a agricultura daquela área — até então

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a mais importante do país — em profunda crise, agravada com a extin-ção do tráfico, crise que era prpfligada por Perdigão Malheiro, na Câ-mara, quando afirmava: "as dívidas ficavam e com elas os terrenoshipotecadas aos especuladores que compravam os africanos aos trafican-tes para revendê-los aos lavradores. Assim a nossa propriedade terri-torial ia passando das mãos dos agricultores para os especuladores etraficantes". Por outro lado a média de vida do escravo era muito exígua:sete anos segundo Simonsen e dez segundo documentos da época. M-A Tudocontribuía, como vemos, para que o trabalho escravo fosse, na fase emque se encontrava a economia do país, um sistema obsoleto para a época.

Como agravante da crise que já tinha as suas causas intrínsecas,fatores internacionais entravam em jogo e contribuíam para que a pro-dução do açúcar entrasse em decadência: o trabalho escravo, rotineiro,de fraco rendimento e técnica rudimentar, não estava em condições deproduzir esse artigo em nível de preço e qualidade que pudessem com-petir com o Havaí, Antilhas, etc., que o produziam por métodos maisracionais, usando o trabalho livre em suas plantações. Além disso, aprodução do açúcar de beterraba, que entrava na balança comercial daEuropa, influía ainda mais para a decadência de nossa produção açuca-reira. Ó café, que já era nosso principal produto de exportação, passaráa ser o eixo em torno do qual girará a economia nacional. M

A escravidão decompunha-se. Entraves externos e internos levariamo trabalho escravo ao impasse cuja solução foi a Abolição. Nos anosque precederam ao 13 de Maio, o número de escravos e sua proporçãodentro do conjunto da população do país diminuíra consideravelmente.Vejamos:

Anos

1850

1852

1887

População

5.520.000

8 . 429 . 672

13.278.616

Populaçãoescrava

2.500.000

1.510.000

723.419

% da populaçãoescrava sobre o total

3115

5

26.A) Simonsen, Roberto C. — "História Económica do Brasil", S. Paulo, 1937,tomo I, p. 202.

(29) Comentando a decadência da produção açucareira, Luís Amaral escreve:"Os engenhos centrais só podiam visar os mercados externos, visto como os internosse contentavam comr a produção dos cangues e, sobretudo, iam se arranjando com arapadura, que cada região agrícola produz para o próprio consumo, só se apelandopara o açúcar no tempero dos remédios; mas, sendo exigentes os mercados externose não sendo da melhor qualidade nossa produção, começou a crescer no exterior aindústria de sucedâneos, e a cair nossa exportação paralelamente ao aumento da pro-dução." (Luís Amaral: — "História Geral da Agricultura Brasileira". 2» tomo, S-Paulo, 1940, p. 79).

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Devemos ponderar, porém, que entre os livres havia milhares depessoas que viviam praticamente em condições de escravos. Os libertosnão eram outra coisa senão escravos disfarçados. »-* Mesmo assim nãose pode negar a queda vertical da população escrava no conjunto da so-ciedade brasileira. Nas cinco principais Províncias do país, em 1882,(São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Ceará e Rio de Janeiro)segundo depoimento de Joaquim de Godoy, citado por Jovelino M deCamargo Jr. era essa a população:

(29.A) O Africano livre, entregue ao serviço de particulares ou de estabeleci.mentos públicos, não passa de um verdadeiro escravo; os que desfrutam seus serviçosnão caem na asneira de facilitar-lhe a emancipação, e, como es ravo que é de fatoa ° s

Segue-se, portanto, que estes infelizes devem resignar-se com a falha da lei ouesperar que o acaso lhes depare um protetor desinteressado e que, revestido da mais

Sr.'™ Fn^fsTção mor^^ * ***" ' «»"*«"»' "*«, « ««""•*. provasescrivâo d°S af ricanos a certidão demonstrativa de que é passadoo Ia ^ò de tem 'o 3

2») — Requerer ao governo imperial por intermédio da secretaria da justiça.3') — O ministro da justiça manda ouvir o juiz de órfãos.' — - O juiz de órfãos informa e faz volver a petição ao ministro.

— O ministro manda ouvir o chefe de polícia.O chefe de polícia manda ouvir o curador geral.° CUrad°r geral dá a sua informa-Ç.ão e faz voltar petição no chefe

5')6')

de poÍMa8') — O chefe de polícia manda ouvir o administrador da casa de correção;

da •ustiT ° administrador da casa de 'Correção informa e faz voltar à secretaria

10») — O chefe de policia informa e faz voltar à secretaria da justiça.(ies 11h> ~ A secretaria faz uma res«nha de todas as informações para o ministro

12') — O ministro despacha afinal, mandando passar a carta de liberdade.Este afinal quer dizer:13») — Volta a petição ao juiz de órfãos.14») — E expede-se um aviso ao chefe de polícia.15») — O juiz de órfãos remete a petição ao escrivão e faz passar a carta que

este demora em seu poder até que a parte vá pagar os emolumentos.16') — Remete-se a carta ao chefe de polícia.17») — o chefe de polícia oficia ao administrador da casa de correção mandan-

do vir o africano.

nirlnífL^ ° hd^ÍnÍStr,a.d°r manda-°. e ° <*<*e de polícia desi!>ntl o termo ou mu-mclpio em que há 'de residir.

mn A~- ~"H° Chefe l* ?°'ÍCÍa da C°rte °flcia a° da Provín«a, a que pertence o ter-mo designado, e remete-lhe o africano acompanhado de carta.ta » fV T f °h?fe de P°1ICÍa da Província oficia, remetendo o infeliz e a sua car-ta â. autoridade policial do lugar para onde o chefe de polícia da corte aprouve designaro degredo do homem livre e nOo condenado por crime alyum.

E depois de todo o trabalho, de despesas feitas com procuradores ou veículospara que a petição não ficasse sepultada no maré magnum de nossas repartições omísero a/rvxcno Rynseyue ser banido d» lugar em qtue residiu -oor dez quinze e vinteanos, em que adquiriu raízes, <.m que começou a preparar o seu futuro, os 'seus iii-tcresses!" (Artigo do Diário do Rio de Janeiro 1863)

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Trabalhadores livres l. 433.170

Trabalhadores escravos 656.540

Desocupados 2.822.583 ".

Os desocupados eram ex-escravos marginalizados que depois iriamingressar na faixa dos servos que aumentariam progressivamente noBrasil. A qualificação do trabalhador só podia ser feita à medida queele ingressasse naquela nova classe que surgia: a classe operária. Nacapital baiana, pouco depois de extinta a escravidão, existia a "UniãoFabril" que englobava seis fábricas de tecidos com um total de 805 ope-rários trabalhando em 358 teares.

Era toda uma conjuntura econômico-política delicada e complexaque se apresentava ante os olhos da Regente: uma economia em decom-posição e uma opinião pública que, na sua quase totalidade, condenavao sistema de trabalho que predominava ainda na agricultura. Certamen-te, sentindo-se forçada ante o império das circunstâncias — um ano an-tes mandara espingardear os escravos fugidos — deveria ter raciocina-do como, tempos depois, frente ao problema da revolução que se apro-ximava, exprimiu-se um político brasileiro, exclamando: "Façamos aabolição antes que os escravos a façam..." Era o medo da "vingançabárbara e selvagem", de Nabuco, tomando forma jurídica: a Lei Áurea...

(30) Camargo Jr. J. M.: "A Abolição c suas Causas", tu "Estudos Afro-Brasilei-ros", R. de Janeiro, 1935, p.169.

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CAUSAS PRINCIPAIS QUE DETERMINARAM A ABOLIÇÃO DOTRABALHO ESCRAVO NO BRASIL

Causas Externas COMSOS Internas

1) Pressão política e militar daInglaterra;

2) Formação de um mercado pro-dutor de açúcar em outrasáreas, especialmente as Anti-lhas;

3) Aparecimento de um sucedâneodo açúcar de cana e sua aceita-ção no mercado europeu;

4) Política migratória ofensivados países europeus em facedos seus excedentes populacio-nais;

5) Interesse das nações capitalis-tas, especialmente a Inglaterra,de criarem um mercado consu-midor interno africano, fatoque motivou, anteriormente, aextinção do tráfico de escravosno Brasil;

6) Necessidade, por parte dosmanufatureiros ingleses de am-pliar o mercado consumidorbrasileiro.

1) Abolição do tráfico de escravosafricanos com a Lei Eusébio deQueirós;

2) Queda da produção e crise es-trutural da área açucareiranordestina e consequente deca-dência do trabalho escravo;

3) Aparecimento das primeirasindústrias de transformaçãoque exigiam mão-de-obra livre;

4) Mínima rentabilidade do traba-lho escravo em comparação como livre;

5) Surto do café, cuja unidadeprodutora — a fazenda — nãose adaptava ao trabalho escra-vo e se desenvolvia com umadinâmica interna capaz de ab-sorver a mão-de-obra livre, in-clusive a importada;

6) Chegada de imigrantes estran-geiros para os trabalhos agrí-colas ;

7) Campanha abolicionista com aparticipação da intelectualida-de e da classe média;

8) Lutas dos próprios escravos.

As causas acima não foram enumeradas de acordo com o seu graude importância, pois elas tiveram maior ou menor influência de acordocom os elementos circunstanciais de tempo e espaço. Temos de vê-las,portanto, como um conjunto dinâmico que se interpenetrava, muitas vezesgerando conflitos agudos, outras vezes impulsionando movimento "legais"dentro dos quadros institucionais vigentes.

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Escravos nos Movimentos Políticos

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I

A participação dos escravos nos movimentos políticos que ocorreramdurante a Colónia e o Império foi decorrência lógica da situação em quese encontravam. Na base da pirâmide social, a classe escrava constituíaa força produtiva mais importante. Se, demograficamente, pesava demaneira esmagadora, tinha, no entanto, contra si, a alienação em quese encontrava, alienação que — no caso particular do escravo — temcaracterísticas específicas que devem ser analisadas.

Em primeiro lugar, dentro do conjunto da sociedade, não era aclasse que estava ligada aos meios de produção mais avançados. Pelocontrário. Era fator de atraso do próprio processo de desenvolvimentodesses meios. Por outro lado, ele não apenas produzia mercadorias den-tro de um sistema que dificultava o desenvolvimento das forças produ-tivas, mas se constituía, também, em mercadoria, em objeto de troca.Era, portanto, força produtiva no seu sentido global, dentro da socieda-de escravista, mas, ao mesmo tempo, do ponto de vista do senhor deescravos, simples meio de produção; equiparado aos animais de traçãoque eram utilizados no funcionamento dos engenhos e em outros setoresde atividade económica. < > > Não por acaso era considerado simples coisa,pois, dentro do regime escravista, não passava, efetivamente, de uminstrumento. Não vendia a sua força de trabalho, mas era consideradopelo senhor de escravos um simples instrumento de trabalho, de vez que odireito de propriedade se estendia à própria pessoa .do escravo. Transi-tava como mercadoria, já que "a compra e venda dos escravos é, tam-bém, quanto à sua forma, compra e venda de mercadorias". < 2>

(1) "O escravo não vendia a sua força de trabalho ao possuidor de escravos,assim como o boi não vende o produto do seu trabalho ao camponês. O escravo évendido, com sua força de trabalho de uma vez para sempre a seu proprietário í!uma mercadoria que pode passar das mãos de um proprietário para as de outro.Ele mesmo é uma mercadoria, mas sua força de trabalho não é sua mercadoria."— (Mane, K.: "Trabalho Assalariado e Capital", Rio 1954 p. 22) — "A força detrabalho se confunde com a pessoa do escravo no transcurso de toda sua existênciafutura. N&O se pode assim computar nela, pelo menos com rigor suficiente, o esforçodespendido na produção das diferentes mercadorias, cada uma de per «i. (Prado Jr.Calo: "Esboço dos Fundamentos da Teoria Económica", S. Paulo, 1957, p. 41).

(2) Marx, K. "El Capital", tomo 2 p. 41.

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Sem falarmos na situação material em que viviam e a que estavamsubmetidos através de diversos métodos de coerção social, temos de aten-tar — para compreendermos a sua participação em movimentos que sur-giram conduzidos por elementos das outras classes sociais — nas restri-ções políticas totais a que estavam sujeitos. A economia escravista, mon-tada no Brasil desde os primórdios da colonização, considerou, corno nãopodia deixar de ser, o escravo um simples objeto. Havia, nas Ordena-ções Manoelinas, um título regulando "De como se podem rejeitar Es-cravos ou Bestas por Doença ou Manqueira". Dizia Perdigão Malheirono seu insubstituível trabalho sobre a escravidão no Brasil, que "nemlei alguma contemplava o escravo no número de cidadões ainda quandonascidos no Império, para qualquer efeito em relação à vida social, polí-tica ou pública. Apenas os libertos quando cidadões brasileiros gozamde certos direitos políticos e podem exercer alguns cargos públicos". < 3 >

Na Constituinte de 1823 são sumariamente excluídos do direito devoto, juntamente com os criados de servir, os jornaleiros, os caixeirosde casas comerciais, enfim juntamente com todas as pessoas que tinhamrendimentos líquidos inferiores ao valor de 150 alqueires de farinha demandioca. Rara os eleitores de segundo grau, que escolhiam os deputadose senadores, exigia-se um rendimento de 250 alqueires e, finalmente, paraque o cidadão fosse candidato a deputado se exigia a soma de 500 alquei-res (1.000 para senadores), além da qualidade de proprietário, foreiroou rendeiro por longo prazo, de bens de raiz ou fábrica de qualquer in-

(3) Malheiro, P. "A Escravidão no Brasil", p. 17. Ainda para ilustração decomo vivia o escravo durante o regime escravista, transcrevemos este trecho de Ro-drigues de Carvalho sobre o assunto: "Agora vejamos o que concretizava em lei noBrasil, deste Brasil já separado da Metrópole, portanto à. sombra do "pendão auri-verde".

"Os juizea de Paz não podem açoitar escravo algum, sem que primeiramente otenham devidamente processado, e sentenciado com audiência do senhor" (Aviso de16.6.1837).

"Não pode o escravo dar queixa contra pessoa alguma, ainda que seja contraaquele que o quer conduzir à escravidade" (Acórdão da Relação do Rio de 1-4-1879).

"Não pode o escravo ser considerado pessoa miserável para que em seu lugaro Promotor público possa agir contra quem o ofenda criminalmente" (Aviso de2-4.1853). Suprema irrisão!

Sem termos que citar as disposições do Cód. Penal de 1830, prosspgue o autorque estamos citando — basta para se fazer uma ideia do conceito em que era tidoo escravo perante a lei, transcrever o seguinte para instruir uma condenação:

"Na sentença em que for o escravo condenado a açoites, deve o juiz que a pro-ferir, também condená-lo a trazer um ferro pelo tempo e maneira que for designadoconforme o artigo 60 do Cód. Criminal" (Paula Souza, Cód. do Proc. Criminal).

"A mancebia entre senhor e escrava não lhe minora a condição de escravo, nemos próprios filhos do senhor são libertos" (Acórdão do Trib. de Ouro Preto, "Direito",vol. 8) .

"Se for condenado a açoites, libertando-se n6o sofre aquele castigo mas fica pre-so" ("Direito" vol. 7) .

"Por ter morto um administrador foi o escravo de menor idade condenado àmorte" (Acórdão do Tribunal de Porto Alegre, em 1876, vol. 7) .

"O escravo fugido não podej pleitear a sua liberdade, ainda mesmo com indeni-zação". (Aviso do Ministro da Agricultura — "Direito", vol. 25. (Carvalho Rodri-gues de: "Aspectos da Influência Africana na Formação Social do Brasil", t» "NovosEstudos Afro-Brasdleiros", Rio, 1937, p. 27.

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dústria. < 3 A > Os escravos, como é óbvio e já ficou dito linhas acima, nãoeram considerados brasileiros; posteriormente passaram a ser brasilei-ros, mas não cidadãos, fato que levou Joaquim Nabuco, na análise quefez do regime, a mostrar a sua ilegalidade dentro do próprio formalismodo Direito da época. < 3 B >

Os mecanismos de defesa da sociedade escravista estabeleceram umsistema de peneiramento social no processo eleitoral capaz de preservai-as suas bases de qualquer possível abalo. O Estado era uma sólida cara-paça que — através de elementos <3a pressão — mantinha o staífus quo,escudado em um conjunto de leis completamente reflexas do regime es-cravista.

Segundo depoimento datado de 1835 — documento aliás que é peçado processo de repressão à insurreição de escravos ocorrida naquele ano,em Salvador — não "gozavam de direito de cidadão, nem privilégio deestrangeiro". < 4 >

Tal situação levou a que os elementos cativos desde muito cedo par-ticipassem como aliados e muitas vezes como elementos destacados e atédecisivos nas lutas, levantamentos e tentativas de sedição que diversascamadas sociais realizaram ou organizaram, durante o nosso desenvolvi-mento histórico. Esses movimentos se amiudavam e aprofundavamà medida que certos setores dessas camadas adquiriam relativo po-der económico. Tal diferenciação era decorrência do desenvolvimento

(3A) Prado Júnior, C.: "Evolução Política do Brasil e outros ensaios" S.Paulo, 1957, p. 53.

(3B) "Se os escravos fossem cidadões brasileiros, a lei particular do Brasilpoderia talvez, e em tese, aplicar-se a eles; de fato não poderia, porque, pela Cons-tituição, os cidadões brasileiros não podem ser reduzidos à condição de escravos.Mas os escravos não são cidadões brasileiros, desde que a Constituição só pro-clama tais os ingénuos e os libertos. Não sendo cidadões brasileiros eles ou são es-trangeiros ou não têm pátria, e a lei do Brasil não pode autorizar a esiravidãode unse de outros que não estão sujeitos a ela pelo Direito Internacional no que respeitaã liberdade pessoal. A ilegalidade da escravidão é assim insanável, quer se a con.sidere no texto e nas disposições da lei quer nas forças e na competência da mesmalei". (Nabuco, J.: "O Abolicionismo", Rio-Sao Paulo. 1938. 111).

(4) Portaria do Chefe de Polícia da Cidade de Salvador, MS do Arquivo Pú-blico do Estado da Bahia. — E mais: "O escravo ainda é uma propriedade comoqualquer outra, na qual o senhor dispõe de um cavalo ou de um móvel". (Nabuco,J.: "O Abolicionismo", Rto-Sãoi Paulo, 1938, p. 39) — "Assim como se dá algumdescanso aos bois, e aos cavalos, assim se dê, e aom maior razão por suas ocu-pações, aos escravos". (Antonil, André João: "Cultura e Opulência do Brasil",Bahia. 1950, p. 39).

"No Brasil costumam dizer, que para o escravo são necessários três PPP a sa-ber, pau, pão e pano. E posto que comecem mal, principia no castigo, que é o pau;contudo prouvera a Deus, que tão abundante fosse o comer, e o vestir, como muitasvezes é o castigo dado por qualquer coisa pouco provada, ou levantada; e con? ins-trumentos de muito rigor, ainda quando os crimes são certos de que se não usa-nem com os brutos animais, fazendo algum senhor mais caso de um cavalo, quede meia dúzia de escravos: pois o cavalo é servido e tem quem lhe busque capim,tem pano para o suor, e sela, e freio dourado" (Ibid., p. 55).

"O escravo era apenas um instrumento de trabalho, uma máquina; não passívelde qualquer educação intelectual e moral ( . . . ) "Eram conduzidos à condição decoisa como os irracionais aos quais eram equiparados" (Malheiro, P.: "A Escravi.d5o no Brasil", t. II, São Paulo, 1944, p. 27).

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do comércio e do surgimento de algumas indústrias de transforma-ção, empresas que, por seu turno, tinham o seu desenvolvimentoimpedido pela Metrópole, durante a Colónia, e pelos setores que repre-sentavam a agricultura latifundiária-escravista, durante o Império. Acontradição era bem clara e foi notada por muitos estudiosos do tempo:o latifúndio escravista impedia o surgimento de uma burguesia que seformava como crosta, como seu elemento subsidiário e muitas vezes ini-cialmente complementar, mas que, paulatinamente, cristalizava interes-ses próprios e entrava em choque se não frontal pelo menos de flanco,com tal sistema.

No bojo de tal contradição o escravo se encontrava, de um lado, comoforça de trabalho decisiva das formas tradicionais de economia, mas, deoutro, transformava-se progressivamente em negação dessa economia. Eà medida que se integrava no processo de transformação dessa forma detrabalho, integração que muitas vezes, ou melhor, quase sempre, não tinhacaráter consciente, criava os elementos para que o processo de alienaçãopassasse a se desenvolver no outro pólo, na classe que, divorciada doprocesso de produção, era quem auferia todos os seus proventos: os se-nhores de. escravos.

Na malograda revolta de Filipe dos Santos, em Minas Gerais, te-mos notícias da participação no movimento de "poitugueses com os seusnegros", que foram presos. <5) No dia 28 de junho de 1720, sete masca-rados, juntamente com muitos pretos, armados, derivaram do morroonde se encontravam, invadindo e depredando diversas casas. Em segui-da, intimaram o governador a não abrir novas casas de fundição.

Em outro movimento, a Inconfidência Mineira — como na revoltade Filipe dos Santos — o papel do escravo como reserva social do acon-tecimento ainda não foi suficientemente estudado e esclarecido. Que osinconfidentes, de um modo geral, eram abolicionistas, não há muitas dú-vidas. <6> Mas, até que ponto esperavam que os escravos aderissem eparticipassem da revolta é que não está bem claro, embora fosse Minas,na época, um dos maiores focos de quilombos do Brasil.

Tiradentes, segundo Norberto de Souza Silva, chegou a possuirtrês escravos nas suas malogradas tentativas de mineração. < 7 > Ó certoé que pelo menos uma escrava sabemos ter pertencido ao Alferes In-confidente: a que foi doada por ele a D. Maria do Espírito Santo, órfãmenor a quem Tiradentes deixara grávida "com promessas esponsalí-cias" e de quem tivera uma filha. <8>

(5) Calmem, P.: "História do Brasil", vol. III. Rio. 1961, p. 1019. 1020.(61 Ver o trabalho de Afonso Arinos de Melo Franco "As Ideias Políticas da

Inconfidência", in "Terra do Brasil", Rio, 1939.(7) Souza Silva, J. Norberto: "História da Conjuração Mineira", Rio 1948,

p. 79.(8) Rev. do Inst. Hist. e Geog. de Minas Gerais, vol. III, 1959, "Requerimento

de D. Antônia Maria do Ksplrito Santo pedindo devolução da escrava Maria que lhefora doada por Joaquim José da Silva Xavier (O Tiradentes)", p. 426 ss.

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Voltando à nossa análise, temos de constatar que os Autos de De-vassa são o único documento que conhecemos capaz de explicar, em cer-to sentido, este aspecto de um movimento já por si mesmo confuso; ca-paz de explicar como aqueles "duros braços ao trabalho feitos" se compor-taram ao saber que na Capitania se tramava um movimento que tinha,entre outros objetivos, acabar com o instituto da escravidão.

José Alvares Maciel, filho de um capitão-mor de Vila Rica, ao de-por nos autos afirmou que "sendo o número de homens pretos e escra-vatura do país muito superior aos homens brancos, toda e qualquer re-volução que aqueles pressentiam nestes, seria motivo para que eles mes-mos se rebelassem". <9> O receio do filho do capitão-mor era endossadopor Alvarenga Peixoto. Outros inconfidentes viram na escravaria deMinas Gerais àquele tempo organizada em quilombos em diversas zonasda Capitania, material humano e social muito importante. O SargentoLuís Vaz de Toledo propunha que os escravos participassem ativamenteda luta juntamente com eles, pois "um negro com uma carta de alforriaà testa se deixava a morrer".

Como já dissemos, em Minas Gerais, ao tempo em que os inconfi-dentes se reuniam para discutir o movimento, os escravos estavam emfranca ebulição. Tinham-se ligado os da cidade aos quilombos do inte-rior da Capitania. Daí porque, em Sabará, segundo depoimento de BritoMalheiro, "se puseram uns pasquins que dizem que tudo o que fosse ho-mem do Reino havia de morrer e que só ficaria algum velho clérigo e queisto foi posto em nome dos quilombolas". Em seguida afirmava que "jáse ouvia das pessoas da última classe de gente nesta terra, como são osnegros e mulatos, que está para haver um levante" e "que os nacionaisdesta terra o desejavam".

Podemos ligar estes fatos ao detalhe dos pardos, mesmo jaqueles"mestres do ofício", "músicos" e "afazendaclos com cscravaturas", até1753 não poderem andar de espada à cinta, somente conseguindo na-quele ano permissão para tal. É que a simples cor parda já constituíaameaça para os senhores de escravos. ( IO)

Mas na Inconfidência Mineira, qual a posição de Tiradentes emrelação não somente à abolição mas também à participação dos escravosno movimento de que ele foi incontestavelmente o líder? Até que pontovislumbrou no escravo um elemento aproveitável à vitória das ideiasdos inconfidentes? É possível que tenha visto também, como o SargentoLuís Vaz de Toledo, nos escravos, uma reserva de grande importânciapara a vitória do movimento. Mas, tudo não passa de mera suposição,como, aliás, a maioria das conclusões sobre a Inconfidência Mineira, mo-vimento mais estudado pelo seu simbolismo do que pelos fatos que apre-senta ao historiador. Tanto assim que é apresentado como o ponto cul-minante das lutas pela nossa independência política, quando a chamada

(9) Melo Franco, Afonso Arinos de — "Terra do Brasil", Rio, 1939, p. 78.(10) "Petição dos Homens Pardos livres da Capitania pedindo para usarem

Espada à Cinta" — Revista do Inst. Hist. e Geog. de Minas Gerias, vol. VII, 1959.p. 425 ss.

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í,

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revolta dos alfaiates, na Bahia, tem um significado muito mais profun-do não apenas do ponto de vista de organização dos insurgentes mas,também, pelo seu programa, pelas suas metas a alcançar. Foi a mais avan-çada tentativa de quantas foram realizadas, antes de obtermos a nossaemancipação de Portugal. Por isto mesmo é atacada por muitos histo-riadores, como é o caso de Varnhagen. O autor da História Geral doBrasil, ao analisar a Inconfidência Baiana, depois de chamá-la "um arre-medo das cenas de horror que a França e principalmente a bela São Do-mingos acabavam de presenciar", conclui que "os conspiradores que sechegaram a descobrir não subiram a quarenta: nenhum homem de ta-lento, nem de consideração; e quase todos libertos ou escravos, pelamaior parte pardos". < n >

Os homens de valia,, de fato, não participavam desse movimento,que foi mais da patuléia, e dos homens de poucas posses, homens que,muitas vezes, tinham o seu status social ligados à sua cor. Os mulatos,os pardos que participaram da Inconfidência Baiana foram o elementoque formou o grosso d.a insurreição. Na capilaridade quase inexistenteda sociedade da época, transpiravam para a superfície esses movimen-tos, movimentos que tinham como desiderato modificar ou pelo menosatenuar as condições que eram impostas pelo estatuto colonial. Por isto,muitos dos elementos que formavam o entourage de dominação lusa queaqui se encastelou, sentiram as arestas que a defasagem existente entrea Metrópole e a Colónia criava. Ao mesmo tempo compreendiam queaqueles elementos arrolados na categoria de patuléia e que, por isto mes-mo, se encontravam nas camadas mais baixas, eram a estrutura huma-na desses movimentos. Pandiá Calógeras, a seu modo, assinalou o fatoquando escreveu que "nesse assalto contra o instituto servil, desempe-nhavam papel os eternos ódios dos que nada possuem contra os que têrnriqueza; a revolta dos pobres, ou do popolo minuto, contra os potenta-dos, ou o popolo grosso, das Repúblicas italianas da Renascença. E sobreos herdeiros de uma situação velha já de séculos, recaía o espírito devindita de um santo furor, ansioso por destruir a instituição." (11-A>

José Venâncio de Seíxas, quando chegou à Bahia na qualidade deprovedor da Casa da Moeda, constatou "o perigo em que estiveram oshabitantes ( . . . ) com uma associação sediosa de mulatos, que não podiadeixar de ter perniciosas consequências, sem embargo de ser projetadapor pessoas insignificantes; porque para se fortificarem lhes bastavamos escravos domésticos inimigos irreconcliáves dos seus senhores, cujojulgo por mais leve que seja lhes é insuportável." Prosseguindo dizia:"Foi Deus servido descobrir por um modo bem singular a ponta destameada, ao fim da qual julgo se tem chegado, sem que nela se ache em-baraçada pessoa de estado decente". ( I2 )

De outro lado, as ideias liberais da França encontravam fácil gua-rida na Bahia, consequência das condições da Capitania que vinha pas-

(11) Varnhagen: "História Geral do Brasi1.", tomo V. S. Paulo, p. 25-26.(11-A) Calógeras, J. P. — Formação Histórica do Brasil — S Paulo 1945,

p. 336.(12) Anais da Biblioteca Nacional: vol. 37 p. 460-61.

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sando por um longo processo dê efervescência política, como decorrên-cia da crise crónica da agricultura atrasada da região e cedo se trans-formaria em arma ideológica, manejada pelos intelectuais, c aglutina-dora das camadas mais empobrecidas da população. Mas, se é exato queessas ideias se difundiram muito mais entre os letrados, o certo é que,de qualquer forma, deixaram ressonâncias — pelo menos indiretas —entre as camadas mais oprimidas, conforme se pode verificar nos Autosda Devassa, <12-A)

Já em 1678, nas "Cartas do Senado", remetidas para Portugal, lê-se que "fazemos manifesto a Vossa Alteza do miserável estado deste povopelas muitas cargas e opressões que em tempo tão cansado carregamsobre a fraqueza de seus tenuíssimos cabedais. I V 3 ) Em consequência detal situação — são ainda as "Cartas do Senado" que nos informam —os moradores da Bahia, algumas vezes faziam "tumultos", como ocorreuquando da nomeação de Bartolomeu Fragoso para assistente de LuísGomes de Mata Correia.<14)

A situação foi-se agravando progressivamente com o passar do tem-po, até a época da Revolta dos Alfaiates. Os membros da intelectuali-dade reuniam-se, segundo Aluysio Sampaio, com a finalidade de "propa-gar os livros dos enciclopedistas e os êxitos da Revolução Francesa". ( l r > )

A sociedade agrupou no seu seio os elementos que desejavam lutar con-tra a dominação portuguesa, desenvolvendo atividade clandestina no sen-tido de conduzir o povo a combater o estado de coisas existente. Essesintelectuais, dentre os quais vale destacar os nomes de Agostinho Gomes,Cipriano Barata, os tenentes José de Oliveira Borges e Hermógenes deAguiar (que foi absolvido e morreu como Marquês de Aguiar) propa-gavam, nos quadros daquela sociedade literária, ideias libertárias. Masnão foi tal organização que impulsionou o movimento. O pensamento deuma saída revolucionária para a situação surgiu exatamente de outrocomponente da conjuração: artesãos, soldados, alfaiates, sapateiros, ex-escravos e escravos. A posição de Cipriano Barata, que participava dasociedade literária, foi cética e reticente quanto à possibilidade de umasolução violenta. Ao ser procurado por Manuel Faustino dos Santos paraparticipar do levante, afirmou que "deixasse de semelhante projeto por-que a maior parte dos habitantes vivia debaixo da disciplina de umcativeiro e não tinha capacidade para tal ação; e o melhor era espe-rar que viessem os franceses os quais andavam nessa mesma diligênciana Europa e logo cá chegavam, <">> "Francisco Mcrniz Barreto, a quemse atribui a letra do hino dos inconfidentes, também optava pela vinda

(12-A) "Anais do Arquivo Público da Bahia", vols. XXXV, XXXVI: "Autosde Devassa do Levantamento e Sedição Intentado» na Bahia em 1798", ImprensaOficial da Bahia, 1959.

(13) "Cartas do Senado (1673 — 1683), 2' vol. Bahia s/d, p. 39.(14) Idem, Idem, p. 54.(15) Sampaio, A.: "Inconfidência Baiana de 1798", in "Seiva", n" 4, setembro

de 1951, Salvador, Bahia.(16) Anais

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dos franceses. < 1 7 ) Não era outra, também, a posição de Hermógenes deAguiar. «18>

Se é verdade que esses intelectuais desejavam acabar com o estatutocolonial ou supunham fosse possível atenuar a situação em que se en-contrava a Capitania — e neste particular exerceram papel que deve serdestacado — o certo, porém, é que recuaram, tergiversaram, vacilaramà medida que os acontecimentos se precipitavam e tomavam caráter maisradical e a ele aderiram os artesãos, alfaiates, sapateiros, ex-escravos eescravos. Enquanto os intelectuais teorizavam sobre um possível papellibertador dos franceses, a ala mais popular do movimento, sem muitoteorizar, apresentava uma posição programática para a ação imediatacontra o estatuto colonial. Será por tudo isto, entre as camadas maisempobrecidas da população de Salvador que o movimento encontrarábase social e irá consolidar-se política e militarmente. Queriam a eman-cipação do Brasil do jugo português, um regime de igualdade para todos,onde não mais houvesse preconceito de classe ou raça e cada um fossejulgado pelo seu merecimento. < 1 9 > Manuel Faustino dos Santos, ao serperguntado sobre os objetivos do levante, não teve dúvidas em afirmarque "era para reduzir o continente do Brasil a um governo de igualda-de, entrando nele brancos, pardos e pretos sem distinção de cores, so-mente de capacidade de governar, saqueando os cofres públicos e redu-zindo todos a um só para dele se pagar as tropas e assistir as necessá-rias despesas do Estados." (1!0)

(17) Muitos historiadores, entre eles Caio Prado Júnior, exageraram a posi-ção de Cipriano Barata na Conspiração dos Alfaiates. Afirma o conhecido historia-dor "ao lado destes setores populares, aparecem alguns intelectuais. Entre eles, Ci-priano Barata". (Evolução Política do Brasil e outros ensaios, (2a edição), S. Paulo,1957, p. 210). Os fatos se encarregam de desmentir o que foi escrito acima. Cipria-no Barata foi implicado nos acontecimentos que estamos analisando, quando o te-mor das autoridades via olhos e ativldades subversivas por toda parte. Mas nele nãose envolveu. Não mostrou, mesmo, grande simpatia pelo movimento dos artesãos.Os seus depoimentos perante as autoridades e outros documentos apreendidos dês.mentem cabalmente a sua participação.

Durante a Devassa, ao ser inquirido, declarou, sobre a distribuição de papéissediciosos que "em certa ocasião depois que se espalharam os papeis sediciosos e liber-tinos no mês de agosto ( . . . ) ele se lembra de se haver justamente indignado contratodos aqueles que estavam em semelhante artefato, isto na casa do dito GonçaloGonçalves onde tinha ido saber de uma obra que lhe encomendara, já quando sedespedia dele". ( . . . ) "A opinião que costumava com facilidade formar, sobre oEstado Político da Europa, sem aplicação ao continente do Brasil, mal ouvidos epior interpretados por alguns desses pardos, interessados na revolução, é que temresultado nas imputações que lhe têm feito". Mas, dando xeque-mate, citaremos tre-cho da carta de Cipriano Barata a um amigo, onde diz: "Temos escapado degrande desastre da rebelião de escravos, mulatos e negros; ainda o sangue de todose não aqueceu, visto o perigo a que temos andado expostos''. ( . . . ) "Meu amigo,caute'a com essa canalha africana...) (Anais.. . I vol. p. 184) — Não apenas estesfatos, por si sós muito conclusivos desmentem a sua participação na revolta. Osvotos de fidelidade "que sempre prestou e presta a sua Real Majestade", conformedeclarou, são provas irrefutáveis de que a sua atuação nesses eventos não ficoucomprovada. Pelo contrário.

(18) Anais.(19) Anais.(20) Anais.

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A mesma coisa diziam os papéis que foram colocados na cidade. < 2 | >Em um dos manuscritos apreendidos pelas autoridades, lê-se: "Ó vóspovo (ilegível) sereis livres para gozares (sic) dos bens e efeitos cia liber-dade ; ó vós Povos que viveis flagelados com o pleno poder do Inimigo co-roado, esse mesmo rei que vós criastes; esse mesmo rei tirano é quemse firma no trono para vos vexar, para vos roubar e para vos maltratar.

"Homens, o tempo é chegado Para a vossa ressurreição, sim pararessuscitareis (sic) do abismo da escravidão, para levantareis (sic) aSagrada bandeira da Liberdade."

"A Liberdade consiste no estado feliz, no estado livre do abatimen-to ; a liberdade é a doçura da vida, o descanso do homem com igual para-lelo de uns para outros, a Liberdade é o repouso, a bem-aventurança domundo." <22)

A ação revolucionária prosseguia a sua marcha, enquanto os inte-lectuais na sua maioria discutiam teoria política ou aguardavam que aFrança viesse em socorro do Brasil.

Isto, porém, não quer dizer que a componente popular dos inconfi-dentes baianos não procurasse penosamente estabelecer uma base teóricapara o movimento. Sendo quase todos da condição chamada humilde,tinham dificultades em apreender o ideário que vinha expresso numa lín-gua para eles desconhecida: a francesa. Por isto mesmo, sempre que pos-sível, diligenciavam a tradução de obras que lhes vinham do estrangeiro.Por esta razão, mantinham ligações estreitas com a França, dali rece-bendo livros, folhetos e possivelmente apoio para o movimento. Oficiaisde navios franceses que aportavam, comunicavam-se com os conspirado-res. Tal movimento político clandestino não era desconhecido pelas auto-ridades da Metrópole. Em 1792 recomendavam ao governo da Colóniavigilância severa ao navio francês Lê Diligent, que vinha à procura doexplorador desaparecido La Pérouse, mas — segundo pensavam as auto-ridades lusas — tinha o objetivo real de disseminar entre nós "o espí-rito de liberdade que reinava na França." Otávio Tarquínio de Souzaafirma que a mesma Carta Régia que denunciava as intenções do LêDiligent informava que a Constituição Francesa de 1791 já havia sidotraduzida para o espanhol e o português.(23) A aludida sociedade secre-ta — Cavaleiros da Luz — que se reunia provavelmente em casa de JoãoLadislau de Figueiredo e Melo como inúmeras outras, pregava as obrasde Voltaire e os seus membros tinham entre os seus livros os de Mably,Reynal, Condorcet, liam Adam Smith e discutiam as ideias dos enciclo-pedistas.

Inúmeros "papéis libertinos" chegavam para os conspiradores baia-nos como chegavam, também, para o Rio de Janeiro, onde, em 1794, opadre José de Oliveira dizia que "meio Rio de Janeiro estava perdido e

(21) Anais.(22) Anais.(23) Tarquinio de Souza, O.: "O Meio Intelectual na Época da independência".

in "Literatura", n» l, Rio, setembro de 1946, p. 4 BB.

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lidertino/' (24) Os intelectuais que eram ligados às ideias liberais eramchamados "franceses."

A conspiração, porém, não ganhava a amplitude exigida para ven-cer, pois a intelectualidade que a ela se engajara não se sentia encora-jada e decidida a se apoiar nas camadas sociais mais descontentes, emconsequência da posição económica que esses letrados ocupavam na es-trutura da sociedade colonial. Vacilavam em dar base mais radical àrevolta. Em consequência dessa posição expectante a Inconfidência Baia-na como que estaciona, surgindo, em seguida, as primeiras delaçõesacompanhadas de prisões. Diante desta moldura conturbada é que come-çam a se projetar os seus líderes populares. Luís Gonzaga das Virgensé o primeiro que se destaca com invulgar mérito. Descontente com aorientação que vinham, dando à revolta, inicia um amplo movimento deagitação e difusão dos manuscritos que continham o programa incon-fidente. Aluysio Sampaio informa — e os manuscritos apreendidos pe-las autoridades confirmam — que o programa do movimento era: 1.°)Independência da Capitania; 2.°) governo republicano; 3.°) liberdade decomércio e abertura de todos os portos "mormente à França", 4.°)cada soldado terá soldo de 200 réis por dia; 5.°) libertação dosescravos.

Já haviam sido tomadas, porém, logo após as primeiras delações,as providências necessárias para que a revolta fosse sufocada e os seuscabeças encarcerados. O autor dos manuscritos — Luís Gonzaga das Vir-gens — é caçado pela polícia, sendo preso finalmente a 24 de agosto.Isto vem precipitar os acontecimentos e obriga os inconfidentes a medi-das de emergência. <25>. Tentam os seus companheiros um ato desespe-rado a fim de arrancá-lo do cárcere. Fracassada a tentativa, seguem-senovas delações. Afastam-se os intelectuais praticamente do movimento.Sua direção passa a ser exercida pelos líderes saídos das camadas maisbaixas e oprimidas da população da Capitania: artesãos, ex-escravos; es-cravos. O governo iniciou em seguida brutal repressão contra os impli-cados na conspiração. Detém inúmeros dos seus participantes ou simplessuspeitos. Todos passam pela peneira fina das autoridades, como é ocaso de Cipriano Barata.

Mas, o que nos interessa aqui não é fazer uma história da Inconfi-dência Baiana, Nosso objetivo, dentro dos planos do presente trabalho,é ver o grau de participação dos escravos nos eventos.

(24) Tarquinio de Souza, O.: "Libertinos do Rio de Janeiro" in "Folha da Ma.nhã", S. Paulo, 19-2-52.

(25) "Determinando o ajuntamento no campo do dique do Desterro, para anoite de vinte e cinco de agosto passado procurou ele declarante ao dito José Rai-mundo Barata, com quem tinha amizade por lhe ter feito obras do ofício de alfaia-te e a seus irmãos e pela prática, já expressada que com ele tivera a respeito da li-berdade lhe expôs o projetado levantamento com todas as circunstâncias, que ele de-clarante sabia e as mesmas que já expressou dizendo-lhe mais que por se ter presoum dos cabeças do dito levante, que era o soldado Luís Gonzaga, se pretendia na-quela noite passar revista a gente, que havia do partido, a fim de desencadear olevante que estava destinado para mais vagar. . ." (Anais, vol. I, p. 16).

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Que os líderes populares do movimento contavam com os escravoscomo força atuante, não há dúvida. Cedo reconheceram a importânciadesse elemento como aliado. Dirigiram, por isto, suas vistas para aquelaclasse com muito empenho. Especialmente os batalhões de pardos epretos eram constantemente trabalhados pelos insurgentes na fase pre-paratória. Lucas Dantas declarou: "temos os regimentos de pardos epretos a nosso favor", aos quais se juntariam a "escravatura dos enge-nhos de Fernão e Bulcão". <26)

O conteúdo francamente abolicionista do movimento é colocado comênfase nog documentos e nas declarações dos principais implicados. Agrande participação de pardos e escravos, depois indiciados, por istomesmo, marca a sua origem popular. João Nascimento era pardo; Ma-nuel Faustino dos Santos, pardo livre; Inácio da Silva Pimentel, pardolivre; Luís Gama de França Pires, pardo escravo; Vicente Mina, negroescravo; Inácio dos Santos, pardo escravo; José, escravo de D. MariaFrancisca da Conceição; Cosme Damião, pardo escravo; José do Sacra-mento, pardo alfaiate; José Félix, pardo escravo; Filipe e Luís, escravosde Manuel Vilela de Carvalho; Joaquim Machado Pessanha, pardo livre;Luís Leal, escravo pardo; Inácio Pires, Manuel José e João Pires, par-dos escravos; José de Freitas Sacoto, pardo livre; José Roberto de San-ta-Ana, pardo livre; Vicente, escravo; Fortunato da Veiga Sampaio,pardo forro; Domingos Pedro Ribeiro, pardo; o preto gege Vicente, es-cravo; Gonçalo Gonçalves de Oliveira, pardo forro; José Francisco dePaulo, pardo livre; Félix Martins dos Santos, pardo; tambor-mor doRegimento Auxiliar, além de brancos como Cipriano Barata e outros.

Recolhidos à prisão na sua quase totalidade, ali permaneceram atéque, em 22 de dezembro, foi enviada carta ao Governador determinandofosse realizado julgamento dos implicados. Em novembro de 1799 ter-minava o julgamento com as seguintes sentenças: Luís Gonzaga das Vir-gens era condenado a morrer na forca e ter pés e mãos decepados e ex-postos em praça pública; João de Deus do Nascimento, Lucas Dantas,Manuel Faustino dos Santos Lira também foram sentenciados à forca eesquartejamento, ficando os seus corpos expostos em lugares públicos.

Igual sentença foi proferida contra Romão Pinheiro, com a agra-vante de serem os seus parentes considerados infames. (Posteriormentea sua pena seria atenuada para degredo). O escravo Cosnie Damião foibanido para a África. O pardo escravo Luís da França Pires, que con-seguira fugir, foi condenado à morte, dando a Justiça direito de ma-tá-lo a qualquer pessoa que o encontrasse. <27)

(26) Anais.(27) Os "pregões reais" lidos no momento em que os condenados subiram ao

patíbulo diziam bem do ódio que era votado contra os mesmos pelo governo por.tuguês. Sobre Luís Gonzaga das Virgens afirmava que "seja levado até o lugar daforca erigida para este suplício, e que nela morra morte natural para sempre, sen-do-lhe depois de morto separadas as mãos, e cortada a cabeça, que ficarão postadasno dito lugar da execução, até que o tempo as consuma, no que foi condenado ena confiscação dos seus bens para o Foro". Sobre Lucas Dantas, João de Deus doNascimento, e Manuel Faustina dos Santos Lira, dizia: "homens pardos f OITOS a que

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Finalmente, no dia 8 de novembro de 1799 foram executados naPraça da Piedade. Lucas Dantas e Manuel Faustino não aceitaram aextrema-unção que um padre franciscano lhes oferecera. Foram os qua-tro executados depois de ter saído o cortejo do Aljube, onde se encon-travam os mártires, para a Praça da Piedade.

Impressionante é a pouca idade desses heróis: Lucas Dantas tinha24 anos; João de Deus do Nascimento tinha a mesma idade; ManuelFaustino dos Santos Lira contava apenas 23 anos e Luís Gonzaga dasVirgens, o mais velho de todos, 36 anos.

Segundo depoimento da época, os quatro condenados portaram-seante o carrasco com uma altivez que chegou a irritar os seus algozes. (28)

Estava — com a execução dos cabeças da sedição — sufocado mais umepisódio das lutas travadas pela independência da Colónia, com o der-ramamento de sangue de escravos que também participaram dos acon-tecimentos, juntamente com os demais componentes das camadas popu-lares de Salvador.

De 1799, quando foram executados, a 1817, medeiam 18 anos, tem-po que serviu para que, em Pernambuco, com ramificações em outrasProvíncias, houvesse possibilidade de que novamente se organizasse umarevolta coin objetivo idêntico aos dos inconfidentes baianos — a inde-pendência — embora com as diferenças inerentes às particularidades decomposição social de cada uma. Se, na Revolta dos Alfaiates, tudo nãopassou de projetos, na revolução pernambucana, em 1817, a coisa mudasubstancialmente de figura.

Em Pernambuco, os insurgentes passaram da palavra à ação e to-maram o poder político. Tiveram de enfrentar, portanto, todas as vicis-situdes que a organização de um novo poder acarreta; tiveram de orga-nizar um programa de governo, uma fração d.e administradores e umaforça militar que garantisse as conquistas da revolução.

com baraço e pregão pelas ruas desta cidade, sejam levados à Praça da Piedade porser também uma das mais públicas dela, onde na forca, que para este suplício selevantará mais alta do que, a ordinária, morram morte natural para sempre, depoisdo que lhes serão separadas as cabeças e os carpos os dos primeiros feitos em quar.tos, endo conduzida a do réu Lucas Dantas ao sitio mais descoberto, e alto levan-tado, até que o tempo o consuma e da mesma sorte os quatro quartos ficando em dis-tancia proporcionadas desde a casa, que foi de sua habitação até o sitio, por ser O pró-prio destinado para o infame e sedicioso ajuntamento da noite de 25 de Agosto do anopassado, sendo Igualmente posta a cabeça do réu João de Deus defronte da casa, quelhe servia de morada, e os quartos nos cais de maior frequência e comércio desta Ci-dade, até que uns e outros sejam consumidos pelo tempo para ser assim patente atodos a enormdade do seu delito e a correspondente punição: e a cabeça do réuManuel Faustino por não ter habitação certa seja posta defronte da casa do primei-ro réu, Lucas Dantas, onde fazia a sua maior assistência". Finalizando afirmavamos pregões que isso se daria por terem tentado 03 réus "reduzirem o continente doBrasil a um Governo democrático, e o substituírem ao Suavíssimo e Humaníssimo Go.vera» da dita senhora". (Documento transcrito por Afonso Rui, op. clt., p. 155).

(28) Ainda para se ter uma ideia dos últimos instantes dos condenados videAfonso Rui, op. cit., p. 115 ss...

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A Revolução dos Alfaiates foi, do ponto de vista do conteúdo polí-tico e definição programática, o mais profundo acontecimento que ante-cedeu a Independência. A participação do escravo tinha, por isto mes-mo, um grau de coerência que advinha da coincidência de interesses dascamadas artesãs que o estruturaram e a classe escrava.

Se a Inconfidência Mineira foi um movimento de letrados e surgiud,e um descontentamento verificado em camadas que já tinham, dentrod,a estratificação da sociedade colonial, um status médio, a Revolta dosAlfaiates, pela sua composição social, teve outro significado; organizadae desenvolvida basicamente por elementos das camadas que se encontra-vam asfixiadas dentro da capilaridade quase inexistente da sociedadecolonial, projetou-se, por isto mesmo, como um movimento de homens de"pouca valia", como quer Varnhagen, isto é, foi o transbordamento deuma sedimentação de problemas que se acumulavam no seio da socie-dade colonial em detrimento dos interesses daqueles que sofriam a pres-são esmagadora de toda a pirâmide social do Brasil, por se encontraremexatamente na sua base. Os escravos, com a sua participação, deram àrevolta um conteúdo preciso, já que a abolição se inseria como um dosseus postulados fundamentais.

Daí por diante, porém, a composição das forças que se organiza-vam a favor da Independência muda substancialmente. A classe senho-rial — possuidora de escravos — entra na composição dessas forças einflui cada vez mais poderosamente, fato que determina a mudançaconcomitante de objetivo dos movimentos subsequentes. Joaquim Nabucoescreve: "depois veio o período da agitação pela Independência. Nessaformação geral dos espíritos os escravos enxergavam uma perspectivamais favorável de liberdade. Todos eles desejavam instintivamente aIndependência. A sua própria cor os fazia aderir com todas as forças,ao Brasil como Pátria ( . . . ) . Daí a conspiração perpétua pela forma-ção de uma pátria que fosse também sua. Esse elemento poderoso de de-sagregação foi o fator anónimo da Independência. As relações entre oscativos, os libertos, e os homens de cor, entre estes e os representantesconhecidos do movimento, foi a cadeia de esperanças e simpatias pelaqual o pensamento político dos últimos infiltrou-se até as camadas so-ciais constituídas pelos primeiros.

"Uma prova de que no espírito não só desses infelizes como tambémdos senhores, no dos inimigos da Independência, a ideia desta estavaassociada com a da emancipação, é o documento dirigido ao povo dePernambuco, depois da revolução de 1817, pelo Governo Provisório." (29)

Nabuco tinha toda razão ao pintar o quadro de tal modo. A própriarevolução de 1817 já é um sintoma da solução compromissada para oproblema da Independência. Somente a classe que tinha base económicasólida podia dirigir o movimento que desaguaria na Independência. Daí

(29) Nabuco, J. "O Abolicionismo", Rio.São Paulo, 1938, p. 50.

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as contradições entre as camadas letradas e populares e o núcleo básicodos senhores de escravos em todos os movimentos que se seguiram. Con-tradições que espelhavam exatamente a passagem do bastão de comandopolítico das mãos das camadas populares para as dos senhores de ter-ras e escravos. Aquilo que Joaquim Nabuco com precisão chamou de"ilusão até à Independência" irá adquirindo conotações diferentes nosmovimentos seguintes.

Da revolução pernambucana de 1817 o escravo também participará.Embora a sua atuação seja bem menos importante do que na Inconfi-dência Baiana, iremos encontrá-lo, contudo, contribuindo para a insta-lação de uma República independente dos vínculos coloniais. A revolu-ção de 1817 não terá, conforme a análise que fizemos anteriormente, umsentido e um conteúdo tão radicais como a dos alfaiates baianos. Suacomposição social será bem distinta, seu programa bem menos avançadoe os seus objetivos muito mais acanhados. No particular da abolição dotrabalho escravo, embora inicialmente fosse favorável à medida, logoapós a vitória precária da revolução o Governo Provisório apressava-seem esclarecer o assunto à classe senhorial com o seguinte documento:"Patriotas Pernambucanos! A suspeita tem-se insinuado nos proprietá-rios rurais: eles crêem que a benéfica tendência da presente liberal re-volução tem por fim a emancipação indistinta dos homens de cor escra-vos. O Governo lhes perdoa uma suspeita que o honra. Nutrido em sen-timentos generosos não podem jamais acreditar que os homens, por maisou menos tostados degenerassem do original tipo de igualdade; mas estáigualmente convencido de que a base de toda sociedade regular é a invio-labilidade de qualquer espécie de propriedade. Impelido destas duas for-ças opostas, deseja uma emancipação que não permita mais lavra* entreeles o cancro da escravidão; mas deseja-a lenta, regular, legal. O Gover-no não engana ninguém; o coração se lhe sangra ao ver longínqua umaépoca tão interessante, mas não a quer prepóstera. Patriotas: vossaspropriedades ainda as mais opugnantes ao ideal da justiça serão sagra-das: o Governo porá meios de diminuir o mal, não o fará cessar pelaforça. Crede na palavra do Governo, ela é inviolável, ela é santa.)"(so)

Para salvarem a pele tentaram uma aliança com o latifúndio escra-vista. Levantando a bandeira da inviolabilidade da propriedade privada— um dos postulados teóricos do liberalismo — estenderam esse direitoaté a posse de outros seres (uma das características das sociedades es-cravistas) servindo, assim, à defesa da propriedade dos senhores deescravos que era reconhecida no nosso país. As ideias liberais serviram,na sua forma, neste caso particular, para defender uma formação eco-nómico-social que na Europa elas ajudaram a esfacelar.

Mesmo assim, os escravos participaram da luta. No trabalho dealiciamento foi visível o interesse que os organizadores do movimentotiveram pelo elemento servil ou pelas camadas a ele diretamente ligadas.António Henrique Rebelo, 2.° tenente do Regimento da Artilharia, tinha

(30) Documento citado por Joaquim Nabuco, Op. Cit., p. 51.

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grande familiaridade com os Henriques, fato que levou o Alferes TomásPereira da Silva a inquiri-lo sobre aquele comportamento, obtendo a se-guinte resposta: "Deixa estar, é preciso tratá-los bem para nos ajuda-rem algum dia a ser livres."(31)

Quando o Conde dos Arcos iniciou a repressão contra o movimentopernambucano, ordenou o fuzilamento sumário de inúmeros escravos quelutaram ao lado dos republicanos. Na Paraíba, ao ser Amaro GomesCoutinho enforcado por haver tomado parte na revolta, juntamente comele subiram ao patíbulo, por crime idêntico, 23 escravos. < 3 1 A >

Em manuscrito transcrito por Gilberto Freyre, afirma Luís do RegoBarreto em correspondência para a Metrópole que "não foram todos osnegros, nem todos os mulatos os que tomaram o partido dos rebeldes ese uniram a eles; porém dos homens destas cores aqueles que abraça-ram a causa dos rebeldes, a abraçaram de um modo excessivo, e insul-tante, e fizeram lembrar com frequência aos moradores as cenas de S.Domingos. Os homens mais abjetos desta classe, os mesmos mendigos,insultaram seus antigos benfeitores, seus senhores ou senhoras e se pro-metiam, como todo despojo, a posse de uma Senhora, como acontecimentoinfalível: este grau de orgulho já era temível quando o Governador Inte-rino Rodrigo José Ferreira Lobo entrou nesta Capitania, e uma das me-didas mais eficazes que ele tomou foi punir prontamente com açoites atodos taqueles de que se sabia fato notável desta espécie, ou que tinhamcometido algum atentado a coberto da Rebelião." (3Z)

Convém notar, ainda, que a participação do escravo na revolta de1817 era, de uma parte, espontânea, em face de razões que já apresenta-mos e, de outra parte, uma obrigação imposta pelos seus senhores queestavam envolvidos na luta. Por isto mesmo escreveu com razão L. Bor-ges: "Os escravos que passaram a figurar entre as tropas, que assegu-ravam a vitória inicial da revolução, eram incorporados a elas por ini-ciativa daqueles que dirigiam o movimento pela independência, sendotrazidos para a luta diretamente dos engenhos onde trabalhavam". < 3 3 >O mesmo autor esclarece que "quando da ocupação da Fortaleza doBrum, já figuravam entre a tropa 600 escravos do Cabo." (34) Franciscode Paula Cavalcanti de Albuquerque "acudiu com todos os seus escravosarmados".(35) O Padre Pedro de Souza Tenório solicitou auxílio de Je-rônimo Albuquerque Maranhão, que "veio com os seus escravos", <3 6>

(31) Varnhagen, F. A. "História Geral do Brasil. S. Paulo, 5» vol.. p. 157.p. 157.

(31A) Sebastião Pagano no seu livro apologético "O Conde dos Arcos, e aRevolução de 1817" (S. Paulo, 1938) escreve sobre a participação dos escravos na-quele movimento: "Os negros ameaçando revoltar-se foram alguns deles enforcadose, só no dia 29, foram presas mais de 60 pessoas..."

(32) Apud Freyre, Gilberto: "Nordeste", Rio, 1937, p. 243 ss.(33) Borges, L.: Participação dos Homens de Cor na Revolução de 1817".

In "Estudos Sociais", n. 12, abril de 1962, p. 490.(34) Idem, idem.(35) Idem, idem.(36) Idem, Idem.

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Ascendino Carneiro da Cunha depõe que, em Itabaiana (Paraíba),foi organizado "um exército de escravos e mestiços indisciplinados, pes-simamente armados e equipados", que levantaram "uma bandeira bran-ca, símbolo da liberdade, e desceram em demanda da sede do governorealista".(3T) Na noite do dia 12 de março (viam-se) negros armados,naturalmente escravos dos patriotas e não povo".

Tais fatos aconteceram amiudamente no início da revolta, ante oimpulso que as forças populares imprimiram no sentido de radicalizá-la.No entanto, conforme já dissemos, a composição social do movimentonão permitia mais a posição hegemónica dessas camadas. Oliveira Limaescreverá que "a 8 de abril os escravos, armados no começo da revolta,tinham restituído as armas e retomado a canga". <38> Pelos fins de abrila revolta estava quase circunscrita a Pernambuco. A situação não eranada lisonjeira, quase desesperadora. Daí, entre outras medidas, teremsido libertos mil escravos que foram postos em armas.

A medida, porém, deixou — em face das circunstâncias em que foitomada — de ser uma atitude política, para converter-se ein medida mi-litar de emergência, pois, na mesma ocasião, decretou-se o recrutamentogeral, declarando-se que todo capaz era obrigado, sob pena de morte,a defender a República. <39>

Mas a República jásão em seguida os seusporém, o saldo apuradocão dos homens de cormento dos Henriques emento dos Henriques eHenriques, 4 cabras; e

estava perdida. Sufocada pelas tropas coloniais,líderes encarcerados ou executados.'"' Vejamos,através das listas dos implicados^ da participa-nos acontecimentos de Pernambuco: 4 do Regi-4 d,os pardos; Paraíba: 2 escravos, 2 do Regi-1 cabra; Ceará: l membro do Regimento dos

Rio Grande do Norte: apenas um cabra.

Com referência à cor, escreve ainda Luís Borges: "dezoito sãolivres, isto é, sete do Regimento dos Henriques, quatro do Regimento dosPardos e sete cabras e, finalmente, dois são escravos".(41)

Devemos anotar, finalmente, que esses implicados são apenas os queconstam da devassa mandada abrir pelas autoridades. Cremos, no en-tanto, com sólidos argumentos, que a contribuição do escravo foi bemmaior do que refletem tais documentos, pois apenas os mais importan-

(37) Idem, Idem.(38) Citado por L. Borges, loc. cit.(39) Pombo, R. "História do Brasil", I vol., Rio, 1953, p. 388.(40) "Os chefes rebeldes procuraram disfarçados e em fuga evitar o castigo.

O Padre João Ribeiro suicidou-ne. Dos rebetados Domingos Teotônio Borges e oitodos seus companheiros subiram ao patíbulo. Indignado com tantas execuções, ordena-das péla comissão militar, o rei fez euspendê-las, e Instituiu uma alçada civil paraprosseguir no processo. Mas esta, ainda mais sanguinolenta, excitou a animadversãopublica e o governador de então, Luís do Rego Barreto, e o Senado da Câmara do Re-cife representaram ao principe-regente implorando anistia" ( . . . ) Se as origens da re-volução foram criminosas, o termo dela, a ação dos realistas foi tão execrável ehedionda que bastaria para justificar a simpatia que ainda despertam as suas viti-mas". (Joio Ribeiro: "História do Brasil", Rio, 1900 p. 264).

(41) Borges, L.: loc. clt.

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tes foram responsabilizados, especialmente os que faziam parte da inte-lectualidade e da Maçonaria. O lastro popular da revolta não podia serenvolvido na rede da Justiça por ser muito mais difícil identificá-lo, oudele se ocupar, quando havia muito figurão a ser detido e julgado.

Como vemos, duas foram as formas fundamentais de participaçãodos escravos na revolução de 1817: a primeira como elemento que agiapor ordens do seu senhor, sem consciência, portanto, da essência, do sig-nificado da sua participação; a segunda, como elemento consciente quese rebelava contra o status em que se encontrava e que engrossava asfileiras dos insurgentes sabendo que eles tinham como objetivo extin-guir a escravidão. A primeira forma de participação mostra o escravoalienado, ainda ideologicamente estruturado nos quadros institucionaisque vigoravam, isto é, participando sem se transformar em elemento denegação do sistema escravista, mas, pelo contrário, através da sua obe-diência às ordens senhoriais, dando (paradoxalmente) substância ao re-gime. A outra forma de participação leva o escravo a se negar comotal — ao transformar-se em quilombola — e se inserir como elementode negação da ordem escravista.

Pouco depois do malogro da revolução de 1817 temos notícias deoutro acontecimento interessantíssimo que se entrosa no longo e tor-tuoso rosário das lutas dos escravos contra o instituto da escravidão eque demonstra, também, como os escravos estavam longe de entender,como era óbvio, a essência dos acontecimentos políticos. Segundo o in-forme que estamos acompanhando, os negros cativos organizaram-separa impor, nada mais, nada menos, que a Constituição que fora pro-mulgada em Portugal através da chamada revolução liberal daquele país.Os escravos mineiros, dirigidos por um negro de fartas posses chamadoArgoins, proclamaram a Constituição lusa em toda a zona onde atua-vam: Guaraciaba, Sabará, Santa Rita etc — travando combates de en-vergadura com os habitantes do Paraibuna e os pretos do Arraial deSanta Bárbara, que se colocaram contra o movimento.

Como diz Miguel Costa Filho, "o ideal constitucionalista avançarapelo interior do Brasil convencendo-se os pretos de que eram iguais aosbrancos. Em Minas, todos os portugueses (abrangeria esse gentílico,além dos reinóis, os mazombos, os descendentes brancos, ou quase bran-cos, daqueles?) desde o Rio Canizana (Carinhanha) até a Serra da Man-tiqueira eram "constitucionais". A Constituição já fora jurada na Co-marca de Serro Frio". <42>

(42) Miguel Costa Filho, com a sua costumeira probidade intelectual, discuteas fontes que amparam a existência desse acontecimento. Levanta dúvidas quantoà autencidade do documento — "Notícias de uma Revolução entre Pretos no anode 1821, em Minas Gerais" — que é apenas cópia de um "diário" — número 2* do Dia.i*) Extraordinário da Europa., de 19 de agosto de 1821, do qual não há exemplar noArquivo Público Mineiro, segundo pesquisa do citado historiador. Diz Miguel CostaPilha: "Devemos, todavia, dizer que não rejeitamos in Kmvne a autenticidade do

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O ardor e entusiasmo desses negros — inúmeros deles escravos —chegaram quase ao fanatismo. Algum tempo depois de ter Argoins ini-ciado o aliciamento dos adeptos desse movimento, contava nas suas filei-ras cerca de quinze mil negros e escravos da região de Ouro Preto.

A eles haviam aderido dois regimentos de Cavalaria Auxiliar daComarca de Serro Frio. Iniciaram, então, ataques continuados aos ne-gros da região que não haviam aderido ao movimento constitucionalista,matando-os sem compaixão. Criaram uma bandeira, usavam distintivosnas ruas e muitos deles festejavam antecipadamente a liberdade. Umadag proclamações dos seus chefes diz: "Em Portugal proclamou-se aConstituição que nos iguala aos brancos: esta mesma Constituição ju-rou-se aqui no Brasil. Morte ou Constituição decretamos contra pretose brancos: morte aos que nos oprimiram, pretos miseráveis! No campoda honra derramai a última gota de sangue pela Constituição que fize-ram os nossos irmãos de Portugal." (43)

Voltando a falar do documento que serve de base ao que estamosescrevendo, Miguel Costa Filho diz que "insiste o documento em pintá-la(a situação de Minas Gerais) em cores severas, asseverando que os pre-tos haviam jurado exterminar e matar os inimigos da Constituição. Citaalguns lugares em que se usavam seus trajes: Caeté, Pitangui, Queluz(Lafaiete) e Baependi; conta que em Paracatu mil negros, com os maishabitantes, fizeram festas públicas e que em Campanha se praticaramhorrores e houve mortes, tendo aparecido "espíritos revolucionários quese apoderaram dos negros". (">

Como se pode constatar sem muito esforço ou exibição de inteligên-cia, havia muita confusão, muita contradição e muitas limitações namente desses escravos e dos seus líderes, fato que, aliado à própria dinâ-mica da sociedade escravista, facilitou sua dissolução. Depois de algunscombates, muitos deles, ao que se diz, de alguma importância e violên-cia — como os de Diamantina e Mariana — foram-se separando, dis-persando-se na região até quando veio a Independência, fato que oslevou a se julgarem livres. E o movimento, sem maiores consequências,extingue-se. <4 5>

Entra, assim, o Brasil, em plena embocadura da sua independênciapolítica, com os escravos em efervescência, reserva social e muitas vezes

documento em que se teria baseado a notícia divulgada pelo Diário Extraordinárioda Europa, íi possível que tenha sido lançada em parte do território mineiro, entreos escravos e os negros e mestiços libertos de inferior condição por esse misteriosoArgoins ou Arguim (. . .- De qualquer forma, parece-nos que o assunto comportamaiores indagações, uma pesquisa documental mais demorada acaso não desejadapelos escritores que colocam os seus preconceitos de classe e as suas ideias retro-gradas acima da verdade histórica". (Costa Filho, M.: "Um Enigma Histórico".m "Estudos Sociais", n« 19, fevereiro de 1964, p. 312 ss).

(43) Citado por João Dornas Filho: "A Escravidão no Brasil". Rio, 1939,p. 121.

(44) Costa Filho, M., loc. cit.(45) Dornas Filho, J.: op. cit., p. 122.

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militar dos movimentos que eclodiram para dar substantivação ao nossodesligamento da Metrópole. Conforme estamos vendo, no rastilho delutas que se sucedem, o escravo é urna constante. Tal posição nascia dofato de vislumbrar, com maior ou menor clareza, conforme Nabuco tãobem acentuou, no desligamento do Brasil da Metrópole a oportunidadede conseguir a extinção do estatuto da escravidão e, concomitantemente,a sua liberdade, fato que o iria integrar no conjunto da sociedade civilbrasileira como homem livre; oportunidade, em outros termos, de anu-lar, dentro -da estratificação social existente, o status de escravo. Namedida, portanto, em que supõe estar a independência indissoluvelmentevinculada à abolição do trabalho servil, é um engajado nesse movimen-to. Os escravos continuam vendo uma "ilusão de liberdade" no processode lutas que desembocaria na Independência. Daí a sua participação seruma constante. Ao se aproximar a data da nossa Independência, movi-mentos desordenados como o de Argoins, em Minas Gerais, são sinto-mas que bem demonstram como o chamado elemento servil já aspiravae transpirava politicamente, embora dentro das limitações estruturaisque a sua situação econômico-social estabelecia.

Proclamada a Independência política do Brasil, em 7 de setembro,cumpria consolidá-la e garanti-la militarmente, já que as tropas lusas,aquarteladas na Bahia, não estavam dispostas a depor as suas armas.A batalha que se iria travar, portanto, entre lusos de um lado e brasi-leiros de outro, era decisiva porque não representava simplesmente umduelo militar, mas configurava a solução de todo o movimento políticoque se havia iniciado e desenvolvido ainda no seio da Colónia e agoraentrava em choque direto com a Metrópole. Havia um significado polí-tico muito mais vasto do que um duelo de forças no seu sentido estrita-mente militar.

Na Bahia o ambiente era tumultuoso desde 1821, com a constitu-cionalização de Portugal. Diversos incidentes surgiram. É nesta conjun-tura delicada que chega a Independência. Era governador das armas oGeneral Madeira de Melo que — não aceitando a proclamação da Inde-pendência e rejeitando as solicitações de sua rendição — inicia as ope-rações militares na Província. Se de um lado os lusos lançam na refre-ga os seus contingentes militares ali aquartelados, a população baianaapela para os filhos da Província.

Ainda, neste capítulo os escravos tiveram papel ativo. Era a últimavez que entravam na composição de forcas sociais que desejavam a inde-pendência e mais uma vez, conseguido o objetivo daqueles setores quese empenhavam dentro dos quadros institucionais do latifúndio escra-vista, ficavam marginalizados após a vitória.

Devemos salientar, agora, para melhor compreensão, quais as for-ças escravas que participaram dessas lutas e o seu comportamento glo-bal em face dos acontecimentos políticos e militares que se desenrola-vam. Quais as formas de que se revestiu tal participação? O elementoescravo durante as lutas armadas teve quatro formas básicas de com-portamento: 1) aproveitou-se da confusão reinante e fugiu para as

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matas, debandando dos seus senhores; 2) aderiu ao movimento liberta-dor para conseguir a sua alforria; 3) lutou por simples obediência aosseus senhores e 4) participou ao lado das forças portuguesas.

Quanto à primeira forma de reação, os documentos da época mos-tram como as autoridades não se descuidaram e traçaram as normas ne-cessárias para reprimi-la. O Governo Provisório que se instalara, que-rendo "acautelar", "como é do seu dever, os graves prejuízos queresultarão, tanto a particulares como geralmente a toda a Província, dadispersão dos escravos que andam vagando fora da companhia dos seussenhores pelas povoações, lugares e matas do Recôncavo e alguns reti-dos em poder estranho, ordena o seguinte:

1) Que toda e qualquer pessoa que tiver em seu poder algum escra-vo que por legítimo título lhe não pertença, o entregue a seu verdadeirosenhor; e ignorando quem ele seja, vá logo recolher à cadeia mais vizi-nha, entregando-o ao Juiz respectivo; isto no prazo de 15 dias depoisda publicação deste, abaixo das penas estabelecidas contra os receptoresde escravos alheios.

2) Que todos os Juizes e Capitães-mores façam a mais exata inda-gação para descobrirem tais escravos e fazê-los prender. Recolhidos quesejam à cadeia, darão conta pela Secretaria deste Governo, remetendouma lista circunstanciada, na qual se declare os nomes, nação e sinaisdos sobreditos escravos e a quem pertencem, sendo que eles o contassem;outrossim declarem os vencimentos que tiveram os Capitães-de-matoou quem os for prender, os quais deverão se regular pela distância emque foram presos com relação à morada dos referidos Capitães-de-mato,na conformidade do seu regimento; e o dia em que forem recolhidos àcadeia a fim de saber-se o quanto tem despendido o carcereiro em come-dorias, o que tudo se faz público pela folha que chegue à notícia de seusdonos.

3) Que todos os proprietários de Engenhos e Fazendas indaguemse nas suas terras se acolhem alguns destes escravos e os farão prender eremeter à cadeia vizinha; e não os podendo prender, por se recolhe-rem às matas, dêem logo parte aos Capitães-mores e Juizes, declarandoo lugar onde lhes conste que existem". <4 6>

Quanto à adesão dos escravos ao movimento para conquistar a suaalforria, os fatos e documentos demonstram que foi relativamente grande.Escravos formaram massa compacta ao lado do exército libertador, ten-do destacado papel militar. < 4 7 >

Aliás, quando os cativos lutavam com tal objetivo, não escolhiamde que lado deviam ficar. Os portugueses também não se descuidaram emaliciar escravos para as suas hostes com promessas de alforria. Emresposta à proclamação de Labatut, que convida os soldados da cidadea desertarem em troca de um "lote de terra e uma sesmaria", os lusosconseguiram levantar 200 escravos africanos que atacaram os nacionais

(46)(47)

Apud Brás do Amaral: "História da Independência da Bahia".Idem, tdem.

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cm Mata Escura e Saboeiro, causando danos às tropas nativas. Depoisda luta, que não foi de pouca monta, os escravos foram vencidos, tendoLabatut mandado fuzilar "cerca de 50, sendo os outros açoitados". <"'Ao tempo em que punia tão severamente os que se colocaram a serviçodos adversários, pensou em "formar batalhões de escravos libertos, comoaconteceu na antiga Roma".<4S> O Conselho Interino do Governo, aca-tando as ponderações de Labatut, que era a de "se proceder a uma presta-ção voluntária de escravos que mais parecerão para formar corpos deprimeira linha" determinou que os proprietários fossem ouvidos e con-vocados "os mencionados Proprietários, pessoas do Clero, empregadospúblicos e mais homens bons" para deliberarem sobre o assunto, sendo adecisão favorável à solicitação de Labatut.

O certo é que os Henriques já estavam, a esta altura dos aconteci-mentos, combatendo ao lado dos nacionais, sob o comando do MajorManuel Gonçalves da Silva, que tinha sob as suas ordens 1100 homens.Labatut, por outro lado, que tão severamente punira os escravos que seencontravam do lado adversário, propunha a formação de um corpo deprimeira linha de cativos "visto que estes indivíduos se tornam soldadosconseguindo a liberdade como me convenço experimentalmente com aconduta dos libertos do Imperador, que disciplinei e instruí." (so)

O Batalhão dos Libertos adquiriu, mesmo, durante as operações, umcartel de heroísmo ponderável, em consequência do seu procedimento nasinúmeras vezes que foi chamado a atuar.

Com a vitória dos libertadores, vejamos como entraram na capitalbaiana as tropas nacionais e como formaram as que eram constituídasde escravos e de elementos a eles afins. Na vanguarda ia um corpo deexploradores sob as ordens do Coronel Antero José Ferreira de Brito,seguindo-o o Coronel Lima e Silva, comandante-chefe e seu estado-maior,um batalhão do Imperador, o batalhão de Pernambuco, as tropas baianase logo em seguida o batalhão dos pretos, comandado por Manuel Gon-çalves da Silva, tendo ficado na retaguarda parte deste grupo, de guardano acampamento. < 5 1 >

Conforme estamos vendo de forma muito sumária, no episódio mi-litar que redundou na consolidação definitiva da nossa independênciapolítica, o escravo dele participou, dando o seu labor e o seu sangue aoprocurar abrir e alargar as trilhas da nossa formação como nação.

Após o fracasso da revolução pernambucana de 1817, ainda emPernambuco iremos encontrar os escravos em novo levante juntamentecom outros elementos e camadas da população, fato que se verificou noano de 1823.

(48) Idem, Idem.(49) Idem, idem.(50) Idem.idem.(51) Idem, idem.

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Se na revolução de 1817 a participação dos escravos foi parcial, nolevante a que nos estamos reportando agora foi decisiva, fundamental-Nele quase que só tomaram parte escravos e ex-escravos. Seu líder foiPedro da Silva Pedroso, que declarava sua preferência pela gente decor: ele próprio era mulato. Convém notar que esse famoso Capitão Pe-droso vinha das lutas de 1817, nas quais tivera atuação destacada eviolenta. Pertencente à 3.a Companhia do Regimento de Artilharia, amo-tinou-se naquele movimento. Do seu ato resultou matarem o BrigadeiroAntónio Joaquim e o seu ajudante-de-ordens Alexandre Tomás. Foi omesmo que tentou de espada desembainhada matar José Luís de Men-donça quando esse elemento procurou, no mesmo movimento, um acordocontemporizado!-, "conservando na fortaleza o estandarte real, como con-vite à negociação."(02)

Quando do esmagamento da revolta de 1817, foi o mesmo Pedrosoquem acompanhou com mais dois mil soldados o Padre João Ribeiro nasua retirada para o norte.

Após a Constituição de Portugal, Pedroso toma posição radical edias depois da Independência depõe a Junta Provisória presidida porGervásio ^ Pires Ferreira. "Aos 18 de setembro (1822); apresentou-seante a Câmara do Recife o comandante da força armada, Capitão Pedroda Silva Pedroso, depois de haver feito pegar em armas os corpos daguarnição e mandar alguns oficiais aos membros da Junta intimar quese demitissem, o que eles fizeram: e declarou que a força armada e opovo ali reunidos depunham a Junta, por ter esta, no ofício que dirigiuao Príncipe-Regente, tratado de facciosos os autores do pronunciamentode 1.° de julho, isto é, o mesmo povo do Recife e a tropa, e acrescentouque requeriam a eleição de um governo temporário de cinco membros,para proceder à eleição de uma nova junta." (53)

Sua exigência foi aceita. Foram eleitos: presidente, Francisco dePaula Gomes dos Santos; secretário, José Mariano de Albuquerque;membros, o padre Inácio e Filipe Néri Ferreira." (54)

Pedroso, que além da participação na revolução de 1817 e no movi-mento que estamos relatando, ainda tomará parte na Confederação doEquador, de 1824, foi o líder incontestável desses fatos. Em consequên-cia do levante, o comércio fechou as portas como medida de cautela edurante vários dias a cidade foi praticamente dominada pelos insurretos.

Enquanto durou a ocupação, os escravos e pardos que se haviamengajado à revolta, cantavam nas ruas do Recife:

Marinheiros e caiadostodos devem se acabarporque só pardos e pretosno país hão de habitar.Pois só pretos e mulatosno país hão de habitar.

(52) Calmon, P. "História do Brasil", R. de Janeiro 1959, TOO 4 p 1431(53) Op. ait. ' ' '(54) Op. cit.

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A esse movimento insurrecional aderiu a quase totalidade das forçasda l.a e 2.a linhas e as companhias Monta Brechas e Intrépidos, com-postas de mestiços e negros e sobre as quais Pedroso exercia grandeinfluência, que já vinha capitalizada dos movimentos anteriores, quan-do ele se transformou num verdadeiro condutor das camadas mais ra-dicais. Seu proselitismo, que já se havia manifestado nitidamente em1817, continuou em 1823, para desembocai', finalmente, em 1824, naConfederação do Equador.

Durante a fase na qual o movimento se considerou virtualmente vi-tirioso, as ruas da capital pernambucana estiveram cheias de "gruposruidosos da ínfima gentalha de cor e seminua/'

Pedroso, aliás, parece que gostava dessa "gentalha", sendo ela, umdos seus alicerces políticos e caldo de cultura do seu prestígio. Ao refe-rir-se a ele, Pedro Calmon escreve que "a patuléia (pretos, mulatos, di-zem os papéis) seguia os mata-marinheiros com o Coronel Pedro daSilva Pedroso-" <">

Alarmados com tal situação, que se apresentava inesperadamente, etendo em vista os acontecimentos anteriores que conturbaram a Província,pondo em perigo a ordem tradicional, os senhores de engenho logo seorganizaram para liquidar aquele movimento que punha em perigo aestabilidade do regime. No Engenho do Cabo formou-se um verdadeiroexército recrutado pelos donos dos engenhos e fazendas de Pernambucoque, comandado por Pais de Barros, seguiu para esmagar a revolta. Se-gundo Alfredo Carvalho, estavam "armados de grossos bacamartes deboca-de-sino, pesadas granadeiras reiúnas, compridas lazarinas de fuzil,monstruosas pistolas de coldres, chuços de todos os formatos, ferrugen-tos espadões de gala, facões de rabo-de-galo, recurvos como cimitarras".(58)

Essas tropas, aliadas às que a elas se juntaram, conseguiram es-magar, com relativa facilidade, a "revolta de Pedroso".

Em 1824 participará o escravo, embora de forma mais diluída.Assim, também, na República de Sabino Vieira, instalada na Bahia em1837. Os escravos negros dela participaram ativamente, formando umcorpo de tropa constituído de cativos: o Batalhão dos "Leais à Pátria"que operou sob o comando do Major Santa Eufrásia. <"> Como vemos,

(55) Calmon, P.: op. cit.(56) Citado por Gilberto Freyre: "Região e Tradição", Rio. 1941, p. 189.(57) Vide sobre o assunto "O Batalhão dos Libertos", de fidison Carneiro, «>i

"Antologia do Negro Brasileiro", Porto Alegre, 1950, p. 137 ss. Interessante é otrabalho do escritor Aidano do Couto Ferraz no qual apresenta a composição socialdas forças libertadoras na Bahia: "não foram apenas os senhores de engenho, co.merciantes e letrados que estiveram à frente das ações de massas o da luta armadaque culminou com a derrota e expulsão dos 'colonizadores portugueses do nossosolo, mas fundamentalmente os homens do povo, as pessoas das camadas pobres dapopulação, pequenos proprietários de terras, lavradores de roças, ferreiros, cala-fates, pescadores, empregados da indústria de cal, empregados nas "armações" debaleia, escravos dos "contratos" e escravos empregados nas plantações de fumo eaçúcar, que eram destemidos combatentes ou eram utilizados na tarefa de trans-portar tropas a remo para abordagens silenciosas da noite. O Batalhão Henrique

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até depois da Independência o escravo participava de outros movimen-tos que ainda lhe ofereciam aquela "ilusão de liberdade" que o 7 deSetembro não lhe deu.

Enquanto no Nordeste movimentos como a Confederação do Equa-dor apareciam como sintomas insofismáveis da disposição emancipacio-nista de diversas camadas da população, o que decorria de uma série defatores que, na sua essência, afirmava a formação da nossa consciêncianacional, no Sul a efervescência não era menor após a Independência.Certos problemas políticos que eram fruto do desenvolvimento desigualdas economias regionais, traduziam a conscientização das contradiçõesemergentes na sociedade brasileira que se diversificava economicamente,criando novas e mais complexas formas de divisão do trabalho e de acumu-lação de riquezas. Houve, por este motivo, uma interligação sub-reptí-cia mas constante entre as camadas rebeldes das diversas regiões, inter-ligação que refletia a coincidência de interesses desses elementos novosque apareciam mas se encontravam geograficamente separados. Exem-plo disto é o contacto havido entre os homens que fizeram a Confedera-ção do Equador, no Nordeste, e os que dirigiam a Revolução Farrou-pilha no Sul. O fato é muito visível e explicável. Bento Gonçalvesesteve preso em Salvador durante algum tempo, conseguindo fugir emconsequência da cooperação de oficiais e elementos ligados aos sediciososlocais. Para o Rio Grande do Sul, por seu turno seguiu o Padre JoséAntónio Caldas, que foi um dos organizadores da Confederação do Equa-dor em Alagoas; seguiram da Bahia o Coronel Rocha- o Professor JoãoRios Ferreira Firmino Teles, todos eles elementos ativos durante o tem-po que durou a República de Piratini. (57-A)

Era, por conseguinte, a conseientização de vastas áreas e camadassociais que se configuravam nesses movimentos.

Não tendo surgido a Abolição em 1822, como esperavam, os escravosnão perderam a esperança. Continuaram, como já vimos, se engajandonos movimentos subsequentes. Na Revolução Farroupilha eles se sen-tirão à vontade porque, afora a insurreição dos alfaiates, na Bahia, ne-nhum outro movimento foi tão enfática e ostensivamente antiescravistacomo o chefiado por Bento Gonçalves. A participação do escravo tinhaum caráter racional, lógico. Não havia a contradição existente nos de-mais acontecimentos quando eles participavam das lutas por ordem dosseus senhores, conforme já vimos. Além do mais, como não pesava muitofortemente na economia da região conflagrada, o escravo se transfor-mou em soldado rapidamente, adaptando as suas técnicas de combate

Dias compunha.se de mil e cem crioulos. Nas cidades do Recôncavo e nas ilhasnão era menor o contingente de homens de cor, filhos leais de nosso povo que an-siavam pela emancipação e o direito de viver". (O Guerrilheiro da Independência,"t» "Voz Operária", Rio).

(57A) "Quinze dias apenas esteve Bento Gonçalves preso no Forte do Mar.Desde a sua chegada entrou em confabulações com os republicanos da capital. Nãocombinou com eles apenas o plano da sua fuga, mas ainda o da sublevação baiana.Tinha o prisioneiro a praça de armas por menagem. Conversava com oficiais e vá.lia-se diariamente da permissão de tomar banho de mar" (Collor, L.: Garibáldi e aGuerra dos Farrapos, Porto Alegre, 1958, p. 105).

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aprendidas no Continente Negro às lutas da campanha. As própriasautoridades farroupilhas se encarregavam de emancipá-lo.

De fato, o Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná não rece-beram um contingente demográfico africano considerável, embora, o seucoeficiente fosse bem maior do que muitos supõem. O tipo da economiapastoril prescindia do escravo africano. Os trabalhos agrícolas, espe-cialmente o da erva-mate, também não eram de molde a exigir uma con-centração de braços escravos como a que a economia dos engenhos ou damineração impunha. Além disto, devemos salientar que, nas regiões fron-teiriças, havia sempre o perigo de o escravo fugir para outros países.Houve mesmo alguns atritos de caráter internacional em consequênciadesses fatos. <58> Daí não terem as camadas dirigentes da região confla-grada interesse em manter o estatuto da escravidão, tão acirradamentecomo aconteceu no Nordeste, onde era o esteio em que se escorava todaa economia regional. O Rio Grande do Sul tinha a seguinte populaçãonegra:

1814 1.4391822 22.0001835 100.000

O total da população da Província era o seguinte:1814 79.1371822 106.1961835 360.000 <5«>

(58) "As Províncias do Amazonas, Pará, Mato Grosso, Rio Grande do Sul,S. Catarina e Paraná, limitadas pelos circunvizinhos (Guianas Inglesa e Holandesa,Venezuela, Nova Granada, Peru, Bolívia, Paraguai, República Argentina e Uru.guai), em nenhum dos quais se permite a escravidão, são Justamente por isso, pé.rigos permanentes para a tranquilidade interna e para a defesa do Estado. Na últimaguerra com o governo de Montevideo, e na atual com o Paraguai, os chefes dasforças inimigas traziam sempre a missão de sublevar os escravos do Rio Grande: oninguém ignora que este recurso, posto que bárbaro, se fosse eficaz, causar-nos.iagrandes desastres. A escravidão nas Províncias fronteiras é, pois, na realidade,gravíssimo elemento de fraqueza militar. "Além disso em tempo de paz, a fuga deescravos para os territórios vizinhos e outros fatos promovem conflitos e amargu-ram algumas de nossas questões internacionais. Ainda há pouco, noticia-se do nor-te a fuga de escravos do Alto Amazonas para o território do Peru, e uma consi.derável evasão do Pará para a Guiana Francesa. As discussões que provoca a ex-tradição de escravos evadidos da fronteira do Rio Grande do Sul, as questões quetêm originado, a série de reclamações do governo oriental contra o brasileiro, re-novadas ainda recentemente em 1864, a dificuldade de se cumprirem tratados deextradição, o constrangimento que a sua execução produz, e os abusos dos rio-gran-denses que nas suas estâncias do Estado Oriental querem conservar a escravidãoainda que dissimulada sob a forma de contratos de engajamento com prazos enor.mês (10, 15 e 20 anos); tudo isso çjonspira para abolir a. escravidão na gran-de Província fronteira do Sul" (Bastos, Tavares: "A Província", São Paulo, 1937,p. 243/244).

(59) Sobre a composição demográfica do Rio Grande do Sul e o seu coefi.ciente negro relcaionado com outras regiões. Dante de Laytano nos apresenta os se-guintes dados esclarecedores: "A percentagem dos brancos na nossa população éde 10,37% somente ultrapassada por Santa Catarina que tem 84,79% quando exis-tem Estados, como o de Alagoas, com 31,08 apenas. A população de caboclos é,entre nós, de 5,35%, ultrapassada por Santa Catarina com 3,25% e Distrito Fe-deral com 3,23%, chegando à mais alta percentagem no Amazonas, 48,38%, no Pará,39,94% e no Ceará., 37,12%".

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Como muito bem diz Dante de Laytano, as estatísticas revelam quea revolução de 35 encontrou a Província com 1/3 de escravos no totalda população".(60) E acrescenta o mesmo autor: ". . .es Farrapos encon-traram nos negros, não o soldado mercenário e passivo, mas um aliado,numa campanha armada pela libertação de seu estado pelas bolsas avarasde Portugal." (61)

O escravo negro, portanto, participa neste quadro como aliado livre,criando zonas de fricção militar em diversos pontos e áreas de combate.Desde o começo, isto é, desde a tomada de Porto Alegre que o escravonegro está presente, comandado por Bento Gonçalves. Uma testemunhaafirmará que "de diversas insurreições de Escravatura agentes fizeramarmar e reunir em diversos pontos da Província e na cidade de Pelotasonde ainda conservam, para mais de trezentos a, quatrocentos escravo*armados contra a causa da Legalidade. . .< c : ) O próprio Bento Gonçalvestinha um ex-escravo que o acompanhava, tendo prestado bons serviçosà causa republicana. (fi;!)

Outros depoimentos ainda mostram que o escravo foi um aliado dosmais importantes da República de Piratini. Ainda segundo Dante de Lay-tano "foram eles elementos de colaboração, entraram com os primeirosinsurretos, estiveram a par dos segredos e das senhas revolucionárias etomaram parte na primeira avalancha que se jogou contra o Império." (°-"O Major João Manuel de Lima assumiu o comando da l.a legião de escra-vos que entrou na cidade de Pelotas. E, convenhamos, os escravos tinham

A proporcionalidade quanto ao negro, é a seguinte:Rio Grande do Sul, 8,68%, Paraíba 7,08% e Ceará 8,65% ( . . . )As estatísticas revelam que a revolução de 35 encontrou a Província com 1/3

de escravos negros no total da popuBação" (Laytano, Dante de "História da Repúbli-ca Rio-Grandense", P. Alegre, 1936, p. 147).

(60) Laytano, D. de — Op. cit., p. 147.(61) Op. cit.(62) Op. cit.(63) Diz ainda Dante de Laytano ". . .um António Joaquim da Silva por alcunha

"Menino Diabo" porque este não só andava hostilizando como comandando os lan-chôes guarnecidos e armados de escravatura..." depunha o funcionário da tesou-raria geral Pedro Azevedo e Souza no Juízo de Paz.

Os escravos retomaram — prossegue Dante de Laytano — nessa armada de espe.lança, que era como bem se poderia chamar a espécie de esquadra revolucionária,suas qualidades de energia e bravura. O próprio Gariibáldi não pode esconder o seuentusiasmo diante da vontade férrea do negro que parecia conduzir os navios deguerra para uma vltóiria certa." (Op. cit., p. 150).

(64) "Contava-se que depois de interrompida a fuga de Laje, recebera BentoGonçalves aviso de que as autoridades militares iam ordenar uma busca em suapessoa e bagagem, e que todo o dinheiro encontrado seria entregue em depósito aocomandante da fortaleza, a fim de dificultar-lhe novas tentativas de evasão.

Acompanhava-o desde a Cisplatina um escravo fugido, o Congo. Temendo ficarprivado dos recursos que trazia consigo, resolveu fosse o negro à cidade levá-los àcustódia de pessoa de sua confiança. Respondeu o preto que proferível lhe pareciaguardasse ele próprio a soma. Não gostou o amo da resposta, e com alguma irri-tação reiterou, peremptório, a ordem. Congo não ousou insistir, e foi à cidade. Devolta, afirmou que fizera a entrega de acordo com as instruções do senhor.

"A busca, entretanto, não se efetuava. E um belo dia foi o prisioneiro surpre-endido com a ordem de embarcar imediatamente num brigue de guerra pronto a

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razões de sobra para combater ao lado dos Farrapos. O sentimento anti-escravista dos seus líderes, como já assinalamos, justificava plenamenteesse engajamento. Bento Gonçalves e Domingos de Almeida, ministro daJustiça e Interior da jovem República, assinavam, a 11 de maio de 1839,documento no qual afirmavam: "o Presidente da República para reivin-dicar Direitos inalienáveis da humanidade, não conseguindo que o livrerio-grandense de qualquer cor que os acidentes da Natureza os tenhamdistinguido, sofra impune e não vingado o indigno, bárbaro, aviltante eafrontoso tratamento que lhe prepara o infame Governo Imperial, emrepresália, a que lhe é provocado, Decreta:

Artigo Único: Desde o momento em que houver sido açoitado umhomem-de-cor a soldo da República pelas autoridades do Governo doBrasil, o General Comandante-Chefe do Exército, ou Comandante das di-versas divisões do mesmo, tirará a sorte aos Oficiais de qualquer grauque sejam das tropas Imperiais nossos prisioneiros e fará passar pelasarmas aquele que a mesma sorte designar." lo:il

Compare-se este documento com o lançado pelo governo revolucioná-rio de 1817. A diferença é flagrante e o saldo é todo a favor dos far-roupilhas.

E havia mais: a jovem República comprava centenas de escravos aosseus senhores, todas as vezes que eles assim o exigiam, para que pudessemcombater como soldados livres nas fileiras dos Farrapos.

Não foi apenas como lanceiro, soldado de infantaria ou nas cargasde cavalaria que o negro se destacou pela importância do papel, mas naMarinha também.

Lanchões armados, tripulados por ex-escravos faziam parte da pe-quena frota farroupilha. Em várias oportunidades tiveram de provar asua bravura, conforme testemunho de outros participantes dessas refregas.Rafael e Procópio, negros, participaram juntamente com Garibaldi, docombate que as tropas farroupilhas mantiveram em Camaquã contraFrederico Moringue. Muito da resistência que foi oferecida àquelechefe legalista deve-se à disposição dos escravos que estavam ao seu lado.O próprio Garibaldi, que tão ativa e corajosamente participou ao ladodas tropas de Bento Gonçalves, criando mesmo uma auréola d,e herói dedois mundos, nas suas memórias, declarou: "Quisera um lugar para es-crever, gravar cm bronze os nomes destes valentes companheiros, que em

sair para a Bahia, sendo-lhe ao mesmo tempo comunicado que não podia levar con-sigo o escravo.

Desesperava-se Bento Gonçalves cena a impossibilidade de mandar buscar odinheiro, quando dele se aproxima o "Conguinho" e lhe segreda, desapertando ocinto:

— O dinheiro está aqui!"(Collor, Lindolfo: "Garibaldi e a Guerra dos Farrapos", Porto Alegre, 1958,

p. 105).(65) — Laytano, Dante de, op. cit.

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número de quatorze se me reuniram, combatendo durante cinco horas cin-quenta inimigos".(66)

O abolicionismo dos chefes da República de Piratini não arrefeceumesmo nos momentos mais críticos. Depois de reconhecidamente derro-tados, não abdicaram das suas posições antiescravistas.

Nas condições de rendição não abandonaram à sua própria sorteaqueles que, sendo escravos, lutaram ao seu lado. (67)

Na Paraíba, em 1874, quando foi adotado no país o novo sistema demedidas (métrico decimal), o povo da cidade de Campina Grande saiuàs ruas para protestar, supondo tratar-se de novos e mais elevados impos-tos. Aos descontentes, juntar-se-à uma parcela de escravos daquela cida-de que, comandados por um negro chamado Manuel do Carmo, assumiupraticamente a direção do levante. O escravo Manuel do Carmo e seuscompanheiros marcharam para o Sítio Timbaúba em busca do presi-dente do Conselho Municipal, Bento Gomes Pereira. Cercada a casa, apa-rece a figura do presidente da Câmara, visivelmente nervoso e temeroso,sendo, na ocasião, interpelado pelos escravos que exigiam "o livro defundo da emancipação onde estavam pintados os escravos novos".

O movimento já tinha assumido proporções inteiramente novas edramáticas; os escravos haviam aproveitado o descontentamento dos habi-tantes da cidade para exigirem a sua liberdade. Gomes Pereira, mali-ciosamente, entregou um livro aos escravos sediciosos que não sabiam ler,afirmando ser o do "fundo". Ludibriados dessa maneira, retiraram-se elevaram consigo, como reféns, todos os que se encontravam no sítio.

Quando chegaram em Campina Grande, de regresso, são procuradospelo Padre Calixto Correia Nóbrega, vigário local, que tenta dissuadi-losdo seu intento. Já haviam os escravos, a essa altura, compreendido ologro de que foram vítimas. Sem uma orientação clara, apesar das con-tínuas levas de escravos que vinham de todos os pontos engrossar as fi-leiras de Manuel do Carmo, os escravos resolveram internar-se nas mataspróximas. Por outro lado, marchava para Campina Grande um forte con-tingente chefiado por Belarmino Ferreira da Silva. Compreendendo asua inferioridade numérica e a desvantagem tática de permanecerem nacidade, embrenharam-se nas matas transformando-se em quilombolas.

Com a saída dos escravos de Campina Grande, o movimento do "Que-bra-Quilos", como ficou sendo conhecido, logo seria abafado e os seusprincipais dirigentes aprisionados. (C8)

(66) — Garibaldi: "Mi Lucha por Ia Libertad" — B. Aires, 1944, p. 36.(67) — A posição antiescravista dos Farrapos foi mantida até o fim. Quan.

do foi discutido o Tratado de Paz com o Império, estando já, portanto, os farrou-pilhas derrotados pois era o documento de sua rendição, impuseram uma cláusula,a quarta, que tinha a seguinte redação: "São livres e como tais reconhecidos oscativos que serviram na Revolução". Como vemos, os escravos que se engajaramno movimento de Bento Gonçalves, mesmo com a sua derrota, conseguiram a Uber-dade por que lutaram de armas nas m&os.

(68) Jurema, A. "Insurreições Negras no Brasil", 1935, p. 13.

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Conforme estamos vendo, não foram lutas esporádicas — c o quadroque acabamos de apresentar está longe de ser completo quer na sua exten-são, quer na sua profundidade — mas uma sequência decorrente da pró-pria estrutura econômico-social da Colónia e do Império, o que vale dizer,decorrência da estratificação quase impermeável de uma sociedade escra-vista.

Além das lutas em que o escravo regro participou, juntamente comas demais camadas e classes da sociedade, há as revoltas de escravos nasquais ele lutou isolado, por objetivos próprios. É o que veremos adiante.

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Quilombos e Guerrilhas

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O quilombo foi, incontestavelmente, a unidade básica de resistênciado escravo. Pequeno ou grande, estável ou de vida precária, em qualquerregião em que existia a escravidão, lá se encontrava ele como elementode desgaste do regime servil. O fenómeno não era atomizado, circuns-crito a determinada área geográfica, como a dizer que somente em. deter-minados locais, por circunstâncias mesológicas favoráveis, ele podia afir-mar-se. Não. O quilombo aparecia onde quer que a escravidão surgisse.Não era simples manifestação tópica. Muitas vezes surpreende pela capa-cidade de organização, pela resistência que oferece; destruído parcialmen-te dezenas de vezes e novamente aparecendo, em outros locais, plantandoa sua roça, constituindo suas casas, reorganizando a sua vida social eestabelecendo novos sistemas de defesa. O quilombo não foi, portanto,apenas um fenómeno esporádico. Constituía-sc em fato normal dentro t!asociedade escravista. Era reação organizada de combate a uma forma detrabalho contra a qual se voltava o próprio sujeito que a sustentava, < " >

Em Minas Gerais, Mato Grosso, Goiás, Pernambuco, Alagoas, Ser-gipe, Maranhão, onde quer que o trabalho escravo se estratificava, aliestava o quilombo, o mocambo de negros fugidos, oferecendo resistên-cia. Lutando. Desgastando as forças produtivas, quer pela ação militar,quer pelo rapto de escravos, fato que constituía, do ponto de vista eco-nómico, uma subtração ao conjunto das forças produtivas dos senhoresde engenho. Sua organização interna tinha como elemento importante asinstituições tribais que os negros traziam da África e que aqui deixa-vam de ser meros elementos supérstites à medida que o escravo se rebe-lava, tornando-se elementos de negação do sistema escravista. A hierar-quia que se estabelecia nos quilombos exprimia um novo sistema devalores criado pelos rebeldes, isto é, significava que a dicotomia senhor-cscravo deixava de existir para se estabelecer outra que funcionava den-tro dos padrões de controle dos próprios elementos do quilombo.

(1) — As autoridades entendiam por quilombo "toda habitação de negros f ugidos que passem de cinco, em parte desprovida, ainda que nfto tenham ranchoslevantados nem se achem pilões neles" (Resposta do Rei de Portugal a consultado Conselho Ultramarino, datada de 2 de dezembro de 1740).

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Como dissemos, era portanto o quilombo uma instituição naturalna sociedade escravista. As fugas sucessivas que decorriam da própriasituação do escravo, exigiam que se organizassem núcleos capazes dereceber o elemento rebelde que necessitava, como é natural, de convivercom semelhantes para sobreviver.

Elemento complementar do quilombo, muitas vezes independente desua estrutura, foi a guerrilha, que proliferou em diversos locais nosquais os quilombos apareciam. Menos numerosa, a guerrilha tinha outrosobjetivos: o quilombo aglutinava os elementos que fugiam e procuravadar-lhes uma estrutura organizativa estável e permanente. Daí funcio-nai- aquela hierarquia de valores tribais a que nos referimos, além dosseus traços de cultura que funcionavam no desenvolvimento da agricul-tura local, na fabricação de armas, ria forma de governo.

A guerrilha era extremamente móvel. Por isto mesmo pouco nume-rosa. Atacava as estradas, roubando mantimentos e objetos que os qui-lombos não produziam. Eram seus componentes também sentinelasavançadas dos quilombos, refregando com as tropas legais, os capitães-do-mato e os moradores das vizinhanças.

Edison Carneiro, estudando as formas de luta dos escravos, carac-teriza-as da seguinte maneira: a) a revolta organizada, pela tomada dopoder, que encontrou a sua expressão nos levantes dos negros males(muçulmanos), na Bahia, entre 1807 e 1835; b) a insurreição armada,especialmente no caso de Manuel Balaio (1839) no Maranhão; c) afuga para o mato, de que resultaram os quilombos, tão bem exemplifi-cados no de Palmares. ( 2> De fato, estas três formas fundamentais deluta caracterizaram, de um modo geral, os movimentos dos escravos con-tra o instituto da escravidão. Devemo-nos lembrar, porém, para que nãofique o panorama incompleto, de duas outras formas de resistência usat-das pelos escravos: 1) as guerrilhas, como já foi dito acima e 2) a par-ticipação — como vimos no capítulo anterior — do escravo em movi-mentos que, embora não sendo seus, adquirirão novo conteúdo com asua participação. (2A) No presente capítulo estudaremos especialmente osquilombos e as guerrilhas-

(2) — Carneiro, Êdison — O Quilombo dos Palmares, São Paulo, 1947, p. 13.(2-A) — Algumas vezes o quilombola terminava transformando-se em bandolei.

ro. E o caso do célebre Lucas da Feira, na Bahia. "Lucas era um negro criouloescravo. Em 1828, ele fugiu do seu senhor e organizou com a ajuda de alguns ou-tros escravos fugitivos, chamados Flaviano, Nicolau, Bernardino, Januário, José eJoaquim, um bando que desde esse tempo até 1848, infestou as grandes estradas queconduziam à 'cidade de Feira de Santana, então simples vila.

Durante vinte anos estes bandidos cometeram crimes de toda espécie. Manti-nham a pacifica população da vila presa de tal terror que, quando em 1844, o ban.dido Nicolau foi morto pelos policiais que o perseguiam e sua cabeça trazida à cida-de, se celebrou o acontecimento com verdadeiras festas públicas, que foram reno-vadas e duraram três dias, quando Lucas foi aprisionado." ( . . , . ) mesmo sem ins-tdução fez-se chefe do bando. Não agiu absolutamente como os negros escravos quese suicidavam: ele tomou a ofensiva. ( . . . ) Interrogado muito habilmente neste sen-tido, tomou todo cuidado em não comprometer seus cúmplices. Negou todos os fa-tos que pudessem denunciá-los. Premido ao extremo acabou por declarar que nãodenunciaria jamais seus amigos, sabia, que seus dias estavam contados, mas jamais

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Incluímos a luta dos escravos do Preto Cosmo neste capítulo pormotivos óbvios: se aparentemente ela se assemelha a uma insurreiçãopela tomada do poder, e em determinados momentos afigura-se com to-nalidades nitidamente voltadas para este fim, foi, no entanto, no seiode um quilombo que fermentou inicialmente, pelo menos no aspecto quenos interessa mais diretamente. Além do mais, foi apenas o coroamentode todo um longo processo de lutas dos quilombolas maranhenses, comoveremos adiante. Como, por questões metodológicas, separamos estenúcleo mais radical do conjunto de forcas políticas que desencadearamoficialmente o movimento, achamos que a ênfase que damos ao aspectojustifica a sua inclusão neste capítulo: saíram dos quilombos para asguerrilhas. Poderão pensar que a participação de Manuel Balaio e doPreto Cosmo em aliança com os betn-te-vis obrigar-nos-ia a apresentaresses fatos enquadrados nas linhas do capítulo "Participação dos Escra-vos nos Movimentos Políticos". Quem estuda, porém, detidamente, asforças sociais que desencadearam o movimento, vê facilmente que osescravos sempre tiveram objetivos independentes dos políticos bem-lc-ri-se por eles sempre foram alijados de posições mais importantes, não sepodendo portanto falar em uma aliança entre essas duas forças. Quan-do a luta chegou à sua derradeira fase, com a derrota das forças rebel-des, essa diferenciação poderá ser mais facilmente verificada com aparticipação dos elementos bem-te-vi-s na caça aos remanescentes doshomens do Preto Cosme e do Balaio. Essa ala, porém, continuou a lutaaté ser definitivamente esmagada, depois que esses políticos capitularame passaram a agir como aliados do inimigo de ontem.

O processo de luta dos escravos no Maranhão, é bom insistir, con-tinuará após o esmagamento da Balaiada como já existia antes da suaeclosão. O mesmo podemos afirmar em relação aos "Papa-Méis" de Ala-goas, também estudados no presente capítulo.

Os quilombos proliferaram inicialmente como forma fundamentalde resistência. Em todas as partes da Colónia ele surgia logo surgisseo sistema escravista e o seu modo de estratificação. Enchiam as matase punham em polvorosa os senhores do terras c vidas humanas. Por istomesmo, no decorrer da escravidão, vemos tumultos constantes e lutas dequilombolas se sucederem, conformo já acentuamos: ataques às fazen-das, mortes de feitores e capitães-do-mato, lutas de guerrilhas. EscreveAfonso Arinos de Melo Franco, rcferindo-so aos escravos do Rio de Ja-neiro: "Atacam os seus próprios senhores. Assim, em Rio Bonito, ofazendeiro José Martins da Rocha Portela foi morto pelos seus negros.Tentativas de morte contra senhores também havia, como a que se deucom o fazendeiro Miguel Teixeira do Mendonça, de Barra Mansa, ou

trairia aqueles que outrora o haviam ujudado." (Rodrigues. Nina: "As Colettvicia-des Anormais", Ri» de Janeiro, 1939, p. 153 ss) — Lucas da Feira depois de con-fessar todos os seus crimes foi condenado à morte e enforcado na cidade de Feirade Santana (então vila) a 25 de setembro de 1849. Ver a respeito: "Lucas, o De-mónio Negro" de Sabino de Campos (Pongetti, 1957), que apesar de ter como sub.titulo, "Romance Folclórico Baiano", é um documentário valioso, contendo pesqui-sas inéditas sobre Lucas da Feira.

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com o sinhô-moco, f i lho do fazendeiro José Joaquim Machado, rio localMurundu, em Campos". ( : t )

Mas a revolta coletiva — conforme já tivemos ocasião de salientar— será a forma característica de luta entre os escravos.

Os quilombolas criarão vários focos de ação nas margens do Rio Pa-raíba, de onde incursionarão para atacar as fazendas mais próximas.Ali juntar-se-ão aos índios que também lutavam contra a escravidão,constituindo força capaz de atacar inesperadamente os senhores de enge-nho que, alarmados e temerosos de suas atividades, várias vezes solicita-rão providências à Câmara contra tais atos.

As providências surgirão. Isso, porém, não impedirá que os quilom-bolas cont inuem atacando até vilas e povoados.

Em consequência desses fatos, grupos de capitãcs-de-mato percorre-rão o interior dando caça aos escravos fugidos. A Câmara instituirá pré-mios para os captores dos quilombolas. Em 1669, apesar das inúmerasmedidas repressivas, são vistos refugiados na Serra dos Órgãos, ondecontinuam suas investidas contra os seus senhores. A audácia desses qui-lombolas aumenta com o passar do tempo, chegando mesmo a atacar aestrada de São Cristóvão. < 4 >

Os escravos paraibanos lançaram-se muito cedo à luta por sua liber-tação. Foi, inicialmente, o quilombo, a forma adotada. Fugiam para asmatas, tornando-se um perigo constante ao sossego dos senhores de ter-ras e de engenhos daquela área, fato que não passará despercebido aoGoverno de Portugal, que enviará, logo depois de ser cientificado, ins-truções para que fossem impiedosamente destruídos. Muitos dos escra-vos vindos de Palmares — com a experiência de luta adquirida naquelereduto — estabelecerão um agrupamento de quilombolas em CumbeF hojeusina Santa Rita. Iniciarão, logo depois de estabelecidos no local, umasérie de ataques que os deixará temidos. Investiam contra fazendas para

(3) — Mello Franco, A. A. — "Agitação dos Escravos do Rio de Janeiro", in"Antologia do Negro Brasileiro, Porto Alegre, 1950. — Aliás, em todo o Brasil asmortes ou tentativas de assassínio dos senhores pelos escravos eram muito frequen-tes e enchem todo o período escravista. Em 1831, em Pernambuco, os escravos doEngenho Genipapo levantaram-se, assassinaram o feitor e fugiram para as matas.Em correspondência para a Corte comunicava na época uma autoridade o "funestoacontecimento havido no dito engenho no dia 22 do mês próximo passado" (MS trans.orito por Gilberto Freyre i» "Nordeste", R. de Janeiro, 1938). Pandiá Calôgeras,abordando o mesmo assunto, escreveu que "começavam os escravos a ser conside-rados como um perigo social, pela frequência dos assassinatos praticados em seussenhores. A 26 de fevereiro de 1834, Aureliano declarava em aviso ao Juiz de Di-reito da 4« comarca de S. Paulo, que não deferira a Regência o recurso de graçade um réu escravo condenado à pena última pois tais crimes, por sua repetição,ameaçavam a ordem social "e deve a sentença dar.se pronta execução, e que parao futuro assim se deverá praticar em quaisquer réus de igual natureza, independen-te de subirem à presença da mesma Regência as sentenças na conformidade do cita-do Decreto de 11 de abril de 1829". ("Da Regência à Queda de Rosas", S. Paulo,1933, p. 333).

(4) — Coaracy, Vivaldo: "Quilombolas no Rio de Janeiro", m "Antologia do Ne-gro Brasileiro", P. Alegre, 1950.

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conseguirem víveres, armas e novos elementos que iriam engrossar ocorpo dos insurretos. (5)

Os fazendeiros solicitarão imediatas providencias contra os "rou-bos que experimentavam os moradores do Sertão do Cariri, Tapuá eTaipu do mocambo Cumbi". A Carta Régia que comunica o fato diz ain-da que naquele mocambo se encontravam índios, orçando em cerca desetenta o número de indígenas e negros ali aglomerados. As medidas re-pressoras serão imediatamente postas em prática, sendo enviado Jerô-nimo Tovar de Macedo com quarenta homens para fazer frente ao redutode quilombolas, no que não lograram êxito. Com a derrota sofrida pelastropas enviadas, a situação se agravou para os senhores da região, ata-cados constantemente pelos escravos fugidos. Novas providências serãotomadas e, tempos depois, João Tavares de Castro, com um corpo demercenários, marchará contra o quilombo, travando combate cerradocom os seus componentes, "suprimindo muitos", aprisionando vinte ecinco, arrasando, finalmente, o reduto. Muitos anos depois, em 1851,será dissolvido outro foco de quilombolas que constituía "sério perigo"e vinha resistindo tenazmente às investidas das autoridades. <6>

A Metrópole, ante o agravamento de situação tão vexatória, tomaránovas providências contra tal estado de coisas e, em 1741, mandará queseja rigorosamente cumprido o Alvará de 7 de março daquele ano, queestatuía fosse ferrado — ferro em brasa — com um "F" na testa todocativo que fugisse e fosse encontrado em quilombo e cortada uma ore-lha em caso de reincidência. Esas medidas, porém, não conseguirãodeter a marcha da luta dos escravos paraibanos contra o estatutoda escravidão. Pelo contrário: as cadeias públicas se encherão deescravos rebeldes. Assassínios de feitores, de senhores de engenho,de capitães-do-mato serão fatos comuns na região paraibana durante a vi-gência da escravidão. Em 1865 a cadeia da Capital foi palco de umacena que bem ilustra o grau de rebeldia desses escravos. Um negro queali fora recolhido se rebelou contra os maus tratos a que vinha sendosubmetido. Em consequência foi condenado a receber quatro dúzias depalmatoadas. Encontravam-se também presos na ocasião, na mesma ca-deia, inúmeros outros escravos. Imediatamente a solidariedade dos de-mais prisioneiros se fez sentir para com o que seria castigado e, na oca-sião em que o condenado — chamava-se Francisco — era retirado daprisão para sofrer o castigo, os demais atiraram-se sobre a guarda, ori-ginando-se em seguida violenta luta corporal. No conflito foram mortosos escravos "Ildefonso, condenado à morte pelo júri de Sousa; Félix, con-denado às galés perpétuas pelo júri de Pilar; Tomás, pertencente a Joa-quim Moreira Lima, que se achava recolhido à requisição do seu senhor;o guarda nacional Manuel do Prazeres, que fazia parte da guarda da

(5) — Ver o capítulo sobre Palmares no qual procuramos resumir o que foio reduto da Serra da Barriga, baseados em alguns autores e documentos antigos eno trabaQho de Edison Carneiro, evidentemente a melhor obra aparecida até o mo-mento sobre o assunto, trabalho clássico.

(6) — Vidal, Ademar: — "Dois Séculos de Escravidão na Paraíba", m "Estu-dos Afro.Brasileiros", Rio, 1935.

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cadeia; e foram feridos gravemente os presos José, escravo pronunciadopor ferimentos graves em Pedra de Fogo; Joaquim, escravo fugido e oguarda nacional João Francisco do Nascimento; levemente feridos osescravos Raimundo, condenado às galés pelo júri de Mamanguape; doissoldados de linha — Luís Fernandes Duarte e Telésforo Pereira da Sil-va — e 3 guardas nacionais." ( r )

Pelas consequências podemos avaliar as proporções da luta.

Certas particularidades da sociedade mineira propiciavam a fugados escravos. Havia uma cisão profunda entre as duas partes fundamen-tais da sociedade — uma ligada à Metrópole e outra discordante da si-tuação em que se encontrava (era tfomposta de contratadores, faiscado-res, artesãos, pequenos comerciantes, militares de baixa patente, etc) .Isto sem falarmos na própria massa escrava inteiramente destituída debens materiais e direitos políticos. Criou-se, portanto, o caldo de culturaonde fermentaram, desde o século XVII, sucessivas revoltas.

Os quilombolas se aliavam aos contrabandistas de diamantes e serãouma preocupação constante; muito trabalho darão aos dirigentes da Ca-pitania. Segundo um historiador dessa região — M. M. de Barros Latif— em consequência das facilidades que os escravos encontravam para afuga na mineração, a repressão se processará com mais vigilância emMinas Gerais de que nas demais capitanias, tendo, mesmo, as cadeias,públicas se transformado nos edifícios mais importantes das cidades,vilas c povoados mineiros; importância que advinha da vigilância re-pressiva .movida pelo governo, repressão tanto mais acentuada quantoera o interesse da Metrópole em arrancar as riquezas do subsolo mineiro.

Durante muito tempo viveu no distrito diamantino um legendárionegro chamado Isidoro, conhecido posteriormente por "O Mártir", quedurante anos atuou à frente de 50 quilombolas, praticamente invencívelaté a morte, no ano de 1809. ( f t )

(7 ) — MS transcrito por Ademar Vldal, loc. cít, p. 126.(8) — Joaquim Felício dos Santos descreve as atividades de Isidoro da se-

guinte forma: "Isidoro era um pardo que fora escravo de um frei Rangel, que viviada mineração. Processado como contrabandista foi confiscado a seu senhor em be-nefício da fazenda Real, e condenado a trabalhar nos serviços da Extração comogalé. De caráter altivo e não podendo suportar a pena, que o obrigava a trabalharde calceta, um dia limou os ferros, conseguiu iludir a vigilância dos guardas, fugiudo serviço e atirou-ee à vida de garimpeiro. Sucedeu que outros escravos, tambémcondenados, imitassem seu exemplo. Reuniram.se e Isidoro constituiu.se o chefe deuma tropa de garimpeiros escravos". ( . . . ) " . . . entretinha frequentes comunica-ções com pessoas importantes da Tijuco que lhe compravam os diamantes que ex-traía" ( . . . ) "Câmara foi o mais acérrimo perseguidor de Isidoro: ainda mais queJoão Inácio. Declarou-lhe uma guerra encarniçada; dissimulou patrulhas por todaparte; bateu.o em diferentes lugares; empregou os meios de sedução, de ameaças,de violência com as pessoas que supunha protegê-lo. Isidoro, porém, sempre 'conse-guiu pôr se a salvo de suas perseguições, já resistindo com a força, já por traçascontaminando-lhe os planos bem combinados" ( . . . ) "Assaltado de improviso porgrande número de pedestres da intendência, resistiu (Isidoro) só e valorosamente

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De todos os quilombos existentes em Minas Gerais, possivelmente,embora não seja certo, o mais importante — pela duração e número dequilombolas reunidos — foi o de Campo Grande, ajuntamento que" mui-to trabalho deu às autoridades mineiras, antes de ser destruído, emboraoutros, como o de Ambrósio, fossem apontados como mais numerosos.Em 1741 já se tinha notícias desse reduto como sendo de alta periculo-sidade. Partiu, em consequência disto, para dar-lhe combate, um grupode carijós, negros forros e mulatos sem ofício, comandado pelo Sargento-mor João da Silva Ferreira. Em 1746 o Governador Gomes Freire refe-re-se a esse quilombo como já existindo "há mais de 20 anos", o quebem demonstra a sua antiguidade na região.

O Quilombo .de Campo Grande estendia-se numa superfície conside-rável, entre as capitanias de Minas Gerais c Goiás, e estava localizadonum espaço compreendido entre rios, e certamente, pelo que depre-endemos da leitura de diversos documentos e informações de historia-dores, não era apenas um quilombo, mas uma série deles, interligadospor diversos escalões de interesse, tendo em vista o bem comum. A se-gurança dos seus moradores era, incontestavelmente, um dos aspectosmais importantes e o seu sistema organizativo interno estava vinculado,como não podia deixar de ser, à segurança d.os mesmes, tendo-se em mi-ra as contantes incursões contra ele. O interesse que os unia era, semsombra de dúvida, a defesa contra essas expedições enviadas para des-tmí-los. Segundo informacõs que temos, possuíam um rei e uma rainha,embora documenots se refiram ao quilombo como sendo dirigido por umarepública. É o mesmo problema do Quilombo dos Palmares, já definiva-mente esclarecido com o trabalho de Edison Carneiro. Segundo Diogode Vasconcelos, cada quilombo "tinha o seu rei com oficiais e ministrosregendo-se pelo despotismo africano ( . . . ) imitação quase dos Palma-res." (0) Usavam também um sistema defensivo parecido com o de Pal-mares, com paliçadas protetoras. Além de se defenderem, faziam surtidas,sendo as suas atividades predatórias tão temidas que a região sefoi despovoando, pois os moradores se retiravam à medida que elesinvestiam, com medo de novos ataques, coisa que sé repetia frequente-mente. Mas se os moradores da região fugiam apavorados, elementos deoutras regiões estabeleciam com esses quilombolas um verdadeiro co-mércio clandestino. "Tinham mesmo em povoados, e até vilas, agentes

por muito tempo até cair ferido com três balas. Então o prenderam, e ainda omaltrataram, espancaram, feriram como se se tratasse de um animal bravio" ( . . . ) .Isidoro, com as carnes rasgadas, e mal podendo suster-se, é levado à tortura. Empúblico, defronte da porta da cadeia, foi amarrado a uma escada, com os membrosestirados c movimentos tolhidos. Dois pedestres começaram a açoitá-lo com ba-calhaus. Logo as carnes se rasgam, o sangue salpica e abrem-se feridas aindan&o cicatrizadas". ( . . . ) "Foi recolhido à prisfto". ( . . . ) "Isidoro alguns dias de-pois, sentindo aproximarem-se os seus últimos momentos, declarou que queria falarcom o intendente para fazer.lhe uma revelação" ( . . . ) "Quis falar, tentou erguer-se; mas já era chegada a sua hora e caiu morto" ( . . . ) "Isidoro, depo!s de suamorte foi venerado como um santo. Hoje ainda se diz: "Isidoro, o mártir." (J. Fe-lício dos Santos: "Memórias do Distrito Diamantino", R. de Janeiro. 1924, p. 308 ss.).

(9) — Vasconcelos, Diogo L. A. P. de: — "História Média de Minas Gerais",B. Horizonte, 1918, p. 169.

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secretos que com eles especulavam, comprando-lhes o ouro, peles,poaia e mais coisas que podiam enviar, fornecendo-lhes em troca muni-ção e géneros. Entre os objetos desse comércio ilícito vinham os que pi-lhavam na picada de Goiás, e nos mais caminhos como nos povoados efazendas que assaltavam, sobretudo nas comarcas do Rio das Mortese Sabará." < 1 0 1

O número de negros fugidos reunidos no quilombo de Campo Gran-de era considerável, embora não possa ser precisado com exatidão. Sabe-mos, contudo, que naquela região se elevava a mais de vinte mil o totalde negros aquilombados. Por aí podemos fazer uma dedução da poten-cialidade e da quantidade populacional desse reduto. Mais de seiscentos,pelo menos, foi-mavam o seu exército, que atacava os moradores locais.

Em 1748 houve uma expedição contra esses quilombolas, comandadapolo Capitão António José de Oliveira, deixando-os "escarmentos."Um ano depois o Dr. Marcos Freire de Carvalho foi enviado com pode-res de vigário "pelos sertões do Piauí, Rio das Abelhas e Cabeceiras doSão Francisco, para abrir novas igrejas." "No entanto, ao invés de sal-vador de almas, o que o Dr. Marcos desejava, na verdade, era exploraro ouro da região. O aparato bélico de que se revestiu a sua expediçãodeixou os quilombolas de sobreaviso. O resultado de tudo isto não foi fa-vorável ao Dr. Marcos. Pelo contrário. "A comitiva do Padre Marcos —narra cronista da região — dando de rasto e suspeitas, não acabava desair da picada de Goiás e entrava no Campo Grande e eis que foi assal-tada. Caíram-lhe os negros em cima matando-lhe 42 companheiros dosquais 19 escravos seus próprios, sendo-lhe tomada toda a bagagem, ar-mas, munições, víveres e instrumentos que levava a mineração e de car-pintaria: um despojo de guerra ótimo." (11)

Esse ataque produziu viva revolta e imediata reação das autorida-des. Como os "pequenos remédios" enviados contra o reduto rebelde nãosurtiam os efeitos almejados, Gomes Freire apelou para outro recursomuito mais eficiente: formou companhia de cabos "levando reguladascompanhias comandante mui capaz e a que todos obedecessem-" Ò corposeria de trezentos homens. Após essa decisão, providenciaram-se os re-cursos materiais para as diligências. Os senados das Câmaras de VilaRica, Mariana, S. João dei Rei e Vila Nova da Rainha contribuíram com2.750 oitavas de ouro. Além das incursões maciças como as que foramnoticiadas e que eram realizadas por cerca de setecentos negros, os qui-lombolas a esta altura atacavam com pequenos destacamentos móveis devinte e trinta negros que se aproximavam dos povoados; atacavam-nosde surpresa e praticavam "crudelíssimas mortes." Com essas atividadeslevavam cada vez mais escravos para o reduto, o que fazia aumentarprogressivamente o seu número. Com esta tática chegaram a atacar umquartel, possivelmente em maio de 1755. Na sua última fase, o quilom-bo era comandado por negro conhecido como "Bateeiro." Além des-sas ligações com elementos que comerciavam com eles, os quilombolas

(10) — Op. eit., p. 167.(11) — Op. cit. , p. 167.

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de um modo geral mantinham relações amistosas com os garimpeiroscontrabandistas de diamantes. Ambos marginalizados pela sociedadeestratificada de Minas Gerais, procuravam, através dessa aliança, defen-der as suas posições. Daí afirmar Aires da Mata Machado Filho; "Aogarimpeiro se aliou o quilombola, pois um e outro fora da lei, ainda quepor motivos diversos, não tardou que se encontrassem solidários, bus-cando a subsistência nas minerações furtivas." Era todo um complexoeconómico, portanto, que se formava, dentro de categorias extralegais econferia possibilidades de sobrevivência ao quilombo. O "Bateeiro", quecomandou o quilombo na sua última fase, como o próprio nome indica,devia ser um escravo intimamente ligado à vida do garimpo.

Mas, prosseguindo nas suas batidas repressivas contra os quilom-bos em geral e do Campo Grande em particular, temos notícias de umofício de 1750, no qual sabemos que Diogo Bueno "representou, que sãoprecisas vinte canoas para a expedição ao Quilombo Grande na formaque está determinado, como se deve cuidar desta diligência para o tem-po próprio, Vmcs., vendo pouco mais ou menos o que elas podem im-portar para dar ordem ao Tesoureiro para que entregue ao dito DiogoBueno o dinheiro que Vmcs. votarem para ser preciso para se fazeremditas vinte canoas, e o tesoureiro tenha livro em que se assente estasdespesas." (12) O processo repressivo continuava a sua marcha atravésda mobilização de recursos para esse fim.

Esses componentes do quilombo do Campo Grande provavelmenteforam aqueles que mantiveram contatos com os organizadores da cha-mada revolta malograda dos escravos mineiros, que Xavier da Veigaafirma ter sido arquitetada em 1756 o que Nina Rodrigues e Diogo cieVasconcelos põem em dúvida. O "levantamento geral dos negros" que asautoridades temiam, pode estar entrosado às atividades constantes doQuilombo de Campo Grande, como afirma Miguel Costa Filho, um dosestudiosos modernos mais probos e competentes.(I3) O certo é que mes-mo levando em conta o alarma geral em que viviam as Câmaras — oque já é um sintoma da amplitude do movimento dos quilombolas — nãopodemos aceitar como efeito de pânico infundado a circular que a Câ-mara de Vila Rica distribuiu às demais informando da confederaçãoque estava sendo urdida pelos negros aquilombados. Diz a circular que"as notícias que temos de se haverem confederado os negros aquilom-bados com os que existem nesta e nessa Capitania para a noite de 15 docorrente darem um geral assalto em todas as povoações, privando devida a tudo que fossem homens brancos e mulatos, determinando mortea seu Senhor cada escravo que lhe for mais familiar. É a ordem destaexecranda determinação cometerem aos brancos, ao tempo em que dis-persos se ocuparem em correr as Igrejas sem perdoarem qualquer pes-soa que seja. não sendo mulher". A circular continuava dando detalhesdo plano dizendo- "Esta notícia que, a princípio com voz vaga foi sò-

(12) — Op. cit., p. 173.(13) — Costa Filho, Miguel: — "Quilombos" ire "Estudos Sociais" n»s. 7, 9, 10,

Rio de Janeiro, 1960-61. Aliás devemos destacar aqui a grande contribuição queesse estudioso trouxe com os artigos citados que são atualmente de consulta indis-pensável ao conhecimento do assunto e do quai nos valemos largamente.

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mente atendida, tem chegado a manifestar indícios, que requerem todaatenção por se assinalarem escravos que se dizem prepostos para rege-rem as Minas, régulos além de patentearem em muitas práticas tenden-tes a tal conspiração; e ser certo que em anos diversos se tinha perce-bido andarem de semelhantes intentos sem que se chegasse a seexperimentar seus cruéis efeitos, não parece desacerto acautelar umamina que pode com lastimoso sucesso desenganar de sua possibilidade".

Concluindo, dizia o documento: "À grande capacidade de Vmcs1.,compete dar providências necessárias em um tão factível acontecimentocomunicando também aos senados mais distantes o justo receio de umgolpe, que a todos ameaça, ao que nós ficamos aplicando nosso cuidado,pela obrigação, que nos corre, e serviço de Sua Majestade, dando jus-tamente conta ao limo. Sr. Governador e a Excia. Reverendíssima paraque naquela noite determine se não abram as igrejas por melhor evi-tarem os grandes concursos de negros, que todos os anos se obser-vam-" (1<l A delação, porém, fez abortar o movimento e os escravos, aoque parece, foram punidos, depois de o governo haver tomado todas asprovidências para o seu fracasso, o que se verificou. A ligação dessesinsurretos citadinos com os quilombolas de Campo Grande, pelo visto,não foi possível. O que não quer dizer que eles recuassem ou amainas-sem suas incursões. Pelo contrário. Continuaram, fato que determinou emcontrapartida providências sucessivas das autoridades. (16)

Como, porém, essas medidas fossem infrutíferas e servissem ape-nas para desgastar militar e politicamente as autoridades, recorreu-se,a exemplo do que se fizera em Palmares, a um bandeirante para a em-preitada. O contratado desta vez foi Bartolomeu Bueno do Prado. Depoisde partir da Vila do Príncipe, com um corpo d,e quatrocentos homensna sua marcha destruiu os quilombos das Serras de Marcília, da Canas-tra, o do Paraíba, o do Andaial, os de Andai e Bambuí, chegando final-mente ao famoso Quilombo de Campo Grande. Como vemos, o paulistarealizou uma verdadeira "razzia" contra os negros sublevados. Final-mente, em 1759 destruiu o famoso quilombo do Campo Grande. PedroTacques afirma, ao referir-se a esta expedição vitoriosa de BartolomeuBueno do Prado, que "desempenhou tanto o conceito que se formava deseu valor e disciplina de guerra contra os índios e pretos fugidos, que de-pois de organizar e atacar o quilombo voltou em poucos meses apresen-tando 3.900 pares de orelhas dos negros que destruiu, sem mais prémioque a honra de ser ocupado no Real Serviço." ( I 5 )

Não davam tréguas os escravos sublevados. Outro ajuntamento quemuito trabalho deu foi o Quilombo do Ambrósio. <"' Foi dos mais famo-sos de Minas Gerais e resistiu .durante muitos anos às investidas lança-das contra ele. O primeiro ataque que lhe foi feito (em 1746 ou 1747)

egro

(l*) — Ofício da Câmara de Vila Rica, transcrito por Diogo de VasconcelosOp. Cit., p. 170.

(15) — Tacques, P. "O Quilombo do Rio das Mortes", in "Antologia do N'Brasileiro", P. Alegre, 1950, p. 220.

(16) -- Costa Filho, M. — Loc. cit.(17) — Vasconcelos, op. cit.

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redundou em nada. O reduto continuou a crescer, recebendo novas levasde fugitivos. Dez anos depois, em consequência das proporções que adqui-rira, nova expedição punitiva foi organizada, visando exterminá-lo. Aesta altura "o quilombo grande: chamado Ambrósio" constituíra-se em pe-rigo permanente. Foram traçados novos planos e outra expedição deter-minada. Os planos que as autoridades traçaram, porém, parece queexcederam às possibilidades da execução da Câmara de Vila Nova daRainha, mesmo com auxílio real. Gomes Freire agradece a remessa de168 oitavas de ouro, mas acha insignificante a quantia enviada.

Outros quilombos serão organizados durante o transcurso da escra-vidão em Minas Gerais. Com eles as autoridades travam batalhas e esca-ramuças ininterruptas: é o de Sapucaí, que alguns acreditavam ser o maispopuloso de Minas Gerais, inacessível às tropas de capitães-do mato, poisos negros que eram contratados para servir de guias ludibriavam as tro-pas sobre o seu verdadeiro local e sobre o qual, infelizmente, temos pou-cos elementos para sua reconstrução histórica. É o de Paraibuna, contidopor tropas, capitães-do-mato e pedestres. É o do Inficionado, tambémperseguido por capitães-do-mato. É o de Pitangui, que foi localizado poracaso e em seguida atacado e destruído depois de séria resistência, tendoas suas quatorze casas demolidas ou incendiadas pelos assaltantes esuas roças de milho, feijão, algodão, melancia e outras frutas destruídas.

Os quilombolas, porém, não se deram por vencidos. Refugiaram-senas matas próximas e voltaram à carga atacando a fazenda do chefeassaltante com flechas, destruindo a sua roça c o seu gado.

Mas, não foi somente o quilombo a forma de resistência usada pelosescravos mineiros. Procuraram também insistentemente organizar su-blevações nas cidades e vilas, aliando-se nesse intento aos quilombolasdas matas próximas. Várias dessas insurreições foram registradas enotificadas pelas autoridades do tempo que, nas suas informações à Me-trópole, destacavam sempre a periculosidade de que elas se revestiam.Eram revoltas que não significavam um! protesto passivo como os quilom-bolas, mas criavam áreas conflitantes mais profundas de vez que, apro-veitando-se do quilombola das matas, transformava-o em elemento ativo,dando com isto um conteúdo dinâmico ao movimento. Os escravos cita-dinos, desta fornia, ao envolverem os quilombolas na sua trama, elevavamo nível de compreensão do fugitivo, inculcando-lhe na mente a necessi-dade da destruir os brancos, membros da classe senhorial.

Em 1720 o Governador e Capitão-Geral de São Paulo e Minas davaconta de um movimento desse tipo que ameaçou a região mineira. Repor-tava-se a cartas de 20 de abril e 21 de junho de 1719 do Conde de Assu-mar onde os acontecimentos eram relatados. Relatava a "sublevação queos negros intentaram fazer fiando-se "na sua multidão e na néscia con-

(18) — Machado Filho, Aires da Mata:Gerais", R. de Janeiro, 1943, p. 54.

— "O Negro e o Garimpo em Minas

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fiança dos seus senhores, por lhe fiarem não só todo o género de armas,mas lhe encobrirem a sua insolência e os seus delitos". (10)

Refere-se o mesmo documento às cartas escritas pelos oficiais dasCâmaras de Vila Rica e São José ao povo d.e São João d'el Rei, quedavam conta do fato. Diziam essas cartas, com o que estava de plenoacordo o Governador, que o "bom sucesso" não se consumou em face da"grande atividade do Conde Governador." (20)

Para ele, a tentativa de sublevação dos escravos, se vencedora, "cer-tamente se acabariam as Minas e pereceriam todos os brancos que ashabitam." (21> A "malícia servil", de acordo com a linguagem pitorescado documento, somente não vingou, portanto, pela pronta diligência doConde de Assumar. Mas, achamos que deve haver boa dose de exagerono relato, pois a insistência do missivista em fazer louvações e solicitarrecompensas é visível e flagrante. Dizia mais que "pareceu ao Con-selho de Vossa Majestade mande agradecer ao Conde de Assumar, DomPedro D'Almeida, Governador das Minas, o zelo e prudência, com queacudiu a impedir o intento da sublevação dos negros de que dá conta,devendo-se à sua diligência o não conseguirem a sua deliberação a qualseria de mui prejudiciais consequências se tivesse efeito, pois se viramtotalmente a perder as mesmas Minas, e os seus moradores sentiremaquele horrível golpe, a que os ameaçava esta fabricada conjuração". I2í)

Depois, como é óbvio, solicitamrse medidas repressoras. Pede-seque nenhum escravo ou livre possa usar arma ofensiva ou defensiva.A medida não se prendia apenas ao seu porte em lugares públicos masexigia que não fossem permitidas também nas suas habitações. Casoa proibição fosse desrespeitada o infrator incorreria em "pena de mortenatural o que entenderá ainda no caso que acompanhe o seu senhor, salvoem jornada e a caminho." <23> Os próprios senhores que escondessemescravos passíveis de punição também não ficariam imunes às sanções:pagariam de multa "o transdobro do valor do escravo." (24)

As medidas solicitadas, porém, iam mais longe: os negros deMinas que usavam trajes de seda "e vestidos como brancos" ficavamterminantemente proibidos de assim procederem, devendo contentar-secom "pano da terra, e só aquilo que for bastante para cobrir e livrar dainclemência do tempo porque assim perderiam os brios e entenderiamque nasceram para escravos dos brancos." (25)

O delator da conjura, Tenente-General João Ferreira Tavares, eraelogiado pela sua pronta decisão em cientificar às autoridades o que

(19) — MS da Arquivo do Conselho Ultramarino "Consultas do Rio de Ja-neiro." vol. de 1718 a 1720, fls. 232 — In Documentos Interessantes para a His-tória e Costumes de Sfio Paulo", vol. LIII, 1931, Imprensa Oficial, p. 191 ss.

(20) — Idem, idam.(21) — Idem, idem.(22) — Idem, idem.(23) — Idem, Idem.(24) — Idem, Idem.(25) — Idem, idem.

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estava ocorrendo e pela maneira como se portou durante a repressãoao movimento. Quanto às sentenças capitais, deveriam ser "executadasaté a morte natural, fazendo-se execução se possível nos lugares ondefor mais conveniente para terror e exemplo, e os mais negros cabendona forma do seu delito o castigo de galés, sejam condenados a elas emandados para o Rio de Janeiro, para servirem naquela praça na obrade suas fortificações amarrados de dois em dois." <26)

Fervilhava, como estamos vendo, a escravatura mineira. Se a re-volta de 1756 pode ser contestada, temos notícia de outra organizadaem 1864, continuando o processo dessas lutas; esta já muito mais bemorganizada do que a malograda de 1756. Segundo o depoimento dealgumas testemunhas e pessoas implicadas, ficou mais ou menos escla-recida sua estrutura. Tinham marcado a data e esperavam para êxitodo movimento o apoio dos quilombolas, ou, como eles diziam, "a rapa-ziada sujeita das matas". O levante tinha como objetivo "a liberdadedos cativos", segundo depoimento do escravo Adão, um dos seus líderes.Objetivando isto iniciaram o aliciamento de adeptos para aquela emprei-tada. Nesse trabalho se destacou o escravo Adão, que foi depois conde-nado. A cidade do Serro foi o palco dessas articulações. Entrosaram-seessas parcelas de escravos insubmissos com os de Diamantina, além defazerem repetidos contatos com os das fazendas e lavras vizinhas. Oplano seria o seguinte: lançariam fogo em algumas casas e, quando osbrancos estivessem distraídos na tarefa de extinguir as chamas, assas-sinariam "todos quantos chegassem e por meio dessa insurreição obte-riam a liberdade." <2Í) O trabalho de aliciamento e os preparativos queesses escravos certamente faziam, sem muita cautela e discrição, nomomento, logo chamaram a atenção das autoridades, principalmente dodelegado da cidade, Jacinto Pereira de Magalhães Castro. A delação,como aconteceu com a maioria dos levantes de escravos, não se farádemorar e Vicente, cabra escravo de Francisco Cornélio Ribeiro, cienti-ficou às autoridades o que estava acontecendo. São tomadas imediata-mente as providências de praxe nesses casos e aprisionados os principaiscabeças. Com essas prisões ficou-se sabendo da organização e finalidadesdo levante.

Haviam-se associado aos quilombolas que atuavam nas matas adja-centes para uma ação conjunta e coordenada. Estabeleceram para isto,um sistema de senhas para que ambos os lados que participavam darevolta (quilombolas e escravos da cidade) atacassem simultaneamente.A senha era dizer no dia, que: "a gente de João Batista Vieira estavapronta e que os de cá ainda estavam à toa, que a galinha estava mortae pronta e só faltava assar-se." Isto significaria — segundo depoimentode um dos implicados — "fugirem para o sertão mas ao mesmo tempofazer-se uma porcaria na cidade do Serro com a rapaziada." A rapa-

(26) — Id«m, idem.(27) — Carvalho Neto, P. de: — "Rebelião de Escravos" (Apresentação de

um documento inédito) — m "Resenha Literária", Recife.

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ziada obviamente eram os quilombolas. Dado início à revolta seriamqueimadas as casas do Tenente-Coronel Sebastião e de José Bento deMelo. A delação, porém, pôs por terra o plano desses escravos.

Após as prisões — que foram muitas — iniciam-se os processoscontra os implicados. Um dos mais destacados organizadores da revolta,o escravo Adão, será considerado "incurso no artigo cento e treze doCódigo Penal", "combinado com o artigo trinta e quatro do mesmo Có-digo" e condenado às galés por vinte anos. Outro acusado, o branco Her-culano de Barros, foi absolvido por falta de provas contra a sua pessoa:todas as testemunhas arroladas no processo acharam-no incapaz de me-ter-se "em súcias de escravos" ou de "aconselhar escravos para seme-lhante fim." A sentença foi: "soltura a favor de Herculano de Barros,visto que contra ele não há prova" e mandado de prisão contra oescravo Adão.

Pelo que se infere dos manuscritos, duas eram as tendências dosescravos no movimento. A primeira era a de, logo depois de vitoriososou mesmo antes, internarem-se no sertão, transformando-se em quilom-bolas. Outra tendência era a de continuarem na cidade e ali liquidaremcompletamente os seus senhores. Uma das testemunhas declara textual-mente: . . . "o plano foi combinado no lugar denominado Escola, naFazenda Sesmaria, entre José Cabrinha, Nuno e Demétrio e ajustaramque José Cabrinha viesse entender-se com Adão e do resultado mandas-se avisar a Nuno na Fazenda de Magalhães (denominada Liberdade)o este depois de entender-se com Adão mandou dizer a Nuno que istopor cá estava tudo pronto e muito bom que ele lhe mandasse notícias delá. Declarou mais que quando Nuno declarou que tinha ido à Fazendada Sesmaria e propôs a José Cabrinha o plano de fuga, este lhe respon-deu que tinha coisa melhor, e era o plano da insurreição, e então eleNuno, que tinha conversado com Adão sobre a fuga, e que ele JoséCabrinha viesse se entender com Adão que é um rapaz ativo, e astucioso,sobre a insurreição pois que ele Nuno estava pronto, e que ele só arran-java uma boa porção de escravos por estas oito léguas em redor". <28)

No final, presumivelmente haviam chegado a um acordo que en-volvia as duas táticas — tanto a de Nuno, que era a da insurreição noSerro, como a dos escravos José e Demétrio, que defendiam a fuga parao sertão; pelo menos a leitura dos manuscritos nos induz a assim con-cluir. Não chegaram, porém, a pôr o plano em execução, como vimos.A delação e a falta de organização poriam por terra mais essa tenta-tiva dos escravos mineiros contra a escravidão.

O desenvolvimento da agricultura no Estado do Rio e a concentra-ção de grande número de escravos trabalhando nas plantações de açúcarcontribuíram para que a área fluminense tivesse sido um foco dos maisimportantes de revoltas. Com apreciável índice demográfico de negrosna sua população, trabalhando na agricultura como escravos, fato que

(28) — Idem, ídem.

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determinou ser até hoje um dos Estados do Brasil com maior percenta-gem de sangue negro (29) essa região foi palco de inúmeras revoltas, algu-mas muito violentas. Repetia-se nas terras fluminenses o mesmo dramade todas as áreas onde o trabalho escravo se estratificava: as revoltassurgiam num verdadeiro rosário. Quando não eram revoltas eram assimples fugas para o mato, subtraindo-se o negro do conjunto dos tra-balhadores ativos. Muitas foram de envergadura e deram muito tra-balho ao aparelho repressor da classe senhorial.

Justamente na época em que, na Província baiana, verificavam-seas revoltas dos nagôs (1826-1844); no ano em que os escravos mara-nhenses levantavam-se de armas nas mãos, os escravos da Fazenda Fre-guesia (1838), de propriedade do Capitão-mor Manuel Francisco Xavier,liderados pelo escravo Manuel Congo, assassinaram um lavrador branco,expulsaram os feitores e dirigiram-se armados para a Fazenda Maravi-lha, propriedade do mesmo senhor, que foi invadida e depredada.

Em seguida fizeram aquilo que sempre acontecia como segunda eta-pa dessas revoltas: retiraram-se para as matas. Refugiaram-se nas deSanta Catarina e organizaram, um quilombo, no molde dos muitos queforam criados durante a escravidão. O escravo Manuel Congo, incon-testavelmente o líder do movimento, foi aclamado rei. Depois disto, ini-ciaram uma série de violentos ataques às fazendas e engenhos das vizi-nhanças. As autoridades, porém, não estavam inativas. Organizarama primeira expedição para dar-lhes combate. Essa tropa, composta depraças e comandada por um oficial da Guarda Nacional, foi fragorosa-mente derrotada e seus componentes retrocederam praticamente em de-bandada, completamente desmoralizados, tendo o fato repercutido naclasse senhorial de forma altamente negativa. De outro lado, despertouum sentimento de euforia nos escravos, que lhes foi desfavorável. Oexcesso de otimismo levou-os a não se prepararem para novas refregasmais difíceis.

Animados com esse feito prosseguiram nas suas atividades, ata-cando e depredando, fato que porá em pânico os fazendeiros da regiãoe levá-los-á a solicitarem repetida e desesperadamente providências aoGoverno Imperial. Este não se fará de rogado. Os pedidos dos fazendeirosfluminenses que tinham as suas propriedades ameaçadas peloa constantesataques dos quilombolas serão imediatamente atendidos. O governo en-via para a região ameaçada um destacamento de tropas regulares que,no dia 11 de dezembro de 1838, dá combate ao quilombo, fazendo entreos escravos pavorosa matança. Verdadeira carnificina, pois os quilom-bolas não dispunham de armas capazes de enfrentar, em pé de igualda-de, os enviados pelo Governo. Foram trucidados sem piedade pelas tro-pas Imperiais. Os principais dirigentes de mais essa tentativa de re-

(29) — Apesar da imprecisão das estatísticas sobre a percentagem exata e onúmero de escravos nas diversas províncias, Artur Ramos, transcrevendo estatísticade Veloso de Oliveira, dá, para o RJ» de Janeiro e Corte, em 1819, época da publi-cação da estatística, um total de 146.060 escravos, quantidade que representava23,4% da população (Vide Arthur Ramos: "Introdução à Antropologia Brasileira",R. de Janeiro, 1943, l» vol., págs. 322 BB.) .

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sistência ao regime escravo, caíram prisioneiros. Caxias foi o comandantedas tropas repressoras. Submetidos a julgamento sumário e rigoroso comocostumavam ser quando julgados escravos rebeldes, sofreram penas queoscilaram entre o enforcamento e o açoite público. O principal dos cabe-ças, Manuel Congo, foi condenado a morrer na forca, sendo a sentençaexecutada no dia 6 de setembro de 1839. Outros líderes como MiguelCrioulo, Justiniano Benguela, António Magro e Pedro Dias sofreram apena de seiscentos açoites cada um. Este feito do jovem oficial, talveztenha contribuído para que fosse escolhido pelo governo Imperial paraser enviado ao Maranhão a fim de esmagar a Balaiada, especialmenteos quilombolas do Negro Cosme.

Durante a devassa que se processou do movimento, constatou-se quehavia um embrião de estrutura orgartizativa, porém ainda muito débil.Haviam, como os da Bahia, formado uma associação secreta e tudo levaa. crer que tivessem alguns dos seus membros ligações com os insurretosdaquele Estado, pois em outros levantes de escravos fluminenses tal liga-ção foi constatada. (30) Mais uma prova de que essas revoltas não eramatomizadas mas se interligavam numa rede subversiva que se espalhavapor toda a área do trabalho escravo- Da mesma forma como a Ogboniajudou os escravos na sua luta contra o instituto que os oprimia, essaorganização secreta de Vassouras foi elemento aglutinador dos escravosfluminenses. Depois da derrota de Manuel Congo essa organização se-creta continuou. Prosseguia com o mesmo objetivo: lutar contra o cati-veiro. Isto levou a que em 1847 os escravos fluminenses novamente searticulassem contra o instituto da escravidão. Com a experiência da der-rota sofrida, procuraram se rearticular de forma mais organizada. Aestrutura era bem mais sólida do que a anterior, embora ainda incapazde derrotar os senhores de escravos. Formaram grupos de cinco indi-víduos que se reuniam para discutir os detalhes da revolta, a sua data,os seus objetivos, finalmente tudo aquilo que os levaria à vitória, segun-do a expectativa dos mesmos. O chefe chamava-se Estevão Pimenta,um pardo livre.

O movimento, porém, abortou ainda no seu início, sem sequer ha-ver-se configurado mais nitidamente. Era para ter começo no dia deSão João, 24 de junho de 1847, no Município de Vassouras. Descobertaa conspiração foi logo sufocada pelas autoridades. Devassou-se então aorganização dessa sociedade secreta que já foi chamada de "maçonarianegra", fundada pelos escravos. Os chefes intitulavam-se "Tates Coron-gos" e organizavam os escravos visando a emancipá-los da escravidão.Assim como a Ogboni, com suas evidentes reminiscências tribais, serviupara dar estrutura orgânica aos movimentos dos escravos baianos, os

(30) — Esses escravos tinham ligações com os de outros Estados, numa provade que essas revoltas não eram, tópicas, mas contituiam uma verdadeira rede. Quan-do em São Salvador dos Campos, Província do Rio die Janeira, foram presos escra-vos sediciosos "usando tope no chapéu" um deles declarou que tinham recebido or-dens da Bahia. Essas ordens consistiam em se sublevarem na quarta.feira de cinzasseguinte (Padre Etienne Brazil: "Os Males — Revista do Instituto Histórico e Geo-gráfico Brasileiro, LXXII, II parte, 1909).

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Tates Corongos deviam ser elementos armados com atributos de mandoe liderança em consequência do síwíits tribal de que estavam investidos.As supervivências tribais, agindo em um. contexto social inteiramentediferente — uma sociedade estratificada — mudaram a sua função. Pas-saram a atuar como casulos dos quais surgiriam formas de resistênciacontra a nova situação em que se encontravam. Os diversos níveis dehierarquia tribal que, dentro daquele tipo de organização, teriam valorapenas interno, isto é, para a tribo, passaram a desempenhar um papeldiverso, dentro de uma nova constelação sociológica. Esses valores hie-rárquicos organizavam os escravos contra a escravidão. Convém, acres-centar que, do ponto de vista do senhor, esses escravos eram iguais amáquinas de trabalho. Entre eles, porém, a hierarquia tribal funcionavacom um objetivo: restabelecer os valores da tribo e extinguir o estadode sujeição a que se encontravam submetidos. Queriam, portanto, fazercom que, extinta a escravidão, os diversos valores sociais da tribo vol-tassem a ter validez.

É interessante notar, também, como os escravos se aproveitavam dedatas religiosas cristãs para deflagrarem movimentos sediciosos. EmMinas, na Bahia, no Estado do Rio, eles não respeitavam aquelas datasmas, pelo contrário, aproveitavam-nas para mais facilmente iniciaremos levantes. Fato que bem demonstra como aquela "ilusão da catequese"de que nos falou Nina Rodrigues é um fato incontestável. Os escravosnegros não foram aculturados, como pretendem certos sociólogos, de for-ma mecânica. Pelo contrário. A sua situação dentro da sociedade estra-tificada da época, o seu status, era o que determinava o seu comporta-mento fundamental.

A aceitação da religião da classe senhorial pelos escravos, muitasvezes apontada como o segmento psicossocial explicador da sua docilida-de, é, portanto, mais um estereótipo a ser desmontado e reanalisadopelos estudiosos que desejam não apenas justificar posições conservado-ras mas captar o processo de desenvolvimento da sociedade brasileira nasua dinâmica. Querer subordinar esse processo de transformação a pro-cessos fisiológicos secundários ou — através de um culturalismo exage-rado — subordinar a situação global das classes na sociedade a um pro-cesso de assimilação de valores chamados espirituais é mera escamo-teação. Quem analisa os fatos que se sucederam durante a escravidão,através de critérios objetivos, pode ver isto com muita facilidade.

Mas, após as revoltas a que nos referimos, no Estado do Rio de Ja-neiro, outras se sucederão. A exemplo do que aconteceu em São Paulo,quando a campanha abolicionista se havia manifestado como um movi-mento do qual participavam amplos setores da opinião pública, comosintoma da decomposição do escravismo, os escravos fugidos, os quilom-bolas, receberam apoio de inúmeros políticos liberais e antiescravistas. EmCampos, os escravos incendiavam os canaviais e fugiam. Em 1887 essesincêndios adquiriram maior vulto do que os executados em anos ante-riores. Segundo Evaristo de Morais "no decurso dos meses de janeiro,fevereiro e março arderam canaviais em quase todo o município, nas

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principais fazendas e usinas." O abolicionista Carlos de Lacerda eraconsiderado pelos senhores como responsável pela ação dos escravos, tan-to assim que tentaram assassiná-lo, não conseguindo. Morreu em seulugar Luís Fernandes da Silva, ao sair de um teatro onde se tentararealizar um ato em prol da manumissão dos escravos. Para pôr cobroaos incêndios que se sucediam, o Barão de Cotegipe expediu aviso aopresidente da Província do Rio de Janeiro ordenando que fossem dadasprovidências para a punição dos incendiários. Punha, para isto, uma ver-ba de Rs. 4:000$000, destinada a obter testemunhas e "gratificar as pes-soas livres e libertar os escravos, delatores dos verdadeiros culpados."

O mesmo Carlos do Lacerda, estimulava a formação do bastilhas(quilombos) da mesma forma que António Bento em São Paulo, fato

que determinou reação das autoridades. Daí a Câmara Municipal pedirimediatas providências contra a anarquia, insurreição c sedição prati-cadas pelos abolicionistas juntamente com os quilombolas.

Por tudo isto solicitaram os senhores de escravos a permanência deuma tropa do Exército naquela localidade a fim de resguardar os seusinteresses ameaçados pelos escravos instigados pelos abolicionistas. Aochegar a Lei de 13 de maio — segundo Evaristo de Morais — não exis-tia em Campos metade dos escravos que existiam em 1887. <•">

No Ceará, apesar do fraco índice demográfico de escravos negros,revoltas também se registraram. Temos referências de quilombos de ne-gros. Sobre o assunto escreve Raimundo Girão, evidentemente o estu-dioso que melhor abordou o tema naquele Estado: "Deixa claro a exis-tência desses ajuntamentos (mocambos) a carta que Jerônimo de Paz,Intendente das Minas dos Cariris, dirigiu ao Tenente-General Correiade Sá, Governador de Pernambuco: "O Padre António Corrêa Vaz pedeuma ordem para um crioulo chamado José Cardigo servir de Capitão-do-Campo nestes lugares e eu lhe dei em nome de V. Exa. pela necessidadeque julgo de que haja quem se empregue nas prisões dos negros fugidose criminosos que se acham nestes matos amocambados: me consta quepara parte dos Correntes têm saído negros dos mocambos e a algumaspessoas a roubar, e é preciso cuidar muito em destruir estes mocambose outros que possam ir fazendo." (33)

Tem-se também notícias de um levante de cativos na vila de Sobral,naquele Estado. Houve, igualmente, vários assassínios de senhores, pra-ticados por escravos que, muitas vezes, pagaram o seu crime na forca.

O conhecido episódio da barca "Laura Segunda", ocorrido em 1839,(ano em que os quilombolas do preto Cosme empunhavam armas noMaranhão contra a escravidão, anotemos de passagem) é característicoe bem demonstra como o Ceará não ficou imune aos atos de rebeldia doescravo negro. Os tripulantes dessa embarcação, todos escravos, amoti-

(31) — Morais, Evaristo de: — "A Campanha Abolicionista", Rio, 1924, p. 248.(32) — Girfio, Raimundo: — "A Abolição no Ceará", Fortaleza, 1956, p. 43.

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naram-se desejando conseguir melhor tratamento a bordo. Compunha-sea tripulação de vinte e três pessoas assim distribuídas: o lusitano Fran-cisco Ferreira, um ajudante de cozinha e mais um contramestre; um prá-tico e dois marinheiros. O resto — compunha-se a tripulação de vintee três homens — era formado de escravos de Luís Ferreira da Silva,dono também da embarcação. O escravo Constantino fez-se o porta-vozdas reivindicações dos seus companheiros de tripulação e solicitou docontramestre melhor tratamento do que o que vinha sendo dispensadoaos escravos da "Laura Segunda". Para se ter uma ideia de como eramtratados, basta dizer-se que nem água potável conseguiam para beber.Em consequência do seu procedimento aquele escravo foi barbaramenteespancado. Certamente tomaram-no como cabeça de motim e aplicaram-lhe as penas que tal ato exigia. Segundo trechos do diário de Manueldo Nascimento, transcritos por Edmar Morei no seu livro O Dragão doMar, <33) revoltados com o espancamento do companheiro, os demais ne-gros "começaram a maldizer; e sempre foi de mau agouro nos ergástu-los o cativo resmungar. Constantino, que era de grande resolução, afoi-fou-se a dizer na roda dos seus parceiros que em muitas outras partosjá tinham acontecido desordens por motivos de falta de comer. ..

"Com efeito, dava-se muita farinha e pouca carne. E tudo quantoum desgraçado podia auferir do trabalho, que para terceiros produziaopíparos jantares, palácios e sono largo era, exclusivamente, um poucomais de farinha e menos de carne."

"A conspiração toma corpo. Vingança é a ideia ao deixarem aságuas de Fortaleza. Constantino é o chefe da rebelião, tramada noporão da masmorra flutuante.'

No dia 10 de julho, às 9 horas, Constantino com seus companheirosse amotinam e o líder do movimento assumo o comando da embarcação.O contramestre e os demais tripulantes brancos são lançados ao mar, comexceção de um marinheiro de nome Bernardo, que se coloca ao lado dosamotinados. Encalham posteriormente o barco e desembarcam para ajornada de fuga, que empreendem imediatamente. Seguem rumo a Ara-cati mas, antes de chegarem à cidade são cercados pela polícia, travando-se combate entre as autoridades e os amotinados. São, finalmente cap-turados. Na refrega, Constantino fora ferido. Ao serem inquiridos con-fessam tudo, afirmando que nada mais fizeram do que reivindicar umdireito. João Erigido, citado por Edmar Morei, (34' afirma que "presosos negros desmentiram o medo com que fugiram e confessaram, comassombrosa lealdade, o que havia feito cada um, dando seu testemunhoda inocência dos demais. O que havia na consciência deles era a melhornoção de direito; entendiam que deviam partir ao moio todo senhorque os tolhesse-"

(33) — Morei E. -- "O Dragão do Mar, o Jangadeiro aã Abolição", R. de Ja-neiro, 1949, p. 37 ss. — Sobre a percentagem de escravos negros no Ceará con-vém consultar Djacir Menezes: "O Outro Nordeste", R. de Janeiro, 1937, p. 145 ss.

(34) — Monel, E. — Op. cit., p. 40.

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Submetidos a rigoroso julgamento a sentença não se fez esperar:Constantino e mais cinco escravos são condenados à forca e executadosna Praça dos Mártires, em Fortaleza, no dia 22 de outubro, tendo Cons-tantino se portado altivamente no momento da execução. Ó exemplo dabarca "Laura Segunda" é um dos inúmeros que — como vimos nas linhasprecedentes — encheram o período da escravidão de lutas sangrentas.

Os levantes dos escravos haitianos, que eliminaram praticamente oshabitantes brancos daquele país antilhano e causaram pânico na Europapela extensão das suas consequências, tiveram ressonância no Brasil entreos escravos que lutavam pelo mesmo objetivo dos daquela ilha.

Em 1824 um batalhão de pardos levantava-se em armas para tomara cidade de Recife de assalto. A ele aderem centenas de escravos dosengenhos. Seu líder é Emiliano Manducuru que lançou aos pardos, pretoso ao povo em geral um manifesto originalíssimo, em versos, onde reco-nhece a inspiração haitiana do seu movimento.Afirma:

"Qual eu imito Cristóvão,ftsse imortal haitiano,Eia! Imitar o seu povo,Ó meu povo soberano!

Imediatamente após esse levante o Major Agostinho Bezerra enviou,a fim de dar combate àqueles escravos sublevados, um batalhão que frus-h-ou pelas armas os intentos de Emiliano Manducuru e seus seguidores.Os versos que formam a originalíssima proclamação pertencem hoje aofolclore da região.

Conforme afirmamos anteriormente, os movimentos de rebeldiacontra a escravidão manifestavam-se onde quer que o trabalho servil seapresentasse. Na Bahia, em 1629, no Rio Vermelho, havia notíciasda existência de um agrupamento de escravos rebeldes, destruído trêsanos depois pelo governo. Em Itapicuru, no ano de 1636, surgirá outro,também esmagado pelas autoridades. E continuarão aparecendo naBahia os negros adestrados e aguerridos, com armas de fogo, atacandoas "entradas", os engenhos, destruindo roças e vidas. Como veremosadiante, os quilombos de Jacuípe, Jaguaripe, Maragogipe, Muritiba,Campos da Cachoeira, Orobó, Tupim, Andaraí, Xiquexique, além dos quese localizavam na própria Capital, muito trabalho deram às autoridades.Nas zonas rurais ou mesmo no perímetro urbano os negros se aquilom-bavam, transformando-se em constante perigo para as populações. Nãohavia trégua possível. Borges de Barros afirma por isto que o Nordestese transformou no centro de convergência das vistas do governo nãosomente para a "repressão aos índios que assaltavam os estabelecimentos

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e povoações, como para destruição de quilombos e mocambos de negrosfugidos, os quais se tornavam temerosos nos assaltos das estradas," (1)

Em todo o interior do Nordeste e na Bahia em particular os quilombosproliferavam: em Papagaio, Tucano, Rio do Peixe, Gameleira e Jacobina,segundo aquele historiador, os negros se organizaram em quilombos,sendo destruídos pelas forças de Manuel Botelho de Oliveira. < 2 > Istosem falarmos nas insurreições citadinas que serão motivo de uma aná-lise especial na presente obra e que se soma a todo este conjunto de mo-vimentos antiescravistas.

Temos notícias de que em 1726 Vasco César de Meneses dava regi-mento ao Coronel João Peixoto Viegas para mover guerra contra o gen-tio. No mesmo documento mandava-o destruir os quilombos existentesentre Cachoeira, Jacobina e Rio de Contas autorizando-o a "prizioná-lose extinguir o dito Mocambo, arrazando as estacadas que tiver para quenão haja mais memória d^lle, fazendo toda a diligencia por descobrire conquistar o chamado de Camisam, em que ha muitos annos se faliae porque pode haver n'estes Mocambos alguns nagros ou negras que fu-gissem para elles sendo boçaes e não conheção a seus senhores, nem lhesaibão os nomes, com estes se praticará o que S. Magestade tem resoluto,e assy da tomada de hus como de outros negros se pagará desta a quantiaque repartirão por todos os officiaes e soldados." (1>

Aliados aos índios na região central da Bahia os quilombolas criariamsérios embaraços às entradas e bandeiras do ciclo baiano. Fernão Car-rilho, em 1655, auxiliado pelas Companhias de Ordenanças da Torre deGarcia d'Avila e Campos do Rio Real destruiu os mocambos de Gere-moabo. Ao que parece, em todas as lutas dos "índios brabos" contra osbandeirantes havia negros fugidos aliados aos indígenas. Os índios Mon-goiós ou Nogoiós que lutavam contra o domínio dos bandeirantes eramorientados por escravos fugidos, tendo João Gonçalves da Costa apreen-dido dos mesmos, em entrada que efetuou em 1783, "um arco de guerrae de caca do gentio homem; o mesmo do gentio mancebo; o mesmo dogentio menino; doze flechas, um colar, um pandeiro de suas folganças,uma tanga de mulher, uma cinta das mesmas, uma compostura de guer-reiro, um idolo, imagem do fogo ou do sol, sobre que havia ainda umamachadinha ou acha de pedra com que os índios cortam os paus dondetiram mel e um surrão contendo fragmentos de algum vaso de barro". <•"

O próprio von Martius, numa generalização que tem muito de ver-dadeira, afirmou ser rara a tribo indígena brasileira que escapou de ter

(1) — Barros, Borges de: — "Bandeirantes e Sertanistas Bahianos", Bahia,1919, p. 177.

(2) .— Idem idein.(3) — Acioli, Inácio — "Memórias Históricas da Bahia" — 2» vol., Salvador,

1925, p. 345.(4) — Barros, Borges de: Op. cit., p. 188. Este autor, referindo-se à aliança

entre escravos, negros e indígenas, afirma que "os aborígines da região central daBahia, aliados aos negros dos mocambos que a infestavam, traçaram naquela épocaremota a diretriz a ser seguida pelos seus descendentes, derivados dos inúmeroscruzamento das três raças que ali se encontraram."

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contatos com os africanos. Na Serra Negra os escravos fugidos se homi-ziaram, o que deu motivo a constantes atos repressivos do Governo. Em1653, visando extinguir esses núcleos de rebeldia, criou-se na Bahia ocargo de capitão-rnor das entradas aos mocambos. Tinha jurisdição doRio São Francisco a Jacuípe. Em 1704 será provido de patente de Ca-pitão-mor Francisco Soares de Moura a fim de estabelecer o "sossegodos moradores circunvizinhos à Serra Negra e residentes nos distritosde Vila Nova até o Canindé, capital de Sergipe del-Rei" e evitar que osditos moradores continuassem sofrendo os "roubos, desinquietações eescândalos" que, segundo estava o governo informado, eram praticadosconstantemente por um quilombo composto de uns sessenta negros "pro-vidos de grande prevenção de armas de fogo". (5) Eram remanescentesdo Quilombo dos Palmares e certamente conseguiam essa "prevenção"através de escravos com eles solidários.

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Espalhavam-se na Bahia as revoltas de escravos a tal ponto queBorges de Barros afirmou que "eram uma praga espalhada por todos oscantos e sem remédio. Eram como irmãos coligados todos em se tratan-do de defender o sertão, de sorte que não pudessem penetrar nem maisaventureiros nem descobridores." ( l i )

Em 1688, Pascoal Rodrigues de Brito era promovido de patentepara combater os negros fugidos e levantados "desde o Rio Real da ban-da da Bahia até a torre de Garcia d'Ávila" isto porque as autoridadessabiam da "honrada satisfação que sempre teve de seu zelo e pontuali-dade." < 7 J

Em novembro de 1640 a Câmara de Salvador discutia o meio determinar um mocambo na região do Rio Real, mocambo esse que, pelasnotícias que colhemos,.muito trabalho deu às autoridades. O Vice-reiD. Jorge de Mascarenhas achava que se devia enviar um batalhão denegros Henriques, juntamente com um capelão que falasse a língua dosnegros a fim de reconduzi-los, prometendo-lhes que, se isto acontecesse,isto é, se reconhecessem que estavam errados e se entregassem, seriamengajados nas fileiras dos Henriques. Esta proposta foi, no entanto, re-jeitada pelos oficiais da Câmara. Acharam que "por nenhum modo con-vinha tratar desconcertos, nem dar logar aos Escravos que conciliassemsobre este negocio e o que convinha somente hera extinguilloz e conquis-

"As guerrilhas — continua Borges de Bairos. — os levantes inscpitados, osmorticínios e sangueiras tão comuns nas regiões compreendidas ontre Conquista,Maracás, Condeúbas, Ilhéus, cabeceiras dos rios de Contas, Jequitinhonha. Pardo.Grongogi, Canavieiras, Belmonte, Macaúbas, Lavras Diamantinas e toda a margemdo S. Francisco, encontram as suas origens no banditismo que assolou essas regiõesdurante o período citado" (Op. cit. , p. 177). A aliança de índios a negros escra-vos, pelo menos nessa região baiana, foi uma constante.

(5) — Barros, Borges de: — Op. cit., p. 217.(6) — Barros, Borges de: — Op. cit., p. 216.(7) — Acioli, Inácio: — Op. cit., 2.° vol., p. 289.

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talloz para os que estavão domésticos não fossem para ellez e os levan-tados não aspirassem maiores danoz." ("> Ciosos de suas posições declasse, dentro da rígida estrutura da sociedade da época, achavam osmembros da Câmara que nenhum acordo devia ser negociado com osquilombolas. Seria abrir frinchas na rígida carapaça do aparelho deestado -escravocrata.

Nas considerações que os representantes da Câmara de Salvadorfizeram posteriormente ao Vice-rei, apresentando as causas pelas quaisdeviam extinguir inapelàvelmente os quilombolas sem com eles parla-mentarem, dizem que "o mais proveitoso hera conquistar estes negroze pelo pouco fructo que delles setem ainda que seoz donoz delles os hajamaseopoder como setem experimento." Reportam-se depois a considera-ções de ordem prática, com base na experiência adquirida, referindo-sea uma expedição anterior contra um mocambo, dirigida pelo Coronel Bel-chior Brandão que, havendo capturado muitos dos quilombolas, resti-tuiu-os aos seus donos. Os resultados — segundo opinião dos Oficiais daCâmara — foram desastrosos. Isto porque "solevaram para Suas Cazaslhetornaram afogir levando em Companhia muitos denovo". E resolvia;i Câmara que os negros aquilombados deviam ser conquistados eos homens enviados às galés. Estabelecia ainda a Câmara, cautelosa-mente, que por negro de quilombo se devia entender aqueles que esta-vam voluntariamente no reduto e não os que eram levados à forca paralá. Como vemos, os quilombolas baianos, como os das demais regiões doBrasil, aprisionavam aqueles que não desejavam a liberdade, levando-ospara os seus redutos, colocando-os no processo de trabalho — o quilombotinha de possuir produção para sobreviver — praticamente no mesmoa tatus em que se encontravam antes.

Em 1709, Dias da Costa era provido da patente de Capitão-mor"a fim de extinguir os mocambos, aprisionar os negros e reduzir os ín-dios Maracazes, Cacurus e Caboclos"; em 1700, Pedro Barbosa Leal, queexplorava os sertões do Salitre, recebia um regimento para "fazer en-tradas nos mocambos dos negros fugidos."

Fatos como estes refletem muito bem a extensão da rede de qui-lombos na Bahia, pois abrangem desde o litoral à região do Rio SãoFrancisco em plena área de sertão e mostram o equívoco daqueles quesupõem haver o negro circulado — quer como escravo, quer como qui-lombola — apenas na faixa litorânea. O mapa da Província estava todorespingado de manchas de quilombos. Houve mesmo o fato de quilombo-las ou negros fugidos servirem de guias às levas migratórias que vinhamde Minas Gerais para a Bahia e Piauí.

O Quilombo do Orobó, em 1796, preocupava as autoridades em con-sequência das repetidas queixas dos moradores da região. No ano se-guinte, um relatório sobre as providências que foram tomadas pelas au-

(8) — "Termo que fez sobre os negros do Mocambo, e entradas que se lhedão por Ordem do Marquez Visse Rey Dom Jorge Mascarenhas, e assento que sobreoste negócio se tomou". Livro de Atasj do Senado da Camará de Salvador - apudLuís Viana Filho, "O Negro na Bahia", Rio, 1946, p. 153.

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toridades dava conhecimento de que os escravos fugidos, pertencentesa um quilombo muito antigo, destruíam e assolavam plantações vizinhas.Depois de serem enumeradas as precauções e medidas tomadas para obom êxito da expedição que estava sendo organizada, o referido do-cumento nos conta que o Capitão-mor Severino Pereira, juntamente comoutros capitães-mores, marchou contra o reduto que foi destruído emdezembro pelas forcas contra ele enviadas. No mocambo — narra aindao relatório — havia plantações de mandioca, inhame, arroz, cana-de-açúcar, frutas e outras culturas e "se prenderão treze escravos entrepretos, pretas e crias" que' foram entregues aos seus respectivos senho-res." Por esta mesma época era destruído o do Andaraí.

A Câmara de Cachoeira, por seu turno, anunciava em 1705 a exis-tência de um ajuntamento de escravos fugidos nas matas de Jacuípe.Segundo carta que foi enviada a D. Rodrigo da Costa, capitão-generalda Bahia, estavam praticando "insolências e roubos-" (9) Imediatamentemedidas eram tomadas pelo aparelho repressor senhorial. O mesmo D.Rodrigo da Costa ordenava aos capitães e mais oficiais que capturas-sem esses quilombolas, enviando-os em seguida à cadeia de Salvador.Além disto, indicava aquela autoridade a necessidade de serem engaja-dos índios na expedição, a fim de "rastejarem" os ex-escravos. Esses ín-dios, conhecedores da região, serviam para localizar os quilombolas, jáque uma das características mais constantes era a mobilidade dos qui-lombolas ao saberem da aproximação de tropas.

Já em 1706 é em Jaguaribe que se aquilombam os escravos, fatoque determinou que o Capitão-general Luís César de Meneses ao tomarconhecimento do mesmo, depois de informar que se havia cientificadoda situação penosa em que se encontrava a população daquela vila, man-dasse que o sargento-mor partisse em demanda das matas para conquis-tá-los. No caso de não existir sargento-mor na vila, deviam ser contra-tados capítães-do-mato.

Depois vêm os quilombos de Maragogipe e Muritiba, em 1713. O deCachoeira era um dos maiores da época. Mais exatamente em Cachoeira— conforme veremos oportunamente, em capítulo especial — havia umasérie deles e durante todo o transcurso da escravidão aparecerão de vezem quando. Em 1714 houve uma batida contra os mesmos ordenada peloCapitão-general Pedro de Vasconcelos. Segundo os oficiais da Câmaradaquela vila, os moradores encontravam-se em constante sobressalto, oumelhor, "recebendo de dia e de noite irreparáveis prejuízos", conformese expressa o Capitão-general D. Pedro de :Vasconcelos. Ordenava que oCoronel Bernardino Cavalcanti de Albuquerque comunicasse ao capitão-mor da vila que se preparasse uma expedição "sem a mínima demorae dilação" ( . . . ) e "com poder bastante" pusesse cerco e prendesse os"negros, negras e crias." (10)

(9) — Carta aos oficiais da Camará da Vila de Cachoeira sobre Quilcjnbos— Documentos Históricos — Bib'iote^a Nacional — Loc. cit.

(10) — Carta para o Coronel Bernardino Cavalcanti de Albuquerque sobre osmocambos de Jacuípe. — Documentos Históricos — Biblioteca Nacional, vol. XLI.apud. "Os Quilombos Baianos", de Pedro Tomás Pedreira, tn "Revista Brasileira deGeografia", ano XXIV, 1962, n" 4.

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Em outras áreas mais afastadas do litoral os quilombos se multipli-cavam. Em Xiquexique, documento datado de 1801 dá-nos notícias daexistência de dois, ao mesmo tempo que informa a formação de umaexpedição para destruí-los. A Província vivia inquieta com as ativida-des dos quilombolas. A classe senhorial da Bahia armava-se para en-frentar, quer no sertão, quer no litoral, quer na periferia da Capital, asatividades desses escravos fugidos.

Além das insurreições citadianas, que serão estudadas em momentopróprio, ainda podemos nos referir a quilombos que existiam na perife-ria da cidade do Salvador. O do Cabula. O de Nossa Senhora dos MaresO chamado Quilombo do Buraco do Tatu.

Pedro Tomás Pedreira situa esse último ajuntamento "nas cerca-nias da cidade do Salvador, e a cerca de duas léguas de distância damesma, nas margens da rodovia que liga atualmente Campinas e a vilade Santo Amaro do Ipitanga". (11) Ainda segundo este historiador o qui-lombo teve início no ano de 1744. Esses quilombolas, apesar da proxi-midade da Capital, não se postavam em uma posição passiva. Pelo con-trário. Atacavam e roubavam os moradores da vizinhança. Para se de-fenderem das tropas, punham "estrepes" nas matas, à maneira dos dePalmares, fato que, ainda segundo o mesmo historiador, "dificultavagrandemente a aproximação de elementos estranhos e das tropas dasmilícias." (12) Os arredores da cidade do Salvador ficaram perigosospara todos os que entravam ou saíam; também os proprietários de pe-quenos sítios viam-se constantemente atacados. O mais interessante, noentanto, é que esses escravos, à noite, penetravam na cidade a fim de"prover-se de pólvora, chumbo e das mais bagatelas que precisavampara a sua defesa." <1S| É óbvio, portanto, que tinham cúmplices no inte-rior da cidade. Aliás, quase sempre os quilombolas dispunham de alia-dos quer nas senzalas quer nos centros urbanos. Parece que as constan-tes incursões dos escravos ali homisiados contra os moradores irritaramas autoridades. O governo interino da Bahia ordena a sua destruição.Forma-se, então, uma expedição de mais de duzentas pessoas, com sol-dados, índios e voluntários para destruí-lo. E, de fato, conseguem redu-zir a zero o que era um grande quilombo, no dia 2 de setembro de 1763.

No local foram feitos prisioneiros 61 quilombolas "entre pretos epretas, que foram recolhidos à cadeia". Os chefes do reduto foram jul-gados posteriormente. Na sentença condenatória dos mesmos lê-se: "fo-rão por officiaes e soldados, expurgados vários Quilombos de negrosque havião nas vizinhanças desta Cidade, com grande damno dos mora-dores d'ella e dos seos contornos, de cujos quilombos vierão prezos para

(11) — Pedreira, Pedrtí Tomás; Loc. cit.(12) — Idem, id,em.(13) — Ofioio do Governo Interino da Bahia a Francisco Xavier de Mendon-

ça Furtado — Arquivo de Marinha e Ultramar — Lisbca, Doe. 6.449 — Loc. Cit.

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a Cadêa, grande numero de negros e negras; e procedendo-se em devas-sa do cazo por este Juízo se pronunciarão os cabeças d'aquelles facino-rozos e outras pessoas com as quaes mantinhão communicação; e os ne-gros que não tinhão mais delicto que o de calhambolas depois de mar-cados com a lettra F, se mandarão entregar aos seos senhores, pagandocada um d'elles, por huma rateação, o que lhe coubesse para fazera quantia da despeza que havia supprido a Fazenda Real com o sustentodos dictos officiaes e soldados." (14) Quanto ao destino dos cabeças nadase sabe.

Não foi apenas esse quilombo que existiu na periferia da Cidade doSalvador. Como dissemos, além do acima descrito existiam o de NossaSenhora dos Mares e o do Cabula. Em 1807 o governador e capitão-ge-neral da Bahia convocou o capitão-mor das entradas e assaltos de Sal-vador — Severino da Silva Lessa — e determinou fossem os dois agru-pamentos de negros destruídos imediatamente. O sossego público estavaem risco enquanto aqueles quilombos continuassem. No dia seguinte jáera requerida uma tropa composta de 80 homens para o assalto aquelesdois redutos. Além desses soldados de linha participavam da expediçãopunitiva "oficiais do mato e cabos de polícia." O resultado não se fezesperar. Como sempre acontecia, a superioridade de homens e armasdava a vitória às tropas legais. Depois de cercar diversas "casas e ar-raiais", destruiu os redutos. Parece que esses quilombolas não espera-vam qualquer repressão, pois, além de não oferecerem resistência demonta, foram aprisionados em massa, quando podiam ter-se retiradopara as matas próximas. Tudo leva a crer, pela carta que o Conde daPonte escreveu ao Ministro da Marinha de ultramar, dando conta doseventos, que havia interesses de terceiros envolvidos, pois ali se lê queesses escravos eram dirigidos por mãos de "industriozos importadores"que "aliciavam os creoulos, os vadios, os supersticiozos, os roubadores,os criminosos e os adoentados e com huma liberdade absoluta, dansas,vestuários caprichozos, remédios fingidos, benção e oraçoens-phantasti-cas e fanáticas, folgavão, comião e se regalavão com a mais escandalosaoffensa de todos os direitos, leis, ordens e publica quietação." ( i : '>

É possível que importadores, objetivando tirar de circulação escra-vos dos engenhos para substituí-los por outros, isto é, vendê-los aos pro-prietários rurais, tenham, em alguns momentos, através de terceiros, esti-mulado a fuga dos ladinos, para a venda de boçais.

Na mesma carta aquela autoridade dá conta da destruição de outroquilombos no Rio das Contas, Comarca de Ilhéus, no Sítio Oitizeiro. Oajuntamento já tinha inclusive roças e plantações. Esse chamado "gran-de quilombo" foi destruído, mas havia outros, na mesma região, "de con-sideração", que aquela autoridade esperava arrasar. Dizia ainda o Conde

(14) — L<x>. cit.(15) — Idem, idem.

da Ponte: "nascendo destas doutrinas o convidarem-se escravos dos en-genhos a se armarem Coronéis e Tenentes-Coroneis com festejos, canto-rias e uniformes, o que ouço contar aos próprios senhores com indifíe-rença, e merece bem a penna de eu tomar cautelozas medidas, e comprudência dispersal-os visto que lhe dificultozo he fazel-os recuar emnum momento todo o caminho que com tanta indulgência se lhes toleroucaminharem." (10)

Um verdadeiro rosário de quilombos se espalhava pela Província.Ainda em Rio de Contas existiu um local que hoje se denomina "Arraialdos Crioulos." Em Camisão, Jeremoabo, Salitre, Tucano, e em muitosoutros lugares os negros se organizavam em quilombos. Isto sem nosreferirmos aos pequenos ajuntamentos efémeros de dez e doze cativosfugitivos, pois seria um nunca acabar. Infelizmente não se pode fazerum cálculo d,a porcentagem de mercadoria escrava que não rendia aosseus senhores por se encontrar nas matas. Tal cálculo demonstrariacomo, durante todo o transcurso da escravidão, o quilombola diminuíaa margem de lucros que o sistema escravo proporcionava à classe senho-rial. Esse desgaste, em certas regiões do Brasil e em determinados mo-mentos deve ter contribuído para a decadência do regime servil, eufe-mismo sob o qual a escravidão era disfarçada em nosso País.

Em outras regiões do País a tática de luta dos quilombos variaráde acordo com certas circunstâncias e condições. No Maranhão, conse-guirão transformar sua luta, que antes se realizava isoladamente, emuma luta em torno da qual se aglutinarão diversas camadas da popula-ção maranhense, especialmente a grande massa componesa. Os quilom-bos que existiam desde há muito sairão da posição atomizada em quese encontravam para formarem uma força de ex-escravos unificada eativa. Tal fato se verificará em face da situação econômico-social da-quela região, que sofria, talvez como em nenhuma outra época, uma cri-se generalizada decorrente dos males crónicos das nossas relações deprodução.

Após a expulsão dos franceses, entrava em decadência acelerada aeconomia maranhense. O sistema de aldeamentos dos jesuítas mostrava-sealtamente desvantajoso. Abastardava o indígena e não dinamizava eco-nomicamente a região. O índio, por outro lado, quase não mais pesavademograficamente, dizimado que fora quase inteiramente pela brutali-dade dos colonizadores que a tudo recorreram a fim de subjugá-lo. Em1637 o flamengo Gedeon de Moris dava um total de 40.000 indígenasna Capitania do Maranhão. Pouco mais de um século depois — segundoJ. F. Lisboa — não será possível ao Governador André Vidal de Negrei-ros juntar mais de oitocentos índios para a guerra. Houve mesmo casos

(16) Doe. clt.

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de índios que eram colocados à boca dos canhões e feitos em postas como tiro. A Capitania estava em decadência franca. Pombal viu no Mara-nhão uma fonte de rendas de inestimável valor. Sua visão de estadistados mais avançados para a sua época dentro da estrutura de uma naçãocolonizadora, não podia deixar de perceber a fonte de rendas que a Me-trópole tinha nas suas mãos. Dará nessa circunstância o monopólio docomércio de escravos à Companhia do Grão-Pará e Maranhão, que in-troduzirá a moeda metálica em substituição ao escambo e à troca emespécie. Ainda circulavam — antes do monopólio da Companhia — nove-los de fios ou rolos de pano como meios de troca.

A Companhia iniciará um processo sistemático de domínio eco-nómico completo do Maranhão, emprestando capitais aos senhores deterras em dificuldades, vendendo-lhes escravos e recebendo em pagamen-to os produtos da lavoura, que eram em seguida drenados para Portugal.

Nesta conjuntura é que o escravo negro entrará como elementomantenedor das bases da economia maranhense. Transformou-se na mer-cadoria mais solicitada. Somente em 1783 foram importados para o Ma-ranhão 1.602 escravos. De 1812 a 1820 entrarão, em levas sucessivas,36.356 diretamente dos diversos portos da África, sem incluirmos nocômputo aqueles que, através de migrações internas, penetravam vindosatravés da Bahia até Caxias. Na base da exploração cada vez maior emais sistemática do trabalho escravo, as classes dominantes locais goza-rão de um período de relativa prosperidade económica. A exportaçãodo algodão subirá de 651 arrobas para 25.437! O movimento do portode São Luís crescerá de 3 para 10 navios, em 1769. No ano de 1788 ex-portar-se-á, em 25 navios, a importância de Rs. 687.748$788, ou seja:cerca de £790.000. O algodão figurará nesse bloco de exportação com11-331 sacos, num total de 67.510 arrobas. Caio Prado Júnior dirá poristo que o algodão sendo alvo tornará o Maranhão negro. De fato: todoo trabalho agrícola será mantido pelo braço do escravo africano. Nesteritmo seguirá a marcha da economia maranhense até o ano de 1817,quando, em 155 navios, exportará £ 1.000.000, ultrapassando a exporta-ção de Pernambuco e igualando a da Bahia, ambas no auge da expor-tação açucareira.

Essa exportação toda não irá, porém, proporcionar ao povo no seuconjunto, condições de vida mais favoráveis. Mais uma vez a essência co-lonial de nossa economia se manifestará na penúria da esmagadoramaioria da população e na abastança fáustica da minoria que vivia daexportação dos géneros necessários às nações das quais dependíamosatravés do controle total de Portugal. Todos os géneros aqui produzidoseram canalizados para a Metrópole através do monopólio da Companhiado Grão-Pará e Maranhão. Lavrava nas camadas sociais desfavorecidaspela situação um sentimento de revolta pronunciado contra tal estadode coisas, sentimento que virá à tona da sociedade pela primeira vezcom a revolta de Bequimão (1684) que subiu à forca porque exigia, en-tre outras coisas, a queda dp monopólio e a liberdade de comércio.

No Maranhão, em face disto, grande era o coeficiente demográficonegro. Veloso de Oliveira dava para 1819 um total de 200.000 habitan-

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tes, dos quais 133.332 eram escravos e 66.668 livres, com uma porcen-tagem de 66,6% de escravos sobre a população total. Como se vê, amassa escrava preponderava sobre a população livre. Essa escravariase localizará na zona agrícola da Província, especialmente nas regiõessituadas às margens dos rios Mearim e Pindaré. Como veremos, logose revoltarão contra o instituto da escravidão. Os quilombos surgirão,em consequência. O primeiro quilombo foi destruído em 1709. No oestemaranhense as rebentinas de negros continuaram. Em Maracaçumé osescravos descobriram ouro e negociavam com aventureiros. Outros qui-lombos, como o de Jaquarequara, localizado entre o Gurupi e o Sincatã,serão aniquilados. O Governador Franklin Dória destruirá o Quilombode S. Benedito do Céu, cm 1867. Os ataques desses quilombolas chega-rão ao conhecimento das autoridades que tomarão medidas repressoras.Em 1772 estouraram as insurreições de S. Tomé, que foram terríveis.Os quilombolas, aliados aos índios, atacaram o povoado de S. José e sóforam derrotados depois de sérias lutas.

Segundo Ribeiro do Amaral "a escravaria não poucas vezes amea-çava o sossego público, subtraindo-se parte dela ao jugo do senhorioe aquilombando-se nas matas donde, em surtidas, iam roubar as fazen-das circunvizinhas, sendo necessária força armada para capturá-los."

Dos quilombos, um qu-e maiores vestígios deixou, foi o do Turiaçu,que durou cerca de quarenta anos, sendo constantemente atacado, massempre se refazendo até que finalmente foi destruído. Esse quilombo si-tuava-se numa vasta região que se estendia entre o Pará c o Maranhão.Apesar de ter sido atacado constantemente quer pelas autoridades daprimeira quer da segunda Província, conseguiu resistir por quase meioséculo. Para que esse quilombo fosse destruído as autoridades tiveramde criar uma delegacia de polícia com jurisdição nos municípios de Pa-ruá e Maracaçumé, enviar uma força armada para o último dos muni-cípios mencionados e fundar uma colónia militar no Gurupi. Os compo-nentes da força militar varreram a região dos negros aquilombados deponta a ponta, destruindo-os completamcntc. Como nos outros quilom-bos, os fugitivos mantinham contato com elementos de fora, inclusiveno sentido de intercambiar ouro das minas que esses quilombolas ex-ploravam, por outros artigos.

Em muitos outros locais a escravaria se revoltava. Mas, o líder in-contestável desses negros foi o preto Cosrm?. Estava condenado à forcai: preso na cadeia de S. Luís. No entanto conseguiu evadir-se, embre-nhar-se no sertão e dirigir um quilombo. Nas cabeceiras do Rio Pretoorganizará um quilombo de mais de 3.000 negros sob a sua direcão. Essereduto ainda não teve o seu historiador nem sabemos se, com a falta deelementos para ser estudado presentemente, será ainda possível umareconstituição científica de como se formou e desenvolveu internamen-te. Será difícil a reconstituição da vida social e económica naquele re-duto. A própria personalidade do líder quilombola é apresentada apenascomo a de um assassino vulgar, quando não de um megalómano ou para-nóico. Caxias refere-se a ele como "o infame Cosme" . O que podemos

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afirmar, porém, sobre as atividades do preto Cosme no seu quilombo éque, sob a sua liderança, foi fundada uma escola e estabelecido um. sis-tema de piquetes de guerrilheiros que incursionavam às fazendas vizi-nhas de onde tiravam víveres e traziam novos insurretos.i"" Isto tinhade acontecer pois o número crescente de escravos que aderiam ao qui-lombo não permitia que se estabelecesse no reduto uma economia auto-suficiente.

Mas não era somente o preto Cosme que se rebelava contra o insti-tuto da escravidão. Em 1838 o subprefeito da vila da Manga terá porcautela uma força de vinte e tantos homens por causa dos quilombolasdo Itapicuru. Ao estourar o movimento da Balaiada, em 1838, o pretoCosme será um dos seus chefes mais ativos, mas sem nunca ser aceitopelos políticos berw-te-^vis, nem aceitar a linha oportunista dos mesmos.Tal posição independente foi reconhecida pelo próprio Caxias, que, ao in-formar haver pacificado a Província, escreve: "Se a estes (os efetivos dosbalaios) adicionarmos três mil negros aquilombados sob a direção do in-fame Cosme, os quais só de rapina vivem, assolando e despovoando asfazendas, temos onze mil bandidos, que com as nossas tropas lutaram."Mesmo o chefe pacificador separou as duas forças no seu relatório.

Outro dos seus chefes — também de cor — será o mulato ManuelFrancisco, que se intitulará "tenente dos pretos" e (segundo ofício envia-do denunciando o início da revolta) "é o que mais tem seduzido a gentede cor, porque essa gente muito acredita no seu semelhante."

O certo é que — com a experiência adquirida durante o tempo emque lutavam nas matas — os quilombolas do preto Cosme, juntamentecom os de "Manuel Balaio", aplicarão a tática de guerrilhas que tantos etão profundos danos causarão às tropas legais. No dia 7 de março de 1839as tropas das diversas colunas dos balaios farão sua junção na vila daManga, região já tradicionalmente conhecida como foco de quilombos.O preto Cosme chefiará três mil escravos, iniciando a marcha, depois vi-toriosa, sobre a cidade de Caxias. No dia 1.° de julho daquele ano, acidade, sitiada, cairá ante o impacto das forças rebeldes. Ali instau-rará uma junta governativa que tomará a si a responsabilidade de pre:

parar a defesa da cidade e entender-se com as autoridades.

Os quilombolas do preto Cosme cantavam nas ruas ocupadas da ci-dade de Caxias:

O Balaio chegou!O Balaio chegou!Cadê branco?Não há mais branco!Não há mais sinhô!

Após a capitulação da ala menos radical da Balaiada, constituídade elementos vacilantes aglutinados no chamado partido Bcm^te-vi. se-rão os líderes como Cosme e Manuel Francisco que — mesmo desorde-

(17) — Serra, Astolfo: — "A Balaiada", R. de Janeiro, p. 220.

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nadamente — continuarão a luta, até seu esmagamento total. Aliás, o»bem-te-vis se aproveitaram do movimento de massas que os líderes bali&ÚMrealizaram, para conseguirem proveito político imediato, obtendoposições e facilidades. Contribuíram, por outro lado, para prejudi-car a união total dos camponeses sublevados com a massa escrava quepululava nas fazendas de algodão do Maranhão. A luta, de qualquer for-ma, prosseguia. Ao chegar Caxias ao Maranhão a coisa que mais lheinteressou foi esmagar os quilombolas. Em agosto de 1840 assistiu pes-soalmente um ataque à concentração de escravos do preto Cosme. Outroslíderes, ao verem o movimento em declínio e a perspectiva de uma anistiapor parte do presidente da Província, passaram a combater os quilom-bolas, seus antigos aliados. O caudilho Poderosa, por exemplo, aceitoua condição imposta por Caxias: combater os quilombolas para conse-guirem o perdão. "Aceita a condição — narra um historiador — Po-derosa lançava-se contra os negros fugidos, nas florestas, e os reduziamais ainda como forca organizada, e assim, jogando os balaios brancose mestiços contra os escravos negros, já ao raiar de 1841 podia anunciarem ordem do dia que a rebelião estava terminada, com a rendição, emMiritiba e Icatu, na sua presença, dos últimos caudilhos em armas, Rai-mundo Gomes inclusive, com aproximadamente 3.000 homens. Só o "in-fame Cosme" ficava restando, "vivendo de rapina e assolando fazendas",perseguido pelas forças legais e por muitos balaios que com eles já cola-boravam beneficiados todos cie — menos o capitão quilombola — peloDecreto de anistia:" ( 1 7 -A )

Finalmente, Cosme foi derrotado e feito prisioneiro, depois de ba-leado na perna. Juntamente com ele foram capturados 2.400 quilom-bolas que estavam sob seu comando. Levado para São Luís, foi julgadoe enforcado.

Apesar da repressão sangrenta de Caxias contra os quilombolas, aslutas dos escravos continuam. Em 1840 vê-se obrigado a baixar a Lei 98,criando o Corpo de Guardas Campestres, cuja finalidade era esmagar osquilombolas. Diz a Lei no seu artigo 6.°: "Ó Cmt de guarda ou guardasque prenderem escravos fugidos receberão do senhor do escravo a grati-ficação de 2ÇOOO, e quando em quilombo, dez mil réis, pagos estes prémiosantes da entrega do mesmo escravo, e dividido entre osi que concorrerampara a prisão-" E no seu artigo 7.°:... "quando o ataque dos quilom-bos foi feito a requerimento de interessadas, pagarão estes, vencimentosdiários dos guardas que forem empregados no mesmo ataque, se esteporém for ordenado sem proceder requerimento de interessados, e neleforem apreendidos escravos, pagarão seus senhores pro-rata conforme onúmero dos que pertencerem a cada um, o vencimento diário dos ditosguardas, não excedendo em caso algum, vinte mil réis, o que o senhorhouver de pagar por cada escravo apreendido." ( IS) Como se vê o "CódigoNegro" que Teixeira de Freitas se recusou a escrever, nem por isto deixoude existir, através de uma série infindável de leis como esta.

(17-A) — Gérson, Brasil: — "Garibáldi e Anita", R. de Janeiro, 1953, p. 95.(18) — Documento transarito por AstcJlfo Serra no seu livro — "Caxias e o

seu Governo Civil na Província do Maranhão", R. de Janeiro, 1942.

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III

Em Alagoas podemos citar o exemplo dos papa-méis. Esses negrosfugidos, de lendária fama na região onde atuaram, engrossarão substan-cialmente as fileiras do caudilho Vicente de Paula, um dos chefes domovimento Cabano, naquela área. Convém destacar, para melhor escla-recer o assunto, que a participação desses quilombolas em um movimen-to nitidamente restaurador, modificará o seu conteúdo, pelo menos na suafase derradeira, pois o leque de forcas populares se abrirá enquantoaquelas forças conservadoras, ligadas à economia tradicional — os gran-des donos de terras — dele se desligarão. As causas do movimento, istoé, a sua configuração política restauradora para sermos mais preciosos,serão levadas de roldão ante as modificações que se processarão na suacomposição de forças sociais. A participação dos quilombolas da regiãoe o prestígio que lhes deu Vicente de Paula são fatos que virão modifi-car substancialmente os objetivos da luta. É que os articuladores do mo-vimento, ao verem que o mesmo não se iria resolver rapidamente, pró?curaram entrar em entendimentos com as autoridades. O melhor histo-riador desses acontecimentos escreve a respeito: "Com António Timóteo,pequeno proprietário e homem humilde de Panelas do Miranda, e com osíndios do Jacuípe, ganhou a rebelião o apoio das massas, das camadasmais pobres da população, que a continuaram por muitos anos, enfren-tando as maiores dificuldades, ao mesmo tempo em que os homens pode-rosos que a tramaram, que a organizaram, ou foram presos, ou depu-seram as armas. É que iniciaram uma simples quartelada, uma revolu-ção para ser vitoriosa em poucos dias, mas a plebe, os índios e depoisos escravos, iniciada a luta, fugiram ao seu comando, ao seu controle,e se colocaram sob as ordens de chefes humildes como eles, saídos daprópria plebe, como Vicente Ferreira de Paula, que melhor consultavaaos seus interesses." (10)

Depois dessa primeira etapa, Vicente de Paula contará apenas comos papa-méis no prosseguimento da luta. O presidente da Província nasua Fala de 1.° de dezembro de 1833 afirmava que "homens que maisse assemelhavam a uma horda de antropófagos do que cidadãos, sem prin-cípios, sem moral, e sem Religião, levados pelo único instinto imitadordas bestas ferozes, entre as quais vivem, e favorecidos da posição quehabitam de matas impenetráveis (Jacuípe e suas imediações) tais sãoos revoltosos e são as tropas com que temos empenhado uma luta tãoporfiada, debalde o Governo tenha dado todas as providências ao seualcance para os chamar à ordem." Em seguida enumerava os danos cau-sados por esses rebeldes que praticavam, entre outros, "a dissolução de umterreno imenso nos subúrbios de Porto Calvo, a destruição de muitosengenhos, o definhamento da agricultura, a paralisação do comércio, a

(19) — Correia de Andrade, Manuel: — "A Guerra dos Cabanos" — R. deJaneiro, 1965, p. 49.

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diminuição das rendas públicas e o que mais é, o derramamento de san-gue e a perda da vida de muitos bravos defensores da Lei." < 2 0 >

Manuel Correia de Andrade agrega: "Compreende-se que fossem osescravos, por medo de voltar ao cativeiro, os que se conduzissem com maisdedicação a Vicente Ferreira de Paula. Os que lutaram até o fim. Ne-nhuma esperança lhes trazia a paz e, temerosos da conclusão da luta,passaram a fiscalizar os que queriam depor as armas. Por isto, à pro-porção que se tornava mais difícil a situação dos rebeldes, era dos escra-vos que Vicente de Paula recebia as maiores provas de dedicação c fide-lidade e era neles, que nada tinham a lucrar com a paz, que o chefe maisconfiava. Por isto, iam-se tornando o grupo mais influente nas hostesrebeldes. Daí uma revolução, iniciada por políticos absolutistas sequio-sos de poder, ir-se tornando, gradativamente, uma verdadeira luta denegros contra a escravidão. Tomava, assim, pouco a pouco, a Guerrados Cabanos, um sentido bem diverso daquele sob cujo signo se iniciara,e só não sofreu certamente tal transformação em seus objetivos porquenão possuiu líderes mais esclarecidos, melhor conhecedores dos problemasdas massas que conduziam." < 2 I >

Dentro das próprias forças de Vicente de Paula chegou mesmo ahaver certa divergência entre a gente livre "e os escravos que compõema força dos Saltiadores, por serem estes mais promptos em suas execuçõese por isso merecem maiores elogios dos seus Chefes." < 2 2 ) O PresidenteManuel de Carvalho resolveu estimular a captura desses escravos, obrigan-do os seus proprietários a pagarem vinte mil réis por escravo, a quemos prendesse. Um chefe cabano, em carta apreendida pelas autoridadesrelatando ,as dificuldades em que se encontravam, dizia que "não ha gentepara o piquete, e Sentinella, e se não fossem os negros estávamos desam-parados". Muitos dos que não estavam engajados nas tropas cabanasencarregavam-se de levar cartuchos para eles.(23)

Quando o Bispo D. João Marques da Purificação Perdigão resolveuir parlamentar com os homens de Vicente de Paula, foram os papa-méisque permaneceram fiéis ao movimento, ao lado do chefe.

Em 1835 Vicente de Paula ainda conseguiu reunir uma tropa de 300homens, na maioria negros escravos e índios, e atacou o ponto Bocadinho.Em Japaranduba, no mesmo ano, contava apenas com cativos. Fugiucom 50 desses homens deixando o restante para se apresentar às auto-ridades. Pacificada a região, a ordem era a de prender os quilombolas.Como houvesse resistência de militares que foram destacados para essatarefa, o Presidente Francisco de Paulo Cavalcanti de Albuquerque res-pondeu que "Indecorozo não he a tropa, como diz ser o Commandante-em-

(20) — Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Alagoano, n» 14, 4» vol.,2 de dezembro de 1881, citado por Carlos Pontes: "Tavares Bastos", S. Paulo, 1939.

(21) — Correia de Andrade, Manuel: — Op. cit., p. 92.(22) — Cit. por Manuel Correia de Andrade, op. cit. , p. 130-31.(23) — Idem, idem, p. 139

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Chefe perseguir e aprehender esses escravos, o que julga elle serviçopróprio de capitães-de-campo. Estes capitães-de-campo procurão e pren-dem hum ou outro negro fugido a seo Sr., que anda izolado sem cometterroubos, e assassinos, como forão os que se conseguirão em corpo, quea tranquillidade publica, como tem acontecido em os quilombos das mattasde Catucá, e conl esses que ora se formão nas de Jucuípe e Panellas con-tra os quaes se faz mister o emprego da Força Publica." < 2 4 )

Apesar de as autoridades considerarem a região pacificada, Vicentede Paula nem se rendeu nem parou de atacar. Depois, vendo-se irreme-diavelmente derrotado, recuou para o Oeste, fundando um misto de po-voação e quilombo onde permaneceu até 1841, sem ter nenhuma ligaçãocom o mundo exterior.(25) O certo é que, quando naquele ano foi encon-trar-se com o frade José Plácido de Messina, fez-se acompanhar de maisde quatrocentas pessoas. Estava terminada, finalmente, a luta dos pa-pa-méis.

Em Sergipe os escravos marcarão todo o período em que vigorouo regime escravista de contínuos levantes. Esses levantes de escravossergipanos revestiram-se de características particulares: neles predomi-nou, com grande eficiência, a tática de guerrilhas. Desde bem cedo (muitoantes da destruição do Quilombo de Palmares), Fernão Carrilho seráconvidado a destroçar quilombos na Capitania do Sergipe. E desde então,não mais deixarão sossegados os proprietários de engenhos e fazendas.

As autoridades da Capitania reconhecerão a audácia desses negros,não subestimando suas forças. Pelo contrário: estarão em constante vi-gilância através de sucessivas medidas, quase todas inúteis porque os qui-lombolas prosseguiam a luta em outro local e com formas diversas decomportamento. No relatório apresentado pelo Chefe de Polícia ManuelSpínola Júnior, publicado no "Jornal de Sergipe", em 1873, lê-se quereunidos em grupos nos termos de Laranjeiras, Divina Pastora, Rosário,Capela e Japaratuba, os quilombos são "uma constante ameaça à .segu-rança individual e da propriedade."

"Desde que entrei em exercício nesta repartição — continua o rela-tório — chegando ao meu conhecimento os fatos praticados por tais escra-vos, e a maneira aterradora por quo assaltavam os lugares mencionados,tenho me empenhado seriamente para que sejam eles capturados, pro-curando tranquilizar os proprietários daqueles municípios circunvizi-nhos." <20)

Os quilombolas sergipanos homiziavam-se com muita frequênciaem alguns engenhos onde obtinham facilmente ligações com os escravosque lá se encontravam. As senzalas eram ponto de encontro entre os es-cravos fugidos e os dos engenhos e fazendas que com eles estavam soli-

(24) — Do>.-. citado por Manuel Correia de Andrade, op. c i t . , p. 185.(25) — Op. cit., p. 190 ss.(26) — "Jornal de Sergipe", Aracaju, 19 de março de 1873.

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dários. Conseguiam desses aliados informações e víveres, estabelecondo-scum. verdadeiro serviço de ligação entre os primeiros e os últimos. OChefe de Polícia não estava alheio a esses fatos e verberará constante-mente contra os mesmos. No relatório citado dirá claramente o grau dedesgaste a que chegaram as forças do governo. Porque — usando a tá-tica de guerrilhas — esses quilombolas jamais se empenharão em bata-lhas de envergadura. Atrairão habilmente as tropas para o recesso dasmatas e lá, com movimentos rápidos, as irão submetendo a um desgastede energias, munições e homens, desesperador. Como elemento auxiliardessa tática funcionava o sistema de ligação com os escravos das sen-zalas dos engenhos e fazendas, muito eficaz e que os auxiliará muitona luta. < 2 7 >

Será esse sistema de guerrilhas certamente o mais indicado para ascondições da época, a região e os objetivos da luta e o que maiores fru-tos produzirá. Muitas vezes o governo organizará expedições de enver-gadura, principalmente nos fins do século XIX, contando esmagar defi-nitivamente os escravos sublevados. Sempre regressarão, contudo, semconseguirem o objetivo que desejam alcançar. No dia 8 de fevereiro de1872 uma grande expedição partirá para dar combate a um grupo queagia ativamente em Rosário. Sob o comando do próprio Chefe de Políciae obedecendo a um plano discutido no mais completo sigilo com o pró-prio Presidente da Província, marchou a tropa ao encontro dos quilom-bolas. Oitenta praças da Guarda Nacional reforçavam a tropa e maisdestacamentos de outras localidades .Tinham estabelecido no plano, deantemão discutido, que uma parte daria batida nas matas dos engenhosonde supunham se encontrassem os escravos fugidos, ficando o grossoda tropa na retaguarda da mata. Os quilombolas, ao serem atacados, severiam compelidos a fugir e ficariam então, sob dois fogos; seriamfacilmente cercados e liquidados.

Orientado por este plano foi enviado o Alferes João Batista da Ro-cha para dar uma batida nos engenhos de Capim-Açu, Várzea Grandee Jurema. Na batida então realizada descobriu aquela autoridade repres-sora, dez ranchos abandonados, primitivas residências dos quilombolas,que foram destruídos. Os escravos haviam batido em retirada para maislonge. "Avisados a tempo — diz um jornal da época (28) — apenas per-deram grande "porção de sebo de gado, cordas, alimentos etc. A ami-zade e a proteção que quase todos os escravos dos engenhos votam aosquilombolas são sérios obstáculos: dão não só aviso como guarida nocaso de qualquer emergência, mesmo dentro das senzalas", afirmava omesmo órgão. < 2 9 >

O Chefe de Polícia cercou as senzalas do Engenho Capim-Açu, naesperança de que os quilombolas que lhe escaparam estivessem ali homi-ziados em aliança com os escravos daquele engenho: nada, porém, foi

(27) — Cf. Sampaio, Aluysio: "Apontamentos sobre a História de Sergipe"tn "Fundamentos", n' 36, 1954, p. 67 ss.

(28) — Jornal de Aracaju, março de 1972(29) — Diz textualmente a notícia do jornal: "Infelizmente, os resultados não

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encontrado. Apenas quatro cativos tidos como suspeitos de cumplicidadeforam presos e fizeram "importantes declarações."

No domingo seguinte rumaram sessenta e duas praças, sob o co-mando do Capitão João Estêves de Freitas, para Divina Pastora, acom-panhados pelo Chefe de Polícia, além de contarem com a colaboraçãodo delegado daquela localidade e do Major Félix Zeferino Cardoso. Cer-caram em seguida as senzalas dos engenhos Limeira, Piedade e Quidon-gá. Os proprietários daqueles engenhos que — segundo afirmativa do"Jornal de Aracaju" — viviam "aterrados e com razão", exultaram como aparecimento dessa força e dessas autoridades. Os escravos rebeldes,porém, não ofereceram combate. Retiraram-se para as matas, tendo atropa recuado para a vila de Rosário. Apenas duas prisões foram efe-tuadas nessa diligência, da qual tanto esperavam as autoridades. Des-tacaram-se na missão, ainda segundo depoimento do jornal, o "AlferesRocha na arriscada missão em que se acha e devemos louvar o auxílioprestado pelos particulares como bem o Tenente-Coronel João Gonçal-ves de Siqueira Maciel, pela prontidão com que dispõe a força da Guar-da Nacional da Vila de Rosário". <30)

No dia 16 nova investida será feita contra os quilombolas nas mar-gens do Engenho Floresta, com auxílio do seu proprietário. Homens acavalo e a pé reforçaram a tropa regular. Os escravos do engenho, noentanto, avisaram em tempo os quilombolas que fugiram "deixando ves-tígios da precipitação com que o fizeram."

No dia 23 de março do mesmo ano será realizada uma batida nasmatas do Engenho Batinga, onde havia um quilombo de onze escravos.A expedição, como as anteriores, fracassou, diz o "Jornal de Aracaju"de 3 de abril — "por inércia de algumas praças, senão pusilanimidade".Conseguiram apenas prender uma escrava e tomar quatro cavalos commais duas armas de fogo e muitos "objetos de alojamento/'

As batidas continuavam ininterruptamente. Os sítios Baracho e Fa-çáo, entre a vila de Rosário e o Pé do Banco, serão cercados sem resul-tado; a mesma coisa acontecerá no Engenho Floresta.

correspondem ainda aos esforços empregados, por isso que era diversas diligênciasprocedidas depois que estou em exercício, nas quais se tem distinguido o tenentec!o corpo de polLia João Batista da Rocha auxiliado tielas autoridades policiais en-carregadas de promovê-las, não se pôde passar além das seguintes capturas: 8 emRosário-, 4 em Divina Pastora e 2 em Laranjeiras.

Para isso não pouco concorrem alguns proprietários dos referidos municípios,os quais por um desleixo criminoso não só deixam que esses escravos se acoutemem suas terras, como também não impedem que se relacionem com os que possuemnos seus engenhos, o que é de grande proveito àqueles que não podem ser apreendi-dos sem grande dificuldade" ("Jornal de Sergipe" 19 de março de 1873).

<30) — Idem, idem.

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Em agosto de 1872, com a aproximação do inverno, os escravos fu-gidos se acercarão dos povoados para conseguirem "a proleção dos par-ceiros dos engenhos." Aproveitando essa particularidade — a proximi-dade dos quilombolas — as autoridades reforçarão o combate. Na vilade Japaratuba realizaram uma diligência que fracassou pelo auxílio queos quilombolas conseguiram receber dos escravos dos engenhos. Foramavisados, deixaram os seus ranchos e refugiaram-se nas próprias sen-zalas, onde foram escondidos pelos escravos que ali se encontravam. Kde se destacar o fato de serem apreendidos entre os quilombolas inúme-ros animais de montaria, o que explica a espantosa mobilidade que pos-suíam.

Não viviam, porém, esses escravos, cm simples passividade de fu-jões. Pelo contrário: t inham um espírito ofensivo surpreendente, ata-cando estradas, assassinando capitães-do-mato, feitores etc, recolhendo-se em seguida para o recesso das matas que tão bem conheciam. Distoencontramos testemunho nos jornais do tempo. ' •">

O Chefe de Polícia falava — conforme vimos — no perigo queos quilombolas representavam para a "segurança individual e da pro-priedade" mostrando também o cuidado que a Polícia vinha tendo coma captura desses negros fugidos. Lamentava o pouco resultado obtidoem consequência dos precários recursos de que dispunha, mas, por outrolado, apresentava alguns resultados obtidos em Rosário e Divina Pasto-ra. Comentava ainda e deplorava o pouco caso de alguns proprietáriosque não impediam as relações estabelecidas entre os quilombolas e osescravos dos engenhos, o "que é de grande proveito àqueles que não po-dem ser apreendidos sem grande dificuldade."

No dia 24 de dezembro de 1873 organizou-se uma grande batidacontra os quilombolas. Os detalhes do plano foram traçados sigilosamen-to, como da vez precedente, para maior segurança da operação. As tro-pas legais marchariam para extinguir um grupo que agia entre Capelae Rosário, na certeza de que iriam destruí-los e vê-los "capturados semo menor desastre", segundo o relatório de António Passos Miranda,abrindo a Assembleia Provincial. No entanto, ao contrário do que seesperava, os quilombolas de tudo foram avisados e bateram em retiradaa tempo de impedir o choque com as tropas do governo. A expedição,comandada pelo próprio Chefe de Polícia, voltou inteiramente desmo-ralizada, pois os escravos, "apesar de todas as reservas, foram sabedo-

(31) — É o que lemos por exemplo, no "Jornal c'o Aracaju" — - "A audáciatinha chegado ao ponto de entrarem nas vilas e povoados, 10 e 12, anilados e bemmontados, disparando as armas na porta de algumas autoridades." No mesmo ór.gão de 8 de fevereiro de 1872: "...sabe-se ter sido assassinado Manoel de Sousa,mestre de açúcar do engenho do sr. Barão de Própria, por um escravo fugido aquem aquele indivíduo procurava prender." Ainda o "Jornal de Aracaju" de 15 demarço do mesmo ano estampava: "na noite de 23 de fevereiro, no engenho deno-minado Cruzeiro, distrito da Chapada, a escravo do Coronel Joaquim Curvelo as-sassinou barbaramente o feitor do mesmo engenho".

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rés da diligência que se combinava." (12) Continuava a atividade dos qui-lombolas que chegaram muitas vezes a, em grupos de dez e doze, por-tando armas de fogo e bem montados, entrar em vilas e povoados, dis-parando as suas armas às portas das autoridades. Em seguida retira-vam-se rapidamente, sem darem ensejo a que se organizasse qualquerreação a esses atos. Usavam a surpresa como aliada e obtinham assimnão apenas vitória do ponto estritamente militar mas psicológicatambém.

Ainda operavam no ano seguinte: na abertura da Assembleia Pro-vincial, António dos Passos Miranda referia-se amargamente ao assun-to. Ao informar as providências tomadas, analisava as dificuldades edizia: "Asseguro-vos que não permanecerei inativo nesse serviço, se bemque mais de uma dificuldade existam contra os meus melhores desejosa respeito. É a primeira não ter-se um número suficiente de praças paradestinarão ao menos vinte para cada termo em qu? os quilombolas maisse apresentam, ou então para formar-sc um destacamento volante de nãomenos de 50 praças, sob o comando de um oficial brioso, que se encar-regasse de bater aqueles malfeitores em todos os pontos que os encon-trasse." (1" Como vemos, não se tratava apenas de contratar capitães-do-mato para prear escravos fugidos, mas sugestão para uma verdadei-ra operação militar permanente contra os insurrctos. Prova cio grau deeficiência da luta de guerrilhas praticada por eles. Outro elemento im-portante na eficiência da resistência dos quilombolas estava no sistemade ligação mantido entre eles e os escravos dos engenhos. Dos últimosrecebiam não somente acolhida nas situações difíceis, mas informaçõesconstantes, víveres, armas e solidariedade. O "Jornal de Aracaju" de3 de abril de 1872 reconhecerá esse fato e estampará sem rodeios: "Aexperiência tem mostrado o grau de relação que entretém os quilombo-las com os escravos dos engenhos: acham aqueles apoio e proteção; tro-cam estes farinha e agasalho pela partilha nos roubos dos primeiros eem caso de perigo invadem as senzalas". E acrescentará: "desde que osproprietários situados nos lugares mais percorridos pelos quilombolasexerçam assídua fiscalização na sua escravatura, cortando quando forpossível a comunicação protetora que tanto tem embaraçado as diligên-cias, os quilombolas, entregues aos próprios recursos, não oporão resis-tência à estratégia e serão capturados".

Os quilombolas continuavam atacando ou se escondendo nas matas.Houve mesmo uma quilombola que, ao ser presa, declarou haver depo-sitado a sua filha, nascida nas matas, em casa de uma mulher conhecidapelo nome de Maria Cabocla, residente em Laranjeiras. O delegado deCapela promoverá uma batida nas matas do Engenho Lagoa Funda. Aliconseguiu capturar os quilombolas Luís e António Dias Ferreira da Cruze Tiomásia, além de cinco cavalos e um burro. Como estratégia de com-bate, em consequência da solidariedade dos escravos dos engenhos, su-geria aquela autoridade verba para a formação de um corpo deespiões.. .

(32) — "Jornal de Aracaju", de 5 de março de 1874.(33) — "Jornal de Aracaju", 3 de abril de 1872.

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Em Sergipe, segundo podemos ver de inúmeros fatos, os quilombo-las conseguiram lutar até, praticamente, a extinção do escravismo.Usando uma tática inteligente, albergando-se em pequenos núcleos deoito a dez casas que podiam ser facilmente abandonadas à aproximaçãodas tropas repressoras, e, além disto, mantendo um sistema de ligaçãoeficientíssimo com os escravos dos engenhos, escravos que os supriamde mantimentos indispensáveis à subsistência, não tendo, portanto, ne-cessidade de plantarem roças e se fixarem definitivamente, esses qui-lombolas desgastaram enormemente o aparelho repressor montado pelasautoridades daquela Província.

O pessimismo das autoridades ao se referirem a esses quilombolasé uma constante. Sempre se referem à agilidade dos mesmos, à solida-riedade dos escravos dos engenhos ou à falta de recursos suficien-tes como causas dos sucessivos fracassos. Mas, o certo é que os escra-vos sergipanos, negaceando combates nos quais estavam inferiorizados,fugindo para as matas ou refugiando-se nos próprios engenhos, organi-zaram uma tática de luta que não foi derrotada até o fim.

Alguns documentos, especialmente correspondência do governadorde Mato Grosso e do Conselho Ultramarino (34) dão-nos notícias da exis-tência de quilombos na região mato-grossense. Esses negros fugidos, alia-dos aos índios daquela área, durante muito tempo viveram aquilombados.Um dos mais famosos deles foi o Quilombo do Piolho, que depois passoua ser chamado "Quilombo da Carlota."

Teve início aproximadamente em 1770 sendo atacado no mesmo anopelo sertanista João Leme do Prado, que capturou "numerosa escrava-tura," Apesar disso, os escravos continuaram no quilombo que se loca-lizava na Serra dos Parecis, vizinhança de Guaporé e do arraial de VilaBela, à margem do rio que lhe deu o nome. Sua base económica era aagricultura, principalmente plantações de milho, feijão, fava, amendoim,mandioca, batata, cará e outras raízes, além de banana, ananás, abóbo-ra, fumo, algodão — de que faziam tecidos grossos com que se vestiam— além de possuírem criação de galinhas.

Segundo a descrição que os documentos que estamos acompanhandofazem, o governo do Quilombo do Piolho era constituído por um conse-lho de seis membros, escolhidos entre os mais velhos, sobreviventes daprimeira investida contra o reduto, "os quais eram os regentes, padres,médicos, pais e avós do pequeno povo." (3S)

Vinte e cinco anos depois da primeira expedição é organizada a se-gunda para "pôr fim à fuga de muitos escravos" e "aliviar estes danos e

(34) — Doe. do Arquivo do Conselho Ultramarino — Correspondência do go-vernador de Mato Grosso, 1777.1805. Código 246 p. 165, transcrito por Roquette Pin.to: "RondOnia", S. Paulo, 1950, p. 33 as.

(35) — Idem, idem.

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felicitar a utilidade pública." A bandeira, comandada por FranciscoPedro de.Melo, composta de quarenta e cinco membros "municiados earmados pela Real Fazenda", partiu de Vila Bela no dia 7 d;c maio de1795. Acompanhando o Diário dessa bandeira ficamos sabendo que, nodia 19 de junho, os seus componentes encontraram de repente três índios,um negro e um caburé (mestiço de negro e índio) que foram aprisionados,tendo fugido um índio que conseguiu avisar os componentes do quilomboda aproximação dos inimigos. Apesar disso, a bandeira conseguiu aindanesse dia aprisionar mais 32 quilombolas sendo que "uns er.am índios,outros caburés". No dia seguinte conseguiu prender mais doze pessoas.A bandeira estacionou ali até o dia 5 de agosto, esperando prender o res-tante dos membros do quilombo que se encontravam "pelos matos vi-zinhos."

Após a "diligência" a bandeira prosseguiu percorrendo "ranchos quemostravam serem de pretos fugidos" em direção ao Arraial de São Vi-cente, onde um total de 54 quilombolas aprisionados foi entregue a Geral-do Urtiz.de Camargo a fim de que o mesmo os conduzisse a Vila Bela.Esses quilombol,as foram enviados depois pelo governador "para o mesmolugar em que foram apreendidos", a trinta léguas de Vila Bela, onde for-maram a aldeia Carlota.

Prosseguindo nas suas batidas, a bandeira dirigiu-se para a regiãodo Rio Sarará onde, segundo informações de dois escravos que se agre-garam à mesma, havia um outro quilombo, o de Pindaituba. No dia 2de outubro, finalmente, alcançaram o quilombo que procuravam. Os qui-lombolas haviam-no, porém, abandonado, ao serem informados da apro-ximação da bandeira. Refugiaram-se em outro reduto — o do Motuca —perto do córrego do mesmo nome. A bandeira encontrou o Quilombo dePindaituba formado de "dois quartéis, um composto de 11 casas e o outrode 10, a 50 passos de distância do primeiro." Ali só conseguiu apri-sionar três negros que vinham buscar mantimentos para a sua nova mo-rada. Em vista disto, a bandeira prosseguiu viagem em direção ao Qui-lombo do Motuca onde chegaram no 3 de outubro, encontrando-o tam-bém abandonando "pelo aviso dos negros fugidos."

O Quilombo do Motuca era "também dividido em dois arraiais trêsléguas distantes um do outro". Do primeiro era chefe o ex-escravo Antó-nio Brandão, com quatorze negros, e o segundo era chefiado pelo ex-escra-vo Joaquim Félix, com treze negros e sete negras. Em consequência domau êxito obtido, a expedição marchou para o quilombo de JoaquimTeles, também abandonado à aproximação da bandeira, que regressou, emseguida, com 18 escravos aprisionados.

Com vemos, Mato Grosso teve os seus quilombolas. Vale assinalaraqui que Vila Bela, posteriormente, com a mudança da capital para outrolocal, transformou-se em um reduto de negros fugidos que, certamentesaídos das matas mato-grossenses, ali se homiziaram. Diz Roquete Pinto:"Vila Bela, antigo centro de mineração mui pujante; hoje não passa desimples logradouro de uma centena de pretos. As últimas informações

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que nos foram prestadas, por testemunhas insuspeitas e seguras, sobreessa curiosa cidade, cujos palacetes oficiais já se acham escondidos pelafloresta que a vai avassalando, dizem que lá não existe domiciliado um sóhabitante branco.

Reduto de antigos escravos, cujos descedentes vivem em sociedadeoriginal, em mais de um ponto semelhante a certas cabildas africanas, éum caso interessante de segregação espontânea, promovida pelas con-dições de insalubridade a que só os negros, parece, conseguem resistir;mesmo assim ela é perniciosa à colónia, que já se vai extinguindo." <30)

(36) — Pinto, Koquete: — "Seixos Rolados", Rio de Janeiro, 1927 — p. 128.

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Insurreições Baianas

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A Bahia no Tempo das Revvltas — A Bahia, no século XIX, era umaProvíncia cuja economia se baseava quase exclusivamente na exporta-ção de produtos agrícolas para o exterior, especialmente açúcar. Talvezcomo em nenhum grande outro Estado as relações sociais pré-capital;s-tas se conservem até hoje de forma tão visível como lá. ( 1 ) Imagine-sea situação na época. A carestia de vida era alarmante. Os víveres fal-tavam no mercado e seus preços eram elevadíssimos. O plantio exclu-sivo dos géneros destinados à exportação era uma das causas fundamen-tais desse estado de coisas. Um economista da época dirá que os donosda terra não queriam perder os "preciosos torrões do massapé" com a"mesquinha plantação de mandioca." l z ) Os poucos alvarás e assentosexistentes no sentido de se plantar quinhentas covas de mandioca porescravo de serviço não eram respeitados. A carne era outro género ca-ríssimo. Ninguém podia criar o gado numa distância inferior a dez lé-guas do litoral. Além disso, o comércio abatedor era monopolizado, o queconcorria ainda mais para o encarecimento do preço da carne. A faltade estradas contribuía para dificultar o transporte do gado para o corteem Salvador.

(1) Sobre a situação atua] da economia baiana o Prof. Milton Santos, em sc-mináiiio internacional sobre resistência a mudanças, em primeiro lugar cita o fato deque, "por ser capital do Estado — Salvador — dotada de um parqme fabril dl5bil,ocorre o subemprego que favorece as correintes do êxodo da população para o suldo Brasil. Por outro lado, a fraqueza da parque industrial de Salvador faz 'com quenão esteja ele em condições de competir com os centros industriais do Sul, de modoque a tendência é para um enfraquecimento progressivo.

Além disso, o baixo poder aquisitivo das cidades não provoca a introdução demelhorias técnicas na agricultura.

A análise das importações do Estado da Bahia revela serem estas constituí-das preponderantemente de bens de consumo e não de bens de capital, fato que de-monstra uma descapitalização progressiva, com a canalização das poupanças paraoutros centros.

Mas, se internamente a balança comercial é desfavorável, no comércio externoapresenta um grande saldo positivo. Entretanto esse saldo, devido à política cambial,vai servir aos centros industrias de outros Estados, dele não se beneficiando aBahia" In "Resistência a Mudanças" (Anais do Seminário Internacional reunidono Rio de Janeiro, em outubro de 1959), Rio, 1960, p. 211/12) — Ver também: JohnFriedmann e José Leal: "População e Mão-de-obra na Bahia". Salvador, s/d,passim.).

(2) Brito, R. de: "A Economia Brasileira no Alvorecer do Século XIX" Bahia.s/d. p. 54.

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Vejamos como unia testemunha ocular pinta a situação da época:"Os miseráveis lavradores de farinhas, grãos, e legumes, que pela suapobreza mereciam até comiseração, não têm liberdade de vender seusfrutos onde eles têm melhor saída, apesar das razões de justiça,e interesse público acima ponderadas, e de Leis expressas, que nãosó lhes facultam aquela liberdade, mas até franqueza de direitos, taiscomo a Lei de 4 de fevereiro de 1773, e Assento de 24 de abril que sobreela tomou; Avisos d,e 1.° de julho de 1794, e de 17 de agosto de 1798;o Foral desta Capitania etc. Umas vezes são inibidos de exportá-los aoCeleiro desta Cidade, ainda que às vezes o consumidor, que os há de gas-tar, more lá bem perto do lavrador, que a produziu, e ainda que elesvenham já ensacados para a Europa; e uma vez dada a entrada não temmais de os levar para fora, posto que lhes venha à notícia haver emoutras partes maior preço, e falta do mesmo género. Eles sofrem pois,a despesa de uma viagem, ou pelo menos de um rodeio escusado, o empa-te do seu capital, e da embarcação, a perda do seu tempo (que às vezessó no porto passa de mês para obterem descarga, pois as tulhas não ca-bem nem quanto gasta em uma semana) retenção forçada do seu géneropara rião poderem aproveitar o justo preço dele, a contribuição que selhes exige a -título de benefício da tulha." (3)

E prossegue o mesmo historiador pintando o quadro da situação daBahia: "entre nós para estabelecê-lo na própria casa (um engenho decana) cumpre beijolar ao Governador, peitar o Ouvidor, e o Escrivãoda Comarca, os quais sem exorbitantes salários não vão fazer a indis-pensável vistoria que deve proceder a informação. Míseros lavradores,em que mãos estais metidos! Os que só devem empenhar a espada, e apena para proteger vossa liberdade, são os que vo-la tiram ou vo-lavendem."

Em consequência do "monopólio natural que logram os senhoresatuais" a situação era das mais opressivas na Bahia. Continua Rodri-gues de Brito, na mesma obra: "Se lançarmos os olhos para outros dis-tritos da Capitania, o quadro não será menos triste; por toda parte nãose vê senão monopólios, subsídios, taxas e impostos de toda a casta, esta-belecidos sem legítima autoridade, nem reconhecimento de S. A. R. ; e sealguém vai de fora estorvar a aqueles régulos os seus monopólios, con-correndo com sua indústria, um tiro, ou pelo menos uma denúncia dearmas curtas é o meio por que eles se desembaraçam de sua concor-rência." '" Segundo Martius, que percorreu a Bahia na época, "a admi-nistração da casa está sob a direção de uma comissão nomeada pelo con-selho municipal. Essa autoridade arrenda, ao arrematante, o abasteci-mento da cidade em carne fresca, peixe e outros mantimentos; e, emvirtude de não haver concorrência, a Bahia sofre, por vezes, a falta dofornecimento de boa carne verde." Í5) Como vimos, o gado não podia sercriado no litoral; vinha dos campos de Rio Pardo e principalmente do

(3) Op. cit. p. 60.(4) Op. cit. p. 81.(5) Von Spix e von Mai-tius "Através da Bahia", Bahia, 1928, p. 9v.

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Piauí, pela estrada de Juazeiro, enfrentando as péssimas estradas daregião e as secas. Era proibida a instalação de fábricas, armações, en-genhos, sem licenças e formalidades abusivas que anulavam, na prática,esse direito. Para a moagem da cana o pequeno plantador pagava metadeda safra aos donos dos engenhos, mais a renda da terra. Por outro lado,acelerava-se em ritmo ininterrupto a produção de géneros de exportação.O açúcar — género que ocupava o primeiro lugar no conjunto da eco-nomia — atingiu, em 1817, segundo dados fornecidos pon Felisberto Cal-deira Brant a von Martius, a 1.200.000 arrobas, produzidas nos 511 en-genhos que existiam. Esses dados, aliás, segundo o próprio Martius,estão em contradição com os citados por St. Hilaire e von Humboldt, quesão muito mais elevados. Os ingleses procuravam cada vez mais algodão,tendo subido a exportação desse produto para 40.000 sacos. O númeroanual de navios que entravam no porto da Bahia era calculado em maisde 2.000, sem contar as embarcações costeiras.

Essa produção era toda baseada no trabalho escravo. As relaçõesescravistas determinavam todo o conjunto da sociedade baiana na época.Pelo simples peso específico dos escravos no conjunto da população po-deremos deduzir isso. Vejamos:

De acordo com os cálculos de Baldi, a população da Bahia (incluin-do a de Sergipe dei Rei) seria a seguinte em 1824:

Brancos 192.000índios 13.000Gente livre de cor 80.000Escravos de cor 35.000Negros escravos 489.000Negros forros 49.000. <«>

Ou seja: numa população de 858.000 habitantes havia 524.000escravos. Isso sem falarmos dos índios, que viviam num regime de se-mi-escravidão, e dos "forros", que tinham uma vida quase idêntica à doscativos. Como vemos, era uma enorme massa que constituía a base dapirâmide social baiana e cuja efervescência exigia da parte dos senhoresde escravos uma vigilância constante e enérgica. Por este motivo a Bahiaera fortemente policiada. A força militar de que dispunha a Província,voltada de maneira aguda contra os escravos dos engenhos, das planta-ções e das cidades, contava com 23.070 homens. Desse total, 3.138 cons-tituíam a força de linha (2.169 de infantaria, 747 de artilharia, 222de cavalaria) e 19.932 a milícia, tropa auxiliar com a seguinte distri-buição : 16.687 pertenciam à infantara, 659 à artilharia e 2.586 à cava-laria. A milícia era organizada com "a gente melhor e mais rica da so-

(6) Sobre a população apenas da Província baiana temos, também, os cálculosde Warden e Veloso. Para eles a população não chegava a 500.000 habitantes. Pe-las estimativas do Padre Pompeu e. população da Bahia seria, no ano de 1864, de1.400.000 sendo 1.100.000 livres e 300.000 escravos. Km 1872 seria de 1.380.670 e em1892 — pouoo depois de Abolição — de 1.870.093.

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lciedade"^ em consequência da "falta de meios e pela existência de grandequantidade de negros, que podiam ser contratados para todas as açõesmás." ">

Como vemos, se de um lado a Província produzia uma considerávelsoma de produtos, do outro lado a quase totalidade dessa produção eraenviada aos portos europeus, que a consumiam. Os escravos, os pequeno»lavradores, sitiantes, pecuaristas, intelectuais c artesãos viviam asfixia-dos pelos senhores de engenho e de escravos, que usufruíam vantagensdesse sistema de economia colonial.

Esse ambiente quase irrespirável não podia deixar de influenciarseriamente a política da Província. O descontentamento que vinha delonge (como vimos com a revolução de 1798) era geral e sintoma de quea crise já havia atingido camadas muito largas da população. Os jornaisrefletiam esse descontentamento. A imprensa baiana, com uma equipedas mais valentes e capazes, verberava a situação, exigindo providên-cias do governo. Entre os anos de 1831 e 1837 circularam na Bahiasessenta jornais. Jornalistas de talento e coragem como Cipriano Ba-rata, António Pereira Rebouças, Inácio Acioli e inúmeros outros toma-vam posição radical contra o governo. Cipriano Barata, com seus "Sen-tinela da Liberdade" e "A Nova Sentinela da Liberdade"; GonçalvesMartins com o "Diário da Bahia"; Próspero Dinis com "A Marmota",cujo lema era:

"Sou pequeninaporém sou forte.Digo a verdadenão temo a morte"

agitavam os problemas do sou tempo com destemor, coisa que se repetiaem outros órgãos como "O Guaicuru", redigido por Guedes Cabral que, em1836, dirigiu também "O Democrata" e que, além de jornalista, era cien-tista avançadíssimo para sua época, tendo, em 1876, sustentado tese mé-dica sobre "Funções do Cérebro", rejeitada pela Faculdade como inteira-mente materialista. <8>

Sabino Vieira, também jornalista, era obrigado a assassinar à en-trada da Câmara Municipal, em legítima defesa, o alferes do Exército

(7) V<m Spix e von Marti us, op. cít, 84.(8) "A orientação materialista da filosofia do século XIX pertence ainda no

Brasil — escreve o Prof. Cruz Costa na sua interessante abra "Contribuição àHistória das Ideias no Brasil" — o trabalho de Domingos Guedes Cabral — AsFunções do Cérebro (Imprensa Económica, Bahia, 1876). 2. XXXVIII — 226 pags.).Domingos Guedes Cabral (1852-1883) escrevera esse trabalho para apresentá-lo co.mo tese de doutoramento em Medicina à Faculdade da Bahia. A congregação dessaescola, porém, recusou-o por achá-lo lesivo à religião do Estado (Cf: SacramentoBlake, ob. cit. vol. II, pág. 207). Em vista de tal atitude os colegas de GuedesCabral, como protesto contra "coartação da liberdade de pensamento que, por todaparte, entre nós, vemos limitada, inclusive nos estatutos da nossa Faculdade"(D. G. Cabral ob. cit. pág. VII) publicaram-lhe o trabalho. Nos agradecimentosaos colegas, nas primeiras páginas do seu livro, Guedes Cabral explica alguma coisaque tem certa importância para a história das vicissitudes das correntes filosóficasno Brasil daquele tempo. "Vai para dois anos — escreve Guedes Cabral — que, des-

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Ribeiro Moreira que tentara chicoteá-lo por motivos políticos. GuedesCabral cumpriu sentença na Fortaleza do Barbalho pelos seus artigoscontra os senhores de escravos. Fortunato de Freitas foi demitido dolugar que ocupava e agredido; Domingos de Faria Machado, outro jor-nalista da oposição, morreu subitamente, de maneira misteriosa; o livrode Lindolfo Medrado "Os Cortesãos e a Viagem do Imperador" foi quei-mado num verdadeiro auto-de-fé; inúmeras outras arbitrariedades aindapoderiam ser arroladas em longa lista com testemunho da efervescênciapolítica desse período da história baiana. Além disso, as ideias liberaisda França continuavam conseguindo cada dia maior número de prosé-litos; vapores aportavam trazendo ligações para os oposicionistas baia-nos, livros, panfletos, jornais e revistas. Apesar de serem poucas aslivrarias — em 1835 inaugurou-se a do italiano Pongetti — essas ideiastinham ampla circulação. Em 1809, a Carta Régia de 17 de novembrodizia que "na Bahia há um grande número secreto de pessoas vendidasao Partido Francês". Como consequência pululavam os clubes secretos,as lojas maçónicas, os grupos de intelectuais que, na Faculdade de Me-dicina, no Liceu Provincial e em outros locais discutiam as ideias avan-çadas da época e pregavam a república, o federalismo e muitas vezeso separatismo. No seio da tropa remava em alguns momentos o descon-tentamento e o espírito de revolta. As manifestações de desagrado equarteladas eram frequentes. O Batalhão Piauí exigiu a expulsão dosportugueses. A soldadesca da Capital reivindicou melhor tratamento. NoRecôncavo baiano a situação não era muito diferente: em 16 de fevereirode 1832 rebentou um motim em um dos batalhões ali aquartelados.

É nesse conjunto de circunstâncias que se gera na Bahia uma lite-ratura combativa e popular, até hoje pouco estudada, mas que funda-mente influiu nos acontecimentos do tempo. A poesia, através da sátirae da poesia conscientemente política, ocupa uma posição de destaquenesses eventos. Como exemplo desse tipo de poesia podemos citara de João Nepomuceno da Silva, conhecido na época coma "o poetagraxeiro" que, quando da visita do segundo Imperador à Bahia, fez umaespécie de relatório em versos, em que dizia:

"Senhor meu, toda a BahiaNada aqui em porcaria.

Eu vos afirmo, eu vos juro:Se não fose a vossa vindaOh! existiria aindaEm cada canto um monturo".

perlado por leituras de literatura médica, encaminhei meus estudos para assuntosde uma especialidade delicada, essa que nos oferece a filosofia positiva, que nãoé outra mais do que a lógica aplicada aos fatos e que diverge de outra filosofiae que tem, ao invés dela, como base as ciências naturais e a experimentação".(Contribuição à História das Ideias no Brasil", R. de Janeiro, 1956, p. 442).

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e terminava:Eu, João, poeta novo,Graxeiro denominado,Que não tarda proclamadoSer defensor de seu povo,Faço ciente que o rei,

Que visitou nossa grei,Recebeu meu relatório,Este folheto notórioQue sobre o povo atirei.'

Em outra oportunidade, João Nepomuceno da Silva escrevia:

"O rico além da riquezaque nem à força do burronão escreve um nome inteiro;chamam-lhe douto, eloquente,chamam-lhe belo, excelente,acho razão, tem dinheiro.

O rico, além da riquezapor vénia feita à nobreza,tem na mão fechada as leistem mais de quarenta achegos,porque, tendo dois empregos,terá quatro, cinco ou seis. ..

Se ele é senhor de engenho,e no maior desempenhodo furor mata um escravo,

tem logo e logo o perdão,recebe absolviçãode pena, culpa e agravo.Filho de rico é talentoque escreve em breve momentosobre o céu e pinta a Cintra;nome de pobre não soa,porque mesmo, ora, esta é boa!...tudo que é pobre é pelintra

O rico, só por ser rico,porque dá pra melhor bicodos outros o seu dinheiro,porque tem leite e tem vaca,traz suspenso na casacaa medalha do Cruzeiro.

Outro poeta que no seu tempo imprimia às suas poesias o tom crí-tico e satírico da época era Manuel Pessoa da Silva, falecido em 1878.Além de poeta era jornalista — como a maioria dos poetas de seu tempo— e combateu o governo do Gen. Andréa. Publicou o poema "A Esca-pula do Diabo", atacando a subida dos conservadores em Pernambuco,em consequência da parcialidade do Imperador. Políticos da época, comoGonçalves Martins e o Padre Joaquim Cajueiro de Campos, são atacadosferinamente pelo poeta. Chamado à responsabilidade, afirmou: "Meussenhores, sou chamado à barra deste tribunal, apenas por ter usado daliberdade de pensamento", defendendo-se altivamente das acusações quelhe haviam sido imputadas.

Economicamente, a Província baiana vinha sofrendo de um estadocrónico de crise. Desde a transferência da Capital do País para o Riode Janeiro que o seu eixo económico sofrera um sério abalo. Sua agri-cultura continuava monopolizada, havia crise de transportes e penúria.

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O povo sofria enormemente com esse estado de coisas e, pouco tem-po depois de uma das últimas insurreições de escravos da série que estu-daremos em seguida, (a de 1835), pegará em armas e, sob a liderançade Sabino Vieira, instaurará uma república independente (1837) de vidaefémera mas que é uma prova do descontentamento geral da época.

Nessa situação — pois as condições não iriam se transformar nofundamental — a Província exportará 17.142.260 quilos de açúcar e26.400.880 quilos de fumo. As riquezas estavam nas mão da minoriadetentora dos setores básicos da economia e esse montante de exporta-ção não iria melhorar a sorte do povo: era precária a situa-ção de grande parte da população da Província. Em 1893, poucos anosapós a Abolição, o Estado da Bahia possuía "pouco mais de mil quiló-metros d» estrada de ferro." Nesse mesmo ano trabalhavam na indús-tria têxtil 805 operários. <">

Além dessas causas particulares e específicas da Bahia, agravava-sea crise geral do País. Havia uma conjuntura que favorecia as lutas con-tra o governo. Os "Farrapos" levantavam-se no Rio Grande do Sul(1835); em Pernambuco os escravos levantavam-se nas fazendas, assas-

sinando feitores; no Pará, em 1833, os Cabanos revoltaram-se contra aprepotência imperial. Na época em que se verificaram as revoltas dos es-cravos baianos, no Leão do Norte já estavam sendo aglutinadas as forçasque liderariam a Revolução Praieira. A Balaiada, no Maranhão, em1838, será uma continuação desse estado geral de coisas. A situação erafrancamente favorável às insurreições e os escravos souberam aprovei-tá-la. As lutas ascenderiam a tal nível que o governo imperial, ame-drontado e vendo o que significaria o aumento ininterrupto do númerode escravos, proibiu, em 1850, definitivamente, a entrada de africanosno País, extinguindo o tráfico.

Primeiras Insurreições (1807-1813) — O capítulo das revoltas de escra-vos da Capital baiana abrange quase toda a primeira metade do séculoXIX e marca de maneira funda esse período da história da Província.

Começará com a revolta dos aussás, que delimitará o início do pri-meiro ciclo de lutas, no ano de 1808, e será dirigida por escravos mao-metanos. É verdade que — como acentua com acerto Nina Rodrigues— essa primeira escaramuça — como também a de 1809 — foi apenasum ensaio parcial e ainda vacilante da que eclodirá no ano de 1813, deproporções já bem maiores.

Na noite do dia 26 de maio de 1807 a primeira delação sobre olevante chega ao conhecimento do Governador que, imediatamente, tomaas providências que o fato requeria. Os escravos da Capital, unidos aosdo Recôncavo, juntar-se-iam — segundo o plano estabelecido — para,reunidos, liquidarem seus senhores. Haviam estruturado o movimento

(9) Viana, F. V. : "Memória sobre o Estado da Bahia", Bahia, 1893.

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lcom certa experiência, se atentarmos no fato de ser essa a primeirarevolta. Designaram um Capitão em cada bairro e nomearam "um agen-te a que chamavam Embaixador". Aproveitaram o dia da procissão deCorpus Christi para, durante a distração dos seus senhores, entretidosno ato, levantarem-se em armas e assumirem o poder. A denúncia, po-rém, chegada ao conhecimento das autoridades antes do levante, poriapor terra esses planos. O Governador conseguiu saber o nome dos Ca-pitães que operavam nos bairros e o principal local de suas reuniões.Sabedor de que, no dia 27, às 7 horas da noite, seria iniciado o levante,tomou todas as medidas dentro do maior sigilo, distribuindo ordens aoscomandantes das patrulhas para que tomassem as portas principais deacesso à cidade, sem nenhum ruído que despertasse suspeita, além deenviar grupos de capitães-do-mato para fora da cidade. O local em quese reuniam os escravos foi invadido pela polícia, sendo presos, na oca-sião, sete dos seus capitães que se encontravam reunidos e apreendidovasto material: perto de quarenta flechas, um molho de varas para arcos,"meadas de cordel, facas, pistolas e um tambor." Além dessas prisões— ainda informa Nina Rodrigues, a quem estamos acompanhando nestecapítulo — os capitães-do-mato efetuaram as de mais quatro cabeçasfora da cidade. Outras detenções se sucederam; foi aberta devassa e to-madas severas medidas contra os escravos em geral, em consequênciada insurreição abortada; nenhuma referência encontramos sobre essemovimento nos manuscritos do Arquivo Público do Estado da Bahia quepudemos consultar.

Continuando, no entanto, a luta contra o cativeiro, os escravos, lon-ge de esmorecerem com o primeiro revés, recomeçaram, a organizaçãode outro movimento, que ainda será dirigido pelos escravos aussás, embo-ra já estreitamente ligados aos nagôs, que dele participarão ativamente.A unidade dos escravos estava se processando: era o "esquecimento daaversão recíproca que lhes era natural" e a união com a "desgraçacomum" que tanto temor causava ao Conde dos Arcos. Assim, unidos ejá com a experiência do levante precedente, puderam realizar um movi-mento de proporções muito maiores que o primeiro e de repercussãobastante ponderável em comparação ao de 1807.

Em 26 de dezembro de 1808 — antes de completar um ano que sehaviam levantado — os aussás e nagôs dos engenhos do Recôncavo em-brenham-se nas matas, fugindo dos seus senhores. Ali ficarão aguar-dando os escravos da Capital que cedo a eles irão se unir; no dia 28 dedezembro, fogem os de Salvador e fazem junção com os que se encon-travam nas matas. Oito dias depois — 4 de janeiro de 1809 — iniciamjuntos a ação com grande violência, atacando indistintamente a todos,destruindo, incendiando propriedades e matando.

Seguem imediatamente forças da Capital para combatê-los, indoalcançá-los a nove léguas da cidade, entrincheirados junto a um riacho,sendo aí cercados e atacados. Iniciou-se o combate com grande violência,tendo morrido grande número de escravos e sido aprisionados oitenta.Sufocada com certa facilidade, ficou-se sabendo da organização dos escra-

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vos: pretendiam estender a luta por todo o Recôncavo baiano, especial-mente nos distritos de Jaguaribe e Nazaré onde a Polícia foi prender 2.'!implicados na insurreição. Para êxito do movimento, haviam estruturadouma associação secreta que tinha por objetivo aliciar os escravos e dirigi-los na luta contra o cativeiro — a OGBON1 — de poderosíssima in-fluência e que desempenhou importante papel nessa luta, o que explicao relativo sigilo com que se processou sua preparação.

Não sabemos das punições a que foram condenados os principaisimplicados: nada encontramos nos arquivos ou nos livros que se referemao assunto.

Quatro anos depois dessa nova revolta, estourará outra com maisviolência e de maiores consequências.

Ascendia o nível de luta daqueles que estavam sujeitos ao cativeiro.Os escravos de algumas armações levantaram-se, em número de 600, emarcharam na madrugada do dia 28 de fevereiro de 1813, para ocupar aCapital. O forte contingente cedo iniciou suas atividades, atacando assenzalas de suas armações, incendiando-as, tendo igual procedimento comas casas dos seus senhores. Investiram, em seguida, contra a famíliade um feitor, mataram-no e seguiram depois para atacar Itapoã. Aliincendiaram algumas casas. Os escravos de Itapoã aderiram imediata-mente à luta, engrossando ainda mais o contingente. Depois de ata-carem e matarem alguns brancos naquela localidade, travaram combatecom as forças legais, enviadas para sufocar o levante, demonstrandoheróica bravura no fogo sustentado. Em ação morreram cinquentaescravos, tendo outros se enforcado ao pressentirem a derrota e algunsse atirado ao Rio Joanes a fim de não caírem com vida nas mãos dosseus senhores <e da Polícia. O ba'anço de mortos da parte dos brancosfoi de treze pessoas.

Esmagado o levante a ferro e fogo, os escravos não esmoreceram,contudo, e reiniciaram a organização de um novo movimento para aquelemesmo .ano.

Nos últimos dias do mês de maio de 1813, um advogado de nome1

Lasso denunciava ao Conde dos Arcos um novo levante aussá de gran-des proporções, com a participação, desta vez, de ganhadores dos"cantos" — do cais de Cachoeira, cais Dourado e cais do Corpo Santo— e dos negros do Terreiro e do Paço do Saldanha, além de elementosde mais outras "nações" e de escravos do Recôncavo. Era, como se vê,um movimento que englobava negros de diversas "nações" africanas,liderados pelos aussás. Reuniam-se cm uma pequena capoeira que se1

localizava por trás da Capela de N. S. de Nazaré, numa roça da Estra-da do Matatu e nos matos do Sangradouro. Nessas reuniões traçavamo plano geral da insurreição que seria o seguinte: aproveitando as festasde S. João, partiriam para atacar a guarda da Casa da Pólvora do Ma-tatu de onde retirariam a pólvora necessária, molhando a que sobrassepara que não pudesse ser usada. Realizada essa primeira parte, conta-vam os escravos que as tropas legais marchariam para atacá-los, des-

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lguarnecendo a cidade, do que se aproveitariam os escravos do Terreiro,do Paço da Saldanha etc., para entrarem em ação, atacando a cidade,degolando todos os brancos e tomando o poder. Era, como se vê com faci-lidade, um plano bem urdido que, se posto em prática, iria produzirconsequências imprevisíveis. Mais uma vez a delação fez abortar essainsurreição como já fizera com quase todas as outras. Por divergênciasquanto à data do início do levante, um escravo aussá chamado João, quedesejava fosse a mesma iniciada no dia 10 de junho, denunciou seuscompanheiros, fazendo, com isso, ir por terra todo o plano arquitetadopor eles. Os principais responsáveis pelo levante, sabedores da traiçãode que foram vítimas, providenciaram imediatamente esconder todo omaterial que seria usado e que se encontrava nos locais apontados pelodelator. Não encontrou a Polícia, ao dar busca, nada que denunciasseou implicasse os suspeitos ou organizadores.

Continuando as diligências, ordenou o Conde dos Arcos fosse proi-bida a festa de São João, o uso de foguetes, busca-pés, ronqueiras etc.,com ordens severas contra os infratores. Essa Portaria proibindo afesta foi lida, ao som de tambores, para que ninguém, alegasse desconhe-cê-la, nas principais artérias da Capital baiana. Em seguida, iniciou umasérie de prisões. Depois de presos, os escravos revoltados foram proces-sados — em cumprimento à carta de 18 de março do ano seguinte —e condenados 39 dos implicados. A Justiça foi de uma severidade so-mente compreensível se atentarmos nas relações sociais da época: dozefaleceram nas prisões, vítimas de maus tratos, certamente; quatro fo-ram condenados à morte e executados na Praça da Piedade, no dia 18de novembro, com assistência da tropa; inúmeros foram acoitados, outrosdegredados para Angola, Moçambique e Bengala.

Fracassava, assim abafada em sangue, a primeira série de tenta-tivas dos escravos baianos contra o instituto da escravidão.

Daí até a próxima, haverá um lapso de tempo em que os escravosestiveram se agrupando para uma ofensiva maior, não levantando, emconsequência, nenhuma luta; ou os documentos não registram esses mo-vimentos. O certo é que somente no ano de 1822 iremos encontrar outrainsurreição, verificada na vila de São Mateus; depois virá o segundociclo de lutas, liderado pelos escravos nagôs, com a participação degrande parte dos escravos da Capital e de algumas localidades do Re-côncavo. Será assunto dos capítulos que se seguem.

Revolta em Cachoeira (1814) — A efervescência social gerada pelo re-gime escravista não arrefecia. Os cativos continuavam lutando contrao instituto que os oprimia.

O Recôncavo baiano, onde se estratificara uma nobreza agrária dasmais importantes da Província, foi, também, palco de rebentina de ne-gros escravos. Região das mais fortes economicamente, com vasta escra-varia nos trabalhos dos seus engenhos, não podia ficar imune a essesmovimentos que periodicamente eclodiam.

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Já em 1798 José Venâncio de Seixas participava a D. Rodrigo deSousa Coutinho a existência de um quilombo na vila de Cachoeira e aformação de outro "ainda m,a.is perigoso" a 5 ou 6 léguas de distânciada Capital baiana.(1) Por isto mesmo solicitava providências imediatascontra o fato e concluía: "V. Excia. não ignora o que têm feito os ne-gros marões nas colónias francesas e holandesas. O mesmo se poderecear vindo os Quilombos a crescer, se não forem destruídos antes detomarem consistência." (:)

Em 20 de março de 1814 espocou uma revolta na atual cidade(àquela época vila) de Cachoeira, quase que com as mesmas caracterís-ticas das que se vinham sucedendo na Capital da Província desde o iní-cio do século. Às cinco horas da tarde daquele dia o Juiz de Fora deMaragogipe era cientificado de que os escravos do distrito de Iguape,pertencente à vila de Cachoeira, se haviam sublevado e praticado de-sordens. Preparavam-se para marchar contra Maragogipe. Tinham essessublevados como plano reunirem-se aos escravos do Engenho do Ponto.

Cachoeira, na época, como já dissemos, era local de grande impor-tância para a Província inteira. Possuía orfanato, escola de latim eoutros melhoramentos, além. da grande produção dos seus engenhos.Martius comparou-a à Capital da Província pelas suas condições "sociaisde civilização". <3> Tão importante vila não podia, portanto, correr o pe-rigo de ser atacada por escravos sem que imediatamente todas as medi-das acauteladoras fossem tomadas pelas autoridades. Foi o que fez oJuiz de Fora da vila de Maragogipe, para onde os escravos sublevadostinham intenção de ir, numa ameaça evidente aos seus moradores. Noofício que aquela autoridade enviou ao Conde dos Arcos, cientificando-odo acontecimento, nota-se perfeitamente a apreensão de que estava pos-suída. <4>

Segundo depoimento do Juiz de Fora António Augusto da Silva,para que os insurretos não conseguissem lograr o seu intento fpram^ to-madas as seguintes providências: colocaram-se guardas da Milícia "emtodos os pontos por onde os negros pudessem entrar"; foi mobiliza-da, para igual fim, "toda a gente da Ordenança e da Justiça para guar-necerem aqueles pontos juntamente com os milicianos." O Sargento-mordas Milícias de Cachoeira, que se encontrava em Maragogipe, partiu ime-diatamente para a vila ameaçada a fim de dar combate aos negros su-blevados.

O Major João Francisco Chobi, comunicando-se no mesmo dia como Juiz de Fora, informou que "vendo todo o Iguape incendiado e ata-

(1) — Carta de José Venâncio de Seixas para D. Rodrigo de Sousa Coutinho —Anais da Biblioteca Naciona', vol. 36 p. 42-43, verbete n. 18433.

"Através da Bahia", 2* ed., Salvador, 1928(2) — Doe. cit.(3) _ von Spix e von Martius

p. 169.(4) _ Of. do Juiz de Fora da Vila de Maragogipe, António Augusto da Silva,

ao Conde dos Arcos, 1814 — Ms. Biblioteca Nacional, II — 33, 24, 22.

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cado pelos negros ( . . . ) passo as ordens necessárias aos meus soldadosa fim de acautelar as consequências que se podem esperar." (s)

Além dessas providências tomadas pelo major, o sargento-mor, quese encontrava em Maragogipe passando revista às tropas, antes de partirpara Cachoeira efetuou a prisão de três negros aussás. <•' Essas pri-sões foram efetuadas por terem "contínua e efetiva comunicação comos do Engenho do Pont»" e por darem indícios de conluio com eles paraa sublevação que se verificou em Cachoeira.

O que foi feito dos prisioneiros — certamente foram efetuadasoutras prisões além dos três aussás a que nos referimos — as propor-ções do incêndio de Iguape denunciado pelo Major João Francisco Chobie as consequências judiciais contra os implicados na revolta não são nar-radas. O certo, no entanto, é que os escravos continuavam se revoltandono Recôncavo baiano, pondo em perigo a estabilidade e tranquilidade dostrabalhos nos engenhos e da classe senhorial. Muitos anos depois, comosintoma disto, desgastados por esses contínuos levantes, os proprietáriosde engenhos, residentes no Recôncavo, resolvem dirigir-sè às autoridadessolicitando maiores garantias para as suas propriedades e vidas dosseus parentes. Diziam em abaixo-assinado, que "considerando o perigoiminente que ameaça suas pessoas e bens, e em geral a todos os habi-tantes do Recôncavo e ainda mais. talvez aos de toda a Província pelasfrequentes revoltas de escravos, que têm sido constantes a V. Exa. eque a cada momento põem em risco a vida e a fortuna de cada umdeles, se vêem na indispensável obrigação de representar e pedir a V.Exa. a instauração dos Destacamentos que já foram mandados colocarpor V. Exa. cm diversos pontos do Recôncavo, em virtude do planopolicial de 10 de dezembro de 1828 o que, sendo indicado na Propostado GonseDio Geral da Província, fora aprovado com os demais artigos emandado executar por oficio da Secretaria do Estado dos Negócios daJustiça em data de 20 de março de 1829."

E continuam os proprietários: "Os Destacamentos, Exmo. Sr.,ainda que não sejam suficientes, só de per si, para prevenir qualquerinsurreição dos escravos, que atualmente se têm acumulado na vastaextensão do Recôncavo, contudo impõem respeito, e estão prontos aacudir imediatamente ao lugar em que a revolta apareça, sendo estauma medida já sancionada pelo Governo de S.M.I. , que pelo fato deter sido aprovada e mandada pôr em execução parece autorizar as des-pesas que pela Fazenda Pública com cia se tenham a fazer".

Concluíam dizendo que "não sendo, porem, da intenção dos Repre-sentantes gravarem a fazenda Pública com todo o peso daquela despesa,vão procurar por meio de uma subscrição suprir alguma parte dela". < r l

(5) — Idem, Doe. 2.(6) — Idem, Idem.(7) — Citado por Donald Pierson: "Brancos e Pretos na Bahia", São, Paulo,

1945, p. 94, nota.

Conforme vemos, a revolta de Cachoeira, em 1814, teve continui-dade nos anos subsequentes, levando o temor dos senhores de engenhoa recorrerem às autoridades, oferecendo-lhes, inclusive, meios financei-ros para que as medidas repressivas autorizadas fossem postas em prá-tica.

Revolta, a Bordo (1823) — Os escravos, ao serem tranportados parao Brasil, algumas vezes se revoltavam durante a viagem, amotinando-senos navios que os conduziam. Não era fácil tal tipo de revolta, vistoque as guarnições desses navios, sempre alertas, ao menor indício desublevação puniam drasticamente os escravos. Mas, apesar de todas asmedidas acauteladoras tomadas pelos traficantes, muitas vezes a cargados navios negreiros se insurgia. Os sofrimentos eram tais que prefe-riam, quando havia oportunidade, a morte a continuarem nas condiçõesa que estavam submetidos.

J. F. Almeida Prado descreve a situação desses cativos durante aviagem. Diz o conhecido historiador: "Terminado o embarque iam co-meçar os horrores da viagem. Discorrendo sobre o tráfico, cerca de1560, escrevia Frei Tomás de Macedo: "Amontoavam em um navio, àsvezes pequeno, quatrocentos ou quinhentos (cativos), e já o fedor oucatinga basta para matar os mais deles. . . E para que ninguém penseque exagero, djrei que não há quatro meses que dois mercadores... sa-caram para Nova Espanha de Cabo Verde, quinhentos em uma nau, enuma só noite amanheceram mortos cento e vinte, porque os meteramcomo porcos num chiqueiro ou, coisa pior, debaixo da coberta, onde oseu próprio fôlego e catinga (que bastavam para corromper cem árease tirá-los da vida) os matou. E houvera sido justo castigo de Deus mor-rerem justamente aqueles homens bestiais que os levaram. E não parounisso o negócio; antes de chegarem ao México, morreram quase tre-zentos.

"Contar o que se passa no tratamento dos que vivem seria um nuncaacabar. E espantamo-nos com a crueldade dos turcos para com os cris-tãos cativos, pondo-os à noite em suas masmorras.

"Muito pior tratam estes mercadores cristãos aos pretos que já sãotambém fiéis porque, na praia, ao mesmo tempo de embarcá-los batizamtodos juntos com um hissope, o que é outra barbaridade.

"Tinha razão Channing — prossegue J. F. de Almeida Prado —para afirmar, num arroubo de eloquência, que desde o século XVI o na-vio negreiro era "o conjunto de maior número de crimes reunidos nomenor espaço.'" (1)

Podemos imaginar, por esta amostra, o que significava uma revoltaa bordo. Os negros enfurecidos, quando conseguiam dominar as tripu-lações, faziam verdadeiras matanças. Por isto, os castigos aplicados aos

(1) — Almeida Prado, J. F. de: —'"Pernambuco e as Capitanias do Norte doBrasil", tomo I, p. 295/96, S. Paulo, 1939.

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lescravos que se revoltavam ou tentavam amotinar-se durante a travessiaeram terríveis. Segundo Artur Ramos "citam-se casos de mutilação, dedecapitação, de despedaçamento. Testemunhas de vista relatam-nos al-gumas destas repressões às revoltas de escravos. Do livro de bordo de umnavio negreiro "L'Africain", em 1738, extrai-se esta passagem: Sábado,29 de dezembro. Amarramos ontem os negros mais culpados, isto é, os ne-gros autores da revolta, pelos quatro membros e deitados de bruços em ci-ma :la ponte, fizemos-lhes escarificações nas nádegas para que sentissemmelhor suas faltas. Depois de ter posto as nádegas em sangue pelosaçoites e escarificações, pusemos em cima pólvora, suco de limão, sal-moura e pimenta, tudo pilado, juntamente com outra droga posta pelocirurgião; e atiramos-lhes às nádegas para impedir que houvesse gan-grena . . . "

E Artur Ramos continua: "Por uma simples suspeita de rebeliõesem outro navio negreiro, um capitão condenou dois negros à morte, em1724. Uma negra escrava foi suspensa a um mastro e flagelada. Depois,com tesouras, arrancaram-lhe cem filetes de carne até que os ossos apa-recessem; o outro condenado foi estrangulado e arrancaram-lhe o fígado,o coração e os intestinos. Seu corpo foi cortado em pedaços que os outrosescravos foram obrigados a provar-" ll"

Pois bem, em 1823 os escravos de um tumbeiro que se dirigia pro-vavelmente à Bahia, amotinaram-se e assassinaram inúmeros tripulan-tes do barco. Vinha a embarcação com um carregamento de negrosMacuas, quando, inesperadamente, estourou a revolta, sendo todos osbrancos componentes da sua tripulação atirados ao mar com pancadasdesfechadas com achas de lenha. Certamente o motim foi sufocado, poisde outra forma não se explica o fato de haver o navio negreiro chegadoà Capital baiana.

As prisões se sucederam e os implicados foram levados à barra dostribunais da época.

Como podemos deduzir dos documentos que compulsamos, existen-tes no Arquivo Público da Bahia, a revolta foi inteiramente acidentale não teve nenhum caráter organizado, nascendo das próprias circuns-tâncias favoráveis que certamente, por algum motivo fortuito, se apre-sentaram durante a viagem. Tiveram a oportunidade que a muitos fal-tava e se levantaram a bordo, o que era bastante difícil, como já vimos,em face das condições em que esses cativos eram transportados para oBrasil. Os traficantes sabiam que a revolta era um desejo latente na-quela carga humana e por isto tomavam medidas como aquelas já rela-tadas. < 3 >

Apesar da maneira improvisada, segundo os documentos citados,houve um líder que se destacou, encorajou os companheiros e dirigiu arebelião. Foi o preto ladino José Totó ou José Pato. O escravo Niqui-

(2) — Ramos, A.: — "A Aculturação Negra no Brasil", S. Paulo, 1942, p. 92.(3) — "Durante o primeiro quarto, refere o ST. Hill, intérprete do navio ne.

greiro "Progresso" (escandalosa antifrase) aprisionado peios cruzeiros ingleses na-vegando com mar tranquilo, impelido por uma leve brisa que variava de rumo. Osnegros dormiam ou estavam estendidos sobre o convés. De tal maneira se enlaçavam

rita afirmou que o levante "foi insinuado aos negros novos Macuas pulopreto ladino José Totó", depoimento que coincide com o de um ladinoimplicado — o escravo Lauriano — que também afirmou: "quem aconse-lhara aos negros novos para se levantarem fora o preto ladino de nomeJosé Pato." (4 )

Ainda pelos depoimentos verificamos que as únicas armas usadasou, pelo menos, mencionadas — foram achas de lenha e outros objetosencontrados ocasionalmente a bordo. Na matança aos brancos destaca-ram-se os pretos novos Macu e Mamatundu, afirma um dos implicados.Os que mataram os brancos — depõe — "foram os pretos novos Macu,Mamatandu e Macutandu."

Esses pretos —• todos da nação Macua, ao se levantarem contra ostraficantes tinham como certo que "se assim não o fizessem, os brancosos comeriam na sua terra." (5)

Após o motim, várias prisões foram feitas, embora não possamosestabelecer o seu número exato. Além disto, não conseguimos saber,também, que fim tiveram os implicados ou qualquer indicação que nosfacilitasse sabê-lo. Devem, porém, ter sido enforcados — pelo menos osseus cabeças — pois, por crimes muito menores, costumava a Justiça daépoca condenar os escravos a 500, 600 e mais açoites. Nos processossobre rebeliões de escravos, essas penas eram comuns pela simplessuspeita de participação nos movimentos.

Aqui ficamos, porém, no terreno da simples conjetura.

uns com os outros em um pequeno espaço, que, à luz incerta do luar, mais pareciamum mont&o confuso de braços e pernas, do que corpos humanos.

Pela l hora depois da meia-noite começou o céu a cobrir.se de nuvens, e o ho.rizonte escurecia na direção do vento. Um aguaceiro corria sobre nós; caíram algu-mas gotas dagua e de repente principiou uma cena, cujos horrores não é possíveldescrever. Obrigados a obedecer imediatamente à voz de ferrar o pano, os mari-nheiros embarcados peios negios estendidos no convés, não puderam manobrarcomo convinha. "Façam descer os negros", gritou o capitão, e assim se fez. Mas otempo estava pesado e quente e esses 400 infelizes, amontoados em um espaço de12 toesas de longo e 7 de largo, com 3 pés e meio apenas àe alto, em breve come-çaram a forcejar para voltar ao convés e respirar o ar livre. Repelidos, fizeramsegunda tentativa. Foi preciso fechar-lhes as escotilhas de ré, e colocar uma espéciede grade de madeira na de proa. Então os negros principiaram a amontoar-se juntodesta escotilha por ser a única abertura que deixava comunicar o ar. Sufocavam, e.ainda estimulados talvez por algum terror pânico, entraram de juntar-se por talforma, que impediram completamente a ventilação. Por toda a parte onde pensavamencontrar uma passagem, faziam os maiores esforços para sair; e alguns saíramefetivamente por espaços que tinham cerca de 14 polegadas de longo e 6 de largo. .No dia 13 de abril (1843), quinta-feira santa, acharam-se no porão 54 cadáveresque foram lançados ao mar. Alguns desses infelizes tinham perecido de moléstia;porém muitos- dos cadáveres estavam machucados e cobertos de sangue. António(um espanhol de bordo da presa) contou-me que foram vistos alguns já prestesa morrer, estrangulando-se ou apertando a garganta uns aos outros. Um por talmodo foi comprimido que as estranhas lhe saíram para fora do corpo. A maior partedeles tinham sido calcados aos pés no delírio e sofreguidão com que buscavam arque respirasse. Horroroso espetáculo era ver arrojados ao mar, um após outro,esses corpos torcidos, inteiriçados, manchados de sangue e de excremento!. .." (VideCinquenta dias a bordo de um iiavio negreiro, publicação feita em Londres pelo sr.Hill, capelão da fragata Cleópatra) — Apud: Augusto de Carvalho: Brasil — Co.Ionização e Emigração, Porto, 1876, p. 412).

(4) — MS existente no Arquivo Público da Bahia.(5) — Idem, idem.

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Insurreição da Vila de São Mateus (1822) — Na série de revoltas deescravos que estamos estudando, encontramos vestígios de uma eclodi-da na vida de São Mateus. Os documentos que conseguimos acerca fiamesma, foram escassíssimos — apenas uma petição de dois escravos pe-dindo liberdade às autoridades e os respectivos despaches — mas sufi-cientes para não termos dúvidas sobre sua veracidade.

No ano de 1822 estouraria a rebelião com o objetivo de tomar opoder e instalar um reinado nos moldes dos existentes no ContinenteAfricano. Segundo lemos no documento citado, os pretos, escravos e for-ros, organizaram uma sedição contra todos os "brancos e pardos." Aoque parece e tudo leva a crer, o movimento foi sufocado no seuinício. Mas as prisões se sucederam — as autoridades, alarmadascom a série de revoltas dos escravos, estavam em constante vigilânciae alguns cabeças foram remetidos para a cadeia da capital. Ali aguar-daram o resultado da devassa que as autoridades mandaram abrir sobrea insurreição, cujo fim não pudemos apurar. Os remetidos para a Cida-de do Salvador foram os escravos Claudino de Jesus e Luís Benguela,sendo que o último — reza o manuscrito — seria aclamado rei, após avitória do movimento.

Em abril de 1822 farão esses dois escravos requerimento solicitan-do liberdade por estarem presos "quarenta e quatro dias sem culpa",doentes, alegando em seu favor o fato de serem pobres: "e como são po-bres e não têm meios para poderem tratar-se e por modo nenhum deve-rem sofrer prisão sem culpa. . ." pediam liberdade.

O despacho foi negativo. Dizia que os acusados se encontravam pre-sos por haverem encabeçado a insurreição da Vila de São Mateus e quese estava processando a devassa para apurar as responsabilidades. Diztextualmente: "os suplicantes tinhão sido presos como cabeças d'essemotim querendo hum d'elles ser Rey". A data do despacho é 16 deabril de 1822 e nada mais encontramos que nos orientasse para saber-mos as proporções da insurreição e o fim dos implicados.

Quilombo do Urubu (1826) — No ano de 1826 formou-se um quilombona matas do Urubu, no Sítio Cajazeira, perto da Capital baiana. Come-çou a atuar atacando e realizando pequenas escaramuças na região epreparando-se para um ataque de envergadura à Capital: "premedita-vão aprezentar hua revolução na Cidade." No dia 15 d& dezembro da-quele ano praticaram alguns ataques no Cabula contra lavradores, rap-tando uma menina que com sua família "se passava a uma roça no ditosítio", e que, dois dias depois, foi encontrada "muito maltratada" e re-colhida ao Hospital da Misericórdia. Em consequência dos atentadospraticados pelos quilombolas e certamente solicitados por moradores dascircunvizinhanças, alguns capitães-do-mato partiram para prendê-los e

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entraram em luta com os mesmos nas matas onde se encontravam aqui-lombados. Os escravos opuseram tenaz resistência ao ataque dos capi-tães-do-mato e na refrega mataram dois e pelo menos feriram um ter-ceiro o A luta se travou ao meio-dia, tendo falecido os seguintes capi-tães: António Neves, cabra forro, e José Corrêa, branco. A Polícia jáera sabedora da existência do quilombo, esperando "o momento que ha-via designado" para atacá-lo; ante a precipitação dos acontecimentos,tomara imediatas providências. No mesmo dia em que os capitães-do-mato foram derrotados, marchará uma tropa de 20 praças do Batalhãode Pirajá — comandada pelo Coronel Francisco da Costa Branco — quese juntará a outra composta de 12 soldados e um cabo da Divisão Mili-tar, partidos da Capital, de vnáe saíram às 10 horas da manhã.

Essas tropas fizeram junção na Baixa do Urubu.

A tropa que marchava da Capital, sob o comando de José Baltasarda Silveira, encontrou no caminho um capitão-do-mato e mais dois criou-los gravemente feridos em consequência do ataque. Ao chegarem, forampercebidos por vigias dos escravos que imediatamente puseram-sc emguarda, dando o alarme, fazendo pára isso "uso de um corno de boi"que formava uma "espécie de corneta" Foi dada ordem d-e atacar pelocomando da tropa.

A essa tropa, de cerca de trinta homens, opuseram-se os cinquentaescravos aquilombados, usando como armas apenas "facas, facões, laza-rinas, lanças e mais outros instrumentos curtos"; aos gritos de "Mata!Mata!", "lançando-se furiosos" sobre os soldados.

A tropa abriu fogo sobre os negros que, depois de alguma resistên-cia, abandonaram o campo da luta deixando quatro mortos — três ho-mens e uma mulher — e, aproveitando-se da noite, internaram-se nasmatas próximas, onde pretendiam se reorganizar. Nessa ocasião foi

(1) — Nina Rodrigues, erradamente, noticia que os escravos do Urubu iniciaramsuas atividades no Cabula após entrarem em combate com capitftes.do-mato enviadospara capturá-los e animados com o êxito que obtiveram. Engano: iniciaram antesdo.choque com os capitães-do-mato. Os ataques feitos no Cabula foram no dia 15,quando raptaram u'a menina. Talvez que, em consequência disso, os capitães do.mato tivessem resolvido atacá-los, o que foi feito na manha do dia 17 de dezembro,quando foram derrotados peilos quilombolas. No mesmo dia partiu, às 10 horas damanhã, um contingente da Polícia para dar.lhes combate. Lemos na parte dadapor um dos comandantes do ataque: "Participo que marchando da Cidade ás 10horas do dia como me foi por V. Sá. ordenado, com doze soldados e hum cabo,para o Cabulla, e chegando à Estrada do 1° lugar tive notícia que os negros estavãoreunidos em um lugar denominado — Orubú — numero pouco mais, ou menos, ciocincoenta, e também algumas Negras e procurando para ver se os descobria encon-trei com hum Capitão de Assaltos, e mais dous Crioulos gravemente feridos, ahisoube terem sido aquelles ferimentos pelos negros que se achavão levantados".

Essas medidas repressoras foram tomadas pelo Comandante da Polícia em con.sequência de ter sido avisado, no dia anterior, de que os quilombolas "anteontemhaviâo ferido a varias pessoas no Caminho do Cabulla e raptado hua menina queaym. sua família se passa.va a hua rossa no dito citio." O documento está datadodo dia 17, o que comprova nossa afirmativa.

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aprisionada a escrava Zeferina, de arco e flecha nag mãos, que lutou bra-vamente antes de ser submetida à prisão. Além disso, a Polícia apreen-deu grande quantidade de víveres: bolachas, sacos de farinha etc.

Depois do ataque — como não podia deixar de ser. .. — a Políciainiciou a repressão. Ordens foram expedidas a diversos oficiais paraque, com suas respectivas tropas, marchassem aos "lugares suspeitos"a fim de prenderem "os revolucionários." Começaram as batidas nasmatas próximas, tendo sido varejadas inúmeras casas de negros e par-dos e se efetuado grande número de prisões. Vasta quantidade de ma-terial e instrumentos religiosos foi apreendida.

É de se destacar, ainda, um fato interessante: a prisão de um sol-dado entre os quilombolas. Era ele o soldado do 1.° Batalhão de 2.a Li-nha, Cristóvão Vieira, preso em sua casa em companhia do negro Fran-cisco Romão. Além dessas prisões foram recolhidos em outro local "umtabaque e mais duas violas armadas com piaçabas". Alguém confessouà Polícia a existência de um agrupamento de escravos reunido na Ruada Oração, em um casebre. Imediatamente as autoridades cercaram olocal indicado e aprisionaram nove escravos e um pardo. Nesse casebre,além das prisões, a Polícia apreendeu um chapéu grande e coberto dediferentes cores, tendo em cirna uma figura com chifres, uma armacom varetas, um ferro de ponta com quatro palmos e meio de comprido,uma faca de ponta, outras flamengas, uma poltrona de couro, cartuchosfeitos de paus cheios de pólvora e vários instrumentos de dança. NoMaciel de Baixo a polícia aproveitou o pretexto para invadir uma casa,efetuando inúmeras prisões. Em outra batida — comunica uma das par-tes — foram presos cinco pardos forros e dez negros escravos, além deinstrumentos de madeira e objetos de dança.

O centro das batidas, porém, foram os casebres espalhados pelasmatas que, segundo o pensamento das autoridades, eram locais perigo-sos de reuniões e conspiração dos escravos. No dia seguinte ao do levante,cm parte ao Chefe de Polícia, o Alferes Costa Veloso comunicava haverprendido nele "quinze negros e oito negras." Detalhe curioso é que en-tre os quilombolas se encontrava o escravo António, que pertencia a Sa-bino Vieira.

O terror continuava e as prisões aumentavam: o escravo nagô Joãofoi feito prisioneiro no dia 21 de dezembro. No dia seguinte Davi foicapturado juntamente com Hipólito e ambos internados no hospital porse encontrarem "o primeiro ferido e o segundo maltratado". Ordens deprisão foram ainda expedidas contra os escravos Jonas, Paulo e outros.Contra o pardo António de Tal — provavelmente um dos organizadoresdo levante ou dos mais influentes líderes do movimento — foi tambémexpedida ordem de prisão com data de 10 de janeiro de 1827. < 2> Todosos presos foram remetidos ao Forte do Mar, com exceção do soldadoCristóvão, que foi recolhido ao quartel, aguardando julgamento.

(2) — Não conseguimos apurar quais as sentenças proferidas contra António,Jonas e os outros. Os menos importantes foram entregues aos senhores para seremcastigados.

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O Governo exigirá rigorosa punição para os culpados de "negóciosde tanta monta." Mandará — através de Ofício endereçado ao OuvidorGeral do Crime — que se processe imediatamente os culpados "em con-formidade com as leis contra os réus de tão pernicioso crime" e que seagisse "procurando conhecer por meios de perguntas aos ditos réus ofim que se dirigia tal projeto" e que "do que achar me dará conta, paraque eu providencie como o exigir a segurança pública. E quanto aos in-divíduos que foram achados em casebres, meterá em processo aquelesque pela natureza de suas culpas o merecerem segundo a parte que lheserá apresentada pelo sobredito Tenente-Coronel Comandante, e aos ou-tros fará castigar policialmente conforme a maior ou menor gravidadede seus delitos, para depois serem entregues a seus senhores." < 3 1

Em obediência a essas ordens a Polícia continuará as batidas, apri-sionando um escravo que se dizia Rei e que foi encontrado "em trajespróprios", negando-se terminantemente a dizer como se chamava "porser novo", apesar dos esforços das autoridades. Sabe-se, somente, quepertencia a um cidadão chamado Francisco António Mascarenhas.

No dia 30 de maio de 1827 faleceram na prisão, vítimas certamentede maus tratos a que foram submetidos, os escravos José e Paulo. "Doufé — declara o carcereiro — ter passado da vida presente para a eterna."

Tudo indica que esses quilombolas pretendiam realizar uma insur-reição de maior envergadura, contando, para isso, com escravos da cida-de para, conjuntamente, iniciarem o ataque à Capital. Depondo no pro-cesso, o comandante de uma das tropas que deram combate aos escra-vos — José Baltasar da Silveira — afirmará que sabia que "os ditosnegros se achavam ali reunidos, e armados esperando pornegros nagôs que naquela mesma noite haviam de partir da Cidade e rcu-nir-se-lhe" para depois marcharem "sobre a cidade e procurarem a sualiberdade e matarem os brancos que encontrassem." (" Depoimento quecoincide com o de Paulino Santana que diz haver a escrava Zeferinaafirmado estarem "ali reunidos à espera de outros que na noite do diaseguinte haviam (de juntar-se), os pretos da Cidade, para depois de jun-tos irem para matar seus senhores." Assim, a insurreiçãoestouraria na noite do dia 18 e contaria com o apoio dos escravos daCapital. Estavam, pois, unidos aos nagôs, que se organizavam já paraas grandes lutas que sustentariam nos anos seguintes contra seus se-nhores. Nina Rodrigues comenta acertadamente que os nagôs, com seusplanos de envolver nas insurreições todos os escravos dos engenhos vizi-nhos "deviam naturalmente buscar apoio em um quilombo tão da proxi-midade da Capital." (5)

(3) — MS do Arquivo Público de Bahia.(4) — Os quilombolas não se limitaram apenas a alguns ataques sem impor-

tância, como à primeira vista poderá parecer. O Governador da Província mandouque o Desembargador Ouvidor-Geral do Crime tomasse providências para punir os"assassínios, roubos, incêndios de casas" praticados por eles.

(5) — MS do Arquivo Público da Bahia.

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Tudo leva a crer que a organização desses escravos ainda era muitodébil. Não tinham estrutura organizativa que os capacitasse a uma in-vestida mais eficaz e ordenada contra as tropas legais. Tudo — ao queparece — foi mais ou menos espontâneo, surgido de circunstâncias queeles não puderam controlar. O próprio fato de se empenharem em esca-ramuças preliminares, meramente predatórias e que nada adiantarammas, pelo contrário, serviram apenas para denunciá-los, mostra comonão estavam capacitados para a empresa a que se destinavam. Alémdisso, as armas desses negros eram bem pobres. Não tinham armas defogo; apenas armas curtas e brancas, embora num dos casebres fossemencontrados cartuchos de pólvora.

Tinham como centro diretor do movimento, é fora de dúvida, umacasa chamada Casa de Candomblé, localizada nas matas próximas aoquilombo e dirigida por um pardo chamado António de Tal, contra quemo Governo expedirá ordem de prisão, como vimos, logo após a revolta.Da Casa de Candomblé do pardo estendia-se uma estrada que a ligavaao quilombo e pela qual se comunicavam. Além desse centro havia umacerta quantidade de casebres espalhados pelas matas, todos focos deconspiração. Podemos dizer mesmo que o pardo António era certamenteo dirigente mais capaz do grupo e quem se comunicava com os escravosda cidade. Sua casa foi varejada pelas autoridades e nela apreendidas— além de instrumentos de culto africano — "roupas de pretos cheiasde sangue". Em outros casebres — as autoridiad.es varejaram treze —foram encontrados materiais que denunciavam ligações com os escravosdo quilombo. Num deles descobriu-se "uma coroa de Capelão comalguns enfeites de búzios, contas de vidros de diferentes cores e o maisque consta no termo de apreensão", além de "uma mesa pintada de en-carnado sobre a qual deviam ter uma colcha de damasco".

Esmagado o movimento, continuaram as prisões por algum tempo,sem que tenhamos descoberto, infelizmente, as sentenças a que foramcondenados os principais implicados. Certamente sofreram, como todosos que se levantaram contra a escravidão, as penas severas da legislaçãoda época.

Depois desse quilombo, aparecido nas matas próximas à Capitalbaiana, Nina Rodrigues refere-se a mais dois movimentos insurrecio-nais que se seguiram, aos quais, nas buscas que realizamos nos arqui-nos não encontramos nenhuma referência. O primeiro foi de escravosdo Engenho Vitória — hoje Usina Vitória — perto de Cachoeira e queestourou no dia 22 de abril de 1827, ainda nem bem haviam terminadoas repressões ao anterior. Os escravos desse Engenho, seguindo o exem-plo dos seus companheiros que sucessivamente se vinham levantandocontra o instituto da escravidão, revoltaram-se com certa violência, sópodendo- ser debelada a insurreição dois dias depois de iniciada. NinaRodrigues não se refere às proporções da luta ou às suas consequênciase nenhuma outra fonte esclarecedora pudemos encontrar.

Pouco menos de um ano depois — no dia 11 de março de 1828 —novo levante de escravos será registrado. Na madrugada daquele dia

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uma parcela dos cativos dos engenhos próximos a Cabrito aliava-se àparte amotinada dos escravos da Capital e se prepararam para realizarum ataque contra a Cidade do Salvador, depois de reunidos na Arma-ção. Plano mais ou menos idêntico ao de 1826 e ao do movimento de1835, como veremos em seguida. Antes, porém, de iniciarem o ataque,foram surpreendidos pela Polícia que contra eles marchou, encontran-do-os próximo a Pirajá. Ali o corpo de Polícia e o 2? Batalhão de Linhaderam combate às forças dos escravos, saindo os últimos derrotados,após sangrenta luta. Ainda segundo Nina Rodrigues, na luta "perecerammuitos, sendo os demais presos e punidos."

Insurreição de 1830 — Depois do Quilombo do Urubu e das pequenas re-voltas que surgiram nos anos de 1827 e 1828, encontraremos notícias deum novo movimento iniciado no dia 10 de abril pela manhã, no ano de1830. <"' Esse movimento — ao que tudo indica, surgiu mais ou menosde improviso e teve uma duração mínima, apesar da violência dos mo-vimentos iniciais e seus primeiros êxitos, sendo logo arrefecido e des-baratado pela repressão policial.

O primeiro ataque que esses escravos realizaram, foi contra uma lojalocalizada na Ladeira da Fonte das Pedras, pretendendo obter armaspara continuarem a luta. Alcançaram em parte seu intento, pois apóspequena resistência da parte do proprietário — Francisco José Tupi-nambá — arrecadaram doze espadas de copos e cinco "paraíbas", dei-xando ferido o dono do estabelecimento, além do caixeiro José SilvinoRaposo, atingido por forte cutilada na cabeça e uma estocada na ná-dega.

O número de escravos em luta aumentou imediatamente. No inícioda insurreição era esse número relativamente insignificante — uns de-zoito a vinte é a estimativa feita pelo Promotor Público, tempos depois,em libelo contra um dos implicados. Já no fim, havia mais de cem.

Conseguido o primeiro objetivo, que era obter armas, marcharampara atacar uma casa de ferragens de propriedade de Manuel CoelhoTravessa. Ali, porém, encontraram tenaz resistência da parte do pro-

(1) Nina Rodrigues equivocou.se quanto à data do levante, afirmando ter sidoa primeiro de abril. O acontecimento registrou-se no dia dez. Isso se comprova como fato de um escravo acusado de ter participado do movimento ser defendido peloseu advogado com a alegação de que o suposto insurreto se encontrava foragidodesde o dia seis, em consequência de roubo praticado em uma caixa de açúcar deseu senhor. Continuando, pondera o advogado de defesa: no dia nove ele já se en-contrava preso por um capitao-do-mato. Quando estava sendo conduzido para acidade, acompanhado do capitão-do-mato que o capturara no dia nove, foi o escravoviolentamente arrancado das mãos de seu captor e, depois de espingardeado porum soldado que o feriu na perna "covarde e impiedosamente", aprisionado pela Polí-cia. Se no dia nove Já estava preso — alega o advogado — como poderia parti-cipar de um movimento no dia dez? Todos os outros manuscrito» referem-se ao diadez como data do levante, contradizendo a afirmativa de Nina Rodrigues.

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prietário e dos saus empregados, que reagiram armados de bacamarte eespadas. Ante a inesperada e dura resistência, os escravos resolveramprudentemente recuar, apenas retirando da loja uma "paraíba." Marcha-ram em direção a outra casa comercial e, depois de rápido ataque, con-seguiram apoderar-se de mais cinco.

No trajeto, o mímero de escravos sublevados vai aumentando. Os"cabeças de motim" — como são chamados pelo promotor os lídefès queiniciaram o movimento — empunhando espadas e vestindo camisas azuise vermelhas, investem à frente dos amotinados rumo à Rua do Julião,atacando os armazéns de negros novos de Venceslau Miguel de Almeida,de onde saem mais de cem que os acompanham.

Depois de "sublevarem os cativos daquela armação" (de VenceslauMiguel de Almeida), deixando gravemente ferido o cidadão Nicolau Antó-nio da Maia e contando já com "mais de cem cativos que puderam se-duzir", marcham para atacar a guarda da Polícia da Soledade, compostade sete soldados e um sargento. Conseguem, pelo peso numérico, vencera guarda, além de ferir e desarmar o soldado Francisco Lopes Carvalho.O certo é que, sem um plano preestabelecido, e um tanto desorientados,esses negros lego depois seriam atacados e derrotados.

As forças da Polícia e mais alguns civis investem sobre eles, obri-gando-os, depois de sangrento choque em que morreram mais de cin-quenta e ficaram prisioneiros quarenta e um, a se retirarem para asmatas de S. Gonçalo, onde tentam reagrupar as suas forças. A escolta mi-litar, porém, não lhes dá descanso e, ali, são cercados e definitivamentebatidos. O promotor pedirá que sejam punidos os que escaparam, para"conservação do sossego público e desagravo da Sociedade ofendida."

A repressão — como de todas as vezes — não se fez esperar. Veiodrástica e violenta. Os pretos eram espancados nas ruas, linchados, ape-drejados. Os soldados prendiam todos os escravos que apareciam sob assuas vistas. Depois disso as sentenças se sucederam: os escravos Ni-colau e Francisco são condenados a quatrocentos açoites cada um,"dados interpoladamente cinquenta por dia cada vez", além das custas.O advogado de defesa de um dos réus acusa abertamente a Polícia de pra-ticar atentados violentos à pessoa dos escravos, dizendo que durante afase da repressão matava "indistintamente a quantos encontram dis-persos, sejam ou não cúmplices" e que inúmeros escravos foram mortospelos "soldados e povos;>.

Era a justiça dos senhores de escravos celebrando o seu jubileu desangue.

A Grande Insurreição — A última grande revolta de escravos da, Capitalbaiana e a que obteve maior ressonância histórica foi, sem sombra dedúvida, a de 1835. Dirigida por escravos nagôs, englobará, contudo,entre seus dirigentes, negros de diversas outras "nações" africanas, prin-cipalmente Tapa. Demonstrará que os escravos já haviam sedimentado

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um certo nível organizativo e assimilado uma tradição de luta contraseus senhores, através do longo rosário de lutas que foi levantado du-rante o transcurso da primeira metade do século XIX.

É verdade que alada não possuíam — nem era logicamente possívelnas condições em que se encontravam —• um programa político. A únicaconsigna capaz de uni-los era, segundo pensamos, a conquista da liber-dade, o fim do cativeiro. Procuravam, deste modo, tirar das lutas passa-das que se sucederam na Província, o máximo de ensinamento "a fimde matarem todos os brancos, pardos e crioulos." (1)

A revolta dos escravos baianos de 1835, em consequência, não seráuma eclosão violenta e espetacular, apenas surgida de um incidente qual-quer e sem plano preestabelecido, mas uma revolta planejada nos seusdetalhes, precedida de todo um período organizativo — fase obscura dealiciamento e preparação — sem a qual não se poderá compreender asproporções que alcançou cm uma das principais Províncias do Império.

O período organizativo da revolta que precedeu sua eclosão aindanão foi estudado com o interesse que o assunto merece. Nossos histo-riadores se interessam mais pela fase heróica do movimento, a luta derua na sua parte dramática, desprezando o problema de como a revoluçãofoi preparada.

Derrotada a última tentativa dos escravos, chefiada pelos nagôs(1830), procuraram seus líderes se reorganizar e iniciar uma série depreparativos objetivando a reiniciar a luta, reagrupar seus membros edar início a nova revolta. Além das organizações existentes, constituí-das de grupos de escravos que se reuniam regular e secretamente emvários pontos da Cidade do Salvador, como veremos mais adiante, cria-ram os escravos um Clube, também secreto, que funcionava na Barra(Vitória). Esse Clube ficava localizado nos fundos da casa do inglêsde nome Abrão e exerceu um papel dos mais importantes na estrutura-ção e deflagração do movimento. Era uma casa de palha construídapelos próprios escravos para suas reuniões. < 2 > Seus cabeças mais ati-vos eram os escravos nagôs: Diogo, Ramil, James, Cornéíio, Tomás eoutros. Reuniam-se regularmente para discutirem juntos os planos dainsurreição, muitas vezes juntamente com elementos de outros gruposdo centro da cidade, de negros dos saveiros de Santo Amaro e Itapa-rica, com quem tinham contato e contavam para o êxito do levante.

Esse Clube funcionava ativa e regularmente desde muito antes dainsurreição. No mês de novembro do ano anterior à deflagração da re-volta armada, já havia contra ele denúncia feita pelo Inspetor de Quar-teirão António Marques ao Juiz de Paz do Distrito. Dirá o Inspetor,

(1) — MS existente no Arquivo Público da Bahia — Maço referente a revolu-ções de escravos.

(2) — A casa de palha para reunião foi construída pelos escravos Jaime e Diogo.Dirá o esoravo João, em, depoimento, que a casa de palha foi feita pelos seus parcei.ros Jaime e Diogo a fim de se reunirem (CMS) do Arq. Pub. da Bahia).

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em depoimento, que "iro mês de novembro do ano passado conhecera osescravos Diogo, Daniu, Jasmar e João, do inglês Abrão" e que por aca-so a testemunha ali chegou como Inspetor "e que tudo tinha participadovocalmente ao Juiz de Paz". <3> Os membros do Clube possuíam um anelque os identificava e, pelo menos no dia do levante, vestiam-se de brancona sua maioria. Havia no Clube um escravo chamado Tomás, que ensi-nava os demais a escrever (certamente em caracteres arábicos) : "escra-vo de Vulcherer, cabeça do Clube, mestre que ensinava a escrever." <*>Havia também um capitão. Os documentos mostram que esse "capitão"era o negro Sule, pertencente ao grupo do centra da cidade — o de Bel-chior — mas, provavelmente, tomando parte das discussões e delibera-ções do Clube. Os escravos, nos seus primeiros depoimentos, referem-sea outro que "também chama-se capitão" e que "se sentava no canto daLadeira do Largo da Vitória," (5) sobre o qual nenhuma outra informa-ção encontramos.

Outro lugar importante de reuniões era a casa do preto forro Bel-chior da Silva Cunha, segundo depoimento da preta velha Teresa. Alise encontravam os elementos mais importantes para discutirem detalhesdos seus planos. Na casa de Belchior aparecia frequentemente, comoutros negros, um que se chamava Gaspar da Silva Cunha e que tambémtrabalhava na organização do levante. Nesse local faziam-se "ajunta-mentos umas vezes de dia e outras de noite." (6) Recebiam os escravosque se reuniam na casa de Belchior — ainda segundo depoimento daescrava Teresa às autoridades — a visita amiudada de um mestre que"é escravo de um homem que faz fumo" e "mora junto da egreja deGuadalupa e he de Nação Tappa". Esse escravo, — esclarece por fim— era conhecido "pelo nome que possuía e que he Sanim por que hecomo elle (Belchior) o trata por não saber o nome que elle tem em terrade branco" e mais que os papéis apreendidos pela Polícia eram feitos "pe-lo mesmo mestre", o qual negro quando está no brinquedo fala tambémlíngua de Nagou e he velho com alguns cabellos brancos." (7) Esse mes-tre não é outro senão Luís Sanim, um dos líderes mais destacados e dili-gentes do movimento. Na casa do forro Belchior reuniam-se os princi-pais cabeças do levante, traçando planos e discutindo detalhes com ele-mentos do Recôncavo e de outras partes da cidade. Na delação da pretatapa Teresa, encontramos os nomes de alguns deles: Ivá, Mamolin,Ojou e inúmeros outros.

Será ainda ponto de reunião a casa do alufá Pacífico Licutã que,no cruzeiro de São Francisco, pregava abertamente aos demais escravosa necessidade da insurreição. Esse negro — um dos mais influentes

(3) MS existente no Arq. Púb. da Ba.(4) Idem, idem.(5- Talvez que esse fosse apenas um dos muitos chefes que eram aclamados

"capitães". Há, contudo, um documento no Arquivo Público da Bahia que se referea "um capitão escravo de António de Jesua residente no Largo da Vitória ondtemorava com "alguns forros que viviam de carregar cadeiras". Seria o mesmo?

(6) MS do Arq. Púb. da Ba.(7) Idem, Idem.

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dentre os líderes da revolta — sabia ler e escrever, ensinando aos de-mais os mistérios e rezas males. Tendo sido depositado por penhora nacadeia, por dívida do seu senhor aos frades Carmelitas, dali assistiuimpotente o desenrolar dos acontecimentos, tendo os escravos sublevadostentado libertá-lo durante a luta, sem o conseguir. O carcereiro dirá que"tendo sido Licutã recolhido em dias do mês de novembro, logo no diaseguinte teve muito negros e negras que o fossem visitar e as visitascontinuaram todos os dias e todas as horas." Prova incontestável deseu prestígio frente aos demais escravos que se preparavam para a luta.Seus companheiros haviam mesmo reunido a quantia necessária para li-bertá-lo, não o fazendo em consequência da recusa do seu senhor.

Manuel Calafate será outro líder do movimento. Sua casa será ocentro de reunião dos mais importantes. Na "loja" <8> do segundo prédioda Ladeira da Praça, onde morava, reunir-se-ão em conspirata todos osescravos das imediações. De lá partirão os primeiros tiros da insurrei-ção, após denúncia feita contra eles. Além de Calafate, atuarão ao seulado os escravos Aprígio e Conrado. Depois de sufocado o movimento,ali será encontrada e apreendida farta quantidade de material: livros,tábuas etc. Idêntico movimento encontramos na casa do aussá ElesbãoDandará. Esse preto morava no Gravata mas, para melhor aliciar adep-tos, alugou uma tenda no Beco dos Tanoeiros, onde reunia os discípulose os instruía. Difundia papéis com rezas muçulmanas, tábuas com ins-crições sediciosas, rosários males etc. Era, também como Luís Sanim,mestre em sua terra e ensinava aos negros os preceitos e princípios doIslã.

Ainda tinham os escravos outro local muito importante de reuniões:era a porta do Convento das Mercês. Os negros que pertenciam aqueleConvento, dirigidos pelos escravos Agostinho e Francisco, juntavam-seaos de outras procedências, discutindo os métodos de se libertarem. Se-gundo depoimento da época, surgido durante o processo contra um dosimplicados, reniam-se pela manhã. Também atrás da Rua do Juliano,na casa de um preto chamado Luís, os escravos faziam ponto de ajun-tamento. Eram ainda locais concorridos de reuniões: a casa do pretoAmbrósio, de "nação" Nagô, residente ao Taboão, onde a Polícia encon-trará, nas buscas realizadas após o movimento, "papéis com escritos emcaracteres arábicos"; a casa do crioulo José Saraiva e da preta Engrá-cia, onde foram descobertos papéis escondidos dentro de uma caixa; a"loja1" da casa do inglês Togler, onde residiam negros forros, em cujolocal foram achados manuscritos suspeitos; a casa do inglês Malon, ondea Polícia descobrirá "vestimentas, tábuas para escrever e penas parti-culares dos ditos pretos e uma faca de ponta". "" Havia, ainda, reuniõesna casa do inglês Malror Russell, onde foram apreendidos inúmeros obje-tos. Numa loja do Largo da Vitória eles também se reuniam.

(8) "Loja" é termo empregado aqui como sinónimo de porão, forma comoé designada, na Bahia, esse tipo de moradia.

(9) MS do Arq. Púb. da Ba.

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Além desses lugares principais ou pelo menos mais vulneráveis àrepressão policial depois da insurreição, e de inúmeros outros que certa-mente existiram mas que é dificílimo ou quase impossível localizar, ha-via, provavelmente, em cada senzala ou reunião de escravos, um desejolatente) de rebelião. Havia, ainda, uma casa no Beco do Grelo onde elesse reuniam para deliberar secretamente. Lá serão presos alguns escra-vos logo depois de sufocada a revolta.

Outras organizações e pontos de reuniões existiam ainda em diver-sos bairros da Capital baiana ou no Recôncavo. Do Recôncavo, aliás,esperavam os escravos uma participação ativa dos seus companheirosque moravam naquela zona. Além disso, presumivelmente mantinhamligações com escravos pernambucanos. No depoimento do escrava João,há referências a um outro chamado António, "vindo ultimamente de Per-nambuco" e que participou da revolta. Como no citado depoimento encon-tramos os nomes dos senhores de todos os outros, menos o de António,podemos levantar a hipótese de que ele se encontrava como elemento deligação entre os escravos de Pernambuco e Bahia.

Podemos traçar, de um modo geral, o panorama, a rede organiza-tiva dos escravos: dois grupos principais orientavam e dirigiam o mo-vimento: o primeiro era o que se reunia na cidade, com ramificaçõesem diversos lugares — Ladeira da Praça, Guadelupe, Convento das Mer-cês, Largo da Vitória, Cruzeiro de São Francisco, Beco do Grelo, Becodos Tanoeiros etc. — dirigido por Dandará, Licutã, Sanim, Belchior,Calafate e outros — e o segundo formado por escravos pertencentes aoClube da Barra, sob a direção de Jamil, Diogo, James etc., certamentecom ligações com outros grupos que não conseguimos identificar em nos-sas pesquisas. Esses dois núcleos principais, orientadores do movimento,mantmham-se em constante contato. O escravo João, no depoimento aque já nos reportamos, afirma que o de nome Sule (amásio de Guilher-mina, delatora da revolta e que pertencia ao grupo de Belchior) reunia-se também no Clube da Barra. Diz o depoimento que houve certa vez um"jantar onde se reunião todos os escravos nagôs dos inglezes e muitosde saveiros... da cidade outros de Brazileiros, os quaes he impossíveldeclarar seus nomes porem que se recorda de um escravo de nome "Diogo"e "outro de nome Sule que em sua terra he Capitão d'elles." <10)

Esses dois grupos principais manterão, por outro lado, ligações comos escravos do Recôncavo baiano. Os negros de Santo Amaro, de Itapa-rica e de outros pontos vinham reunir-se aos da Cidade do Salvadorpara discutirem em conjunto os detalhes mais importantes do movimen-to . Aliás, será por conversas e savereiros que se referiam à presença, nacidade, de escravos vindos de Santo Amaro para uma conspiração, quea escrava Guilhermina conseguirá a pista e denunciará a insurreição.

Ainda no plano organizativo, encontraremos uma particularidadeimportante: os escravos não se descuidarão do problema financeiro.

(10) Idem, idem.

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Criaram um fundo para as despesas do movimento. A ideia desse fundofoi de Luís Sanim e, ao que parece, era executada por Belchior e Gas-par, porque, logo depois de suas prisões — foram recolhidos ao Fortedo Mar — ao dar a Polícia buscas em suas casas encontrou a quantiade setenta e nove mil e quatrocentos e oitenta réis. A preta Agostinha,respondendo a perguntas de seus inquiridores, afirmou que aquela im-portância pertencia a Belchior e "seus camaradas do Forte do Mar." (11)

Como sabemos, esse fundo monetário era para "recolher meia patacapara dali retirarem vinte patacas para comprar roupas, sendo o exce-dente destinado a pagar semana a seus senhores ou para se forrarem."

O fundo monetário para o movimento parece que não nasceu nosdias imediatamente anteriores ao levante: de há muito vinham os escra-vos amealhando penosamente dinheiro para as despesas necessárias. Narevolta sufocada de 1844, ainda existirá esse fundo, certamente pela efi-ciência demonstrada durante o período da presente luta.

O plano militar foi elaborado antecipadamente e suas conclusõesdistribuídas entre os principais responsáveis por sua execução. Seriao seguinte, em resumo: partiria um grupo da Vitória, comandado peloschefes do Clube, "tomando a terra e matando toda a gente da terra debranco", rumando para a Água dos Meninos e, em seguida, marchandopara o Cabrito, "atrás de Itapagipe", onde se reuniriam às demais forçase se juntariam aos escravos dos engenhos. Essas ordens foram tambémtransmitidas em proclamações dirigidas pelos líderes aos demais negroscom a assinatura de um que se intitulava Mala Abubaker. (12)

Esse plano não foi rigorosamente executado, talvez em consequênciado rumo que tomaram os acontecimentos e precipitação do início da lutaem face da delação. Assim, não puderam contar com o fator surpresa,o que acarretou uma enorme desvantagem para eles. A negra Guilher-mina, inteirada — através de conversas de alguns implicados na in-surreição, entre os quais o próprio amásio — do que se tramava, apres-sou-se em denunciar o plano dos escravos às autoridades. Fez chegarao conhecimento do Juiz de Paz do Distrito a notícia do levante e suadata, fato que foi imediatamente comunicado ao Presidente da Provín-cia . Sabedor de fatos tão graves, tomou imediatamente todas as medidasrepressoras: reforçamento da guarda etc. A cidade ficou em pé de guer-ra. O Chefe de Polícia partiu imediatamente para o Bonfim, com o fitode evitar a junção dos insurretos com os dos engenhos próximos.

Vendo que tinham de antecipar a revolta, lançaram-se à carga dequalquer maneira: a situação não comportava mais esperas e, na alturaem que o movimento se encontrava, não era mais possível recuar. Asbatidas se sucederam nas casas dos escravos.

(11) Idem, idem.(12) Rodrigues, N. — "Os Africanos no Brasil", Rio, 1945, p. 107.

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Na noite de 24 de janeiro estourou o movimento armado.

Os primeiros tiros piartiram da casa de Manuel Calafate, na lojada segunda casa da Ladeira da Praça, "Sob a denúncia de que na lojada segunda casa da Ladeira da Praça estava reunido grande número deafricanos — comenta Nina Rodrigues — foi esta cercada e, apesar dasevasivas coniventes do pardo Domingos Martinho de Sá, principal in-quilino do prédio, as autoridades penetraram nele e dispunham-se já às11 horas da noite a dar minuciosa busca, quando de súbito se entreabriua porta da loja e dela partiu um tiro de bacamarte, seguido da irrupçãode uns 60 negros armados de espadas, lanças, pistolas, espingardas etc.,e aos gritos de mata soldado.""3'

De atacados, dentro da casa de Manuel Calafate, passarão à francaofensiva. Após isso, dirigem-se para a Ajuda, onde tentam arrombar acadeia a fim de libertar seus presos, principalmente Pacífico Licutã.Não conseguindo seu intento, o grupo de escravos marchou para o Largocio Teatro, onde travou combate com a Polícia, derrotando-a mais umavez. Tinham, com essa vitória, aberto o caminho para suas forças até oForte de São Pedro. Vendo ser impossível tomar o Forte (de artilharia),os escravos vindos do Largo do Teatro tentarão estabeleecr junção comoutra coluna que vinha da Vitória, sob o comando dos dirigentes doClube da Barra, que por sua vez já haviam conseguido unir-se ao grupodo Convento das Mercês. Os escravos da Vitória atravessarão o fogo doForte e operarão a junção planejada. Em seguida a essa manobra abri-rão caminho para a Mouraria, empenhando-se novamente em combatecom a Polícia. Perderão no combate dois homens. Continuando, ru-marão para a Ajuda, provavelmente com o objetivo de libertar PacíficoLicutã. Daí estabelecerão uma mudança de rumo na sua marcha: des-cerão para a Baixa dos Sapateiros, seguindo pelos Coqueiros.Sairão naÁgua dos Meninos, na Cidade Baixa, onde travarão o combate definitivocom a Polícia, de grandes proporções.

De parte das forças legais coube o comando ao próprio Chefe dePolícia, que já havia recolhido as famílias à Igreja do Bonfim. Não sa-bemos os nomes dos chefes da parte dos insurretos.

Os escravos marcharão em grande número para o ataque na ma-drugada do dia 25. Investirão sobre o Forte (de cavalaria) com um heroís-mo reconhecido pelos próprios adversários. Não lograram êxito, con-tudo. Logo na primeira investida foram asperamente atacados pelastropas do Governo. O Chefe de Polícia ordena à cavalaria que carreguesobre os escravos, que caem varados também pelas balas de uma forçade infantaria, postada nas ameias do Forte. Verdadeira carnificina. Asposições mais vantajosas dos legais, além da superioridade de armamen-tos, fizeram com que os insurretos fossem definitivamente batidos. Per-deram a vida cerca de quarenta escravos. Inúmeros foram feridos eoutros pereceram afogados ao tentarem a fuga lançando-se ao mar pró-

ximo. <u) Estava praticamente sufocada a grande revolta de escravosda Capital baiana.

Os líderes, como a maioria dos participantes, portar-se-ão digna-mente. Pacífico Licutã já se encontrava preso quando a ordem de in-surreição foi dada: estava recolhido na cadeia da Ajuda de onde, comovimos, seus companheiros tentaram arrancá-lo por duas vezes. Ao saberdo fracasso do movimento, mostrar-se-á abatido, vendo entrarem seuscompanheiros prisioneiros, após a revolta.

Além dele houve, porém, inúmeros escravos que se destacaram nasrefregas de rua: Higino, Cornélio, Tomás e muitos outros. Os principaisdirigentes do Clube da Barra foram quase todos detidos pelas autori-dades, uns com "calças sujas de sangue", outros "com uma bala atra-vessada na perna", segundo informação da época. Luísa Mahim, escra-va gege, mãe de Luís Gama, participou do movimento. Sobre sua atua-ção, porém, não encontramos referências nos documentos que consul-tamos.

Derrotados os escravos no combate decisivo, iniciou o Governo bru-tal repressão. Uma série de prisões foi efetuada: 281 ao todo, entreescravos e libertos. O Chefe de Polícia, o mesmo que esmagara militar-mente o levante — em ofício expedido no dia posterior ao movimento,ordenará uma devassa completa em todas as casas de lojas pertencentes apretos africanos, dando rigorosa busca para a descoberta de homens,e. . . "ficando na intelligencia que nenhum delles goza Direito de Cidadãonem privilegio de Estrangeiro." (15> A cidade ficou sendo patrulhada diae noite. O Chefe de Polícia — Francisco Gonçalves Martins — baixaráPortaria no dia seguinte, dizendo que "vossa senhoria chamará a turma(dirigia-se ao Juiz de Paz do Primeiro Distrito da Vitória) os cidadãos doseu distrito que julgar necessários forçando-os a obediência se o patrio-tismo ou o interesse da própria conservação os não convencer em seprestarem" e que "nas noites de hoje em diante deverão haver inúme-ras patrulhas de Cidadãos e grande vigilância das autoridades poli-ciais." (le) Os escravos só podiam sair à rua com ordem escrita dos seussenhores, dizendo para onde iam. Todas as casas de negros escravos eforros foram vasculhadas.

O Juiz de Paz do Distrito da Vitória entrará em atividade com umaeficiência que poderá ser demonstrada facilmente pelo número de pri-sões que efetuou. Os principais cabeças do Clube já se encontravampresos no dia posterior ao movimento. Vinham notícias em ofício reme-tido ao Chefe de Polícia em que dizia haver aplicado "maior diligência"e capturado os insurgentes do seu Distrito, principalmente os "cabeçasde clubes que se juntavam na casa do Inglês Abrão." Eram indicadoscomo cabeças os escravos Diogo, Ramil, James, João, Carlos, todos pre-

(13) Op. CU. p. 95.

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(14) Segundo João Dornas FUho, participou da luta contra os escravos aguarnição da "Fragata Baiana", que se encontrava fundeada no porto da Cidadede Salvador. Se verídica a afirmação, muito deve ter contribuído essa unidade denossa Marinha para o extermínio dos escravos sublevados. (Ver João Domas Filho:"A Escravidão no Brasil", Rio, 1939, p. 25).

(16) Idem, idem.

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sos com "calças com sangue." Prendeu ainda Luís, que entrou em casasomente na manhã do dia posterior ao do levante "sujo de pólvora comanel no dedo" Tomás, "cabeça do clube, mestre que ensinava a escrever",encontrado com ''marca de sangue na calça sem ter ferimento algum"e José, que se recolhera com uma bala na perna, além de inúmeros outrosdetidos "para averiguações", sendo recolhidos uns na Fortaleza de SãoPedro outros no Forte do Mar". "7I

Depois de julgados, quase todos foram condenados. Quanto aos lí-deres: de Elesbão Dandará nada conseguimos apurar. Segundo NinaRodrigues, deve ter morrido em combate, ideia que Edison Carneiro en-dossa sem apresentar fatos novos. Manuel Calafate, ao que parece, nadasofreu. O mestre Luís Sanim foi condenado à morte, mas teve a penaatenuada para seiscentos açoites. Pacífico Licutã, apesar de preso quan-do estourou a revolta, foi condenado a seiscentos açoites, também. Oslíderes do Clube da Barra foram rigorosametne punidos: António, escra-vo aussá, foi condenado a quinhentos açoites; Higino sofreu pena dequatrocentos; Tomp a de quinhentos; o nagô Luís foi castigado com du-zentos açoites e Tomás "o mestre que ensinava a ler" a trezentos açoi-tes em praça pública "aplicados interpoladamente, como manda a lei-" ( I"'

Houve ainda os condenados à morte : cinco foram os que pagaramcom a vida, por não quererem viver no cativeiro. No dia 14 de maiode 1835 eram fuzilados. Foram eles: os libertos Jorge da Cunha Bar-bosa e José Francisco Gonçalves e os escravos, Gonçalo, Joaquim ePedro. ( l a ) Condenados à forca, não encontrou o Governo carrascos queos executassem. Tiveram de ser fuzilados, com as honras de soldados.

Uma coisa surpreendente é a posição dos escravos frente aos seusacusadores. Quase ninguém se acovarda, delata, acusa. Negam conheceros companheiros de insurreição. O nagô Joaquim diz desconhecer até oseu companheiro de residência. O nagô Henrique, gravemente ferido ejá sentindo os sintomas do tétano que o mataria horas depois, impossi-bilitado de sentar-se, já presa de convulsões, declarou que não conheciaos negros que o convidaram a tomar parte na insurreição e que mais nãodizia por não ser gente de dizer duas coisas. "O que disse está ditoaté morrer."

O número de escravos mortos durante o levante foi bastante ele-vado. Talvez tenha chegado à casa dos cem; uns em combate ou afo-gados, outros nas prisões, vítimas do tétano e dos maus tratos, além dosque foram condenados à morte e executados. ( 2 0 >

Da parte das forças do Governo as baixas foram muito menores. Asuperioridade de armas dava-lhes maiores meios de ataque e defesa.Nina Rodrigues assinala a morte de dois militares: um sargento da

(17) Idem, idem.(18) Idem, idem.(19) O escravo Pedro, ao terminar o levante, foi encontrado com fraturas

em ambas as pernas produzidas por balas. Pertencia ao inglês Bender e era do"Clube" da Barra.

(20) Inicialmente foram dezesseis condenados à morte. Depois de indultadosalguns pelo Regente ficou reduzido a cinco o número dos que foram executados.

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Guarda Nacional e um soldado de artilharia que "lutou com raro valor,matando antes de morrer um negro e ferindo diversos." Só encontramosreferências, nos documentos que compulsamos, à morte de um: o Sar-gento Tito Joaquim da Silva Machado. Quanto aos feridos, no auto deexame de corpo de delito feito pelo cirurgião Manuel José Bahia nos sol-dados do Corpo de Artilharia, encontramos referências a três. Certa-mente que nos autos feitos nos soldados da cavalaria que travaram ocombate final deve haver um número bem maior. Infelizmente, não en-contramos esses autos. Além dos combatentes feridos e mortos, houvetambém civis que foram atingidos mortalmente. Aliás, o Promotor Pú-blico dirá em libelo contra o escravo Comélio, condenado a seiscentosaçoites, estar ele implicado na insurreição "do que resultou a morte eferimentos de muitos cidadãos".

Insurreição Esquecida (1844) —- Finalizando o segundo ciclo de insur-reições citadinas da Capital baiana, encontramos documentos que se re-portam a uma que se verificou no ano de 1844, quando — pela últimavez, presumivelmente — os escravos daquela Província se levantaramtentando extinguir o regime servil. Os documentos que comprovam aexistência dessa revolta fazem dilatar ainda mais o ciclo de insurreiçõesbaianas, até agora dado pelos historiadores que o estudaram como en-cerrado em 1835.

Os documentos coligidos não são abundantes mas servem para quepossamos — fora de qualquer dúvida — afirmar sua existência e gizar,embora dando apenas uma ideia geral, os contornos do levante abor-tado, o

Segundo esses manuscritos, a liderança do movimento estava nasmãos de escravos aussás, tapas e nagôs. E será na base do proselitismoreligioso que aglutinarão os escravos e os orientarão no sentido de luta-rem contra a escravidão.

Reuniam-se de preferência na casa de um preto forro, chama-do Francisco Lisboa, localizada no Aljube, e, ali, tramavam as diretivasda revolta. Este preto liberto ostentava a condição de velho lutador, vin-do da última grande insurreição de 1835, da qual — afirmavam as auto-ridades — fora um dos organizadores e participantes ativos. As reuniõesna casa do Aljube, eram muito animadas e concorridas, invariavelmentecomeçando às 6 horas da tarde e se prolongando pela noite. Ali ficavam"conversando muito", "gritando às vezes e outras vezes rindo-se" atétarde, certamente ajustando os últimos retoques para o levante.

A experiência da insurreição de 1835 mostrara a importância parao movimento que teria a existência de um fundo monetário que aten-

(1) — MS existente no Arquivo Público da Bahia, maço sobr» revolução deescravos.

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I

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desse às despesas da revolta, e instituíram um com os mesmos objetivosdo existente durante a última. Concorriam com a importância de "doismil réis mensais, cuja aplicação ela ignora", dirá em depoimento umaescrava testemunha. Quantia imensamente alta para a época.

Outro lugar de reuniões era a casa do preto Marcelino de SantaEscolástica, cujo local não pudemos determinar, mas onde a Polícia, apósabafar o levante, apreendeu farto material, "diversos embrulhos, todoseles de cousas que se dizem de feitiçarias e malifícios." Tudo leva a crerque o preto conseguiu fugir, pois a Polícia foi obrigada a cercar a casae arrombá-la.

Parece que tudo já se encontrava preparado quando, havendo umdesentendimento entre o liberto Francisco e sua amásia Maria, apro-veitou-se ela do pretexto para delatar as atividades conspiratórias doamásio e dos demais companheiros. As autoridades, ao saberem da ocor-rência, tomaram as providências requeridas pelo caso, sendo a primeirapôr cerco às casas de Francisco e Marcelino, prendendo o primeiro. Pro-vavelmente, o segundo conseguiu escapar em tempo.

No interrogatório, uma das testemunhas declarará: "soube que eleseram inales que tentavam contra os brancos." A Polícia, justificando aprisão de Francisco, dizia que (em sua casa) "entravam diariamentemuitos africanos de um e outro sexo sem haver para isso hora determi-nada, nem saber o motivo para quê; disse mais que desconfiava daquelasreuniões em consequência de ter o Acusado se envolvido na insurreiçãopróxima passada." O acusado contestou a acusação de haver participadoda revolta de 1835, pretextando inocência; veio, porém, a informaçãopositiva do Chefe de Polícia, confirmando a denúncia contra ele, dan-do-o como um dos implicados naquele movimento.

Depois dessas informações tudo é mistério. Nada mais conseguimosapurar: não sabemos que fim tiveram seus dirigentes, nem quais suasproporções. Parece que o esquecimento caiu sobre essa revolta.

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Durante o Domínio Holandês

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Conforme pondera" com acerto Luis da Câmara Cascudo, referindo-se ao comportamento do negro escravo durante a ocupação holandesa,"a escolha legítima para o escravo seria o direito de escapar a ambos efugir para os quilombos. Ali encontraria força organizada, poder, coer-ção, mas com as cores entendidas por sua mentalidade". (1) Tal porémnão aconteceu. O comportamento dos escravos não foi uniforme e nãopodia sê-lo. Uma opção consciente seria negar o próprio regime no qualestava engastado e que condicionava o seu pensamento.

Três foram as formas típicas de comportamento do escravo duran-te o período de ocupação holandesa. A primeira delas foi a dos cativosque — aproveitando-se da situação criada com as lutas entre luso-bra-sileiros e batavos — fugiram para as matas e se estabeleceram em qui-lombos, dos quais o mais importante e famoso foi Palmares. A segundafoi a dos que, ou por imposição dos próprios senhores ou por livre vonta-de, se incorporaram às tropas restauradoras que combatiam o invasor.Finalmente, a terceira foi a dos escravos que ficaram ao lado dos holan-deses, contra os brasileiros e portugueses. Da primeira forma de com-portamento o mais destacado líder foi incontestavelmente Zumbi; da se-gunda, Henrique Dias poderá ser apontado como o elemento mais repre-sentativo ; a última teria o seu elemento representativo em Calabar. < 2 >

Para o caráter do nosso estudo estas três formas de comportamentosão encaradas como atitudes divergentes dos cativos contra a escravidão.Tipificam reações às contradições inerentes ao sistema escravista e serádentro desta perspectiva que as iremos encarar. Do ponto de vista deluta de classes aqueles escravos que fugiam ao cativeiro e fundavamcomunidades independentes nas matas eram os que atuavam tendo em

(1) — Cascudo, Luis da Câmara: "Geografia do Brasil Holandês", R. de Já.neiro, 1956, p. 59.

(2) — Calabar,, na primeira empresa que empreendeu a favor dos holandeses,que foi o ataque à Vila de Igaraçu, levava em sua companhia "trinta e tantos pretos".Aliás Weerdenburgh trata Calabar como negro: "em todos estes perigos estávamosdependentes da fide"idade ou infidelidade de um nei/ra que nos servia de guia, é nãodevíamos pôr muita confiança nessa gente estúpida" (Clt. por Francisco AdolfoVarnhagen: — História das Lutas com os Holandeses no Brasil, 2' Ed. S. Paulo,1945, p. 105).

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vista a contradição mais importante. A segunda camada atuava sobreuma contradição intermediária: Henrique Dias, por exemplo, antes desó unir pela segunda vez às tropas nativas, estava com os seus homenscombatendo escravos aquilombados. É que o líder dos "Henriques" atua-va apenas sobre a contradição que existia entre uma nação em processode formação e o sistema colonial representado pelos ocupantes estran-geiros que impediam que ela se formasse e desenvolvesse. Daí ter sidoum líder que atuou dentro dos limites da estrutura escravista. Seu obje-tivo era tão-somente expulsar os holandeses do Brasil. Ganga Zumba eposteriormente Zumbi representam por assim dizer os elementos da pró-pria casta de escravos que se voltam contra o regime, ou, em outras pa-lavras, o tablado radical da contradição. Atuavam por isto sobre a con-tradição mais profunda na época, que era a existente entre o senhor eo escravo. O certo é que a participação do escravo negro durante aocupação holandesa no sentido de expulsar os invasores foi muito im-portante. O que foi a República de Palmares veremos em capítulo espe-cial. Cabe agora ver qual foi o comportamento global do escravo duran-te as lutas que se travaram entre portugueses e brasileiros de um ladoe holandeses de outro.

Convém destacar que por ser o grosso da cscravaria propriedadede portugueses e brasileiros, muito maior será o número de escravos queparticiparão nas lutas com os batavos ao lado dos primeiros. Muitasvezes, como aconteceu aliás em outras oportunidades, eles atuavam porordem dos seus senhores. Eram portanto escravos sem 'nenhuma parcelade conscientização. Pelo contrário, paradoxalmente serviam de pilastraao regime.

No início da ocupação, aliás, os holandeses apregoavam a desneces-sidade da escravidão. Esta atitude inicial chegou a envolver muitos es-cravos logo após a ocupação de Recife e Olinda. A escravaria, ao saberque estava livre, começou a se manifestar ruidosa e violentamente. Mes-mo no meio das orgias que complementaram o saque das cidades con-quistadas, Weerdenburgh viu imediatamente o perigo que corria. Southey,apoiado em Callado, afirma que "no meio desta confusão (o saque) sal-vou Weerdenburgh a cidade de ser queimada pelos escravos, que destaforma queriam exprimir a alegria que sentiam, recuperada a naturalliberdade. Ensinados pela experiência que bem lhes resultaria dos ser-viços dessa gente, em parte porque a ferocidade africana a levaria acruéis represálias, e em parte porque muitos dentre ela representavampapel nobre para o que lhes não faltariam em ocasião nem arte nemcoragem. Tanto peso se achou nestas razões que deixados ficar mui pou-cos apenas destes negros fugidos, se expulsaram todos os outros, quefossem ter com seus antigos senhores, e obrar como inimigos declarados,se assim lhes aprouvesse. (!A)

Muito cedo, no entanto, reconheceram que sem o escravo negro nãoseria possível a exploração da cana-de-acúcar nos moldes em que vinha

(2-A) — SouUtey, Roberto — História do Brasil, 2" vol. Salvador, 1949, p. 122.

sendo feita. Logo depois entraram no tráfico trazendo para a área con-quistada milhares de escravos. Mais ainda: ocuparam Angola e Guiné,pontos chaves para os traficantes. De 1636 a 1645 os holandeses impor-taram 23.163 negros que renderam à Companhia das índias Ocidentais6.714.423 florins. Como vemos, inseridos no processo logo se transfor-mam em ativos traficantes, trazendo a mercadoria ano após ano.

Obedeceu ao seguinte ritmo a importação dos batavos:

1636 1.031

1638 1.711

1640 1.188

1642 2.312

1644 5.565

1637 l. 580

1639 l. 802

1641 l. 437

1643 3.948

1645 2.589 < 3»

Esta posição "realista" dos holandeses frente à escravidão levou-osinclusive a estabelecer condições seletivas para os escravos que deviamser importados. Dizia Adriam van der Dussen que "os de Angola sãoos considerados mais trabalhadores; os de Ardra são obstinados, maus,preguiçosos, sem iniciativa e difíceis de adaptar-se ao trabalho, mas osque, entre eles, são capazes, sobrepassam todos os demais em vivacidadee esforço, de tal modo que parece que os bons e os maus pertencem anações diferentes. Por isto no tráfico em Ardra devem ser bem consi-derados, porque esse ramo mau faz os Ardras pouco procurados. Alémdisto revoltam-se contra os que'os dirigem e muitos fogem para as ma-tas e fazem muitas maldades; são audaciosos e valorosos, não respeitamninguém. Os Calabares ainda são menos estimados do que os Ardras,de vez que deles não se consegue nem interesse, nem coragem, nem tra-balho. Os negros da Guiné até Serra Leoa e do Cabo Verde não são muitotrabalhadores, mas são limpos e vivazes, especialmente as mulheres, peloque os portugueses os compram para fazè-los trabalhar em suas casas.Os negros que até agora têm vindo de Sonho têm sido muito bons e éaconselhável incrementar o tráfico tanto quanto possível, com essa re-gião." ">

Como vemos, os holandeses engajaram-se no comércio negreiro e osportugueses figuravam como seus clientes de carne humana. Daí essa"concordata" entre os ocupantes estrangeiros e os latifundiários nativosaté que os últimos se viram asfixiados pelos primeiros.

Por outro lado, a formação do chamado "sentimento restaurador",que levou os senhores de engenho de Pernambuco a se levantarem em

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(3) — Mello Netto, J. A. Gonsalves de — "A Situação do Negro sob o Doml.nio Holandês", in "Novos Estudos Afro-Braslleiros", R. de Janeiro, 1937, p. 204.

(4) — van der Dussen. Adrian — Relatório sobre as Capitanias Conquistadasno Brasil pelos Holandeses (1639) — R. de Janeiro, 1947, p. 92.

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armas contra os invasores, não caiu do céu. Ele se formou paulatina-mente, à medida que os interesses entre os elementos nativos e os bata-vos se diversificaram. E as lutas sérias e verdadeiramente de enverga-dura, a insurreição, só teve início depois que a contradição entre os se-nhores de engenho de um lado e as autoridades holandesas de outro che-gou ao seu ponto de tensão máxima. Antes disto, porém, a resistência aoocupante foi feita apenas por aqueles elementos plebeus — mulatos, ín-dios, negros forros ou escravos — que de uma forma ou de outra, atra-vés da violência armada, muitas vezes desorganizada, davam continui-dade à luta. Os homens de cabedal logo viram o quanto seria difícil aresistência e entraram num processo de colaboração com o inimigo, numaadaptação política e económica completa. Os holandeses estabeleceram-secomo empresários comerciais e inicialmente puderam entrar em acordocom senhores de engenho nativos. Diz muito bem uma equipe de estu-diosos de nossa história: "À classe dominante dos senhores de engenhoe plantadores de cana, os mais prejudicados com os distúrbios na pro-dução, colocava-se a opção: resistir ao domínio batavo, ou aceitá-lo, vol-tando às suas fazendas e engenhos, retomando as suas tarefas, dividindodessa forma os lucros com os holandeses. A segunda hipótese foi a esco-lhida. Pouco a pouco foram retornando os senhores às suas propriedadese entrando em contacto com a administração flamenga, visando medidaspara dar continuidade à vida económica nas capitanias. Para eles, tra-tava-se apenas de uma mudança de metrópole. Antes produziam paraPortugal; agora para a Holanda. O que interessava era a manutençãode seus prevílégios e de sua posição na sociedade." (3)

Somente quando os senhores-de-engenho viram-se asfixiados pelosempréstimos contraídos com a Companhia das índias Ocidentais é quecomeçaram a mobilizar-se, de verdade, para darem início àquilo que sedenominou a reconquista. E na mobilização geral colocaram como ma-terial humano participante os seus escravos. Apelaram, por outro lado,para elementos conhecedores das táticas de lutas no interior, a táticade guerrilhas, como Henrique Dias, que já havia atuado com denodo naprimeira fase da resistência. E o escravo negro entrou em ação maisuma vez.

II

Antes da reconquista, porém, que tem início depois de Portugallibertar-se do jugo espanhol em 1640, já o escravo negro atuará. Na in-vasão que os holandeses fizeram à Bahia em 1624, a sua participaçãojá é nítida e marcante. Tanto ao lado dos brasileiros como dos holande-ses há atividades militares por parte de cativos africanos. São escara-muças de parte a parte, onde vemos negros atuando tanto de um ladocomo do outro. Do lado dos brasileiros notabilizou-se um negro chama-do António que, do alto de um jenipapeiro, com um saco cheio de pe-dras, abateu vários holandeses que chegaram ao seu alcance. Após aexpulsão dos batavos o escravo foi alforriado à custa da Fazenda Pú-

blica e, segundo Artur Ramos "no lugar onde existia o jenipapeiro foifundada a Fortaleza de S. António em honra ao negro, que foi nomea-do comandante da mesma Fortaleza". <6) Outros, porém, fugiam para asmatas, subtraindo-se ao domínio dos senhores. <6A)

Neste sentido é elucidativo o depoimento de Johann Gregor Alden-gurgk contido na sua "Relação da Conquista e Perda da Cidade do Sal-vador pelos Holandeses", onde inúmeros fatos são relatados do pontode vista dos ocupantes. O voluntário de Coburgo no seu interessante re-lato mostra como tanto os holandeses como os portugueses se aproveita-ram militarmente dos escravos negros. Logo à chegada dos holandesesbandeiam-se para o seu lado inúmeros negros escravos de portugueses."Foram alguns destinados a trabalhar e outros, armados de arcos, fle-chas, velhas espadas espanholas, rodelas, piques e sabres de abordagem,se organizaram numa companhia de negros, para capitão da qual foiescolhido um deles próprios, chamado Francisco-" ("

Os portugueses revidavam com crueldade a essas/deserções e, aindasegundo o depoimento do documento que estamos acompanhando, "man-dou o inimigo à Cidade do Salvador certo velho, dos nossos negros, aoqual haviam aprisionado, decepando ambas as mãos e (salva reverentia)distendido as partes pudendas até os joelhos, pensando, com tão lasti-mável espetáculo, infundir terror à nossa gente; o referido negro, po-rém, graças à perícia de um cirurgião português, ficou completamenterestabelecido, e, como não tivesse mãos, foi designado para trabalhar noguindaste. <8> Numa das escaramuças feitas pelos portugueses para areconquista da cidade, caíram sobre eles os mosqueteiros negros, que fize-ram alguns prisioneiros. Os próprios negros foram encarregados de pas-sá-los pelas armas. Um deles foi executado mas o outro perdoado por"ser natural da Zelândia." (9)

Mas a participação dos escravos negros, tanto do lado dos queocuparam a cidade como dos que se encontravam tentando reconquistá-la,

(5) — "História Nova do Brasil", S. Paulo, s/d. vol. I, p. 116.

168

(6) — Ramos, Artur — "O Negro na Civilização Brasileira", R. de Jameiros/d p. 170.

(6.A) — "A tomada da Bahia pelos holandeses (1624) e a desorganizaçãoconsequente da vida da cidade deram, aos elementos mais decididos entre a massade escravos, a sugestão da independência. Alguns deles se estabeleceram poí contaprópria — é a Câmara da Bahia, depois da restauração, decidiu — (1628) que "to.do negro que morar fora das casas de seus senhores, em casas sobre si" se reco-lhesse novamente à escravidão antiga, dentro de seis dias, "sob pena de lhe derru-barem as casas" — uma providência que se estendia também aos forros. Outrosbuscaram a segurança nas matas, formando quilombo no Rio Vermelho (1629), es-magado, três anos depois, pelos capitães-do-campo Francisco Dias de Ávila e JoãoBarbosa de Almeida, e outro em Itapicuru (1636), de cuja liquidação foi incumbi-do o Coronel Belchior Brandão "por ser pessoa de multa satisfação e experiência".Outros ainda, acreditando mais na defesa individual, fugiram do cativeiro, mas fo-ram caçados com facilidade". Edison Carneiro: "Ladinos e Crioulcs", R. de Janeiro1964, p. 65).

(7) — Aldengurgk, Johann Gregor — "Relação da Conquista e Perda da Ci-dade do Salvador pelos Holandeses em 1624.1625", S. Paulo, MCMLXI, p. 177.

(8) — Op. cit. p. 190.(9) — Op. cit. p. 190.

169

II

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prossegue ativamcnte. Os ocupantes da cidade continuam arcabuzandonegros que caem prisioneiros e ao mesmo tempo incorporando à suaCompanhia de Pretos Armados, novos elementos, inclusive os componen-tes de um navio que chegou da África e foi apresado. (10) Um negro quese encontrava entre os portugueses desertou e transmitiu uma série deinformações importantes, como a pretensão de um ataque à cidade, nodia de Todos os Santos, por parte dos lusos e brasileiros e da morte deD. Marcos, vítima cie um "fluxo de sangue". m>

Ainda em 1624, narra Aldengurgk: "vieram à cidade dois embai-xadores dos portugueses o um negro, a tratar com o nosso coronel; admi-tidos à audiência, foram ato contínuo banqueteados, oferecendo-lhes nos-so comandante uma taça de vinho das Canárias para o beberem à saúdedo Príncipe de Orange, ao que anuíram de bom grado; mas, quid fit?sucedeu cair a um deles o chapéu que, apanhado pela ordenança do fiscalc por ela apalpado, pareceu conter algo de suspeito, pelo que chamou damesa o seu oficial e lhe contou o caso. Narrou o fiscal o ocorrido aocoronel e, examinado o chapéu do embaixador, foram nele encontradasdiversas cartas dirigidas aos nossos negros; à vista disso, os dois emis-sários e seu escudeiro foram presos e torturados. Fizeram então de tudoplena e franca confissão perante o Conselho Secreto, declarando teremsido induzidos a tal procedimento por influência dos padres de sua reli-gião, os quais lhes haviam assegurado terem todos acesso ao céu, naqualidade de mártires, e, como expiação do crime cometido, foram am-bos, que se diziam mártires, e mais o escravo, condenados e enforca-dos. < '2>

Como elemento auxiliar, durante a primeira ocupação holandesa,o negro escravo prestou relevantes serviços, quer de um lado quer deoutro; aproveitava-se da situação convulsionada para tirar proveito, su-pondo muitas vezes que os holandeses os iriam libertar; outras vezes, aolutarem ao lado dos portugueses, almejavam a liberdade através de pro-vas de lealdade. Aldengurgk narra ainda outro fato curioso que deve serreproduzido. Diz ele: "Várias de nossos negros saíram em busca de raí-zes de farinha; mas, foram dispersados pelo inimigo, que aprisionou aum deles, decepou-lhe ambas as mãos e o reenviou à cidade com umacarta dirigida ao capitão-tenente Senhor Francisco, o qual, inglês de na-ção, servira na companhia do finado Sr. Vare Dort." (13> Parece, por-tanto, que a prática de decepar as mãos dos negros que caíam em poderdo inimigo era generalizada. Como elemento plebeu da contenda, par-ticipando de uma luta que não era especialmente a sua, sofria do apa-relho repressor, quer do lado dos holandeses, quer dos portugueses, omáximo rigor. Mas, quando havia a recíproca — ainda é Aldengurgkquem narra — usavam de rigor idêntico. Os escravos a serviço dos ho-landeses aprisionaram um português. "Os negros conduziram o prisio-neiro para fora da porta do Sudoente, urrando de júbilo e dançando a

(10) — Op. cit. p. 187.(11) — Op. tfit. p. 189.(12) — Op. cit. p. 188.(13) — Op. dt. p. 191.

seu modo, e, ali chegados, afiaram nas pedras as suas longas facas d uabordagem, mandaram que o português corresse e saíram no seu encal-ço, desfechando-lhe contínuas cutiladas, ora na cabeça, ora em outraspartes do corpo, até que, de todo combalido, tombou em terra, onde ocrivaram de estocadas, e o acabaram como o gato ao rato." (14)

Como estamos vendo, nas primeiras escaramuças entre o batavo eos portugueses e brasileiros, o escravo negro já participava. Membro deuma classe sem nenhum direito, agia apenas no sentido ilusório de con-seguir, através da sua atuação, a liberdade que não desfrutava. Mas éno período da reconquista, quando há não apenas a tentativa dos habi-tamtes de uma cidade de resgatá-la, mas toda uma configuração políticae económica já definida, que o papel do escravo, no setor militar, serámais acentuado, definindo muitas vezes posições a favor das tropas quelutavam para expulsar o ocupante holandês.

III

Quando Henrique Dias — o Boca Negra — se apresentou pela pri-meira vez, vindo não se sabe ao certo de onde, com a sua pequena tropade negros livres, para combater os batavos, a situação dos locais não eranada boa.(!5) Pelo contrário. Os holandeses, por uma série de circuns-tâncias, estavam em franca ofensiva. Matias de Albuquerque carecia deforças e recursos para enfrentá-los e deve ter recebido alegrementeaquele reforço. "Naquele primeiro semestre de 1633 — escreve José An-tónio Gonsalves de Melo — em que Henrique Dias se apresentou comoutros pretos também livres, dos quais foi feito capitão, a situação co-meçara a mudar a favor dos invasores". (13) Uma série de derrotas dei-xara as forças luso-brasileiras em estado de flagrante inferioridade.Henrique Dias veio, assim, como se fosse uma injeção alentadora. Se

170

(14) — Op. cit.p. 195.(15) — O Conde dos Arcos, em 3 de agosto de 1756, respondendo informa,

cão do Conselho Ultramarino, afirma que Henrique Dias "era natural da Bahia comtudo viveo em Pernambuco aonde fez os seos maiores progressos". (Apud. "Memó-rias Históricas e PoUiticas da Bahia", Igacio Acioli, 2° vo\ Salvador 1925, p. 424— nota). Mas, apesar de dizer que "quase nada se sabe, com base documental, acer-ca da pessoa, de Benrique> Dias", José Antftnio Gonçalves de Mello o dá como nas-cido em Pernambuco, apoiado em diversas fontes. Varnhagen levanta cautelosamen-te & possibilidade de Henrique Dias ter vindo, com os seus homens, de Palmares.Diz ele: "Encontramos escrito em papel não bastante autorizado, que estes saíram,por trato pactuado precedentemente com Matias d'Albuquerque, primeiro organiza-dos em corporações, a principio em número de vinte apenas, dos mocambos dosPalmares, onde se achavam; porventura poderiam fazer Inclinar a dar a isso algumcrédito as palavras com que o cronista desta campanha nos dá conta deste fato."Bem se prova, diz o mesmo cronista, o apuro em que nos tinha posto a continuaçãodo que constatávamos, pela ação que um preto chamado Henrique Dias praticounesta ocasião, e foi parecer-lhe que necessitávamos da sua pessoa; pois veio ofe-rece-la ao general, e este aceitou-a para servir com alguns de sua cor. "Se não an-dasse nesta apresentação algum mistério — conclui Varnhagan •— não cremos queteria o cronista necessidade de dar tantas satisfações, por maiores que fossem asprevenções contra os descendentes de africanos". (Hlst. das Lutas com os Holande.sés no Brasil, S. Paulo, 1945, p. 109-110).

(15-A) — Gonçalves de Mello, José António; "Henrique Dias Governador dos Pre-tos, crioulos e mulatos da Brasil", Recife, 1954, p. 7.

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o desertor Calabar estava orientando os batavos, em contrapartida aoslocais se incorporava Henrique Dias com os seus homens. A adesão deHenrique Dias valia não apenas pelos homens que foram incorporadosmas também pela grande experiência de guerrilhas no sertão que eletrazia. E a guerrilha era a única forma de resistência que no momentose podia oferecer aos holandeses.

Em julho c!e 1633 já se tem notícias das atividade» suas e dos seusnegros. A 15 de julho os batavos atacarão o Engenho São Sebastião, ten-da o mesmo sido defendido por Henrique Dias e mais vinte companheirosseus. <16) Foi nesse combate que o líder negro recebeu o seu primeiro feri-mento. < I 7 > Logo em seguida é novamente ferido com dois tiros de mos-quete. Como se vê, Henrique Dias não se poupava e dava exemplos debravura aos que o acompanhavam. Mas, não parou aí: em 30 de marçode 1634 é novamente ferido ao repelir um ataque inimigo contra o Ar-raial de Bom Jesus. Nas proximidades de Apipucos "matou por suamão" cinco holandeses.(I8) Logo depois foi outra vez ferido ao defenderuma posição dos locais: a várzea do Engenho Santo António. (19)

Em seguida, sob o comando de Andres Marin, participou do com-bate que se travou pela defesa do Arraial Velho, em 1635. A luta foiencarniçada, mas "a maior peleja era contra a fome, que ia chegandoa tal ponto que já de tudo se valiam os nossos... Nem o valor nem aconstância dos defensores do Arraial bastou para que ele não se per-desse ; porque afinal faltou tudo o que servia de sustento, consumiram-secavalos, couros, cães, gatos e ratos, com que se alimentavam. E quandoainda houvesse alguma destas imundas coisas, não existia mais pólvoranem outra qualquer munição." <20)

Com a tomada do Arraial pelos holandeses, Henrique Dias caiu pri-sioneiro mas foi resgatado juntamente com os demais moradores dolocal, permanecendo inativo por algum tempo. Somente em 1636 o capi-tão dos negros voltará à atividade. Conseguindo juntar-se novamente àsforças que resistiam ao invasor, partiu, juntamente com António FilipeCamarão, que comandava trezentos índios, para a campanha. Ele tinhasob suas ordens quarenta negros de Angola. Comandava essa tropa, porseu turno, composta de trezentos e quarenta homens, o negro Paulo SãoFeliche, que pertencia ao Conde Bagnuolo. (21)

Depois disto, porém, parece que Henrique Dias tomou outros ru-mos, indo para a Bahia, onde foi encarregado de combater negros fugi-dos, possivelmente o Quilombo dos Palmares. Em 1640 o Vice-rei Mar-quês de Montalvão "cogitou de encarregar a Henrique Dias a reduçãode um quilombo de negros na Bahia, mas a sugestão por ele apresen-tada à Câmara do Salvador não obteve o apoio dos vereadores. Entre-tanto, se não foi realizada então, a tentativa de extinção do mocambo

(16) — Gonçalves de Mello, José António — "Henrique Dias", Recife, 1954, p. 7.(17) — Op. cit. p. 10.(18) — Op. cit.(19) — Op. cit.(20) — Doe. citado por José António) Gonçalves de Mello, op. p 12(21) — Op. cit. p. 13.(22) — Op. cit. p. 25.26.

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de pretos, Henrique Dias foi posteriormente encarregado disto. Até 16-45permaneceu na Bahia, e não há notícias de atividades de importânciacontra os holandeses afora alguns serviços de "espia" para ver comoestavam as tropas batavas. (22>

O certo é que iremos encontrá-lo de novo no palco das escaramu-ças, quer por solicitação de João Fernandes Vieira, quer por um planoorganizado pelo Governador-Geral — o detalhe é de importância secun-dária — já na fase de restauração de Pernambuco e demais capitanias,exatamente na Batalha das Tabocas. Nessa batalha, João Fernandes Vieiraalforriou 50 escravos sob condição de continuarem lutando. Esses forrosforam juntar-se às tropas de Henrique Dias, que passaram a ter, em 1647,300 membros./23»

Na conhecida carta que Henrique Dias enviou aos holandeses, lê-seque esses negros eram compostos de quatro nações: "minas, ardas, an-golas e crioulos; estes são tão malcriados que não temem nem devem;os minas tão bravos que aonde não podem chegar com o braço chegamcom o nome; os ardas tão fogosos, que tudo querem cortar com um gol-pe; os angolas tão robustos, que nenhum trabalho os cansa.1" (24) Emoutro depoimento do líder guerrilheiro, lê-se que "havemos de deixar aterra tão rasa como a palma da mão, e tão abrasada que em dois anosnão dê fruto; e se vossas mercês a tornarem a plantar (o que não sa-bem nem podem) nós viremos em seus tempos a queimar-lhes numanoite o que houverem plantado em um ano. Isso não são fábulas nempa'avras deitadas ao vento porque assim há de ser." E, de fato,era. O .depoimento de um holandês — Watjan — é conclusivo: "Se naprimeira metade do ano de 1637, o cultivo da cana-de-açúcar não pro-grediu, deve-se atribuir isso não só à devastação das plantações siste-maticamente levadas a efeito pelos depredadores inimigos, mas tambémà grande escassez de trabalhadores negros" pois a maioria "se achavarefugiada nas matas onde, entregue à rapinagem, se congregava embandos, que iam constantemente crescendo e, por vezes, infligiam sensí-veis perdas às tropas enviadas em sua perseguição." (25> Ora, se Hen-rique Dias estava na Bahia até 1640, conclui-se que a sua carta tinhasólidos fundamentos, pois bem antes os escravos fugidos ou aquilomba-dos já vinham desgastando continuamente a economia dos latifundiáriosligados aos holandeses.

Eram as guerrilhas que martelavam as tropas regulares holandesas.O Conselheiro Vau Goch fala nessa dualidade de táticas empregadas en-tre as suas tropas regulares e os locais. Diz que "em primeiro as tropasdo inimigo, saindo do mato e por detrás dos pântanos e de certos luga-res, com a vantagem da posição, atacam sem ordem e em completa dis-persão e aplicam-se a romper diferentes quadrados. Em segundo lugar

(22) — Op. Cit. p. 25-26.(23) — Op. cit.(24) — Apud Edison Carneiro: "Antologia do Negro Brasileiro", P. Alegre,

p. 80.(25) — Apud adison Carneiro — Op. cit. 79.

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as tropas do inimigo são ligeiras e ágeis de natureza, para correrempara diante ou se afastarem e por causa de sua crueldade inata sãotambém temíveis. Compõem-se de brasileiros, tapuias, negros, mulatos,mamelucos, nações todas do país, e também de portugueses e italianosque têm muita analogia com os naturais do país, quanto à sua consti-tuição, de modo que atravessam e cruzam os matos e brejos, sobem osmorros, tão numerosos aqui, e descem, tudo isso com uma agilidade e ra-pidez notáveis". <26> Usando os métodos clássicos de tática militar viam-se assediados pelos restauradores. Muitos desses negros que, segundoWatjan, andavam em bandos, constituíam elementos que atacavam astropas regulares holandesas. Isto ainda é mais facilmente compreensí-vel se levarmos em conta que proliferaram inúmeros quilombos e essesguerrilheiros tinham onde se ocultar após as refregas. "O negro fugiuem bandos enormes durante o governo holandês — escreve Luís da Câ-mara Cascudo — e os quilombos se tornaram grandes aldeias" ( . . . ) .Os negros, sempre que podiam, procuravam s«us irmãos quilombolas,aderindo aos reinos recém-formados. Foi possível ao holandês obter ami-zades duradouras com a indiada. Um António Paraopeba, um PedroPoti, ficam como derradeiros fiéis, escondidos para não sujeitar-se aoportuguês ou batendo-se em Guararapes ao lado das bandeiras da Com-panhia. De negros o holandês nada conseguiu-" (27)

Não é que não tentasse o batavo aliciá-lo para as suas fileiras; che-gou mesmo a ir no Recife de casa em casa para recrutá-los. Finalmen-te, conseguiu que um mulato, João de Andrade, em troca do título decapitão — título que lhe foi concedido — reunisse uma companhia denegros. Foi infeliz e saiu ferido logo de início, mas mesmo assim "con-tinuou chefiando os seus negros e mulatos até a rendição". <28) Mas ocerto é que os holandeses não conseguiram grande colaboração do escra-vo negro. Este transformava-se nos "boschnegers"; era o elemento re-belde que nas estradas e matas atacava os flancos das tropas regularesholandesas; era a parte mais radical da resistência, pois, embora desor-denadamente, produzia bolsões de desgaste não apenas militar mas eco-nómico também, de vez que os engenhos se despovoaram a tal pontoque Nassau teve de organizar uma expedição militar para ocupar o For-te de Mina, a fim de garantir o suprimento de escravos. É que este tipode atividade divergente era uma fricção constante que atingia a Com-panhia em face não apenas do decréscimo da produção como do encare-cimento do trabalho escravo.

Houve mesmo reações de extrema violência que caracterizaram essacontradição, como, por exemplo, a revolta de escravos verificada na ilhade Fernando de Noronha. A revolta foi sufocada. Os cativos foram pre-•sós pelos holandeses. Seus líderes, em número de seis, para exemplo dosdemais, foram esquartejados vivos.

(26) — Apud Nelson Werneck Sodré — "História Militar do Brasil" —R. Ja-neiro, 1965, p. 43.

(27) — Cascudo, Luís da Camará — Op. cit. p. 59.(28) — Mello Neto, J. A. G. de — "Tempo doa Flamengos", R. de Janeiro, 1947,

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Como vemos, não foram apenas os soldados negros de HenriqueDias que se opuseram ao invasor. O pardo Domingos Fagundes foi outrohomem que prestou serviços de muita valia. Foi encarregado de atrairos holandeses para os tabocais "conduzindo após si o inimigo, conformelhe fora ordenado ( . . . ) para o local cm que estavam preparadas asemboscadas."

As matas de Pernambuco c das outras capitanias ocupadas en-chiam-se de negros fugidos numa verdadeira debandada coletiva.(29)

Por seu turno os holandeses aguçavam o aparelho repressor chegandoao extremo de esquartejá-los ou queimá-los vivos como verdadeiras to-chas humanas a fim de intimidar os demais. Os chamados "boschnegers"eram uma constante preocupação para os batavos. "Atacavam as resi-dências dos moradores, feriam, punham fogo às casas e levavamos escravos, sendo que de uma só freguesia levaram 140 negros" <30> So-mente no quilombo situado na "Mata Brasil" homiziavam-se inúmerosnegros que "corriam a região em bandos, roubando e matando." ( i l ) )

António Fernandes Vieira Mina, escravo de João Fernandes Vieira,comandava cento e cinquenta negros minas que lutavam ao lado das tro-pas locais. Morreu combatendo na primeira Batalha de Guararapes.Aliás, João Fernandes Vieira — como já vimos — apelava para os seusescravos nos momentos mais dramáticos da campanha, prometendo-lhesalforria. (32) Esses eram os escravos que se engajavam — como já dis-semos — num tipo de luta intermediário, que não era especificamentea sua. Tanto isto era verdade que os mestres de campo brasileiros, quan-do apreendiam cativos dos holandeses, dividiam-nos entre si, ao invés

(29) — "Todos os negros aproveitaram a oportunidade para fugir. Pela leiturados documentos ve.se que parou quase completamente o trabalho dos engenhos.Uma relação dos engenhos existentes entre os rios das Jangadas e o Una, feita peloConselheiro Schott, mostra-nos a verdadeira situação dessas propriedades, exatamentena zona mais rica da Capitania, a zona Sul. Eram canaviais queimados, casas-gran-des abrasadas, os cobres jogados aos rios, açudes arrombados, os bois levados oucomidos, fugidos todos os negros. Só. não haviam fugido os negros velhos e molequi-nhos. Assim, no Engenho Maratapagipe só foram encontrados João, Manuel,Mulemba, Maria Esperança, Catarina. Suzana e Adriana, "três negros e quatronegras, todos velhos e incapazes." — Também no Engenho Sibiró de Riba o Con-selheiro holandês encontrou somente 2 negros velhos e 2 bois velhos. No EngenhoCocaú a situação era melhor: encontraram-se 4 caldeiras grandes. 4 fachos novose dois velhos, 8 bois, 2 vacas, 2 novilhas e, na senzala, Pedro Moleque, mulher edois filhos, João, mulher e filho, António Jacome com um moleque, Francisco Molequecom uma negra, a negra Manangona e mais 2 negros, 2 negras e dois moleques.No N.S. da Palma foram encontrados no roçado um negro velho e uma negra.Todos os demais haviam fugido" (António Gonsalves de Mello, Neta: — "Tempodos Flamengos", R. de Janeiro, 1947. p. 206/7).

(30) — José António Gonçalves de Mello Neto: — "Tempo dos Flamengos", R.de Janeiro, 1947, p. 207.

(31) — Idem, idem, p. 218.(32) — Foi o que aconteceu na Batalha das Tabocas, quando enviou a sua

guarda com promessa de libertá-la. "Era ela composta pela sua maior parte deescravos seus, aos quais prometeu a liberdade ( . . . ) Precipitaram-se eles pela en-costa abaixo tocando suas cornetas, e soltando os berros de que seus selvagens 'con-terrâneos usavam na guerra" Robert Southey: "História do Brasil" 3» vol.,Salvador, 1949, p. 95).

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de dar-lhes a liberdade; em outras palavras, o status era apenas trans-ferido, o senhor mudava, mas a situação de escravo continuava. Somen-te em casos excepcionais e em consequência de atividades altamente me-ritórias é que conseguiam a alforria. (33) Houve mesmo — segundodepoimento de Southey — um detalhe que é ilustrativo desta contradi-ção: a sentinela que avisou a chegada de Henrique Dias e os seushomens, quando o mesmo foi-se juntar às tropas nativas, recebeu, deJoão Fernandes Vieira, dois escravos como prémio por transmitir tãoalvissareira notícia. (34) Como vemos, o processo de lutas era contradi-tório; daí o bandeamento para um lado e para outro de f rações deescravos. Enquanto mestiços como João Andrade se passavam para osholandeses, comandando a sua tropa de "índios tupis, mulatos e negros"escravos como António Fernandes Vieira Mina lutavam ao lado dos seussenhores locais. As matas, porém, estavam cheias de escravos fugidos quenão se engajavam em nenhum das facções em luta. Os cativos (quer aque-les que lutavam ao lado dos restauradores, quer os que combatiam deforma independente pela sua liberdade nos quilombos e nas guerrilhas)friccionavam militarmente os holandeses, causando-lhes sérios reveses.Durante as noites, os guerrilheiros de Henrique Dias atacavam posiçõesflamengas, pois a ordem era para que se "picasse e inquietasse o inimi-go", impedindo-o de ter descanso à noite. Além disso, esses negros toca-vam fogo nos canaviais, destruíam roças e sítios dos ocupantes.

IV

Na última fase da reconquista os flamengos tiveram de enfrentaruma situação das mais delicadas. Engenhos despovoados, caminhos peri-gosamente ameaçados, canaviais sob a ameaça de incêndios permanen-te. Nas matas e nas estradas, os guerrilheiros ou os quilombolas nãodavam tréguas. Canaviais eram incendiados. Vidal de Negreiros vierado norte como uma verdadeira tocha. "Derramou-se a chama do incên-dio de Pernambuco à Paraíba, como um vulcão devorando tudo, levandotudo em suas lavas sinistras ( . . . ) . "Vidal, alucinado de patriotismo,ateia fogo nos campos e nos canaviais, na sua passagem pela Vila doEspírito Santo, na Paraíba, fogo que se iniciara nos próprios partidosde cana do seu velho e querido pai." (35)

Os holandeses tinham contra si praticamente a população das capi-tanias ocupadas. Após a chegada de Schkoppe, sentindo-se fortes mili-tarmente, mandaram uma proclamação onde os membros do ConselhoSupremo diziam que ofereciam anistia "a todos os que se apresentassemdentro de dez dias, e declarando com arrogância que findo este prazonão poupariam sexo ou idade, passando todos pelas armas, soltando osTapuias e Potiguares para realizarem a façanha". Tudo inútil. O povo

(33) — Callado, Manuel: — "O Valerceo Lucideno" 2 vols., 2.° vol. — S. Paulo,1945 — p. 144.

(34 — Southey, Roberto: —'"História do Brasil", Salvador, 1949, 3° vol. p. 85.(35) — Pinto, Luta: — "Vidal de Negreiros", R. de Janeiro, s/d, p. 91.

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das capitanias ocupadas já não permitia nenhuma "concordata" com oinimigo. (36>

Os negros levantados no interior, além de Palmares que continuavadando trabalho aos invasores, eram elementos de desgaste permanente.Praticamente sitiados, assediados constantemente pelos negros de Henri-que Dias, que havia construído um arraial bem próximo ao Recife paradali hostilizar o inimigo, a situação dos flamengos não era nada boa.Henrique Dias estrategicamente colocado no seu arraial, diariamentetravava combates com eles. "As correrias de suas tropas chegavam, emdireção à cidade Maurícia, até o Rio Capibaribe, isto é, à Boa Vista dehoje, menos a parte recente dos aterros das ruas da Imperatriz e Auro-ra. Era, portanto, como bem dizem os documentos, a estância mais che-gada ao inimigo. Tão próxima que, às vezes, o duelo não era de balamas simplesmente de palavras de desafio-" (37)

No combate na casa forte de D. Ana Pais vários holandeses foram"mortos por mãos de negros; e houve uma negra crioula dos Apipucos,forra, e casada com outro crioulo chamado Araújo, que em encontrandoa um Flamengo, com espada na cinta, e uma clavina nas mãos, arremeteucom ele, e com um bordão que levava o matou, e lhe tomou as armas." (3S)

Neste encontro Henrique Dias foi ferido mais uma vez, atingidopelo inimigo na perna. Apesar disto continuou lutando "e alcançada avitória, então ele mesmo se curou escaldando os buracos da ferida comuma pequena pele de carneiro frita com azeite de peixe, e sarou embreves dias sem haver mister cirurgião."

Nas duas batalhas de Guararapes houve a participação de contin-gentes negros. Somente o capitão-mor dos minas — como vimos — co-mandava 150 negros de sua nação, tendo perecido na batalha. Após aprimeira batalha foram incumbidos de recuperar a vila de Olinda quefora ocupada pelo inimigo. Dois dias depois expulsaram-no do local. (39)

Por outro lado, o arraial de Henrique Dias e dos seus negros eraum foco do qual saíam, quase diariamente, pequenos grupos armadospara travar escaramuças com os holandeses. Estes sentiam os efeitosdessas surtidas e, por isto mesmo, em 21 de maio de mesmo ano ataca-ram a estância procurando destruí-la. Não o conseguiram, porém. Repe-tiram a tentativa logo depois, sem obterem êxito. Derrotados nessasduas tentativas, continuaram recebendo o assédio dos negros, que nãoos deixavam em paz. "Eram tantas e cotidianas as pendências, que tanto

(36) — A união de camadas e setores da sociedade pernambucana nesta faseda luta refletia, por seu turno, a compreensão generalizada da necessidade de selibertar a região da ocupação inimiga, levando-se em conta primeiramente os ele-mentos económicos e sociais que já se destacavam como o suporte de uma futuraconsciência nacional. A rebeldia concorria assim para o desentrave das forças eco-nómicas existentes, das limitações coloniais. O fato de após a expulsão dos ho-landeses este objetivo não ter sido alcançado, é outro problema.

(37) — Gonsalves de Mello, José António — "Henrique Dias — Governadordos Pretos e Mulatos do Estado do Brasil", Recife, 1954, p. 34.

(28) — Callado, Manuel: — Op. cit. p. 53/4.(39) — Gonsalves de Mello, José António: Op. cit. p. 36.

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os holandeses saíam a buscar cajus e outras frutas do mato, os negrosminas logo lhes caíam de improviso e com as vidas lhes faziam largar;e eram tão bárbaros estes minas, que não lhes queriam dar quartel, masantes cortavam as cabeças aos que matavam e vinham com instrumen-tos bélicos a seu modo e ao de sua terra com buzinas e atabaques, fa-zendo muita festa, dizendo que aqueles os foram cativar às suas terras,sendo eles forros, e, feitas as cerimónias traziam as cabeças para asportas dos moradores, donde se não iam sem lhes darem alguma coisa." (4"'

Nesta altura dos acontecimentos, como vemos, outros eram os meca-nismos de comportamento dos escravos do Recife para com os flamen-gos, que representavam já a crosta opressora, isto é, o grupo dominante.Já não eram mais aqueles elementos que, contagiados emocionalmente,quiseram até tocar fogo à cidade como expressão de alegria quando dachegada dos holandeses, que presumiam fossem libertá-los do cativeiro.Pelo contrário. Depois de verificarem que a escravidão continuava paraeles, ou, em outras palavras, continuavam no status anterior, mudaramos seus pontos de vista e usaram outra linha de comportamento. Daítomarem, quase sempre, posições contra os batavos. Quando não podiam,em decorrência do sistema repressor instalado, usavam outras formasde protesto; envenenavam a água das cisternas que eram usadas pelosholandeses. Pelo depoimento de dois negros que se evadiram do Recife,ficou-se sabendo "que no Arrecife morriam muitos de enfermidades con-tagiosas, assim Flamengos, como Judeus, e que os negros Minas haviamdeitado peçonha em uma cisterna donde os Holandeses bebiam e quepor isso morriam tantos, e que os ditos negros estavam avisados entresi que nenhum bebesse daquela água, e que os Holandeses não sabiamo de que lhes morria tanta gente, porque os negros haviam deitado pe-çonha com muito segredo".041 Este sigilo da parte dos Minas deve-secertamente à orientação de alguma organização tribal, pois de outraforma não se explica o fato de todos serem avisados a fim de não mor-rerem também envenenados e nenhum delatar. Recém-vindos da Áfricanão se destribalizaram completamente no Recife. Ao se voltarem contraaqueles que objetivamente representavam para eles o senhor e o ele-mento coator imediato, usaram os valores tribais, os seus universos decomportamento ainda não violados, a hierarquia que devia haver para quetodos obedecessem à decisão dos que executaram o envenenamento. Daío silêncio mantido ante a decisão tomada. De outra forma não se en-tende como esses escravos, pertencentes a diversos senhores, se manti-vessem calados, silenciosos, mudos, se não houvesse a dominá-los umaconstelação de valores ainda válida, capaz de anular as possíveis diver-gências pessoais.

Negros que chegaram da África — importados pelos flamengos •—vindos de Angola, ao serem colocados em combate contra as tropas deHenrique Dias "viraram-se de costas e deixaram aos Holandeses sós nomeio de caminho". (42) Diante da inutilidade militar desses negros Con-

(40) — Clt. por José António Gonçalves de Mello, Op. cit. p. 36/7.41) — Calado, Manuel: — Op, cit. p. 198.(42) — Op. Cit. p, 199.

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gos os holandeses resolveram enviá-los para a Ilha de Fernando de No-ronha, tendo sido possivelmente aqueles que se revoltaram e foram cruel-mente esquartejados. Os batavos temiam uma sublevação desses escra-vos; mandavam-nos, por isto, para a ilha distante. Mesmo assim suble-varam-se e foram violentamente exterminados.

Henrique Dias participou da segunda Batalha de Guararapes, ten-do na ocasião recebido o seu último ferimento em campanha. Ficou en-carregado de guarnecer com os seus homens uma das alas, portando-semais uma vez com a costumeira bravura. Depois da batalha, não maisse empenhará em atividades militares de envergadura, permanecendo noseu arraial. As autoridades lusas gratificaram-no com um aumento dedois escudos mensais e 24 anuais, mais ainda a casa e os terrenos ondedurante o sítio aos flamengos teve a sua estância. Além disso foi agra-ciado com o título de mestre de campo. Ao que parece, porém, os escra-vos que lutaram ao seu lado não foram contemplados com aquilo queos levara a participar dos eventos: a liberdade. O próprio chefe dosHenriques, em 1650 queixava-se do tratamento que recebia do Mestre deCampo General Francisco Barreto, que não o tratava mais como foraanteriormente tratado pelos outros Governadores-Gerais. Talvez porestas razões e outras semelhantes, Henrique Dias partia em março de1656 para Portugal a fim de ver se conseguia uma série de reivindi-cações, sendo uma delas a alforria dos seus homens que depois de pele-jarem durante anos e anos ainda se encontravam na condição de escra-vos. Além de solicitar uma série de favores pelos serviços prestados,Henrique Dias pede também para os seus homens — aliás dois mem-bros dos Henriques o acompanharam a Portugal — mercês pelos mes-mos méritos que ele tivera na luta contra o batavo. "Por um papel poreJe assinado" — cujo original s perdeu — "representou à Rainha quetendo ela em consideração os muitos serviços dos homens pretos e par-dos de seu Terço lhes fizesse as mercês que estavam merecendo por seustrabalhos na guerra. E que a primeira fosse alforriar os soldados eoficiais escravos que havia na sua tropa" e que "vierão para a guerrapor editaes que se puseram pelos generaes e governadores que em nomede Vossa Magestade, lhes prometiam serem forros, e libertos, e com a talpromessa servirão sempre... porque se estes soldados sogeitos, não fo-rem forros, e libertos por mercê de Vossa Magestade, pois tantos servi-ços lhe hão feito, e tornarem á sogeição do coptiveiro que de antes tinhão,não ficará animo n'elles, nem em outros vontade, para que havendo algumaoccazião (o que Deus não permitta) tornem a pegar em armas. E decidaprimeiro de tudo, esta mercê da liberdade dos soldados." Pedia que "seà Rainha fosse servida manter em serviço o Terço", lhe concedesse osprivilégios e liberdades de que gozavam os mais terços de brancos, poisseria de grande utilidade para a Fazenda Real "pois fazem menos gastosque os brancos e não deixão n'aquellas parte» de fazerem o mesmo queelles." <«>

(43) — Gonçalves de Mello,, José António: — "Henrique Dias-Govemadordos Pretos Crioulos e Mulatos do Estado do Brasil", Recife, 1954, p. 47/48.

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O Conselho opinou que fosse conservado o Terço "emquanto nãoouver pás firme cõ Olanda" e "por desta gente preta haver muita noBrazil em que acha fidelidade e são temidos dos flamengos e muito sof-fredores dos trabalhos da campanha". E quando aos soldados aindaescravos, parecia "que o modo de premiar os que servirão bem, he dar-lhe a liberdade cõ vontade e permissão dos seus donos, o que sendo ricos,não será difficultoso, e pagando aos que o não forem, hu preço moderado,cõ que huns ficão satisfeitos e outros sem queixas." (44)

Como se vê, após a expulsão dos holandeses os escravos que se haviamincorporado ao Terço dos Henriques, lutando ao lado dos restaurado-res, continuavam com o seu status inalterado, dependendo da permissãodos seus donos ou de uma compra a baixo preço para obterem a liber-dade. Isto, porém, nada tem de extraordinário. Pelo contrário. Corro-bora a essência do regime escravista. Tanto os portugueses como osholandeses viam nos escravos uma simples mercadoria. Tanto isto éverdade que após a capitulação dos flamengos os índios e negros quelutaram ao lado dos derrotados foram simplesmente incorporados às fi-leiras luso-brasileiras. Os escravos que lutavam ao lado dos seus senho-res, quer de um lado, quer do outro, com a ilusão de se verem livresdo cativeiro, eram apenas objetos e a sua participação militar, enquantoescravos, era uma obrigação inerente ao seu status, como carregar canados engenhos ou realizar qualquer outro serviço de eito. Obedeciam ape-nas às ordens da classe senhorial.

Por isto encontramos Henrique Dias tentando conseguir a liberdadepara aqueles que se engajaram mediante promessas de alforria. Dentrodo conjunto de interesses contraditórios que se entrechocavam na lutapela expulsão dos batavos foi esquecido aquele que era para as demaiscamadas o menos importante: o do escravo.

No entanto os escravos que não acreditavam em promessas, nemse subordinavam à tutela militar de líderes negros que atuavam sob ocamando dos senhores de engenho ou dos flamengos, foram enchendo asmatas e os caminhos, fugindo e procurando a solução independente, queera o quilombo. Esses não tiveram necessidade de solicitar a liberdadepois a impuseram contra a vontade das facções em luta. Aqueles escra-vos que abandonaram os engenhos e se embrenharam nas matas, cons-tituindo-se em focos guerrilheiros autónomos ou se organizando em qui-lombos, não agiam tendo em mira obter a liberdade através da benigni-dade dos seus senhores; impuseram-na de forma radical contra a von-tade dos mesmos. (45) Os contingentes de cativos que cerraram fileirasao lado dos luso-brasileiros, entrando para o Batalhão dos "Henriques"

(44) — Op. c.t. p. 49.(45) — "Correm ainda alguns bandos pelo interior, que roubam tanto 03 por-

tugueses como os holandeses, mas estes são compostos de salteadores mulatos e ne.groa e não de soldados do Rei. Causam contudo grande prejuízo e desassossego aosmoradores. Escondem-se também nas matas e são difíceis de apanhar; quando osnossos soldados os perseguem fogem para o mato e cada um para o seu lado" —(Adrian van der Dussen: "Relatório sobre as capitanias conquistadas no Brasil pe-los Holandeses" — R. de Janeiro, 1947, p. 132).

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esperavam que através do seu sacrifício lhes fosse concedida alforria..O que nem sempre acontecia.

Tanto a classe senhorial nativa, como a máquina administrativaholandesa olhavam, por isto mesmo, de igual maneira para os escravosque se rebelavam ou fugiam. Tinham as mãos decepadas, quando caíamprisioneiros, eram enforcados, queimados vivos, esquartejados vivos, fi-nalmente sofriam de ambas as facções o mesmo tipo de repressão. Osmecanismos de defesa quer dos senhores de engenho pernambucanos querdos membros da Companhia ou da administração holandesa agiam damesma forma contra aqueles que com a sua posição radical solapavama economia existente. Os quilombolas eram, por isto mesmo, o elementoque, dentro da redoma da economia da época, negava-a e a enfraquecia.Por isto mesmo eram perseguidos por ambos os lados.

Quando Schkoppe capitulou, em 26 de janeiro de 1654, deixava paraos senhores de engenho e o aparelho estatal aqui montado enfrentarem,aquilo que foi chamado "o perigo de portas a dentro": o Quilombodos Palmares...

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O Quilombo dos Palmares

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Dos movimentos dos cativos contra a escravidão, Palmares é, porcircunstâncias especiais, o mais conhecido e estudado. Foi o que maistempo durou; o que ocupou — e ocupou de fato — maior área territo-rial e o que maior trabalho deu às autoridades para ser exterminado.De 1630 a 1695 os escravos palmarmos farão convergir sobre seu re-duto as atividades, os esforços e as diligências dos governantes da Co-lónia. Da história do que foi sua existência •— 65 anos em constantese sangrentas lutas — até o folclore nos dá notícias. E dos fatos passouà lenda.

De fato, aproveitando-se da ocupação batava, os escravos de Per-nambuco e de outras capitanias vizinhas começaram a fugir do cativeiro,pelos "delitos e intratabilidade dos seus senhores", (1 ) em pequenos ban-dos, esparsos — quase 40 negros da Guiné dos engenhos da Vila .do PortoCalvo no início, informa Rocha Pita (2) — depois em bandos e de formaconstante, homiziando-se 'nas matas de Palmares. Aproveitando-se daimpenetrabilidade da floresta, da fertilidade das terras, da abundânciade madeira, caças, facilidade de água e meios de defesa da região, fo-ram-se aglomerando e reunindo gente, juntando braços para a guerra otrabalho e formaram naquele lugar a maior tentativa de autogovernodos negras fora do Continente Africano. l

íA República ficava situada — segundo documento com relação das l

guerras feitas aos negros'3' — numa superfície de 60 léguas, onde seespalhavam suas cidades (mocambos) da seguinte forma: a 16 léguasde Porto Calvo ficava o mocambo do Zumbi; ao Norte deste, afastado '

(1) — "Relação das Guerras Feitas aos Palmares de Pernambuco no Tempodo Governador D. Pedro de Almeida, de 1675 a 1678" — Apud Edison Carneiro:"O Quilombo dos Palmares", São Paulo, 1947, p. 188.

(2) — Rocha. Pita, S. da: — "História da América Portuguesa", Salvador,1950, p. 294. Apesar de citarmos aqui certos dados fornecidos por esse historiador.sabemos perfeitamente com que reservas os devemos utilizar. Apesar de tudo, oreiiato de Rocha Pita sobre Palmares é ainda uma fonte de consulta obrigatóriapara os que desejam uma visão de conjunto do que foram essas lutas.

(3) — "Relação das Guerras Feitas aos Palmares de Pernambuco no Tempodo Governador D. Pedro de Almeida, de 1675 a 1678" — Apud Edison Carneiro:Op. cit., p. 197. ss.

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5 léguas, o do Arotirene; a Leste, localizavam-se dois mocambos conhe-cidos pelo nome de Tabocas. Ao Nordeste deste, distante 14 léguas, fi-cava o de Dambragang-a e a 6 léguas para o Norte o de Subupira, quar-tel-general dos negros; ao Norte de Subupira, afastado 6 léguas, a cercareal do Macaco, capital da República, com l . 500 casas; 5 léguas parao Oeste da capital ficava localizado o mocambo de Osenga e a 9 léguasde Serinhaém a cerca de Amaro. A 25 léguas de Alagoas, para o Nor-deste, o mocambo de Andalaquituche, além de inúmeros outros menoresque se espalhavam pelas vizinhanças dos mais importantes.

Estabelecidos nas terras mais férteis da Capitania, começaram adesenvolver-se e aumentar de número. Suas roças floresciam, dandoabundante colheita. Ali plantavam milho (que era a base da alimen-tação) banana, mandioca, batata-doce, feijão; aproveitavam-se do cecoabundante na região, criavam animais domésticos, aves etc. Assim ins-talada começou a desenvolver-se a República palmarina. Em 1643 eramcerca de seis mil em franca atividade no reduto.

Necessitando de mantimentos, armas e mulheres, começaram a ata-car lavradores e estradas e exigir dos senhores de escravos, através deameaças, o de que necessitavam, tendo sempre os colonos trocado " o cabe-dal pela honra." Ante o número que crescia constantemente, aumentavao perigo para os moradores vizinhos de Palmares, que ameaçava inclu-sive Ipojuca, Serinhaém, Alagoas, Una, Porto Calvo, São Miguel, povoa-ções que forneciam provimentos para o litoral. Assim o Quilombo dosPalmares ameaçava com suas atividades não somente de morte e ataqueos moradores das redondezas do litoral, apossando-se de mantimentosque, da região onde atuavam, seguiam para lá e que eram: peixe, fari-nha, gado, legumes, tabaco, madeiras etc.

Não foi sem motivo que Palmares chegou a ser comparado aos ho-landeses. Eram os dois inimigos de Portugal; um — Palmares — "o deportas a dentro"; outro, os holandeses, "não sendo menores os danosdestes do que tinham sido as hostilidades daquelas". Era uma ameaçaconstante ao trabalho dos colonos.

Como decorrência do aumento incessante de quilombolas e do apa-recimento consequente da agricultura, surgiu o primeiro rudimento degoverno entre eles. Foi escolhido para dirigi-los Ganga-Zumba, pelosméritos demonstrados na guerra. Era Palmares, como já foi acentuadopor Nina Rodrigues e Edison Carneiro, uma imitação dos muitos reinosexistentes na África, onde o chefe é escolhido entre os mais capazes naguerra e de maior prestígio entre eles. Esse rei governou até o ano de1678 quando, havendo negociado a paz com os brancos, perdeu o pres-tígio entre seus pares e foi assassinado, tendo sido substituído por Zumbi,que passou à História como líder incontestável e herói de Palmares.Além do rei, porém, a República era dirigida por um Conselho compos-to dos principais chefes dos quilombos espalhados pela região. Esse Con-selho que constituía, ao que parece, a mais importante instância delibe-rativa da República, reunia-se periodicamente, quando havia assunto deinteresse justificado e importado — a paz ou a guerra etc.— e funcio-nava na capital de Palmares, sob a presidência do rei Ganga-Zumba. Eram

membros deste Conselho: o Ganga-Zona (irmão do rei), chefe do macambode Subupira, segunda cidade da República; Pedro Capacaça, Amaro, Aco-ritene, Osenga, Andalaquituche e Zumbi. Nos seus repectivos mocambosesses membros eram chefes absolutos.

O aspecto material da República era mais ou menos idêntico ao demuitas aldeias de tribos africanas. As casas espalhadas, sem obedece-rem a nenhuma simetria, cobertas de palha ou outras matérias da re-gião. Praticavam além de agricultura, cerâmica: panelas e vasos de barro,cuias -cie coco faziam cestos, trabalhavam em cabaças, fabricavam esteiras,abanos etc. Eram polígamos: o Rei Ganga-Zumba tinha três mulheres.Das suas atividades predatórias pela região traziam muitos escravos,uns voluntariamente, outros à força, e que engrossavam enormemente onúmero de habitantes da República. Os qu-e vinham forçados eram trans-formados em escravos que trabalhavam na agricultura. Assim se foidesenvolvendo o escravismo dentro da própria "república", em conse-quência do desenvolvimento das atividades agrícolas.

Para acudir à segurança de um número tão considerável de pessoase um território tão grande, necessitavam desenvolver sua técnica militar,estabelecer um sistema defensivo eficaz que assegurasse o sossego dosmoradores. Seu exército aumentou consideravelmente. Iniciaram a cons-trução de fortificações, confiadas, segundo parece, a um mouro que seencontrava entre eles. O exército era comandado pelo Ganga-Muíça ebem armado. Suas armas eram arcos, flechas, lanças e armas de fogotomadas das expedições punitivas, dos moradores vizinhos, ou compra-das. O governo, em 1670, estava ciente das "muitas e contínuas mortese assassinatos que se cometem a espingarda nesta Capitania e anexas porescravos, mulatos, forros e cativos". Nos baluai-tes construídos, o exér-cito do Ganga-Muíça vigiava a segurança dos palmarinos. "Em tempode paz — diz Rocha Pita — nas três plataformas que se localizavamsobre as três portas principais do mocambo do Macaco, havia uma cons-tante vigilância: era "cada huma p^iardada por hum dos seus capitãesde mayor supposição, e mais de 200 soldados." ( < ) O quartel-general desseexército era o mocambo de Subupira, onde era dada instrução militar.Esse mocambo parece que era uma espécie de praça forte, toda cercada demadeira e pedra, com mais de 800 casas. Estava completamente cer-cado de fojos e estrepes que quase tornavam impossível seu acesso.

Além do exército, o sistema defensivo de Palmares constituía ooutro elo de sua segurança. Consistia em "huma estacada de duas ordensde paos lavrados em quatro faces, dos mais rijos, incorruptíveis e gros-sos.'" (5> A defesa principal da capital era a famosa cerca que tinha2.470 braças, três portas guarnecidas por plataformas, além de fojos— enormes buracos contornando-a internamente — e estrepes feitos deferro que impediam a marcha dos exércitos atacantes.

Já havia Palmares assumido nessa altura grandes proporções. Suapopulação foi calculada em 20.000 habitantes e seus domínios se esten-diam por um paralelogramo de cerca de 27.000 quilómetros quadrados.

(4) — Rocha Pita, S.: — Op. cit., p. 299.(5) — Rocha Pita, S.: — Op. cit., p. 299.

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Ainda sob o domínio dos holandeses será organizada a primeira "en-trada" contra Palmares. Partirá em 1644 a expedição punitiva que ini-ciou a série de combates aos quilombolas durante a ocupação batava. Fbícomandada por Rodolfo Baro. Depois de vários dias de viagem, chega-ram os holandeses à região habitada pelos ex-escravos, travando com-bate. Durante a refrega saíram feridos 4 homens da expedição. Umfoi morto pelos palmarmos. Os negros perderam maior número de ho-mens, tendo sido aprisionados 31, inclusive alguns mulatos e índios. Osholandeses regressaram, pensando que com esse primeiro combate ha-viam destruído o que chamavam os Palmares grandes.

O certo é que em 1645 (26 de fevereiro) os holandeses viram-se nacontingência de enviar nova expedição punitiva comandada por JoãoBlaer em face do recrudescimento das atividades dos negros. Não sa-bemos ao certo o número de homens que a compunham, mas tudo leva aacreditar que era bem maior que a anterior. Partiram de Pilar e diri-giram-se para as matas onde se encontravam os negros. Andaram atéo dia 28 de fevereiro sem nenhum acontecimento de monta, tendo nessedia apenas encontrado grande número de mundéus, denunciador da pro-ximidade dos quilombolas. No dia 3 de março os componentes da expe-dição, a essa altura comandada por Reijmbach (Blaer retírou-se no dia2 de março dando parte de doente), acamparam junto a um rio de nomeSaboú. No dia 6 reencontraram os que foram levar o Capitão Blaer"a 5 milhas do engenho de Gabriel Soares, no lugar chamado Barra doParúgavo". Continua penosamente a marcha da expedição até o dia 18,quando chega ao "Oiteiro dos Mundéus. ou monte de armadilhas, por-quanto em cima dele havia bem 50 ou 60" e a uma milha adiante topoucom uma plantação dos negros com algumas "pacovas verdes", atraves-sando daí por diante roças dos quilombolas: "um denso canavial naextensão de_ duas milhas". Foram ter em seguida ao chamado velhoPalmares, sítio abandonado pelos escravos fugidos. Os holandeses en-contraram um mocambo com "meia milha de comprido e duas portas.A rua era da largura de uma braça, havendo no centro duas cisternas;um pátio onde tinha estado a casa do seu rei fora transformado em umgrande largo no qua! o rei fazia exercício com sua gente." Acharamduas ordens de paliçadas ligadas por travessões, tudo abandonado e co-berto de mato. As tropas marcharam cerca de milha e meia por entreroças abandonadas, acampando em uma delas onde ainda havia quanti-dade de bananas suficiente para matar-lhes a fome. Aí descansaram ereiniciaram a marcha no outró dia (19) para outro Palmares, tambémabandonado, "onde estiveram os quatro holandeses, com brasilienses etapuias": certamente a expedição de Baro. Esse quilombo também esta-va abandonado, pelo que os holandeses continuaram a marcha, andandomais três milhas, pernoitando nas margens de um riacho. Seguiram nooutro dia para a frente, encontrando daí por diante com frequência mo-cambos òe quilombolas. Finalmente, no dia 20 — depois de 25 dias demarcha, portanto — chegaram à região habitada pelos ex-escravos, ama-nhecendo o -dia 21 de março às portas do grande quilombo. Defronteda porta principal, "dupla e cercada de duas ordens de paliçadas, comgrossas travessas entre ambas" postaram-se os expedicionários, inves-

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tindo em seguida para arrombá-las violentamente. No lado interno dacerca havia um fosso cheio de estrepes onde caíram dois homens datropa. Quase não havia gente no quilombo: declararam os prisioneirosestar o restante dos ex-escravos no mato caçando ou plantando. O Rei,avisado da aproximação das tropas, havia também fugido. Os holande-ses aprisionaram um ex-escravo com a mulher e o filho, e mais umanegra. Outra encontrada no quilombo foi degolada por um dos solda-dos da expedição. Esse mocambo possuía 220 casas. Erguia-se uma igre-ja no meio, a casa do Conselho do Rei, além de quatro fojos. Foram encon-tradas ainda roças de milho novo, azeite de palmeira e objetos de utilidadedos quilombolas. A população seria de 1.500 habitantes, sendo 500 homense o restante mulheres e crianças.

Imediatamente foi enviado um sargento com vinte homens para pren-der o Rei que, segundo informações obtidas, se encontrava em uma casaduas milhas distante do local em que se achava a expedição. A batidafoi, porém, infrutífera, pois o Ganga-Zumba evadiu-se de lá também aosaber da aproximação das tropas. No outro dia, 22, ainda deram umabatida nas matas sem proveito algum, além de prenderem uma negracoxa, que deixaram por não poderem transportá-la. Depois disso, incen-diaram todas as casas do mocambo e dos vizinhos, além de se apodera-rem de grande quantidade de víveres. Excluindo-se alguns escravos des-garrados, nada mais encontraram. O resto, foi a longa viagem da volta.

Essa segunda expedição punitiva deve ter produzido uma exacerba-ção de ânimo nos ex-escravos. Parece que reiniciaram as atividades naregião, atacando fazendas. Contudo, somente depois da restauração éque encontramos notícias de novas atitudes repressoras sob a dire-ção, portanto, de autoridades portuguesas. Várias investidas de pequenarepercussão e efeito serão feitas contra Palmares. Ao todo — segundoEdison Carneiro que pesquisou exaustivamente o assunto — teriam sido16: duas durante o domínio holandês e as restantes já sob o tutela deautoridades portuguesas. <6> Se tomarmos como base as pesquisas deEdison Carneiro, passaram-se vinte e dois anos até que outra expediçãoseguisse para combater os quilombolas, tempo que achamos excessiva-mente longo. O que devemos acreditar é que há um período sobre o

(6) — Edison Carneiro afirma ter sido em número de 16 as expedições enviadascontra Palmares, na seguinte ordem: Rodolfo Baro, 1644 e João Blaer, 1645. Liieo-brasileiras: Zenóbio Accioly de Vasconcelos, 1967; António Jácome Bezerra, 1672;Cristóvão Lins, 1673; Manuel Lopes, 1675; Fernão Carrilho, 1677; Gonçalo Moreira,1679; André Dias, 1680; Manuel Lopes, 1682; Fernão Carrilho, 1686; Domingos Jor-ge Velho, 1692 e novamente em 1694. O documento "Relação das Guerras Feitas aosPalmares de Pernambuco no Tempo do Governador Pedro de Almeida, de 1675 a1678" tão citado neste capítulo, dá um total de 25 entradas até o ano de 1677, nume.ro que Edison Carneiro acha exagerado, reduzindo.o para 16. Nina Rodrigues, ba-seado no mesmo documento e no trabalho de Pedro Paulino da Fonseca, que por seuturno usara a mesma fonte, consagra como real o número que Edison Carneiro achaexcessivo por diversas razões. O certo porém é que nenhum número pode ser con-siderado definitivo por falta de documentos capazes de dirimir as dúvidas de umavez por todas e estabelecer uma opinião definitiva sobre a questão. No presentecapítulo referimo-nos às principais expedições.

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qual faltam notícias, pois não é possível que os portugueses tivessem dei-xado os palmarmos durante tanto tempo à vontade. Em 1667 seguiu a ex-pedição <Je Zenóbio Accioly de Vasconcelos, não obtendo, contudo, nenhumresultado prático.

O certo é que afrouxaram os ataques aos quilombolas, fato que ser-viu para que os palmarmos se sentissem fortes e reiniciassem ataquescontra propriedades dos senhores de escravos. Isso traria, como conse-quência, um acordo entre as vilas de Porto Calvo e Alagoas (1668) paraque pudessem exterminar Palmares, concorrendo ambas com as despe-sas da campanha. Apesar disso, as expedições enviadas contra os escra-vos fugidos nada de definitivo conseguiram. Assim foram as de Antó-nio Jácome (1672) e Cristóvão Lins (1673), apesar de haver o primeiroconseguido aprisionar 80 negros, número que devemos avaliar, tomandoem consideração o fato de existirem 20.000 escravos aquilombados, paravermos que não foi tão brilhante o feito. Apenas repetiu o que já haviasido realizado pela expedição de Blaer; aumentou o resultado na pro-porção do crescimento do número de escravos fugidos.

Em seguida (1675) partiu uma expedição chefiada pelo Sargento-mor Manuel Lopes "cuja experiência, zelo e valor prometeu bom suces-so às esperanças que nele se fundaram." <7) A expedição partiu de Porto

(7) — Op. cit. — Parece que as qualidades de Manuel Lopes como comba-tente contra Palmares foram reconhecidas pelas autoridades de Portugal. Foi peristo promovido a mestre de campo, declarando o monarca português que ManuelLopes o serviu "no estado do Brasil por espaço de cinqUenta e três anos efetivosdesde o de seiscentos e trinta e cinco até o de seiscentos e oitenta e oito em praçade soldado, cabo-de.esquadra, e sargento, alferes, capitão de infantaria, tenente-general da guerra dos Palmares, e sargento-mor de um dos terços da guarnição dapraça de Pernambuco, que atualmente está exercitando, achando-se no curso destetempo nas ocasiões que lhe oferecem contra os holandeses particularmente nas daMata Redonda da Barra Grande, no recontro do passo de Una, e Porto Calvo, nosítio que o Conde de Nassau pôs à cidade da Bahia, e nos assaltos que lhe deu;nas quatro; batalhas que o Conde da Torre teve com a armada holandesa à vista dePernambuco; e saltando em terra com o Mestre-de-Campo Luís Barbalho marchan-do pela campanha do inimigo para a Bahia mais de quatrocentas léguas, e nasquatro ocasiões de peleja que houve com os holandeses se haver com satisfação ecom igual procedimento nas tomadas das fortalezas de Nazareth e Serinhaém, e noforte do Engalana, na expurgação de duas casas fortes; nas ocasiões da várzeado Capirabe, Topissou, e Salinas; no rencontro da Paraíba, nas duas batalhas dosGuararapes, em que se lhe deram dois escudos de vantagem; na recuperação detodas as fortalezas do Recife, em que procedeu com tanto valor que se lhe deramoutros dois escudos de vantagem; e nas guerras dos Palmares se haver com bomprocedimento, formando tropas, levantando gente, e conduzindo mantimentos commuito vruidado, e indo por varias vezes fazer àqueles negros considerável dano,suportando o trabalho dos caminhos, e fomes da Campanha, e sendo encarregadodo apresto das frotas, dar-lhe grande expediente por se haver na carga delas commuito zelo; e da mesma maneira se haver na vila da Alagoa do Sul na Guerra quese fez aos negros dos Palmares, em que se lhe matou o seu governador Zumbi emuita gente por cuja causa ficaram livres aqueles moradores; havendo-se na dis-posição da guerra e dos socorros com grande cuidado; e em todo o tempo que go-vernou Pernambuco Aires de Sousa se Eiohar em repetidos perigos, e encontros queteve com os ditos negros indo por cabo de duzentos e tantos homens com quelhes fez guerra em várias parte do Recôncavo, gastando nela muitos meses e ma-tando-lhes mais de oitocentas pessoas; e sucedendo naquele governo D. João deSousa, continuar na dita guerra com a mesma disposição, zelo e valor gastando

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Calvo a 23 de setembro, com 280 homens brancos, mulatos e índios esomente a 22 de dezembro encontrou o reduto principal dos negros:"uma grande cidade de mais de 2.000 casas, fortificada de estacadade pau-a-piqne e defendida com três forças e com soma grande de de-fensores." (8) O combate, parece, foi dos mais violentos de quantos fo-ram travados contra os palmarinos, tendo os ex-escravos resistido du-rante duas horas ao fogo dos atacantes. Finalmente vencidos, viramsuas casas queimadas, além de terem muitos mortos e feridos. Os ata-cantes fizeram 70 prisioneiros. No dia seguinte os palmarinos novamen-te travaram combate com as tropas de Manuel Lopes, tendo, no final,batido em retirada para mais longe. Os expedicionários continuaram"campeando sempre aquelas espessuras." Esses ataques fizeram com quemuitos ex-escravos voltassem às casas dos seus antigos senhores. Osquilombolas, na sua maioria, porém, continuaram resistindo, tendo se re-fugiado para além 25 léguas do sítio atacado. O sargento-mor não lhesdeu descanso e partiu no seu encalço, encontrando-os e com eles pele-jando, tendo nesse combate saído ferido a bala o Zumbi, "negro de sin-gular valor, grande ânimo e constância rara." Teria ficado aleijado, segundo um documento da época.

Depois da expedição de Manuel Lopes a luta contra Palmares passaa uma nova etapa com a chegada de Fernão Carrilho, convidado paradizimar os escravos aquilombados. E se prepara para tentar exter-miná-los.

No dia 21 de setembro de 1677 partiu Fernão Carrilho da Vila dePorta Calvo para combater Palmares. Sua expedição contava apenas185 homens "entre brancos e índios do Camarão", número bem menorque os das expedições passadas.

A primeira investida foi sobre a cerca de Aqualtune, mãe do ReiGanga-Zumba, distante trinta léguas do ponto inicial da marcha. Ime-diatamente atacaram a cerca tendo matado muitos negros e "surpre-endido 9 ou 10", não encontrando, porém, a mãe do Rei, que conseguiuevadir-se. Apenas uma de suas escravas foi encontrada, morta. Pelosprisioneiros soube Fernão Carrilho que o Rei se encontrava no mocambo

ano e meio nesta operação; e indo em pessoa com cento e quarenta homens abuscar os ditos negros rebeldes e pelejar com eles desalojando-os do mocambo ondeestavam fortificados, e entrando nele lhe pôr fogo queimando mais de EBiscentas casasque nele tinham, arrancando, talando, e destruindo todos os seus mantimentos, emque lhes causou grande dano; e no curso do tempo referido passar grandetrabalho, e descômodo de sua pessoa, dando à execução de tudo quanto lhe foiordenado do meu serviço; e no reparo da fortaleza de Tamandaré na ocasião, emque um corsário andou por aquela costa o fazer com disposição e brevidade: E poresperar ele Manuel Lopes, que da mesma maneira me servirá daqui em diante emtudo o que lhe for encarregado do meu serviço, conforme à confiança que faço dasua pessoa: Hei por bem fazer-lhe mercê do posto de Mestre de Campo em um dosterços da guarnição da praça de Pernambuco".. . (Consulta do Conselho Ultramari-no de 18 de novembro de 1699. — Publicado por José Augusto m "Famílias Nor-destinas", Revista do Inst. Histórico do Rio Grande do Norte, Vols. XXXV aXXXVn — 1938-1940, p. 100/103).

(8) — Relação das Guerras... loc. cit., p. 193.

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Subupira, juntamente com seus lugares-tenentes, a fim de se defenderdo ataque "em forma de batalha."

No dia 9 de outubro partiu a expedição para o mocambo Subupiraonde travaria combate com as tropas palmarinas. Chegando defronte dacerca, Fernão Carrilho enviou 80 homens para um exame preliminarda região e inteirar-se da verdadeira situação da cerca. Voltaram coma notícia de que os quilombolas haviam mais uma vez incendiado suascasas e que "só as cinzas eram demonstração de sua grandeza." Emvista da fuga dos negros, deliberou Fernão Carrilho formar arraial nosítio, batizando-o com o nome de Bom Jesus da Cruz.

Em seguida enviou emissários solicitando reforços e destacou umaturma para dar batidas nas redondezas. As deserções, porém, se suce-diam nas fileiras dos atacantes. Vinte e cinco membros fogem. Diasdepois o número de deserções cresce para cinquenta. Fernão Carrilhoviu-se reduzido a cento e vinte homens. No arraial permaneceu a expe-dição, aguardando os socorros que vieram pouco depois: vinte soldadospagos, sob o comando do Sargento-mor Manuel Lopes, já conhecedor daregião em expedições anteriores.

As batidas se sucederam; Fernão Carrilho enviou 50 homens paracapturar cativos por perto "os quais seguindo uma trilha que descobri-ram tiveram um famoso encontro com os negros que estavam juntos."Travou-se o combate; foi uma grande derrota para os palmarmos, queperderam considerável número de guerreiros, sendo aprisionados 56.Nesse combate, travado quase que por acaso, caiu prisioneiro o Ganga-Muíça "grande corsário soberbo e insolente", chefe dos exércitos palma-rmos e mais os "capitães de guerra" do rei: João Tapuia, Ambrósio eGaspar. O rei conseguiu fugir

Animados com esse sucesso, prosseguiram os homens de FernãoCarrilho dando batidas constantes nas matas. Tendo notícias de que oRei Ganga-Zumba se encontrava com Amaro no seu quilombo a 9 léguasde Serinhaém, marcharam, imediatamente para lá, atacando-o, realizandoum "notável estrago", aprisionando 47 negras forras, além de unia mula-tinha filha natural de um importante de Serinhaém, raptada pelos ex-escravos. Prendem ainda dessa vez inúmeros membros importantes doquilombo: dois filhos do rei (Zambi e Acaiene), além de netos e sobrinhosque caíram em poder das tropas legais. Nesse combate o rei perdeu umfilho (Toculo) que morreu, e um cabo de valimento entre eles: Pacassa. Orei fugiu mais uma vez, deixando no campo uma espada e uma pistoladourada. Feriu-se durante a luta.

Fernão Carrilho, porém, não descansou nem deu tréguas aos quilom-bolas e enviou ao seu encalço 50 homens e 4 capitães que não encon-tram o rei. Ajpenas uma tropa de quilombolas atemorizada com os re-veses, sem destino certo, foi encontrada, com ela travando combate: unsmorreram, outros caíram prisioneiros. A ofensiva de Fernão Carrilhonão esmorece: batidas constantes são dadas nas matas, negros aprisio-nados frequentemente. Tamanha foi a matança, incêndios e prisões, queFernão Carrilho deu por esmagado o Quilombo dos Palmares; extermi-

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nados os quilombolas, retirou-se cheio de glória para Porto Calvo, ondefoi recebido festivamente, assistindo missa solene om ação de graças.

Entre os prisioneiros feitos por Fernão Carrilho, encontrava-sc umnegro de nome Matias Dambi, sogro de um dos filhos do rei e umanegra chamada Madalena. Os portugueses mandaram-nos, então, devolta a Palmares com ordens de rendição sob pena de perderem os qui-lombolas "suas relíquias e rei", serem atacados e esmagados em seguida.Ainda nem bem Fernão Carrilho havia terminado de comemorar a extin-ção do reduto, chegavam informações de que um grupo havia entradoem choque com um destacamento de Francisco Alves. Outras escaramu-ças se sucediam nas matas entre ex-escravos e senhores.

D. Pedro de Almeida mudou de tática e enviou um alferes ao localem que se encontravam os palmarmos, industriado para dizer que todosos sobreviventes do quilombo seriam exterminados caso não quisessema paz com os senhores de escravos da região e o governo; se se subme-tessem, porém, veriam respeitados seus direitos, ser-lhes-iam fornecidasterras e devolvidas as mulheres apresadas pelos portugueses. Feito isso,ficaram aguardando os acontecimentos.

O Rei Ganga-Zumba parece que não aguentou, com o ânimo que ascircunstâncias exigiram, os golpes e as derrotas. Via a maioria dos seusprincipais capitães morta ou aprisonada; o Ganga-Muíça, seus filhosZambi, Acaiene, Toculo, netos e sobrinhos aprisionados ou mortos emcombate; os cabos-de-guerra mais afamados já vencidos pelo adversário;as principais cidades da República, destruídas pelas tropas invasorasou incendiadas pelos próprios palmarinos; suas rocas devastadas pelasexpedições sucessivas enviadas contra eles; o Q.G. da República arra-sado em 1677 pelas tropas de Fernão Carrilho e ele próprio ferido emum dos combates.

Nessa situação o Rei Ganga-Zumba, em face dos oferecimentos depaz dos portugueses, achou vantajoso entender-se com eles, negocian-do-a. Resolveu enviar uma embaixada para acordar a paz com o go-verno. Era composta de três de seus filhos e mais doze palmarinos.Isso no ano de 1678.

Recebidos por D. Pedro de Almeida, manifestaram seus desejos pa-cifistas assim como do Rei Ganga-Zumba. O Governador Aires de Sousa,a quem foram em seguida remetidos, recebeu-os com manifestações debenignidade e regozijo, mandando dar-lhes roupas e "fitas várias." Osenviados do Rei Ganga-Zumba foram à igreja, assistindo missa soleneem ação de graça. Reuniu-se em seguida o Conselho do Governador, fi-cando assentado que estava aprovada "a petição do rei dos Palmares,em que pedia paz, liberdade, sítio, e entrega das mulheres", e estabele-cido que "lhes dessem para vivenda o sítio que eles apontassem, e a pazpara a sua habitação, e plantas; que se assentasse a paz; e que o reise recolhesse a habitar o lugar determinado; que fossem livres os nas-cidos nos Palmares; que teriam comércio, e trato com os moradores." <"

(9) — Idem, idem, p. 205.

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Tudo escrito, foi entregue aos palmarinos que regressaram, ficandoum dos filhos do rei, por doente.

Imediatamente foi comunicado ao Conselho Ultramarino o pacto se-lado com os ex-escravos, tendo, porém, o acordo recebido daquele órgãoa mais formal desaprovação. Isso porque — dizia aquele Conselho emdespacho à comunicação — "a experiência tem mostrado que esta prá-tica é sempre um meio engano e ainda pelo que toca a nossa reputação"e "à vista com eles ficamos com menos opinião pois isto são uns pretosfugidos e cativos. (10)

Reação de desaprovação semelhante verificou-se em Palmares. Oschefes militares de maior prestígio colocaram-se contra o acordo e, de-pois de discutirem o assunto, resolveram desrespeitá-lo, executar o reie entregar a direção de Palmares ao Zumbi, sobrinho do rei, elementonovo e de "grande valimento." Assim, quando chegaram as ordens emcontrário do Conselho Ultramarino, já a maior parte dos escravos se haviacolocado ao lado de Zumbi e reiniciado a luta contra os senhores. Re-sulta disso seguirem tropas — sem grandes consequências, aliás — co-mandadas por Gonçalo Moreira para esmagar os adeptos de Zumbi, quese encontravam com seu comandante refugiado em Cucau (1679).

Em 7 de novembro do ano de 1685 o Governador de Pernambuconarrava para a Metrópole queixas das "Câmaras e Povos circunvizinhos"das "tiranias que lhe estão fazendo (os negros de Palmares) matandomoradores, saqueando-lhes casas".

Fernão Carrilho segue, finalmente, em nova entrada, no dia 10 dejaneiro de 1686, travando logo combate com um grupo de palmarinosque se colocou defensivamente entre Palmares e a expedição, tentandobarrar-lhe o avanço. Foram, contudo, derrotados e Fernão Carrilho pros-seguiu. A marcha continuou em direção ao reduto até o inverno, quandoteve de ser suspensa. Nada adiantou de prático senão a destruição deroças e a prisã-o de alguns ex-escravos.

Somente com o aparecimento de Domingos Jorge Velho delineia-sea próxima derrota dos ex-escravos. Já severamente castigados por suces-sivas expedições, sofrerão agora um ataque sistemático por parte do ve-lho e experimentado paulista. Em 7 de novembro de 1685 já anunciavaJoão da Cunha Souto Maior, em carta ao Conselho Ultramarino, a exis-tência de Domingos Jorge Velho e de seu oferecimento para exterminarPalmares. "Recebi aqui carta de Paulistas que andão nos sertões

(10) — "Consulta do Conselho Ultramarino de 8 de agosto de 1685" — Apud.Ernesto Ennes: "As Guerras nos Palmares", p. 142. — Ainda sobre acordo entreescravos revoltados e as autoridades coloniais escreveu João de Sousa em parecer:"que em nenhuma maneira se lhes admitam, porque a experiência tem mostrado acavilação com que as intentam sendo em ordem contemporizar com o novo gover-nador que «hega, ou quando pela sua escandalosa culpa os ameaça a guerra, ne.nhuma se lhe pode fazer mais ofensiva que conservar as capitanias das Alago? 5 (>Porto Calvo (como mais expostas às invasões dos seus excessos) dois arraiais naseminências que se julguem suficientes as Correrias que façam" (Transcrito por Er-nesto Ennes, op. cit., p. 40) .

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escrípta a meu antecessor Dom João de Souza, em que lhe pedião huasPatentes de Capitão Mor."

Domingos Jorge Velho, depois de acertar condições para investircontra os ex-escravos, após desviar sua marcha uma vez, para combateros índios Jandoins na Capitania do Rio Grande do Norte, chegou à re-gião dos quilombolas, por volta do mês de dezembro de 1692 — segundoEdison, Carneiro — e imediatamente iniciou o ataque. O primeiro cho-que, porém, não foi muito feliz para os paulistas, que sofreram revideà altura da parte dos comandados de Zumbi, ficando desamparados nasmargens, sem mantimentos. Tiveram de recuar para a Vila de PortoCalvo, onde iriam se reabastecer e descansar.

Enquanto isso Zumbi e sua gente aproveitaram o descanso dos pau-listas para se fortificarem no cume da Serra da Barriga, dentro dascercas, protegidos pelo seu sistema defensivo.

Ali ficaram em posição de defesa, esperando as forças inimigas parao combate final.

Diante dessas fortificações parou a segunda expedição de Domin-gos Jorge Velho (1694). Surpreendido com as fortificações e recursosdefensivos dos ex-escravos não ousou ordenar o ataque, solicitando refor-ços ao Governador. Atendendo a seu pedido, foram enviados 108 solda-dos de infantaria e outros homens da região, também incorporados, paraconjuntamente darem cerco e combate ao grande reduto. Vinha, coman-dando as tropas pernambucanas, Bernardo Vieira de Melo, que se postoudo outro lado das tropas do paulista. Ambas não se atreviam, contudo,a atacar o reduto dos negros, que aparecia como inexpugnável. Iniciadofinalmente o ataque, foram recebidos e rechaçados com "armas de fogoe flechas, disparados dos baluartes, como de água fervendo, e brasasacesas".(11) Os primeiros combates se sucederam sem que os atacantesconseguissem vitória. Os ex-escravos resistiam heroicamente. A pelejacontinuava renhida e sem grandes progressos para os paulistas. Os ata-ques eram todos rechaçados, muitos com perdas para os sitiantes. Vá-rios soldados haviam ficado "estrepados" nas defesas de Palmares. Fi-nalmente, por ordem de Domingos Jorge Velho, entrou a. artilharia emação. Os ex-escravos começaram a sentir falta de munição e mantimentos:a posição era insustentável. Zumbi, então, aplica o último recurso: aretirada. Notando existir a ;nda um vão de sete ou oito braças na contra-cerca construída pelos sitiantes por ordem de Domingos Jorge Velho,executa uma manobra cheia de audácia, evacuando durante a noite seushomens, aproveitando-se dessa saída, pelo vão que bordejava o preci-pício. Somente no fim é que uma das srmtinelas pressente a fuga, dandoalarma. Os atacantes investem sobre os ex-escravos em retirada, desa-piedadamente. matando cerca de 200 e aprisionando mais de 500. Quan-tidade igual à dos mortos em combate se precipitou no abismo. Assimmesmo Zumbi conseguiu escapar, com muitos dos seus soldados.

(11) — Rocha Pita, S.p. 300.

— "História da América Portuguesa", Salvador, 1950

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Estava ocupada a capital da República dos Palmares, após 22 diasde resistência.

Depois disso é uma caça que se realiza ao valoroso chefe dos quilom-bolas. Transforma-se em guerrilheiro, ninguém mais o consegue loca-lizar com segurança: somente pela traição será morto, tempos depois.

Numa das batidas contra os homens de Zumbi as tropas legais con-seguem aprisionar um dos seus lugares-tenentes, mulato de "maior vali-mento." Prometendo-lhe liberdade, pediram que denunciasse onde Zumbise encontrava. Foi assim conduzida a tropa até o líder quilombola quese encontrava oculto já "tendo lançado fora a pouca família que o acom-panhava", ficando somente com 20 companheiros num "sumidouro queartificiosamente havia fabricado". Nesse local foi encontrá-lo a tropa,atacando-o de surpresa. Assim mesmo pelejou "valerosa ou desespera-damente" matando um homem e ferindo alguns, sendo em seguida assas-sinado com seus companheiros. "-'

O Governador Caetano de Melo Meneses ordenou que sua cabeçafosse pendurada em um pau e exposta "no lugar mais público destaPraça a satisfazer os ofendidos e justamente queixosos e atemorizar osNegros que supersticiosamente julgavam esse imortal." Estava terminadaa República de Palmares.

No ano de 1697 havia ,'50 ex-escravos aluando no interior, como re-miniscência do poderio do antigo reduto da Serra da Barriga. Em 1704,na Serra Negra, apenas sessenta quilombolas de Palmares, com armasde fogo, enfrentavam o Capitão-mor Francisco Soares de Moura.

(12) — Baseamo-nos aqui no documento "Consulta do Conselho Ultramarino de18 de agosto de 1696, em que o governador da Capitania de Pernambuco dá contade se haver conseguido a morte de Zumbi e o perdão que se deu ao mulato quoo entregou", apud. Ernesto Ennes, op. cit., p. 142.

196Revoltas em São Paulo

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O escravo negro entra tardiamente como fator determinante do di-namismo económico de São Paulo. Enquanto outras áreas do território jnacional já se haviam abarrotado de mão-de-obra escrava, importando |diretamente do continente africano milhares de negros, e haviam passa- ';do pelo ciclo da prosperidade entrando em decadência, somente no sé- jculo XIX a injeção do trabalho escravo servirá de força impulsionadora , jda economia paulista de maneira determinante. Desta forma, quando a .grande procura da mão-de-obra escrava se faz sentir em São Paulo, jnão será fundamentalmente suprida pelo Couitinente Negro, através de ( Jestoques diretos. Será abastecido por outras regiões do Império onde j 'a decadência da agricultura de exportação fazia do braço escravo exce-dente, ocioso, mais um ónus do que um lucro certo ou investimento sa-tisfatório. Nada rendia. Apenas consumia, onerando assim ainda mais 'a já carcomida e decadente economia daquelas zonas. < ] ) '

(1) — "Não havia a princípio negros de Guiné. E só aos poucos viriam para fcã. O negro custava em média 40$000. O paulista, paupérrimo, precisaria venderquarenta vacas para comprar um negro,! Os ricos senhores de engenho de Peruam-buço e Bahia é que absorviam a carga do navio negreiro. Só em 1607 aparece men- |cionado num dos inventários um negro de Guiné. E através de todo o século XVII ,o negro é elemento escassa. Em inventários opulentos — o leitor saberá dar ao adje. "tivo, no caso, o seu valor relativo — em que entram centenas de escravos índios, não lse menciona, às vezes, um único africano". (Otoniel Mota: "Do Rancho ao Palácio", ||São Paulo, 1941, p. 87). Outro estudioso afirma: "fi em 1607 que aparece pela pri.meira vez um negro de Guiné. Estimam-no em quarenta mi; réis. soma exorbitan-te para a época. O valor das peçfls da índia, ou da Angola, ou fôlegos vivos, au-menta de tal sorte com o decorrer dos anos, que um tapanhuano ladino, ou educa,do, vale duzentos e cinqilenta mil réis ao tempo de Leonor de Siqueira. Moleques, tmolecds, moleconas alcançam preços exagerados. Ao invés do que sucede com os |.indígenas, a idade demasiado tenra ou avançada e a própria moléstia não desvalo-rizam de todo os africanos. Em oito mil réis é alvidrado um pretinho de dez meses,em trinta, um de dois anos; em vinte e cinco um negro velho; em igual quantia uma jmoleca doente de gota coral, e assim também uma negra maios pés, aleijada, comcria de ibraço ( . . . ) Tudo isto explica o número diminuto de tapanhuanos que figu. "ram nos acervos setecentistas. Cento e poucos, ao todo. Arrolam-nos muita vez sob Ma denominação genérica de peças de Guiné. Várioa são nomeados como peitencen- ites ao gentio de Angola. Só nos inventários do século XVIII é que se encontram lindividuados africanos de nação benguela ou banguela, moniolo ou munyollo, mina •' íe cabo-verde". (Alcântara Machado: "Vida e Morte do Bandeirante", S. Paulo, 1920,p. 187). Interpretando inventários seiscentistas, Florestan Fernandes conclui: "Em.

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Compreende-se. As áreas decadentes do Nordeste e Leste que con-centravam nas suas atividades o grosso da população escrava já nãopossuíam mais a taxa de rentabilidade antiga. A primeira dessas re-giões, em decorrência da queda da sua agricultura de exportação; a se-gunda pela exaustão da produção aurífera e diamantífera que fora todadrenada para Portugal. Minas Gerais e o Nordeste encontravam-se empleno processo de decadência quando explodiu o surto cafeeiro em SãoPaulo, no Vale do Paraíba, exigindo mão-de-obra escrava. Os resultadosdessa demanda não se fizeram esperar. Em primeiro lugar através doaproveitamento da mão-de-obra escrava excedente de Minas Gerais que seencontrava em disponibilidade, em face dos fatos a que já nos referi-mos. Em segundo lugar manifestou-se pela procura de parte da escrava-ria do Nordeste. Minas Gerais logo depois entraria no ciclo do café, di-ficultando o êxodo para São Paulo. Os escravos das outras provínciasseriam, por isto mesmo, o material humano de que lançariam mão osfazendeiros de café.

Do ponto de vista que nos interessa mais diretamente no presenteensaio, cabe salientar um detalhe: tal fato levou a que enorme parte dosescravos que vieram para São Paulo fosse constituída de ladinos e criou-los. Poucos eram boçais. Estes últimos penetraram em São Paulo emfase anterior ao surto cafeeiro e, embora não fosse insignificante o seunúmero, não pesaram demograficamente — no conjunto da populaçãoescrava — de forma absoluta, pelo menos no período que mais nos in-teressa.

As lutas de escravos em São Paulo têm, portanto, conotações espe-cíficas. Do ponto de vista da classe senhorial concordamos com CelsoFurtado quando diz que "desde o começo (da economia cafeeira), suavanguarda estava formada por homens de experiência comercial. Emtoda a etapa da gestação os interesses da produção e do comércio estavamentrelaçados. A nova classe dirigente formou-se numa luta que se esten-de em uma frente ampla: aquisição de terras, recrutamento da mão-de-obra, organização e direção da produção, transporte interno, comerciali-zação nos portos, contatos oficiais, interferência na política financeirae económica." (2)

Como vemos, a complexidade da economia cafeeira se, de um lado,exigia a mão-de-obra escrava no setor da produção, pois de outra formanão se poderia realizar a empreitada, de outro lado, pelo seu dinamismointerno, criaria uma defasagem progressiva com esse tipo de trabalho,defasagem que se acentuaria com o decorrer do tempo. Isto quer dizerque o trabalho escravo já era uma solução anacrónica para o problemada mão-de-obra na cafeicultura. Ele só foi aceito por imposição do re-gime global que existia no país e que tinha o trabalho escravo como so-

bora não se possa afirmar seguramente nada, é bastante provável, a julgar peladocumentação existente, que o número de negros, na população de São Paulo nosfins do século XVI, era muito pequeno" (Florestan Fernandes: "Mudanças Sociaisno Brasil", S. Paulo, 1960, p. 214).

(2) — Furtado, Celso: — Formação Económica do Brasil, Rio de Janeiro, 1959,p. 139.40.

lução permanente para a produção, pois estava subordinado à economiacolonial da qual éramos a parte passiva. Desta forma, o escravoboçal não terá participação importante, mesmo porque, àquela altura, otráfico já estava extinto. Todos esses elementos devem ser levados emconta para que possamos ter uma visão objetiva do assunto.

Daí podermos afirmar que há uma diferença substancial nas for-mas de resistência dos escravos que se manifestaram antes e depois dosurto cafeeiro. Na primeira fase vemos o escravo reagir isoladamente,algumas vezes de forma violenta, embora a fuga e o quilombo sejam asduas formas típicas de resistência nesse período; na segunda fase oescravo já participa do próprio processo abolicionista, compreendendoou pelo menos intuindo os seus objetivos. Para que tal estado de espí-rito se manifestasse no elemento cativo, contribuiu a própria decompo-sição do trabalho escravo; o contato do cativo com colonos estrangei-ros; a ligação de certas correntes abolicionistas radica;s com os escra-vos nas fazendas e a compreensão — por parte de uma camr.d:', conside-rável da burguesia paulista — da necessidade de se extinguir aquele tipode trabalho. Os grandes centros abastecedores de São Paulo eram asoutras províncias. Numa dessas muitas levas — os chamados comboios— virá da Bahia um menino chamado Luís Gama, que posteriormenteserá um dos maiores abolicionistas. É essa massa deslocada das provín-cias que constituirá o escravo típico de São Paulo na fase cafeeira. Essatransumância chegou a tal ponto que as demais províncias se alarmaram."É possível calcular o número de escravos que vieram de outras pro-víncias para as regiões cafeeiras — escreve Emilia Viotti da Costa —durante esse período. Os jornais da época registram, frequentemente,na lista de passageiros dos navios recém-chegados, alarmante númerode negros. Só no mês de marco de 1879, desembarcaram no Rio, pro-cedentes das províncias do Norte, mil e oito cativos, o que faz supor umnúmero muito mais alto do que registrava Ferreira Soares, em 1860." (3)

O coeficiente demográfico negro aumenta portanto até o últimoquartel do século XIX, decaindo em seguida. É verdade que as provín-cias que se viram despovoadas do braço escravo de maneira excessivatentaram alguns movimentos de autodefesa impedindo ou dificultando onegócio. É que as bocas escancaradas dos cafezais, quando da explosãodo surto dessa cultura em São Paulo, não queriam mais apenas os exce-dentes das outras áreas- O seu ritmo de crescimento exigia toda a mão-de-obra disponível nas demais províncias decadentes. O certo, porém, éque enquanto a economia cafeeira exigiu o escravo ele foi recrutado dequalquer forma e a qualquer preço, nas demais regiões. As fazendasdo Vale do Paraíba absorviam essa mão-de-obra. Estancado por sua vezo tráfico africano, logo o aumento do preço do escravo que se encon-trava em disponibilidade se verificará. O impasse, ou melhor, a con-tradição faz-se sentir imediatamente e as primeiras levas de imigrantessão contratadas. Faz-se uma política migratória deliberada para supriros bolsões de atividades não executadas, muitos dos quais decorriam

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p. 132.Viotti da Costa, Emilia: — Da Senzala à Colónia, São Paulo, 1966,

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da própria complexidade do trabalho a ser feito. O sistema de parceriaé introduzido em algumas fazendas. Coexistem assim duas formas detrabalho irreconciliáveis: o livre e o escravo. É desta contradição quesurgirão os elementos que irão particularizar as lutas dos escravos pau-listas.

Outro fator que irá influir no comportamento da classe senhorialé que ao ser extinto o tráfico, muitos capitais disponíveis e que foram em-pregados no comércio negreiro serão investidos na compra de fazendas decafé. O antigo traficante vê-se, paradoxalmente, ao se integrar na economiaagrícola cafeeira, como comprador de escravos. Desta forma, a economiaagrícola cafeeira não apenas irá dinamizar o desenvolvimento da agricul-tura escravista pelas suas forcas internas, mas levará a que a apliração decapitais vindos de fora e nela empregados também a impulsionem numverdadeiro movimento em cadeia. Escreve, com razão, Maria Isaura Pe-reira de Queirós: "Extinto o tráfico escravo da África para o Brasil, houvegrande desemprego de capitais; nada de estranho que muitos deles fos-sem empregados na compra e exploração de propriedades agrícolas; ora,nessa época era a cultura do café que estava em plena florescência na re-gião do Vale; a fazenda de café era, portanto, o emprego mais seguro eremunerador de capital." ( 4>

Como vemos, todos estes elementos diferenciadores formaram seg-mentos específicos, limitados à área do café, especialmente no Rio e emSão Paulo. Aquelas considerações de Celso Furtado, que citamos ante-riormente, soma-se este outro detalhe: parte dos investidores na empresacafeeira já vinha para esse setor de atividades aceitando tacitamente aextinção do tráfico e a necessidade de recorrer à transumância interpro-vincial para suprir de braços as suas fazendas. A economia cafeeira quefoi, incontestavelmente, a pilastra que amparou o crescimento vertigi-noso da escravidão em São Paulo, trazia, portanto, no seu bojo, uma sériede contradições, contradições que levarão a que o caudal abolicionistase una às lutas dos próprios escravos.

Cassiano Ricardo mostra como "só com o advento do café recru-desce a onda negra" e agrega dados colhidos em documentos pelos quaisficamos sabendo que em 1797 havia em São Paulo 89.323 brancos,33.540 pretos e 30.487 pardos, passando, em 1837 para 326.902 almasdas quais 42.930 na 5» comarca, que correspondia ao atual Estado doParaná. Excluindo o total da 5? comarca, teremos então 283.927 almas,sendo que do total figuraram 79.122 negros e 74.176 pardos para, final-mente, chegarmos ao ano de 1872 — vinte e dois anos, portanto, após aLei Eusébio de Queirós — quando os negros e mulatos constituíam, noterritório paulista, 62% da população.15'

(4) — Pereira de Queirós, Maria Isaura: — A Estratificação e a MobilidadeSocial nas Comunidades Agrárias do Vale do Paraíba entre 1850 a 1888, in "Revistade Hitória" (S. Paulo", Ano I, n. 2, abril.junho, 1950.1

(5) — Ricardo, Cassiano: — Marcha para Oeste (2 vols.), Rio de Janeiro.1942, 2» vol., p. 43.

Este ritmo de crescimento demográfico através da penetração donegro é que caracteriza, do ponto de vista que nos interessa, a fase ca-feeira. Dentro dessa economia o escravo paulista carregará nas costastodo o peso do trabalho. Tal fato configurará e determinará no setorpolítico a conhecida posição de muitos republicanos que eram, ao mes-mo tempo, contra a abolição. Justificavam tal estereótipo que defendiaas suas posições de classe através de slogan racista: "O Brasil é o cafée o café é o negro." A divisão das forças políticas em São Paulo, noaspecto que nos interessa aqui, decorre deste fato: o escravo negro chegoupara a Província num momento de pleno florescimento das suas forçasprodutivas, entrando como injeção dinamizadora quando outras áreasdos antigos coronéis estavam em franca decomposição.

Dissemos que as fugas e os quilombos caracterizavam as primeirasformas de resistência do negro escravo em São Paulo. Nas bandeirasjá há negro fugido. Tapanhuanos que se .aproveitaram das facilidadesque apareciam durante o trajeto para se subtraírem do cativeiro. Em1723, Manuel da Costa pediu a Bartolomeu Pais que levasse às minasde Caxipó mercadorias e escravos pertencentes a um rico comercianteportuguês. O bandeirante aceitou a incumbência e perdeu muito temponos campos de Vacaria tentando capturar dois negros que fugiram, con-seguindo finalmente o intento.

Outras vezes os escravos negros juntavam-se aos índios para pra-ticarem desordens. Uma delas era a destruição da forca. Várias vezesas autoridades verberaram as atividades dos "negros da terra e deGuiné" que repetidamente destruíram aquele instrumento de morte. lc)

"O termo de 24 de novembro de 1635 — escreve Afonso de Taunay —refere-se com excepcional veemência às tropelias dos índios e negros,gentio da terra e de Guiné, pelas estradas da vila e seu termo. Não sófaziam muito dano, exterminando-se mutuamente, como andavam a ma-tar o gado pelos campos. Assim lhes fossem confiscados os arcos e presosos moradores que consentissem trouxessem armas". (7) Se as coisas anda-vam assim no termo da Vila de São Paulo, imagine-se o que não deviaestar ocorrendo no interior. O negro fugido, depois de 1700, passa a seruma constante na vida social dç São Paulo. Encontramos repetidamentenotícias de ordens de prisão contra "pretos criminosos", ordens paraprender escravos evadidos da Fazenda Santana e remessa de escravosapadrinhados, ou recambiados aos donos. Esse noticiário refere-se a di-versos locais: Mogi-Guaçu, Atibaia, Santos, Itu. As autoridades nãotinham descanso em perseguir e prender negros fugidos. Às vezes fugiamisoladamente, outras vezes em grupos pequenos. Em 1784 as autoridadesconseguiram localizar vários negros que se encontravam escondidos emuma casa no Taboão. O General Francisco da Cunha, Meneses, então Go-

(6) — Taunay, A. de: — História Seiscentista da Vila de S. Paulo, tomo II(1653-1660), S. Paulo, 1927, p. 220.

(7) — Op. eit. p. 203.

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Vernador da Capitania, deu ordens ao Capitão-mor António de Sousapara prendê-los. "Logo que vossa mercê receber esta mandará fazer aspossíveis diligências para que sejam presos e remetidos a esta cidadeuns escravos que se acham em casa de Manuel de Faria na paragemchamada Lambari ao pé do Taboão, uma légua distante de São Paulo;dando o necessário auxílio ao soldado Francisco Pires que vai para estadiligência". (8) Da mesma forma dirigia-se ao capitão-mor da Vila deJacareí, apresentando um apresador de negros: "Desta cidade hão fu-gido um mulato e um preto de Nação Banguela, que o portador a ambosconhece e vai em diligência de os prender; e porque poderiam nessavila tomar diferente rumo, desviando-se da estrada geral, que seguiam,Vmce. tendo disto informação primeiro dará toda a ajuda ao referidocursor a fim de que sejam presos e trazidos a esta cidade.1" (9)

Em Piracicaba encontramos ordem datada de 1782 para que fossemdestruídos os vestígios de um quilombo. O Governador da Capitania,Francisco da Cunha Menezes, depois de dizer ter sido informado de queexistiam vestígios de um quilombo "junto do morro Araraquara", de ne-gros que andavam mineirando, solicitava fosse feito um levantamento dasforças* dos ditos negros para que pudessem ser destruídos. ( lo> No mes-mo ano aquela autoridade pede providências para que sejam presos ne-gros fugidos em Itibaia, que praticavam desordens. Ainda em Atibaia,três anos depois pedem providências para prender um escravo "junta-mente com todos os outros que consta estarem fugidos." (11)

Em outros casos, aqueles que desertavam do serviço militar em facedas duras condições de vida, juntavam-se aos quilombolas. É o caso dopardo José de Oliveira que, em Apiaí, auxiliado pelos quilombolas, re-sistia às autoridades. Foi expedida ordem de prisão contra o mesmo. < I 2>A situação do desertor, do marginal, do criminoso e do quilombola se

(8) — Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo,Vol. 84. p. 51.

(9) — Doe. Int. para a Hist. e Cost. de S. Paulo. Vol. 85, p. 149.(10) — Doe. Int. para a Hist. e Cost. de S. Paulo, Vol. 85. p. 66.(11) — Doe. Int. para a Hist. e Cost. de S. Paulo, Vol. 85. p. 148.(12) — Este José de Oliveira é um dos muitos elementos marginalizados da

sociedade colonial que uniam a sua situação à dos escravos fugidos ou rebeldes."Desertor e criminoso" fortificou-se na estrada de Apiaí, tendo a sua casa cheiade buracos para atirar através deles caso fossem prendê-lo. Era auxiliado por "es.cravos fugidos" que abandonavam as fazendas das vizinhanças. Quando António Caeta-no Alves d« Castro mandou grande número de pessoas buscar os seus escravos que nãose encontravam nos ranchos, soube que os mesmos estavam na casa de José de Oliveira.As pessoas que os foram capturar não tiveram porém coragem de ir buscá-los porserem aqueles negros "protegidos dele". As autoridades, desejando "atalhar estarebeldia e insolência pelas péssimas consequências que ameaça o exemplo de seme-lhante escândalo" ordenavam a todos os capitães.mores, especialmente das vilas Fa-xina e Apiai, que convocassem "homens de valor e desembaraço, além de diversoscapitães-do-mato para prenderem o rebelde." Para isto deviam usar "todos os meiose estratagemas de o prenderem com segurança e sem perigo de parte a parte;bem advertindo que na última extremidade da resistência e de se não querer entre-gar, lhe atirem para o dito fim, pela parte que menos perigosa for, de forma que emtodo o caso se segure, prenda e se me remeta, cuja importante diligência dou atodos por multo recomendada" (Doe. Int. para a Hist. e Cost. de S. Paulo, Vol. 84,p. 92).

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pareciam muito, dentro da sociedade colonial. Daí essas uniões, maisfrequentes do que se presume. Identificavam-se por uma série de mo-tivações que os levavam a uma ação comum. No recesso das matas cria-vam modos de convivência, uma espécie de relação comunitária contrao aparelho estatal que os oprimia. Mesmo em outras regiões — comoé o caso da Bahia, conforme já vimos — encontramos soldados e deser-tores unindo-se aos escravos rebeldes. É que muitas vezes os escravoseram militares. Um exemplo é o do preto escravo do Capitão AndréCorreia de Lacerda, que era também tambor da Companhia de Auxilia-res. Decretada a penhora desse cativo, foi alegado cm seu favor o fatoacima para que a mesma não fosse executada.

Martim Lobo Sardinha em 1776 mandava que o Sargento-mor Teo-tônio José Zuzarte sem perda de tempo convocasse os auxiliares neces-sários para dar combate aos quilombolas que se encontravam na saídada cidade, na Aldeia. Pinheiros e Sítio da Ponte. Esses negros fugidosinfestavam a região praticando "insultos e roubos escandalosos, não po-dendo viajar-se pelos ditos caminhos com segurança e sem concurso demuitas pessoas, o que é intolerável em toda parte especialmente na pro-ximidade esta capital." Mandava aquela autoridade que o Capitão-morprovidenciasse "Capitães-do-Matto e Certanejos" para desinfestar os ca-minhos. (I3>

Mas, ao que parece as coisas não iam muito bem. Os quilombolascontinuavam desafiando as autoridades. Daí ter sido organizado umplano de proporções bem maiores para combatê-los. O Governador CunhaMeneses enviou ofício aos capitães-mores dos bairros da Penha, Cotia,Sto. Amaro, Conceição dos Guarulhos, Cangussu e S. Bernardo. No do-cumento dava instruções para que fosse executado um plano de vastaenvergadura contra os escravos fugidos.

Ponderava aquela autoridade não ser mais possível tolerar-se as"desordens, latrocínios e insultos" praticados pelos quilombolas. Por istomesmo achava que esses capitães deviam "ajuntar todos os soldados desuas ordenanças, por elles mandará bater todo o matto, e partes exquizi-tas, aonde se possa conciderar esconderigio; continuando esta dilligenciaem direitura a esta cidade, não só ao que pertence ao seu districto masnaquelles logares que lhe ficarem commodos para esta averiguação quedeve ser feita em cerco, prendendo não só a toclos os negros e pessoas des-conhecidas que escondidamente forem achadas, mas todos, e quaesquer,que ainda sendo conhecidos tiverem contra si algumas das referidassuspeitas; remettendo-os bem seguros á cadeia desta cidade". Infelizmentenão temos informações sobre o resultado dessa diligência, mas tudo indi-ca que deve ter sido considerável.

Parece que mesmo assim os tumultos prosseguiam, pois aparece em1781 um homem "rebuçado" que em companhia de escravos negros pra-ticava desordens. Mais uma vez o negro fugido aliava-se aos elementosmarginalizados da sociedade da época. Segundo o ofício que pedia a pri-

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(13) — Doe. Int. para a Hist. e Cost. de S. Paulo, Vol. 84, p. 70/71.

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são do misterioso indivíduo — dizia o General Martim Lopes Lobo deSardinha — que se houvesse resistência por parte do delinquente ati-rassem-lhe nas pernas a fim de que as autoridades captoras não sofres-sem nenhum dano.

No interior os quilombos continuavam dando trabalho também. Em1778 dizia-se que qualquer pessoa podia destruir de assalto um quilombono termo de Parnaíba, prendendo os ditos aquilombados juntamentecom um mulato chamado António Pinto que se encontrava entre os mes-mos. O mulato que se homiziara no quilombo era "criminoso de delitosgraves". < I 4 >

Em 1782 Sorocaba preocupa as autoridades, que mandam ordem paraque sejam presos vários escravos daquela vila. Voltam as autoridadesem 1785 a solicitar das autoridades soroeabanas a remessa dos escravosque foram presos ali.

Os escravos da Fazenda Santana viviam em verdadeira debandada.São constantes as ordens para prendê-los em diversos locais. Fugiampara Mogi-Guaçu, Jacareí, Jundiaí e até para Minas. Evadiam-se sem-pre em pequenos grupos de dois ou três. Durante anos e anos fogeme são capturados. Tornam a fugir e tornam a ser capturados. Chega aser monocórdica a forma de fuga e captura.

Esses escravos pertencentes à Real Fazenda talvez fugissem tantopor encontrarem menos rigor na vigilância. Essas fugas, como vere-mos no capítulo seguinte, se amiúdam ainda mais no século XIX, fatoque levará as autoridades a uma série de medidas de segurança. Masjá em 1783 Francisco da Cunha Meneses começa a ordenar medidas maisdrásticas para a captura dos mesmos. Ordena naquele ano que ManuelLopes de Leão, capitão-mor de Taubaté, prenda o mulato claro Jerônimo,de doze anos de idade, que fugira da Fazenda Santana juntamente comdois irmãos. Segundo aquela autoridade os três teriam se dirigido paraTaubaté, onde tinham pai e mãe, ambos residentes em Piracuama. O paidos evadidos — ficamos sabendo pelo documento — chamava-se Manuelda Costa; a mãe chamava-se Marta de Oliveira. Aquela autoridade, paraque a diligência tivesse pleno êxito, não vacilou em ordenar a prisãodos pais dos escravos fugidos para "dar conta dos filhos." Isto é, aplicouo método de usar reféns para conseguir os seus objetivos. Quanto aosescravos, devem ser restituídos à dita Fazenda "onde pertencem." Adiligência era tida como "muito recomendada." <51)

Mas não era somente da fazenda que pertencia ao Estado que osescravos fugiam. Aqueles que eram propriedade dos conventos tambémnão aceitavam de bom grado o cativeiro. Em 1785 dois escravos do Con-vento de S. Francisco escapam do controle dos senhores e fogem paraAtibaia. Ali foram presos. Do Convento do Carmo os escravos fogemem 1779 levando as autoridades a exigirem a sua captura. Os cativosdessa instituição católica depois de escaparem formaram um quilombo,na freguesia de Nazaré. Neste mesmo ano mulatos e carijós praticavam

tumultos na Vila de Jundiaí. Esses insubordinados ocuparam o bairrodo Cururu naquela vila e se encontravam "levantados sem obediência àsJustiças". <1 6>

A condição de "boca do sertão" a princípio e, por todo o restantedo período escravocrata, a fraca densidade de população característicadas zonas de campos naturais — escreve Oracy Nogueira — bem comoa extraordinária mobilidade que se associa ao comércio de animais e àpecuária de caráter extensivo, tornariam a região de Itapetininga alta-mente procurada por escravos em fuga, de São Paulo, Itu, Sorocaba,Porto Feliz, Tietê e, mesmo do Sul, inclusive Rio Grande. ( 17>

Em 1773 e 1774, escravos da Fazenda de Araçariguama — aindaé Oracy Nogueira quem escreve — refugiam-se na região de Itapeti-ninga ou a cruzam em demanda ao Sul. <18) Aliás, as fugas dessa fazendapertencente a S. Majestade continuaram. Temos notícias de que, em1779, vinte escravos fugiram. As autoridades mandaram a relação dosquilombolas e deram poderes ao Capitão-do-mato António Protázio paracapturá-los. Assim como todos es mais que forem fugindo. Talvez poristo a Vila de Parnaíba era obrigada a sustentar a força destacada parapermanecer na Fazenda Araçariguama. Um cabo e dois soldados foramdestacados para policiarem o local. (10)

Continuava o rosário ininterrupto de fugas. Em 1785 Francisco daCunha Menezes dirige-se ao arrendatário da Fazenda Araçariguama so-licitando o envio de gente para levar os escravos que se encontravampresos pertencentes àquela fazenda, menos "o forro Crasto que fica emferros." (zo)

Até um escravo do bispo, resolveu fugir, em 1777. As autoridadestomaram a peito a captura desse insubordinado com todo o rigor. Depoisde particularizar vários sinais capazes de identificá-lo, exigem a sua cap-tura "com a maior segurança e brevidade", "bem advertindo que todoo que mostrar frouxidão no pronto cumprimento desta ordem ficará res-ponsável para ser castigado como merecer." (21)

(14) — Doe. Int. para a Hlst. e Cost. de S. Paulo, Vol. 84, p. 51.(15) — Doe. Int. para a Hlet. e Cost. de S. Paulo, Vol. 85, p. 92.

(16) — Doe. Int. para a Hist. e Cost. de S. Paulo, Vol. 84, p. 169/70.(17) — Nogueira, Oracy: — Relações Raciais no Município de Itapetininga —

Apud "Relações Raciais entre Negros e Brancos em São Paulo", S. Paulo, 1955, p.398.

(18( — Nogueira, Oracy: Op. cit. p. 398.(19) — Doe. Int. para a Hist. e Cost. de S. Paulo, Vol. 84, p. 152/153.(20) — Doe. Int. para a Hlst. e Cost. de S. Paulo, Vol. 84, p. 170.(21) — Devemos salientar que os escravos dos conventos muitas vezes não se

entregavam passivamente aos captores. Reagiam, como foi o caso do escravo Luís,pertencente aos padres do Convento de Sta. Clara, de Taubaté. O General Franciscoda Cunha Meneses oficiou ao Juiz Ordinário daquela vila dizendo que "logo queVmc. receber esta, me remeterá sem demora pela Secretaria deste Governo os Autosde Devassa, corpo de delito, e todos os mais que nesse juízo se houverem processadoex-oficio criminalmente pelos ferimentos acontecidos na diligência de prisão que seexecutou no mulato Luís, escravo dos Religiosos do Convento de S. Clara dessa vila,assim como se acharem ao chegar desta, sem ficar cópia, nem documento algum aeste respeito". (Doe. Int. para a Hiat. e Cost. de S. Paulo, Vol. 85, p. 101).

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Outras vezes os cativos deslocavam-se para Santos. Em 1784 éexpedida carta com uma relação dos escravos que cê haviam refugiadoali. Ainda no mesmo ano, um escravo que viera de Cubatão fugiu paraSantos evadindo-se da Fazenda Santana. Outras vezes acontecia o in-verso : eram os escravos d.e Santos que fugiam para outras regiões. Em1785 muitos deles fugiram e deslocaram-se para Paranaguá. Na ordempara que esses cativos que haviam fugido do "Cubatão de Santos", fossempresos, recomenda-se "exatissimas diligências" e "depois de bem segurosos remeterá à vila de Santos". (22) Esses escravos fugidos eram um mulatofusco, com sua mulher mulata mais clara que ele; dois filhos, uma cunha-da de nome Lucaria com uma filhinha. O escravo, segundo informa odocumento, para disfarçar-se melhor, havia passado por Itanhaém emtrajes de mulher. Em Paranaguá, escravos fugidos de Santos são recam-biados, inclusive "os velhos, porque nesta mesma cidade se podemforrar."'23'

Se no Taboão os escravos encontraram quem os acoitasse, em Para-naguá o governador mandava prender Joaquim Xavier Ferreira deOliveira e o seu irmão João, que andavam com três negros escravos— Joaquim, Salvador e Bento — praticando desordens, sendo que sefosse preciso auxílio militar o ouvidor daquela vila podia requerê-lo aqualquer comandante; devia remeter os presos com toda segurançapara São Paulo. Os criminosos brancos eram filhos do Sargento-morFrancisco Xavier Pinto.

Na fase do setecentos poucos são os movimentos ativos do escravocontra o cativeiro. O que caracteriza esse período é a fuga individual ouem pequenos grupos.

Ksse tipo de revolta, ainda rudimentar, decorre também da inexis-tência de grandes aglomerados de escravos. Por isto mesmo quase sem-pre eram recapturados e remetidos de volta aos senhores, apesar de en-contrarmos escravos que já estavam sendo procurados há quatro anos.Somente no século XIX nós iremos encontrar formas mais organizadasde lutas até que, na última fase da escravidão, os escravos unem as suasformas de rebeldia às atividades dos abolicionistas.

Não havendo grandes aglomerações de escravos como em outras re-giões, torna-se evidente que os vínculos tribais se diluíam praticamentecom muito mais facilidade do que nas áreas de grande densidade depopulação negra. Aquela hierarquia transplantada pelos escravos negrospara o Brasil, e que nos quilombos se conservara, deve ter tido muitopouca importância na época que estamos analisando, em São Paulo.Daí, talvez, a facilidade com que se juntavam com elementos brancosmarginalizados. Se observarmos o fato dentro deste critério, poderemosesclarecê-lo melhor. É inegável que a base dessas uniões era a formacomo a sociedade colonial estava estratificada. Mas cabe salientar estedetalhe para que a análise não fique incompleta.

Uma população escrava rarefeita, sem grandes possibilidades deajuntamento periódico para reavivar os laços tribais, cedo se encontra-

(22) — Doe. Int. para a Hist. e Cost. de S. Paulo, Vol. 85, p. 161/162.'(23) — Doe. Int. para a Hist e Cost de S. Paulo, Vol. 85, p. 162.

Devemos ponderar, porém, que entre os livres havia milhares depessoas que viviam praticamente em condições de escravos. Os libertosnão eram outra coisa senão escravos disfarçados. M-A Mesmo assim, nãose pode negar a queda vertical da população escrava no conjunto da so-ciedade brasileira. Nas cinco principais Províncias do país, em 1882,(São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Ceará e Rio de Janeiro)'segundo depoimento de Joaquim de Godoy, citado por Jovelino M. deCamargo Jr. era essa a população:

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(29.A1 "O Africano livre, entregue ao serviço de particulares ou de estabeleci-mentos públicos, não passa de um verdadeiro escravo; os que desfrutam seus serviçosnão caem na asneira de facilitar-lhe a emancipação, e, como es-ravo que é de fato.não pode adquirir meios pecuniários com que pague a advogados e procuradores paratratarem de sua emancipação.

Segue-se, portanto, que estes infelizes devem resignar-se com a falha da lei, ouesperar que o acaso lhes depare um protetor desinteressado e que, revestido da maisevangélica paciência, se prepare a sofrer e acompanhar todas as seguintes provasdesta nova inquisição moral:

l') — Pedir ao escrivão dos africanos a certidão demonstrativa de que é passadoo lapso de tempo.

2») — Requerer ao governo imperial por intermédio da secretaria da justiça.3') — O ministro da justiça manda ouvir o juiz de órfãos.4') — O juiz de órfãos informa e faz volver a petição ao ministro.5') — O ministro manda ouvir o chefe de polícia.6'l — O chefe de polícia manda ouvir o curador geral.7») — O curador geral dá a sua informação e faz voltar a petição no chefe

de polícia;8') — O chefe de polícia manda ouvir o administrador da casa de correção;9') — O administrador da casa de correção informa e faz voltar à secretaria

da justiça.10') — O chefe de polícia informa e faz voltar à secretaria da justiça.II9) — A secretaria faz uma resenha de todas as informações para o ministro

despachar.12') — O ministro despacha afinal, mandando passar a carta de liberdade.fiste atinai quer dizer:13») — Volta a petição ao juiz de órfãos.14°) — E expede.se um aviso ao chefe de polícia.15») — O juiz de órfãos remete a petição ao escrivão e faz passar a carta, que

este demora em seu poder até que a parte vá pagar os emolumentos.16») — Remete-se a carta ao chefe de polícia.17') — O chefe de polícia oficia ao administrador da casa de correção mandajv

do vir o africano.18») — O administrador manda-o, e o chefe de polícia desiipiti o termo ou mu-

nicípio em que há-de residir.19») — O chefe de polícia da corte oficia ao da província, a que pertence o ter-

mo designado, e remete-lhe o africano acompanhado de carta.20») —. O chefe de polícia da província oficia, remetendo o infeliz e a sua car-

ta à autoridade policial do lugar para onde o chefe de polícia da corte aprouve designaro degredo do homem livre e iiãa condenado por crtme algum.

E depois de todo o trabalho, de despesas feitas com procuradores ou veículospara que a petição não ficasse sepultada no maré magnum de nossas repartições, omísero africano conseyue ser bwitído <4> lugar em qve residiu por dez, quinze, e vinteanos, em que adquiriu raízes, i-,m que começou a preparar o seu futuro, o.s setts in-teresses!" (Artigo do Diário do Rio d« Janeiro, 1863).

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Trabalhadores livres l. 433.170Trabalhadores escravos 656.540

Desocupados 2.822.58380.

Os desocupados eram ex-escravos marginalizados que depois iriamingressar na faixa dos servos que aumentariam progressivamente noBrasil. A qualificação do trabalhador só podia ser feita à medida queele ingressasse naquela nova classe que surgia: a classe operária. Nacapital baiana, pouco depois de extinta a escravidão, existia a "UniãoFabril" que englobava seis fábricas de tecidos com um total de 805 ope-rários trabalhando ein 358 teares.

Era toda uma conjuntura cconômico-política delicada e complexaque se apresentava ante os olhos da Regente: uma economia em decom-posição e uma opinião pública que, na sua quase totalidade, condenavao sistema de trabalho que predominava ainda na agricultura. Certamen-te, sentindo-se forçada ante o império das circunstâncias — um ano an-tes mandara espingardear os escravos fugidos — deveria ter raciocina-do como, tempos depois, frente ao problema da revolução que se apro-ximava, exprimiu-se um político brasileiro, exclamando: "Façamos aabolição antes que os escravos a façam..." Era o medo da "vingançabárbara e selvagem", de Nabuco, tomando forma jurídica: a Lei Áurea.. .

CAUSAS PRINCIPAIS QUE DETERMINARAM A ABOLIÇÃO DOTRABALHO ESCRAVO NO BRASIL

Causas Externas Causas Internas

1) Pressão política e militar daInglaterra;

2) Formação de um mercado pro-dutor de açúcar em outrasáreas, especialmente as Anti-lhas;

3) Aparecimento de um sucedâneodo açúcar de cana e sua aceita-ção no mercado europeu;

4) Política migratória ofensivados países europeus em facedos seus excedentes populacio-nais;

5) Interesse das nações capitalis-tas, especialmente a Inglaterra,de criarem um mercado consu-midor interno africano, fatoque motivou, anteriormente, aextinção do tráfico de escravosno Brasil;

6) Necessidade, por parte dosmanufatureiros ingleses de am-pliar o mercado consumidorbrasileiro.

1) Abolição do tráfico de escravosafricanos com a Lei Eusébio deQueirós;

2) Queda da produção e crise es-trutural da área açucareiranordestina e consequente deca-dência do trabalho escravo;

3) Aparecimento das primeirasindústrias de transformaçãoque exigiam mão-de-obra livre;

4) Mínima rentabilidade do traba-lho escravo em comparação como livre;

5) Surto do café, cuja unidadeprodutora — a fazenda — nãose adaptava ao trabalho escra-vo e se desenvolvia com umadinâmica interna capaz de ab-sorver a mão-de-obra livre, in-clusive a importada;

6) Chegada de imigrantes estran-geiros para os trabalhos agrí-colas ;

7) Campanha abolicionista com aparticipação da intelectualida-de e da classe média;

8) Lutas dos próprios escravos.

(30) Camargo Jr. J. M.: "A Abolição e suas Causas", in "Estudos Afro-Brasilei-ros", R. de Janeiro, 1935, p.169.

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As causas acima não foram enumeradas de acordo com o seu graude importância, pois elas tiveram maior ou menor influência de acordocom os elementos circunstanciais de tempo e espaço. Temos de vê-las,portanto, como um conjunto dinâmico que se interpenetrava, muitas vezesgerando conflitos agudos, outras vezes impulsionando movimento "legais"dentro dos quadros institucionais vigentes.

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Escravos nos Movimentos Políticos

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A participação dos escravos nos movimentos políticos que ocorreramdurante a Colónia e o Império foi decorrência lógica da situação em que ise encontravam. Na base da pirâmide social, a classe escrava constituíaa força produtiva mais importante. Se, demograficamente, pesava demaneira esmagadora, tinha, no entanto, contra si, a alienação em que 'se encontrava, alienação que — no caso particular do escravo — tem 'características específicas que devem ser analisadas.

Em primeiro lugar, dentro do conjunto da sociedade, não era aclasse que estava ligada aos meios de produção mais avançados. Pelocontrário. Era fator de atraso do próprio processo de desenvolvimentodesses meios. Por outro lado, ele não apenas produzia mercadorias den-tro de um sistema que dificultava o desenvolvimento das forças produ- 'tivias, mas se constituía, também, em mercadoria, em objeto de troca. 'Era, portanto, força produtiva no seu sentido global, dentro da socieda-de escravista, mas, ao mesmo tempo, do ponto de vista do senhor de >escravos, simples meio de produção; equiparado aos animais de traçãoque eram utilizados no funcionamento dos engenhos e em outros setoresde atividade económica. < " > Não por acaso era considerado simples coisa,pois, dentro do regime escravista, não passava, efetivamente, de uminstrumento. Não vendia a sua força de trabalho, mas era considerado 'pelo senhor de escravos um simples instrumento de trabalho, de vez que o 'direito de propriedade se estendia à própria pessoa do escravo. Transi-tava como mercadoria, já que "a compra e venda dos escravos é, tam-bém, quanto à sua fornia, compra e venda de mercadorias".(2>

(1) "O escravo não vendia a sua força de trabalho ao possuidor de escravos,assim como o boi não vende o produto do seu trabalho ao camponês. O escravo évendido, com sua força de trabalho de uma vez para sempre a seu proprietário Euma mercadoria que pode passar das mãos de um proprietário para as de outro. (Ele mesmo é uma mercadoria, mas sua força de trabalho não é sua mercadoria."— (Mane, K.: "Trabalho Assalariado e Capital", Rio 1954 p. 22) — "A força de <trabalho se confunde com a pessoa do escravo no transcurso de toda sua existência jfutura. Náo se pode assim computar nela, pelo menos com rigor suficiente, o esforçodespendido na produção das diferentes mercadorias, cada uma de per si. (Prado Jr.Caio: "Esboço dos Fundamentos da Teoria Económica", S. Paulo, 1957, p. 41).

(2) Marx, K. "El Capital", tomo 2 p. 41.

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Sem falarmos na situação material em que viviam e a que estavamsubmetidos através de diversos métodos de coerção social, temos de aten-tar — para compreendermos a sua participação em movimentos que sur-giram conduzidos por elementos das outras classes sociais — nas restri-ções políticas totais a que estavam sujeitos. A economia escravista, mon-tada no Brasil desde os primórdios da colonização, considerou, como nãopodia deixar de ser, o escravo um simples objeto. Havia, nas Ordena-ções Manoelinas, um título regulando "De como se podem rejeitar Es-cravos ou Bestas por Doença ou Manqueira". Dizia Perdigão Malheirono seu insubstituível trabalho sobre a escravidão no Brasil, que "nemlei alguma contemplava o escravo no número de cidadões ainda quandonascidos no Império, para qualquer efeito em relação à vida social, polí-tica ou pública. Apenas os libertos quando cidadões brasileiros gozamde certos direitos políticos e podem exercer alguns cargos públicos". <3 )

Na Constituinte de 1823 são sumariamente excluídos do direito devoto, juntamente com os criados de servir, os jornaleiros, os caixeirosde casas comerciais, enfim juntamente com todas as pessoas que tinhamrendimentos líquidos inferiores ao valor de 150 alqueires de farinha demandioca. Rara os eleitores de segundo grau, que escolhiam os deputadose senadores, exigia-se um rendimento de 250 alqueires e, finalmente, paraque o cidadão fosse candidato a deputado se exigia a soma de 500 alquei-res (1.000 para senadores), além da qualidade de proprietário, foreiroou rendeiro por longo prazo, de bens de raiz ou fábrica de qualquer in-

(3) Malheiro, P. "A Escravidão no Brasil", p. 17. Ainda para ilustração decomo vivia o escravo durante o regime escravista, transcrevemos este trecho de Ro-drigues de Carvalho sobre o assunto: "Agora vejamos o que concretizava em lei noBrasil, deste Brasil já separado da Metrópole, portanto à sombra do "pendão auri-verde".

"Os juizes de Paz n&o podem açoitar escravo algum, sem que primeiramente otenham devidamente processado, e sentenciado com audiência do senhor" (Aviso de16.6.1837).

"Não pode o escravo dar queixa contra pessoa alguma, ainda que seja contraaquele que o quer 'conduzir à escravidade" (Acórdão da Relação do Rio de 1-4-1879).

"Não pode o escravo ser considerado pessoa miserável para que em seu lugaro Promotor público possa agir contra quem o ofenda criminalmente" (Aviso de2-4.1853). Suprema irrisão!

Sem termos que citar as disposições do Cód. Penal de 1830, prosspgue o autorque estamos citando — basta para se fazer uma ideia do conceito em que era tidoo escravo perante a lei, transcrever o seguinte para instruir uma condenação:

"Na sentença em que for o escrava condenado a açoites, deve o juiz que a pro-ferir, também condená-lo a trazer um ferro pelo tempo e maneira que for designadoconforme o artigo 60 do Cód. Criminal" (Paula Souza, Cód, do Proc. Criminal).

"A mancebia entre senhor e escrava não lhe minora a condição de escravo, nemos próprios filhos do senhor são libertos" (Acórdão do Trib. de Ouro Preto, "Direito",vol. 8) .

"Se for condenado a açoites, libertando-se não sofre aquele castigo mas fica pre-so" ("Direito" vol. 7 ) .

"Por ter morto um administrador foi o escravo de menor idade condenado àmorte" (Acórdão do Tribunal de Porto Alegre, em 1876, vol. 7) .

"O escravo fugido não poda pleitear a sua liberdade, ainda mesmo com indeni-zação". (Aviso do Ministro da Agricultura — "Direito", vol. 25. (Carvalho Rodri-gues de: "Aspectos da Influência Africana na Formação Social do Brasil", i» "NovosEstudos Afro-BrasSleiros", Rio, 1937, p. 27.

dústria. < 3 A > Os escravos, como é óbvio e já ficou dito linhas acima, nãoeram considerados brasileiros; posteriormente passaram a ser brasilei-ros, mas não cidadãos, fato que levou Joaquim Nabuco, na. análise quefez do regime, a mostrar a sua ilegalidade dentro do próprio formalismodo Direito da época. <3B>

Os mecanismos de defesa da sociedade escravista estabeleceram umsistema de peneiramento social no processo eleitoral capaz de preservaras suas bases de qualquer possível abalo. O Estado era uma sólida cara-paça que — através de elementos o13 pressão — mantinha o status quo,escudado em um conjunto de leis completamente reflexas do regime esrcravista.

Segundo depoimento datado de 1835 — documento aliás que é peçado processo de repressão à insurreição de escravos ocorrida naquele ano,em Salvador — não "gozavam de direito de cidadão, nem privilégio deestrangeiro".(4)

Tal situação levou a que os elementos cativos desde muito cedo par-ticipassem como aliados e muitas vezes como elementos destacados e atédecisivos nas lutas, levantamentos e tentativas de sedição que diversascamadas sociais realizaram ou organizaram durante o nosso desenvolvi-mento histórico. Esses movimentos se amiudavam e aprofundavamà medida que certos setores dessas camadas adquiriam relativo po-der económico. Tal diferenciação era decorrência do desenvolvimento

(3A) Prado Júnior, C.: "Evolução Política do Brasil e outros ensaios" S.Paulo, 1957, p. 53.

(3B) "Se os escravos fossem cidadões brasileiros, a lei particular do Brasilpoderia talvez, e em tese, aplicar.se a eles; de fato não poderia, porque, pela Cons-tituição, os cidadões brasileiros não podem ser reduzidos à condição de escravos.Mas os escravos não são cidadões brasileiros, desde que a Constituição só pro-clama tais os ingénuos e os libertos. Não sendo cidadões brasileiros eles ou são es-trangeiros ou não têm pátria, e a lei do Brasil não pode autorizar a es;ravidâo>de unse de outros que não estão sujeitos a ela pelo Direito Internacional no que respeitaã liberdade pessoal. A ilegalidade da escravidão é assim insanável, quer se a con-sidere no texto e nas disposições da lei quer nas forças e na competência da mesmalei". (Nabuco, J.: "O Abolicionismo", Rlo-Sâo Paulo, 1938. 111).

(4) Portaria do Chefe de Policia da Cidade de Salvador, MS do Arquivo Pú-blico do Estado da Bahia. — E mais: "O escravo ainda é uma propriedade comoqualquer outra, na qual o senhor dispõe de um cavalo ou de um móvel". (Nabuco,J.: "O Abolicionismo", Rio-Sãoi Paulo, 1938, p. 39) — "Assim como se dá algumdescanso aos bois, e aos cavalos, assim se dê, e com maior razão por suas ocu-pações, aos escravos". (Antonil, André João: "Cultura e Opulência do Brasil",Bahia, 1950, p. 39).

"No Brasil costumam dizer, que para o escravo são necessários três PPP a sa-ber, pau, pão e pano. E posto que comecem mal, principia no castigo, que é o pau;contudo prouvera a Deus, que tão abundante fosse o comer, e o vestir, como muitasvezes é o castigo dado por qualquer coisa pouco provada, ou levantada; e com ins-trumentos de muito rigor, ainda quando os crimes são certos de que se não usa-nem com os brutos animais, fazendo algum senhor mais caso de um cavalo, quede meia dúzia de escravos: pois o cavalo é servido e tem quem lhe busque capim,tem pano para o suor, e sela, e freio dourado" (Ibid., p. 55).

"O escravo era apenas um instrumento de trabalho, uma máquina; não passívelde qualquer educação intelectual e moral ( . . . ) "Eram conduzidos à condição decoisa como os Irracionais aos quais eram equiparados" (Malheiro, P.: "A Escravi-dão no Brasil", t. II, São Paulo, 1944, p. 27).

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do comércio e do surgimento de algumas indústrias de transforma-ção, empresas que, por seu turno, tinham o seu desenvolvimentoimpedido pela Metrópole, durante a Colónia, e pelos setores que repre-sentavam a agricultura latifundiária-escravista, durante o Império. Acontradição era bem clara e foi notada por muitos estudiosos do tempo :o latifúndio escravista impedia o surgimento de uma burguesia que seformava como crosta, como seu elemento subsidiário e muitas vezes ini-cialmente complementar, mas que, paulatinamente, cristalizava interes-ses próprios e entrava em choque se não frontal pelo menos de flanco,com tal sistema.

No bojo de tal contradição o escravo se encontrava, de um lado, comoforça de trabalho decisiva das formas tradicionais de economia, mas, deoutro, transformava-se progressivamente em negação dessa economia. Eà medida que se integrava no processo d.e transformação dessa forma detrabalho, integração que muitas vezes, ou melhor, quase sempre, não tinhacaráter consciente, criava os elementos para que o processo de alienaçãopassasse a se desenvolver no outro pólo, na classe que, divorciada doprocesso de produção, era quem auferia todos os seus proventos: os se-nhores de. escravos.

Na malograda revolta de Filipe dos Santos, em Minas Gerais, te-mos notícias da participação no movimento de "poitugueses com os seusnegros", que foram presos.(3) No dia 28 de junho de 1720, sete masca-rados, juntamente com muitos pretos, armados, derivaram do morroonde se encontravam, invadindo e depredando diversas casas. Em segui-da, intimaram o governador a não abrir novas casas de fundição.

Em outro movimento, a Inconfidência Mineira — como na revoltade Filipe dos Santos — o papel do escravo como reserva social do acon-tecimento ainda não foi suficientemente estudado e esclarecido. Que osinconfidentes, de um modo geral, eram abolicionistas, não há muitas dú-vidas. <6) Mas, até que ponto esperavam que os escravos aderissem eparticipassem da revolta é que não está bem claro, embora fosse Minas,na época, um dos maiores focos de quilombos do Brasil.

Tiradentes, segundo Norberto de Souza Silva, chegou a possuirtrês escravos nas suas malogradas tentativas de mineração.(7) O certoé que pelo menos uma escrava sabemos ter pertencido ao Alferes In-confidente: a que foi doada por ele a D. Maria do Espírito Santo, órfãmenor a quem Tiradentes deixara grávida "com promessas esponsalí-cias" e de quem tivera uma filha. (8>

(5) Calmem, P.: "História do Brasil", vol. III. Rio. 1961, p. 1019. 1020.(61 Ver o trabalho de Afonso Arinos de Melo Franco "As Ideias Políticas da

Inconfidência", «n "Terra do Brasil", Rio, 1939.(7) Souza Silva, J. Norberto: "História da Conjuração Mineira", Rio, 1948,

p. 79.(8) Rev. do Inst. Hist. e Geog. de Minas Gerais, vol. III, 1959, "Requerimento

de D. AntOnia Maria do Espirito Santo pedindo devolução da escrava Maria que lhefora doada por Joaquim José da Silva Xavier (O Tiradentes)", p. 426 ss.

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Voltando à nossa análise, temos de constatar que os Autos de De-vassa são o único documento que conhecemos capaz de explicar, em cer-to sentido, este aspecto de um movimento já por si mesmo confuso; ca-paz de explicar como aqueles "duros braços ao trabalho feitos" se compor-taram ao saber que na Capitania se tramava um movimento que tinha,entre outros objetivos, acabar com o instituto da escravidão.

José Alvares Maciel, filho de um capitão-mor de Vila Rica, ao de-por nos autos afirmou que "sendo o número de homens pretos e escra-vatura do país muito superior aos homens brancos, toda e qualquer re-volução que aqueles pressentiam nestes, seria motivo para que eles mes-mos se rebelassem". (9> O receio do filho do capitão-mor era endossadopor Alvarenga Peixoto. Outros inconfidentes viram na escravaria deMinas Gerais àquele tempo organizada em quilombos em diversas zonasda Capitania, material humano e social muito importante. O SargentoLuís Vaz de Toledo propunha que os escravos participassem ativamcnteda luta juntamente com eles, pois "um negro com uma carta de alforriaà testa se deixava a morrer".

Como já dissemos, em Minas Gerais, ao tempo em que os inconfi-dentes se reuniam para discutir o movimento, os escravos estavam emfranca ebulição. Tinham-se ligado os da cidade aos quilombos do inte-rior da Capitania. Daí porque, em Sabará, segundo depoimento de BritoMalheiro, "se puseram uns pasquins que dizem que tudo o que fosse ho-mem do Reino havia de morrer e que só ficaria algum velho clérigo e queisto foi posto em nome dos quilombolas". Em seguida afirmava que "jáse ouvia das pessoas da última classe de gente nesta terra, como são osnegros e mulatos, que está para haver um levante" e "que os nacionaisdesta terra o desejavam".

Podemos ligar estes fatos ao detalhe dos pardos, mesmo (aqueles"mestres do ofício", "músicos" e "afazendados com cscravaturas", até1753 não poderem andar de espada à cinta, somente conseguindo na-quele ano permissão para tal. É que a simples cor parda já constituíaameaça para os senhores de escravos. <10)

Mas na Inconfidência Mineira, qual a posição de Tiradentes emrelação não somente à abolição mas também à participação dos escravosno movimento de que ele foi incontestavelmente o líder? Até que pontovislumbrou no escravo um elemento aproveitável à vitória das ideiasdos inconfidentes? É possível que tenha visto também, como o SargentoLuís Vaz de Toledo, nos escravos, uma reserva de grande importânciapara a vitória do movimento. Mas, tudo não passa de mera suposição,como, aliás, a maioria das conclusões sobre a Inconfidência Mineira, mo-vimento mais estudado pelo seu simbolismo do que pelos fatos que apre-senta ao historiador. Tanto assim que é apresentado como o ponto cul-minante das lutas pela nossa independência política, quando a chamada

(9) Melo Franco, Afonso Arinos de — "Terra do Brasil", Rio, 1939, p. 78.(10) "Petição dos Homens Pardos livres da Capitania pedindo para usarem

Espada à Cinta" — Revista do Inst. Hist. e Geog. de Minas Gerias, vol. VII, 1959.p. 425 ss.

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revolta dos alfaiates, na Bahia, tem um significado muito mais profun-do não apenas do ponto de vista de organização dos insurgentes mas,também, pelo seu programa, pelas suas metas a alcançar. Foi a mais avan-çada tentativa de quantas foram realizadas, antes de obtermos a nossaemancipação de Portugal. Por isto mesmo é atacada por muitos histo-riadores, como é o caso de Varnhagen. O autor da História, Geral doBrasil, ao analisar a Inconfidência Baiana, depois de chamá-la "um arre-medo das cenas de horror que a França e principalmente a bela São Do-mingos acabavam de presenciar", conclui que "os conspiradores que sechegaram a descobrir não subiram a quarenta: nenhum homem de ta-lento, nem de consideração; e quase todos libertos ou escravos, pelamaior parte pardos". < u >

Os homens de valia,, de fato, não participavam desse movimento,que foi mais da patuléia e dos homens de poucas posses, homens que,muitas vezes, tinham o seu status social ligados à sua cor. Os mulatos,os pardos que participaram da Inconfidência Baiana foram o elementoque formou o grosso da insurreição. Na capilaridade quase inexistenteda sociedade da época, transpiravam para a superfície esses movimen-tos, movimentos que tinham como desiderato modificar ou pelo menosatenuar as condições que eram impostas pelo estatuto colonial. Por isto,muitos dos elementos que formavam o entourage de dominação lusa queaqui se encastelou, sentiram as arestas que a defasagem existente entrea Metrópole e a Colónia criava. Ao mesmo tempo compreendiam queaqueles elementos arrolados na categoria de patuléia e que, por isto mes-mo, se encontravam nas camadas mais baixas, eram a estrutura huma-na desses .movimentos. Pandiá Calógeras, a seu modo, assinalou o fatoquando escreveu que "nesse assalto contra o instituto servil, desempe-nhavam papel os eternos ódios dos que nada possuem contra os que têmriqueza; a revolta dos pobres, ou do popolo minuto, contra os potenta-dos, ou o popolo grosso, das Repúblicas italianas da Renascença. E sobreos herdeiros de uma situação velha já de séculos, recaía o espírito devindita de um santo furor, ansioso por destruir a instituição." (11'A)

José Venâncio de Seixas, quando chegou à Bahia na qualidade deprovedor da Casa da Moeda, constatou "o perigo em que estiveram oshabitantes ( . . . ) com uma associação sediosa de mulatos, que não podiadeixar de ter perniciosas consequências, sem embargo de ser projetadapor pessoas insignificantes; porque para se fortificarem lhes bastavamos escravos domésticos inimigos irreconcliáves dos seus senhores, cujojulgo por mais leve que seja lhes é insuportável." Prosseguindo dizia:"Foi Deus servido descobrir por um modo bem singular a ponta destameada, ao fim da qual julgo se tem chegado, sem que nela se ache em-baraçada pessoa de estado decente". (12)

De outro lado, as ideias liberais da França encontravam fácil gua-rida na Bahia, consequência das condições da Capitania que vinha pas-

(11) Vambagen: "História Geral do Brasi'.", tomo V. S. Paulo, p. 25-26.(11-A) Calógeras, J. P. — Formação Histórica do Brasil — S. Paulo, 1945,IR

Anais da Biblioteca Nacional: vol. 37 — p. 460-61.

sando por um longo processo de efervescência política, como decorrên-cia da crise crónica da agricultura atrasada da região e cedo se trans-formaria cm arma ideológica, manejada pelos intelectuais, c aglutina-dora das camadas mais empobrecidas da população. Mas, se é exato queessas ideias se difundiram muito mais entre os letrados, o certo è que,de qualquer forma, deixaram ressonâncias — pelo menos indiretas —entre as camadas mais oprimidas, conforme se pode verificar nos Autosda Devassa, (12-A)

Já em 1678, nas "Cartas do Senado", remetidas para Portugal, lê-se que "fazemos manifesto a Vossa Alteza do miserável estado deste povopelas muitas cargas e opressões que cm tempo tão cansado carregamsobre a fraqueza de seus tenuíssimos cabedais. |13) Em consequência detal situação — são ainda as "Cartas do Senado" que nos informam —os moradores da Bahia, algumas vezes faziam "tumultos", como ocorreuquando da nomeação de Bartolomeu Fragoso para assistente de LuísGomes de Mata Correia. (141

A situação foi-se agravando progressivamente com o passar do tem-po, até a época da Revolta dos Alfaiates. Os membros da intelectuali-dade reuniam-se, segundo Aluysio Sampaio, com a finalidade de "propa-gar os livros dos encidopedistas e os êxitos da Revolução Francesa". ( ' r > )

A sociedade agrupou no seu seio os elementos que desejavam lutar con-tra a dominação portuguesa, desenvolvendo atividade clandestina no sen-tido de conduzir o povo a combater o estado de coisas existente. Essesintelectuais, dentre os quais vale destacar os nomes de Agostinho Gomes,Cipriano Barata, os tenentes José de Oliveira Borges e Hermógenes deAguiar (que foi absolvido e morreu como Marquês de Aguiar) propa-gavam, nos quadros daquela sociedade literária, ideias libertárias. Masnão foi tal organização que impulsionou o movimento. O pensamento deuma saída revolucionária para a situação surgiu exatamente de outrocomponente da conjuração: artesãos, soldados, alfaiates, sapateiros, ex-escravos e escravos. A posição de Cipriano Barata, que participava dasociedade literária, foi cética e reticente quanto à possibilidade de umasolução violenta. Ao ser procurado por Manuel Faustino dos Santos paraparticipar do levante, afirmou que "deixasse de semelhante projeto por-que a maior parte dos habitantes vivia debaixo da disciplina de umcativeiro e não tinha capacidade para tal ação; e o melhor era. espe-rar que viessem os franceses os quais andavam nessa mesma diligênciana Europa e logo cá chegavam.(16) "Francisco Moniz Barreto, a quemse atribui a letra do hino dos inconfidentes, também optava pela vinda

336.(12)

60

(12-A) "Anais do Arquivo Público da Bahia", vols. XXXV, XXXVI: "Autosde Devassa do Levantamento e Sedição Intentado» na Bahia em 1798", ImprensaOficial da Bahia, 1959.

(13) "Cartas do Senado (1673 — 1683), 2» vol. Bahia s/d, p. 39.(14) Idem, Idem, p. 54.(15) Sampaio, A.: "Inconfidência Baiana de 1798", i» "Seiva", n» 4, setembro

de 1951, Salvador, Bahia.(16) Anais

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dos franceses.<17) Não era outra, também, a posição de Hermógenes deAguiar. «I8>

Se é verdade que esses intelectuais desejavam acabar com o estatutocolonial ou supunham fosse possível atenuar a situação em que se en-contrava a Capitania — e neste particular exerceram papel que deve serdestacado — o certo, porém, é que recuaram, tergiversaram, vacilaramà medida que os acontecimentos se precipitavam e tomavam caráter maisradical e a ele aderiram os artesãos, alfaiates, sapateiros, ex-escravos eescravos. Enquanto os intelectuais teorizavam sobre um possível papellibertador dos franceses, a ala mais popular do movimento, sem muitoteorizar, apresentava uma posição programática para a ação imediatacontra o estatuto colonial. Será por tudo isto, entre as camadas maisempobrecidas da população de Salvador que o movimento encontrarábase social e irá consolidar-se política e militarmente. Queriam a eman-cipação do Brasil do jugo português, um regime de igualdade para todos,onde não mais houvesse preconceito de classe ou raça e cada um fossejulgado pelo seu merecimento. <19) Manuel Faustino dos Santos, ao serperguntado sobre os objetivos do levante, não teve dúvidas em afirmarque "era para reduzir o continente do Brasil a um governo de igualda-de, entrando nele brancos, pardos e pretos sem distinção de cores, so-mente de capacidade de governar, saqueando os cofres públicos e redu-zindo todos a um só para dele se pagar as tropas e assistir as necessá-rias despesas do Estados." <2°>

(17) Muitos historiadores, entre eles Caio Prado Júnior, exageraram a posi-ção de Cipriano Barata na Conspiração dos Alfaiates. Afirma o conhecido historia-dor "ao lado destes setores populares, aparecem alguns intelectuais. Entre eles, Ci-priano Barata". (Evolução Política do Brasil e outros ensaios. (2a edição). S. Paulo,1957, p. 210). Os fatos se encarregam de desmentir o que foi escrito acima. Cipria-no Barata foi implicado nos acontecimentos que estamos analisando, quando o te-mor das autoridades via olhos e atividades subversivas por toda parte. Mas nele nãose envolveu. Não mostrou, mesmo, grande simpatia pelo movimento dos artesãos.Os seus depoimentos perante as autoridades e outros documentos apreendidos dês.mentem cabalmente a sua participação.

Durante a Devassa, ao ser inquirido, declarou, sobre a distribuição de papéissediciosos que "em certa ocasião depois que se espalharam os papeis sediciosos e liber-tinos no mês de agosto ( . . . ) ele se lemibra de se haver justamente indignado contratodos aqueles que estavam em semelhante artefato, isto na casa do dito GonçaloGonçalves onde tinha ido saber de uma obra que lhe encomendara, já quando sedespedia dele". ( . . . ) "A opinião que costumava com facilidade formar, sobre oEstado Político da Europa, sem aplicação ao continente do Brasil, mal ouvidos epior interpretados por alguns desses pardos, interessados na revolução, é que temresultado nas imputações que lhe têm feito". Mas, dando xeque.mate, citaremos tre-cho da carta de Cipriano Barata a um amigo, onde diz: "Temos escapado degrande desastre da rebelião de «scravos, mulatos e negros; ainda o sangue de todose não axjueceu. visto o perigo a que temos andado expostos'1. ( . . . ) "Meu amigo,caute'a com essa canalha africana...) (Anais.. . I vol. p. 184) — Não apenas estesfatos, por si sós muito conclusivos desmentem a sua participação na revolta. Osvotos de fidelidade "que sempre prestou e presta a sua Real Majestade", conformedeclarou, são provas irrefutáveis de que a sua atuação nesses eventos não ficoucomprovada. Pelo contrário.

(18) Anais.(19) Anais.(20) Anais.

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A mesma coisa diziam os papéis que foram colocados na cidade. < 2 | >Em um dos manuscritos apreendidos pelas autoridades, lê-se: "ó vóspovo (ilegível) sereis livres para gozares (sic) dos bens e efeitos da liber-dade ; ó vós Povos que viveis flagelados com o pleno poder do Inimigo co-roado, esse mesmo rei que vós criastes; esse mesmo rei tirano é quemse firma no trono para vos vexar, para vos roubar e para vos maltratar.

"Homens, o tempo é chegado Para a vossa ressurreição, sim pararessuscitareis (sic) do abismo da escravidão, para levantareis (sic) aSagrada bandeira da Liberdade."

"A Liberdade consiste no estado feliz, no estado livre do abatimen-to ; a liberdade é a doçura da vida, o descanso do homem com igual para-lelo de uns para outros, a Liberdade é o repouso, a bem-aventurança domundo." <22>

A ação revolucionária prosseguia a sua marcha, enquanto os inte-lectuais na sua maioria discutiam teoria política ou aguardavam que aFrança viesse em socorro do Brasil.

Isto, porém, não quer dizer que a componente popular dos inconfi-dentes baianos não procurasse penosamente estabelecer uma base teóricapara o movimento. Sendo quase todos da condição chamada humilde,tinham dificultades em apreender o ideário que vinha expresso numa lín-gua para eles desconhecida: a francesa. Por isto mesmo, sempre que pos-sível, diligenciavam a tradução de obras que lhes vinham do estrangeiro.Por esta razão, mantinham ligações estreitas com a França, dali rece-bendo livros, folhetos e possivelmente apoio para o movimento. Oficiaisde navios franceses que aportavam, comunicavam-se com os conspirado-res. Tal movimento político clandestino não era desconhecido pelas auto-ridades da Metrópole. Em 1792 recomendavam ao governo da Colóniavigilância severa ao navio francês Lê Diligent, que vinha à procura doexplorador desaparecido La Pérouse, mas — segundo pensavam as auto-ridades lusas — tinha o objetivo real de disseminar entre nós "o espí-rito de liberdade que reinava na França." Otávio Tarquínio de Souzaafirma que a mesma Carta Régia que denunciava as intenções do LêDiligent informava que a Constituição Francesa de 1791 já havia sidotraduzida para o espanhol e o português.(23) A aludida sociedade secre-ta — Cavaleiros da Luz — que se reunia provavelmente em casa de JoãoLadislau de Figueiredo e Melo como inúmeras outras, pregava as obrasde Voltaire e os seus membros tinham entre os seus livros os de Mably,Reynal, Condorcet, liam Adam Smith e discutiam as ideias dos enciclo-pedistas.

Inúmeros "papéis libertinos" chegavam para os conspiradores baia-nos como chegavam, também, para o Rio de Janeiro, onde, em 1794, opadre José de Oliveira dizia que "meio Rio de Janeiro estava perdido e

(21) Anais.(22) Anais.(23) Tarquinio de Souza, O.: "O Meio Intelectual na Época da Independência".

"Literatura", n» l, Rio, setembro de 1946, p. 4 BB.

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lidertino:" (24) Os intelectuais que eram ligados às ideias liberais eramchamados "franceses."

A conspiração, porém, não ganhava a amplitude exigida para ven-cer, pois a intelectualidade que a ela se engajara não se sentia encora-jada e decidida a se apoiar nas camadas sociais mais descontentes, emconsequência da posição económica que esses letrados ocupavam na es-trutura da sociedade colonial. Vacilavam em dar base mais radical àrevolta. Em consequência dessa posição expectante a Inconfidência Baia-na como que estaciona, surgindo, em seguida, as primeiras delaçõesacompanhadas de prisões. Diante desta moldura conturbada é que come-çam a se projetar os seus líderes populares. Luís Gonzaga das Virgensé o primeiro que se destaca com invulgar mérito. Descontente com aorientação que vinham dando ã revolta, inicia um amplo movimento deagitação e difusão dos manuscritos que continham o programa incon-fidente. Aluysio Sampaio informa — e os manuscritos apreendidos pe-las autoridades confirmam — que o programa do movimento era: 1.°)Independência da Capitania; 2.°) governo republicano; 3.°) liberdade decomércio e abertura de todos os portos "mormente à França", 4.°)cada soldado terá soldo de 200 réis por dia; 5.°) libertação dosescravos.

Já haviam sido tomadas, porém, logo após as primeiras delações,as providências necessárias para que a revolta fosse sufocada e os seuscabeças encarcerados. O autor dos manuscritos — Luís Gonzaga das Vir-gens — é caçado pela polícia, sendo preso finalmente a 24 de agosto.Isto vem precipitar os acontecimentos e obriga os inconfidentes a medi-das de emergência. <25>. Tentam os seus companheiros um ato desespe-rado a fim de arrancá-lo do cárcere. Fracassada a tentativa, seguem-senovas delações. Afastam-se os intelectuais praticamente do movimento.Sua direção passa a ser exercida pelos líderes saídos das camadas maisbaixas e oprimidas da população da Capitania: artesãos, ex-escravos, es-cravos. O governo iniciou em seguida brutal repressão contra os impli-cados na conspiração. Detém inúmeros dos seus participantes ou simplessuspeitos. Todos passam pela peneira fina das autoridades, como é ocaso de Cipriano Barata.

Mas, o que nos interessa aqui não é fazer uma história da Inconfi-dência Baiana. Nosso objetivo, dentro dos planos do presente trabalho,é ver o grau d,e participação dos escravos nos eventos.

(24) Tarquinio de Souza, O.: "Libertinos do Rio de Janeiro", t« "Folha da Ma.nhã", S. Paulo, 19-2-52.

(25) "Determinando o ajuntamento no campo do diqu« do Desterro, para anoite de vinte e cinco de agosto passado procurou ele declarante ao dito José Rai-mundo Barata, com quem tinha amizade por lhe ter feito obras do ofício de alfaia-te e a seus irmãos e pela prática, já expressada que com ele tivera a respeito da 11.berdade lhe expôs o projetado levantamento com todas as circunstâncias, que ele de-clarante sabia e as mesmas que já expressou dizendo-lhe mais que por se ter presoum dos cabeças do dito levante, que era o soldado Luís Gonzaga, se pretendia na-quela noite passar revista a gente, que havia cio partido, a fim de desencadear olevante, que estava destinado para mais vagar . . . " (Anais. vol. í, p. 16).

64O Escravo Negro e o Sertão

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"Cambondo, ,Azuela engoma!Quero vê couro zoa! (Omúlu vai pró sertãobexiga vai espalha"

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(Canto de caivísmblé da BaMa)

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Os estudiosos do problema do negro em nosso país estabeleceram 'um estereótipo que vem sendo constantemente repetido sem que se faça 'uma análise crítica do seu conteúdo: o da pouca ou nenhuma influênciacultural e étnica do negro nas áreas convencionalmente chamadas "de (sertão" do Leste, Nordeste e Norte do Brasil. Excluindo-se o caso de Mi-nas Gerais, onde essa influência foi visível a olho nu e não exigiu pes-quisas que demandassem esforços continuados e profundos, a maioriados estudiosos que se ocupa de assunto tão importante para a compre- 'ensão de nossa formação histórica, cultural e etnográfica, tem passadopor cima de um problema que precisa ser reexaminado criticamente a ,partir de sua base, pois esses estudiosos continuam confinando a in- (fluência idas culturas africanas e da raça negra ao debrum litorâneo. '

Não que estejamos defendendo a tese de uma influência do negronessas regiões, idêntica à que existe no litoral, onde os maiores focosde trabalho escravo se estratificaram; não que estejamos tentando criarum novo estereótipo para substituir o primeiro. Acenamos apenas de gmodo cauteloso para a importância do assunto a fim de que novos estu- ,dos, novas pesquisas venham mostrar que tanto no campo da Antro-pologia como no da Etnografia, da História e da Sociologia, há neces-sidade de uma revisão de conceitos capaz de repor o problema em bases 'científicas. Existem na área chamada "de sertão", das regiões a que i«nos referimos acima, uma parcela de reminiscências negras muito maior ido que a que foi inventariada até o momento. O que vamos apresentar, ànas linhas que se seguem, são simples notas, sujeitas a revisão posterior, ,,a novas interpretações, na medida em que um maior conhecimento doproblema nos fornecer os elementos conceptuais para tal. O cuidado

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que temos, ao apresentar estas simples notas, poderá ser explicado setomarmos em consideração o fato de que quase nada foi feito, até o mo-mento, no particular.

O Prof. Artur Ramos teve oportunidade, em carta a nós dirigidaem 1946, época em que residíamos na cidade de Juazeiro (Bahia), deafirmar que "é possível, é quase certo que a influência negra tenha sido(na região do São Francisco) maior do que se pensa, podendo mesmoter sobrevivido em certos costumes, inclusive traços de cultura mate-rial". "> De fato, ninguém que residiu por algum tempo numa comuni-dade de uma dessas regiões, deixou de notar a influência cultural e étni-ca do inegro, embora de forma diluída, mas denunciadora de sua pre-sença. Quando estivemos em Juazeiro, tivemos oportunidade de assistira inúmeras sessões de candomblé, em dois terreiros locais, um dos quaisde propriedade de conhecido político, conservava o ritual Gege-Nagô.Além disso, o prestígio rrue esses terreiros desfrutavam e os ataques quealgumas vezes sofriam do órgão da imprensa local "O Juazeiro", mos-tram o grau de importância que a opinião da comunidade dava a essaspráticas. O próprio futebol local refletia essa contaminação cultural eouando havia jogo de maior importância, era comum encontrarem-sedespachos nas portas dos jogadores que o adversário queria alijar dapugna ou ver anulados na sua eficiência. Nos autos do Congo, realizadosanualmente naquela cidade, a influência africana era visível, fato quese repetia nas "receitas" de medicina popular. Até na literatura decordel encontramos essa influência como no folheto "A Negra de umPeito Só".

Em outras regiões do interior da Bahia a influência do negro étambém visível, não somente através da pigmentação dos seus habitan-tes, mas estratificada em reminiscências folclóricas. Em Jacobina, na-quele Estado, há a "Festa do Quilombo" e uma povoação chamava-seaté há pouco tempo "Quilombo dos Negros". Os "Encamizados", no Mu-nicípio de Paratinga, também Estado da Bahia, localizado às margensdo Rio São Francisco, auto popular que se realiza durante as festas doDivino Espírito Santo e Santo António, deve ser de origem africana oupelo menos influenciado pelos negros da região. A predominância de-mográfica quase esmagadora de negros na Vila de Mangai, tambémMunicípio de Paratinga, poderá ser compreendida se partirmos da hipó-tese de ter sido aquele lugarejo um mocambo de negros fugidos; isto, noentanto, deverá ser assunto de pesquisas especiais.

Ainda na Zona do São Francisco, a lenda no Negro D'Água é umareminiscência folclórica de provável origem ou influência evidente dos

(1) A carta está datada de 15 de março de 1946. Aliás, é interessante notarque quando o próprio Artur Ramos, passou, na qualidade de médi<v> legista, pelaregião do São Francisco, sobre cuja viagem escreveu um survey (in AculturaçãoNegra no Brasil", S. Paulo, 1942), o assunto náo foi ventilado, íato observado poste-riormente, pelo próprio Artur Ramos, na missiva a que noa referimos.

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negros que habitavam a região. Segundo essa lenda, o "Negro D'Água"possui "cabeça de cuia", é completamente glabro, tem "pés chatos" (depalmípede) e corpo de atleta. Gosta de tabaco ao ponto de abrandar-secom a oferta de "fumo de corda". Costuma prender nos "fiapos" do rioe nos alagadiços as canoas dos pescadores, soltando-as quando a vítimajoga fumo na margem. Segundo nos foi transmitido por um "barran-queiro" do Rio São. Francisco, há três espécies de "Negro D'Água" —o preto, o vermelho e o barbado. Esse último possui um olho somente,no meio da testa. Assalta as moças que tomam banho nas margens edeflora-as. Quando moça solteira aparece grávida na região o povo dizentre irónico e crédulo: "Está grávida do "Negro D'Água'". É, também,muito vingativo. <2> Em Paratinga há a "Cova do Nego" onde — se-gundo acreditavam os moradores locais — ele mora. Ainda em Para-tinga, durante as festas de "Reisados", um colaborador nosso recolheuo seguinte canto:

"Quem arranca mandiocaé nego nuQuem tinguija a lagoaé jaburu". (3)

Como vemos, o negro está presente no folclore da região do SãoFrancisco. Isso porque ele foi introduzido como escravo em algumas fa-zendas ou entrou nas matas, nas caatingas e nos morros1 com fugitivo,como quilombola. Quando o legendário monge que fundou o Santuáriodo Bom Jesus da Lapa chegou ao local onde ele hoje se encontra, divi-sou em ítaberaba currais de vastas proporções que eram cuidados "poralguns portugueses e escravos da África." (4) Ainda na região do BomJesus da Lapa — informa o mesmo autor — existiam distantes da grutauns quinhentos metros, umas quantas choças de índios e a uma léguauns currais de gados do Conde da Ponte, aos cuidados de portuguesese africanos." A influência africana nessa região do São Francisco po-derá ser mais claramente compreendida através do fato que vem narradopelo Padre Turíbio Vilamva Segura, no livro a que nós já nos repor-

ei Na zona de Paratinga (Bahia) o nosso colaborador Expedito de AlmeidaNascimento recolheu a seguinte estaria sobre a vingança do "Nego D'água"|: "Umpescador voltava à noitinha para casa carregando uma abóbora na cabeça, quan-do ouviu um gemido de uma moita de "aticum (araticum) cagão." Viu, atrás damoita, um negro enorme com o dente inchado. O pescador reconheceu imediatamen-te ser o "Nego D'Agua" pelos pés de pato. Aí jogou a abóbora na cara do negro ecorreu para sua casa. O "Nego D'Agua" deu um uivo tremendo e caiu na água. Opescador porém, sabendo da Índole vingativa que o "Nego D'Agua" possui, mudoude caminho, nunca mais fazendo o mesmo trajeto. Multo tempo depois, o "NegoD'Agua" abriu uma espécie de túnel do rio até a casa do pescador. Um dia, quandoo pescador chegou em casa às mesmas horas de sempre, a terra afundou com e!ee o "Nego D'Agua" o carregou, devorando-o em seguida."

(3) Tinguijar é tnchê.la de tingui, a fim de matar os peixes. Ei interessantenotar como. na quadra que transcrevemos, o neigro está enquadrado no processo pro-dutivo, como se fosse o encarregado das fainas da região.

(4) Vilanova Segura, T. "Bom Jesus da Lapa" — Resenha Histórica, S. P.s/d,p.34.

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tamos, sobre os festejos que os ex-cravos realizaram no Santuário doBom Jesus da Lapa, por ocasião da assinatura da chamada Lei Áurea.Segundo esse sacerdote, "vindos de todo o sertão", em "imensa multi-dão" reuniram-se ali "para dar graças ao Bom Jesus pelo benefício daalforria, demorando oito dias, cantando benditos religiosos, rezando, dan-do vivas ao Gabinete João Alfredo, tocando maracaxás, tambores, pan-deiros, cabaças com milho etc", (5)

O autor que estamos acompanhando afirma, ainda, que os negros dosertão conheciam o Bom Jesus da Lapa pelo nome de "Lenibé-Furáme",segundo lhe foi transmitido por Frei Tomás, franciscano que estudava ainfluências das religiões negras na região. (6)

Em Curaçá, Município que se situa igualmente às margens do RioSão Francisco, apesar de não podermos reproduzir de memória, as infor-mações que nos foram transmitidas e se extraviaram lamentavelmente,a influência africana se faz sentir. Lá também há Congadas, por sinalmuito animadas. A toponímia da região registra um riacho com o nomede Quilombo e um povoado denominado Cacimba. Quando, em 1671, FreiMartin de Nantes esteve naquele Município, teve de, por ordem de Gar-cia D'Avila, marchar contra "o génio de corso" que se havia "apossadode todos os currais dos dois lados do rio num espaço de trinta léguasdepois de terem massacrado os vaqueiros e negros num total de 85." (!)

Ainda na mesma época esse religioso se refere à existência de um mulato,"homem muito espirituoso", que morava com os índios, possuindo "umabela aldeia, quatro léguas acima de Pembu." (8)

Também a região de Canudos, que nos primeiros anos da Re-pública esteve convulsionada com a revolta de António Conselheiro— embora a decadência do local e o quase extermínio da sua antigapopulação façam com que, atualmente, não se possa aferir o grau deinfluências africanas existentes no passado, não ficou imune àinfluência negra. Euclides da Cunha, com aquela acuidade invulgarque o caracterizava quando expunha fatos, teve oportunidade de, indire-tamente, apontar essa influência. Ao descrever os prisioneiros que che-gavam, dizia : "Via-se, então, pela primeira vez, em globo, a populaçãode Canudos : e, à parte as variantes impressas pelo sofrer diversamentesuportado, sobressaía um traço de uniformidade rara nas linhas fisio-nómicas mais características. Raro um branco ou um negro puro. Umar de família em todos, delatando, iniludível, a fusão perfeita das trêsraças."

"Predominava — continua Euclides da Cunha — o pardo lídimo,misto de cafre, português e tapuia — faces bronzeadas, cabelos corre-dios e duros ou anelados, troncos deselegantes; e aqui e ali perfil cor-retíssimo recordando o elemento superior de mestiçagem (!l)

(5) Op. cit.(6) Op. clt nota à p. 199.(7) Mattos, J. — Descrição Histórica e Geográfica do Município de Curaçá,

Juazeiro (BA), 1926, p. 23.

Descrevendo os líderes do movimento, aponta António Beato comomulato espigado, magríssimo, delgado"; Pedrão era cafuz entroncadoe bruto"; Estêvão é descrito como "negro reforçado, disforme, corpotatuado à bala e à faca." Em um dos combates descritos por Euclidesda Cunha, tombou "um curiboca de 12 ou 14 anos." Ainda descreve adegola de um negro realizada pelo Exército. Finalmente, nas fotogra-fias que ilustram o livro, j)ode ser notada a influência negróide entreas prisioneiras, sem muita áificuldade.

A descrição que Euclides da Cunha faz do conjunto dos jagunçosde António Conselheiro coincide, em linhas gerais, com a que TeodoroSampaio faz dos habitantes de um trecho da região são-franciscana.Afirma o escritor baiano: "Vêem-se, entre eles, todos os matizes da popu-lação policrômica de nossa terra. O caboclo legítimo, o negro crioulo,o curiboca, misto de negro e índio, o cabra, o mulato, o branco tostadode cabelos castanhos c às vezes ruivo; as raças do continente e os produ-tos dos seus diversos cruzamentos ali estão representados." <10>

A descrição poderá ser facilmente confirmada por uma simplesviagem através da região. E não apenas no São Francisco: em cidadestão distantes e isoladas como Amarante, no Piauí, até quando lá esti-vemos, realizavam-se congadas anualmente. E a povoação de Almas, nointerior de Goiás, possui uma população quase exclusivamente consti-tuída de negros.

Neste sentido o trabalho do Prof. Alfonso Trujillo Ferrari sobrePotengi, no São Francisco, embora não verse especificamente sobre oassunto, mostra que naquela pequena comunidade do Rio São Francisco ainfluência africana é bem maior do que supõem os sociólogos impressio-nistas. (11)

Nem sempre, porém, essas informações nos vêm através do traba-'hos sistemáticos como o do Prof. Trujillo. Jornalistas também desco-

(8)(9)

. .Op. cit. p. 17-18.Cunha, E. da — "Os Sertões", R. de Janeiro, 1933, p. 608.

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(10) Sampaio T. — "O Rio S. Francisco e a Chapada Diamantina", Bahia,1938, p. 66.

(11) O Prof. Alfonso Trujillo Ferrari identificou em Potengi, comunidade en-cravada na região do São Francisco e por ele pesquisada, "a presença de inúmeraspalavras africanas" enumerando-as: banana, calumbi, dendê, inhame, jiló, maxixe,quiabo, chuchu, mulungu, gambá, marimbondo, minhoca, papagaio, bengala, cacete.cachimbo, cacimba, canga, coringa, mocambo, moringa, quitanda, tanga, angu, carijíca, fubá, mocotó, pamonha, quitute, tutu, vatapá, cachaça, fumo, maconha, berim-bau, bambo, zabumba, cabaço, caxumba, caçula, corcunda, catinga, cochilar, ma-cumba e várias outras. Aponta ainda o uso da palavra quilombo como significandouma "representação folclórica da luta dos negros fugidos com os índios", dançaque, lamentavelmente, o autor não descreve, mas fato que demonstra como o Autodos quilombos está bastante difundido, muito mais do que se pensa ou foi pesqui-sado até o momento. Além disto, o Professor Trujillo Ferrari dá a composição de.mográfica de Potengi pela cor. E a seguinte a proporção cromática: "dos 751moradores de Potengi 71% correspondem à cor parda, isto é, aos "morenos" (emtermos da região) : são produtos da miscigenação de "branco" com "preto" (mula-to), de "branco" com "índio" (mameluco), e de índio com "preto" (cafuzo). Ocontingente branco da população de Potengi é de 18,7% e o preto é de 10%. (Tru-jillo Ferrari, A.: Poteng:-Encruzi'3iada no Vale do São Francisco São Paulo,1961, p. 174).

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brem de vez em quando, como elemento de notícia, restos de ancigos qui-lombos que existiram encravados no sertão. Ivaldo Falconi, por exemplo,em reportagem publicada em 1949, dava-nos notícias de uma comunidadeesquecida no Sudeste de Alagoa Grande, limites com os Municípiosde Campina Grande, Ingá e Alagoa Nova, em um dos contrafortes daSerra de Borborema. Segundo aquele jornalista a região é habitada por"negros que vivem em condições quase primitivas e em estado de rela-tiva segregação racial e cultural." É a chamava comunidade negra deCaiana. Esses negros continuam em relativa segregação, somente en-trando em contacto com os brancos — e habitam zona de predominânciabrancóide — quando na festa do Ano Bom mandam a sua orquestra"uma cutiada a que dão nome de pancadaria, tocar na cidade", í1')"Caiana — prossegue o jornalista — fica localizada em um planalto decerca de quinhentos metros de altitude. Em uma área de seis quilóme-tros de extensão vivem mais ou menos trezentos negros em cerca de cemhabitações. Essas habitações, feitas de barro e cobertas de palha, comapenas uma porta na frente e outra no fundo, não são aglomeradas emfornia de arruamento." Depois de descrever os elementos musicais da co-munidade diz Ivaldo Falconi: "Não resta dúvida, pois, de que a comuni-dade rural dos negros de Caiana tem mais de cem anos e de que muitoantes da Abolição ela já existia. Tudo, por isso, leva a crer que se tratade restos de um quilombo formado muito antes da Abolição, por escra-vos fugidos de engenhos de Campina Grande, Alagoa Nova, Areia eAlagoa Grande. Vivendo em uma serra de acesso difícil e acidentado eao tempo coberta de densa vegetação, longe das estradas, permaneceramali ignorados." (13) "Já depois da Abolição — ainda é Ivaldo Falconiquem depõe — adquiriram os negros com o produto de seu trabalho umavasta área de terra, que era explorada como propriedade coletiva da co-munidade e que hoje se encontra reduzida a uns vinte hectares. Grandeparte de suas terras foram tomadas por proprietários vizinhos que, pormeios violentos, as anexarem às fazendas." (14)

O núcleo da Serra do Talhado, na Paraíba, foi outro aglomeramen-to conhecido pelos moradores das vizinhanças, com os quais mantêm in-tercâmbio. Os negros da Serra do Talhado vivem em quase completasegregação. Isto é favorecido pela quase total falta de comunicações queimpera na região. O jornalista que descreveu esse remanescente deantigo quilombo, refere-se a alguns outros existentes no sertão, inclusi-ve ao que foi descrito por Ivaldo Falconi e a que já nos referimos. Dizo jornalista: "Os chamados negros do Talhado não apresentam sensíveisdiferenças de outros tantos aglomerados do mesmo tipo que se encon-tram em Caiana, Alagoa .Nova, na Quixaba, em Sousa, em Pombal enoutros pontos mesmo de Santa Luzia. Esses núcleos se formaram, pro-vavelmente, com a fuga de antigos escravos à monocultura da cana, no

brejo e à faina da lavoura de algodão da zona sertaneja dos Cariris." (ir"Depois de algumas divagações disparatadas que falam do negro comomembro "da escala inferior da espécie". ( I 6 ) volta o jornalista de "OEstado de S. Paulo" ao aspecto descritivo informando: "o Talhado nãopode, assim, confinar-se a caracteres especialíssimos. Porque ele não émais do que uma grande e longínqua favela,, no seu sentido mais positivo,na concepção mais original e física. Uma grande favela rural, onde a mor-fologia, os costumes, os acidentes e o folclore negros se entremostramcom variantes, apenas; das favelas cariocas. Se há, porventura, uma di-ferença sensível entre os dois "habitats", esta é, ainda, a da segregaçãomais pronunciada nos sertões. Por aqui o grupo racial oposto não foireceptivo à influência dos costumes negros, não participou dos seus ba-tuques, fez-se apenas mero observador do seu folclore; ao passo que noRio o atavio negro teve adeptos." (17)

Apesar dos laivos visivelmente racistas do correspondente de "OEstado de S. Paulo" podemos ver, pela parte informativa do seu tra-balho, que, de fato, os negros da Serra do Talhado são resto de umantigo quilombo.

È toda uma pontuação de influências das culturas africanas queestá solicitando equipes de pesquisadores. Equipes que coletem esse ma-terial que se está perdendo lamentavelmente.

Quem apontou com muita propriedade essa influência agora anali-sada, embora a ela se tenha referido apenas circunstancialmente, foi Ca-pistrano de Abreu. Destacou ele, estudando a história do Ceará, umtrecho do Roteiro do Maranhão e G&yaz pela Capibinia do Piauhy, deautor desconhecido — provavelmente teria sido escrito por João PereiraCaldas, segundo opinião do mesmo Capistrano — onde se lê que "nossertões da Bahia, Pernambuco e Ceará, principalmente pelas vizinhançasdo Rio São Francisco, abundam mulatos e pretos forros. Esta genteperversa, ociosa e inútil pela aversão que tem ao trabalho da agricultura,é muito diferentemente empregada nas fazendas de gado. Tem a esteexercício uma tal inclinação que procura com empenho ser nele ocupa-da, constituindo a sua maior felicidade em merecer algum dia o nomede vaqueiro." ( l s ) Ainda o autor de "Caminhos Antigos e Povoamento doBrasil" se refere à anomalia de no Ceará o negro ter sido mais abun-dante ,no sertão do que no litoral.<w>

Como destacou Capistrano de Abreu, mesmo na rudimentar e rare-feita economia pastoril a presença do negro não foi nula como querem

(12) Falconi, Ivaldo: "Um Quilombo Esquecido", in "Correio das Artes", JoãoPessoa. 1949.(13) Idem, idem.(14) Idem, idem.

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(15) "O Talhado não é mais do que uma longínqua Favela", in "O Estadode S. Paulo", — l de setembro de 1957.

(16) Idem, idem.(17) Idem, idem.(18) Abreu, Capistrano de: "Caminhos Antigos e Povoamento do Brasil",

Rio, 1960, p. 259.(19) Abreu, Capistrano de: "Op. cit. p. 261-62".

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fazer crer certos estudiosos cujo pensamento analisaremos mais adian-te, embora não possamos, por outro lado, dizer que ele preponderou na-quela forma de economia sertaneja. Sua posição é mais de sobra do quede elemento engajado no processo de trabalho. A origem desses mula-tos e negros no sertão só poderá ser encontrada se analisarmos esseselementos como fugitivos. Achamos que Gilberto Freyre se aproximada razão quando vê nas constantes fugas de escravos para o sertão acausa desse pontilhar escuro no interior. Diz ele: "O negro fugido, este,às vezes, conseguia ganhar os sertões, as matas, os quilombos. Sobre tudoos sertões que, por isto mesmo, parecem ter sido marcados com apresença antes de negros altos e magros — os que, segundo os anún-cios de jornais, mais fugiam — do que dos pretos baixos e gordos: talvezos que melhor se acomodavam" ( . . . ) "Os negros altos e magrosos "secos de corpo" dos anúncios de escravos fugidos — teriam levadoconsigo para os sertões e quilombos o ânimo de aventura." (20)

O Sr. Luís Viana Filho, em um dos seus trabalhos históricos, afir-mou que "o sertão não foi hostil ao negro. A sua organização econó-mica rudimentar das caatingas e dos campos de criação, foi um ele-mento de passagem, transitando pelas estradas do interior como tropeiroou carregador ou como parte mínima de alguma bandeira." <2"

O esquema do Sr. Luís Viana Filho serve apenas para mostrar umlado da verdade, mas precisa ser complementado com o outro lado, talvezmais importante. É verdade incontestável que a economia pastoril nãopodia arcar com o ónus do escravo, caro e de difícil aquisição na zonasertaneja, principalmente a do São Francisco. Os estudiosos do assun-to, partindo da premissa de que partiu o Sr. Luís Viana Filho, caeminevitavelmente em conclusões que não desnudam e apreendem a verda-de na sua totalidade. O esquema lógico, as hipóteses de trabalho dessesestudiosos desejam encaixar o negro escravo na economia sertaneja. Eele sobra.. . Partindo de atitudes mentais que foram sedimentadas naspesquisas, trabalhos e conclusões realizados em relação ao negro da orlalitorânea, onde se estratificou na sua mais completa fornia o sistemaescravista de trabalho, não conseguem ver o elemento negro senão dentrodessa categoria (escravo), assim mesmo deformada por uma série deracionalizações, como a da docilidade do africano, do seu masoquismo,rta sua passividade.

Não é no trabalho que se irá encontrar de forma fundamental onegro no sertão, especialmente na Bahia. Alagoas e Sergipe. O negroali aparece como perturbador da economia, como fugitivo, como quilom-bola. Se estudarmos a intensidade dos quilombos no interior dessas re-giões poderemos achar explicação para a relativa influência étnica ecultural do negro no sertão. A zona do sertão da Bahia foi um verda-deiro paraíso para os quilombolas. O Vale do São Francisco, isolado,era, por outro lado, uma região ideal para aqueles fugitivos. Morais

Rego aproximou-se da verdade quando, descrevendo a origem do povoa-mento da região, afirmou que "a intromissão de elementos alienígenasna bacia média se efetuou de maneira obscura: elementos brancos,egressos do convívio social e negros fugidos.

"Formaram a população misturada e desordenada, vivendo ao sa-bor de seus vícios e paixões, que o Dr. Diogo de Vasconcelos denominouos facinorosos".

Em seguida acrescenta o mesmo autor: "Ressalvadas as lavras nãohouve no Vale do São Francisco importação de escravos: o elementonegro consiste em egressos das zonas agrícolas e litorâneas subalternas.

"A contribuição do negro na formação da raça teve, portanto, duasorigens: a escravidão nas lavras auríferas, confinada à parte alta e osvadios e rebeldes". < 2 2 > Isto não quer dizer que em algumas regiões dosertão, por motivos particulares, ele não participe do processo de tra-balho. <22-*>

O quilombola, ao internar-se no sertão, aliava-se ao "indio brabo",também revoltado. Os indígenas da Serra de Tiúba, afirma Borges deBarros, uniram-se aos negros e assaltaram o Rio São Francisco, "encon-trando resistência em Felizardo Ribeiro Lisboa." João Roiz Vieira foi,por seu turno, enviado para "reprimir os negros fugidos que se uniramaos bárbaros do Rio das Contas". Ainda segundo Borges de Barros, "os

(20) Kreyre, Gilberto: "O Escravo nos Anúncios de Jornais Brasileiros doSéculo XIX", Recife, 1963, p. 199.

(21) Viana Filho, L. '"O Negro na Bahia", R. de Janeiro, 1946, p. 126.

(22) Morais Rego, L. F.: "O Vale do São Franaisco", S. Paulo, s/d. p. 168 ss.(22-A) Foi o que aconteceu nas Lavras Diamantinas, na Bahia. A descoberta

de pedras preciosas fez com que se deslocassem para aquela região inúmeras famí.lias que depois ali se fixaram, levando "numerosa escravaria". "Lençóis foi umdos focos da escravidão, gerador de uma população negra ponderável. Lá existe,até hoje, uma artéria que se chama Buo do* Net/ron. A Filarmónica São Beneditoé, como bem se observa, um espelho do preconceito racial que medrou na chapadadurante o seu esplendor" (Valfrido Moflais: "Jagunços o Heróis". Rio de Janeiro,1963, p. 32. nota). Em outras regiões baianas o escravo negro estava ligado ao tra-balho. Na Fazenda Campo Seco, no sertão baiano, o patriarca Miguel Lourenço pos-suiu inúmeros escravos, no sénilo XVIII. Difiril é só estabelecer o número exatodos cativos pois ele se referiu aos mesmos apenas uma vez, quando deles fez re-gistro no "livro de vacas." Já António Pinheiro Pinto, seu genro e que o sucedeuem Campo Seco, "foi senhor de grando escravaria quo pode ser calculada entre 80a 100 indivíduos entre adultos e menores e entre machos e fêmeas" ( . . . ) Quandopassaram em 1818 pelo nordeste baiano. Rpix e Martins viram uma fazenda situa-da no caminho entre Caeteté c Rio dos Contas, "onde haviam mais cie 160 negros".O livro de anotações de Pinheiro Pinto refere.se também a fugas de escravos desua propriedade e ao pagamento de capitães-do.mato para capturá-los. Está escritoali: "Fogiome o Crioulo João a 14 de Junho era de 1795" e em seguida: dro. pá.i^uiz seguir aos negros fogidos. . . 1680". Parece que não se contentou com um ca-pitão pois s? refere a outra importância também paga "a outro Capam de Mata".No ano de 1800. António Pinheiro Pinto comprava "um tronco de pé e pescoço" e,em 180B, outro "tronco de prender" (Licurgo Santos Filho: "Uma Comunidade Ru.lal no Brasil Antigo", São Paulo. 1956, pp. 117 ss). Ainda na região do São Fran-cisco os remeiros até hoje cantam, como .reminiscência da escravidão naquela zona:

"Em casa de negro forronão se fala em cativo. . .Quem tem defunto ladrãonão fala em roubo de vivo. . .

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aborígines da região central da Bahia, aliados aos negros 'dos mocambosque a infestaram, traçaram, naquela época remota, a direção a ser se-guida pelos seus descendentes, derivados dos inúmeros cruzamentos dastrês raças que ali encontraram.

"As guerrilhas — prossegue o mesmo historiador — os levantesinopinados, os morticínios e sangueiras, tão comuns nas regiões compre-endidas entre Conquista, Macaés, Condeúba, Ilhéus, cabeceiras do Riodas Contas, Jequitinhonha, Pardo, Grongogi, Canavieiras, Belmonte,Macaubas, Lavras Dimantinas e toda margem São Francisco, en-contraram as suas origens no banditismo que assolou esses sertões du-rante o período acima citado." <23)

O bandeirante Fernão Carrilho, à frente de uma grande bandeirae auxiliado pelas Companhias de Ordenanças da Torre de Garcia d'Avilae Campos do Rio Real, venceu os mocambos de Geremoabo e os índiosde Assuru e Itapecuru-Mirim.

Em 1700, Pedro Barbosa Leal, que explorava os sertões do salitre,recebia um regimento especial comandado por João da Costa para "fazerentradas nos mocambos de negros fugidos e agregar todo o gentio queestivesse fora das missões." (24) Antes disso, porém, em 1644, quandoJoão Fernandes Vieira reiniciou a luta contra os holandeses, ao necessi-tar dos préstimos de Henrique Dias, teve notícias de que o mesmo seencontrava" com sua tropa a buscar e prender um grande número denegros que haviam fugido a seus senhores-" <sa> O chefe dos negrosque lutavam contra os holandeses estava — tal a gravidade dasituação — colocado a serviço da repressão aos quilombolas. (26) Varnha-gen acha que Henrique Dias estava, àquela altura, combatendo os negrosde Palmares, o que o deixou "com sua tropa bastante destruída." A afir-mativa de Varnhagen está, contudo, apoiada no livro do Padre Caladoque não sei refere explicitamente a esses encontros de Henrique Dias comos .negros de Zumbi. Camarão também se encontrava ao lado do pri-meiro, combatendo os quilombolas. O certo, porém, é que o chefe dos"Henriques" estava fundamente empenhado em destruir os quilombolas,fato que Rocha Pita corrobora parcialmente afirmando que ele se en-contrava no sertão, sem contudo, dizer no que se ocupava. <27> O certo,porém, é que os ex-escravos se encontravam em franca rebelião, dificul-tando o desenvolvimento do povoamento da hinterlândia, ao ponto de afir-mar um cronista que Fernão Carrilho, conseguindo destrocar os mocam-bos, com as Companhias de Ordenanças da Torre do Rio Real da Praiae Sertão e os gentios de Assuru e Itapecuru-Mirim, "muito concorreupara a colonização dessa região." (28)

(23) Borges de Sarros, F.: "Bandeirantes e Serianistas Baianos", Bahia, 1919,p. 177.(24) MS Transcrito na obra citada.(25) Calado, Fr. M.: "O Valeroso Lueideno e Triunfo da Liberdade", São Paulo,1945, l» vol., p. 324.(26) Op. cit. 323 ss.(27) Varnhagen, F. A. : "História das lutas com Holandeses no Brasil", São

Paulo, 1945, p. 233, A corroboraçãp parcial de Rocha Pita está no seu livro "His-tória da América Portuguesa", Bahia, 1950, p. 195.

(28) Mattos, J.: Op. cit., p. 12.

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Enquanto estes fatos aconteciam na Bahia, em Alagoas os negrosde Palmares muito mais trabalho davam aos governantes. Expediçõessucessivas, inicialmente sob o comando dos holandeses, depois sob a di-reção dos representantes da. corça lusa, eram derrotadas, produzindoverdadeiro pânico em toda a região. A importância de Palmares, comofoco de disseminação das culturas negras no sertão não foi, contudo,analisada devidamente. Um movimento que durou sessenta e cinco anose que fazia incursões, impunha hábitos, propagava costumes, precisa seranalisado mais detidamente e não apenas no seu aspecto heróico. Pal-mares, além de protesto do escravo contra o cativeiro, produziu conse-quências muito profundas no seu aspecto cultural. Tendo os negros pal-marinos — predominava, como é sabido, o elemento banto — ao se em-brenharem na floresta, levado sua cultura e permanecido durante quasesetenta anos na região, evidentemente se transformaram num foco depropagação de sua técnica, hábitos, religião, costumes. Esse foco trans-formou-se posteriormente em uma constelação que depois se dissolveu,integrando-se no arcabouço da vida da região: no folclore, na técnica decriação e domesticação de certos animais, transmitindo não apenas aexperiência adquirida como trabalhadores de eito, como quer Edison Car-neiro, mas, também "a experiência ainda mais larga deles e dos seus ante-passados nas savanas e nas florestas tropicais africanas", como afirma oProfessor Josué de Castro.<2S) Aliás, o livro de Edison Carneiro, é no par-ticular uma contribuição que abre caminho a um estudo mais profundo,tomando-se a região onde esses escravos se aquilombaram como centrode referência, para pesquisas que apurem o grau de influência dessasculturas africanas.

Até hoje, há em Alagoas o Auto dos Quilombos, descrito por ArturRamos. Na cena inicial cantam:

Folga, nego,Branco não vem cá.Se viéO Diabo há de leva.Folga, nego,Branco não vem cá.Se viéPau há de leva.

Artur Ramos escreve com acerto que "não precisa esforço de inter-pretação para concluirmos que o auto alagoano dos quilombos represen-ta uma sobrevivência histórica da República dos Palmares". "0)

(29) Castro. Josué de: "Geografia da Fome", R. de Janeiro, 1946, p. 135.(30) Ramos, A.: "O Folclore Negro no Brasil", R, de Janeiro, s/d (2.» ed.),

p. 63. Devemos acrescentar que Alfredo Brandão conseguiu uma descrição multomala sistemática do "Auto do Quilombo" no seu trabalho "Viçosa de Alagoas". Alidescreve os principais movimentos da Auto e estuda Inclusive sua área, que se loca.llza não apenap na cidade de Viçosa, mas se estende aos "outros lugares do centrodo Estado" t« Carneiro, E. — Antologia do Negro Brasileiro", P. Alegre, 1950, p. 249.

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Enquanto as autoridades combatiam os quilombos da Serra da Bar-riga, na Bahia a luta continuava e os ex-escravos ameaçavam as povoa-ções de Piranhas, Rio do Peixe, Piancó, Sul do Piauí e Maranhão, oque obrigou a Coroa a estacionar no Nordeste, além dos terços de baia-nos, os terços paulistas comandados por Matias Cardoso de Almeida eManuel Álvares de Morais Navarro. Esses terços, no entanto, tiveramde acudir a Domingos Jorge Velho, que combatia a República dos Pal-mares e que se encontrava, naquele momento, reduzido a apenas cinco ho-mens . Mesmo depois de .destruído Palmares a luta prosseguia e, em 1704,Francisco Soares de Moura era provido de patente de Capitão-mor dasEstradas de Mocambos e Negros Fugidos a fim de "manter o sossegodos moradores circunvizinhos à Serra Negra e residentes nos distritosde Vila Nova até o Canindé, Capital de Sergipe de El Rei, "para evitaraos ditos moradores os roubos, desinquietações, mortes e escândalosque.. . recebem há muitos tempos dos negros fugidos dos Palmares ese acham situados em Mocambo na dita serra, mais de sessenta comprevenção de armas de fogo." <311

Outros ex-combatentes de Palmares fundaram um quilombo na Pa-raíba, no local denominado Cumbe, hoje Usina de Santa Rita. Segun-do Ademar Vidal se haviam aliado a outros da Capital e do interior. OCapitão-mor Jerônimo Tovar de Macedo seguiu com quarenta homens paradestruir esse reduto. A luta foi furiosa e ele terminou completamentederrotado. Em seguida indicaram João Tavares de Castro que "com escra-vos e gente paga" conseguiu arrasar o quilombo. (32)

No momento, ou melhor, no mesmo ano em que Francisco Soaresde Moura atacava os quilombos da Serra Negra (1704), Dias da Costarecebia a patente de Capitão-mor das Estradas do Distrito do Brejoa fim de "extinguir os mocambos, aprisionar os negros e reduzir os ín-dios Maracases, Cacurus e Caboclos. <33> Era, como acontecia frequen-temente, na Bahia, a aliança do quilombola com o índio rebelde. Essaaliança foi apontada por Euclides da Cunha que escreveu: Geremoaboaparece, em 1698, como julgado, o que permite admitir-se origem muitomais remota. Aí o elemento indígena se mesclara ligeiramente ao afri-cano, o canhembora ao quilombola." (34)

Corroborando a hipótese dessa aliança entre os índios e negros en-contramos, em 1783, João Gonçalves da Costa derrotando o g'entio Mon-goió ou NiOgoió que se havia juntado aos quilombolas.

(31) Borges de Barros, F. — Op. cit transcrição de MS de Cartas e Patentes.(32) Vidal, A.: Três Séculos de Escravidão na Paraíba, in "Estudos Afro-Bra.

sileiros, R. de Janeiro, 1938, p. 110.(32-A) Mesmo no interior do Piauí esses quilombolas ae fixavam às vezes.

Gurguéia "formou-se aos poucos entre 1710 e 1712. "Uns três homens brancos, ve-teranos das entradas; alguns pretos remanescentes do império negro de Palmares, euma dúzia de índios chegados ao aprisco da religião, elementos heterogéneos que aterra e o dlima uniram" (Artur Passos: "Lendas e Fatos" — Crónicas do Rio Gur-gnéia), Rio de Janeiro, 1958, p. 100).

(38) Borges de Barros, F.: Op. cit Transcrição de MS de Cartas e Patentes.(34) Cunha, Euclides da: Op. cit., p. 102 e nota à mesma página.

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Tática de Luta dos Escravos

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Do ponto de vista militar temos de ver que — na maioria das ve-zes — a luta dos escravos no Brasil não foi um simples espocar incon-sequente de u'a malta descontrolada de desordeiros que investia contratudo e todos a fim de satisfazer instintos baixos ou intenções inconfes-sáveis. Tinham esses escravos um objetivo, que era precisamente derro-tar militarmente seus senhores; para isso estabeleciam planos de ata-ques, muitas vezes demonstrativos de alguma perícia, e que somente porfatores que os escravos não controlavam deixaram de surtir efeitos maissérios. De fato: alguns dos povos africanos que vieram para o Brasil— principalmente Bahia— eram grandes guerreiros na África e paraaqui trouxeram sua experiência militar, aplicando-a em função da liber-tação dos seus irmãos de infortúnio. Isso talvez explique por que osnagôs e aussás foram líderes incontestáveis das lutas dos escravos naCapital baiana: eram povos já experimentados militarmente no Conti-nente Negro, principalmente os últimos. Até em Palmares, movimentoonde predominou o elemento banto, encontramos um mouro de capaci-dade militar superior aos demais, construindo o sistema de defesa pal-marino e industriando os ex-escravos na arte da guerra.

Suas armas eram de duas espécies: usavam as que já conheciamos povos africanos e também armas de fogo. No Quilombo dos Pal-mares além das armas típicas dos africanos — arcos, flechas, lanças,etc., — os escravos da República negra alagoana já manejavam comperícia as de fogo. Nas diversas investidas contra o reduto dos ex-escravosas armas de fogo dos negros imporão derrotas aos colonizadores quedesejavam esmagá-los.

No início exercerão uma atividade predatória muito grande mas vi-zinhanças, a fim de conseguirem víveres, armas e munições. Não tinhamainda uma estrutura económica estratificada, eram seminômades.

Com o crescimento do número de escravos e o consequente surgi-mento da agricultura, a técnica militar desses ex-escravos sofrerá umaevolução, como veremos. A agricultura ali praticada e a consequenteformação de relações escravistas dentro da própria República palmari-na, a sedentariedade a que se viam obrigados, tudo isso os levou à for-mação de um exército regular que garantisse a defesa do território da

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República. Daí o aparecimento de uma espécie de casta militar entreos palmarinos. A guerra de movimento, sustentada por inúmeros outrosquilombos, não pôde ser continuada em Palmares. As guerrilhas foramtransformadas em operações de envergadura que, depois de realizadas,tinham um local fixo de regresso, local que era conhecido pelo inimigo.O nomadismo inicial dos ex-escravos do quilombo foi substituído pelosedentarismo e, à medida que as atividades agrícolas se desenvolviam,iam transformando a técnica e tática militares que eles aplicavam. Aflexibilidade inical que existia na força palmarina, foi sendo substituídapelo peso numérico. Seu exército deverá ter crescido muito, embora nãopossamos avaliar até que número. O certo é que, ocupando uma super-fície de cerca de 27.000 quilómetros quadrados, tinham de manter umatropa considerável que os garantisse. Essa população — da qual parti-cipavam inúmeras crianças, mulheres e velhos, não podia sustentar-sede simples produtos de aventuras venatórias ou de assaltos eventuais.O desenvolvimento da agricultura palmarina marcou o início de suatransformação militar. Assim, parece-nos, adestravam-se constantemen-te para a guerra. Tinham o quartel-general localizado no mocambo de Su-bupira onde ficavam certamente instalados os principais chefes militares.

Palmares passou, assim, a uma tática meramente defensiva. Aoinvés dos ataques iniciais aos colonos, modificaram suas relações comeles: cobravam uma espécie de tributo quando não mantinham comér-cio mais ou menos pacífico "dando-lhes (os colonos) armas, pólvora ebalas, roupas, fazendas da Europa e regalos de Portugal, pelo ouroprata e dinheiro que traziam dos que roubavam, e alguns víveres",(Rocha Pita).

Ainda em 1678, quando o Rei Ganga-Zumba aceitou a paz com ossenhores de escravos — razão pela qual foi morto pelo seu povo e subs-tituído pela casta militar na pessoa do Zumbi, o mais capaz e valentedentre todos — os palmarinos tinham algum poder ofensivo. Depois,passaram à completa defensiva, deixando a ofensiva nas mãos das forçaslegais. A proporção que a expedição de Blaer, em 1645, avança, encon-trará vastos campos cultivados, lavouras importantes. Posteriormenteos atacantes descobrirão que o maior mal que podiam causar aos negros,era destruir suas roças. Em 1678 essa observação é feita pelo ex-gover-nador Aires de Sousa Castro. B daí em diante a destruição lavrarános campos cultivados de Palmares.

A medida que suas roças eram destruídas e suas terras ocupadas, abase territorial e económica que havia transformado os palmarinos emsedentários, vai derruindo, e suas tropas adotando uma tática mais demovimento, de guerrilhas. Após o último grande combate entre as for-ças dos colonos e dos palmarinos, as primeiras chefiadas por DomingosJorge Velho e Bernardo Vieira de Melo e as segundas pelo Zumbi, em1694, quando o último foi dado como morto, os palmarinos passaram aagir em grupos de guerrilheiros até ser o seu chefe assassinado.

Debelado Palmares e morto seu chefe, seus antigos combatentes seembrenharam nas matas do Nordeste e começaram a organizar os qui-

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lombos, fato que motivou a denúncia de um cm Cumbe, destruído temposdepois, como vimos. Ainda os encontraremos na mesma época: na Pa-tente de Capitão-mor concedida a Manuel Nogueira Ferreira há refe-rência a um mocambo que novamente se formava naquela Capitania,dos negros que fugiam dos Palmares de Pernambuco, e que era precisoacudir-se logo, antes que se fortificassem." Outros se aliarão aos índios.Estava extinto, definitivamente, o exército dos ex-escravos palmarinos,que se transformou em grupos guerrilheiros, isolados nos diversos pon-tos do Nordeste em que foram parar. E o capítulo de Palmares foi en-cerrado.

Aliás, as guerrilhas serão constantes nas lutas dos escravos. Os qui-lombolas baianos, desde 1704, agiam nas estradas praticando "roubose escândalos", providos de armas de fogo. Atacavam, também, as estra-das de Salitre, Jacobina, Tucano etc., usando a tática de guerrilhas.Onde, porém, usando essa tática parece que os escravos obtiveram maiorêxito, foi em Sergipe. Antes de Palmares já atuavam e, no ano de 1874,ainda darão trabalho considerável ao governo, que não consegue locali-zá-los para um ataque definitivo. Essa tática deixará em desespero osdirigentes da Província. Unidos aos escravos das senzalas — com quemmantinham estreito contato — serão sempre bem informados e nuncatravarão combate de envergadura, mas desgastarão com ataques de flan-co seus adversários até o fim. Nunca serão derrotados. Usarão armasde fogo e não constituirão grupos muito consideráveis, durante os ata-ques. Grupos de 10 ou 12, bem armados e montados, serão suficientespara ocupar vilas e povoados, onde conseguiam víveres e de onde se re-tiravam em seguida. Várias expedições foram enviadas contra eles, semresultado. Jamais ocuparão território. O movimento é sua salvação.

Será o movimento a salvação dos quilombolas. Todas as vezes que oabandonam são derrotados. Em Minas Gerais, sempre que os escravosdas cidades se preparam para os levantes, dentro delas contarão comos escravos fugidos das estradas, a "rapaziada fugida das matas" paraa ação. Outras vezes, quando os escravos mineiros caem para o ajunta-mento maciço, são facilmente derrotados. O quilombo do Rio das Mortesfoi facilmente destruído, apesar de ser "um tão grande que já pareciaum reino."

Nas revoltas baianas os escravos da cidade combinarão com os ne-gros refugiados nas matas próximas a união das forças de dentro da cida-de com as de fora, para o ataque. Essa tática já era usada desde 1807,quando aguardavam auxílio dos escravos dos engenhos próximos, fatoqiie se repete, em 1826, de maneira inversa — os quilombolas do Urubué que se revoltavam, esperando os da cidade. Os governantes sabiammuito bem das tentativas desses escravos, cujo desejo era justamentea junção de suas forças para um ataque comum, e tudo faziam para frus-trá-la. Aos quilombolas, certamente adestrados nas guerrilhas, juntar-se-ia a tática dos negros maometamos, que já traziam da África uma lon-ga e bem assimilada experiência de lutas. E delas se aproveitariam nãosó do ponto de vista militar mas do organizativo também. Além de ins-truírem os escravos nos rudimentos de estratégia de que eram conhece-

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dores — sem o que não se explicam os êxitos conseguidos contra as for-cas da Polícia em lutas como a de 1835 — como criando associações se-cretas como a "Ogboni", que desempenhará papel muito saliente no de-senrolar dos acontecimentos. O uso de armas de fogo não será desco-nhecido por esses escravos. Já muito antes das revoltas citadinas —como vimos — os quilombolas usarão essas armas e atuarão no interiorda Província com relativo êxito. Nas revoltas da Cidade do Salvadormuitos dos seus participantes descendiam dos povos do Sudão ou de láeram filhos, conhecedores profundos de trabalhos em metais, fundido-res exímios e, certamente, se empenharam em forjar armas — quandonão espingardas — pela sua complexidade — pelo menos facas, lançasetc. Além disso, encontraremos rudimentos de uma indústria de guerrana fabricação de "cartuchos de pau cheios de pólvora", descobertos narevolta de 1826, em um dos casebres próximos à mata do quilombo. Osalufás baianos estabelecerão, mesmo, rudimentos de um plano militar narevolta de 1835. Tudo isso mostra como os escravos não se deixaramdominar nas suas revoltas por simples paixões momentâneas que vinhamà tona em movimentos inconsequentes, nas planejavam seus movimentosdetalhadamente- Temos ainda a anotar que existiam rudimentos de umahierarquia militar entre esses negros, embora fundamente mesclada —como não podia deixar de ser — à hierarquia religiosa. Os "capitães"teriam, certamente, uma função militar que não podemos subestimar seatentarmos no fato de serem nossos escravos ciosos dessa prerrogativamilitar que só era concedida aos mais aptos na guerra. Ainda devemosponderar o fato de existirem até soldados entre os quilombolas, ou orien-tando-os — como aconteceu em 1826, na Bahia — para vermos que seupotencial estratégico não era nulo. Na revolta de 1835 os escravos usa-rão armas de fogo em quantidade, pelo menos no início da ação, o quelhes valeu superoridade evidente sobre a força da Polícia que com elesse bateu. Em 1813 tinham como plano atacar a casa da pólvora, apode-rando-se do necessário e inutilizando o resto.

Eram lutas, como vemos, em que os escravos ajustavam métodosaprendidos no Continente Negro com outros adquiridos em contato comos brancos.

Na Balaiada, porém, quase que não há diferença fundamental entrea tática dos ex-escravos do preto Cosme e o grosso das tropas que parti-ciparam do movimento. No início — antes de participarem da luta —quando ainda aquilombados na Lagoa Amarela, podemos dizer que osnegros de Cosme tinham algumas características especiais de luta, ca-racterísticas que consistiam no estabelecimento de piquetes avançados,na invasão das roças próximas, na defesa periférica do quilombo, diga-mos assim. Operações meramente predatórias a fim de conseguirem,também, víveres. Ao engrossarem, porém, o contingente da Balaiada,passaram a atuar como guerrilheiros, correndo em tropelias o interiorda Província, em rápidas lutas, até que a espada repressora de Caxiasesmagasse o movimento. Então, cairão na formação de pequenos gruposque lutarão desorganizadamente na Província maranhense. No ano de

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1840 ainda agiam, sendo Caxias obrigado a criar um Corpo de GuardasCampestres para lhes dar combate.

Quando o escravo Manuel Congo dirigiu a luta dos escravos aqui-lombados no Estado do Rio, foi, com relativa facilidade, liquidado. Em-bora ameaçando por vezes a Cidade de Vassouras, esses escravos plan-tam-se definitivamente em um lugar, estabelecem um reino, proclamamseus soberanos e. . . são derrotados. Caxias encontra-os inteiramente des-controlados, por faltar-lhes uma direção mais consequente. A derrotadesses escravos foi tarefa muito fácil. Assim em inúmeros lugares. Osescravos tinham como aliado o movimento e como adversário o sedenta-rismo, a luta de posição.

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Conclusões

Na introdução ao presente trabalho afirmamos que todos os fatosapresentados só teriam sentido se fossem perspectivados dentro de um•processus dinâmico, isto é, se fossem perspectivados como componentesde um todo que era a sociedade escravista e, além disto, como conteúdoda dicotomia básica na qual ela se assentava. As revoltas dos escravos,como apresentamos neste livro, formaram um dos termos de antinomiadessa sociedade. Mas não formaram apenas um dos termos dessa anti-nomia: foram um dos seus elementos dinâmicos, porque contribuírampara solapar as bases económicas desse tipo de sociedade. Criaram aspremissas para que, no seu lugar, surgisse outro. Em termos diferen-tes: as lutas dos escravos, ao invés de consolidar, enfraqueceram aqueleregime de trabalho, fato que, aliado a outros fatores, levou o mesmoa ser substituído pelo trabalho livre.

O dinamismo da sociedade brasileira, visto do ângulo de devir, tevea grande contribuição do quilombola, dos escravos que se marginaliza-vam do processo produtivo, e se incorporaram às forças negativas dosistema. Desta forma o escravo fugido ou ativamente rebelde desempe-nhava um papel que lhe escapava completamente, mas que funcionavacomo fator de dinamização da sociedade. As formas "extra legais" ou"patológicas" de comportamento do escravo, segundo a sociologia acadé-mica, serviram para impulsionar a sociedade brasileira em direção a umestágio superior de organização do trabalho. O quilombola era o ele-mento que, como sujeito do próprio regime escravocrata, negava-o ma-terial e socialmente, solapando o tipo de trabalho que existia e dinami-zava a estratificação social existente. Ao fazer isto, sem conscientiza-ção embora, criava as premissas para a projeção de um regime novo noqual o trabalho seria exercido pelo homem livre e que não era mais sim-ples mercadoria, mas vendedor de uma: sua força de trabalho.

Ao mesmo tempo que assim procedia, o escravo rebelde criava no-vos níveis de desajustes, novos elementos de assimetria social, pois, aoretardar o processo de produção, fazia com que, no pólo intermediário,se desenvolvessem elementos que também impulsionavam a sociedade n,oseu sentido global para novas formas de convivência. Isto quer dizerque defluíam, depois, como reflexo da sua atividade rebelde, outras formas

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de comportamento "divergente" em camadas diversas que, por seu tur-no, influíam para que os escravos ainda passivos se transformassem emelemento dinâmico, passando de escravo a quilombola.

Esta interdependência dialética só poderá ser compreendida, insis-timos, se tomarmos o quilombola não como termo morto ou negativo,mas como termo ativo e dinâmico. A compreensão do processo social,segundo esta forma de enquadramento, sofre uma reviravolta. Porqueo escravo que tem sido apresentado até aqui como elemento positivoda sociedade escravista brasileira, é exatamente aquele que, conformadopsicologicamente com a sua situação, aceitava as formas tradicionais detrabalho que lhe eram impostas. Aceitando esse tipo de sujeição, ao de-sempenhar passivamente aquilo que lhe exigia a classe senhorial, elecontribuía poderosamente para quê, no sentido global, o trabalho escravo fosse apresentado como forma de produção capaz de atender às soli-citações da sociedade brasileira, eternamente. A posição crítica (emborainconsciente, fazemos questão de insistir) do quilombola, por seu turno,ao onerar o trabalho escrava no seu conjunto e ao desinstitucionalizá-lo,mostrava, de um lado, as falhas intrínsecas do escravismo e, ao mesmotempo, mostrava aos outros escravos a possibilidade de um tipo de or-ganização no qual tal forma de trabalho não existia. A maioria dos en-saios de história e sociologia no Brasil tem abordado esse processo dico-tômicò de forma invertida: o escravo passivo que aceitava o eito e o tron-co e construía com o seu trabalho a riqueza da classe senhorial, é apre-sentado como normal, glorificado mesmo através de uma literatura defundo incontestavelmente masoquista e patológico. Mas o escravo que serebelava, o quilombola ou insurreto das cidades, que negava o seu status,não pôde ainda ser compreendido por esses historiadores e sociólogoscomo elemento positivo e dinâmico.

Nestes termos poderemos compreender com mais clareza o papelque os escravos rebeldes desempenharam. Não se trata de uma glorifi-cação romântica. Trata-se de captar, dentro de um método sociológicodinâmico e não académico, o sentido global de um processo: a passagemda escravidão para o trabalho livre. Nesse processo é que afirmamos tero quilombola desempenhado pape] importante, não tanto pelas suas in-tenções ou atitudes ideológicas, mas pelo desgaste económico e assime-tria social que produzia. Esses desajustes produziram-se em cadeia erefletiram-se, quer do ponto de vista de criar necessidade de serem osescravos considerados indesejáveis como máquinas de trabalho, quer pelopróprio ónus que tal procedimento acarretava, abrindo bolsões negati-vos na economia escravista e onerando consequentemente o conjunto dotrabalho escravo. O sistema de controle social que por causa disto foramobrigados a montar os senhores de escravos, isto é, os elementos repres-sores, as instituições de combate ao quilombola, a mobilização de recur-sos económicos para combater o escravo fugido, o pagamento aos capitães-do-mato e, além de outras despesas, a perda do próprio escravo quese rebelava, durante todo o tempo da escravidão, pesava como fator ne-gativo. Além disso, tal fato, à medida que se agrava o problema com

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a maior participação dos escravos nesse processo de reação, influía naprodução total e na margem de lucros individuais da classe senhorial.

É verdade que, em determinado momento no processo de formaçãoda nossa sociedade, a escravidão era inevitável. Isto, porém, não significadizer que por compreendermos o fenómeno devamos nos esquecer de quea evolução de todas as sociedades se processa através de choques, decontradições e que, à medida que essas contradições — dentro da socie-dade escravista — se acentuam e que os escravos, através de movimen-tos de rebeldia de várias espécies, nela se inserem, contribuem junta-mente com as contradições que advêm de outras causas e se processamem outras camadas, para que o regime de trabalho imperante seja subs-tituído por outro.

Mas, não está somente neste aspecto acima relatado o dinamismodas reações dos escravos. Ao se refugiarem nas matas, mostravam aosoutros a possibilidade concreta de um tipo de sociedade sem a existênciado status degradante.

Quer no seu sentido económico quer na sua significação social, oescravo fugido era um elemento de negação da ordem estabelecida. Éverdade que o processo social de nossa formação histórica, que destruiriaa escravidão, deve ser encarado de diversos ângulos e não apenas desteem que o estamos analisando agora. Numa camada superior e consciemti-zada. a campanha abolicionista era conduzida através de instituiçõeslegais. As sociedades abolicionistas, os parlamentares favoráveis à ma-numissão, as ligas pela alforria do cativo, evidentemente não anelavamsublevar a sociedade. Desejavam apenas conseguir parceladamente asubstituição do trabalho escravo pelo livre. O papel que essas institui-ções desempenharam estava acobertado por todos os elementos institu-cionalizados da sociedade da época. Eram forma legais, canais normaisde luta. Estas camadas que se organizavam contra a continuidade dotrabalho servil refletiam outras dicotomias, outras contradições e eramimpelidas à participação do processo por motivos diversos dos dosescravos.

Enquanto o escravismo gerava no seu elemento humano básico —o escravo — uma atitude inconsciente mas dinâmica contra a sua estru-tura, gerava nas camadas que estavam também inseridas no processode dicotomia com a classe senhorial, elementos de reação conscientes ouconscientizados. Esses dois processos independentes se interpenetravam,no entanto, e produziam, conjugados, cada vez mais acentuadamente, ele-mentos de assimetria social com a classe dominante. Eram forças dife-rentes que somente em algumas áreas e já no fim da escravidão, comoé o caso de S. Paulo, agiam em conjunto, mas refletiam a mesma con-tradição básica em planos diversos.

Do ponto de vista da própria massa escrava temos de ercarar o se-guinte : essa forma de agir do quilombola, com um universo de comporta-mento oposto à instituição servil, criou uma dicotomia entre ele e o es-cravo passivo. Embora essa dicotomia não fosse impermeável mas, pelo

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contrário, houvesse verdadeiro fluxo e refluxo nos seus diversos níveis,pois em determinado momento o escravo tradicional se transformavaem quilombola e algumas vezes o antigo quilombola voltava à passivi-dade depois de capturado, o certo é que, para clareza da análise, deve-mos levar em consideração o seguinte: o processo antinômico da socie-dade escravista brasileira no seu sentido global gerou uma série de dico-tomias complementares, sendo uma delas a que passou a existir dentroda própria casta, dos escravos. Uma parte desses elementos escravos,mesmo sem conscientização do processo e sem possibilidade de autocons-ciência social era já poro. ai, criava barreiras defensivas ao sistema, or-ganizava-se contra o mesmo. Outra parte dos escravos, no entanto, viviaainda prostrada sob o complexo escravista, não tinha óptica para versequer a sua situação imediata, o que o levaria à rebelião, era aindacomponente de uma classe em si, simples objeto do fato histórico. En-quanto os componentes da primeira categoria compunham a parte dinâ-mica da escravidão — por negação ao regime — no sentido de a trans-formar em organização superior de trabalho, extinguindo-a, a outracompunha à parte que consolidava aquele regime de trabalho. O devirsocial e histórico estava portanto perspectivado intuitiva e fragmenta-riamente, mas de qualquer forma intuído, pelo quilombola.(1) O escravotradicional era o segmento material que contribuía para a manutençãoe continuidade do regime. Era o escravo considerado bom pelo senhor.Havia mesmo uma série de preceitos seletivos a fim de que fossem adqui-ridos elementos dóceis, passivos. Os minas, por exemplo, não eram muitorecomendáveis por terem espírito altivo. Já os da costa ocidental eramconsiderados bons, isto é, dóceis ao cativeiro. Escravo vindo daBahia, para ser vendido nas outras Províncias, era também consideradoperigoso. Daí vermos que o critério usado para se fazer a seleção dosescravos bons ou maus, tinha como ponto de julgamento a passividadedos mesmos. Havia até princípios de uma eugenia arrevesada usadapelos compradores ao escolherem as "peças",

A dinâmica da sociedade brasileira no que diz respeito à passagemda escravidão para o trabalho livre teve, assim, no quilombola, no ele-mento rebelde e que por isto mesmo negava o regime existente, um fatorpositivo; já o escravo engastado no processo de produção, à medida quecom ele se conformava e mais produzia, era um elemento conservador.Daí toda essa simbologia que até hoje é usada de glorificação do traba-lho escravo no Brasil, que vai desde a literatura da Mãe Preta, da mu-cama que se entregava ao senhor, dos moleques que apanhavam alegre-mente do "sinhozinho", aos trabalhos de sociologia que procuram mos-trar como o escravo contribuía para o desenvlvimento da sociedade bra-

(1) Quando dizemos escravo intuído referímo-nos àqueles elementos que já ti-nham uma noção, embora fragmentária, da sua situação, isto é, já tomavam consi-deração da diferença e da •distância, que existiam entre eles e os seus senhores. Poroutro lado devemos insistir que intuído aqui não significa nenhuma, forma de co-nhecimento mágico, introspectivo, que estava desligado da realidade, mas tem a co-notação que Georg Lukacs dá ao termo intuição, que para ele "nada mais é do quea entrada brusca na consciência de um processo de reflexão até então subconscten-te" ("Existencialismo ou Marxismo?", S. Paulo, p. 51).

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sileira através do seu trabalho conformado. São formas sutis ou abert&ade escamoteação do verdadeiro processo social, deformações que pro-curam inverter os termos do assunto através de estereótipos formadospelos interesses conservadores e que têm ligação histórica com os inte-resses dos antigos senhores de escravos. A escravaria passiva sustentavaa escravidão. O quilombola solapava-a.

No capítulo sobre quilombos e guerrilhas tivemos oportunidade demostrar as formas de que se revestiu o protesto do escravo. Aquelas for-mas fundamentais, se forem desdobradas em detalhes, em microanálise,poderão ser enumeradas da seguinte maneira:

a) Formas passivas: 1) o suicídio, a depressão psicológica (ban-zo) ; 2) o assassínio dos próprios filhos ou de outros elementosescravos; 3) a fuga individual; 4) a fuga coletiva; 5) a orga-nização de quilombos longe das cidades.

b) Formas ativas: 1) as revoltas citadinas pela tomada do poderpolítico; 2) as guerrilhas nas matas e estradas; 3) a participa-ção em movimentos não escravos; 4) a resistência armada dosquilombos às invasões repressoras e 5) a violência pessoal oucoletiva contra senhores ou feitores.

Essas diversas formas de reação pontilharam, lastrearam todo otempo em que existiu o trabalho escravo. E não apenas em determina-dos lugares mas em todas as regiões onde predominava esse tipo de tra-balho. O padrão de comportamento dominante na classe senhorial, porseu tui-no, era também condicionado pela intermitência desses diversostipos de reação, criando mecanismos de defesa quer ideológicos, querinstitucionais através de apelos às autoridades para manutenção de tro-pas repressoras nos diversos locais onde havia perigo de sublevação deescravos ou onde elas se estavam verificando. Como se vê, aquilo quese chamou "o constante perigo que a escravaria representa", não apenassolapava o regime de trabalho, mas atingia o comportamento da classesenhorial. Os exemplos poderiam ser citados às centenas, mas não é aqui,nesta fase conclusiva do nosso trabalho, o momento de fazê-lo, de vezque achamos suficientes os fatos que arrolamos antes. Podemos ver àluz de uma nova perspectiva histórica e sociológica qual o papel que oquilombola desempenhou. As deformações que são feitas ou as romanti-zações desnecessárias poderão ser, assim, substituídas por uma análiserealística e científica do assunto.

Podemos ver que a posição do quilombola influenciou o comporta-mento de toda a sociedade da época. Na classe senhorial e no estadomonárquico que a representava, criou a necessidade de mecanismos dedefesa quer psicológicos quer institucionais. A primeira forma de con-trole social podemos ver nos diversos níveis de justificativas políticas,usados pelos senhores para a escravidão, e de medidas de pacificação doescravo através do uso da religião ou do feitor, usados pela classe se-nhorial. O estado escravocrata recorreu a inúmeras formas de controle

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que vão das medidas do Conde dos Arcos para incentivar as fricções in-tertribais até a montagem de todo o aparelho repressor que durante aColónia e o Império foi usado contra os negros fugidos; máquina quevai dos alvarás da Colónia, mandando ferrar os fujões, até às leis da re-gência, contra cativos rebeldes.

Nas camadas médias formou-se, especialmente nas camadas letra-das, uma consciência antiescravista. Além dos letrados, elementos daburguesia comercial incipiente, artesãos (artesãos e escravos participa-ram juntos da Inconfidência Baiana) e elementos empobrecidos da so-ciedade também sentiam, não apenas pela literatura da época mas, tam-bém, pela ação dos quilombolas, a instabilidade do escravismo.

Finalmente na camada dos escravos que ainda não havia perspec-tivado o problema, a luta da camada rebelde despertou elementos deintuição capazes de fazê-los entrar no rol dos que, através da praxis re-volucionária, negavam o sistema vigente.

Toda esta constelação sociológica de negação ao regime escravista,se não foi determinada pelo menos teve a contribuição ativa do escravorebelde. A rebeldia era, portanto, uma categoria sociológica dinâmicadentro daquele tipo de sociedade e servia não apenas para equacionar,mas dinamizar a realidade.

Analisando o processo que desaguou na abolição do ângulo em quenos colocamos, ficam esclarecidas muitas "zonas perigosas" de análisehistórica. Perigosas não apenas pela predominância de uma metodologiadiversa da que empregamos. Perigosa em diversos outros sentidos. Aoterminarmos este trabalho, que não teve nunca a pretensão de esgotaro assunto, pois o seu estudo apenas se inicia, queremos dizer que sabe-mos não ser possivel de chofre revisar toda a literatura que existe e quese coloca num ponto de vista diametralmente oposto ao nosso. Isto nãosara possível porque "a questão de se saber se o pensamento pode con-duzir a uma verdade objetiva não é uma questão técnica, mas prática.É na prática que o homem precisa comprovar a verdade, isto é, a rea-lidade e a força, o interior do seu pensamento. A discussão sobre a rea-lidade ou a irrealidade do pensamento, isolada da prática, é uma ques-tão puramente escolástica."^)

(1) — Já havíamos terminado os originais desta edição quando lemos o traba-lho de Pessoa de Morais "Sociologia da Revolução Brasileira" (Ed. Leitura, Rio,1965) onde o autor, aliás baseado em documentação da primeira edição deste livro,estabelece a tese de que houve uma continuidade histórica entre as lutas dos escra-vos e os movimentos reivindicativos dos camponeses que se processam no bojo daatual Estrutura social brasileira. Depois de citar exemplos de sublevação de escra-vos no Rio de Janeiro, Pernambuco, Paraíba, Mato Grosso, Sergipe e outros locais,declara o professor pernambucano: "Ê um erro enorme se pensar que a tradiçãocamponesa no Brasil é apenas uma tradição monótona de subserviência. Muito aocontrário, durante toda a fase da escravidão o ajustamento submisso do negro é que-brado em diversas oportunidades, podendo-se mesmo dizer que as bases afetivas daconduta do escravo variavam de um pulo a outro: da mais completa dedicação aosenhor, às atitudes de rebeldia, quando não de violência". Cita locais onde atualmen-

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te a massa camponesa reivindica a posse da terra para concluir que há uma conti-nuidade entre as primeiras e as últimas. Aceita a tese de Pessoa de Morais ter-se-áde concordar com a existência de um segmento explosivo que vem da escravidão ese solda às lutas atuais dos homens do campo no Brasil que exigem reformas estru-turais nas relações de produção no setor agrário. Seria interessante um «studo ver-tical do assunto, levando.se em consideração que até hoje persistem reminiscênciase aderências escravistas no campo brasileiro. Isto exigiria, porém, um trabalho es-pecializado, feito por uma equipe que aceitasse a observação participante, integran-do-se como sujeito no processo de transformação que se verifica « não simples re-latórios académicos realizados para/ou por entidades e instituições interessadas emmanter o atual estado de coisas. Mais uma vez o trecho de Marx com o qual en.encerramos este ú'timo capítulo é válido e permanente.

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Boletim do Departamento do Arquivo do Estado de São Paulo vols. 15 (Nova Fa-se) e 16 (Nova Fase).

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d» Livro, S. Paulo, s/d.Carneiro (Edison) — Antologia do Negro Brasileiro — Editora Globo — Porto

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de Sociologia, S. Paulo, 1940.Cardoso (Fernando Henrique) e lanni (Otávio) — Homem e Sociedade — Ccimpa-

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ra — São Paulo, s/d.Roquete Pinto e Outros — Estudos Afro.Brasileiros — Ed. Ariel — R. de Janeiro,

1935.Gilberto Freyre e Outros — Novos Estudos Afro-Brasileiros — Civilização Brasilei-

ra, 1937.ários Autores: — O Negro no Brasil — Civilização Brasileira, 1940.

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Documentos

Consulta do Conselho Ultramarino de 8 de agosto de 1685, em que o OoJoão ia Cunha Sotto Mayor da conto das pazes que pedem os negros dos Palmares;incapacidade de alguns Capitães; qunixa q-lhe fezerão os soldados sobre os Alferesnão se reformarem e <fo préstimo de Agostinho César de Andrade.

"Snor. He justo que eu faça presente a V. Mag.e e o Estado em que acheya Guerra dos Palmares, que foi terem pedido pás a meu antecessor Dom João deSouza, o qual me disse estaua disposto a Capitulala, porquanto não tinha nenhunseffeito para se por em campanha, porque os que aqui se tinhão gastos nesta guerra,e os moradores desta capitania, não estau&o capazes de contribuir para ella, pelloterem feito em muitas ocaziões; e hoje se lhes junta o terriuel, anno que expri.mentarão na falta d« seus asacares, com que não he possiuel podellos obrigar aalgua contribuição; e por todas estas rezois me será forçozo pedindome este palmarpazes aseítallas, fazendo todos os partidos conueniente ao seruiço de V. Mag.e; ebem destes Pouos, até que V. Mag.e tome sobre esta matéria a rezolução que forseruido; porque s.or se se ouuer de fazer Guerra a estes negros tão insolentes,he necessário mandar V. Mag.e consinar na parte que lhe parecer effeitos, para porhua vês se destruírem estes bárbaros; e não terão estes Pousos tão continuas operçoi»,porque todas as horas me fazem queixas das tiranias, que lhe estão fazendo, dan-dolhe asaltos, matando brancos, leuandolhe escrauos, e saqueandolhes suas casas;e boa testemunha he destes insultos meu antecessor, pia experiência que o seuGouerno lhe mostrou.

Também dou conta a V. Mag.e da incapacidade com qua se achão os capitaisFrancisco Tauares e Domingos Rebello de Carualho, do 3.o do M.e de Campo DomJoão de Souza; e os capitais Manuel Roiz Sanctarem; Gonçallo Frz da Slyua; Antó-nio João; e Manoel da Costa Teixeira; do terço do M.e de Campo Zenobio Achiolyde Vas.cos; que he tal que o mais do tempo estão em húa cama, por se acharemmui carregados de annos e achaques cauzados na Guerra, e deffensa deste estado,em que forão passados de Balas e outras varias feridas, com que todos estas cau-sas os fazem yzentos do exercício de seus postos; porque de continuarem nelles,rezulta ao serviço de V. Mag.e grande -prejuízo; assim pia pouca deseplina queexprimentão os soldados, como pela falta q-ha de officiaes, para hirem à Guerrareferida, e asestirem nas guarnições das Fortalezas, que esta capitania prouê. Com.que me parece que V. Mag.e por sua real grandeza, deue mandar dar a estes capi-tães as suas reformações, como he estillo neste Reyno, pois estes soldados se em-pregarão com tão asinalado valor, e zello no real serviço, porque poucos serão osannos que logram esta m.cê, e mandar prouer estas companhias, em sogeitos queem melhor idade se possão achar nas ocaziois que se offerecerem; e nellas facão aV. Mag.e grandes seruiços.

Os soldados destes Terços, me fizerão requerim.to para que eu representassea V. Mag. a justa petição que lhe fazião; pedindo a V. Mag. e lhe fizesse m.cêordenar, se não obserue nesta capitania o serem os Alferes perpétuos, porquantotinhão informado mal a V. Mag. e sobre este particular, dizendolho hora muy pre-judicada a sua faz.a pellas reformaçois que nesta Praça se estauão dando todos ostrês annos; o que achey pio contrario, porque nunca nella se derão; mas antes hemuy útil que V Mag.e conseda a estes soldados, serem os Alferes trienais, porqueas reformaçois que depois tem, he asentarem Praça de soldados, e fazerem sua obri-gação como tais, com a slrcunstancia de terem sido officiaes; para delles se fiarqua'quer empreza; e assim ficão todos logrando a honra, que meressem, anlman-

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losse os homens nobres a seriarem com o intento de serem acrescentados; e V. Mag.ecom o lucro de ter soldados que forão offiíiaes promptos, p á toda a'ocasião emque forem necessários.

Também achey seruindo a Agostinho Cezar de Andrade Gouernador da Forta.leza nossa s.a do bom sucesso das sinco pontas, por Parente de meu antecessorDom João de Souza, com a qual requere a V. Mag.e a confirmação; he este sogeitocapas de não só ocupar este posto, senão outros mayores, assim por sua qualidadevallor e desposição, como por ter ocupado o posto de Alferes de M.e de Campo pagona Guerra; e na pás o de Capitão; e ultimamente Coronel e capitão mayor da Ca-pitania de Itamaracâ, por Patentes de V. Mag.e esta que agora pede; espere eu dagrandesa de V. Mag.e lha conseda; porquanto conueni muito ao real seruiço deV. Mag.e para a conseruaç&o destes Fortes, hauer Gouernadores nelles para o repa-ro das ruínas das obras, e dos quartéis dos soldados, porque tratão de tudo comodeuem, e os Cappitais, que aly vão entrar de Guarda, e sayem não atentão ao ré.paro, e descaminho que se segue a faz.a de V. Mag.e; e o soldo deste Gou or sepode asentar nos ef f eitos da Cam.ra; na conformidade que se paga aos terços- eme parece prezente a V. Mag.e que as Fortalezas deste destricto gozem o que'seobserua com as desse Rn.o; V. Mag.e mandará o que mais conuier a seu real se-ruiço. A Real pessoa de V. Mag.e, g.de Nosso S.or como seus vassalos hauemosmister. Reçiffe de Pernambuco 8 de Agosto de 1685.

João da Cunha Sotto-Maior.

Tem à margem o seguinte despacho: Ao Conselho pto ao l.o ponto que nãoconvém que se admita a paz com estes negros, pois a experiência tem mostrado, queesta pratica é sempre um meio engano e ainda pelo que toca a nossa reputação emse tratar e à vista com eles ficamos com menos opinião pois isto são uns pretosfugidos e cativos e assim se deve dizer ao Governador que ele lhe faça a guerrausando daquelles meios que fizeram seus antecessores comunicando aos moradoresque porque a hostilidade aos negros é tudo em ordem à sua conservação e sossegoqueiram contribuir com o que puderem para de todo se extinguir o dano que pade-cem rtos assaltos destes negros e no que toca ao 2o. ponto deve V. Mag. e ser servidosejam pessoas capazes de se poderem valer deles para toda a ocasião que a estesconsiderando o m.to que convém a seu serviço de que os capitães servem aos 3.osque nomeia o Gov.r João da Cunha e ( ) de Souza se dê as suas reformaçõespara que tenham com que se sustentarem e se ponham editais para se proverem emsujeitos de toda a suficiência e rio merecimento de Agostinho César se tem feitoa S. Mag.e consulta que até agora não foi servido mandar deferir Lx a 7 Fevereiro de 1686.

(Do livro "As Guerras Nos Palmares" de Ernesto Ennes, página 142).

CONSULTA DO CONSELHO ULTRAMARINO. DE 18 DE AGOSTO DE 1696. EMQUE O GOVERNADOR DA CAPITANIA DE PERNAMBUCO DA CONTA DE SEHAUER CONCEGUIDO A MORTE DO ZOMBY, E PERDÃO QUE SE DEU AOMULATO QUE O ENTREGOU.

Snor. O gouernador de Pernambuco Caetano de Mello de Castro, em carta de14 de Março deste anno, dá conta de V. Mag. de se hauer conçeguido a morte doZomby, ao qual descubrira hum Mulato de seu mayor valimento que 03 moradoresdo Rio São Francisco apnezionarão, e remettendoselhe, topara com hua das tropasque dedicara aquelles destrictos que asertou ser de Paulistas em que hia por Caboo Capitão André Furtado de Mendonça, e temendosse o ditto Mulato de ser punidopor seus graues crimes offereçera que segurandoselhe a vida em nome delle gouer-nador, se obrigaua a entregar o ditto Zomby, e aceitandoselhe a offerta dezempe-nhara a palavra, guiando a Tropa ao Mocambo do negro, que tinha já lançado foraa pouca família que o acampanhaua, ficando somente com vinte negros, dos quaesmandara quatorze para os postos das emboscadas, que esta gente vza, no seu modode guerra, e hindo os mães que lhe restarão a se occultar no somidouro que arte f içio-

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zamente hauia fabricado, achando tomada a passagem, pelejara valeroza, ou ãeaea.peradamente matando hum homem, ferindo alguns, e não querendo renderse nem oscompanheiros, fora precizo matalos, apanhando só hum viuo; que enviandoselhe acabeça do Zomby, detreminara se puzesse em hum pão, no lugar mais publico da-quella praça a satisfazem os ofendidos e justamente queixosos, e atemorizar os ne-gros que supertiçiozamente julga vão este inmortal; pelo que se entendia que nesteempreza se acha de todo com os Palmares; que estimaria elle gouernador que emtudo se exprimentem sucessos feliçes para que V. Mag.e se satisfaça do zello comque procura desempenhar as obrigações de leal vassallo.

Ao Concelho parece fazer presente a V. Mag. o que escreue o Gou.or de Per-nambuco Caetano de Mello, de se hauer conseguida a morte do negro Zomby, enten-dendo que por este meyo se poderão reduzir os mais dos Palmares por ser este acabeça principal d« todos as inquietações, e mouimentos da guerra, que tão sensieul-mente podecião os moradores daquellas capitanias, com tanta perda de suas faz.ase morte de muitos e que V. Mag. de ha hauido. e que o perdão que seu a estemulato se deue aprouar no concederação da importância deste negro e de se poderpor termo as hostelidades tão repetidas quantas os vassalos de V. Mag. sentirãona exortação e violência deste negro Zomby. Lx.a 18 de agosto de 1696.

João de Sepulveda e MattosJoseph de F.as SerrãoO Conde de Alvor

(Transcrito do livro "As Guerras Nos Palmares" de Ernesto Ennes, pág. 142).

CONSULTA DO GOVERNADOR CAETANO DE MELLO E CASTRO DE 12 DEMAIO DE 1697 EM QUE DA CONTA DOS NEGROS DOS PALMARES ESTA-REM: QUASE EXTINTOS, E DIVISÃO QUE FEZ DOS PAULISTAS, POR CAUSADA DISCÓRDIA Q— SE RECEAVA, HOUVESSE ENTRE ELES.

Senhor. Pareceume dar parte a V. Mag. de que os Negros dos Palmares estãoquazi extintos, porque pella noticia dos que proximamente se preizionarão não che-gão a trinta, os que se ocultão naquelles matos; e nem este limitado numero se con-servara muito tempo; os Paulistas, e os índios da nova Aldeã de Nossa Senhorada Victoria tem feito varias prezas das quaes vierão a esta praça cento, e tantos,escravos em hum Barco forão oitenta para o rio de Janeiro, e os mais ficarão nestapraça por n&o exceder a ydade em que V. Mag. de premite não sejão exterminados.

A Gente dos Paulistas devedi em dous Arayes por evitar a ruína que de suasdiscórdias se receiava; e por ser isto de grande utilidade para as capitannias circum-vezinhas aos Palmares; o Mestre de Campo Domingos Jorge Velho; ficou no mesmolugar em que estava, e na sua companhia sinoo capitães que escolheo, e os outrosnomeou para se agregarem ao Sargento mor Christovão de Mendonça que o ditoMestre de Campo desejava muito apartir de sy; o Sargento Mor, e os mais capitaiscom Sua Gente ficão cituados nas cabeceiras de Porto Calvo; no mesmo lugar emque se pretendia fazer segunda Aldeã de índios como a V. Mag. de avizey o queagora se escuza, e os moradores de Porto Calvo recolhessem tantas conveniênciasnesta vezinhança dos Paulistas que me consta se lhe obrigarão a proveitos de todoo mantimento que necessitassem enquanto suas rossas lhe não dessem o Sustentode que carecião.

Porem senhor paresse justo que aos officiaes deste Terço se lhes asista com omeio soldo que V. Mag. de foy servido concederlhe pêra o que ao menos tenhão comse vistão o que não pode ser sem consignação certa, quando V. Mag. de não queiraque da Fazenda real se facão estas despezas se detrimine que os Tabacos que dasAlagoas, e rio de São Francisco se navegam para a Bahia paguem subcidio cdmosempre foy uzo; e nesta forma crecera tanto o rendimento do dito subcidio que comtoda a largueza se faça o gasto deste crecimento; a aybda quando isto fosse novotributo nunca se podiãó queixar aquelles Povos por serem os mais interessados naconquista dos Palmares; como se verifica nas melhoras que já hoje logrão.

Taobem faço presente a V. Ma.de que os Capitães e officiaes Paulistas sammuitos delles cazados, * dezejão sumamente mandar conduzir suas Molheres, e fa-

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millas pêra og lugares em que rezidem, e donde intentão fazer duas villas; mas apobreza lhes difficulta fretar embarcassão em que possa vir esta Gente; pareeemeútil e asertado; que V. Mag.de lhe mande fretar numa humaça ou premita que váesta Fragatinha Ingleza pêra a condução que se pretende a qual será pêra bem daconsciência destes homens e particular serviço de V. Mag.de Guarde Deos a realpessoa de V. Mag.de Pernambuco 12 de Mayo de 697.

Caetano de Mello de Castro.

(Transcrito do livro "As Guerras Nos Palmares" de Ernesto Ennes, pág. 142) .

"JORNAL DE SERGIPE" 19 DE MARÇO DE 1873.

No relatório apresentado por Manoel Spínola Júnior (chefe de policia) há oseguinte trecho:

Captura de Quilombolas. — "Vem de longa época a existência dos quilombosem diversos pontos da província.

Reunidos em grupos nos termos de Larangeinas, Divina Pastora, Rosário, Ca-pella e Japaratuba, os quilombolas são uma constante ameaça á segurança indi.vidual e de propriedade.

Desde que entrei em exercício nesta repartição, chegando ao meu conhecimentoos factos praticados por taes escravos, e a maneira aterradora porque assaltavamos lugares mencionados, tenho me empenhado seriamente para que sejam elles cap.turados procurando assim tranquilisar os proprietários d'aquelles municípios e luga-res eircumvizinhos.

V. Excia. sabe perfeitamente o cuidado que me tem dado o serviço da capturadesses malfeitores, c pode avaliar o interesse que ligo a este objecto pelas providen-cias por mim tomadas, sempre de accordo com V. Excia. que muito tem auxiliado apolícia nesse sentido.

Infelizmente, os resultados não correspondem ainda aos esforços empregados,por isso que em diversas diligencias procedidas depois que estou em exercício, nasquaes se tem distinguido o tenente do corpo de polícia Joio Baptista da Rocha auxi-liado pelas autoridades policiais encarregados de promovê-las, não se pode passaralem das seguintes capturas: 8 no Rosário e 4 em Divina Pastora e 2 em Laran-geiras.

Para isso não pouco concorrem alguns proprietários dos referidos municípios,os quaes por um desleixo criminoso não só deixam que esses escravos se acoutemem suas terras, como também não impedem qòue se relacionem com os que possuemnos <seus engenhos, o que é de grande proveito áquelles, que não podem ser aprehen-did&3 sem grande difficuldade.

Continuo, entretanto, a activar esse serviço na esperança de conseguir resulta-dos completos, e estou convencido que havendo perseverança, sendo repetidas bemcombinadas e promptas as diligencias, hão de os quilombos desapparecer, porque osescravos n'elles reunidos ou serão capturados ou amedrontados se irão dispersandoem procura da casa de seus senhores.

A ultima hipótese já se vae realizando, conforme as communicações que tive daCapella e acabo de receber de Larangeiras, onde ha poucos dias se apresentou umdos mais temidos n'aquella localdiade.

A falta de força dos pontos é para isso um grande embaraço, mas espero queV. Excia. que tanto quanto eu se interessa em ver restituída a tranquillidade dosproprietários da província se dignará de provedenciar a respeito como entenderacertado para chegarmos aos fins que tão anciosamente desejamos".

"JORNAL DE SERGIPE" DE 14 DE MAIO DE 1873.

Quilombolas. — O atual delegado de Laranjeiras, Vicente Jeremias Roberto deCarvalho, procedeu uma diligência nas matas do Engenho Brejo. Por denúncia queteve da existência deles naqueles lugares.

Infelizmente, apesar dos esforços empregados, evadiram-se os escravos conse.guindo apenas a escolta trazer preso um pardo de nome Francisco fugido há mais

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de um ano do seu senhor Manoel Curvelo de Mendonça, sendo obstáculo a melhoresresultado o mão tempo, a dificuldade de marchar a escolta regularmente em um»mata extensa e intransitável, e também a pouca força de que dispunha o delegado.

A prisfio da escrava não deixa de ser de importância, porque veio se descobrirque tivera ela um filho nos matos e que o viera depositar em casa de uma mulhermoradora em Laranjeiras conhecida por Maria Cabocla.

O Sr. Dr. Chefe de polícia tendo conhecimento desse fato, recomendou que odelegado procedesse as averiguações necessárias para saber se com efeito existeo menor em poder da dita mulher, a fim de que sendo tenha ciência o dr. juiz deórfãos, a quem cabe proceder a respeito da forma do reg. que baixou com o decretode 13 de novembro de 1872, por ser o menor considerado liberto.

Vê-se bem que esses quilombolas praticam toda sorte de perversidades nos lu-gares em que se encontram. Roubam, fazem mil tropelias, privam-se dos seus pró-prios filhos, quando não lhes dão a morte, como muitas vezes terá acontecido.

Convém, pois, empregar todo o esforço para extinguir esses malfeitores.

JORNAL DE ARACAJU: 15 DE MARÇO DE 1874.

No relatório com que o exmo. snr. António dos Passos Miranda abriu a Assem-bleia Legislativa Provincial no dia 2 de março de 1874, lê-se:

Quilombos:Ainda não se pôde extinguir os quilombos que, d« longa data, são o terror de

grande número de proprietários, cuja fortuna e vida sofrem constante ameaça pelasescoltas que de vez em quando dão os escravos em diferentes termos. Muitas dili-gencias se têm feito e alguns resultados se há colhido. Resta, porém, muito a fa-zer,se. Ainda não há muito tempo, em 24 de dezembro último, foi o chefe de poli.cia pessoalmente dar o necessário plano para ver se conseguia a captura de umgrande grupo entre os termos de Capella e de Rosário. Infelizmente os quilombolasaeham.se tão prevenidos que, apezar de todas as reservas, foram sabedores da di-ligência que se combinava, e na qual se contava vê-los capturados sem o menordesastre.

Asseguro.vos que não permanecerei inativo nesse serviço, se bem que mais deuma dificuldade existam contra os meus melhores desejos a respeito. E a primei-ra não ter.se um número suficiente de praças para destinar-se, ao menos vinte,para cada termo em que os quilombolas mais se apresentam, ou então para formar,se um destacamento volante de não menos 50 praças, sob o comando de um oficialbrioso, que se encarregasse de bater aqueles malfeitores em todos os pontos queos encontrasse. Outra dificuldade consiste na falta de dinheiro para dest nar-se &espias o que também muito concorreria para a captura dos referidos escravos.

JORNAL DE ARACAJC, 20 DE MARÇO DE 1872.

Diligência policial — Como já tivemos ocasião de dizer láeguiu no dia 8 o snr.dr. chefe de policia para Maroim e dali foi ao Rosário, no mesmo dia.

Segundo plano combinado e as ordens do exmo. snr. presidente da provínciaencontrou 80 praças da Guarda Nacional para auxiliar a força que o tinha acompa-nhado e aos destacamentos de diferentes localidades, ali concentrados. Esses des-tacamentos, que se haviam movido todos n'um só dia, já tinham prestado o serviçode devassar as matas dos engenhos que ficam em direção ao Rosário e arrojar osescravos para o lado onde estava o grosso da força. O alferes João Batista daRocha recolhera-se no dia 10, depois de percorrer as matas dos engenhos CapimAssú, Várzea Grande e Jurema. Auxiliado pelo administrador do !• dos referidosengenhos, foi a um lugar onde encontrou 10 ranchos que mandou destruir.

Os quilombolas, que tinham formado nova situação próxima àquele lugar, teriamsido presos, se porventura não tivessem aviso: perseguidos deixaram grande porçãode sebo de gado, cordas, alimentos, etc.

A amisade e proteção que quase todos os escravos dos engenhos votam os qui-lombolas são sérios obstáculos: dão não só aviso como guarida no caso de qual.quer emergência, mesmo dentro das senzalas.

Desconfiando-se que sob tal proteção estivessem os quilombolas, cujos ranchosforam montados nas terras do Capim Assú, o snr. Dr. chefe de policia mandoucercar as senzalas do dito engenho. Teve a satisfação de ser eficazmente auxtlia-

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do pelo proprietário o snr. comendador Boto. Não foram encontrados os quilombo-las, mas foram presos 4 escravos da fazenda que fizeram importantes declarações.

Na tarde de domingo seguiram 62 praças sob o comando do capitão João Este.ves de Freitas para Divina Pastora e o snr. dr. chefe também para ali se dirigiu,sendo auxiliado pelo respectivo delegado e pelo sempre prestante major Felix 15e-ferino Cardoso. Foram cercadas as senzalas dos engenhos Limeira, Piedade e Quin.dongá, dlrigindo.se ao l* em companhia do delegado.

Os proprietários desses engenhos ou seus representantes felicitaram-se com aque-la solução da autoridade.

Viviam aterrados e com razão. A presença da força e á frente dela o chefede polícia, desmoralisou os quilombolas cuja audácia tinha chegado ao ponto deentrarem nas vilas e povoados, 10 e 12, armados e bem montados, disparando asarmas na porta de algumas autoridades. A força se retirou para a vila do Rosá-rio e o Sr. Dr. Chefe chegou á capital no mesmo dia á noite.

Houve duas prisões importantes e um escravo fugido apresentou-se ao senhorna cidade de Maroim.São dignos de menções os serviços do alferes Rocha na arriscada missão em

que se acha e devemos1 louvar o auxílio prestado pelos particulares como bem otenente coronel João Gonçalves de Siqueira Maciel, pela prontidão com que dispôs aforça da Guarda Nacional da vila do Rosário. Eis o importante serviço que prestouá segurança industria' o snr. dr. Barbosa Lima, tendo abenegação de empenhar seusserviços pessoais, quando tão próxima estava a sua partida para a comarca que lhefoi designada. La chegaram dois escravos presos nas matas do Capim Assú.

No dia 16 foram cercados nas margens do engenho Floresta, com o valioso au-xilio do respectivo proprietário José Bernardino D. C. e Mello que forneceu não sócavalos e alimentação como em pessoa acompanhou a força. Por aviso dado doengenho fugiram os quilombolas, deixando vestígios da precipitação com que o fi-zeram.

"JORNAL DE ARACAJU", 3 DE ABRIL DE 1872.

Quilombo'as — No dia 21 foram presos nas mata» do engenho Capim Assu 3escravos fugidos, sendo — criminosos dois por se confessarem dos ferimentos gra-ves que sofreu Angelo de tal, no caminho de Capela.

Um deles de nome Romão, declarou pertencer a Hércules de tal, senhor do en.genho Boa Nova; o de nome Evaristo declarou ter fugido cerca de mês e meio doengenho Sítio Novo; a escrava Germana declarou ter fugido há pouco tempo dotermo de N. S. das Dores, onde mora o seu senhor.

Antes dessas prisões o delegado de Rosário tinha cercado os sítios Baracho eFaçáo entre a mesma vila e o Pé do Banco, infelizmente sem resultado por faitaráquella autoridade o auxilio prometido do distrito vizinho.

O delegado de Divina Pastora, cercou no dia 23, auxiliando o destacamento comalgumas praças da guarda nacional as matas do engenho Batinga, onde havia umquilombo de 11 negros. Infelizmente malogrou-se a diligência por imperícia de al-gumas praças se não pusilanimldade. Apenas foi capturada uma escrava e apreendi-dos 4 cavalos, duas armas de fogo e muitos objetos de alojamento.

No engenho Floresta, termo de Rosário, também houve um cerco mas sem re-sultado, apesar do bom auxílio que prestou o proprietário daquele engenho, quedeu monta às praças e acompanhou as diligências.

São dignos de louvores as autoridades que têm sabido corresponder á confiançada autoridade superior na execução de tão importante tarefa; os alferes executoresde tão arriscadas diligências e es proprietários que os auxiliaram.

A experiência tem mostrado o grau de relação que entretém os quilombolas comos escravos dos engenhas: acham aqueles apoio e proteção; trocam estes farinha eagasalho pela partilha nos roubos dos primeiros e em caso de perigo invadem assenzalas.

Desde que os proprietários situados nos lugares mais percorridos pelos quilom-bolas exercem assídua fiscalização na sua escravatura, cortando quanto for possí-vel a comunicação protetora que tanto tem embaraçado as diligências, os quilom-bolas, entregues aos seus próprios recursos, não oporão resistência á estratégia eserão capturados.

O concurso de alguns senhores de engenhos, já tem produzido excelentes ré.sultados.

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"JORNAL DE ARACAJO" — 5 DE FEVEREIRO ED 1872.

Quilombos. — Na manhã de 2 do corrente, no lugar denominado Patioba, notermo de Japaratuba processaram os moradores do mesmo lugar em casa de umapreta africana dos quilombos Venceslau e Rufino, o primeiro do engenho Coité eo segundo do Bom Jardim termo do Rosário.

Animado pelo louvável desejo de captura-los cercaram a casa mas os quilom-bolas evadlram.se disparando as pistolas que traziam, sendo que a do escravo Ven.ceslau, empregando-se em um dos cidadãos que diligenciavam prender esses mal.feitores.

Assim continuam ainda ousados os quilombolas, a despeito das sérias provi-dencias que se tem tomado para extingui-los. Convém redobrar de esforço nessesentido, e que todos secundem a ação da autoridade por bem da tranquilidade dosproprietários e da província.

"JORNAL DE ARACAJXJ" — 10 DE AGOSTO DE 1872.

Quilombos. — Vão de novo apparecendo em alguns pontos os escravos fugidos.O rigor do Inverno fal-os procurar as proximidades dos povoados e a protecção

dos parceiros dos engenhos, protecção que muitas vezes tem burlado as diligenciasda policia.

Ultimamente na villa de Japaratuba fez.se uma diligencia que senão fosseáquella proteção grande seria a preza. Pressentiram o movimento da força e dei-xando os ranchos com precipitação refugiaram-se os quilombolas nas senzalas dosengenhos.

Foram destruídos nove ranchos e aprehendidos alguns animaes.Manifestaram-se ainda em outros pontos do baixo Continguiba os mesmos es-

cravos. A administração não se tem descuidado de garantir, quando lhe pcrmitle apouca força de que dispõe, a ordem publica e segurança individual.

IS de crer que os propietarios, os mais ameaçados com a nova atitude que vãotomando os quilombolas, se esforcem para manter nos seus engenhos severa vigi-lância em ordem e prevenir o perigoso conluio que hora se dá para frustrar os pla-nos da autoridade.

DESPACHO EM REQUERIMENTO DOS ESCRAVOS CLAUDINO PEREIRA DEJESUS E LUIZ BENGUELA PEDINDO LIBERDADE.

Os supp.es vierão com mais num preto Captivo q aqui se acha da vá de SamMatheus e culpa de rebelião remetidos Cap. mor da Vá com nuacarta de guia naq declarava terem se levantado os pretos daquella terra forros ecaptivos contra os brancos e pardos eq os suplicantes tinhão sido presos como ca.oeças desse motim querendo num delles ser Rey e qe seestava procedendo a devaçap ser remetida he quanto sei destes presos, eposso informar a V. S. que mandaráo que for devido. Cadeia da Bahia 16 de abril de 1822.

(Manuscrito existente no Arquivo Público do Estado da Bahia).

AUTO DE PERGUNTAS FBÍTAS AO REO LOURIANO, PRETO NOVODE NAÇÃO MACUA.

Anno do nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil oitocentos e vinte etrez aos trinta dias do mez de Abril do dito anno nesta cidade do Salvador, Bahia deTodos oa Santos e Cadeias publicas d'ella onde foi vindo o Doutor Juiz de Fora doCrime Luiz Paulo de Araújo Basto commigo Tabeliam aodiante nomeado, eo Escri.vão Adjunto José Herculano Pereira Lisboa da Cunha afim de fazer perguntasaopreto novo quedeclarava chamar.se Louriano de nação Macua aqum mandou vira sua presença e também o Advogado dos Santos Evangelhos elhe encarregou fossebem curador do Reo quo promette e estava defendendo e conforme e de Direito;igualmente mandava dito Ministro vir apresença os pretos Sebastião e Franciscopor entenderem alingua do Reo, elhes encarregou debaixo domesmo juramentoi queeommunlcassem ao Reo as perguntas que elle Ministro passava a fazer c convi-da em língua portugueza as Respostas que ella dlHHirsem que tanto elles como o Reo prejudicassem a terceiras pessoas e quo oaiilmprometeram fazer.

Foi perguntado como se chamava de que Nação era, o quantos annon t l i i lm:

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Respondeu chamar.se Lourianó ser de nação Macua, e parece ter deidade vin-te annos.Foi perguntado sesabia os motivos porque estava preso.Respondeo ser por causa dos brancos que foram mortos pelos pretos a bordo

do navio em que vinhão.Foi instado para dizer a verdade pois que seos parceiros dizião que elle Respon-

dente fora hum dos que se havia levantado, matando os brancos, elançando.os nomar vivos; Celestino jze.

Respondeo que ella nada fez de que jogar com achas de lenha nos brancos eque não matara a nenhum, e que assim mesmo foi porque os outros disserão que seassim não fizese os brancos os comeria» na sua terra e que quem aconselhara aosnegros novos para se levantarem fora o preto ladino de nome José Pato e que quemmatara os brancos forão o pretos novos Macú Namatandú e Mucutandú.

E setndo instalado pelo Ministro hobre o objecto respondeo pela mesma formaE assim havia dito o Ministro estas perguntas as quaes

sendo lidas, e se Respondente declaradas pelo Intendente Sebastião disse estaremconforme ainterpretação como o asseverou o Interprete Francisco que esteve presen-te doque nós Escrivaens damos fé. E para constar fiz este termo que em assignouO Ministro Curador Adjunto e o Respondente e Interpretes EuJoaquim António de Alves Fialho escrevi. (Seguem.se as assinaturas).

(Manuscrito existente no Arquivo Público do Estado da Bahia),

PARTE GERAL DA DIVISÃO MILITAR DA GUARDA IMPERIAL DA POLICIANO DIA 17 DE DEZEMBRO DE 1826. .

S. Lázaro Quelús.Tendo-se-me denunciado que alguns pretos, te aquilombavão, epremeditavão

aprezentar hua revolução na'Cidade, dispunha.me aprevenir, efrustar suas tentati-vas quando no dia d'hontem soube que alguns dos preditos negros, antehontem, ha.viSo ferido avarias pessoas no Caminho do Cabulla e rapitado hua menina, que comsua família se passava a hua rossa no dito citio (cuja foi achada hoje muito mal-tratada e por isso foi recolhida, ao hospital da Misericórdia onde se acha) e entãonão podendo agoardar o momento que havia designadopara momentaneamente, e ashoras, que pela denuncia me parecião próprias, para capiturar os malfeitores, de-pois de haver participado a V. Excia., quando tinha a tal respeito chegado ao meoconhecimento e recebido as ordens necessárias, passei immediatamente a communicara vários officiais, pondo-lhes a sua disposição diversos troços Tropaspara que marchando aos lugares suspeitos aprehendessem osrevolucionários cuja ordem por elles cumprida, effetuarãosuas deligencias com os resultados que se evidenci&o pelas respectivas partes, abai-xo transcriptas. — Participo a V. Sá. que marchamos da Cidade as dez horas dodia, como me foi por V. Sá. ordenado, com doze soldados e hum Cabo, p.a oCabulla, e chegando a Estrada do d. o lugar tive noticia, que os negros estavão reu-nidos em o lugar denominado Orubú — em numero pouco mais, ou menos, de cin.coenta, e também, alguas Negras, «procurando para ver se os descobria encontreicom hum Capitão de Assaltos, e mais dous Criolos gravemente feridos, ahi soube

„..„„ j.» ~i.v.oi.i.i ei com um ágio, e 'm soldados do Regimento de Pirajá e unindomecom esta força fui exercer a o n»» soniin n»r«»ofcM« ~i««—«.. coió. i«. v» *"i exercer a o que sendo percebido pelosreferidos pretos pozerão-se em defeza fazendo pá isso uso de hum como de boi comhum na ponta inferior que formava huma espécie decorneta, e como viessem armados de facas, Facõens, Lazarinaa, Lanças, e mais ou.trosinstrumentos curtos, griteiJhe q se entregassem, mais elles lançando-se furiosossobre a tropa grltavão Mata, e Mata, foi-me necessário mandar fazer fogo, com oque consegui desperçarem-se, e indo em alcance prendi a negra Zeferina a qual seachava com arco e flexa na mão, e achei 3 negros mortos, e huma negra e algunssacos de farinha, ebolacha, e como fosse já noite e eu não tivesse certeza ondeachasse os desperçados negros por q todos tinhão fugido deixei perto do referidolugar o mencionado Sargento e Sold.os de Pirajá pá observar qualquer movimentoq houvesse retirandojne as 7 horas da noite adar parte a S. S. do acontecido eentregando neste Qel a preta aprehendida com o arco e flexa q lhe forão achados.

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Ba e Quartel de Policia 17 de dezembro de 1826. — José Balthazar da Silveira.— Ajudante.

casebresprender os negros que junto se achassem assim o executei, e nelles achei quinzenegros e oito negras que são os seguintes — António, escravo de Sabino Vieira. —Conrado, de Luiz Ramos — Camilo, de Joaqm da Rocha — André, do Cap.am Fe.lippe — Joaquim, de António Guim.es —Jão, forro. — Roque, escravo de D. MariaConstância. — Fabé, de António Coelho — Vitorino, de Faustino — Rafael,. de Ma-noel António dos Santos. — Mathias, do Coronel Fran .o José de Mattos — Ignaoio,que não sabe o nome do Snr — Paulo de António Coelho. — Joaquim Duarte, forro.— Severino, do Padre João —• Ignacia, do Thesoureiro das Tulhas — Felicio, de Joa-quina de Araújo. — Arianna Pires, forra — Henriqueta, de José Caetano Costa, —Clarinha. do Ministro Francisco de Tal. — Joana, de Francisco Pereira — Angéli-ca, de José Fernandes, e mais tabaque et ma:s duas vioilas armadas com pia-çaba e sendo-me nessa mesma occasião denunciado que na Rua da Oração existiahum cazebre e hum grande numero de negros dirimeachando nove negros, hum pardo e hum

Pires, escravo do Barão de Pirajá — José, de D. Maria Portugal — Vicente, doPadre Luiz Dias. — António, de m.mo Snr. — Caetano, de Joaquina Roza — José,de António Machado — Geraldo, de Domingos dos Santos — António, de ManoelGoms, — Joca, de José Liai — Bartholomeu Gonçalves, pardo forro, e casado comaparda forra Joaquina Rodrigues — Maria S. Isabel escr.a da Mizericordia —Joaq.na Isabel S. Casa — Josefa, do Brigadeiro Ma-noel Pedro e Leonor, forra; e i mais um chepeo de Sol grande e coberto com pan-nos de diffe.es cores, tendo em sima huma figura com xifre, huma arma com va-retas, i e feixes, hum ferro de ponta com 4 palmos e meio de comprido, huma facade ponta com 4 palmos, e meio, e outras flamengas, huma Poltrona de couro crucom 8 cartuxos feitos de pão cheio de pólvora, e vários instrumentos de dansa oque fiz conduzir para este Qel como me cumpria. Qel da Policia da Ba 17 de De-zembro de 1872. José da Costa Velloso. — Alferes.Em consequência da ordem de V. Sá. passeido Maciel de Baixo e nelle ,

Em consequência, pois desse rumor popular e pá evitar funestas consequênciasq não pela primeira vez se tem apresentado nesta Cidade passei a requisitar aoExmo. Snr. Gen_al mais gente e tendo dado as providencias, multiplicando Patru.lhas, fazendo efectivas todas as ordens tendentes a evictar qualquer mão resultadoq pudesse ter lugar cumprindo-me ultimamente fazer eerto a V. Exa. que os negrosappresionados e armas que lhes foram contadas, ficão neste quartel athe que porV. Exa. lhe seja designado o. destino e mui particularmente sobre o preto Christovão

da ditta revolução e que se achava todavia em sua caza, com preto Franc.o Romão,porem indiciado do crime acima declarado.

(Manuscrito existente no Arquivo Público do Estado da Bahia).

OFICIO RO TENENTE CORONEL COMANDANTE DA POLICIA REMETENDOVÁRIOS ESCRAVOS PRESOS EM CONSEQUÊNCIA DE ATTVIDADES SUBVE-SIVAS NA REVOLTA DE 1826.

De ordem do Exmo. Snr. Vice Presidente, remeto prezos adisposlção dei V. Sá.os pretos rellacionados nas partes transcriptas, compreendidos, huns na rebelião,que .teve lugar nos subúrbios desta cidade, e Outros indicados como propenços aomesmo, por serem demnunciados e encontrados em Cazebres e ajuntamt.o perogozos,iicando no Hospital o que se intitulava Rey, o qual, entrajes próprios foi encontradoe que negando seu nome, todavia se sabe ser escravo de Francisco Ant.o Mascare-nbas não sendo (uma palavra ilegível) numeradas nas indicadas partes, , por serposteriormente encontrado no matto, e prezo pela trapa do Cel. Franc.o da CostaBranco: egualmeritie communico a V. Sá. não hirem as pretas captivas designadas nasreferidas partes por Ordetnar o mesmo Exmo, Snr. de as entregar a setos Senr.es

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para serem punidos. Bem assim os pretos forros Joaq.m Duarte, e Thomas José.Miguel Valentiro, e Francisco Simoens passados para o Forte do Mar e ChrlstovaoVieira que he soldado do l' Batalhão de 2' Linha .fica neste Quartel de baixo damesma precipitada Ordem, eq o preto Germano posto esteja no Hospital a recebero preciso curativo está todavia a ordem de V. Sra., e nesta mesma ocazião envio asArmas e Utencilios de diversas qualid.es e Uzos que foram contadas e se achão

partes.

Deos G.e a V. Sá.Quel da Policia da Ba. 27 de Dezembro de 1826.

limo. Senr. Dezembargador Ouvidor Geral do CrimeManoel Joaquim Ponto Tent.e Cel. Comde.

(Manuscrito existente no Arquivo Público do Estado.da Bahia).

TRECHO DE AUTO DE CORPO DE DELITO

Anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil eoitocentos e vinteseis aos desenovet dias do mez de Dezembro do dito anno nesta Cidade da Bahiaem a egreja da Freguesia de São Bartolcimeu de Pirajá onde Eu escrivão vim paraeffeito de se proceder a exame e Corpo de delitco nos cadáveres dos fallecidos An-tónio Nunes dos .Santos, Cabra Forro, de Manoel José Corrêa branco, que tinhãosido mortos no dia desecete do corrente pelo meio dia no Sitio denominado Caja-zeira por vários negros que .se levantarão naquelle dia. E sendo presentes os Ci.rurgiões aprovados, Fortunato Cândido da Costa Dormerd e Bernardino José de Al.meida vistas pela comição que tenho de dezembargador

o juramento dos Santos Evangelhos em hum livro delles sob cargo do qual lhesencarreguei que verdadeiramente examinassem os dittos cadáveres e me declaras-sem as offensas que tinhão e o instrumento com que foram feitas e Se delias lhesproveio morte. Recebido por elles o juramento assim prometerão fazer. E passan-do a examinar o Cadáver de António Nunes dos Santos Cabra declarou ter numaferida transversal sobre o Osso Coronal de exlencão de cinco pollegadas comp"icadacom fratura do mesmo oco, outra sobre a parte superior do nariz, feita transver-salmente desta parte.com offenças nesses ossos próprios do nariz, outra na face dolado esquerdo principalmente do angulo, da boca a duas polegadas de extenção, temmais outra na parte anterior do pescoço com offença da laringe e artérias carótidastem mais duas feridas numa sobre o

da mão direita ambas com duas pollegadas de extençào, outra mais na parte ante-rior do braço do mesmo lado com extenção de duas pollegadas, ecujos ferimentosmostrão serem feitos com instrumento incisivo ou cortante, as offenças da Cabeça eprincipalmente as duas artérias de sua natureza são mortaes e por isso se lhe . . . .

E mais não declarou. Paçando a examinar o cadáverdo fallecido Manoel José Corrêa Branco dicerão ter quase toda a abobada do crancofraturada com arrancamento de peças ou perda de substancia, e falta de porçõesdo cérebro, tem mais numa ferida na face do lado direito principiando desde afonteatte aparte media do pescoço. A ctffença da Cabeça mostra ter sido feita com ins-trumento contudente, e a do pescoço com instrumento cortante, a da cabeça mortalde necessidade e mais não declararão.

Paçando a examinar o Cadáver do Fallecido Lourenço de Santa Barbara, bran-co, dicerão ter • •

inferior do osso coronal com extenção de numa polegada, outra mais sobre o su-percilio do olho direito com extenção de pollegada e meia, outra perpendicular naparte anterior da orelha direita com extenção de duas pollegadas outra na parteposterior da orelha do mesmo lado sobre aporção escamosa do osso temporal comextençSo tão bem de três pollegadas, outra ditta na parte posterior do pescoço ounuca com offenças das vértebrase da medula espinhal de cinco pollegadas de extenção e mortal de necessidade todasestas' offenças mostrão serem feitas com instrumento cortante mais não declararão.

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Eu escrivão doufé ver as ofenças que tinhão os referidos cadáveres. Para constarfiz

(Manuscrito existente no Arquivo Público do Estado da Bahia).

OFICIO MANDANDO O DEZEMBARGADOR OUVIDOR-GERAL DO CRIME TO-MAR PROVIDENCIAS CONTRA A INSURREIÇÃO DE 17 DE DEZEMBRODE 1826.

Tendo apparecido na madrugada do dia 17 do corrente hua insurreição d« negrosnas immediações de Pirajá termo desta Cidade da qual se seguirão assassínios, rou-bas, e incêndios de cazas conto me foi prezente pela Parte do Tenente Coronel Com.mandante da Divisão Militar da Policia e convindo á segurança e tranquilidade destamesma Cidade e Província tomar todas as medidas necessárias em negocio de tantamonta: ordeno ao Dezembargador Ouvidor Geral do Crime que proceda immediata-mente em conformidade das Leis contra os reos de tão pernicioso 'crime, procurandoconhecer por melo de perguntas aos ditos reos o fim a que se dirigia tal projecto,e do que achar me dará logo conta, para que eu providencie como o exigir a se-gurança publica. E quanto aos indivíduos que forão achados em cazebree, metteráem processo aque'<es que pela natureza de suas culpas o merecerem segundo a parteque lhe será apresentada pelo sobredito Tenente Coronel Commandante, e aos outrosfará castigar policialmente conforme a maior ou menor gravidade de seus delidos,para depois serem entregues a seus senhores. Palácio do Governo da Bahia 20 deDezembro de 1826.

(Manuscrito existente no Arquivo Público do Estado da Bahia).

LIBELO CONTRA UM DOS RÉUS IMPLICADOS NA INSURREIÇÃO DE 1830.

l

que os vio com mais outros pretos em n» de 18 a 20 namanhã do dia 10 de abril do anno passado acometerão a loja do Francisco José Tupi-nambá na rua da Fonte das Pedras, donde tirarão violentam.e 12 espadas de copos,e 5 Parahibas deixando ferido o dono da loja, no peito direito e o caixeiro JozéSilvino Raposo com uma 'cutilada na cabeça e huma estocada na nádega.

P. que os ditos pretos fizerão a mesma assuada na loja de Manoel CoelhoTravessa também com vistas de tomar aã armas desta loja deferragem, e comoachassem rezistencia por se ter já então prevenido o dono, e os caixeiros de' dentrodo balcão com espadas, e com hum bacamarte, que os fez Intimidar apenas tirarãohuma Parahiba; e passando para a de Francisco Jozé Pereira Leite com igual tu-multo roubarão seis das ditas Parahibanas.

E que munidos das sobreditas armas os taes cabeças de motim, depois de co-metterem outros attentados na rua Juliãa onde ferirão gravemente a Nicolao An.tonio da Mala diriglram.se ao Armazém de Wenceslau Miguel de Almeida, afim desublevarem os captivos daquella armação, e se reunirem para fazer corpo com quepudessem levar a êxito a insurreição premeditada por elles, segundo a denuncia re-ferida no officio do mesmo Comm.e da Policia dfls. 9.

P. que os taes cabeças do motim acompanhados de mais de 100 dos dittos capti-vos que poderão seduzir, e de outros ladinos que se lhes forão Incorporando muni.doa de paos, atacarão a guarda da Policia da Soledade, que constava de 7 soldados

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a hum sargento; e neste conflioto ferirão gravemente ao Soldado Francisco Lopesde Carvalho de quem tomarão a arma.

P. que os reos com mais outros os amotinados em n' de 41 forâo prezos pelaescolta Militar na Matta de S. Gonçalo para onde tinhSo fugido perseguidos peloPovo que contra elles se havia armado em defesa commum para os rechaçar, comofelizmente acontece evitando-se a continuação das hostilidades e horrores a quese propozerão.

P. que conforme o Direito os reos devem ser punidos com as pennas compe-tentes estabelecidas no Código Criminal para exemplo de outros, conservação dosocego publico e desagravo da Sociedade offendlda, para que se officie o presentelibello que se esperava ver julgado afinal aprovado por vir de tudo.

F. P.P.R.C.I.O.M.I.M.P.P.N.N.

E.Des.or. António Cerqueira Lima.(Manuscrito existente no Arquivo Público do Estado da Bahia).

PORTARIA DO CHEFE DE POLICIA NO DIA POSTERIOR AO MOVIMENTODE 1835

Illustrissimo Senhor. Vossa Senhoria repartirá pelo Districto immediatamente to-dos os inspectores de Quarte rão dessa Freguezia e os encarregará de entrarem emtodas as casas por lojas pertencentes a pretos Africanos dando huma rigorosa buecapara descoberta de homens, armamentos, e ficando na intelligência deque nenhum delle goza de Direito de Cidadão, nem deprevilegio de extrangeiro, eque a Policia exige rigorosamente que por uma vez se acabe qualquer possibilidadede tentativa como a da noite passada. Vossa Senhoria chamará para turma oscidadons do seo Districto que julgar necessários forçando-os a obideencia se o pa-triotismo ou interesse da própria conservação os não convencer em se prestarem.As noites de hoje em deante deverão haver innumeraa patrulhas de cidadãos e grandevigilância das autoridades Policiais as quais me darão conta de tudo quanto occorrera tal respeito, exijo a parte do que ocorreo hontes neste districto. Deos guarde avossa Senhoria Bahia vinte e cinco. Ilustríssimo Senhor Juiz de Paz do PrimeiroDistricto da Victoria. Francisco Gonçalves Martins.

(MS existente no Arquivo Público do Estado da Bahia).

OFICIO DE ANDRÉ ANTÓNIO MARQUES AO JUIZ DE PAZ DO PRIMEIRODISTRITO DA VICTORIA:

Ilustríssimo Senhor: — Tendo rebentado na noite de hontem para o dia de hojevinte e oinco do corrente huma insurreição de escravos para maior parte Nagôs, deque hia eu sendo victima assim como Vossa Senhoria, e outros nas Mercês onde fo-mos atacados, de que nos salvamos na Fortaleza de Sam Pedro por grande felici-dade sendo desgraçadamente morto o Sargento da Guarda Nacional Tito Joaquim daSilva Machado procurei hoje empregando maior diligencia prender aquelles insur-gentes que erão do meo Districto e entre estes capitulei como cabeças e chefes declubs que se juntavão na casa do Inglês Abrahão e de quem anteriormente tinhadado parte ao Excellentissimo Presidente da Província os seguintes Nagôs Diogo,Ramil. Jaimes e João escravos de Abrahão, Carlos, Thomas Cabeças de clube sahirãoe recolheram-se pela manhã ainda com as ainda com as calças com san-gue examinei não tinha ferida alguma no corpo escravos de Francisco Robilhard,Cornelio escravo de Pletoris Inglês apanhou.se recolhido para casa confessou terhido com os outro erão tão bem do clube, Luiz escravos de entrou pelamanhã sujo de pólvora com anel no dedo o senhor o entregou e disse que elle tinhasaldo era do clube. Thamaz encravo de Vagner cabeça do dlub, mestre que ensi.

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nava a escrever consta recolher-se pela manhã. José escravo de José António deAraújo, o senhor mandou-o entregar por ter entrado na insurreição e recolhido-sepela manhã com uma bala atravessada na perna, era cabeça do cilub. José escravode Evano por denuncia que tive acha.se preso para averlguar-ae, acham.se presos,hum na'fortaleza de S. Pedro, e outro na Fortaleza do Mar por ordem de VossaSenhoria. Bahia e primeiro Districto da Victoria vinte e cinco de janeiro de mil eoito centos e trinta e cinco. Illustrissimo Senhor Juiz de Paz do Primeiro Districtoda Victoria. André António Marques. Inspector.

(Manuscrito existente no Arquivo Público do Estado da Bahia).

TRECHO DO INTERROGATÓRIO DE JOÃO, ESCRAVO DO INGLÊS ABRAHÃO.

foi Interrogado opreto João escravo do inglez Abrahão da ma-neira seguinte: Perguntado qual o seu nome, naturalidade, residência etempo deliano lugar designado. Respondeo chamar.se João de nação Nagou escravo do inglezAbrahão residente na estrada da Victoria a hum anno, pouco mais, ou menos, sendoescravo deste a doze annos. Perguntou quais os seus meios de vida eprofissão. Res-pondeo ser cozinheiro em cujo trabalho "se entrega na casa de seu senhor. Pergun-tou-se conhecia apessoa que deu aparte contra ella, e desde que tempo. Respondeoique conhecia de vista por ser morador na Estrada da Victoria desde o tempo quepara ahi veio morar. Perguntou se temfactos a allegar, ou pras que justifiquemsua innocencia. Respondeo que não. Foi mais perguntado e não saibia quem tinhafeito a casa, de palha no fundo da roça do seo senhor, ofim para que o effeito queproduzirão aã reuniões, que faziãa e quais as pessoas que alli se juntavão e escravosde quem. Respondeo que a casa de palha foi feita pelo seus parceiros Jaime eDiogo a fim de se reunirem, onde tão bem conversavão e por huma das vezes foivisto pelo Inspector André António Marques que se achava neste acto presente,epor elle reconhecido houve um jantar onde se reunirão todos os escravos Nagôados Inglezes muitos de saveiros que da Cidade outros de Brasileiros,os quais elle lhe hé impossível declarar por seus nomes porem que se recorda doescravo de nome Diogo morador no caminho da Barra por nomeSule em sua terra ser o Capitão delles todos reunião e conheci mais Pedro, e Car-los de'Nação Nagou escravos do Doutor Inglês Dundar, mais os escravos do inglêsMelon morador na Estrada da Victoria, hum, que se chama João, que andava no ca-minho, o cozinheiro chamado Nicio, e António vindo ultimamente de Pernambuco,mais dois escravos Nagôs Mama e Buremo cujos nomes são conhecidos em sualíngua dos escravos Nagôs do Ingleá Guilherme morador atraz da Egreja da VictoriaCornelio Nagou da casa do Hamburguez Zlton morador na Victoria, Jacinto forrocozinheira da casa do inglez Wolche, morador na Victoria, João da .nação Nagouforro que foi do Ing'ez Jelson ójous escravos do Inglez Frederico Hobehan, Martinho,Ricardo, Manoel e outro que chama-se capitão mas elle reo não sabe o nome verda.deiro que se sentava no canto de Cadeira ao largo da Victoria e se lembra agorados dous do Inglês Robeliard, seos, nomes, chamarem-se Thomaz e Carlos, e TompNagou escravo do Inglez o moleque Thomaz nagou do inglez Weicher,e Luiz cozinheiro do Americano Signot de nação Calabar porém só fala Nagou, ummoleque da casa do inglez Liú, baixo, grosso de corpo, de naçãa Nagou e outrosmuitos que elle se não pode lembrar. Sendo porem na tarde do dia vinte e quatro deJaneiro avisado por alguns parceiros dos quais elle Reo não se lembra do seu nomepara naquela madrugada se reunirem todos, a fim de matarem todos os brancos,pardos e crioulos, elle Reo a meia noite pouco mais ou menos com os seus parceirosDiogo, Jaime e Daniel se foram reunir aos outros que no campo do Forte de S. Pedroepouco depois, vendo o fogo que lhe faziam, da Fortaleza fugirão, e se retirarão paraCasa de seus Senhores encaminhando-se para os seus quartos até que foram no diaseguinte presos; e mais não declarou epara constar mandou o Juiz lavrar este termoem que assignou como Curador e testemunhas por não saber o Reo escrever.

(Manuscrito existente no Arquivo Público do Estado da Bahia).

PROCESSO CONTRA O ESCRAVO NELSON, OU NECIO, OU NOGENO, DEPROPRIEDADE DO INGLÊS RUSSEL. CORPO DE DELITO.

"Auto de exame e corpo de delicto, Anno do nascimento de Nosso Senhor JesusChristo demil oito centos trinta « cinco aos vinte e cinco dias do mez de Janeiro

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do dito anno nesta leal valorosa Cidade da Bahia, e Primeiro Dlstricto da Freguesiada Victoria e lugar do largo do Forte de São Pedro onde o Juiz de Paz respectivoo cidadão Francisco José Silva Machado commigo Escrivão de seo Cargo abaixo assig-nado e! o C rurgião Ajudante António José de Lima e Camará e as testemunhas pre-senciais e corpo de delicio no cadáver do sargento Tito Joaquim da Silva Machadoassassinado na occasiao d&" insurreição e presente o dito Cirurgião Ajudanteo dito Juiz e os juramentados Santos Evangelhos encarregou-lhes de bemexaminando o cadáver declarando os ferimentos nelle existentes, suas qualidades,profundidades o o Instrumento com que poderiao ter sido feitas, e recebido par ellèo dito Juramentado assim prometeo cumprir, e passando o referido exame declarouachar.se o cadáver com as seguintes offensas, numa ferida situada na parte superior do pescoço, e inferior da mandibola comprehendendo desde asdo occipital athé aparte anterior da mesma mandibola com corte total das artériascarótidas, veias Jugulares, partes musculajres e nervos, outra situada sobre o lábiosuperior e inferior com direcção obliqua desde a parte superior da maçã do rosto athéaparte inferior do queixo com destruição dos vasos, fractura dos dentes caninos In-cisivos, epartes musculares, cujos tecidos demontravão terem sido feitos com Ins-trumento cortante como espada em consequência dos quaes lhe resultou a morte,emais não declarou o que eu Escrivão dou fé Epara constar mandouo dito Juiz, f te. (seguem-se as assinaturas das testemunhas).

AUTO DE EXAME E CORPO DE DELITOARTILHARIA.

DOS SOLDADOS DO CORPO DE

"Auto de exame a corpo de delito, Anno do Nascimento de Nosso Senhor JepusChristo demil oito centos etrinta e cinco aos vinte e cinco dias do mez de Janeirodo dito anno. Nesta cidade da Bahia e Fortaleza São Pedro situada no Primeiro Dis-tricto da Freguezia da Victorla onde o Juiz de Paz respactivo o cidadão FranciscoJosé da Silva Machado commigo o escrivão deseo Cargo abaixo assignado e o Cirur-gia mor Manoel José Bahia fomos, e sendo ahl, mandou o Juiz proceder aexame ecorpo de delcto ncs ferimentos fetos nos soldados do Corpo de Artilharia por effeitoda Insurreição dos Africanos na noite de hontem vinte e quatro do corrente, e pre-sente o dito Cirurgião Mor lhe defino o dito Juiz ojuramento dos Santos Evangelhossob cargo do qual lhe encarregou de bem verdadeiramente examinar aos feridos de.clarando suas gravidades, profundidades e tudo quanto hé relatório, notando se haperigo devida erecebido pelo dito cirurgião opinamento assim prometeo cumprir, econsequentemente passando ao referido exame declarou que o Furriel da PrimeiraCompanhia Joaquim Amorim achou ter um ferimento na partelateral do osso frontal junto a sotura, tendo extenção pollegada e meia e profundi-dade até o osso, esta fenda parece ser feita com instrumento cortante como espa-da, não se nota perigo de vida, o que milhor se verá pelo decurso do tempo. JoséMarques de Silveira Soldado da Terceira Companhia achou ter a orelha esquerdaquase mutilada pela sua externa comprehendendo tegumentos, emusculos que reves-tem aparte pedroza pela sua parte posterior do osso temporal, ficando tão somenteligada a dita orelha por uma porção de duas ou três linhas outra mais na parte Ia.teral media externa do pescoço com duas pollegadas de extenção, estas feridas foramfeitas com instrumento cortante como espada, mas não denotão perigo de vida esimmutilação da mesma orelha, o que melhor se verá pelo decurso do tempo. AngeloCustodio Soldado da Oitava Companhia do mesmo Corpo com huma considerávelfenda sobre o osso parietal direito, na sua parte superior junto asoturapelo seu cumprimento tendo de extenção quatro polegadas e meia, eprofundidadeaté a primeira substancia do mencionado osso, esta ferida hé feita com instrumentocortante como espada, enão denota eminente perigo de vida mas pela sua situaçãoe profundidade parece haver perigo, o que melhor se verá no processo do seo tra.lamento, todos estes feridos deram grande porção de sangue fluenle e mais nãodeclarou, o que eu escrivão dou fé ver, e para constar mandou o dito Juiz lavrareste auto emque assignou com omencionado cirurgião nós, e testemunhas e commigoJoão Machado de Souza Paixão eto. — (seguem-se as assinaturas).

(Manuscrito existenle no Arquivo Pbúlico do Eslado da Bahia).

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TRECHO DO INTERROGATÓRIO DE AGOSTINHA (NAGô).

"Respondeo que mora na casa em que foi presa a trez annos por que he cama-rada de Belchior da Silva Cunha e que os papeis achados na sua casa enconlradosnesle aclo são do diclo Belchior e de Gaspar da Silva Cunha oulro negro Nagouque com aquelle se acha preso e que a. camisola e farda são do dilo Gaspar daSilva Cunha. Que os papeis são feitos pelo mesmo meslre de Gaspar e Belchior quehe escravo de um homem que faz fumo no Cães Dourado e mo. a junto da egrejadeGuadalupe ehe de Nação Tappa, cujo nome de sua terra he Sanin porque he comoelle o trata por não saber o nome que elle lem na terra de Branco o qualnegroquando está no brinquedo fala também língua de Nagou ehe velho com alguns ca.bellos brancos que o dito mestre hia acasa delia falar com Belchior muitas vezes eBelchior taobem hia acasa do senhor deite sendo a ultima vez antes desta Guerrados negros sexta feira desta guerra digo da mesma Guerra anoite pelas oito horas pouco mais ou menos que elle ficou na porta, falou com Bel-chior por pouco tempo e foi se embora. Que alem do dito mestre tão bem hia a casaconversar com o mesmo mestre os seguintes negros captivos cujos nomes da terrade branco ella não sabe porque lá só se falava com os nomes de sua terra que sãohum d« nome Ivá, cujo senhor mora na rua da Laranjeira e he carregador de Ca-deira outro de nome Bada que he ferreiro escravo do ferreiro que tem tenda naBarroquinha, outro de nome Ojou carregador de Cadeira, cujo senhor he o vigárioda Rua do Passo, outro de nome Mamonin, escravo do padeiro que mora na Egrejado Hospício do Pilar o qual dantes vendia pão, e agora eslá em casa Irabalhandocom outro de nome Thirá, cujo senhor agora está no Bonfim, emora na Casa Gran-de do Canrnho Novo mais este já hc forro, ainda que está morando por hora com omesmo senhor e que quando se juntavão falavão em fazer guerra aos brancos masque ella como mulher não se mettia e antes dizia a Belchior que ella veio caplivo desua lerra c aqui tinha ficado forro que os brancos não fazião mal porque se acha-vão seo vintém comião e bebião e por isso que o dilo Belchior nunca leve lençfto dehir a Guerra e nem sahio neste dia, disse mais por lhe ser perguntado que o dinheiroachado em sua casa em sobre foi contado neste dito por ella mesma e he a quantiade setenla e nove mil quatrocentos e oitenta rela pertence ao dito Belchior e seoscamaradas presos no Forte do Mar, e mais não disse nem lhe foi perguntado peloque mandou o Juiz depositar a quantia em poder do Inspector Manoel Eustarquio deFigueiredo que como recebeo assinou também este termo mandou egualmente que oCTcrevesse em que ass nam o mesmo Juiz, O Official de Justiça Deste Juizo Boaven-tura Pimentel e as testemunhas presentes, etc. etc. (Seguem-se as assinaturas dastestemunhas).

(Manuscrito existenle no Arquivo Público do Eslado da Bahia).

AUTO DE CONTINUAÇÃO DE DILIGÊNCIA SOBRE A INSURREIÇÃO DE 1844

Anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Chrislo de mil oilocenlos quarejitacquatro nesta Cidade da Bahia e cazas do preto Marcelino de Santa Escolástica on-veio o Doutor Delegado do Primeiro Districto Domingos José Gonçalves Ponce deLeão comigo Tabelião sendo alimandou o dito Juiz continuar a busca na dila cazapelo Inspector die Quarteirão José Victor Topázio oqual por instrucções dadas peloJuiz Mandou fazer huma escavação no pavimento lerreo da dita caza enologar ondese achava molhado e com hum poiar de barro vermelho que denotava ter sido mo.lhado de próximo por se achar muito molle o barro; e no dito logar foi achado humapanella nova de barro vidrada coberta com hum testo contendo ella diverços em.brulhos todos elles de couzas que sediziam próprios de feitiçarias ou malefícios, epor mais nada houve odito Juiz deu por finda a diligencia e levantou o cerco quehavia na dita caza e na Do que para constar fiz este termoem que assignou o referido Inspector com o Juiz e mais testemunhas.

— "respondeo qua na referida loja juntão-se muitos negros, sendo a maior par-lete delles Nagôs e Tapas e alguns Aussás das seis horas da noite conversando muitodurante este tempo, gritando as vezes e outras vezes rindo-se cantando a ella inter.rogada que todos os negros que ali se reunirão contribuíam com, dous mil reis men-eaes cuja applicaçao ella interrogada ignora mas agora de próximo e por ocazlão

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da desavença entre o preto Francisco e a preta Maria ambos libertos e amaziogum do outro, soube que elles eram Males eque ella Maria hia denunciar como defacto denunciou daquellas reuniões e demais tentativas de Insurreição".

(Manuscrito existente no Arquivo Público do Estado da Bahia).

TRECHO DO INTERROGATÓRIO FEITO APRETA JOANA JOAQUINA DE S. JOSSS (LIBERTA).

Interrogatórios Neste mesmo d a mez e annoo interrogatório pela maneira seguinte. Foi-lhe perguntado setinha notícia da tentativa de insurreição praticada pelos Africanos moradores na lo-ja por baixo da Caza da interrogada e tão bem pela Africana Antonia que mora porella digo com ella interrogada. '

Respondeo — que não tem notícias de semelhante tentativa mais sabe que nareferida costuma reunir.se muitos negros sendo a maior parte delles Nagôs e Tapase alguns Delles Aussás, converção muito gritão as vezes e outras riem-ee bastante,durante as suas reuniOes que invariavelmente principiam aseis da tarde e acatamas vezes as oito horas da noite ignorando porem ella interrogada o motivo destasreuniões isto athé pouco tempo mais que de próximo e por oocasião da disavença en-tre o preto Francisco e a preta Maria ambos moradores na dita loja, e amasio numdo outro soube que aquellas reuniões eram de Males que tentavão ocntra os brancossegundo lhe disse referida preta Maria que hia denunciar a Policia como defatodenunciou.

(Manuscrito existente no Arquivo Público do Estado da Bahia).

CARA DE JOSÉ VENANCIO DE SH.XA PARA D. RODRIGO DE SOUZACOUTINHO, EM QUE LHE PARTICIPA TER CHEGADO A BAHIA E TERTOMADA POSSE DE LUGAR DE PROVEDOR DA CASA DA MOEDA, REFE-RINDO-SE A DIVERSOS ASSUNTOS DE SERVIÇO PtJBLICO E ESPECIALMEN-TE A DESCOBERTA DE UMA ASSOCIAÇÃO SEDICIOSA DE MULATOS.

Bahia, 20 de outubro de 1798.

"Huma das novidades inesperadas que aqui achei foi do perigo em que estiverãoos habitantes desta cidade com numa associação sediciosa de mulatos, que não podiadeixar de ter perniciosas consequências, sem embargo de ser projectada por pes-soas insignificantes; porque para se fortificarem lhes bastavam os escravos do-mésticos inimigos irreconciliáveis de seus senhores, cujo jugo por mais leve qu«seja lhes he insupportavel. Foi Deus servido descobri por hum modo bem singulara ponta desta meada, ao fim da qual julgo se tem chegado, sem que n'ella se acheembaraçada pessoa de estado decente. Creio que V. Exa. receberá n'esta ocasiãonuma conta muito circunstanciada d'este caso que ensina a desconfiar para o futuro.Eu não posso deixar de me lembrar n'esta occasião que todas as ordens antigasdirigidas ao Brazil a respeito de mulatos, os fazia conservar em hum certo abati-mento, prohibindo-lhes a entrada em qualquer officio publico ou posto militar,inhibição que era ampliada ainda mesmo aos brancos casados com mulatas.

A carta regia de 1766 foi segundo me parece hum erro de política em adminis-tração de' colónias, porque mandando formar corpos milicianos desta qualidade deindivíduos, se viram condecorados com postos de coronéis e outros similhantes, comque esta gente naturalmente persuadida, adiantou consideravelmente as suas ideiasvaidosas, o que junto ao espirito do século, os faz ncenper em toda a qualidade deexcessos.

Esta matéria me conduz a pôr na presença de V. Exa. outra em que me pareceindispensável que V. Exa. dê as mais promptas e positivas ordens. Ha alguns annosse tem ido formando acima da villa da Cachoeira hum Quilombo de negros fugidos« ultimamente se forma outro ainda mais perigoso a 5 ou 6 legoas de distancia d'estacidade. A deserção dos escravos tem sido agora mais que nunca excessiva e V. Exa.não ignora o que teem feito os negros marões nas colónias f rancezas e hollandezas. Omesmo se pode receiar vindo os Quilombos a crescer, se não forem destruídos antesque tomem consistência..."

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ANAIS DA BIBLIOTECA NACIONAL, vol. 36, p. 42.43, verbete n» 18433.

11-33,24,29

N' 59

261Ulmo. e Exmo. Sr.

Levei a Augusta Presença do Príncipe Regente Meu Senhor o Officio de V. Exa.N* 29, em data de 2 do mez passado, com os documentos que o acompanharão, emque accusando haver recebido o Aviso, que por esta Secretaria de Estado se lheexpediu em 18 de Março do presente anno, que continha algumas providencias sobreos escravos, afim de se evitar, que para o futuro comettão outra desordem seme-lhante a que praticou numa porção de negros no dia 28 de Fevereiro passado;expõem os motivos que tivera, para não dar inteiro e liberal cumprimento aquellaordem, na parte, que diz respeito ã prohibição dos Batuques. E tomando o mesmoSenhor em consideração tudo quanto V. Exa. pondera, me ordenou participasse aV. Exa., que os argumentos, de que se serve tirados dos frequentes ajuntamentosde negros nas fontes, Egrejas, e Theatro, não são applicaveis ao caso de que se tratapor quê seria de grande inconveniente,e até impossível prohlblr, que os escravos,que são os braços, de que todas as famílias se servem no Brazil, conduzão seusSenhores aos Templos, ao Theatro, vêo buscar agoa as fontes ,e facão outros servi-ços desta natureza, em que o condurso delles nevitável, ainda que daqui possaacontecer .alguma desordem: que a prohibição dos Batuques não esta na mesma ra-zão, por que desta medida não só, não resulta Inconveniente ou prejuízo algum aoshabitantes dessa Cidade, mas utilidade, concorrendo esta providencia para viveremem mais socego e tranquilidade, pois os escravos nestes divertimentos se entregãomais a embriaguez, e ficão mais aptos para cometterem crimes, além de arrui-narem a sua saúde; e he esta a razão porque a Lei prohibe semelhantes Bailes, oque também se acha acautelado em alguns regulamentos de policia para os escravosda America; que ha differença de costumes e de caracter entre diversas naçõesde Negros, como reconhecem alguns Escritores, que tratão desta matéria, e entreelles o que escreveu Obra Intitulada Lê Ccmmerce de 1'Amerique, par M. ... seille, eque assim a differença não provem somente ou mau tratamento dos Senhores,para com os seus escravos.

Vio Sua Alteza Real a ordem, Documento N* l que V. Exa. expedio, prohibindosemelhantes danças nas ruas e largos dessa Cidade, não impedindo com tudo, queos escravos se juntem nos largos da Graça e do Barbalho, e que ahi dancem atéo toque das Ave Maria; e em attenção a segurar a V. Exa., que desordens cometti-das, não nascem destes ajuntamentos, que delles não espera mal algum, que onumero de escravos que nelles se entertem he muito diminuto; desfarça Sua AltezaReal a permissão, que V. Exa. concedeu, esperando contudo, que pouco a poucoextingão semelhantes divertimentos, como mais convém e se ainda se consentemnesta Capital, a que não convém hum número de escravos tão excessivo, como V.Exa. supõe he por que estes não teem feito desordenm, como os dessa capitania pormais de huma vez, ha annos a esta parece o que obrigou o Conde da Ponte a darprovidências mais enérgicas para os conter, e posto que V. Exa. manda observarem geral, como se mostra do Documento n' 6, as ordens do dito Conde, e GovernoInterino seus Antecessores, seguindo o estilo praticado pelos Governadores do Bra.zil depois de tomarem posse, em quanto não estão inteirados do que convém alterar/ creio que as, que dizem respeito aos escravos, n5o estavão em seu inteiro vigor,por ser constante que se havião prohibido os Batuques.

O Real Animo do Príncipe Regente Meu Senhor está tranquillo a respeito dadesordem que cometterão os escravos da Armação de Manuel Ignacio, por ter V.Ex« asseverado neste, e em outros Officios, que não ha que recear consequênciasfunestas e perigos iminentes da sobredita desordem, e que quanto se tem espalhado,alem do que V. Ex« tem exposto nesta matéria, he exagerado, falso, e destituídode fundamento, e fica o mesmo Senhor na Intelligencia da Ordem, que V. Ex« ex-pedio ao Dezembargador Ouvidor Geral do Crime, para Devaçar, afim de conhecerquais são as pessoas, que teem espalhado semelhantes rumores, podendo assegurar aV. Ex>, que até agora não tem subido a Augusta Presença de Sua Alteza Real, por

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esta Secretaria de Estado, Representação de qualquer Corporação, ou pessoa em-pregada nessa Capitania, em que se queixe da falta de providencias da parte deV. Ex« sotre este objecto.

Deos guarde a V. Ex*. Palácio do Rio de Janeiro em 6 de Junho de 1814.

Marquez de AguiarSr. Conde dos Arcos

11.33,24,22Ofício do Juiz de Fora da Vila de Maragogipe, António Augusto da Silva ao Condedos Arcos. 1814. 2 does.

Doe. lIllmo. e Exmo. Senhor

Hoje pelas quatro p' cinco horas da tarde fui avizado que no Iguape, districtoda Villa da Caxoeira se tinhão sublevado os negros, e que estavão no projecto depassar nesta Villa de Maragogipe reunindo.se todos no Engenho da Ponta. Imme-diatamente officlei ao Sargento mor de Milícias da Caxoeira, que aqui se achava€<m revista date companhias do respectivo Regimento p* que fizesse por guardaflda gente Miliciana em todos os pontos por onde os negros pudessem entrar p*esta Villa e ao tempo que fechava o meu offlcio recebo o que elle me dirigio sobreo mesmo objecto, avista do qual fiz porem movimento toda a gente da Ordenança, eda Justiça p* guarnecerem todos aquelles pontos juntamente com os Mililcianos, todasas entradas p* esta Villa e a mesma Villa por terra, e os pontos da Villa e a mesmaVilla — O Sargento mor partio no mesmo Instante p» a Caxoeira. Tenho feitoprender trez negros Aussas que me foram denunciados de terem continua, e affec-tiva comunicação com os do Engenho da Ponta, e que davão indícios de colleio comelles para fim da sublevação. O de tudo participo a V. Exa. jun-tamente com o próximo officio do dito Sargento mor João Francisco de Chobi paraque V. Exa. dê as providências que parecerem mais adequadas. Deos guarde a V.Exa. Villa de Maragogipe 20 de março de 1814.

Ulmo. e Exmo. Senhor Conciedos Arcos Governadore Capitão General da Capitania da B*

O Juiz de Fora António Augusto da Silva

No verso do documento:

Em 20 de março de 1814

Do Juiz de Fora das Villas de Maragogipe, e Jaguaripe, participando tersido avisado que no Iguape se tinhão sublevado os negros, e q projectavãopassar a Villa de Maragogipe reunindo-se todos no Eng» da Ponta.

Doe. 2Illmo. Snr. Juiz de Fora

Participo a S. S. que vendo todo o Iguape insendiado, e atacado pellos negrosdo dito, e por tanto já. passo as ordens nesseçarias aos meus soldados afim deacautelar as consequências que se podem esperar; queira V. S. sobre isto providen-ciar, como Juiz Prodente, Active.

DE Ge. a V.S.P. de More.

20 1814

João FO ChobiMajor

Illmo. Snr. Juiz de Fora António Augusto da S.

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Brasil

A QUESTÃO SOCIAL NO BRASIL

1. TELLES, JOVER - O movimento sindicalno Brasil — Artigos publicados na imprensasobre as lutas operárias (1946-1962) - Esboçodo movimento operário no Brasil desde meadosdo século passado até nossos dias - Discursodo autor quando deputado à Assembleia Legis-lativa do RS, em 1947, onde descreve suacondição de operário nas minas de carvão deSão Jerônimo. 300 p.

2. PEREIRA, ASTROJILDO - Construindoo PCB - Artigos de Astrojildo Pereira publi-cados na imprensa (1922-1924). Organizaçãoe apresentação de M ichel Zaidan.

3. DAMIANI, GIGI - A questão social noBrasil: poises para os quais não se deve emigrar- A primeira edição é italiana, de 1920. Nesteopúsculo o autor retrata as precárias condiçõesde vida dos operários imigrantes italianos. Esteopúsculo é precedido de uma pequena biografiade Gigi, escrita por Ugú

4. MILLET, HENRIQUE AUGUSTO - Osquebra-quilos e a crise da lavoura — A primeiraedição deste livro apareceu em 1876. A pre-sente edição contém um estudo preliminar deManuel Correia de Andrade.

5. NEQUETE, ABÍLIO - Memórias - Nequetefoi um dos fundadores do PCB e seu primeirosecretário gerai Nestas memórias narra suaexperiência nos primeiros anos da fundaçãodo PCB.

6. MOURA, CLÓVIS - Rebeliões da senzala -A luta dos escravos negros pela liberdade e suaparticipação na formação do Brasil. Quilombos,insurreições e guerrilhas.

7. PCB: VINTE ANOS DE POLÍTICA - 1958--1979 (DOCUMENTOS) - Resoluções políticasdo Comité Central e dos V e VI Congressosdo PCB, da Declaração de Março de 1958 àresolução sobre o trabalho do Partido entre asmulheres, de maio de 1979.