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Vne^ {fi Publicação oficial do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente da Bahia 630U1 WK Seior da Documcníaçào Ano 4 número 16 Março de 1995 Distribuição Gratuita .. . . .. ; . .. .. . .. . . W&Wê^ $:M^B0^/-:.yM^-: .\/^^;;^^-V^VV.-^.^.::í\. Crianças à venda Apenas um Juiz liberou nos últimos dois anos quase 300 crianças para casais de italianos, num flagrante desrespeito às leis brasileiras e à Convenção de Haia da qual o Brasil é signatário. Sob o aspecto legal de adoções, meninos e meninas são trocados por aparelhos de tv, comida ou dinheiro. Segundo o Juiz Ricardo Pires de Gouveia, "tudo efeito estritamente como manda o Estatuto da Criança e do Adolescente". Enquanto isso, assoladas pela miséria e pela falta de perspectivas, mães escolhem quantos e quais os filhos que vão dar para os italianos. Página central. Polícia executa a tiros menino de 14 anos Página 8 Crianças de Itapetinga vivem assustadas com a possibilidade de serem vendidas para os italianos

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Page 1: Crianças à venda

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Publicação oficial do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente da Bahia

630U1 WK

Seior da Documcníaçào

Ano 4 número 16 Março de 1995 Distribuição Gratuita

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Crianças à venda Apenas um Juiz liberou nos últimos dois anos quase 300 crianças para casais de italianos, num flagrante desrespeito às leis brasileiras e à Convenção de Haia da qual o Brasil é signatário. Sob o aspecto legal de adoções, meninos e meninas são trocados por aparelhos de tv, comida ou dinheiro. Segundo o Juiz Ricardo Pires de Gouveia, "tudo efeito estritamente como manda o Estatuto da Criança e do Adolescente". Enquanto isso, assoladas pela miséria e pela falta de perspectivas, mães escolhem quantos e quais os filhos que vão dar para os italianos. Página central.

Polícia executa a tiros menino de 14 anos

Página 8

Crianças de Itapetinga vivem assustadas com a possibilidade de serem vendidas para os italianos

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Lição de mobilização

A iniciativa de combater a exploração e o tráfico sexual de adolescentes, bandeira levantada pelo CEDECA, conquistou ade- sões çtn todo o pais, estimulando entida- des e organizações a arregaçar as mangas no combate a mais essa aberração social que se transformou em negócio rendoso para uma rede de exploradores, diante da omissão das autoridades e da sociedade. A campanha que vem sendo organizada pelo CEDECA já conta com a participa- ção de 30 entidades, artistas e meios de comunicação. O alvo da campanha é o explorador e o objetivo é bem simples: aplicar a legislação em vigor, que pune to- dos os tipos de exploração sexual, sobre- tudo se praticada contra menores de idade.

Denunciada advogada de Ilhéus

A organização belga Sourire dEnfant enviou oficio, em fevereiro último, ao Jui- zado da Infância e da Juventude de Porto Alegre e a outras entidades gaúchas de- nunciando a advogada Nadine Genot, de Ilhéus, por se oferecer em alguns países da Europa para facilitar e intermediar ado- ções de crianças brasileiras para estrangei- ros. Acompanha a denúncia o endereço da advogada - Av. Roberto Santos, Morada do Bosque, BL4, ap. 32, Fundão. A or- ganização belga alerta as autoridades brasileiras no sentido de investigar as ati- vidades da dra. Nadine.

Legislação

A convivência com a desagregação moral de nosso tempo não pode implicar na alteração de conceitos jurídicos contidos na legislação. Assim, estupro -constranger mulher à conjunção carnal mediante vio- lência ou grave ameaça, é crime hediondo e qualquer relação carnal com menor de 14 anos é estupro. O atentado violento ao pudor é o constrangimento voltado para prática de atos libidinosos. Chama-se sedução o induzimento de mulher virgem entre 14 e 18 anos à conjunçào carnal. O crime de tavorecimento da prostituição consiste em induzir e atrair alguém para a prostituição, facilitar ou impedir que a abandone. Manter casa de prostituição em lugar destinado a encontros para fim libi- dinoso com intuito de lucro ou não, é crime. Chama-se rufianismo tirar proveito da prostituição alheia, participando de seus lucros. O tráfico de mulheres se con- figura em promover ou facilitar entrada de mulher que venha exercer a prostituição ou a saída de quem vai exercê-la no es- trangeiro.

PENAS ESTUPRO- 6 a 10 anos de reclusão. ATENTADO AO PUDOR- 6 a 10 anos SEDUÇÀO- 2 a 4 anos. CORRUPÇÃO DE MENOR- 1 a 4 anos FAVORECIMENTO DE PROSTITUIÇÃO- 2 a 10 anos.

CASA DE PROSTITUIÇÃO - 2 a 5 anos RUFIANISMO - 1 a 4 anos TRÁFICO DE MULHERES - 3 a 10 anos

Criança-Esperança rende mais

Não pode tanto e pode muito mais

lima análise da caminhada dos Conse- lhos Tutelares do Brasil nos leva a uma conclusão: eles. os Conselhos não podem tanto romo se diz. mas podem muito mais do que também se diz. Muitos imaginam um Conselho Tute- lar a resolver os problemas da Comu- nidade, no campo da infância e da juventude, cm uma linha-macro. isto é, uo "atacado". Assim, fariam eles denúncias políticas, mobilizações, indicações ou sugestões ao poder pú- blico. Tudo isso na tentativa de resol- ver as questões de educação, assistên- cia social, saúde, sanitarismo. ha- bilitação, de segurança etc, de manei- ra genérica, global. Ora. essa é a fun- ção típica dos Conselhos de Direito I Outros muitos gostariam de ver os Conselhos Tutelares assumindo o "atendimento direto das crian- ças/jovens", desenvolvendo programas

c projetos de assistência especial a meninos de rua, prostituídos, droga- dictos etc ., Ora, essa é a função típica da chamada "retaguarda de atendi- mento", isto é, dos organismos públi- cos governamenlais(Secretarias de Educação, de Ação Social, de Saúde, sucedâneos das FF.BLNS etc.) e das entidades sócias (Centros de Defesa. Movimento Nacional Meninos de Rua, Pastorais do menor e da criança. Al- deias SOS. APPFES , ABRAPIA etc. etc).

WANDERUNO NOGUEIRA NETO

Por sua vez, os Conselhos Tutelares - como verdadeiros contenciosos admi- nistrativos, de composição democrati- zada - têm a missão ampla e impor- tantíssima de ser o espaço público' institucional onde as crianças e ado- lescentes em situações de risco pessoal e social, concretas, tenham seus casos levantados, estudados e encaminha- dos. Os Conselhos Tutelares traba- lham no "varejo". Atendem o menino Fulano de Tal que está fora da sala de aula, vendendo cafezinho na ru.^, dormindo sob marquises, cheirando "cola", apanhando do padrasto feito bicho etc estudam seu caso concreto, com o apoio de serviços profissionais que julgarem necessários e que a quem competente (quem foi definido no Município para isso. no âmbito governamental?). F por fim, aplicam a esse menino Fulano de Tal medidas de proteção previstas no KCA, a serem cumpridas por órgãos governamentais ou entidades sociais, com atividades e/ou programas registrados e reco- nhecidos pelo Conselho Municipal de Direitos. Ou ainda se for o caso, decli- nam de sua competência, para a au- toridade judiciária ou administrativa competente. Não é tanto... mas já é muito.

O UNICEF encontrou o que parece ser a fórmula ideal para aplicar de maneira mais abrangente os recursos da campanha Criança Esperança. Coube a Bahia 60 mil dólares do total destinado a programas e proje- tos em todo o Brasil.

Ao invés de selecionar algumas dezenas de projetos entre as centenas enviados todos os anos, o UNICEF agora delega aos Conselhos Munici- pais de cinco municípios-pólo a tare- fa de elaborar um projeto único ou apontar entre os diversos serviços de sua região aqueles considerados pri- oritários ou potencialmente capazes de beneficiar o maior número possí- vel de crianças.

Na Bahia, os municípios referen- ciais localizam-se em áreas estratégi- cas consideradas de maior risco. São eles. Juazeiro, Barreiras, Itabuna e Salvador.

Barreiras deu talvez o maior exemplo de como aproveitar bem os 10 mil dólares repassados pela UNI- CEF. Com soja doada pelas coope- rativas de produtores e uma vaca mecânica da Campanha Contra a Fome, bastou ao Conselho Municipal investir os recursos do Criança Espe- rança na compra de insumos para a industrialização do leite. Assim, pôde garantir, durante nove meses, merenda farta e de alto valor nutriti- vo para todas as crianças da rede municipal.

Jurista e Presittente di> CEDECA

Estatuto não vigora Numa mesma semana, vimos as cenas chocantes de meninos nordestinos trabalhando até a exaustão sobre montanhas de sal em troca de 20 reais por mês, com a permissão do sindicato dos trabalhadores local. Vimos mães reclamando o pagamento que lhes deviam pela venda de seus filhos na Bahia e crianças de oito anos fumando crack na noite paulista diante da omissão das autoridades da maior cidade da América do Sul. Conlue-se que o Estatuto ainda não faz parte da realidade da infância brasileira.

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Presença do Unicef é forte r

Área de saúde do escritório na Bahia adota ações que permitem reduzir doenças infantis

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Defesa de direitos

A área de promoção o defesa dos direitos da criança na Bahia é coordenada por Kui Pavan, que tem como objetivo principal ajudar a ins- talação e acompanhamento dos C onse- Ihos Municipais e Tutelares. que constituem o principal instrumento de

extensão territorial do Estado, o UNI- CEF decidiu eleger municípios pólos, que representam áreas de risco, ou fronteiriças ou grandes concentrações de baixa renda com o objetivo de torná-los referenciais para essas regi- ões, í". o caso dos municípios de Bar- reiras, Joazeiro, Itabuqa. Santo An- lonio de Jesus e Paulo Afonso, além de Aracaju, capital de Sergipe, onde , devido às pequenas dimensões do estado, se centralizam a maior parte das ações,

Nos últimos meses intensifi- cou-se signiricativamente a coopera- ção entre o UNICEF e a CEF1J - Comissão especial de juizes criada para o acompanhamento de questões

criança e o jovem. Kui considera o trabalho da CEFU com a qual o UNICEF assinou o convênio, uma importante conquista para a operaci- onalização do K.C A em todo o Estado, que representa também a meta prin- cipal da área de promoção e defesa de direitos. Nos últimos anos a maior parte do tempo é empregada no apoio e capacitação de conselheiros, visando o pleno funcionamento do maior nú- mero possivel de Conselhos lulelares.

A violência, o extermínio, as adoções irregulares, a prostituição infanto- juvenil. o trabalho e as crianças fora da escola são algumas das maiores preocupações do setor que se ocupa

em situação de risco, tanto pessoal, como social. Kssa atividade envolve inúmeras parcerias, o contato com dezenas de instituições governamen- tais e não governamentais no monito- ramento de defesa dessas crianças em risco e o acompanhamento de elabo- ração de políticas públicas.

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Agop Kayayan é recebido por Mário disser em recente visita a Salvador

Comunicação cresce

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A Comunicação Social é hoje fundamental na estrutura operacional do UNICEF. Ela integra todas as áre- as, utilizando os meios mais adequa- dos de comunicação e produzindo instrumentos próprios com o objetivo final de informar a população sobre seus direitos fundamentais e trans- formar cada cidadão num agente multiplicador na defesa na melhoria de vida da infância.

Na Bahia, o carioca Pedro Noleto, tem conseguido atingir maci- çamente sobretudo as populações do interior do Estado, onde a falta de informação potencializa as carências e agrava os inúmeros problemas.

Para o UNICEF, o rádio se mantém como o veículo mais adequa- do para a comunicação em massa. Assim, dentro do projeto o Rádio pela Infância, de âmbito nacional, já foram produzidos 21 programas de 40 minu- tos diastribuidos para cerca de 130 emissoras em todo o estado, e estão previstos mais 30 até o final do ano. Utilizando técnicas modernas e lin- guagem mais acessível possível, os programas desenvolvem temas priori- tários para o UNICEF, entre eles o trabalho infanto-juvenil, a prostitui- ção, o extermínio, a violência domésti- ca e sobretudo procura repassar in-

formações sobre saúde, higiene e edu- cação fundamental.

O incentivo às rádios comuni- tárias é outra das metas para 95 na área de comunicação. Por esse motivo o UNICEF está apoiando a criação da Associação de Rádios Comunitárias de Bahia no próximo dia 5 de maio, quando acontece também o primeiro I Encontro dos associados. No ano pas- sado, buscando parcerias com os principais veículos do Estado e com as maiores redes nacionais, o UNICEF conseguiu produzir e veicular em todos os canais de tv durante 6 meses uma ampla campanha com artistas baianos.

A novidade para 95, na área de Comunicação é a inclusão da defe- sa do Meio Ambiente em sua pauta de trabalho. Pedro Noleto já se engajou na campanha de recuperação do Par-

que Metropolitano de Salvador, in- centivando a Associação dos Amigos do Parque S. Bartolomeu. A preserva- ção do Parque é uma batalha que a administração pública vem tentando vencer, sem sucesso.

A educação ambiental faz parte do projeto, e sua inclusão no currículo da rede municipal é outra meta do UNICEF.

Ajudar o país a atingir as metas propostas na reunião de Cúpula de 1990 é a função básica do UNICEF na área de saúde. Entre as priorida- des da organização no Brasil figuram o desenvolvimento do SUS-Serviço Unificado de Saúde, a descentraliza- ção e democratização dos serviços e um intensivo trabalho de conscienti- zação da população no sentido de evidenciar as vantagens da medicina preventiva sobre a medicina curativa, muito mais onerosa para o estado e para o paciente.

Dr. Mário Glisser, responsável pela área da saúde e chefe do escritório da UNICEF na Bahia há dois anos, tem como função principal dotar técnica e financeiramente ações básicas de saúde que permitam a redução ou eliminação de doenças infantis e consequentemente reduzam o índice de mortalidade no país.

O trabalho do UNICEF nesta área se desenvolve lado a lado com insti- tuições governamentais e com a Pastoral da Criança e utiliza permanentemente a comunicação com o fim de "qualificar a deman- da", ou seja educar a população para cuidar da própria saúde, evitando provocar ou agravar doenças facilmente evitáveis, como é o caso da diarréia e de complicações respiratórias que tiram a vida de milhares de crianças todos os anos.

A vacina em massa e recentemente a campanha de aleitamento materno são pontos de honra para o UNICEF na maioria dos países subdesenvol- vidos. No Brasil, atingimos a erradi- cação da poliomielite e um significa- tivo crescimento na prática do alei- tamento entre os anos 80 e 90.

A meta da amamentação exclusiva até os seis meses exige um esforço conjunto que na Bahia já envolve 15

hospitais denominados amigos da criança, que incentivam o aleitamen- to e conscientizam as mulheres de sua necessidade.

Até o fim do ano, mais quatro hospitais da Bahia e Sergipe deverão se juntar à campanha. A experiência de Dr. Mário Glissser na Bahia inclui um excelente relacionamento com órgãos governamentais, que permite alto nível de cooperação com a or- ganização.

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sm soa ITAPETINGA

Comércio de crianças envergonha a Bahia Um fato político -a disputa nas eleições para a nova Mesa Diretora da

Câmara - acabou resultando na denúncia de grande número de adoções por estrangeiros em Itapetinga e numa representação no Tribunal de Justiça contra o juiz da Comarca, Ricardo Pires de Gouveia. Os mesmos vereadores que antes faziam vistas grossas às evidências de que vinha ocor- rendo comércio de crianças no município, mudaram subitamente de atitude e tornaram pública a suspeita de que o juiz facilita as adoções e que tem "comportamento incompatível com a função que exerce ".

Em Itapetinga, cidade do sudoeste baiano, distante 612 Km de Salvador, mais de 300 crianças fo- ram adotadas por casais estrangeiros nos últimos dois anos. As adoções, que representam um recorde no Brasil, foram denunciadas em rede nacional de tv, no programa Fantásti- co, no dia 26 de março último. Des- de 1992, entretanto, várias tentativas por parte da Pastoral da Criança, das Câmaras de Vereadores de vários municípios da região e até de magis- trados de cidades vizinhas vêm ten- tando conter o fluxo migratório de crianças, sem sucesso. Todas as ini- ciativas esbarraram na determinação do Juiz da Comarca de Itapetinga, Ricardo Pires de Gouveia, que profe- re uma média de 10 sentenças por mês, em processos de adoções.

O Juiz afirma que os proces- sos obedecem às determinações do Estatuto da Criança e do Adolescen- te. No dia 28 de março a Câmara dos

Vereadores de Itapetinga e o presi- dente da subseção da OAB local, Osvaldo Santos, entraram com uma representação contra ele no Tribunal de Justiça. A Corregedoria Geral vai apurar as denúncias contidas no do- cumento referentes às adoções por estrangeiros, abuso de poder e com- portamento incompatível com as funções que exerce. No dia seguinte, 29 de março, como de costume, mais três pedidos de adoção deram entra- da no Fórum de Itapetinga.

As adoções só são conside- radas assim entre as quatro paredes do pequeno Fórum da cidade, porque na realidade de Itapetinga e no dia a dia de seus habitantes elas represen- tam uma nova atividade econômica que mudou a vida de dezenas de pessoas, aqueceu o pequeno comér- cio local, lotou o maior hotel da ci- dade, conhecido como o "hotel dos

italianos" e introduziu, entre a popu- lação carente da periferia, a pratica aberrante da venda de crianças, enca- rada naturalmente como a única chance de "melhorar de vida". Entre- tanto, a melhoria não chegou para nenhuma das mães que concordaram em trocar os filhos por dinheiro, aparelhos de tv ou material de cons- trução. Algumas não receberam se- quer o combinado com o intermedi- ário.

Mas são as próprias crianças, as mais atingidas pelas conseqüênci- as do comércio explícito de seres humanos que se instalou na cidade. Elas já se referem à venda de paren- tes e amigos com naturalidade e muitas já têm consciência que paira da ameaça sobre elas. Vadinho, de seis anos, morador de Vila Kiachão, afirma que "minha mãe não vai me vender, não, dona". Tamires Barbosa dos Santos, também de seis anos, explica que "minha mãe vendeu Ra- fael pro italiano", referindo-se ao irmão, de três anos, que em meados

de janeiro deixou o barraco onde mora na rua Juvino Oliveira e acom- panhou uma senhora que lhe prome- teu guaraná. Na ocasião, Tamires, agarrada às pernas da mãe, recusou- se a acompanhar o irmão.

O drama dos filhos, entretan- to, não comoveu a mãe, Valdinélia Silva Rocha, desempregada, que na primeira audiência confirmou, diante do juiz a adoção do filho caçula, apesar dos apelos do menino. "Ele queira voltar para casa, chorou e perguntou pelos amiguinhos e pela creche". Valdinélia justifica-se di- zendo-se ameaçada pelo ex-marido, Ariosvaldo Barbosa que, segundo ela, foi "quem fez a transação" e garante que não recebeu nenhum dinheiro para entregar Rafael.

Rafael freqüentava a creche

municipal e não é o único a ser reti- rado de creches e outras instituições para acompanhar casais de italianos.

Maria da Paixão Dias, mora- dora à rua JJ 35, empregada domés- tica e mãe de cinco filhos foi aban- donada pelo marido e ficou sem ter onde morar. Tentou invadir uma casa, mas foi expulsa e acabou pe- dindo ajuda à Secretaria Municipal de Ação Social, que costuma alojar famílias desabrigadas, conseguindo a pequena casa onde, em seguida, pas- sou a morar com os filhos. Em sua passagem pelo Fórum, para explicar a tentativa de invasão, o caso de D. Maria deve ter chamado a atenção dos interessados em "cadastrar" cri- anças. O fato é que, poucos dias depois do episódio, ela foi procurada pela advogada Eliene Bastos Ribeiro, várias vezes denunciada por tráfico de crianças que, acompanhada de uma "moça loura", lhe propôs trocar três de seus filhos, de 8, 6 e 3 anos por "uma casa com tudo dentro". D. Maria afirma que recusou a oferta porque "meus meninos não são fi- lhos de porco nem de cachorro, não vou trocar por casa nenhuma, prefiro ficar por aí, à tôa."

Mas nem todas as mães contactadas pensam e agem como D. Maria. Para os agenciadores não é difícil "selecionar" possíveis doado- ras. As propostas de "ajeitar a vida", "levantar a casa" ou "ganhar uma feira por semana" aparecem sempre na hora certa, nos momentos em que são, praticamente irrecusáveis. Al- gumas chegam a escolher os meninos que representam problemas de saúde ou os "que dão mais trabalho" para entregar aos intermediários dos ad- vogados.

Até 1992, a Comarca de Itapetinga apresentava um índice de adoções zero enquanto o tráfico de crianças era denunciado em outras

Maria Teresa de Jesus, grávida de cinco meses: uma provável doadora.

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O Cioitacaz, o "hotel dos gringos", cujo proprietário passa férias na Itália.

cidades da região, sobretudo Itabuna, Canasvieiras e Ilhéus. O esforço isolado de algumas pessoas e a atua- ção da imprensa forçou a mudança das atividades para a vizinha Itape- tinga que em dois anos viu subir de 0 para 180 o número de adoções por estrangeiros. Coincidentemente, no período em que o juiz Ricardo Pires Gouveia passou a titular da Comarca. Dr. Ricardo já havia sido alvo de uma denúncia, por parte do então titular da Comarca de Itororó, dr. Maurício Sales Brasil que detectou graves irregularidades num processo de adoção e entrou com uma repre- sentação contra ele.

Em Itabuna o tráfico de cri- anças foi praticamente eliminado graças à insistência do então Curador de Menores, dr. José Luís da Fonse- ca que inúmeras vezes recorreu de sentenças e que, com o auxílio do Serviço Secreto da Polícia Militar pôde comprovar o tráfico camuflado por processos aparentemente regala- res de adoções. Os responsáveis, entretanto, nunca foram punidos, e o que ele chama de "estranha conjuga-

ção de forças" impede que, a nível judicial, se dê andamento às investi- gações. Diversos processos foram instaurados na Polícia Federal em Ilhéus, alguns dos quais contendo provas evidentes do tráfico, e nem um só deles se transformou em ação penal. O grande volume de dinheiro que representa "os honorários" dos advogados e sustenta uma vasta rede de intermediários que parece ser o principal impecilho para se conter o tráfico.

A nova "atividade econômi- ca" que em Itapetinga mudou a face da cidade, garante a alguns advoga- dos um alto padrão de vida que in- clui carros de luxo e propriedades e mudou a vida de dezenas de inter-

mediários. Em apenas dois casos de adoções em 92, o advogado Paulo Lustosa recebeu 25 mil dólares. Há documentos que comprovam o preço médio cobrado por uma única ado- ção: 10 mil dólares.

Se nada ou quase nada desse dinheiro chega às mãos das mães que entregam seus filhos aos captadores de crianças, uma boa parte cobre os custos do negócio. Algumas dessas intermediárias, como a ex-professora

Lusitana Costa Nery, irmã do verea- dor Robervan Costa Nery, chegam a mudar de vida quando se integram à rede. Segundo seu pai, "Lusinha melhorou muito de vida quando foi trabalhar com a Dra. Edjalma", uma advogada de Itabuna, com escritório localizado na Pça. Adamis, centro da cidade. Sr. Nery explica que Lusitana ganhava muito pouco como profes- sora mas que "esse negócio de crian- ça com a doutora mudou a vida dela". Sr Nery explica que "tem muita criança aí que a mãe não pode criar, muita mesmo, è a doutora pega para adotar. Lusinha vai sempre a Itambé, Itabuna e outros lugares ver essas crianças, vai as vezes de taxi, que a doutora paga. Não tem dia nem

Ricardo Gouveia: adoções em massa.

hora, é muita criança mesmo que elas pegam." Segundo ele houve um tem- po que o pessoal "tava com medo, até a doutora", mas depois ficou tudo bem, minha filha me explicou que já estava tudo liberado. "Até aqui em casa já ficou criança, mas só uma vez ou duas."

Outra intermediária conheci- da na cidade, D. Lúcia, moradora em Nova Itapetinga e irmã do vereador conhecido como Milton da Rota, também teve o padrão de vida eleva- do depois que passou a trabalhar com a Dra. Eliene Bastos Ribeiro, cujo nome foi diversas vezes aponta- do como um dos principais do tráfi- co. Grande parte das adoções con- sumadas em Itapetinga são de clien-

tes seus. Com o novo trabalho, D. Lúcia, que é mãe de duas crianças, mudou-se para uma casa nova mobi- liada, com telefone e televisão, bem diferente da anterior, que dividia com irmãos e cunhados e sobrinhos.

Devido ao baixo poder aquisitivo da população, é difícil disfarçar a prosperidade dos que se integram na rede. A assistente social Jádira Pereira Gomes passou a ga- nhar duas vezes mais quando trocou o trabalho no centro Social Urbano pela função que hoje exerce no Fó- rum da Cidade: a de acompanhar o "período de convivência" exigido pelo Estatuto e informar o juiz para que possa consumar a adoção. Sorri- dente, ela freqüenta -om desenvoltu- ra o Hotel Goitacaz onde se hospe- dam os italianos e üS crianças a se- rem adotadas. Jamais fez um relató- rio contrário às adoções. Sua própria filha convive com os casais estran- geiros a que chama de "tios". Segun- do ela, os italianos "são pessoas óti- mas e bem intencionadas." Jádira acha normal que as crianças fiquem em pousadas em Ilhéus e Itabuna ou passem a maior parte do tempo no Hotel Goitacaz. "O Estatuto obriga

que o período de convivência se faça em território nacional. O juiz não obriga os adotantes a ficarem na cidade". Além disso, explica, as crianças precisam fazer exames labo- ratoriais em Ilhéus. Na primeira quinzena de março, Jádira acompa- nhava a "convivência" de um bebê de apenas quinze dias, Teresa, entre- gue ao casal Giancarlo e Aldenaura. Raquítica e respirando mal, Teresa permanecia boa parte da noite no bar do hotel, onde em meio a um grupo animado, seus "novos pais" toma-

ouviam música ao casal, Leonardo e há quinze dias em

uma recém-nascida, dias de idade, que bem à fumaça de

inúmeros cigarros e à forte luz ambi- ente do bar do hotel, o mais movi- mentado da cidade. Essas circuns- tâncias aberrantes aos olhos de qual- quer pessoa não incomodavam a assistente social, convicta de que as crianças "são muito bem tratadas pelos italianos" e que o "Juiz fixa prazos de convivência ainda maiores do que manda o Estatuto".

vam cerveja e vivo. O outro Cinzia estavam companhia de então com 35 parecia resistir

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Caetano visita mães órfãs O trabalho que o CEDECA tem des- envolvido em apoio às mães dos ado- lescentes vitimados recebeu respaldo de maior nome da MPB: o baiano Caetano Veloso provou, mais uma vez, que é um cidadão preocupado com a problemática do seu tempo e de sua terra.

Há muito tempo demostrado preocupação com os altos índices de violência registrados na Bahia, sobre- tudo o de homicídios de adolescentes agravados pela impunidade de 100% que acompanha esses crimes.

Caetano procurou o CEDE- CA , recolheu o material sobre a his- tória de vida dos dez casos exemplares e pediu uma entrevista com as mães.

No dia 7 de março, ao lado de sua mulher Paula Lavigne, conversou com a equipe e com as famílias dos vitimados, registrando seu apoio e indignação diante do drama daqueles que perderam seus filhos prematura- mente. A visita do casal Veloso, que durou m»'s de t latro horas, repre- sentou um precio estimulo ao traba- lho do CEDECA conforto para essas mães que, mais uma vez, certificaram- se de que não estão sozinhas Caetano e Paula foram recebidos por Hélia, Marilene e Wanderlino, na sede do CEDECA

Assistência jurídica já é realidade Dois advogados, cinco estagiários,

mais de cem processos cadastrados e um plantão diurno representam para os que fazem o CEDECA mais do que a simples concretização de um sonho A materiali- zação de um departamento jurídico é a materialização da própria alma do CEDE- CA

A violência diária, as falhas do aparelho policial e morosidade da justiça levam a vítima, a família e a comunidade em geral a se fechar no limbo do confor- mismo. Para muitos excluídos da nossa sociedade a morte prematura e violenta parece o desfecho natural de uma vida breve e miserável Diante dos cadáveres de seus meninos, amanhecidos nos becos, calçadas e terrenos baldios da cidade, pais e amigos aprendem apenas a esperar pela justiça divina, e a calar diante do medo de mais violência e mais mortes

Mas esse quadro está mudando na Bahia. O CEDECA conseguiu devolver a esperança na justiça dos homens a famí- lias antes oprimidas e isoladas em sua dor Conseguiu atrair pais e mães para dentro dos tribunais, onde podem unir suas vozes e exigir punição dos culpados pela morte de seus filhos

Esse trabalho, que em silêncio vem minando as forças da repressão e da impunidade, aparece agora sob a forma de audiências realizadas, inquéritos con- cluídos, júris marcados

O vergonhoso índice de 100% de

impunidade nos crimes cometidos contra crianças e adolescentes está prestes a desaparecer. O homem que apertou o gatilho cinco vezes contra a cabeça de Luiz Cristiano, para puni-lo por uma rixa de meninos, estará no próximo dia 7 de Abril sentado no banco dos réus.

O acusado pela morte de Lázaro, cuja absolvição, em agosto do ano passa- do representou para o CEDECA uma importante batalha perdida, enfrentará novo julgamento e dessa vez, dificilmente ficará impune

A incansável batalha de D. Lur- des, para colocar diante do júri os sete Pms que, há quatro anos torturaram e mataram seu filho Luiz Fernando e o ami- go Jeová, parece estar chegando ao fim. No meio dessa caminhada, D Lurdes

perdeu também o marido. O coração de seu Antônio não resistiu às tensões e á longa espera.

Ao completar dois anos da chaci- ■ na do Lobato, quando quatro adolescentes I foram executados no bairro onde cresce- i

ram, diante de testemunhas e sem nenhum motivo aparente, os acusados, um PM e um vigilante da Rede Ferroviária Federal que estão presos, deverão ir a julgamento. O CEDECA acompanhou o drama do Lobato desde o primeiro dia apesar das condições adversas do trabalho e ganhou, em troca, a confiança das quatro famílias que souberam transformar a dor em ação, sem se abater e sem ceder às ameaças dos criminosos. Se os grandes enfrentamentos ainda estão por vir. o cotidiano do CEDECA é hoje

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pela psicóloga social Graciela Chateiam \ 'doutora Leylla esta encarre-

gada também de participar do& júris po- pulares, atuando na tribuna, ao lado d.» piumoioiid na dciiNação dos repen- sáveis pelos homicídios contra crianças ,

campo de inúmeras pequenas batalhas que o departamento jurídico precisa vencer dia após dia. O tempo em que era preciso divulgar o telefone do Centro e insistif- faça a sua denúncia, não existe mais. O 243-8499 não pára de tocar. Espancamen- tos,, desaparecimentos, ameaças são os temas mais freqüentes das ligações. A imprensa, por sua vez, acostumou-se j a seguir pistas e pedir orientação técnica para suas coberturas. A verdade é que a população aprendeu a confiar no CEDE- CA e até o próprio Conselho Tutelar busca respostas e soluções através do plantão

A advogada Arlinda Uzêda nunca trabalhou tanto Além de coordenar os estagiários no acompanhamento dos in- quéritos, tem de manter contato perma- nente com a DMA1, a DERCA , e o Jui- zado de Menores, os Conselhos de Direi- tos e ainda faz parte da Comissão de Di- reitos Humanos da Assembléia Legislati- va Arlinda é mais uma técnica na defesa de direitos que se ressente da falta de: uma atuação efetiva do Conselho Estadual Por outro lado "considera importante o apoio do Secretário Francisco Neto, da Segu- rança Pública que entre outras providênci- as de apoio ao trabalho do Centro, ja enviou ofícios para todas as delegacias pedindo imediata transferência dos pro- cessos envolvendo menores de 18 anos para a Delegacia Especializada.

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Lição de mobilização

A iniciativa de combater a exploração e o tráfico sexual de adolescentes, bandeira levantada pelo CEDECA, conquistou ade- sões çm todo o país, estimulando entida- des e organizações a arregaçar as mangas no combate a mais essa aberração social que se transformou em negócio rendoso para uma rede de exploradores, diante da omissão das autoridades e da sociedade. A campanha que vem sendo organizada pelo CEDECA já conta com a participa- ção de 30 entidades, artistas e meios de comunicação. O alvo da campanha é o explorador e o objetivo é bem simples: aplicar a legislação em vigor, que pune to- dos os tipos de exploração sexual, sobre- tudo se praticada contra menores de idade.

Denunciada advogada de Ilhéus

A organização belga Sourire dEnfant enviou oficio, em fevereiro último, ao Jui- zado da Infância e da Juventude de Porto Alegre e a outras entidades gaúchas de- nunciando a advogada Nadine Genot, de Ilhéus, por se oferecer em alguns países da Europa para facilitar e intermediar ado- ções de crianças brasileiras para estrangei- ros. Acompanha a denúncia o endereço da advogada - Av. Roberto Santos, Morada do Bosque, BL4, ap. 32, Fundão. A or- ganização belga alerta as autoridades brasileiras no sentido de investigar as ati- vidades da dra. Nadine.

Legislação

A convivência com a desagregação moral de nosso tempo não pode implicar na alteração de conceitos jurídicos contidos na legislação. Assim, estupro -constranger mulher à conjunção carnal mediante vio- lência ou grave ameaça, é crime hediondo e qualquer relação carnal com menor de 14 anos é estupro. O atentado violento ao pudor é o constrangimento voltado para prática de atos libidinosos. Chama-se sedução o induzimento de mulher virgem entre 14 e 18 anos à conjunção carnal. O crime de favorecimento da prostituição consiste em induzir e atrair alguém para a prostituição, facilitar ou impedir que a abandone. Manter casa de prostituição em lugar destinado a encontros para fim libi- dinoso com intuito de lucro ou não, é crime. Chama-se rufianismo tirar proveito da prostituição alheia, participando de seus lucros. O tráfico de mulheres se con- figura em promover ou facilitar entrada de mulher que venha exercer a prostituição ou a saída de quem vai exercê-la no es- trangeiro.

PENAS ESTUPRO- 6 a 10 anos de reclusão. ATENTADO AO PUDOR- 6 a 10 anos SEDUÇÀO- 2 a 4 anos. CORRUPÇÃO DE MENOR- 1 a 4 anos FAVORECIMENTO DE PROSTITUIÇÃO- 2 a 10 anos

CASA DE PROSTITUIÇÃO - 2 a 5 anos RUFIANISMO - 1 a 4 anos TRAFICO DE MULHERES - 3 a 10 anos

Criança-Esperança rende mais

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Não pode tanto e pode muito mais

Uma análise da caminhada dos C onse- Ihos Tutelares do Brasil nos leva a uma conclusão: eles. os Conselhos não podem tanto como se diz, mas podem muito mais do que também se diz. Muitos imaginam um Conselho Tute- lar a resolver os problemas da Comu- nidade, no campo da infância e da juventude, em uma linha-macro. isto é, no "atacado". Assim, fariam eles denúncias políticas, mobilizações, indicações ou sugestões ao poder pú- blico. Tudo isso na tentativa de resol- ver as questões de educação, assistên- cia social, saúde, sanitarismo, ha- bilitação, de segurança etc, de manei- ra genérica, global. Ora. essa é a fun- ção típica dos Conselhos de Direito 1 Outros muitos gostariam de ver os Conselhos Tutelares assumindo o "atendimento direto das crian- ças/jovens", desenvolvendo programas

e projetos de assistência especial a meninos de rua, prostituídos, droga- dictos etc ., Ora, essa é a função típica da chamada "retaguarda de atendi- mento", isto é. dos organismos públi- cos governamentais(Secretarias de Educação, de Ação Social, de Saúde, sucedâneos das FEBENS etc.) e das entidades sócias (Centros de Defesa, Movimento Nacional Meninos de Rua, Pastorais do menor e da criança. Al- deias SOS. APPFES , ABRAPIA etc. etc).

WANDERUNO WHUJEIRA NETO

Por sua vez, os Conselhos Tutelares - como verdadeiros contenciosos admi- nistrativos, de composição democrati- zada - têm a missão ampla e impor- tantíssima de ser o espaço público* institucional onde as crianças e ado- lescentes em situações de risco pessoal e social, concretas, tenham seus casos levantados, estudados e encaminha- dos. Os Conselhos Tutelares traba- lhara no "varejo". Atendem o menino Fulano de Tal que está fora da sala de aula, vendendo cafezinho na ru^ dormindo sob marquises, cheirando "cola", apanhando do padrasto feito bicho etc. estudam seu caso concreto,

com o apoio de serviços profissionais que julgarem necessários e que a quem competente (quem foi definido no Município para isso, no âmbito governamental?). E por fim, aplicam a esse menino Fulano de Tal medidas de proteção previstas no ECA, a serem cumpridas por órgãos governamentais ou entidades sociais, com atividades e/ou programas registrados e reco- nhecidos pelo Conselho Municipal de Direitos. Ou ainda se for o caso, decli- nam de sua competência, para a au- toridade judiciária ou administrativa competente. Não é tanto... mas já é muito.

O UNICEF encontrou o que parece ser a fórmula ideal para aplicar de maneira mais abrangente os recursos da campanha Criança Esperança. Coube 'a Bahia 60 mil dólares do total destinado a programas e proje- tos em todo o Brasil.

Ao invés de selecionar algumas dezenas de projetos entre as centenas enviados todos os anos, o UNICEF agora delega aos Conselhos Munici- pais de cinco municípios-pólo a tare- fa de elaborar um projeto único ou apontar entre os diversos serviços de sua região aqueles considerados pri- oritários ou potencialmente capazes de beneficiar o maior número possí- vel de crianças.

Na Bahia, os municípios referen- ciais localizam-se em áreas estratégi- cas consideradas de maior risco. São eles. Juazeiro, Barreiras, Itabuna e Salvador.

Barreiras deu talvez o maior exemplo de como aproveitar bem os 10 mil dólares repassados pela UNI- CEF. Com soja doada pelas coope- rativas de produtores e uma vaca mecânica da Campanha Contra a Fome, bastou ao Conselho Municipal investir os recursos do Criança Espe- rança na compra de insumos para a industrialização do leite. Assim, pôde garantir, durante nove meses, merenda farta e de alto valor nutriti- vo para todas as crianças da rede municipal.

Jurisía c Presitlenie do ( Cl)ECA

Estatuto não vigora Numa mesma semana, vimos as cenas chocantes de meninos nordestinos trabalhando até a exaustão sobre montanhas de sal em troca de 20 reais por mês, com a permissão do sindicato dos trabalhadores local. Vimos mães reclamando o pagamento que lhes deviam pela venda de seus filhos na Bahia e crianças de oito anos fumando crack na noite paulista diante da omissão das autoridades da maior cidade da América do Sul. Conlue-se que o Estatuto ainda não faz parte da realidade da infância brasileira.

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saa Gledson foi baleado pelas costas diante de inúmeras testemunhas

Outro menino executado Quando na noite do dia 18

de fevereiro, vieram avisar D. Quitéria que seu filho Gledson havia sido preso, ela ficou pri- meiro surpresa e em seguida, re- voltada. Por que prenderiam Gledson? De comportamento irrepreensível, Gledson, de 14 anos, era um menino que "nunca deu trabalho". Trabalhava de dia e estudava de noite. Atencioso, responsável, alegre, ele parecia "um homenzinho", segundo vizi- nhos. Mas Gledson ainda era um menino e se assustou quando po- liciais do Quinto Batalhão bran- dindo armas e pedindo documen- tos, passaram a espancar os jo- vens que brincavam num pagode organizado em frente ao colégio Roberto Santos, no fim de linha de Castelo Branco. E porque se assustou, morreu.

Eram 11 horas da noite quando Quitéria Maria de Souza foi correndo para a Décima Dele- gacia, decidida a soltar Gledson. Encontrou a Delegacia fechada e a partir daí tudo aconteceu muito rapidamente. Apareceu uma via- tura do Quinto Batalhão, pedi- ram-lhe um retrato do filho que passou de mão em mão e em se- guida, ela mal pôde acreditar no que ouviu. "Seu filho está morto no Roberto Santos", disse um dos policiais.

Começava um pesadelo que nunca mais teve fim. Numa maça do hospital, D Quitéria en- controu Gledson ainda sangrando na cabeça com várias perfurações a bala, uma delas bem no meio da

testa. Passavam 30 minutos da meia-noite. D. Quitéria, que não entendeu porque seu filho estaria preso, muito menos podia imagi- nar porque ele estava ali, crivado de balas, ao lado de outro jovem morto, se ele era só um adoles- cente, como tantos outros que queira aproveitar a noite de sába- do ao lado de amigos, curtindo a namoradinha e encontrou a morte

A cama vazia torna ainda mais desolada apequena casa onde Gledson vivia com os pais e os três irmãos menores. A morte brutal do menino trouxe revolta e medo aos jovens de Caste- lo Branco.

em frente ao colégio onde estu- dava, diante de inúmeras teste- munhas, muitas delas companhei- ras de todos os dias e colegas de escola.

O crime de Gledson foi ter dado as costas para seus algo- zes. Sem documento e assustado, o menino Gledson correu e foi baleado. No entanto, uma hora depois, seu corpo apresentava várias perfurações a bala, uma delas bem no meio da testa, tão recente que ainda sangrava. Vári- as testemunhas viram quando ela caiu de bruços, atingido por um único tiro. Tudo leva a crer que

Gledson foi executado a caminho do hospital.

O Cabo Levinaldo, co- nhecido na área por sua trucu- lência, comandava a guarnição que espancou e matou os jovens na noite de 18 de fevereiro. Des- de esse dia, o cabo Lenivaldo não foi mais visto em Castelo Branco.

Como sempre acontece nesses casos, as pessoas estão com medo. O silêncio de tantas testemunhas pode impedir a pu- nição dos culpados pela morte prematura e violenta de um ado- lescente, pela dor inesgotável de

uma mãe, pelo trauma de seus

irmãos menores. Mas D. Quitéria está disposta a buscar a justiça, a lutar até ver os assassinos de seu filho na cadeia. Diante do sargen- to do Quinto Batalhão, quando prestava depoimento, D. Quitéria rebateu as insinuações de que Gledson estaria armado, que an- dava em más companhias, que

correu de modo suspeito. Segun- do ela, o interrogatório foi quase uma peça de acusação. Mas ela acredita que as testemunhas vão aparecer. "Os meninos que viram tudo estão revoltados, todo mun- do está com a morte de Gledson entalada na garganta", afirma ela.