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IntercomSociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação

Presidente: Marialva Barbosa

Vice-presidente: Ana Sílvia Médola

Diretor financeiro: Fernando Ferreira de Almeida

Diretora administrativa: Sônia Jaconi

Diretora científica: Iluska Coutinho

Diretora cultural: Adriana dos Santos

Diretor editorial: Felipe Pena

Diretora de comunicação: Ana Paula Goulart

Diretora de projetos: Tassiara Camatti

Diretor de relações internacionais: Giovandro Ferreira

Florianópolis

2017

EDITORA INSULAR

Eduardo Meditsch e Juliana Gobbi Bettiorganizadores da tradução brasileira

Mario Kaplún

K17p Kaplún, MarioProdução de Programas de Rádio, do roteiro à direção. Mario Kaplún. Eduardo Meditsch e Juliana Gobbi Betti (Organizadores). São Paulo: Intercom, Florianópolis : Insular, 2017.

436 p.: il.

ISBN 978-85-524-0027-1

1. Rádio 2. Produção 3. Roteiro 4. Direção I. TítuloCDD 070.41

Editora Insular

Editora Insular(48) 3232-9591

[email protected] twitter.com/EditoraInsular

www.insular.com.br facebook.com/EditoraInsular

EditorNelson Rolim de Moura

CapaMauro Ferreira

Projeto gráficoCarlos Serrao

Revisão da traduçãoDoris Fagundes Haussen, Eduardo Meditsch, Sonia Virgínia Moreira

Insular LivrosRua Antonio Carlos Ferreira, 537

Bairro AgronômicaFlorianópolis/SC – CEP 88025-210

(48) [email protected]

Título original: Producción de Programas de Radio. El guión, la realización

Mario Kaplún

TraduçãoAntonio Francisco Magnoni, Bibiana De Paula Friderichs, Debora Cristina Lopez, Juliana Gobbi Betti, Juliana Gomes, Luciano Klöckner, Luiz Artur Ferraretto, Maria Cláudia Santos, Nair Prata, Nélia Del Bianco, Patrícia Rangel, Valci Regina Mousquer Zuculoto, Wanir Campelo, Wellington Leite.

Eduardo Meditsch e Juliana Gobbi Betti (Organização)

SumárioApresentação .............................................................. 10Nair Prata

Prefácio à edição brasileira – “As experiências não se inventam, se vivem” .................................................... 13Doris Fagundes Haussen e Sonia Virgínia Moreira

Nota dos organizadores da tradução brasileira ................. 15Eduardo Meditsch e Juliana Gobbi Betti

Parte I

Pedagogia do Rádio ..................................................... 17

Capítulo 1 – O rádio como instrumento de educação popular ...................................................................... 18

1. Rádio, para quê? ................................................... 18

2. Educar, para quê? .................................................. 26

Capítulo 2 – A natureza do meio .................................... 44

1. A especificidade do meio radiofônico ........................ 44

2. Limitações do rádio ................................................ 46

3. As possibilidades, os recursos ................................. 56

4. O roteiro radiofônico criativo ................................... 70

Capítulo 3 – A linguagem radiofônica .............................. 75

1. Código ................................................................. 75

2. Decodificação ........................................................ 84

Capítulo 4 — Outros fatores básicos da comunicação ........ 90

1. O ruído na comunicação ......................................... 90

2. Redundância ........................................................105

3. Comunicação de retorno e participação popular ........110

Parte II

A técnica radiofônica ...................................................118

Capítulo 5 – Os Formatos Radiofônicos ..........................1191. Doze formatos básicos ..........................................120

2. A prática dos formatos ..........................................141

Capítulo 6 – Música, Som, Efeitos ..................................1521. A música .............................................................152

2. Os sons ...............................................................163

3. Outros recursos técnicos .......................................180

Capítulo 7 – A informação no rádio ................................1961. A redação ............................................................197

2. A seleção da informação ........................................199

Capítulo 8 – A Entrevista ..............................................2191. Técnica de entrevista ............................................220

2. Condições para uma boa entrevista: recomendações para alcançá-la ....................................................225

Capítulo 9 – Como planejar um programa de rádio .........2351. O projeto: a estrutura programática ........................235

2. Horário, duração e frequência ................................238

3. Colocando em prática o projeto: edição “zero” ..........242

Parte III

O roteiro ..................................................................244

Capítulo 10 – A elaboração do roteiro: princípios básicos ..2451. O esquema prévio ................................................245

2. A redação ............................................................247

8 Mario Kaplún

3. A leitura crítica .....................................................254

4. Como se desenha um roteiro .................................258

Capítulo 11 – O roteiro de fala ou monólogo ...................2641. O tratamento radiofônico .......................................265

2. O monólogo dramático ..........................................268

Capítulo 12 – O roteiro de uma reportagem radiofônica ....2731. O gênero .............................................................273

2. A reportagem baseada em entrevistas .....................275

3. A estrutura do roteiro ...........................................281

Capítulo 13 – O roteiro de uma narração com montagem ..............................................................297

Capítulo 14 – O roteiro de um radiodrama ......................3111. Os três componentes do radiodrama ........................... 3112. Técnica do radiodrama .............................................. 317

Parte IVA realização ...............................................................333

Capítulo 15 – Frente ao microfone ................................3341. O estúdio de rádio ................................................334

2. O equipamento humano ........................................342

3. Técnica do microfone ............................................344

Capítulo 16 – O processo de produção: a preparação.......3521. As cópias do roteiro ..............................................352

2. A distribuição .......................................................353

3. A musicalização ....................................................356

4. A sonorização ......................................................367

5. A direção: o plano de trabalho ................................374

9Produção de Programas de Rádio

Capítulo 17 – A execução: o ensaio, a gravação ..............380

1. Os ensaios ...........................................................381

2. A interpretação ....................................................386

3. A direção técnica (música, sons, efeitos) .................389

4. A gravação ..........................................................398

Anexo I – A medição e o ajuste do tempo ......................405

Anexo II – O sistema de gravação em duas etapas ..........410

Epílogo da edição brasileira – O mestre apaixonado .........412Gabriel Kaplún

Os tradutores .............................................................415

Os revisores ..............................................................418

10 Mario Kaplún

Apresentação

O Grupo de Pesquisa Rádio e Mídia Sonora da Intercom leva a público mais um trabalho coletivo do GP, o vigésimo segundo e, desta vez, com uma novidade: é a primeira vez que fazemos

a tradução de um livro, abrindo caminho, certamente, para outros tra-balhos, em português, de obras importantes e emblemáticas sobre o rádio.

Este Produção de Programas de Rádio: do roteiro à direção, do ori-ginal de Mario Kaplún Producción de programas de radio. El guión, la realización, é um esforço conjunto de vários pesquisadores, sob a lide-rança de Juliana Gobbi – uma jovem pesquisadora de rádio que estreia na organização de um trabalho coletivo do GP – e do veterano Eduardo Meditsch. A revisão dos textos traduzidos ficou a cargo de Dóris Fagun-des Haussen, Eduardo Meditsch e Sonia Virgínia Moreira.

O argentino Mário Kaplún (1923-1998), um dos autores latino-ame-ricanos mais destacados, cursou magistério e foi radialista, professor, pesquisador e escritor, com atuação profissional no Uruguai e na Ve-nezuela. Antes dos 20 anos, produziu seu primeiro programa de rádio educativo Escuela de Aire, um radioteatro sobre a história da Argentina: “Me chamaram e me convidaram para fazer um teste. Com a ousadia dos meus 18 anos, aceitei na hora. Escrevi alguns roteiros-piloto e os levei. Assim que a direção os leu, fui contratado”.

A partir daí, seus programas, no original em espanhol ou traduzidos, foram transmitidos na América Latina e Estados Unidos. Kaplún dizia: “Comunicação é uma rua larga e aberta que amo transitar”.

O livro Producción de programas de radio. El guión, la realización nasceu a partir de um curso organizado por Kaplún em Lima, no Peru, quando sistematizou uma pedagogia radiofônica e a obra se tornou um clássico dos estudos do rádio, traduzida somente agora para o portu-guês.

E é este clássico que o GP Rádio e Mídia Sonora tem a honra e a alegria de disponibilizar, traduzido, para professores, estudantes e pes-quisadores do rádio. Certamente que a leitura do autor no original tem um valor indiscutível, mas a tradução tem o poder de popularizar uma

11Produção de Programas de Rádio

obra, disseminar o conhecimento e socializar temas e discussões antes limitados apenas aos leitores em idiomas estrangeiros.

Assim, chegamos à 22ª produção coletiva do grupo, uma extensa lis-ta de títulos que teve início em 1998 e que abrange os mais variados temas da radiofonia:

1) MEDITSCH, Eduardo (Org.). Rádio e pânico: a Guerra dos mundos, 60 anos depois. Florianópolis: Insular, 1998.

2) DEL BIANCO, Nélia R e MOREIRA, Sonia Virgínia (Org.). Rádio no Brasil; tendências e perspectivas. Rio de Janeiro: EdUERJ; Brasília, DF: UnB, 1999.

3) MOREIRA, Sonia Virgínia e DEL BIANCO, Nélia R. (Org.). Desafios do rádio no século XXI. São Paulo/ Rio de Janeiro: Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação/ Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2001.

4) HAUSSEN, Dóris Fagundes e CUNHA, Mágda (Org.). Rádio brasileiro: episódios e personagens. Porto Alegre: Editora da PUCRS, 2003.

5) BAUM, Ana (Org.).  Vargas, agosto de 54: a história contada pelas ondas do rádio. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.

6) MEDITSCH, Eduardo (Org.). Teorias do rádio: textos e contextos. Florianópolis: Insular, 2005, v. 1.

7) GOLIN, Cida e ABREU, João Batista de.  Batalha sonora: o rádio e a Segunda Guerra Mundial. Porto Alegre: Editora da PUCRS, 2006.

8) MEDITSCH, Eduardo e ZUCULOTO, Valci (Org.).  Teorias do rádio: textos e contextos. Florianópolis: Insular, 2008. v. 2.

9) KLÖCKNER, Luciano e PRATA, Nair (Org.). História da mídia sonora: experiências, memórias e afetos de Norte a Sul do Brasil. Porto Alegre: Editora da PUCRS, 2009.

10) FERRARETTO, Luiz Artur e KLÖCKNER, Luciano (Org.). E o rádio? Novos horizontes midiáticos. Porto Alegre: Editora da PUCRS, 2010.

11) VICENTE, Eduardo e GUERRINI JÚNIOR, Irineu (Org.).  Na trilha do disco: relatos sobre a indústria fonográfica no Brasil. Rio de Janeiro: E-Papers, 2010.

12 Mario Kaplún

12) KLÖCKNER, Luciano e PRATA, Nair (Org.). Mídia sonora em 4 dimensões. Porto Alegre: Editora da PUCRS, 2011.

13) PRATA, Nair (Org.). Panorama do rádio no Brasil. Florianópolis: Insular, 2011.

14) MOREIRA, Sonia Virgínia (Org.). 70 anos de Radiojornalismo no Brasil. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2011.

15) DEL BIANCO, Nélia. O Rádio na era da convergência. São Paulo: Intercom, 2012.

16) PRATA, Nair e SANTOS, Maria Cláudia. Enciclopédia do Rádio Esportivo Brasileiro. Florianópolis: Insular, 2012.

17) RANGEL, Patrícia e GUERRA, Márcio. O Rádio e as Copas do Mundo. Juiz de Fora: Juizforana Gráfica e Editora, 2012.

18) MEDITSCH, Eduardo (Org.). Rádio e Pânico 2 – A Guerra dos Mundos, 75 anos depois. Florianópolis: Insular, 2013.

19) MARQUES DE MELO, José e PRATA, Nair. Radialismo no Brasil – Cartografia do Campo Acadêmico (Itinerário de Zita, a pioneira). Florianópolis: Insular, 2015.

20) OLIVEIRA, Madalena e PRATA, Nair. Rádio em Portugal e no Brasil: Trajetória e Cenários. Braga-Portugal: CS Edições, 2015.

21) ZUCULOTO, Valci; LOPEZ, Debora e KISCHINHEVSKY, Marcelo (Org.). Estudos Radiofônicos no Brasil 25 anos do Grupo de Pesquisa Rádio e Mídia Sonora da Intercom. São Paulo: INTERCOM, 2016.

22) MEDITSCH, Eduardo e BETTI, Juliana Gobbi (Org.). Mario Kaplún. Produção de Programas de Rádio: do roteiro à direção. Florianópolis: Insular, 2017.

Desta forma, o Grupo de Pesquisa Rádio e Mídia Sonora se conso-lida como um dos mais produtivos grupos de pesquisa da Intercom e, certamente, o mais importante polo de investigação em rádio do país.

Nair PrataUniversidade Federal de Outro Preto

Julho de 2017

13Produção de Programas de Rádio

Prefácio à edição brasileira

“As experiências não se inventam, se vivem”

Essa frase é de Mario Kaplún (1923-1998) no ‘interrogatório pré-vio’, apresentação em forma de pergunta e resposta, de outro li-vro seu: Una pedagogia de la comunicación (Madrid: Ediciones

de la Torre, 1998). Nos livros que publicou, é importante contextualizar, Kaplún ele-

geu a educação como objeto da sua narrativa, em especial o ensino e a aprendizagem via meios de comunicação. O rádio se mostrava especial naqueles anos 70, de curtos-circuitos na liberdade de expressão em Es-tados não democráticos na América Latina, justamente porque trazia implícita a sua aura de mídia democrática quando democracia era uma aspiração dos habitantes de vários países da região.1

Os estudos sobre rádio na América Latina na segunda metade do século XX têm em Mario Kaplún o seu pioneiro e grande nome. Desde junho de 1978, lançamento da sua primeira edição, Producción de Pro-gramas de Radio. El guión, la realización arrebatou muitos leitores e se tornou um marco na produção científica latino-americana sobre o veí-culo de comunicação. No livro, Kaplún sistematizava e teorizava sobre o que se realizava na prática das emissoras de rádio e que, até então, era divulgado em boca-em-boca. Com a edição desta obra o rádio adquiriu status no âmbito dos estudos que se realizavam na área da Comunicação.

Publicado na Colección Intiyan/Ediciones CIESPAL, Producción de Programas de Radio. El guión, la realización se integrou à bibliografia dos cursos do Centro de Estudios Superiores de Comunicación para América Latina. Nascido como Centro Internacional de Estudios Supe-riores de Periodismo para la America Latina, o CIESPAL foi concebi-do no âmbito dos Centros Regionais de Jornalismo recomendados em 1955 pela UNESCO. A criação do Centro em Quito envolveu o gover-no equatoriano, a UNESCO e a Universidad Central del Ecuador. Suas

1 Principalmente entre as décadas de 1970 e 1980 Mario Kaplún escreveu e publicou La comunicación de masas en América Latina (Buenos Aires: Ediciones Paulinas, 1973).

14 Mario Kaplún

metas institucionais previam: conduzir programas de formação e de aperfeiçoamento para professores de jornalismo e de ensino da ciência da informação, promover pesquisa de desenvolvimento social e criar relacionamentos duradouros com instituições afins.

A partir dos cursos do CIESPAL, frequentados por professores e profissionais latino-americanos, este livro de Kaplún tornou-se uma “bíblia” nas Escolas de Comunicação do subcontinente e, no Brasil, ob-jeto de desejo de professores e pesquisadores brasileiros de rádio, que o encomendavam para aqueles que viajavam ao Uruguai ou à Argentina, porque não havia a versão em português e tampouco podia ser encon-trado nas livrarias do país.

Agora, pouco mais de 35 depois da sua primeira edição em Quito, o grupo empreendedor de investigadores reunidos no Núcleo de Pes-quisa Rádio e Mídia Sonora da Intercom se apresenta para preencher esta lacuna e encontrar uma maneira de homenagear este importante pioneiro dos estudos sobre o rádio. Em um grande esforço coletivo sob a coordenação de Eduardo Meditsch e Juliana Gobbi Betti, professores e pesquisadores de rádio de várias gerações aceitaram o desafio de tra-duzir os capítulos e fazer a revisão técnica deste volume que assim passa a fazer parte da produção bibliográfica brasileira. Sua propriedade para professores, pesquisadores e profissionais do meio está nas palavras de Mario Kaplún em Una pedagogia de la comunicación:

Este texto objetiva tornar-se um instrumento de trabalho para os comunicadores e estudantes motivados por uma preocupação educati-va; de quem não vê a comunicação somente como uma profissão e um modo de vida, mas como ‘algo mais’: como um serviço para a sociedade. Uma prática profissional assim entendida não só requer conhecimento e domínio dos recursos de mídia; necessita fundamentar-se em uma pe-dagogia comunicacional. (Kaplún, 1998, p. 11).

Porto Alegre / Rio de Janeiro, verão de 2014.

Doris Fagundes HaussenPUC Rio Grande do Sul

Sonia Virgínia MoreiraUniversidade do Estado do Rio de Janeiro

15Produção de Programas de Rádio

Nota dos organizadores da tradução brasileira

É com muita honra e sentimento de dever cumprido que trazemos Produção de programas de rádio: do roteiro à direção, a edição em língua portuguesa da obra clássica escrita por Mario Kaplún,

como material didático para um curso ministrado no Peru, a convite do nosso Darcy Ribeiro (então lá exilado), e publicada originalmente em espanhol, pelo Ciespal do Equador, em 1978. Fruto de mais um esforço coletivo das pesquisadoras e pesquisadores do Grupo de Pesquisa Rá-dio e Mídia Sonora da Intercom (Sociedade Brasileira de Estudos Inter-disciplinares da Comunicação), esta tradução concretiza finalmente o compromisso assumido com o próprio Mario Kaplún e sua esposa Ana, há 25 anos, no congresso da Alaic realizado em 1992 em Embu-Guaçú (SP), quando o casal esteve com as ex-coordenadoras do GP Doris Fa-gundes Haussen e Sonia Virgínia Moreira e com o professor Eduardo Meditsch. Muitos percalços atrasaram a concretização do projeto por um longo quarto de século, mas ele nunca perdeu a atualidade e nem a urgência, tendo em vista o que os ensinamentos deste livro dizem sobre o que o rádio pode fazer – e raramente está fazendo – pela educação, a conscientização e a emancipação dos povos do continente.

Traduzir é um esforço de tornar acessível. Mas ao contrário do que muita gente imagina, não se limita ao ato de verter as palavras de uma língua para a outra. Todo texto é uma expressão viva da cultura de uma época e de um local. De modo que, cada um dos pesquisadores mobi-lizados para a realização desta tarefa enfrentou o desafio de garantir a significação das expressões e a fidelidade às concepções apresentadas pelo autor, quatro décadas depois da escrita original do livro.

Neste tempo, muitas foram as transformações nos cenários político, econômico, cultural e social dos países latino-americanos Em especial, ampliaram-se os recursos tecnológicos e, por conseguinte, as possibili-dades técnicas da produção radiofônica nos meios digitais. No prefácio da reedição mexicana do livro, publicada em 1992, Kaplún já ponderava que parte das indicações técnicas carecia de atualização. No entanto, o autor afirma que, ao ser colocado diante da oportunidade de revisão, optou por manter a íntegra do texto original ao perceber que as altera-

16 Mario Kaplún

ções poderiam fazer com que o texto perdesse a unidade, a coerência. Tal possibilidade de inserção e/ou supressão dos conteúdos novamente foi colocada em questão ao longo deste trabalho de tradução. Contudo, pelo valor histórico da obra e por respeito às escolhas anteriores do au-tor, optamos por seguir a postura por ele assumida: manter o texto tal qual foi escrito, mas orientar o leitor a colocá-lo em perspectiva.

Agradecemos à família de Mario Kaplún, em especial, a seu filho, o professor Gabriel Kaplún, que colaborou com este projeto desde o início e cedeu os direitos autorais à Intercom para viabilizar a edição brasileira do livro, além de escrever o seu posfácio. Também aos pesquisadores e pesquisadoras brasileiros que tão arduamente se empenharam na tarefa de traduzir palavras e sentidos, ambientando a escrita, mas preservando a essência original do pensamento do autor. Igualmente, aos que se dis-puseram a revisar o conteúdo, cuidando da fluência e da harmonização dos termos e estilos. Por fim, agradecemos à diretoria da Intercom e à Editora Insular por abraçarem com o nosso Grupo de Pesquisa mais este projeto.

Florianópolis, julho de 2017.

Eduardo MeditschJuliana Gobbi Betti

17Produção de Programas de Rádio

Parte I

Pedagogia do Rádio

18 Mario Kaplún

Capítulo

1O rádio como instrumento

de educação popular

1. Rádio, para quê?

É conveniente começar por situar este livro e definir seus propósitos e alcances. Trata-se, certamente, de uma obra técnica, na qual o leitor poderá encontrar recursos instrumentais para escrever e produzir bons programas de rádio; porém, ao mesmo tempo, situa-se em outra perspectiva.

Se começarmos perguntando para que fazer rádio e propondo uma pedagogia do meio radiofônico, de alguma maneira, já estaremos definindo este livro. Ele pressupõe um leitor que não se propõe a fazer rádio apenas por fazer rádio, como um fim em si mesmo, mas sim um leitor que se interessa por aprender a produzir programas de rádio para algo; aquele que procura o domínio das técnicas radiofônicas em função de um objetivo, de uma inquietação educativa, no mais amplo sentido da palavra.

Este livro aspira, pois, ser uma ferramenta útil de trabalho nas mãos daqueles que, sentindo a comunicação como vocação, não veem no rá-dio tão somente uma profissão ou um meio de ganhar a vida, mas que o concebem como um instrumento de educação e cultura populares e como um promotor de autêntico desenvolvimento; que pensam que o rádio, como todo meio de comunicação coletiva, tem uma função social a cumprir, uma contribuição para fazer frente às urgentes necessidades das massas populares da nossa região.

Coerente a esta concepção, este livro não se propõe, portanto, ensi-nar a fazer todo ou qualquer tipo de programa radiofônico. É, sem dúvi-

19Produção de Programas de Rádio

da, um livro técnico, mas feito pensando naqueles que querem assumir o fazer radiofônico como um serviço e como um compromisso com os povos latino-americanos.

Redefinição do conceito de “programas educativos e culturais”Não seria mais claro, então, intitulá-lo como “Produção de Progra-

mas de Rádio Educativos e Culturais” para assim caracteriza-lo com mais precisão? Talvez sim. Não o fizemos por entender que as expressões “rádio educativa” e “rádio cultural” poderiam resultar equivocadas. Assim, em vez de contribuir com debate e conhecimento sobre o tema, acabaríamos muito mais desorientando e incitando a contrariedade da parte dos leitores para os quais se dirige este livro.

Estamos demasiadamente acostumados a encarar programas de rá-dio educativos como rígidos e desinteressantes. Como aqueles medi-camentos da nossa infância que, para fazerem efeito, conforme julga-vam nossos pais, necessariamente precisavam ter “gosto de remédio”, ou seja, um sabor amargo e desagradável. Quando nos falam de “emissora educativa”, a imagem que nos surge espontaneamente é de um solitá-rio professor instalado em frente ao microfone e ensinando, com voz e tom magistrais, a um invisível aluno, as tradicionais e clássicas noções da escola elementar. E vamos convir que, infelizmente e salvo honrosas exceções, a maior parte do rádio educativo que se produz na América Latina tem contribuído mais para reforçar esta imagem negativa e me-nos para modificá-la.

Algo semelhante ocorre com a noção de “espaço cultural” das pro-gramações. Geralmente se entendem como culturais programas que, quase por definição, devem manter-se divorciados da vida concreta da maioria e tratar de temas alheios à realidade imediata que a rodeia: quanto mais alheios, mais “culturais”. “Cultural” é entendido como o contrário de “popular”. Por exemplo, uma sinfonia de Haydn ou a notí-cia da estreia de um balé em Paris, é cultural; porém, uma dança ou um artesanato indígenas não parecem ser considerados como expressões de uma autêntica cultura.

A cultura é vista como um produto para elites – seleto e de luxo; refi-nado e talvez um pouco supérfluo – associa-se muito mais facilmente a museu do que à vida. Em consonância com estes entendimentos para as programações culturais, o locutor, ao iniciar este espaço, fará um delibe-

20 Mario Kaplún

rado esforço para diferenciá-lo do restante das transmissões, adotando um tom formal e solene.

Este livro sustenta uma concepção muito diferente. Pensa que um programa educativo não precisa ser desinteressante. Mais: não deve ser.

Os programas culturais podem – e devem – chegar, atrair e servir ao povo.

Da mesma forma, este livro pensa também que os chamados pro-gramas de “entretenimento” não têm porque ser banais e vazios; que podem ser veículos de estímulos educativos e culturais muito fecun-dos.

A validade das categorias Uma das noções clássicas em comunicação de massa é a que esta-

belece que o rádio tem três funções a cumprir – informar, educar, en-treter – e que, portanto, seus programas devem classificar-se em três categorias: informativos, educativos-culturais e de entretenimento. Não se nega aqui o que de funcional tem esta categorização; mas é condição compreender o que ela também tem de artificial. É certo que o rádio inclui estas três funções; não é tão certo que delas derivam três tipos de programações totalmente independentes e diferenciados.

O clássico conceito de que o indivíduo se educa somente durante os anos da infância e adolescência – e que esta educação se dá apenas em salas de aulas e internatos – foi substituído pela concepção de educação permanente. Uma pessoa é educada sempre, por toda sua vida, ao longo de um processo que abrange todo tipo de situações e estímulos. Uma criança não se educa apenas ao receber conhecimentos formais e sis-temáticos nos bancos escolares, mas também em casa, na rua, jogando com seus amigos, escutando sua mãe contar a história do Chapeuzinho Vermelho, ouvindo rádio, assistindo televisão. Uma criança já está rece-bendo estímulos educativos quando, ao três anos ou até antes, seus pais a sentam em frente à televisão “para que se entretenha” vendo desenhos de Tom e Jerry (que por certo estão mais carregados de conteúdos e mensagens do que acreditam seus incautos pais).

E já adulto, uma vez terminados seus estudos formais, segue rece-bendo estímulos educativos na rua, no trabalho, no contato com os meios de comunicação massivos, nos estádios de esportes, na relação com seus vizinhos, amigos e companheiros, em reuniões etc.

21Produção de Programas de Rádio

À luz desta concepção da educação como processo permanente, a clássica divisão das programações de rádio, que separa a dimensão educativa da dimensão de entretenimento como independentes e quase como opostas, começa a revelar o que ela tem de relativa e duvidosa. Na realidade, ou com propósito educacional ou para ouvir por prazer, de qualquer maneira todo programa radiofônico educa. Tanto como o programa educativo propriamente dito, o anúncio publicitário que assegura que usando uma camiseta de tal marca “se triunfa na vida”, um programa cômico, uma radionovela sentimental, um comentário de atualidade, uma transmissão esportiva, uma música popular constituem também fatores educativos. Isto porque todos influenciam a formação de valores e as pautas de comportamento do público.

Em uma pesquisa destinada a investigar a recepção e os efeitos das populares novelas de rádio e de televisão, 52% das mulheres entrevista-das (e 60% das pertencentes à classe baixa) declararam que as escutavam e assistiam, entre outros motivos, para “tirar delas bons conselhos” e “soluções para seus próprios problemas”2. Todo programa, pois, educa; só que – da mesma forma que a escola, que a casa – pode educar bem ou pode educar mal.

Uma das consequências negativas da categorização que se está ques-tionando, tem sido a de eximir de responsabilidades os programas de entretenimento, sob o argumento de que são neutros e anódinos. Tam-bém se sustenta em relação a esses programas que não há porque se preocupar com seus conteúdos, já que são produzidos e ouvidos como meros passatempos inconsequentes e sem relação com qualquer efeito educacional.

Outra consequência igualmente perigosa é a de se ver os programas culturais e educativos como algo à parte, desligados da obrigação de serem agradáveis, atrativos, conectados com a vida. Assim se fragmenta a transmissão e se compartimenta o ouvinte. Como se este não fosse sempre o mesmo. Como se ouvisse o programa de entretenimento em mangas de camisa e, quando começasse o programa cultural, corresse a colocar terno e gravata.

2 MARTA COLOMINA DE RIVERA: O hóspede alienante. Um estudo sobre audiên-cia e efeitos de rádio e telenovelas na Venezuela. Escola de Jornalismo da Universida-de de Zulia, Maracaibo, 1968. O estudo se baseia em pesquisa realizada junto a mil donas de casa da cidade de Maracaibo.

22 Mario Kaplún

Este livro postula uma presença dinâmica do educativo e do cultural no rádio, que pode ir além dos espaços identificados e categorizados. Defende programas educativos e culturais que não entrem em conflito com a diversão e programas de entretenimento não alheios à educação e à cultura bem compreendida. O desafio – árduo e urgente desafio – que enfrentamos nós, comunicadores radiofônicos da América Latina, é o de realizar programas que tenham conteúdo e objetivo autenticamente educativos, e que sejam capazes de captar o interesse das grandes au-diências populares e responder às suas necessidades.

Para isso, é preciso uma redefinição de noções que, por exemplo, identifiquem cultura com a vida, mais do que com museus. Cultura não é reserva de especialistas. A cultura é o que serve ao homem, à comu-nidade, para a sua própria construção social e humana. Não há cultura à margem do homem que a cria. Cultura não é uma mera acumula-ção de conhecimentos alheios à sua vida, ao seu aqui e agora. Cultura é consciência para compreender melhor o próprio mundo. Deve partir sempre do próprio interesse do homem, do que ele vai necessitando e buscando para ampliar seu horizonte e ser mais plenamente homem. (O qual, desde logo, não exclui o prazer de um concerto de Beethoven ou de um quadro de Picasso; porém, desde que sempre esse prazer seja realmente colocado ao alcance da compreensão das pessoas através de um processo educativo e não visto como o único que merece levar a etiqueta de “cultura”).

Nesta mesma perspectiva, a chamada “educação radiofônica” será en-tendida aqui em um sentido amplo: não só as emissões especializadas destinadas à alfabetização e difusão de conhecimentos básicos – cujas utilidade e necessidade não se questionam – mas também aquelas que buscam a transmissão de valores, a promoção humana, o desenvolvimen-to integral do homem e da comunidade; aquelas que se propõem elevar o nível de consciência, estimular a reflexão e converter cada homem em agente ativo da transformação do seu meio natural, econômico e social.

Objetivos que nem sempre nem necessariamente se traduzirão na forma convencional de um espaço especializado. Também, como se verá amplamente ao longo deste livro, podem ser alcançados por meio de radioteatros, fóruns populares, programas jornalísticos e musicais e muitos outros formatos que a imaginação de comunicadores criativos é capaz de produzir.

23Produção de Programas de Rádio

O potencial do meio Em março de 1977, o Secretário Executivo da CEPAL, economista

Enrique Iglesias, advertia aos governos da região que 100 milhões de latino-americanos – a terça parte da população total do continente – “sobrevivem em condições de pobreza extrema, socialmente inaceitá-veis”. Frente à dramática encruzilhada em que se encontra a América Latina, já nada nega a urgente necessidade de incrementar e acelerar o processo de desenvolvimento integral de nossos países. Porém, muitos planos desenvolvimentistas, mesmo bem concebidos do ponto de vista físico e econômico, não têm alcançado e seguem sem dar os resultados pretendidos, justo por não levarem em conta, devidamente, “o fator humano”.

De um lado, como salienta Iglesias, nenhum plano de desenvolvi-mento conseguirá melhorar as condições de vida das massas latino--americanas, se as suas realizações, em termos de crescimento econô-mico, não forem acompanhadas de melhor e mais justa distribuição de seus frutos. E por outro lado, nenhum plano de desenvolvimento integral poderá ser levado adiante se não incluir ações educativas que assegurem a participação consciente de segmentos abrangentes da po-pulação chamados a assumi-los e executá-los. O desenvolvimento se faz com homens e para os homens.

Paul D. Boyd tem razão quando pergunta: “Quantos projetos de desenvolvimento se baseiam em um estudo atento do que se poderia chamar de ‘sua viabilidade humana’ e não somente de sua viabilidade econômica e técnica? Em outras palavras, não têm considerado as pes-soas como atores, agentes e beneficiários do desenvolvimento, com uma atenção parecida a que se consagra às represas, estradas, fertilizantes, tratores, vacinas e outros insumos físicos.3

Surge assim, como requisito vital do desenvolvimento, a necessidade de empreender uma tarefa de informação e educação, na qual os meios de comunicação de massa estão convocados a cumprir papel de impor-

3 PAUL D. BOYD: palestra no Seminário sobre Comunicação e Informação para o Desenvolvimento da Região do Caribe, realizado em Guayana, em dezembro de 1974. Boyd é diretor de Comunicação do Programa de De-senvolvimento das Nações Unidas (PNUD). Cit. por J. Diáz Bordenave no trabalho que se mencionará na Nota 6.

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tância primordial. E entre eles, o rádio, o meio de maior penetrabilidade em nossos países, aparece como a solução mais adequada para impul-sionar a educação e a cultura populares. Como assinala um estudo da UNESCO, “o rádio, única técnica de comunicação avançada que real-mente se incorporou no Terceiro Mundo, expandiu-se e se culturizou de forma ampla. (...) Com a miniaturização e a transistorização, que permitem custos muito baixos, o rádio está chamado a se revelar, cada dia mais, como um instrumento bem adaptado às culturas fundadas na transmissão oral e em valores não escritos”.

Ao seu potencial de ampla difusão, o rádio acrescenta, pois, a van-tagem de que, para receber sua mensagem, não é necessário saber ler. É uma vantagem de especial relevância diante da quantidade de analfabe-tos absolutos que ainda existe na América Latina, aos quais se somam, em total também grande, aqueles que, mesmo com passagem breve pela escola, por falta de prática ou de hábito perderam a capacidade de leitu-ra (os analfabetos “funcionais” ou “por desuso”, como são identificados pelos técnicos em educação).

Quanto à penetração e ao alcance do meio, alguns poucos dados bastariam para dar ideia de sua magnitude. Em 1970, existiam 153 apa-relhos receptores de rádio por mil habitantes. Cinco anos mais tarde – em 1975 –, a quantidade já somava um total absoluto de 60 milhões de aparelhos, o que elevava o índice relativo a 205 receptores por mil habitantes. Portanto, em apenas cinco anos se registrou um aumento de 34 por cento.

Estes índices permitem estimar que atualmente o rádio chega a 61% da população latino-americana, tornando-o, de longe, o meio mais po-pular e difundido, o que justifica plenamente a observação da UNESCO: “Pensamos que este meio de comunicação tem sido destinado a fins edu-cacionais de modo insuficiente. Muitas vezes, parece que este potencial radiofônico é obscurecido pela eficácia superior atribuída a outros meios que, em comparação com o rádio, têm a grande desvantagem de só con-seguirem alcançar uma tão ampla difusão depois de muito tempo.”

Surpreende, na verdade, que muitos planejadores insistam em dar prioridade, para fins educacionais, a outros meios tão mais caros e sofis-ticados como, por exemplo, a televisão. E isto mesmo quando os índices apontam que a cobertura de cada um destes meios na América Latina é a seguinte:

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RÁDIO – chega a 61% da populaçãoTELEVISÃO – chega a 34% da populaçãoIMPRESSOS – chegam a 21% da população

Acrescente-se, ainda, o fato de que, dentro destes 61% da população alcançada pelo rádio, encontram-se os segmentos mais humildes, ou seja, os mais carentes e necessitados de educação. Note-se, igualmente, que se as 3.500 emissoras existentes na América Latina estão muito ir-racionalmente distribuídas e concentradas, em sua grande maioria, nas capitais e grandes cidades, mesmo assim o rádio é praticamente o único meio – ainda que de maneira insuficiente e não total – que chega às zonas rurais, onde está a maior massa de analfabetos e o mais alto défi-cit educacional. Como expressa acertadamente a CIESPAL, “o rádio é a principal e frequentemente a única fonte de informação e entretenimen-to dos habitantes da América Latina”.

Assim, para enfrentarmos as urgentes necessidades educacionais e culturais da região, o rádio aparece como um enorme potencial educa-tivo. Uma audiência permanente de 180 milhões de rádio-ouvintes de todas as idades constitui uma possibilidade de difundir educação e cul-tura a todos os níveis que a América Latina deve e necessita aproveitar para impulsionar seu desenvolvimento.4

O rádio – assinala Braun – é, em nossa região, “o meio de comunica-ção que pode abarcar a maior quantidade de pessoas ao mesmo tempo. Outra de suas qualidades é que pode chegar a todos rincões do país; e sua relação custo-benefício é mais vantajosa que qualquer outro meio”5. Em apoio a esta última afirmação, cabe lembrar que a produção de um bom programa de rádio educativo é no mínimo seis vezes mais barata que um programa análogo de televisão de mesma duração; e que um aparelho receptor transistorizado custa vinte vezes menos que um tele-visor preto e branco.

4 MARIO KAPLÚN: La radiotelevisión latinoamerica frente al desafio del desarollo: un diagnóstico do situación. In Radio, TV y Cultura en América Latina, CIESPAL, Quito, 1976. Para mais informações sobre a radiodifusão latino-americana, número de emissoras e receptores país por país, características da programação etc., consul-tar este trabalho.

5 JUAN RICARDO BRAUN: La radio y la televisión dentro del marco de la educación. In Radio, TV y Cultura en América Latina. CIESPAL, Quito, 1976.

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Trate o leitor de imaginar o que poderia acontecer se as 3.500 emis-soras da América Latina inserissem nas suas grades de programação, em horários de audiência geral, mesmo que uma ou duas horas por dia, bons programas populares de conteúdo educacional e cultural. Ocorre-ria que essas emissoras teriam acesso a 180 milhões de latino-america-nos – os 61% da população do continente – incluídos os analfabetos e a população rural, que estão à margem de qualquer outra fonte de infor-mação e educação. Aprender a fazer rádio e a utilizar bem este meio tão popular e de abrangente difusão é uma tarefa que vale o esforço.

2. Educar, para quê?

A questão, porém, não é só o quanto podemos fazer, mas, sim, como devemos fazê-lo. Embora este livro seja dedicado principalmente a técnicas e práticas da produção de rádio, de pouco servem as técnicas sem base teórica. Em especial quando você não está vendo o fazer rá-dio como um fim em si mesmo, mas tem a intenção de usá-lo para um propósito educacional. Não é possível abordar uma tarefa educativa, por qualquer meio que seja, sem ter claro, previamente, o tipo de pedagogia que vamos adotar e que função atribuiremos à nossa ação educativa.

Três opções educativas Seguiremos aqui o adequado esquema de Juan Díaz Bordenave6, que

propõe três tipos de educação distintos entre os quais devemos optar. Ainda que, como bem adverte Bordenave, nenhum destes tipos se apli-

6 JUAN DIAZ BORDENAVE: Las nuevas pedagogías y tecnologías de comunicación – sus implicaciones para la investigación. Ponencia para La Reunión de Consulta sobre Investigación en Comunicación para El Desarrollo Rural de Latinoamérica or-ganizada por el CIID, Cali, Colombia, 1976. Ed. Mimeogr. O autor é especialista em Comunicação da OEA e professor de Comunicação e Educação Popular do Curso de Pós-graduação em Comunicação da Universidade de Brasília.

Resumimos aqui a valiosa análise de Díaz Bordenave, uma vez que a glosamos e ampliamos com nossos próprios comentários e com citações de outros autores; e sobretudo, tratamos de ampliá-la, mediante distintos exemplos, ao nosso campo específico: o da prática radiofônica. Dentro do que a fluidez da exposição permi-te, procuramos, por meio de “entreaspas”, distinguir as citações de Díaz Bordenave de nossas próprias asserções. Mesmo assim, porém, para reconhecer a contribuição inestimável de Bordenave, fica a advertência para eximí-lo de qualquer responsabi-lidade por afirmações que não devem ser a ele atribuídas, mas sim a nós.

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que puramente na realidade, eles se mesclam e se encontram presentes em distintas proporções e em diversas ações educativas concretas sendo possível distinguir entre três modelos de educação:

Educação com ênfase nos conteúdosEducação com ênfase nos resultados Educação com ênfase no processo

De forma inevitavelmente simplificada, que nos impõe a concisão e nos obriga a acentuar seus traços, mesmo com risco de às vezes sermos injustos, tratemos de descrever e caracterizar esquematicamente cada um destes três tipos.

O primeiro tipo: educação com ênfase nos conteúdos“Corresponde à educação tradicional, baseada essencialmente na

transmissão de conhecimentos e valores de uma geração à outra, do professor ao aluno, da elite às massas”. Esta tende, pois, a ser vertical, geralmente autoritária e muitas vezes paternalista. O professor, o ins-truído, “o que sabe”, trata de socorrer e ensinar ao “ignorante”, ao que “não sabe”.

Este tipo de educação, que o leitor seguramente já terá reconhecido, tem em Paulo Freire um dos seus mais sérios críticos, que qualificou a educação como “bancária”: o educador deposita conhecimentos na mente do educando. Trata-se de “inculcar” conhecimentos, introduzi--los na memória do aluno, já que ele é visto como receptáculo e deposi-tário de informações. Repetidamente se tem condenado esta tendência da escola tradicional de confundir a autêntica educação com a mera instrução, por meio da qual – se tem dito também – ela mais informa que forma.

Se este tipo de educação prevalece no sistema escolar convencional, predomina mais ainda na chamada “educação radiofônica”, da qual pela própria limitação do meio o aluno se encontra ausente e reduzido ao si-lêncio e à passividade. Só resta a ele escutar, repetir o que diz o professor radiofônico e aprender. Muitas das meritórias “escolas radiofônicas” da América Latina destinadas à educação dos trabalhadores rurais adul-tos têm reagido saudavelmente contra este método passivo e o recha-çam, em muitos casos com indubitável sinceridade. Em seus postulados

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sustentam, hoje, os princípios de uma educação “libertadora” e “per-sonalizada”. Porém, suas emissoras continuam sujeitas a este esquema mecanicista – mestre que ensina, aluno que aprende – porque não têm encontrado outra maneira de educar através do rádio nem desenvolvido outros tipos de produção de programas educativos.

As características metodológicas deste tipo de educação são bem co-nhecidas. Díaz Bordenave assinala, entre elas, que “o professor e o texto são a base do método (no caso dos serviços de educação radiofônica, o texto é a cartilha que se entrega aos alunos e cujas lições e exercícios eles devem seguir estritamente). Os programas de estúdio são chama-tivos e baseados em conceitos e dados que o professor ou comunicador considera importantes. Concede-se pouca importância ao diálogo e ao retorno – o feedback –, premia-se a boa retenção dos conteúdos (isto é, sua memorização) e se sanciona a reprodução pouco fiel ou demasiada-mente original dos mesmos”.

Não é difícil inferir as consequências. “O aluno (o ouvinte, o públi-co) habitua-se à passividade e não desenvolve sua própria capacidade de raciocínio nem sua consciência crítica; é estabelecida uma diferen-ça de “status” entre o professor e o aluno; fomenta-se uma submissão mental ao autoritarismo, já que o aluno “internaliza” a superioridade e autoridade do mestre; e os alunos adquirem uma mente “fechada” ou dogmática, incapaz de julgar as mensagens recebidas por seus próprios méritos, independentemente da autoridade da fonte”. São transforma-dos em simplistas, pois aprendem a necessidade de que o branco seja totalmente branco e o preto totalmente preto; também se incute neles a “procura ansiosa” de fórmulas “de estruturas de organização e disciplina e baixa tolerância para a ambiguidade e a análise crítica.”

O segundo tipo: educação com ênfase nos resultadosÉ o tipo de educação que mais tem influído na Comunicação. Em

quase todos os manuais de comunicação usados nos estúdios de rádio em nossos países, os estudantes encontram, explicita ou implicitamente, os princípios orientadores deste tipo de educação. Daí a importância de analisá-lo com bastante atenção.

O rádio surgiu na América Latina como uma primeira resposta ao problema do subdesenvolvimento, encarado como solução para a po-breza em que se afundaram os países da região. Era a “modernização”, a

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adoção das características e métodos de produção dos chamados países desenvolvidos. Era necessário multiplicar aceleradamente a produção e alcançar um rápido aumento dos índices de produtividade, e para isto, foi imprescindível a introdução de novas e modernas tecnologias. As inovações tecnológicas tornaram-se a panaceia para todos os nossos males. Por si só, elas nos permitiriam alcançar progressos espetaculares.

A educação deveria servir para alcançar estas metas. Ela deveria, por exemplo, ser aplicada para persuadir os agricultores “atrasados” a aban-donarem seus métodos agrícolas primitivos e ensiná-los rapidamente as novas técnicas. Os meios de comunicação deveriam ser utilizados para implementar esta mudança ou cumprir esse papel de persuasão perma-nente e generalizada. Por isso, a importância que este modelo de desen-volvimento atribuiu às técnicas de comunicação.

Para estes novos educadores e comunicadores da “década do desen-volvimento” – cuja boa-fé e sincero espírito de cooperação, de outra parte, estão fora de questão –, o problema consistia, pois, em encon-trar os recursos mais rápidos e eficazes para que nossas gentes “primi-tivas e atrasadas” aceitassem as mudanças, concordassem em modificar seus hábitos e costumes tradicionais e adotassem as novas tecnologias. Como mudar as pessoas? Que técnicas de persuasão empregar? Quais mecanismos psicológicos aplicar?

Assim surgiu a chamada “engenharia do comportamento”. Nos tex-tos de comunicação escritos no final da década de 50, é possível encon-trar definições muito ilustrativas como as seguintes:

“O comunicador é uma espécie de arquiteto da conduta humana, um praticante da engenharia do comportamento, cuja função é in-duzir a população a adotar determinadas formas de pensar, sentir e atuar, que lhe permitam aumentar sua produção e sua produtividade e elevar seus níveis e hábitos de vida [...] Comunicar não é só um ato de emitir mensagens ou sinais nem a ação de usar meios ou canais. Comunicar é a arte de provocar significados e produzir comporta-mento; é suscitar mudanças no pensamento, sentimento e ação das pessoas. Comunicar é emitir mensagens com a definida intenção de fazer com que as pessoas se comportem de um certo modo parti-cular. Ou mais exatamente ainda, é produzir estes comportamentos mediante a emissão de mensagens”.

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Outra expressão típica deste modelo de educação “vertical, persuasi-va, difusionista” é a “mudança de atitudes”, entendida como a substitui-ção de hábitos tradicionais por outros favoráveis às novas tecnologias.

Pode-se observar até que ponto este tipo de educação se caracteriza por dar ênfase aos resultados em formulações como a seguinte: “quando aprendermos a emitir nossa mensagem buscando respostas específicas daqueles que a recebem, vamos dar o primeiro passo para uma comuni-cação eficiente e eficaz (...) Frente a uma proposta de mudança – obje-tivo da comunicação – a reação do sujeito pode ser positiva ou negativa. Por exemplo, quando nossa campanha educativa propõe ao agricultor adotar um novo produto químico para combater determinada praga, ele pode aceitar a proposta ou rechaçá-la. Se a aceita, há comunicação (...). Se não ocorre a mudança buscada, se não se produz a resposta deseja-da ante o estímulo empregado, pode-se considerar que a comunicação falhou. Ou mais radicalmente ainda, é possível se afirmar que tecnica-mente não houve comunicação.”

Não significa que este tipo de comunicação não “tenha em conta” o homem. Pelo contrário, existe todo um vasto estudo da psicologia hu-mana desenvolvido a serviço dessa corrente. Mas não é uma psicologia que procura o pleno desenvolvimento autônomo da personalidade do indivíduo. Investiga, isto sim, mecanismos para conseguir “persuadi-lo” e “conduzi-lo” mais eficazmente para moldar a conduta das pessoas de acordo com os objetivos previamente estabelecidos. É o enfoque da psi-cologia “behaviorista” ou comportamental, que tem como seu principal representante Skinner e se embasa no jogo de estímulos e recompensas.

A este respeito são bem conhecidas as teorias do cientista norte--americano David Berlo, que atribui ao hábito um papel de grande im-portância na comunicação. Por hábito, entende Berlo, “a relação entre o estímulo e a resposta que a pessoa dá a este, resposta pela qual recebe recompensa (como se vê, um princípio muito semelhante à teoria dos reflexos condicionados de Pávlov). Portanto, para ele, a recompensa de-sempenha um papel de importância capital nas técnicas de comunica-ção. São elas que determinam a criação de novos hábitos no indivíduo, assim como o ritmo e o volume de sua aprendizagem. Quanto maiores a recompensa oferecida e a rapidez com que se concretize, maior eficácia terá a resposta ante o estímulo e mais se desenvolverá e se fortalecerá o novo hábito em substituição ao antigo”. Em consonância com estes

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preceitos, Berlo recomenda aos comunicadores sempre oferecer um in-centivo ao seu público, uma recompensa em cada mensagem; e que seja uma recompensa rápida, prontamente alcançável. “Planeje o que pode levar o seu público à ação”.

Um fato sugestivo que talvez se explique pela influência dessas teorias educacionais: na implementação de muitos planos de desenvolvimento na América Latina, as ações de comunicação consideradas necessárias para seu êxito não ficam ao encargo de comunicadores-educadores, mas sim de agências de publicidade comercial. Talvez se considere que es-tas agências, acostumadas a convencer o público a comprar e consumir determinados produtos por efeito de campanhas massivas, conhecem e manejam melhor que ninguém os mecanismos, técnicas e recursos baseados no jogo de estímulo e recompensa.

Mesmo assim, chama a atenção que este tipo de comunicação edu-cativa, no uso do rádio, prefira empregar “campanhas massivas” cons-tituídas de “spots” de dez ou vinte segundos insistentemente repetidos em vez de programas de 15 ou 30 minutos, nos quais se pode explicar os fundamentos e objetivos comportamentais a que se propõe e também desenvolver um raciocínio.

Como bem assinala Díaz Bordenave em seu estudo, não há dúvida que “em termos de eficácia e eficiência, este tipo de educação oferece evidentes vantagens sobre o da educação “bancária” descrito anterior-mente. No entanto, os críticos enumeram sérias dúvidas, como as se-guintes:

“Quando os objetivos são estabelecidos de maneira específica e re-lativamente rígida pelo professor, instrutor ou comunicador, o aluno se acostuma a ser guiado por outros. Se, além disso, as recompensas ou reforços são também estabelecidos por outros, o aluno se habitua a con-formar sua vida ao apoio e aprovação de forças externas.”

Em segundo lugar, “se implantam ou reforçam valores de caráter mercantil ou utilitário, tais como o êxito material como critério de rea-lização pessoal, o consumismo, o individualismo, a competição, a renta-bilidade”, a obtenção de lucros econômicos pessoais como objetivo bá-sico da vida etc. (a mesma noção de recompensa pessoal consubstancia estes valores). Em troca, deixam-se de lado a atividade cooperativa e os valores solidários e comunitários, “tão indispensáveis para um conti-nente subdesenvolvido, cuja força está na união dos mais fracos”.

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Por outro lado – e esta talvez seja uma das críticas mais relevantes –, “o método não foca atenção no desenvolvimento da inteligência em si, a qual aqui somente se produzirá como uma consequência subsidiá-ria. Por dar importância somente aos resultados que alcancem objetivos pré-estabelecidos, é duvidoso que este tipo de educação contribua com o desenvolvimento da criatividade, da originalidade e da consciência crítica. Tampouco que favoreça a inter-relação com o ambiente natural e social nem uma globalização integrada dos conhecimentos adquiridos.”

“Se é atribuída à comunicação uma função instrumental e persuasi-va, deixa-se de lado outras importantes como a de autoconhecimento, autoexpressão, relacionamento mútuo, animação social, promoção do desenvolvimento da consciência social e consciência crítica da popu-lação.”

Porém, mesmo em termos de mera eficácia, este tipo de educação está sendo questionado, pois na opinião de muitos analistas os resul-tados obtidos são contraproducentes em relação aos objetivos deseja-dos. A comunicação aplicada à transferência de tecnologia agrícola, por exemplo, vem tendo como resultado, na maioria dos casos, a rejeição das mensagens pelos usuários, conforme asseguram estes estudiosos.

Cada vez se torna mais evidente que nenhum desenvolvimento é possível – nem em termos de mero crescimento econômico – sem a participação ativa da comunidade, sem tomada autônoma de decisões, sem criatividade, sem iniciativa. E isto, entre outros motivos, porque o desenvolvimento da América Latina não pode oferecer “recompensas” individuais imediatas. Pelo contrário, exige espírito de luta, sacrifício livremente assumido, cooperação comunitária.

O terceiro tipo: educação com ênfase no processoEste tipo de educação, como caracteriza Díaz Bordenave, “destaca a

importância do processo de transformação das pessoas e das comuni-dades. Não se preocupa tanto com a matéria a ser comunicada nem com os resultados de comportamento, mas com a interação dialética entre as pessoas e sua realidade e o desenvolvimento da capacidade intelectual e da consciência social”.

Não se trata de um tipo de educação que negue ou desconsidere as necessidades e exigências do desenvolvimento. Porém, parte de uma concepção distinta deste desenvolvimento, visto aqui como uma reali-

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zação integral do homem, que há de conduzi-lo não somente a ter mais, como tanto quanto a ser mais. Além disso, ainda entende que mesmo para alcançar as metas de um desenvolvimento puramente quantitativo e material é necessária uma profunda transformação na educação do povo que constitua homens pensantes, capazes de participar ativamente do processo, mais responsáveis e criativos.

Ao se observar bem este modelo, vê-se que também tende, como o anterior, a uma certa “mudança de atitudes”. Porém, não associado apenas ou principalmente à adoção de novas tecnologias. A mudança fundamental aqui consiste em passar de um homem acrítico para um crítico; de um homem a quem os condicionamentos do seu meio trans-formaram-no de passivo, conformista, fatalista a um homem que assu-ma seu próprio destino; um homem capaz de superar suas tendências egoístas e individualistas e se abrir aos valores solidários e comunitários.

Se é possível esquematizar o primeiro tipo de educação como a que propõe primeiro que o sujeito aprenda e o segundo como aquele que busca que ele faça, se poderia dizer que este terceiro tipo procura que o homem pense.

Como expressa Paulo Freire, “se a vocação ontológica do homem é a de ser sujeito e não objeto, somente poderá desenvolvê-la na medida em que a insere criticamente, refletindo sobre suas condições de tempo e de espaço. Quanto mais é levado a refletir sobre sua situação, seu enraiza-mento espaço-temporal, mais emergirá dela conscientemente ‘carrega-do’ de compromisso com sua realidade, da qual, porque é sujeito, não deve ser mero espectador, mas intervir cada vez mais”.7

7 Como o leitor já deve ter notado, essa educação tem muito em comum com os prin-cípios filosóficos de Freire. Mesmo assim, não se deve identificá-la sem mais com a “conscientização”. Esta última é um método particular, com suas características próprias e seus passos metodológicos precisos. O próprio Freire tem protestado in-sistentemente contra o que considera o emprego abusivo do termo “conscientização”, cunhado por ele, e reclamado sua utilização exclusiva para designar o método que criou e denominou com este vocábulo. Não se deve confundir, pois, um tipo de edu-cação, como o que aqui descreve Díaz-Bordenave, com uma metodologia específica. O primeiro é muito mais amplo e pode abarcar diversas metodologias – a “cons-cientização” e outras – que conduzam ao mesmo fim e tenham em comum a mesma filosofia educativa. Por outro lado, no nosso caso, ao tratar do uso do rádio, somos particularmente levados a fazer essa distinção, já que o método de Freire é exclu-sivamente interpessoal, “cara a cara”, e não inclui o uso do meios de comunicação coletiva.

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Trata-se de uma educação problematizadora. A primeira consequên-cia metodológica que aponta Díaz Bordenave é que, neste modelo, “a comunicação e a educação têm por objetivo ajudar a pessoa a proble-matizar sua realidade, tanto física quanto social. Busca estimular a inte-ligência do homem, para que aumente e torne mais complexa sua estru-tura e mais rápido e flexível seu funcionamento”. O que importa é que, mais que aprender coisas, o sujeito aprenda a aprender; que seja capaz de raciocinar por conta própria, de “superar as constatações puramente empíricas e imediatas dos fatos observados e desenvolver sua própria capacidade dedutiva”. O que o adulto carente de educação necessita não é somente conhecimentos, mas também – e tanto quanto – de instru-mentos para pensar. Sua maior carência não está nos dados e noções que ignora, mas nos condicionamentos de seu raciocínio não exercita-do, que o reduzem apenas ao que é capaz de perceber em seu entorno imediato, no contingente.

É por isso que, conforme acertada síntese de O’Sullivan-Ryan, este tipo de educação procura “cultivar a inteligência mais que a memória; mais que o ensino e o processo de ensinar seu interesse é pela aprendi-zagem e o seu processo: o de aprender a aprender. Considera como vital a atividade da inteligência e da vontade de alcançar precisamente uma educação libertadora, que devolva ao homem sua própria humanidade”.8

Junto ao desenvolvimento da inteligência, este tipo de educação pro-cura também desenvolver a consciência. Busca favorecer um processo que leve ao questionamento e à transformação dessa visão de mundo sossegada e fatalista que torna letárgicas as massas latino-americanas e constitui um fardo paralisante para o seu autêntico desenvolvimento. É o processo que Paulo Freire define quando distingue diferentes estágios de consciência, falando da passagem da consciência mágica para a cons-ciência ingênua e, desta, para a crítica.

Porém, para Díaz Bordenave, “o maior triunfo deste tipo de educa-ção é a tomada de consciência da própria dignidade, do próprio valor como pessoa, da liberdade essencial que o homem tem para realizar-se plenamente como tal (...) em sua livre entrega aos demais homens”.

8 JERRY O’SULLIVAN-RYAN: Pedagogia dos Meios. Palestra para o Seminário sobre Pedagogia da Educação Radiofônica organizado por ISI (Fundação Adenaner Kon-rad Denauer) e ALER, Santiago de los Caballeros, República Dominicana, abril 1975. O autor é professor da Universidade de Stanford.

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Evidentemente, este tipo de educação envolve a participação e pre-para para a mesma. ‘Corresponde à educação popular criar as condições pedagógicas para uma prática de participação’9. Para fins de sua aplica-ção no rádio, convém enfatizar esta acertada formulação. Em uma rea-ção compreensível e saudável, mas, no nosso entendimento, exagerada, em contraposição ao verticalismo imperante nos tipos tradicionais de comunicação, surgiu uma corrente que só aceita como válida se é “hori-zontal” e participativa. Assim, serão reconhecidos como instrumentos válidos de educação popular aqueles programas de rádio em que o povo se autoexpressa diretamente “sem intermediários” e onde deixa de ser ouvinte para “fazer ouvir sua própria voz”.

Se valorizamos este tipo de comunicação e lhe atribuímos grande importância na programação, acreditamos que nem todo programa de rádio pode responder a este modelo nem tem porque cumpri-lo sempre. O importante é que contribua à participação, que a prepare, que crie, como dizem Bezerra e García Ramírez, “as condições pedagógicas para uma prática participativa”. Um programa de rádio pode fazer muito e constituir-se em um elemento muito útil e válido de comunicação po-pular se parte da realidade social concreta do grupo humano ao qual se dirige, se o ajuda a assumir e tomar consciência desta realidade e se identifica em sua ação educativa os interesses sociais do grupo. A prática participativa não consiste tanto em que “o povo fale pelo rádio”. É algo mais amplo e global. Pode-se exercer através de distintas organi-zações populares e de distintas ações. A contribuição de um programa de rádio pode, muito bem, ser a de preparar esta prática, removendo os obstáculos culturais internalizados no ouvinte etc.10

Uma síntese – Díaz Bordenave resume assim os imperativos desta pedagogia:

9 AIDA BEZERRA Y PEDRO GARCIA RAMIREZ: Considerações sobre Avaliação em Educação Popular. Conferência proferida no curso de Pós-graduação em Comuni-cação (disciplina Comunicação e Educação Popular) da Universidade de Brasília. Junho 1975. Cit. Por Díaz Bordenave, op. cit.

10 Estamos conscientes da forma simplificada e limitada com que nos vemos obriga-dos a tratar aqui temas tão novos e que implicam uma problemática da comuni-cação tão importante. Devido ao caráter deste livro e à limitação de espaço, não podemos discuti-los com a amplitude desejável.

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1. facilitar a observação da realidade e a problematização para que as pessoas busquem soluções adaptadas a sua própria situação;

2. facilitar o diálogo, a participação e a cooperação, de modo que as pessoas aprendam a conviver, a articular problemas comuns e a resolvê-los juntos;

3. estimular o desenvolvimento da inteligência, da racionalidade e da consciência, de modo que cada indivíduo aprenda a pensar, a tomar suas decisões e a planejar seu comportamento de forma autônoma e madura;

4. promover a aquisição de uma visão integrada e global da reali-dade;

5. facilitar o acesso à recepção e à expressão de todos os habitantes da nação, evitando que a comunicação e a educação sejam pri-vilégios de poucos.

Consequências para nosso fazer radiofônicoObviamente, o rádio não vai operar sozinho este processo educati-

vo. Porém, pode contribuir com ele e funcionar como instrumento do mesmo.

Que características devem ter nossos programas de rádio se preten-demos produzir este tipo de educação? Mencionaremos algumas:

1. serão programas que tendem muito mais a estimular os ouvintes a desenvolverem um processo, mais do que incutir conhecimen-tos ou perseguir resultados práticos imediatos;

2. programas que vão ajudar o ouvinte a tomar consciência da rea-lidade que o rodeia, tanto física quanto social; vão integrar-se a essa realidade partindo de sua própria problemática concreta, de sua situação vivencial;

3. facilitarão à audiência os elementos para compreender e proble-matizar essa realidade. Serão programas problematizadores;

4. estimularão a inteligência exercitando o raciocínio, fazendo pensar e conduzindo a uma reflexão;

5. devem identificar-se com as necessidades e os interesses da co-munidade popular a que se dirigem. Também devem procurar fazer com que ela descubra essas necessidades e interesses;

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6. vão estimular o diálogo e a participação. Em alguns casos, terão a forma de programas diretamente participativos e em todos ca-sos, “criarão as condições pedagógicas para o desenvolvimento de uma prática de participação”. Acentuarão os valores comuni-tários e solidários, levando à união e à cooperação;

7. também estimularão o desenvolvimento da consciência crítica e a tomada de decisões autônoma, madura e responsável;

8. vão colaborar para que o ouvinte tome consciência da própria dignidade, do próprio valor como pessoa.

A forma e a intensidade com que nossos programas de rádio vão assumir estas características estarão naturalmente condicionadas por vários fatores. Entre outros, por fatores externos. “Os objetivos de um programa de comunicação e educação – observa o autor citado – não existem no vazio. São condicionados pelo momento histórico e circuns-tâncias do lugar em que a audiência se encontra”.

E mesmo com supostas condições externas mais favoráveis, deve-rão estar “autocondicionados” também por exigências da mesma peda-gogia. Para ser eficaz, um processo como este que estamos analisando deverá ser sempre lento, gradual e realista: sua própria natureza implica etapas, graus. Deverá sempre partir do estado de consciência em que se encontram os ouvintes e não cair no erro de adiantar-se a ele. Não pode propor, prematuramente, formulações que em lugar de ajudarem a tomada de consciência, só vão gerar incompreensão e rejeição, por dirigir-se a ouvintes que ainda não estão em condições de assimilá-las. O responsável por um programa de rádio como o que estamos tratando de definir, deve lembrar sempre que o público ao qual se dirige ain-da não alcançou uma consciência crítica, porque se assim fosse já não necessitaria do programa. Respeitar as pessoas é também respeitar seu ritmo, sua capacidade de captação.

A transferência tecnológica com este novo enfoque Mesmo naquelas situações em que as possibilidades da comunicação

radiofônica se veem reduzidas a objetivos muito limitados, o comunica-dor que adere a este tipo de educação sempre poderá, ainda dentro des-tas limitações, prestar um serviço. Será modesto e restrito, mas valioso mesmo assim.

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Esboçamos aqui alguns exemplos do que podem ser estes “serviços mínimos”.

Suponhamos que o programa radiofônico sob nossa responsabi-lidade tem, como único tema, a transferência de tecnologia (seja em agricultura, saúde, alimentação, higiene, indústria etc.). É, certamente, uma temática limitada e limitante. Contudo, é preciso convir, como bem demarca Díaz Bordenave, que mesmo uma educação do terceiro tipo não pode nem deve desentender-se com esta classe de temas, já que “qualquer seja a ideologia adotada por um país, a aplicação da ciência para o domínio da natureza sempre será importante”.

Pois bem: mesmo tendo que se restringir a uma temática tão recor-tada, sempre temos uma alternativa a nossa frente. Ou bem seguir o clássico modelo vertical-persuasivo-difusionista, com o qual a tecno-logia se converterá em “um instrumento muito mais de alienação”, ou bem procurar, por meio da forma como efetivamos a comunicação, “ao menos um mínimo de desenvolvimento da consciência crítica dos des-tinatários da nossa mensagem”.

E este último sempre é possível se o tomarmos como objetivo, por mais limitados que nos encontremos. Tudo dependerá de como estru-turamos nossa mensagem, de como apresentamos o tema. Qualquer tema pode ser apresentado de forma puramente vertical ou em outra, que mobilize a capacidade de raciocinar do ouvinte e o leve a fazer um exercício mínimo de raciocínio e de participação pessoal no processo de aprendizagem.

Pode-se dar noções de cooperativismo e explicar o mecanismo de comercialização de uma cooperativa de maneira clássica, vertical, li-mitando-se a uma mera informação. Ou então buscar e conseguir que os ouvintes participem do processo de compreensão; que façam ques-tionamentos, que se perguntem o porquê das disposições da sua regu-lamentação e assim vivenciem, como experiência pessoal, o espírito cooperativista que as fundamentam; que desenvolvam seu sentido de responsabilidade e participação com respeito a sua cooperativa.

Nos capítulos práticos deste livro, o leitor encontrará variados exem-plos e pautas inspiradoras para enquadrar seus programas nesta peda-gogia. Mas não se trata tanto de normas e receitas técnicas. Confiamos que, a esta altura de nossa exposição, o leitor já terá compreendido que enquanto para uma pedagogia vertical é fácil enunciar uma série de re-

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gras fixas nas quais enquadrar os programas de rádio, para este novo en-foque pedagógico as receitas já não são tão simples. Por sua própria na-tureza, esta pedagogia requer flexibilidade, criatividade. O importante é que enquanto o comunicador do primeiro tipo, ao avaliar seu programa, se pergunta: “consegui que o aluno aprenda?” e o do segundo: “conse-gui que o sujeito faça o que foi proposto?”, o desta nova pedagogia se questione: “fiz com que o ouvinte pense? Estimulei sua reflexão pessoal, levei-o a problematizar-se, a se fazer perguntas, contribuí de alguma maneira para enriquecer sua capacidade de raciocinar por si mesmo?”.

A mudança de cenário culturalAqui está outro exemplo, modesto e possível, de como aplicar esta

nova pedagogia comunicacional. Uma infinidade de estudos sobre a realidade do meios de comuni-

cação de massa assinala que eles estão provocando alarmante índice de alienação cultural. É sabido que um dos requisitos básicos de um au-têntico desenvolvimento autônomo é a afirmação da identidade cultural de cada nação. Um problema de notória gravidade e força no rádio e televisão regionais, porém, é a influência externa que se manifesta numa infinidade de aspectos, chegando a configurar, em muitos casos, uma situação de dependência cultural.

Basta sintonizar o receptor de rádio ou o aparelho de TV para perce-ber essa perda de identidade cultural. No rádio latino-americano, pre-valece fortemente a música importada, enquanto a música própria das culturas autóctones ocupa um lugar cada vez menor. Por exemplo: nas emissoras de rádio centro-americanas, em média 56% do tempo total de transmissão são absorvidos por gravações de música estrangeira e para a local só se destinam 3,5%. Ou seja: uma cota 12 vezes menor.

Muitas das canções que se produzem hoje na América Latina são imitações de ritmos importados e pouco têm de latino-americanas, ain-da que compostas na região. Não deixa de ser preocupante que, para se impor, muitos intérpretes populares estão cantando em espanhol com uma estranha e artificial dicção estrangeira e desfigurando a vocaliza-ção. Já a nossa bela música nativa corre sério perigo de extinção.

Pois bem, neste contexto, um programa que se dedique a revalorizar, a resgatar e a fazer com que o povo redescubra e volte a apreciar seu autêntico folclore (não o pseudo folclore padronizado geralmente pro-

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duzido pelas companhias de discos comerciais, mas o verdadeiro acervo de música criada pelo povo em suas festividades tradicionais) já é um aporte valioso e inestimável para o tipo de rádio que aqui se está esbo-çando. É contribuir para que o povo reencontre sua identidade, o valor da sua própria cultura e, assim, sua própria dignidade pessoal.

Também as radionovelas que o povo escuta, normalmente transcor-rem em ambientes sofisticados e irreais, totalmente alheios ao mundo real em que se vive. Se nestas radionovelas aparece gente do povo, quase sempre é como personagem secundário ( criados, subalternos) e mui-tas vezes como indivíduos de moral desprezível. Tanto que em investi-gações sérias realizadas nos últimos anos, se tem comprovado que, no público popular, já se internalizou o estereótipo de que “os bons” são os ricos de raça branca e “os maus”, os pobres de pele mestiça.

Começar a produzir radionovelas localizadas em outros cenários (um bairro popular, uma fábrica, uma comunidade rural), nos quais os protagonistas sejam gente do povo e as situações se aproximem mais de sua realidade concreta, já é fazer algo importante nessa direção. Mesmo se as radionovelas em questão não possam chegar a uma mudança mais profunda de conteúdos.

Em síntese, vamos propor como uma tarefa do nosso trabalho ra-diofônico renovador o que chamamos de “a mudança de cenário cultu-ral”, que estimule no povo uma mínima tomada de consciência da sua realidade e lhe vá devolvendo a noção de sua própria dignidade. É um objetivo pedagógico modesto, porém possível, e mesmo em condições externas mais limitantes, vale a pena empreender.

“Resistência à mudança”, “mudança de atitudes”Retomando o campo da comunicação para transferência de tecno-

logias, apresentamos outro exemplo do que é possível fazer e do que se pode mudar.

Os comunicadores formados no segundo tipo de educação, ao es-tabelecerem técnicas para alcançar a modernização e a “mudança de atitudes”, enfrentam ao que eles próprios chamam de “a resistência à mudança”: crenças, mitos, julgamentos, costumes, preconceitos, super-tições, atitudes de ordem social, estática, econômica, religiosa etc. que conformam e condicionam o comportamento individual das pessoas e que podem constituir um obstáculo à aceitação da nova tecnologia

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proposta. Por exemplo, se o desejo é introduzir um novo método, con-siderado mais produtivo e racional para o cultivo de milho, mas a co-munidade destinatária segue práticas tradicionais de cultivo às quais se agarra ancestralmente e se sente profundamente ligada, é muito prová-vel que a proposta de mudança gerará resistências.

Para vencer esta resistência, a norma que a comunicação persuasiva ensina é: tentar evitar o conflito. Quer dizer, formular suas propostas de mudança sem chocar contra valores sociais existentes nem destruí--los. Para substituir algo – dizem –, não é indispensável assinalar seus defeitos. É melhor ponderar, com habilidade e insistência, as vantagens do novo que se propõe. Quando a mensagem não está de acordo com os valores do meio social a que pertence o destinatário, deve-se omitir toda referência a esta discordância.

Tal técnica é coerente com uma pedagogia que, como temos visto, se preocupa antes de tudo em alcançar um resultado e não que a pessoa pense e tome uma decisão livre e autônoma, mas que adote a mudan-ça que se deseja impor. Por isso é que a solução proposta consiste em escamotear o problema: omitir toda referência à discordância. Isto é, procurar que a pessoa aceite a mudança sem se dar conta que esta entra em conflito com seus valores socioculturais tradicionais.

Bem outro será o método de um comunicador que subscreve o tipo de educação que aqui se analisa. Para ele, o importante será não só que a pessoa – ou melhor ainda, o grupo – adote a inovação, mas que saiba porque o faz e a aceite em um ato pessoal, livre e consciente.

Esse comunicador sabe até que ponto a introdução de uma nova tec-nologia estranha tem levado, em muitos casos, a profundas defasagens culturais; a que o agricultor ou o grupo experimente uma profunda per-da de sua própria identidade, um conflito despersonalizador entre suas tradições mais caras e arraigadas e essas novas práticas que lhe são trazi-das de fora. Essa invasão de práticas exógenas tem provocado, por mui-tas vezes, mais mal do que bem. Mais que fomentar, vem constituindo--se em freio ao desenvolvimento. Ainda especificamente em termos de crescimento econômico, não é rentável introduzir tratores ao custo de destruir a personalidade de quem vai usá-los. No entanto, se realmente é necessária e conveniente a introdução desta nova tecnologia, deve-se fazê-la com outra metodologia que possa valorizar o custo sociocultural da operação e respeitar as pessoas.

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Em segundo lugar, o comunicador responsável haverá de se per-guntar se essa “resistência à mudança” proposta é tão infundada, tão irracional, tão provada por meros preconceitos como geralmente supõe o técnico modernizante. Em numerosos casos, os resultados revelaram que este agricultor, supostamente atrasado, sabia muito mais sobre as condições concretas de suas terras e sobre técnicas eficazes de cultivo que o próprio técnico. Este agricultor tem boas e fundadas razões para defender suas práticas tradicionais e resistir à inovação. Pensemos nos graves desequilíbrios ecológicos que produziu e segue provocando a in-trodução irracional de certos pesticidas químicos, a exploração excessi-vamente intensiva das propriedades rurais etc.

Porém, se após esse exame, ainda se chegar à convicção de que a prática que se propõe é realmente boa e necessária e que a resistência que gera no grupo é, na verdade, produto de preconceitos infundados e irracionais – o que bem pode ocorrer –, o caminho a escolher será o de se esquivar, de escamotear o problema, conforme a norma já mencio-nada. Ou, pelo contrário, enfrentar a comunidade de agricultores com a verdade: fazê-los verem, honestamente, que esta mudança entra em conflito com os valores tradicionais, levando-os a tomarem uma livre decisão.

Se é um comunicador coerente com o tipo de educação que esta-mos analisando, certamente escolherá a segunda opção. Não somente porque esta é a mais respeitosa com as pessoas, mas também porque se trata, inclusive, da única realmente eficaz.

De fato, se os preconceitos não afloram na consciência, se não são expressados, permanecerão latentes, no nível pré-consciente, nas ca-madas mais profundas do ser. Vão gerar na pessoa ou no grupo uma situação conflitiva entre sua nova prática e seus sentimentos mais ín-timos, com sequelas de angústia, tensão, desenraizamento, sentimento de culpa por se ter apartado de suas tradições. E a qualquer momento estes preconceitos latentes voltarão a aparecer em uma ou outra fonte, provocando uma rejeição violenta e fechada à inovação.

Em primeiro lugar, portanto, o comunicador-educador começará por fazer com que os motivos de resistência à mudança proposta sejam manifestados e explicitados para que o grupo tome consciência deles. Para isso, poderá se valer de uma enquete, um sociodrama radiofônico, um programa de entrevistas, um fórum campesino, um radioteatro etc.

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Na mesma emissão ou série de transmissões procurará fazer com que aflorem e se expressem também outras crenças e tradições presen-tes no próprio grupo e que este problematize, chegando a se perguntar se não há um possível valor na incorporação desta mudança. Porque – isto é importante assinalar – as tradições culturais não são monolíticas. Algumas delas constituem fatores negativos desde o ponto de vista da mudança: levam a atitudes de quietude, estáticas, fechadas. Porém, tam-bém há em todo grupo outras tradições que, ao menos potencialmente, contêm embriões de atitudes mais dinâmicas e abertas, mais favoráveis a uma evolução.

A título de exemplo, o comunicador poderá mostrar que os antepas-sados do grupo muitas vezes talvez adotaram e inclusive criaram novas técnicas e que, portanto, a admissão de inovação não equivale a traí-los. Pelo contrário, é ser coerente com eles. Ou poderá mostrar, quem sabe, que aumentar o rendimento da terra para melhorar as condições de vida da própria família e da comunidade também constitui um valor arraiga-do nas tradições de amor e lealdade aos seus, um valor talvez mais impor-tante que aquele que leva a resistir à nova técnica que se está propondo.

Desta maneira, uma situação que de outro modo seria de ruptura cultural violenta, poderá ser assumida pelo grupo como uma situação de continuidade cultural. E finalmente deixará a decisão liberada à co-munidade. Ela haverá de decidir livremente. Se optar pela nova técni-ca, essa decisão, tomada assim, de forma reflexiva, madura e autôno-ma, tem muito mais possibilidades de perdurar e ser incorporada pela comunidade; ser sentida já não como algo imposto de fora, mas, sim, como livremente aceito e ligado a suas próprias tradições.

Também como se viu na metodologia comportamental do estímulo--recompensa, normalmente se apela a motivações de caráter individua-lista e competitivo: obter mais lucros para si, ter mais que os vizinhos. O comunicador educador, no entanto, ao apresentar a mesma inovação, poderá mostrá-la como benefício a toda comunidade e como forma de união e cooperação. A transferência tecnológica se cumprirá em ambos os casos, mas os efeitos educativos serão muito diferentes.

Os exemplos expostos ilustram, mesmo dentro de uma temática li-mitada como a das inovações tecnológicas, como é possível, através da nossa mensagem, introduzir elementos de reflexão, de consciência críti-ca, de estímulo à liberdade e de solidariedade.

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Capítulo

2A natureza do meio

1. A especificidade do meio radiofônico

Qualquer que seja a orientação pedagógica que adotemos ao utili-zar o rádio, é preciso conhecer concretamente o meio no qual vamos trabalhar, adentrarmos nele, entender sua natureza, sua especificidade e as exigências que dele derivam.

O que se quer dizer quando se fala da especificidade de um meio? Algo muito simples. Vamos tomar um primeiro exemplo elementar de televisão. No famoso debate televisivo entre Kennedy e Nixon, em 1960, quando ambos postulavam a presidência dos Estados Unidos, este úl-timo, entre outros erros, cometeu o de se apresentar com uma camisa branca, o que, na TV em preto e branco de então, produzia reflexos irritantes, deslumbrava e provocava na imagem o desagradável efeito chamado de “fantasma”. Enquanto isso, Kennedy, melhor assessorado, foi de camisa azul. Independentemente dos méritos de cada candidato e da solidez de seus respectivos argumentos, esse detalhe prejudicou Ni-xon, por ignorar o meio televisivo e suas necessidades específicas.

Outro exemplo, este em relação ao cinema: suponhamos alguém, com uma câmera fixa, filmando uma longa conferência. O resultado seria um filme de mais de uma hora, em que a câmera fixa exibirá per-manentemente o palestrante falando. Do ponto de vista puramente me-cânico, é possível produzir tal filme: a película registrará a imagem, a banda sonora gravará a voz do conferencista. Mas, obviamente, o pro-duto será totalmente anticinematográfico. Ou seja, ao contrário do meio de expressão que é o cinema, que exige frequentes mudanças de cenário, tomadas e planos, movimento e ação. Não é difícil prever o que acon-teceria com a exibição de um filme como este. Por mais interessante,

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conceitualmente, que fosse a conferência, o filme iria produzir perda de atenção por parte dos espectadores, seguida por um sentimento de tédio e letargia, que se tornaria cada vez mais insuportável até levar a uma irreprimível irritação. Consequências de se violar a especificidade do meio cinematográfico, que tem suas “regras do jogo”, suas exigências próprias.

Observemos o nosso meio, o rádio, através de um terceiro e último exemplo. Assistimos, certa vez, a gravação de um programa radiofônico com uma atriz famosa, que por sua beleza, sua expressividade, intensi-dade de seus gestos, elegância de seu movimento cênico, era conside-rada, com justiça, uma grande intérprete de teatro, cinema e televisão. Porém, tinha uma voz rouca e velada, uma entonação monocórdia, ca-racterísticas que, num cenário, com a força de seus gestos, quase não se notavam, não lhe caíam de todo mal, inclusive conferiam a ela certo encanto e personalidade. Já no rádio, onde não se pode ver, só ouvir, sua voz resultava tediosa e inexpressiva. Ela falava sempre igual, sem gra-duações nem inflexões. Enquanto gravava, seu olhar, seus gestos eram estupendamente comunicativos, mas estes, infelizmente, não saíam pelo microfone. Ele só transmitia a chata monotonia de sua voz.

Era uma magnífica atriz de teatro e cinema. Porém, não de rádio. Uma vez mais, o fracasso se deveu ao fato de não se respeitar a especifi-cidade do meio radiofônico, onde o gesto, o olhar, os trejeitos, com toda sua riqueza, desaparecem e o ator só pode valer-se dos recursos da voz e da expressão oral.

O meio condiciona a mensagem Alguns educadores formados na escola convencional e responsáveis

por um espaço radiofônico educativo tendem a dar pouca importância à natureza do novo meio no qual vão atuar e o encaram como uma repro-dução ampliada da sala de aula. Se eles executam corretamente na esco-la, como não fazê-lo também ao “ensinar pelo rádio”? É comum que se lancem à tarefa de ensinar através do rádio sem uma reflexão séria sobre as características do meio e um estudo das suas necessidades específicas.

O rádio entusiasma. As possibilidades quantitativas que o rádio ofe-rece para atingir milhares de pessoas ao mesmo tempo e para penetrar na privacidade de suas casas, levam alguns, sem dúvida bem inspirados, a buscar uma onda, um espaço, um microfone, para atingir o público e

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comunicar o que consideram importante e útil. O rádio é visto como um veículo para difundir uma mensagem (educacional, política, cientí-fica, religiosa etc.), um veículo dócil e submisso, que se limita a espalhar a palavra à distância e disseminar informações. Para o educador, é uma grande sala de aula; para o padre, um imenso templo; para o político, uma enorme praça pública. Em todos os casos, o que importa é o que você quer comunicar. O meio é considerado apenas isso – um meio, um canal transmissor.

Porém, como em todo meio de comunicação, no rádio não basta apenas ter uma mensagem, por mais valiosa e verdadeira que seja, e se propor a disseminá-la. Quem usa o microfone radiofônico sem maior reflexão nem preparação, impelido somente pelo desejo de “chegar ao público”, corre o risco de atingir apenas uns poucos. Não é suficiente, então, determinar o que queremos dizer: temos que saber como dizê-lo através do rádio para sermos escutados, atendidos e entendidos.

Os analistas da área dizem, com razão, que em todo meio de comu-nicação coletiva a mensagem é afetada pelas características do transmis-sor. Isto é, o meio radiofônico influi necessariamente sobre a mensagem, condiciona-a, impõe determinadas regras de jogo; obriga a adequar a comunicação educativa e cultural à natureza e às características especí-ficas do rádio.

Assim, pois, a concepção antes descrita, que vê no rádio um mero veículo eletrônico que transmite mensagens à distância, deve ser modi-ficada. O rádio não é um veículo, mas, sim, um instrumento. Sem dúvi-da, um grande instrumento potencial de educação e cultura populares; e como todo instrumento, exige conhecê-lo, saber manejá-lo, adaptar-se a suas limitações e a suas possibilidades. Usar bem o rádio é uma técnica e uma arte.

2. Limitações do rádio

Coloquemo-nos, então, frente a este meio específico que é o rádio e comecemos a examiná-lo e desmontá-lo. Suas extraordinárias vantagens quantitativas como veículo massivo são demasiadamente conhecidas:

• ampla difusão popular: lembre-se dos dados no capítulo anterior;• simultaneidade: possibilidade de chegar a muitas pessoas ao mes-

mo tempo;

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• instantaneidade: o meio impresso – periódico ou revista – che-ga ao leitor muitas horas depois de escrito e só mediante um processo de distribuição individual, exemplar por exemplar. Já a mensagem radiofônica chega ao ouvinte no mesmo momento em que se emite e se “distribui”, sem necessidade de intervenção de nenhum agente intermediário;

• largo alcance: um canal de TV tem um raio de serviço de cerca de 150 km ao redor. Uma emissora de rádio de ondas médias, de boa potência, pode cobrir um âmbito mais dilatado;

• baixo custo per capita: mais baixo que qualquer outro meio de difusão coletiva, o que, por sua vez, resulta, do ponto de vista educativo, numa relação custo benefício mais favorável (conferir o capítulo anterior);

• acesso direto às casas dos destinatários: a mensagem radiofô-nica ou televisiva chega ao domicílio de cada usuário sem que este tenha que se deslocar para recebê-la (comparar com o ci-nema).

Agora, observemos o rádio não mais como mero difusor e sim, qua-litativamente, como um instrumento; vejamos suas limitações do ponto de vista educativo.

1ª limitação: unisensorialidadeEsta primeira limitação é evidente; aparece logo que se compara o

rádio com a televisão e o cinema. O rádio somente emite sons. É unisen-sorial: pode valer-se de um só e único sentido, a audição, que é limitada. O visual não existe. Frente a um receptor de rádio, somos como cegos, o ouvinte deve assumir uma voluntária cegueira.

Por muito tempo, exagerou-se esta limitação do ponto de vista da eficácia do rádio como instrumento cognitivo. Sustentava-se que, em proporção largamente majoritária, o ser humano aprende pela visão. Afirmava-se que mais de oitenta por cento dos conhecimentos se ad-quiriam pela visão e menos de dez por cento por via auditiva. É corrente ouvir dizer que “uma imagem mostra mais que mil palavras”.

Estas afirmações são, hoje, muito questionadas. Um especialista tão autorizado como Gagné afirma que “não é provável que qualquer meio

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em particular tenha todas as propriedades que o façam o ideal. Quando se compara a eficácia dos distintos meios para o ensino, raramente se encontra alguma diferença.” Assim mesmo, Gagné assinala que “quase todas as funções de instrução podem ser cumpridas por quase todos os meios” e que “em geral não se há encontrado diferenças substanciais na efetividade dos distintos meios entre pessoas diversas”11.

Também merece um questionamento mais cuidadoso este culto à imagem que se vem gestando nos ambientes educativos, nos últimos anos. Afirma-se, com um pouco de pressa, que vivemos na “civilização da imagem”. Um exame mais sereno evidenciaria que a imagem visual favorece um tipo de percepção sensorial, mais dirigida aos sentidos que ao pensamento e à razão. Cada vez mais se impõe a necessidade de re-valorizar a palavra, como verdadeiro instrumento da comunicação e do pensamento.

Comparando o rádio com os meios impressos (periódicos, folhetos, livros, revistas), se por um lado os últimos têm, a seu favor, a durabilida-de e a permanência em relação à mensagem do primeiro, que é fugaz e efêmera, por outro lado, o meio radiofônico oferece importantes vanta-gens de poder chegar aos analfabetos sem exigir deles destreza especial alguma para que se beneficiem. Também tem o poder de se adaptar, melhor que qualquer outro meio, aos povos que baseiam sua cultura na transmissão oral.

Porém, já em um balanço objetivo, é preciso concordar que esta uni-sensorialidade do rádio tem consequências importantes que indicam uma inegável limitação do meio. 1. Risco de cansaço: ao centrar-se num só sentido e contar com uma

única fonte de estímulos (o som), a emissão radiofônica pode provo-car monotonia, pois carece de elementos visuais. Um programa de rá-dio pode cansar mais fácil e rapidamente que um de tevê ou um filme.

2. Risco de distração: ao permanecer com a vista “em jejum”, por assim dizer, os ouvintes do rádio precisam concentrar-se mais para prestar atenção na mensagem que só lhes chega pelo ouvido. Porém, a capa-cidade humana de concentração tem seus limites. Essa “cegueira” à qual o rádio submete o público pode produzir no ouvinte distração

11 ROBERT M. GAGNE: The Conditions of Learning. Citado por O’Sullivan--Ryan, loc. cit. (cf. nota 8 do Capítulo 1)

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sensorial, sobretudo visual. Se a emissão não for interessante e não captar rapidamente sua atenção, o ouvinte pode facilmente distrair--se e deixar de escutar. Como se diria em termos de informática, “a comunicação radiofônica está extremamente exposta ao ruído”, es-pecialmente ao visual (será explicado em capítulo posterior a noção de ruído e seu importante significado no seu uso pelo rádio).

Uma forma de atenuar a exclusividade do sentido auditivo consis-te em complementar a emissão com ajudas visuais e textos impressos, como fazem todas as escolas radiofônicas. Entretanto, isto não é possível em todos os programas de rádio nem para todos os ouvintes. E mesmo quando se consegue fazer, não é suficiente para compensar esta limi-tação. Os auxílios visuais e os textos impressos constituem apenas um paliativo, sem dúvida útil e conveniente, porém parcial.

2ª Limitação: ausência do interlocutorEsta limitação não é, como a anterior, exclusiva do rádio, mas co-

mum a todos os meios de massa.No rádio, estamos sós. O educando, o interlocutor está do outro lado

do receptor, não pode intervir. Não se reproduz a relação interpessoal direta que ocorre, por exemplo, em sala de aula.

Uma aula ditada em sala, por mais tradicional que seja em seus con-teúdos, não é nunca um monólogo em que o professor fala e os alunos se limitam a escutar passivamente. Há certa interação constante entre o educador e o educando. Estes podem perguntar, intervir, dizer que não estão entendendo, pedir esclarecimentos etc. Mesmo quando permane-cem totalmente calados, os educandos influem. Por suas expressões, o professor pode avaliar se seguem e entendem sua exposição, se escu-tam com interesse ou se distraem, se têm dúvidas, se estão perplexos. O educador pode adequar o ritmo de sua explicação à velocidade de assimilação de seus alunos.

Nada disso se dá em uma “aula” pelo rádio. Esta é rígida, fixa, está es-tabelecida de antemão. Não pode captar a reação do invisível aluno nem adequar-se a ela. É este o erro pedagógico quando se quer reproduzir o esquema de uma classe convencional através do microfone radiofônico. A classe escolar é irreproduzível pelo rádio, em virtude da transmissão à distância e da consequente ausência física do destinatário.

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No rádio, o comunicador não pode perceber a reação dos ouvintes como faz quando fala em uma reunião. Os ouvintes, por sua vez, não podem fazer qualquer pergunta nem pedir-lhe que repita alguma frase que não entenderam bem, nem controlar a velocidade da exposição. A causa desta limitação, Broadhsed – um especialista neozelandês – diz que o discurso ou palestra ou conferência radiofônica é, de certo modo, “um meio antinatural de comunicação”.12

Unidirecionalidade da mensagem: dependência e independênciaEsta limitação estabelece o problema, que atinge também os demais

meios de massa, de uma comunicação unidirecional, que dizer, em uma só direção, em uma única via. O emissor se dirige ao receptor sem dei-xar possibilidade de reciprocidade. Este está condenado a receber pas-sivamente a comunicação, que chega verticalmente, de cima e na qual não pode intervir.

Isto cria, em primeira instância, uma situação de dependência: o receptor depende unicamente do emissor. Depois de tudo que assina-lamos no capítulo anterior acerca dos efeitos da educação do tipo auto-ritário ou “bancário”, quase é desnecessário reiterar aqui em que medida esta relação de dependência é pedagogicamente negativa.

Esta relação de dependência se resolve, geralmente, transformando--se em outra de independência. Num período mais curto ou mais longo, o receptor reage com uma oposição crescente à mensagem e ao próprio comunicador. “Pouco a pouco o destinatário “se impermeabiliza” contra esta comunicação que vem “de cima”13. De modo que, se não se fixa em sua atitude inicial de dependência, o destinatário rejeita esta comuni-cação na qual não pode intervir. Uma explicável e no fundo saudável reação de rebeldia, que leva à interrupção e ao fracasso da comunicação. É necessário enfatizar que nem uma nem outra situação – de depen-dência ou de contradependência – são convenientes do ponto de vista educacional.

12 BRUCE BROADHSED: Charlas agrícolas em Nueva Zelandia. In Notas sobre ra-diodifussao Agrícola. Trad. portuguesa do texto editado por FAO, Roma, 1965, 2a edição. IBC-CERCA-FAO-ABIR, 1971.

13 HUGO OSORIO MILENDEZ: El Libreto Radial de Educación Complementaria. I Seminario Nacional de Teleducación organizado pelo Centro de Teleducación de la Universidad Católica del Perú (CETUC). Ed. mimeografada. Lima, agosto, 1973.

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Note-se que, embora sendo interpessoal, o ambiente de classe esco-lar gera no adulto uma reação semelhante. É por isso que a moderna educação de adultos desaconselha esse modelo tradicional. Como ob-serva com razão Lennart Grenholm, do Instituto de Educação de Adul-tos da Tanzânia, se os colocamos em situação de sala de aula, os “adultos são reduzidos a meros receptores de informações. Na presença de um professor muito culto, os alunos adultos não podem deixar de experi-mentar um sentimento de inferioridade”, que “não cria uma situação de aprendizagem favorável à atenção e retenção de conhecimento”14.

Se isso acontece mesmo em uma sala de aula, onde o professor e o aluno estão juntos e podem ver e ouvir um ao outro, mais ainda ocorre no rádio, onde a mensagem é inerentemente unidirecional. Usado de forma convencional e não criativa, sobretudo quando reproduz a mecâ-nica de sala de aula tradicional, o rádio acentua muito mais essa relação hierárquica vertical professor-aluno, com sua sequela negativa de de-pendência e posterior rejeição.

3ª Limitação: fugacidade A mensagem radiofônica é efêmera, inscreve-se no tempo. Não é

possível, ao receptor, voltar atrás e reler o que não conseguiu apreender, como sucede na mensagem escrita. O que se diz já está dito, já passou; se não foi captado e entendido, já não há remédio; e o ouvinte se “desco-necta” porque não pode seguir o restante da exposição.

Isto impõe a necessidade de ser muito reiterativo no rádio, de repetir e insistir. Quer dizer, que a mensagem radiofônica está sujeita, em alto grau, ao que em comunicação se chama “lei da redundância”.

Também o fato já analisado de que o receptor está ausente, não pode controlar a velocidade da emissão nem pedir que se repita o que não entende, exige um alto grau de redundância para assegurar que sejam percebidos e retidos os conceitos que se deseja comunicar.

Esta exigência de redundância, imposta pelo caráter fugaz da mensa-gem, implica em duas consequências:

1. Limitação da informação. No rádio, só podemos expressar umas poucas ideias de cada vez. Limitar a poucos conceitos em cada emissão.

14 LENNART H. GRENHOLM: El empleo de la radio por los grupos de estudio en la República Unida de Tanzania. Serie Experiencias y Innovaciones en Educación No15. Unesco, Paris, 1976.

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Se temos cinco aspectos de uma questão para tratar, devemos eleger um ou dois deles – os principais –e deixar os restantes para uma próxima emissão ou para nunca. E isto por dois motivos:

a) Porque, em uma mensagem efêmera e inscrita no tempo, não é possível desenvolver muitas ideias. O ouvinte não pode retê-las.

b) Porque cada conceito deve ser exposto de forma insistente e reite-rada, e isto leva tempo. O que em um texto para publicação impressa se pode dizer em cinco linhas, em um roteiro radiofônico provavelmente exigirá dez ou até quinze. E este tempo em que vamos redundar, é o tempo no qual devemos renunciar ao acréscimo de mais informações.

2. Risco de monotonia. Se não repetirmos bastante, a mensagem difi-cilmente será captada e retida. Ao mesmo tempo, porém, esta inevitável necessidade de repetir também introduz o risco de a mensagem resultar monótona, provocando aborrecimento, distração, rejeição.

4ª Limitação: público condicionadoDeixamos expressamente para analisar por último – por último, mas

não menos importante – uma limitação de grande importância pelas repercussões que implica para um uso educativo do rádio e que, no en-tanto, é a menos mencionada e levada em conta.

Numa primeira formulação, poderia enunciá-la assim: o público está acostumado a mais ouvir do que escutar rádio. Ou seja, é baixo o nível de atenção e concentração ante a mensagem radiofônica.

Quando se examina mais a fundo esta constatação, percebe-se que ela aponta a um fato mais global: os destinatários de nossa mensagem educativa ou cultural são também e ao mesmo tempo rádio-ouvintes. Ouvem rádio não só quando chega a hora da programação educativa. Eles ouvem rádio todo o dia. Ouvem não só para se formar, mas tam-bém para se informar e, sobretudo, para se entreter. Adquiriram hábitos e atitudes que já não são fáceis de mudar sua maneira de receber o pro-grama educativo.

Exemplo disto é esta atitude tão corrente, assinalada no começo, de ouvir sem atender, sem escutá-la realmente, de ouvir de forma distraída e superficial.

Na América Latina, o rádio é muito ouvido. Porém, o público se acostumou a ter o aparelho receptor constantemente ligado como “mú-

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sica de fundo” para suas tarefas ou seus momentos de descanso. A au-diência se habituou – e as próprias emissoras contribuíram para isto – a estabelecer com o aparelho de rádio uma relação cômoda e passiva. Muitos fatores têm contribuído para esta tendência à facilidade e ao me-nor esforço:

• a transmissão de rádio chega em qualquer momento, onde se estiver, com apenas um acionar de botão;

• hoje em dia, com os modernos aparelhos portáteis transistoriza-dos, o rádio vai com o ouvinte a qualquer parte;

• com uma total facilidade e num instante, se o que se escuta não interessa ou desgosta, basta girar o dial e se muda de estação;

• o próprio fato de que na América Latina não se paga imposto ou licença pelo direito de escutar rádio (como ocorre na Europa) cria a sensação de que é grátis, está sempre a nossa disposição sem requerer o mínimo esforço ou sacrifício.

Assim, o rádio-ouvinte está acostumado a ouvir para se distrair, não para pensar, não para colocar algo de si na captação da mensagem, mas em busca de um prazer fácil. O rádio que geralmente ouve, satisfaz e fo-menta essa tendência de fornecer facilmente entretenimento, distração, enquanto a educação demanda outra atitude: atenção, concentração, reflexão.

Nossa mensagem educativa se insere em um meio altamente com-petitivo. A primeira coisa que deve ter presente quem deseja usar o rádio com finalidade educativa, é que nunca estamos sós no dial. Há uma oferta permanente de mensagens mais ou menos atrativas. Exis-tem mais de 3500 emissoras de rádio na América Latina e 93 por cento delas são comerciais e, na média, concedem apenas três ou quatro por cento de seu tempo total de transmissão a programas classificados como educativos e culturais. Porém, por outro lado, dedicam massivamente seus espaços para emissões de entretenimento. Nossa emissão educativa terá, pois, que enfrentar sempre os hábitos preexistentes gerados por esse modelo de programação.

Mesmo procedendo de um campo tão pragmático como é este da publicidade comercial, não deixa de dar conta de certa realidade a dis-tinção, que fazem os publicitários, acerca do grau de atenção com que suas mensagens são recebidas no que eles chamam de meios de audiên-cia cativa. Exemplo deste é o filme, onde o espectador, sentado em sua

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poltrona e olhando para a tela está, de alguma maneira, obrigado a as-sistir ao espetáculo, distinto dos meios de audiência livre, como o rádio, no qual é tão fácil silenciar o aparelho receptor e trocar de estação à menor queda de interesse.

Em meu trabalho de roteirista e realizador de programas radiofôni-cos sempre tenho presente uma caricatura que vi certa vez numa revista: em um estúdio de rádio, um sábio cientista se prepara para ler ao mi-crofone uma volumosa conferência, quando o locutor sussurra no seu ouvido: “não se empenhe demais, professor! Segundo pesquisa de au-diência, estamos com uma sintonia de zero por cento”. Piada cruel, sem dúvida, mas que conota uma sábia advertência. Enquanto elabora seu roteiro, o radiocomunicador deveria perguntar-se constantemente: “A esta altura a audiência está escutando-me? Estou conseguindo manter o interesse do meu público ou já terão girado o dial?”.

Dirigimo-nos, pois, a um auditório duplamente condicionado: tan-to pela facilidade de acesso ao meio quanto por seus hábitos de rádio--ouvintes, favorecidos pelas características próprias da radiodifusão latino-americana (proliferação de emissoras, dial altamente povoado de mensagens, presença esmagadoramente majoritária de programas de entretenimento etc.). Assim, a grande difusão e popularidade do meio, se por um lado favorece a possibilidade de uma comunicação educativa, por outro condiciona esta comunicação. Se não consegue atrair rapida-mente a atenção do ouvinte e mantê-la ao longo de toda a veiculação, a mensagem educativa fatalmente vai se perder: nosso destinatário desli-gará o receptor, mudará de estação ou, no melhor dos casos, cederá ao hábito, fortemente arraigado nele, de ouvir distraidamente, sem escutar.

A receptividade à mudança. Talvez seja conveniente assinalar, por últi-mo, outro condicionamento. Até aqui se viu como o rádio condiciona a capacidade de atenção do ouvinte. Porém, num sentido mais profundo, condiciona também sua receptividade e capacidade de compreensão, e por essa via, cria limites para a seleção dos conteúdos.

Como já explicamos no capítulo anterior, nenhum programa é neu-tro; nenhum é anódino nem carente de conteúdo. Todo programa influi na mente dos ouvintes. As novelas, os anúncios comerciais, as canções e os programas de entretenimento de consumo massivo tendem a fomen-tar nos ouvintes uma atitude acrítica e a consolidar uma série de valores e pautas de comportamento. Nossa mensagem educativa pressupõe outros

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valores e outras pautas. Por consequência, entra em colisão com aquelas que, pela influência do massivo, a audiência já se acostumou a validar.

De alguma maneira, a mensagem educativa, crítica e problematiza-dora vai “contra a corrente”. Sempre é mais fácil seguir acreditando e pensando no que sempre se acreditou e se pensou, ou seja, “no que to-dos pensam”, do que se questionar ou problematizar.

Há que se ter sempre em conta este fator como um condicionamento real para uma ação educativa. Se o desdenhamos, se não temos o cui-dado de graduar e adequar nossa mensagem, se não a apresentamos de uma maneira pedagógica, por melhores e mais verdadeiros que sejam os valores que transmitimos e mesmo que estejam identificados com os autênticos interesses populares, corremos o risco de gerar, na maioria, incompreensão e rejeição em vez de adesão. No rádio educativo, esta-mos sempre condicionados pelo grau de percepção social dos nossos destinatários.

Em resumo, enquanto instrumento educativo, o rádio nos faz en-frentar uma série de limitações que precisam ser apreciadas e que dão plena razão à ciência da comunicação quando esta afirma que a mensa-gem é afetada pelas características do meio transmissor.

Na exposição anterior, conseguimos ver em que medida e de quantas formas as limitações do meio radiofônico afetam o propósito educa-tivo. Se não cabe afirmar que “o meio é a mensagem”, como exagerou McLuhan, cabe, sim, aceitar como um fato de real importância que o meio radiofônico condiciona a mensagem.

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Como se há de ver em seguida, estas limitações são superáveis, se não totalmente, ao menos em boa medida: o rádio é certamente um meio idôneo para fins educacionais. Porém, estas limitações existem, são importantes e devem ser levadas em conta, pois ignorá-las pode re-sultar no cumprimento parcial ou no não cumprimento dos objetivos da ação educativa.

3. As possibilidades, os recursos

Quando afirmamos que o rádio condiciona a mensagem educativa, não entendemos estes condicionamentos somente como limitação res-tritiva e negativa. O rádio também a condiciona positivamente, ofere-cendo possibilidades de realizar uma tarefa pedagógica efetiva, desde que estas sejam reconhecidas e empregadas pelo comunicador-educa-dor. Quer dizer, sempre que este domine a linguagem do meio.

Assim como na seção anterior vimos algumas das principais limi-tações do rádio, agora vamos expor algumas de suas possibilidades e constatar como estas compensam ou equilibram àquelas, em menor ou maior medida.

1 Poder de sugestãoEntre as limitações do meio, havíamos assinalado, em primeiro lu-

gar, sua unisensorialidade, isto é, o fato de que o rádio opera somente sobre o sentido auditivo. Frente à unisensorialidade, temos como com-pensação uma característica do meio radiofônico, também acertada-mente valorizada pelos estudiosos da comunicação coletiva: o rádio é sugestão. “Lançamos a mensagem no ar – diz um deles – e a imaginação do rádio-ouvinte passa a voar”.

Se estamos privados de imagens visuais, o rádio dispõe, em troca, de uma rica gama de imagens auditivas: “Posto que na educação através do rádio o ouvido é o único sentido que temos ao nosso alcance, este deve ser impressionado por imagens auditivas que substituam os de-mais sentidos”. 15

Ser sugestivo no rádio é uma possibilidade ao alcance do educador comunicador. Mais que isso, é quase uma exigência, já que a eficácia

15 J. O’SULLIVAN-RYAN, op. cit. (cf. nota 8 do Capítulo 1).

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da mensagem radiofônica depende, em grande medida, da riqueza su-gestiva da emissão, de sua capacidade de sugerir, de alimentar a imagi-nação do ouvinte com uma variada proposta de imagens auditivas. Se sua imaginação é mobilizada pelo programa, atenderá à mensagem, vai retê-la e assimilá-la, ainda que ela chegue por um único sentido. Se, pelo contrário, a emissão não contém nem suscita imagens auditivas, o ou-vinte se distrairá, não participará ativamente e os conteúdos educativos chegarão até ele de forma débil ou não chegarão.

Felizmente, para um escritor de programas de rádio conhecedor do seu ofício, a possibilidade de provocar imagens auditivas é muito vasta –entusiasticamente vasta –, por esta mesma qualidade altamente suges-tiva do meio radiofônico.

Pensemos, apenas a título de exemplo, na grande liberdade tempo--espacial para se movimentar que há em um programa de rádio. Talvez não exista outro meio de comunicação no qual tão facilmente é possível se mover de um lugar para outro, de um tempo para outro. Desejamos levar o ouvinte a uma cena que se passa na França ou na Índia: bas-ta uma trilha musical, alguns detalhes no texto, sons, e o ouvinte nos acompanha, com sua imaginação, para essas terras distantes. De uma cena que ocorre em nosso país e na atualidade, queremos passar para uma evocação da vida dos Incas ou Maias na época pré-colombiana: é suficiente uma montagem de som e música, também uns poucos deta-lhes descritivos e já coseguiremos mudar a “decoração” de nossa ação. Uma batalha, um incêndio, uma tempestade, um parque de diversões, uma feira popular, uma manifestação massiva, um congestionamento de veículos numa rodovia: no rádio, tudo é possível criar.

Além destas possibilidades que têm a ver com o “espetáculo” audi-tivo, o rádio pode desenvolver, com extraordinária vividez – e isto é ainda mais importante –, fatos, ações, situações humanas, personagens, histórias, casos, conflitos, estados de ânimo, “climas”. Pode apresentar, de forma vívida, os problemas, as lutas, as alegrias e os sofrimentos dos seres humanos e das comunidades.

Os recursos da linguagem radiofônica. Mencionou-se, também, que um programa de rádio, limitado a um único sentido, exige do des-tinatário um alto grau de concentração, maior que o demandado pe-los meios audiovisuais. Por consequência, traz o risco de provocar um maior e mais rápido cansaço. Frente a esta limitação, os comunicadores

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aconselham aliviar o peso da concentração apelando a uma grande va-riedade de recursos radiofônicos.

Como já se viu, felizmente esses recursos são abundantes. Por exem-plo, quando se analisam as estruturas sonoras que o meio radiofônico tem à sua disposição, constata-se que o rádio não é só palavra, é também música e sons.

A linguagem musical é, sem dúvida, uma das linguagens humanas mais ricas que existem e de maior intensidade expressiva e emocional. Pena verificar que, no entanto, as programações educativas costumam fazer um uso sempre igual e pobre da música, utilizando-a apenas como separação de blocos de texto e recorrendo a roteiros musicais unifor-mes, repetidos até a saturação, escolhidos sem cuidado nem preocupa-ção com suas possibilidades expressivas. Já um bom uso da linguagem musical abre ricos e inesperados caminhos para a comunicação radio-fônica. Entre as imagens auditivas mais sugestivas que é possível criar, figuram aquelas que são geradas pelo uso inteligente e imaginativo de temas musicais.

Algo análogo sucede com os sons, frequentemente pouco ou nada utilizados em programas de caráter educativo e cultural, em que pese suas amplas possibilidades como meio de expressão. Para dar só um exemplo a mais, como se verá no próximo capítulo, é possível produzir, com efeitos de sons, inclusive eficazes “gráficos sonoros” para apresen-tar, pelo rádio, grandes estatísticas comparativas. Isto ilustra o amplo campo que o manejo criativo das imagens auditivas abre ao rádio edu-cativo.

2 Comunicação afetivaPor outro lado, se é certo que o rádio atua sobre um único sentido, a

psicologia nos dá um dado muito relevante: esse sentido auditivo a que chega o rádio é o mais ligado às vivências afetivas do homem.

Para comprovar, basta uma simples constatação que o leitor poderá asseverar com base em sua observação e em sua experiência: os cegos são, em sua maioria, de caráter pacífico e pacientes e, no geral, carregam sua deficiência com resignação; já os surdos são habitualmente irritá-veis e irascíveis. A perda do sentido auditivo lhes provoca uma sensação de incomunicação e bloqueia suas possibilidades de vinculação afetiva com os seres que os rodeiam, em tal medida que é muito difícil para

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eles suportar a vida. Esta comprovação confirma a vital importância do ouvido como sentido de comunicação social e emocional. O ouvido é o sentido da comunicação humana por excelência e a nível neurofisioló-gico, o órgão mais sensível da esfera afetiva do ser humano.

Também a psicanálise atribui, ao sentido auditivo, uma importân-cia e uma função especiais. Freud distingue entre dois tipos de ideias ou atividades psíquicas. Ambas se encontram na “psique” em estado latente. Porém, assim como uma está ligada à consciência – “surge da consciência e pode voltar a ela a todo momento” –, a outra se encontra desconectada dela, se acha reprimida e é incapaz de consciência por si mesma. A primeira se denomina pré-consciente e a segunda é designa-da como inconsciente.

Pois bem, a diferença entre uma representação inconsciente e ou-tra pré-consciente é que “o material da primeira permanece oculto, en-quanto que a segunda se mostra enlaçada com representações verbais”. Estes restos verbais “procedem especialmente de percepções acústicas, atribuindo uma origem sensorial especial ao sistema pré-consciente (...). Podemos deixar de lado os componentes visuais da representação verbal adquiridos na leitura e igualmente os componentes de movimen-to. A palavra que se grava no pré-consciente é, essencialmente (...), a palavra ouvida”.16

É, pois, a palavra falada que fica registrada no “pré-consciente eficaz que pode voltar facilmente a ser consciência”. O que registra a consciência e se grava a nível profundo, é o que chega através do ouvido. Freud encontra, pois, uma força e um poder de penetração especiais na transmissão oral da palavra. Quase não é necessário sublinhar a importância destas comprovações para a valorização do meio radiofônico.

Deixando de lado os dados da corrente psicanalítica, é um fato que a palavra falada – e nisto se diferencia da escrita – não só contém um ingrediente semântico e conceitual como carrega uma rica carga imaginativa e afetiva. O poeta francês Paul Valéry ficou deslumbrado quando, no alvorecer da radiodifusão, ouviu a leitura de um poema seu transmitido por rádio e percebeu os efeitos que esta leitura provocava nos ouvintes e nele próprio. Comprovou que os rádio-ouvintes, mesmo

16 SIGMUND FREUD: El “Yo” y el “Ello”. Obras Completas (trad. Luis López-Balleste-ros y de Torres), tomo II. Edit. Biblioteca Nueva de Madrid, 1968.

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aqueles que conheciam seu poema por tê-lo lido antes, descobriam, na-quele momento, riquezas novas não percebidas na leitura visual e que ele mesmo – o próprio autor – se reencontrava com as raízes mais pro-fundas de sua criação poética e nela via sugestões das quais até então não estava consciente. O que a leitura visual convertia em mero signifi-cado conceitual, recebia, na leitura radiofônica, outras ressonâncias. A palavra tornou-se ritmo, som, musicalidade, linguagem da autêntica e profunda comunicação.

De tudo isto, emerge uma consequência muito importante para nos-so fazer radiofônico. Por ser um meio auditivo, o rádio é mais propício à palavra-emoção que à palavra-conceito. Um ingrediente estético, emocional e afetivo deve estar sempre presente na comunicação se a queremos eficaz.

Naturalmente, não estamos aqui aludindo ao sensacionalismo de uma emoção barata e piegas, como a que geralmente empregam as ra-dionovelas. O que se quer assinalar é que um conceito, uma ideia pode ser muito melhor veiculada pelo rádio se a emoldurarmos em uma di-nâmica afetiva, cálida, vivencial que estabeleça uma comunicação pes-soal com o ouvinte e o faça sentir a emissão, não apenas percebê-la inte-lectualmente. No entanto, se for apresentada em uma forma puramente cognitiva, fria, impessoal – como normalmente fazem os programas educativos atuais –, as possibilidades de que a mensagem seja escutada com atenção e apreendida serão consideravelmente menores.

A autêntica comunicação radiofônica deve ter um componente afe-tivo além do conceitual; deve mobilizar não somente a área pensante do ouvinte como também sua área emocional.

Estas peculiaridades do sentido auditivo, este valor da palavra oral, abrem grandes possibilidades para a educação pelo rádio. Na medida em que o comunicador seja capaz de incorporar este elemento afetivo, tanto mais fácil será combater a distração do ouvinte, evitar seu cansaço, eliminar a sensação de monotonia e captar sua atenção.

3 EmpatiaOutra limitação do rádio é a ausência do destinatário, sua situação

de receptor passivo, a unidirecionalidade da comunicação. Mas há um potencial da mensagem radiofônica, que está na base das

técnicas criativas e se não elimina esta limitação, ao menos a mitiga e

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atenua consideravelmente: o fator empatia. Assim como no parágrafo anterior, fazendo eco à definição de um analista, assinalamos que “o rá-dio é sugestão”, acrescentaremos agora, com não menos convicção, que o rádio é empatia. A autêntica comunicação popular reside, em grande medida, na capacidade empática do comunicador.

Luis Ramiro Beltrán descreve assim esta qualidade: “Os psicólogos chamam ‘empatia’ a capacidade de projetarmos nós mesmos na perso-nalidade dos demais, a faculdade de antecipar suas respostas aos nossos estímulos. Esta atitude para se ‘colocar na pele do próximo’ é uma das habilidades fundamentais para a boa comunicação”.

“Trata-se de uma habilidade possível de desenvolver. Todos pode-mos incrementar nossa competência de “empatizar” se, ao tentarmos a comunicação, tratarmos de nos situar no ponto de vista, no lugar do nosso destinatário (...). A empatia é tão importante na comunicação que não é arriscado afirmar que a maior parte das suas falhas – o mal enten-dido, a falta de entendimento, a incomunicação – provém do fato que a emissora não soube colocar-se no lugar de seu destinatário”.17

Com expressões que, sugestivamente, decorrem precisamente do rádio e que foram incorporadas da linguagem popular, quando encon-tramos alguém com quem nos entendemos bem, dizemos que ambos estamos sintonizados. Também dizemos que, para poder ser bem com-preendidos, devemos entrar na mesma onda do outro. Pois bem, ape-lando a estas analogias, que não por nada têm sua origem no rádio, di-ríamos que a empatia é a faculdade de saber “sintonizar” com o ouvinte, de nos colocarmos em sua mesma “onda”.

Para comunicarmos, necessitamos desenvolver em nós mesmos esta capacidade de prever possíveis reações e respostas de nosso auditório à mensagem que estamos emitindo. Pode-se dizer que mesmo que o ou-vinte esteja ausente ou que não o conhecemos pessoalmente, a verdadeira comunicação sempre implica em interação: o ouvinte está presente, deve estar presente em nossa mente quando escrevemos e produzimos nosso programa; ele nos influencia, assim como nós tratamos de influenciá-lo.

Sempre recordo um inteligente dirigente político que quando fazia seu comentário radiofônico diário, conforme ele próprio dizia, costu-

17 LUIS RAMIRO BELTRAN: Comunicación. In J. Ramsay, H. Frías e L.R. Beltran: Ex-tensión Agrícola: Dinámica del Desarrollo Rural. Instituto Interamericano de Ciencias Agrícolas (HCA), San José, Costa Rica. 4a ed, 1975.

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mava lembrar de uma humilde lavadeira da campanha que havia conhe-cido na infância. Enquanto desenvolvia seu comentário, este político pensava em “dona Maria” e falava para ela. O dirigente se perguntava se ela entenderia sua explicação, imaginava as reações da lavadeira, procu-rava dizer as coisas de maneira que pudessem ser compreendidas por ela, que chegassem até ela. Visualizava a “dona Maria” do outro lado do receptor e dizia a si mesmo: “Aqui ela está concordando e aprovando” ou “cuidado, aqui dona Maria já não entende, se aborrece. Isto que estou dizendo parece alheio e estranho a ela, devo explicar de outro modo mais relacionado com seu mundo”. Não conheço outra fórmula melhor de comunicação radiofônica educativa.

A empatia funciona mesmo quando não podemos conhecer pes-soalmente a cada um dos nossos ouvintes. Afinal, sempre é possível imaginar, visualizar nosso interlocutor. No nosso entorno, conhece-mos muitas pessoas parecidas com ele, assim como o político de nosso exemplo conhecia a “dona Maria” e tratava de falar com ela. Por outro lado, nós mesmos não somos tão diferentes do nosso ouvinte. Muitas das nossas experiências e vivências são comuns com as suas. A empatia se produz à base de observação, intuição e também de introspecção. Se observamos a nós mesmos, se nos conhecemos bem – criticamente, sem idealização –, vamos descobrindo atitudes e reações nossas que nos permitem entender melhor os outros.

Se em toda comunicação é indispensável a empatia, no rádio ela é decisiva. O comunicador radiofônico tem que desenvolver ao máxi-mo sua capacidade de se colocar no lugar do ouvinte popular, tratar de perceber o mundo como ele percebe; sintonizar com sua vida, sua rea-lidade, seu universo cultural; sentir como ele, compreender como ele, descobrir que coisas podem interessar-lhe, falar sua linguagem, fazer com que se sinta refletido na mensagem (não para deixar intacto este universo mental que, pelo contrário, precisa ser ampliado e, em muitos aspectos, transformado. Porém, nada se constrói no ar, sem fundamen-tos: para que o homem possa ser mais, é necessário partir do que esse homem é).

É com base na empatia, ou seja, com base na nossa capacidade de assumir a situação e o universo mental do nosso destinatário, que este se sentirá refletido e compreendido e poderá superar a sensação negativa de verticalidade e unidirecionalidade. Alcançando esta comunicação

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empática, o ouvinte já não se sentirá como ausente, excluído da emissão, enfrentando conteúdos impostos, mas, bem ao contrário, vai considerar-se presente de certo modo no programa, vivendo-o e participando dele. Por isso dizemos que a empatia está na base das técnicas radiofônicas criativas e é o motor de todas elas. É, como afirma Beltrán, “uma habilidade desenvolvível”, uma capacidade que todo comunicador-educador pode e deve desenvolver. Consegue adquiri-la com base em uma identificação profunda com o ouvinte popular, uma identificação que supõe observá-lo e conhecê-lo, e ao mesmo tempo, aprender a querê-lo tal como é, com suas virtudes e fraquezas.

Como se verá adiante, existem formatos ou gêneros do rádio mais “empáticos” do que outros, daí também a importância de dominar as técnicas de realização radiofônica para ser um radioeducador eficiente.

Dimensão sociológica da empatia. Sempre se fala da empatia em termos puramente psicológicos. Entretanto, há também uma dimensão sociológica, que é menos percebida e sublinhada, mas, sem dúvida, de capital importância.

Por exemplo, já há um princípio de empatia quando, ao produzirmos nosso programa radioeducativo popular para adultos – trabalhadores rurais ou da cidade –, temos presente que nos dirigimos a homens que trabalharam duramente o dia inteiro, chegam cansados devido a sua ár-dua jornada e cujo esforço para se concentrar e nos entender precisa ser facilitado o máximo possível.

O educador, comodamente sentado frente ao microfone, deveria pen-sar com mais frequência que esses ouvintes passaram muitas horas do arado para a máquina e que, por isso, é lógico que custem a prestar atenção. A primeira preocupação a ditar nossa atitude de empatia deveria ser a de nos colocarmos no lugar do trabalhador, para facilitar o mais possível o esforço que demanda a percepção e assimilação de nossa mensagem.

Muitas vezes também preconizamos soluções (de alimentação, de higiene etc.) que não estão ao alcance econômico de nossos ouvintes. A empatia deveria servir para pensarmos não somente na conveniência intrínseca de certas soluções, mas também no seu custo em relação à renda e aos recursos reais de nossa audiência. Empatia é ter consciência de que estamos transmitindo para famílias que ganham apenas o neces-sário para sobreviver e que não podemos recomendar-lhes práticas que, por melhores que sejam, não estão ao seu alcance. Antes de explicar a

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importância de incluir verduras em nossa dieta por causa de seu valor vitamínico e dar uma receita para fazer “um saboroso suflê de espina-fre”, primeiro é preciso descobrir quanto custam os espinafres em nossa cidade e se eles estão acessíveis ao consumo popular. Antes de explicar os benefícios de higiene e limpeza aos ouvintes de favelas, pergunte se eles têm água em suas casas ou que sacrifícios fazem para conseguir carregar até onde vivem uns poucos litros em baldes de lata.

E talvez exista, também, uma dimensão da empatia que poderíamos chamar de “ideológica”. Poderíamos descrevê-la como a capacidade de saber medir o grau de receptividade à mudança que pode ter nosso ou-vinte, de modo a colocar nossa mensagem problematizadora, nem tanto aqui nem tão pouco além da “dose” de mudança que ele é capaz de as-similar a esta altura da sua vida. Não propor prematuramente questio-namentos ou formulações que, em seu atual estado de consciência, o ouvinte não é capaz de compreender nem de aceitar.

4 Relação de identificaçãoExaminemos, por último, que respostas, possibilidades e recursos

oferece o meio radiofônico frente à outra limitação mencionada ante-riormente: o fato de nos dirigirmos a um público condicionado, habi-tuado a ouvir rádio de forma distraída e superficial.

Quando se analisa a forma que as pessoas escutam rádio e as razões pelas quais o fazem, descobre-se que estas, na realidade, são ambiva-lentes e mais complexas do que parecem à primeira vista. Nem toda relação do ouvinte com o rádio se sustenta em atitudes tão triviais, de mera busca de prazer e facilidade. Para o ouvinte, o rádio é também uma companhia, uma presença em sua vida com a qual ele estabelece relações que respondem a necessidades culturais e a profundas motiva-ções psicológicas.

Recorde-se, sobre isso, o exemplo já mencionado no Capítulo 1 so-bre o índice de audiência de rádio e telenovelas e sua influência nas mulheres latino-americanas. Constatou-se, em primeiro lugar, que as novelas não eram ouvidas apenas de forma distraída e superficial, mas, sim, escutadas com a maior atenção: seus ouvintes estão dependentes delas. Em segundo lugar, as entrevistadas de Maracaibo manifestaram que tiravam destas novelas “bons conselhos” e “soluções para seus pró-prios problemas, isto é, padrões de comportamento.

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A interpretação deste fato nos confronta com esta ambiguidade e ambivalência que estamos tratando de analisar. Por um lado, o saldo é triste: estas novelas sentimentais, de mau gosto, falsas, estavam ser-vindo de modelo e paradigma de conduta às suas ouvintes. Por outro lado, o dado nos revela que as mulheres que ouvem novelas – e isto mais acentuadamente entre as mulheres da classe baixa – não só o fazem por um passatempo ou por mera busca de emoções fáceis, mas também porque estão ansiosas por uma explicação do mundo que as rodeia e informações para entendê-lo e viver nele. O lamentável, então, é que só encontram resposta nesses folhetins lacrimogêneos e que o rádio – inclusive o “rádio educativo” – não oferece a elas outros meios para se situarem diante do mundo e da realidade. Mas o dado em si mesmo abre uma porta, uma expectativa esperançosa: nossas mensagens educativas também têm certa possibilidade de ser ouvidas com interesse e atenção, desde que saibam responder a perguntas vitais que os ouvintes se es-tão fazendo.

Enquanto o rádio comercial tende a explorar essa necessidade autên-tica dos ouvintes e geralmente não dá uma resposta satisfatória – como no exemplo já mencionado das radionovelas – o rádio educativo con-vencional muitas vezes fracassa por ignorar e desconhecer essa neces-sidade. A maioria das transmissões educativas se ajusta rigidamente a programas curriculares pré-determinados, cujos conteúdos estão pré--definidos e não levam em conta os interesses e as inquietações do pú-blico e as perguntas que estão fazendo. Mas se um programa educativo sabe partir do que as pessoas precisam e sentem, dos problemas sobre os quais elas estão à procura de explicação e resposta, é provável que consiga uma plateia concentrada, atenta e entusiasmada.

Há exemplos que atestam isso. Para citar um, mencionaremos o programa “Escola para Todos”, que entrou no ar anos atrás na América Central. Seu esquema é muito simples: é uma espécie de consultório radiofônico sobre temas de “cultura geral”. Qualquer ouvinte que não teve oportunidade de instrução escolar e deseje explicação sobre algu-ma coisa que não saiba, escreve ao programa e solicita a informação correspondente. Em cada edição, são selecionadas e respondidas dez perguntas formuladas pelos ouvintes e aquelas não consideradas de in-teresse geral recebem resposta individual por carta, de modo que ne-nhuma questão fica sem retorno.

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O valor educativo do programa é, como se vê, bastante discutível. As respostas breves, fragmentadas e intercaladas fornecem só conheci-mentos parciais e não desenvolvem a capacidade crítica de raciocinar e de relacioná-los. Mas o que vale a pena analisar é o êxito inquestionável do “Escola para Todos”. O programa recebe milhares de cartas. Inclusive ouvintes analfabetos pedem a amigos e parentes que escrevam suas car-tas para conseguirem enviar suas perguntas. Através de muitas, varia-das e significativas evidências, comprovou-se que o programa é ouvido com grande atenção pelo povo; que é extremamente popular e ganhou a simpatia, a adesão e o afeto da população rural; que a massa camponesa está profundamente identificada com ele e sente como se fosse seu. Isto talvez porque é o único que parece ocupar-se pessoalmente com cada um deles, dando-lhes assim certa sensação de dignidade e não os deixa se sentirem envergonhados ou inferiorizados por sua ignorância. Po-rém, sobretudo, a razão de seu êxito parece residir no fato de responder as perguntas concretas que eles formulam, ao que justamente querem saber. Enquanto isso, outros programas tradicionais de educação radio-fônica do tipo escolar transmitidos na mesma região apenas alcançam alguns poucos milhares – às vezes poucas centenas – de alunos.

Com todos os reparos que, sem dúvida, merece o esquema deste pro-grama mencionado, seu exemplo pode servir para constatar que o rádio nem sempre é ouvido de forma tão distraída e epidérmica como fre-quentemente se supõe. Também que é possível alcançar popularidade para um programa cultural e conseguir o interesse da audiência para os temas educativos, quando se sabe levar em conta as necessidades deste público.

Há duas formas de educar pelo rádio: uma é decidindo previamente o que o ouvinte “deve” aprender e a outra, partindo do que ele quer aprender, do que ele sente como necessidade e questionamento.

Ao seguir analisando a relação do ouvinte com o rádio, surge outro aspecto muito importante. Quando as pessoas escutam rádio, entram em jogo mecanismos psíquicos fundamentais como o da identificação. O público se identifica com determinados locutores, com determinados artistas, com determinadas personagens, com determinados programas de rádio e estabelece com eles uma relação afetiva especial.

Exemplos negativos de identificação, os meios de comunicação de massa nos fornecem em abundância. Basta recordar a forma como tan-

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tas mulheres frustradas se identificam com as heroínas das telenovelas, e os jovens fãs com seus ídolos, os cantores populares. Isto sem falar no caso, infelizmente tantas vezes registrado pela crônica policial, das crianças que se identificam com heróis da televisão e quadrinhos e, por exemplo, quebram uma perna tentando escalar paredes como o Batman.

Porém, por mais negativos que sejam, estes exemplos mostram dois fatos importantes: primeiro, que quando essa relação de identificação se produz, o público já não ouve o rádio distraída e superficialmente, mas concentra sua atenção; e segundo, que embora os meios de comunica-ção a explorem com fins de manipulação, essa relação responde a uma necessidade autêntica e profunda do ser humano. Sem certo grau de identificação, a comunicação não se estabelece. A identificação está na própria base de todo o processo de comunicação.

Os mass media geralmente oferecem, para esta identificação, mode-los tão antieducativos como os já mencionados. Mas é possível propor outros modelos muito mais positivos, muito mais consubstanciados com os autênticos interesses populares. E é possível, sobretudo, que esta relação de identificação deixe de operar a nível inconsciente, como nos exemplos anteriormente citados e, ao contrário, atuem para gerar no ouvinte uma gradual tomada de consciência.

Já não é tão possível conseguir uma atenção profunda e uma parti-cipação do ouvinte se ignoramos e desconhecemos este fenômeno. O erro no qual geralmente cai a chamada rádio educativa – e por isso seus débeis resultados – é o de não ter em conta esta chave fundamental de toda comunicação e frequentemente não oferecer a seus destinatários nenhum elemento de identificação. O ouvinte popular não pode sentir--se identificado com esse professor pedante e superior que, do alto de seu saber, ensina.

No entanto, se o educador-comunicador é consciente desta necessi-dade básica de toda comunicação coletiva e sabe canalizá-la adequada-mente, pode atuar positivamente e viabilizar uma comunicação educa-tiva eficaz.

Aqui, também, esta possibilidade depende da capacidade de empatia da emissão radiofônica. Se esta tem qualidade empática, se sabe inserir--se na realidade, no mundo, nas vivências e nas aspirações das camadas populares, estas se sentirão parte da emissão e estabelecerão com ela uma relação positiva de identificação.

68 Mario Kaplún

Evidentemente, o educador deve trabalhar com cautela e mesura no uso deste recurso e estar consciente do risco de manipulação que ele car-rega. Mesmo com conteúdos transformadores, o abuso do mecanismo de identificação pode resultar em uma nova alienação. Não basta, pois, a mera substituição de modelos de identificação se não se busca conse-guir que, ao mesmo tempo, o ouvinte comece a pensar por si mesmo. Sempre será necessário equilibrar os elementos de identificação com os de crítica. Porém, o que se quer mostrar aqui é a importância de criar estes laços de identificação entre o programa e o ouvinte. Apenas ele, obviamente, não é suficiente para que uma mensagem radiofônica pos-sa cumprir uma função educativa, mas sem a presença de uma relação de identificação não é possível iniciar nem estabelecer a comunicação.

Quanto à outra limitação assinalada, isto é, o alto nível de redundân-cia imposto pela fugacidade da mensagem radiofônica, mais adiante se vai especificar e exemplificar como esta necessidade de reiterar os con-ceitos pode ser satisfeita sem cair na monotonia. Isto na medida em que se saiba apelar aos variados recursos técnicos que o rádio disponibiliza.

Em síntese. Recapitulando o exposto, a maior ou menor eficácia pedagógica da mensagem radiofônica dependerá da medida em que se consiga:

1. ser interessante e captar a atenção do ouvinte, sem exigir-lhe um es-forço excessivo de concentração;

2. aproveitar o poder de sugestão do meio, estimulando a imaginação do ouvinte e suscitando imagens auditivas;

3. desenvolver uma variada gama de recursos expressivos, valendo-se não só da palavra, mas também da música e dos sons;

4. criar uma comunicação afetiva, que não só fale ao intelecto do ou-vinte como também convoque sua sensibilidade e sua participação emotiva;

5. desenvolver a capacidade de empatia, fazendo com que o rádio-ou-vinte se sinta presente no programa e refletido nele;

6. partir das necessidades culturais dos destinatários e responder às perguntas que estes se formulam;

69Produção de Programas de Rádio

7. oferecer elementos de identificação ao ouvinte; 8. limitar-se a apresentar poucas ideias e conceitos em cada emissão;

saber reiterá-los e ser redundante sem cair na monotonia;9. produzir com criatividade. Talvez seja este o denominador comum

de todas as possibilidades que oferece o meio radiofônico e de todas suas exigências. A utilização de técnicas criativas é condição essen-cial da comunicação radiofônica educativa.

70 Mario Kaplún

4. O roteiro radiofônico criativo

Bem, e agora? Como, em um programa educativo e cultural, con-seguir ser sugestivo, fornecer imagens auditivas, utilizar música e som, estabelecer uma comunicação afetiva, oferecer ao ouvinte elementos de identificação?

Este livro está destinado a responder estas questões, com seus capítu-los sobre técnica e prática radiofônicas, incluindo abundantes exemplos. Contudo, acreditamos ser conveniente adiantar aqui algumas pistas que vão dando conhecimento ao leitor e o ajudando a visualizar mais con-cretamente, já desde os primeiros capítulos, as possibilidades e exigên-cias do meio.

Os formatos estáticosTalvez nossa dificuldade para imaginar programas que respondam a

essas características, conforme já observado, resulte de estarmos acos-tumados a um modelo um tanto estereotipado e acomodado de rádio educativa e cultural. A grande maioria das emissões deste caráter con-siste na mera leitura por rádio de um texto convencional, não adaptado à natureza do meio, nem às suas exigências específicas.

A forma mais usual e corrente, a empregada na região pelo rádio educativo, tem sido sempre o discurso ou monólogo, isto é, a fala ex-positiva. Na melhor das hipóteses, para apressar o resultado, divide-se o texto entre dois locutores que se alternam, lendo uma frase cada um. Porém, sem que se constitua um verdadeiro diálogo em vez de um mo-nólogo lido a duas vozes.

A maioria dos especialistas, e sobretudo os comunicadores práticos, expressam sérias reservas sobre a eficácia pedagógica deste formato. As-sim, um deles vai dizer: “o discurso ou monólogo é a forma mais fácil, mas também a mais monótona, chata”.

Outro não é menos categórico: “O fato de somente escutar sem po-der ver o expositor, requer do ouvinte um grande esforço de atenção. Pode-se afirmar que, salvo casos excepcionais, é péssimo um programa monólogo – uma fala expositiva, uma palestra, uma conferência – que ultrapasse quatro ou cinco minutos de duração”. Se a produção é as-sim, as possibilidades deste formato são bem limitadas, já que há pou-cos temas educativos passíveis de se desenvolver em tão breve tempo

71Produção de Programas de Rádio

de duração. Este especialista conclui que, por regra geral, se deve evitar o programa monólogo, principalmente quando se trata de um público “pouco acostumado a esforços de atenção e a conceito abstratos”.

As conceituações destes especialistas talvez incorram em excessiva generalização. Pode haver, e de fato existem, programas monólogo pe-dagogicamente eficazes. Mas talvez constituam uma exceção à regra. É preciso convir que no geral, na palestra ou exposição monologada:

• é mais difícil manter a atenção e o interesse do ouvinte; • há menor espaço para sugestão e imaginação; as possibilidades

de criar imagens auditivas diminuem notoriamente;• é mais escasso e com menores possibilidades expressivas o

emprego da música, que geralmente, como já se apontou em trechos anteriores deste livro, fica reduzida a uma mera função de pausa entre blocos de texto;

• a comunicação tende a ser mais fria e impessoal e coloca menos em jogo o mundo afetivo do auditório;

• acentua-se mais que em qualquer outro formato a unidirecio-nalidade, a relação hierárquica vertical entre quem fala e quem escuta, além da situação de passividade e dependência deste úl-timo frente ao primeiro;

• torna-se mais difícil oferecer ao ouvinte elementos de identifica-ção e participação;

• mais facilmente se cai em conceitos abstratos; • a necessária redundância ou reiteração dos conceitos se torna

particularmente penosa e pesada; • a tendência é dar ao ouvinte os conteúdos já “mastigados” e re-

solvidos, com uma visão unilateral das questões. Pela brevidade do tempo que dispõe e pelo fato de o tema ser apresentado por uma única e mesma voz, é difícil oferecer distintos pontos de vista, distintas alternativas e opções.

Por estes motivos, os comunicadores consideram a palestra (fala ex-positiva) a forma menos radiofônica de comunicação. Mais ainda: não raras vezes a produção chega a ser anti-radiofônica, como seria anti--cinematográfica a conferência filmada com câmera fixa, conforme o exemplo citado no início deste capítulo.

72 Mario Kaplún

Os formatos dinâmicosCom surpreendente unanimidade, todos os especialistas práticos

coincidem na preferência por outros formatos para as emissões educati-vas: o diálogo e, especialmente, o radiodrama ou radioteatro.

É possível que tal proposta provoque uma perplexidade no leitor, que não conseguirá evitar a evocação imediata da clássica novela, a ra-dionovela folhetinesca, melodramática, de tanta difusão em nossos paí-ses. Porém, devemos corrigir este prejulgamento. Embora possamos co-nhecê-lo através de expressões que o desqualificam, o radiodrama não é um gênero espúrio e, sim, um meio nobre de expressão. Na Europa, são produzidas, para o rádio, peças dramáticas de escritores de muita qualidade como Bertold Brecht, Friederich Dürrenmatt, Harold Pinter, Heinrich Böll.

Que motivos são invocados pelos educadores comunicadores para optar convictamente por este formato? Um deles, com larga aplicação radiofônica na Ásia, alega estas razões: “O drama radiofônico facilita mais a concentração do ouvinte... Não há modo mais eficiente de usar a sugestão no rádio do que na produção de um drama... O diálogo é sem-pre mais atrativo que o discurso, porque não diz as coisas diretamente, mas as sugere... Este gênero ativa a fantasia e a inteligência dos ouvin-tes... Constitui uma autêntica forma de comunicação”.

Outro, latino-americano, compartilha esta mesma opção e aconse-lha: “É preferível tomar os conteúdos das falas, os dados educativos que se quer transmitir, e produzir um radioteatro com eles, ou pelo menos um diálogo bem preparado, vivo e interessante. Mesmo que a duração de um radioteatro ou diálogo seja muito maior que a de uma palestra ou conferência, nunca será do tamanho da monotonia que estas podem provocar sobre tema idêntico”.

Como se pode notar, a fundamentação desta opinião não é uma mera questão estética ou de efeito nem uma preferência subjetiva, mas razões de ordem estritamente pedagógica.

Podemos afirmar, a favor do radiodrama ou radioteatro, algumas consideráveis qualidades:

• atrai vivamente o interesse da audiência popular; assegura uma maior variedade, evitando a monotonia e a distração;

73Produção de Programas de Rádio

• provoca a imaginação do ouvinte; a possibilidade de aproveitar os elementos de sugestão do meio e de oferecer imagens auditi-vas alcança ótimos níveis;

• utiliza a totalidade dos recursos do rádio – música, efeitos sono-ros –, facilitando a concentração e tornando a mensagem mais expressiva;

• estabelece uma comunicação cálida, pessoal, que alcança a esfe-ra emocional e afetiva;

• evita as abstrações, objetivando o tema em situações concretas, palpáveis, próximas à audiência popular; a mensagem se huma-niza e personaliza. Como diz Osorio (op. cit.), “o público se sente mais diretamente tocado pelos problemas que afetam aos demais homens, mais do que pelas coisas ou por ideias, por mais belas que estas sejam. Quanto mais humano for o texto radiofônico, tanto mais possibilidades terá de interessar a um grande públi-co”. Osorio invoca a fórmula de Lazareff: expressar “as ideias por meio dos fatos e os fatos por meio dos homens”;

• o ouvinte pode sentir-se parte e identificado com os persona-gens e situações do programa; é estabelecida uma relação de em-patia. Identificação que se alcançará quanto mais o roteiro saiba refletir os problemas, as situações, o ambiente, a linguagem e os valores da comunidade destinatária;

• atenua e mitiga a unidirecionalidade da mensagem. O clássico professor desaparece e o ouvinte se integra em uma ação na qual se sente, de certo modo, participando, junto com personagens que são e falam como ele e com os quais pode estabelecer uma relação de igual para igual;

• é muito mais possível apresentar, através dos distintos personagens, diferentes posições ante uma questão, dando assim, ao ouvinte, diversas opções e “problematizando-o”;

• sua mensagem é implícita. Não diz diretamente o que o ouvin-te deve pensar, apenas sugere. Não dá as coisas “mastigadas” e resolvidas. Deste modo, mobiliza a inteligência do ouvinte, que vai vivendo o processo, participando dele, descobrindo por si mesmo os elementos de julgamento e tirando suas conclusões;

74 Mario Kaplún

• através dos diálogos e das situações, é mais fácil reiterar os con-ceitos fundamentais sem que o ouvinte note e sem cair na mo-notonia.

Confrontamos aqui dois gêneros – um estático, outro dinâmico – sem que isto implique em que postulemos o radioteatro como o único formato educativo nem como solução universal. Sem dúvida, existem outros gêneros radiofônicos interessantes e de ricas possibilidades edu-cativas pouco exploradas, que também vamos abordar ao longo deste livro. Na medida em que o educador-comunicador seja criativo, irá in-corporando cada vez mais novos gêneros, novos recursos, novas solu-ções. O que se tem buscado visualizar aqui é que há formatos e recursos radiofônicos que satisfazem os propósitos educativos e ao mesmo tem-po atendem aos requisitos do meio.

Evidentemente, seu uso demanda criatividade e nos confronta com a necessidade de colocar tecnicamente o problema da composição radio-fônica de nossas mensagens e de enquadrá-las em estruturas especificas do rádio. Da forma como, acertadamente, afirma Osorio: “um roteiro radiofônico educativo é, antes de tudo, um roteiro de rádio. Conse-quentemente, sua elaboração deve respeitar todas as técnicas de criação radiofônica”. Em outras palavras, um programa educativo tem que ser também e antes que qualquer coisa, um bom programa de rádio, atraen-te e capaz de captar a atenção do destinatário.

Nossa tarefa, pois, não termina no momento em que selecionamos os temas e os conteúdos para nossa emissão; melhor dizendo, é ali que começa. Como convertê-los em uma criação radiofônica atraente e efi-caz? É nisto que consiste realmente nosso trabalho. Toda mensagem educativa deve ser “traduzida”, reelaborada e colocada na linguagem ra-diofônica.

75Produção de Programas de Rádio

Capítulo

3

A linguagem radiofônica

1. Código

Vamos nos imaginar na sala de equipamentos de uma empresa de telégrafo. O receptor está funcionando e recebendo sinais. O telegrafista os capta e converte em letras, e estas, por sua vez, vão agrupando-se e formando palavras. Mas a nós, que desconhecemos o código Morse, estes sinais telegráficos não dizem nada; apenas ouvimos uma monó-tona e arrítmica sucessão de sons curtos e longos. Contudo, há ali uma mensagem; se pudéssemos decifrar, decodificar esses sons entrecorta-dos, talvez nos transmitissem uma notícia muito importante. Mas, não podemos recebê-la, porque não sabemos o código.

Se não entendemos o código de sinais com bandeiras usadas em na-vegação, o marinheiro agitando galhardetes nos parecerá um estranho palhaço cujas contorções permanecerão carentes de todo sentido para nós. Se não sabemos taquigrafia, os sinais taquigráficos nos parecerão caprichosos rabiscos sem nenhuma significação.

Estamos diante de um grupo de estrangeiros cujo idioma não en-tendemos: as palavras que pronunciam e que para eles são tão claras, são para nós tão somente sons ininteligíveis. Um deles terá dito algo; todos o festejam com ruidosas gargalhadas. Qual será a graça? Do que estarão rindo? Será que é de nós? Não sabemos, porque não entendemos este código. Um idioma é também um código, como o Morse ou o das galhardetes náuticas.

76 Mario Kaplún

Importância e necessidade de um código comumEstes exemplos simples nos levam a um tema chave em comunica-

ção: a necessidade de empregar um código que o destinatário entenda e lhe pareça inteligível e claro. Ainda que falemos o mesmo idioma, as palavras que empregamos podem lhe parecer tão estranhas e incom-preensíveis como os sinais do sistema Morse são para os que não sabem telegrafia ou os vocábulos de um idioma estrangeiro para quem não entende determinada língua. É frequente que pretendamos comunicar--nos com os demais usando um código que eles não dominam.

Toda comunicação, por simples que seja a mensagem que desejamos comunicar, implica:

a) Uma Codificação: colocamos nossa ideia em palavras, a expres-samos com sinais audíveis, a comunicamos. Elegemos, do con-junto de sinais de que dispomos (o idioma), uma série de sinais (palavras) que expressam nossa ideia e agrupamos e ordenamos esses sinais de acordo com uma determinada estrutura conven-cional estabelecida (a gramática: sujeito, verbo, predicado). Em síntese, codificamos nossa mensagem.

Se , por exemplo, desejamos levantar o problema da superpopula-ção dizemos: “O mundo se depara atualmente com o problema de um crescimento demográfico acelerado”. Ou selecionamos outros sinais: “A população mundial está aumentando muito rapidamente”.

b) Uma Decodificação: o destinatário percebe – ouve ou lê esses signos, os entende e interpreta, lhes confere sentido e registra a informação; capta a ideia que queiramos comunicar. Isto é, deci-fra, decodifica a mensagem, se a passarmos com um código que faça parte do seu repertório cultural.

Caso contrário, só é capaz de perceber – ouvir ou ler – tais sinais, mas como eles são estranhos a ele não consegue interpretar seu signifi-cado; não consegue decodificá-los.

As palavras de um idioma são signos convencionais sobre os quais concordamos em atribuir um significado particular, tais como os sinais do código telegráfico representam determinadas letras. Por exemplo: se utilizamos uma determinada ferramenta para pregar, precisamos iden-

77Produção de Programas de Rádio

tificar esse objeto de alguma forma que nos permita distingui-lo dos demais. Para isso, dispomos de um código – sonoro ou escrito – que representa essa realidade: em português a palavra (o código) é martelo. Quando queremos significar esse objeto, apelamos a esse signo que, por termos acordado assim, o designa.

O objeto que chamamos martelo é uma parte da realidade; a palavra martelo é um signo representativo dessa realidade. Quando o destinatá-rio percebe o código e o associa com o objeto a que se refere, a palavra adquire um significado, “quer dizer” algo.

Os signos não têm significado por si mesmos. Somos nós que lhes atribuímos significados. Quando o destinatário não conhece algum sig-nificado por meio do qual o outro tenta comunicar-se, tampouco de-codifica esse signo. Simplesmente não o entende, não o interpreta, não pode lhe atribuir nenhum sentido.

Isto é decisivo para a comunicação. Não há nem pode haver comu-nicação sem um código comum. Se as palavras que empregamos não estão no código do destinatário, este não poderá decifrar, decodificar a mensagem; e, portanto, não poderá captá-la nem entendê-la.

Os missionários católicos em Madagascar relatam que, quando co-meçaram a celebrar a missa para os nativos convertidos, se depararam com uma dificuldade inesperada. As invocações a Cristo como “cordei-ro de Deus”, tão importantes na simbologia bíblica, não significavam absolutamente nada para os magalxes, porque em Madagascar não há cordeiros e as pessoas da ilha jamais haviam visto um em sua vida. Cor-deiro era para eles tão somente um som, um estímulo auditivo, mas como não tinham a experiência cordeiro, não poderiam atribuir a esse som nenhum significado. Não lhes era possível, pois, decodificar a men-sagem contida nesse texto da missa.

O código linguístico ou verbal que cada um de nós usa representa o conjunto de experiências que conhecemos de um ou outro modo e cujo nome aprendemos. Decodificamos e entendemos uma mensagem se podemos associar os signos – as palavras – a essas experiências; caso contrário, elas não “quererão dizer” nada para nós; não provocarão ne-nhum significado, não poderão ser decodificadas e, portanto, não ha-verá comunicação.

A palavra “martelo” será universalmente captada por todos os que falam nossa língua; todos conhecem esse objeto e seu uso e o associam

78 Mario Kaplún

a essa palavra. Mas não é tão provável que expressões tais como “energia nuclear”, “explosão demográfica”, “produto interno bruto”, “economia de mercado” ou “regulação internacional da cotação das matérias-primas”, enunciadas assim, ainda que também pertençam ao idioma que nos é comum, evoquem em nossos destinatários alguma experiência conhe-cida. E que uma frase que contenha expressões como estas por meio de exemplos e dados que conectem essas expressões com o mundo experi-mental dos destinatários.

Todo comunicador-educador deve ser consciente desta noção essen-cial para a comunicação. Toda comunicação exige uma identidade de códigos entre o emissor e o receptor. Para transmitir suas mensagens, para codificá-las, o emissor deve conhecer e empregar o código da co-munidade destinatária, a fim de que esta possa decodificá-las correta-mente.

A linguagem; a “lei do menor esforço”Na realidade, se observamos bem, descobrimos que não temos um

só código verbal, mas vários. Um deles é a linguagem comum e corren-te, que falamos todos os dias e utilizamos em nossa relação cotidiana para nos comunicarmos com os demais. Em segundo lugar, temos a lin-guagem “culta”, seleta, mais ampla e elaborada que empregamos, por exemplo, quando escrevemos um artigo ou devemos fazer um discurso em público. E, se somos profissionais, temos ainda um terceiro código: a linguagem especializada e complexa, o vocabulário técnico de nossa profissão.

O primeiro código quase todo mundo entende. O segundo, já é me-nos corrente. O terceiro só está ao alcance de poucos, é quase uma lin-guagem criptografada ou cifrada, reservada aos iniciados.

Muitas vezes, porém, caímos no erro de nos dirigirmos ao ouvinte numa linguagem que não é a sua. Quando falam pelo rádio, o médico, o engenheiro agrônomo, o economista, o psicólogo, parecem esquecer que não estão falando para técnicos como eles, mas para leigos. As pala-vras especializadas de sua profissão lhes são tão familiares que parecem acreditar que todos têm que conhecê-las e dominá-las. Ou sentem uma espécie de pudor se não utilizam os termos científicos ou técnicos preci-sos; parece-lhes que isso é vulgarizar-se, diminuir-se. Conscientemente ou não, lhes intimida a ideia do que dirão ou opinarão seus colegas se

79Produção de Programas de Rádio

lhes ouvirem falar com palavras tão rudimentares e pouco exatas. Es-quecem que pelo rádio não estão falando para o círculo reduzido de seus colegas, mas para o público.

O comunicador-educador deve localizar-se em outra perspectiva quando escreve para o rádio; ter sempre presente que na base da comu-nicação está a adequação de seu código ao do destinatário. “A fim de que possa transmitir o significado correto, a mensagem deve elaborar-se mediante o uso de signos que sejam comuns às experiências do emissor e receptor” (Schramm).

Isto não significa que não possamos – e não devamos – introduzir termos novos para o ouvinte; muitas vezes eles são insubstituíveis, im-prescindíveis. A comunicação educativa deve tender a ampliar o código verbal do educando, a incorporar palavras novas e conceitos novos, por-que ele enriquecerá seu universo mental. A palavra é o instrumento do pensamento e um vocabulário mais rico implica a possibilidade de um pensamento mais complexo.

Mas temos que fazê-lo não pelo gosto de nos expressar na forma “culta” e erudita, mas por motivos justificados; com limites e dosagem: só quando o julgarmos realmente necessário e estarmos convencidos de que o conhecimento desse vocábulo constitui uma aquisição útil para o destinatário. Temos que fazê-lo, também, de modo que ele possa com-preender o termo novo e incorporá-lo ao seu código, seja explicando seu significado, seja integrando-o num contexto que o torne transpa-rente e lhe permita captar sua significação (às vezes, uma palavra dita isoladamente não se entende, mas quando a ouvimos dentro de uma oração completa e acompanhada de outras, sinônimas ou equivalentes, é possível encontrar seu sentido e captar seu significado).

Em geral, o bom comunicador tem uma preocupação especial em adaptar sua linguagem às pessoas com as quais busca comunicar-se. Permanentemente, revisa seu texto e se pergunta: Isto estará suficien-temente claro? Será compreendido facilmente? Esta ideia não poderia ser expressa de um modo mais simples e acessível? O essencial é que tenhamos consciência de que quando expressamos nossas ideias, nos valemos de um código; e que este deve coincidir com o do destinatário.

A lei do menor esforço. Em todos os seres humanos há uma tendência natural em conseguir as coisas com o mínimo esforço possível. Se algo

80 Mario Kaplún

nos demanda excessivo esforço, renunciamos a isto: preferimos outra coisa mais fácil. É a lei da economia de energia, ou do menor esforço. Naturalmente, esta lei opera também no processo da comunicação.

Quando um programa de rádio é denso, demasiadamente longo, está cheio de palavras que nos são desconhecidas ou pouco familiares e de frases extensas, difíceis de acompanhar, ou então apresenta uma mensa-gem de forma desorganizada. O normal é que tendamos a não ouvi-la, porque nos exige muito esforço.

Já estamos cobrando certo esforço ao ouvinte ao pedir que ouça um programa educativo, que põe em jogo sua concentração, enquanto o resto do rádio lhe oferece emissões de entretenimento agradável que não lhe exigem esforço algum. Seria um erro acrescentar ainda mais a dificuldade com o emprego de uma linguagem obscura e complicada.

Os comunicadores da escola pragmática insistem em que é neces-sário escrever para o rádio de tal maneira que o ouvinte possa captar a mensagem mediante o mínimo esforço possível. Schramm traduziu a lei do menor esforço ao campo específico da comunicação, dizendo que o êxito ou a eficácia de uma comunicação está em proporção inversa ao esforço que demanda: quanto maior esforço demandamos do desti-natário, menor será a possibilidade de que a comunicação seja recebida e eficaz. Ao menor esforço maior êxito e vice-versa.

Veremos mais adiante que esta lei deve ser melhorada e, em certo sentido, revisada; mas ao menos em nível semântico, no que toca à lin-guagem, é correta, responde a uma realidade e o comunicador fará bem em levá-la em consideração. Todo o cuidado que tenhamos em reduzir o esforço do ouvinte, sendo claros e compreensíveis, falando uma lin-guagem simples e acessível, favorecerá a comunicação.

Linguagem educativa e linguagem literária. Os educadores-comuni-cadores, como, por exemplo, Beltrán (op. cit.) criticam o erro de con-fundir educação e literatura. Além disso, como ele bem observa, é fre-quente em nossos países a tendência à linguagem rebuscada e retórica. Cultua-se muito “a expressão enfeitada”; se admira esse orador que “que fala tão bem”, embora não seja entendido.

Nossa tarefa é de outro tipo. A nós não importa, primeiramente, a beleza da forma, mas a funcionalidade da nossa mensagem; não es-crevemos ou falamos pelo rádio buscando destaque pessoal, para que

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nos admirem pelos recursos da nossa expressão, mas para cumprir um papel. Isto não quer dizer que a comunicação educativa deva ser “sem graça”; mas não devemos esquecer que nossa primeira preocupação não é de ordem estética, mas de ordem formativa.

Por outro lado, beleza e simplicidade não são incompatíveis, longe disso. É possível fazer bons programas, de qualidade, com elementos e palavras simples e populares. Tenhamos presente o admirável ensina-mento de Antonio Machado em “Juan de Mairena”:

“(Mairena, em sua aula de Retórica e Poética)— Senhor Pérez, vá para a lousa e escreva: ‘Os eventos habituais da

rua’.O aluno escreve o que lhe é ditado. — Vá pondo isso em linguagem poética. O aluno, depois de pensar, escreve: ‘O que acontece na rua’.Mairena — Não está ruim”.

O valor da linguagem popular. Finalmente, é preciso modificar, ou, melhor ainda, ampliar a forma clássica que obriga a comunicação a le-vantar esta questão dos códigos linguísticos. Há a insistência de que o comunicador deve prescindir dos termos pouco usuais com que nos ex-pressamos na linguagem culta. É isso mesmo; mas, é apenas parte da questão. Para escrever para o rádio, não se trata tanto de reduzir volun-tariamente nosso próprio código, mas também e ainda em maior medi-da, de aprender o código oral, popular e de dominar a arte de escrever e expressar-se nesse código.

Se por um lado isso significa eliminar vocábulos e expressões, sig-nifica também incorporar muitos outros que não utilizamos habitual-mente na linguagem escrita. Trata-se de penetrar no idioma do povo; de conhecê-lo em toda sua riqueza e adotar essa linguagem que tem seu sa-bor, suas expressões gráficas, sua sabedoria, sua profundidade; que está carregada de experiência, de vida. Às vezes, um breve ditado popular diz mais que um longo parágrafo “culto”. O que perdemos com a renún-cia a termos acadêmicos talvez compensemos com o que ganhamos em qualidade e expressividade comunicativa.

Em síntese, a questão dos códigos verbais não se esgota dizendo que devemos adaptar nosso código ao do destinatário; implica também que,

82 Mario Kaplún

ao menos em certa medida, devemos adotar o código da comunidade à qual nos dirigimos.

Código experimentalNão basta, porém, que haja uma comunidade de códigos em nível

verbal e semântico. Essa identidade tem que ser ainda mais completa. Os cientistas da educação sustentam que o homem só é capaz de

aprender por uma soma de experiências. Quer dizer, não pode aprender nada novo que não seja com base em algo mais ou menos conhecido ou afim com o que já tenha aprendido antes. A aprendizagem de algo novo se produz quando esta suscita ou evoca no homem experiências prévias conectáveis. “Aprendemos por emenda de experiências” (Beltrán, op. cit.). Só a experiência anterior nos permite continuar experimentando e alargando nosso campo experiencial.

Em consequência, além de uma afinidade de códigos verbais, é ne-cessário que haja uma afinidade de códigos experienciais, sem a qual a comunicação não pode estabelecer-se. “Sem experiências comuns não há comunicação”, afirmam os especialistas.

Portanto, antes de tentar comunicar uma ideia ou um fato, o comu-nicador tem que tratar de averiguar qual é a experiência prévia de seu público em relação a esse tema ou esse fato. Partir sempre de exemplos de coisas que sejam conhecidas – experimentadas – por seu auditório. Não só devemos nos esforçar em falar na linguagem do nosso desti-natário, mas também descobrir que coisas em seu âmbito experiencial podem servir de ponto de partida para apresentar o novo fato.

Se nos aliarmos ao ouvinte (“empatia”) quase sempre conseguiremos encontrar esse nexo, essa experiência comum. Se pretendermos apre-sentar o problema da evasão escolar em termos estatísticos, talvez ele não tenha elementos para seguir nosso raciocínio. Mas se lhe falamos do caso de um menino que fracassa na escola, que vai perdendo o res-peito de seus colegas, fica um ou outro ano como repetente e termina abandonando os estudos, aí sim poderá acompanhar nossa análise: ele conhece crianças assim em seu bairro; talvez seja o caso de seu próprio filho ou dele mesmo quando pequeno. A partir desse exemplo, pode-remos começar a analisar com ele as causas desse aparente fracasso in-fantil – que não é da criança, mas, na realidade, o fracasso do sistema escolar – e como é gerado o fenômeno da evasão escolar massiva.

83Produção de Programas de Rádio

Por que tivemos êxito agora? Porque temos uma identidade de có-digos experienciais; inserimos nossa mensagem no campo de uma ex-periência que o ouvinte já conhece. E partindo dessa experiência a am-pliamos, possibilitamos ao ouvinte entender as causas. Ele agora pode analisar e decodificar essa experiência.

A função do educador-comunicador não é somente transmitir no-vos conhecimentos (= novas experiências), mas também – e, por acaso, em maior medida – apresentar ao ouvinte as experiências que este já está vivendo e lhe dar instrumentos para decodificá-las, interpretá-las, analisá-las, chegar a compreender suas causas.

Códigos sonoros. Cabe recordar por último que, além do código ver-bal, no rádio usamos também outros códigos sonoros: da música, dos efeitos de som. Aqui também nossa codificação deve ser clara e facil-mente compreensível para o receptor.

No rádio – sobretudo no radiodrama – a música constitui também uma linguagem; tem valor de signo expressivo, como a palavra. Não a usamos como mero enfeite, mas para sugerir e significar algo; destacar uma situação, descrever um estado de ânimo etc. Deve, pois, ser tam-bém devidamente codificada.

Quando a ação transcorre em nosso próprio país, sempre que for possível é preferível utilizar música local, tirada do âmbito cultural, do próprio “código cultural” do destinatário. A linguagem musical é tal-vez mais universal. Ainda que o ouvinte não esteja familiarizado com determinado tipo de música, se for bem escolhida, ele captará sem di-ficuldade sua intenção, sua significação. O que devemos cuidar aqui, sobretudo, é que nossa codificação seja clara e coerente; que a música tenha relação com o texto, que seja um complemento adequado.

Os maiores erros nesta questão se dão geralmente porque os respon-sáveis por montar o programa não dão a este aspecto a devida impor-tância e colocam qualquer música, escolhida ao léu. A música usada assim distrai e confunde o ouvinte: é incoerente, não tem significação, não corresponde a nenhum código. Assim como cuidamos da nossa co-dificação verbal, também devemos cuidar da nossa codificação sonora (música, sons), para que ambos se complementem em lugar de se con-tradizerem e se atrapalharem.

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2. Decodificação

A todos nós já aconteceu alguma vez: vamos ao cinema e, ao sair-mos, dizemos perplexos que “não entendemos nada” do filme. O que geralmente acontece nesses casos é que entendemos cada uma das ce-nas, seguimos sem muita dificuldade a história, a trama, a ação; mas perdemos, porém, o conjunto, a ideia central. A mensagem nos deixa confusos, perdidos. A gente se pergunta: O quê o autor do filme quer dizer com tudo isso? O quê pretende comunicar, significar? Qual será a intenção, a mensagem? Às vezes, é o final que nos surpreende, não parece ter sentido. Por que o filme termina assim, com esse desfecho? O quê pretende dizer com este final tão estranho? A obra em si foi com-preensível, mas perdemos sua significação.

Isso também pode acontecer com um texto, com uma novela. En-tendemos as palavras, acompanhamos a trama, mas sua intenção, sua significação, sua mensagem, não ficam claros.

Destes exemplos se infere que toda mensagem tem dois níveis de sig-nificação, dois códigos. Um, mais elementar, que chamamos perceptivo ou semântico, é este que estivemos analisando até agora. Relaciona-se ge-ralmente com as palavras. É o suficiente para perceber e compreender o significado dessas palavras. Numa mensagem informativa muito simples, como esta, por exemplo: “A Associação dos Agricultores de San Rafael realizará sua assembleia anual no dia 17 de maio às 6h da tarde em sua sede da Vila Colón”, bastará que o receptor ouça e entenda as palavras e imediatamente compreenderá a mensagem e sua significação. Ele deco-dificará facilmente. Ouvir e entender são aqui atos simultâneos e quase indistintos. (Os códigos experiencial e sonoro que acrescentamos estão também, como o verbal, nesse nível elementar, perceptivo, de captação).

Mas a comunicação, na realidade, é algo mais complexo. Geralmen-te, não basta identificar e entender as palavras para decodificar a men-sagem.

Por exemplo: o ouvinte escuta um radioteatro muito simples e ele-mentar. Nem tomemos toda a peça, mas somente um fragmento – duas cenas.

1ª cena. O canto de pássaros e o zumbido de cigarras dão o tom do ambiente. As personagens cujas vozes ouvimos são Rosa e Juan e perce-

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bemos que estão andando por uma estrada de cascalho porque ouvimos o ruído de passos sobre pedregulho. Falam de seu projeto de deixar o campo e ir para a cidade, onde, por fim, poderão viver mais sossegada-mente e livrar-se da estreiteza e da miséria em que estão imersos. Na cidade, se vive melhor, se ganha bem, é mais fácil encontrar trabalho, há mais comodidades etc. Em suas vozes há alegria, entusiasmo e espe-rança.

Logo ouvimos ruídos do campo misturados com o som de um trem que chega ao seu destino. Ouvem-se os apitos, os sinos da estação, a voz do guarda anunciando o nome da capital. A música campesina é substi-tuída por uma urbana, melancólica.

2ª cena. Começa com a buzina de automóveis ao longe e o ruído ca-racterístico de caminhões passando pela rua. Ouvimos novamente Rosa e Juan. O tom de voz já não é mais o mesmo do entusiasmo da cena an-terior. Denota tensão e angústia. Ela pergunta para ele se hoje, por fim, conseguiu algum trabalho. Ele responde que ainda não; que em todos os lugares onde vai lhe perguntam sempre o mesmo: o que sabe fazer, se sabe trabalhar com trituradeira, se sabe tipografar – palavras estranhas para Juan, que as repete com dificuldade. E como ele não sabe nada disso, ninguém lhe dá trabalho. Rosa diz com desespero que já não lhe resta dinheiro, todas as suas economias acabaram. Eles se perguntam o que farão, como e onde viverão.

Nesta sucessão de cenas rápidas e simples, várias coisas não estão ditas claramente e que o ouvinte deve associar e captar para decodificar a mensagem. Pode ter entendido todas as palavras e ainda não ser sufi-ciente para interpretar seu significado. Ele deve entender, por exemplo:

• que a primeira cena transcorre no campo e a segunda na cidade;• que o trem que se ouve chegar à capital simboliza a viagem dos

protagonistas;• que as personagens de ambas as cenas são as mesmas, Juan e

Rosa, e que eles, portanto, levaram seu projeto a cabo;• que entre a primeira cena e a segunda transcorreu algum tempo;

que o casal já está, pelo menos, há algumas semanas na cidade;• a mudança de humor: o contraste entre o tom entusiasmado e

otimista do começo com o triste e angustiado da cena seguinte;

86 Mario Kaplún

• que a dificuldade de Juan para conseguir trabalho não é somen-te desse dia, mas que é uma constante desde que ele chegou à cidade.

E, sobretudo, deve concluir:

• a cidade não é uma solução mágica como pensam os que vivem no campo;

• não é fácil sobreviver na cidade – quando não se tem uma pro-fissão, é difícil conseguir emprego;

• os agricultores que migram para a cidade não estão preparados para as exigências do mercado de trabalho.

Para chegar a esta compreensão, o ouvinte precisa ter feito uma série de associações, interpretações, relações. Quer dizer também que, além desse primeiro nível elementar, chamado código perceptivo e semân-tico, há outro nível mais complexo no qual já não entram em jogo so-mente as palavras e seu significado, mas a captação global da mensagem estruturada. A este segundo nível chamaremos código significativo. Também se poderia denominar “interpretativo” ou “associativo”. En-quanto o código perceptivo se refere aos signos, este se refere à signifi-cação total, à intenção da mensagem. Já não requer somente entender as palavras, mas também estabelecer relações entre elas; relacioná-las situacionalmente.

Quando a mensagem é muito óbvia, muito evidente, estes códigos se fundem num só. No exemplo já mencionado no começo – o anúncio da assembleia da Associação de Agricultores – perceber a mensagem e captar seu conteúdo são quase um mesmo ato.

Algo semelhante acontecerá se, aplicando a mesma “lei do menor esforço”, no lugar de narrar o caso de Rosa e Juan, apresentamos uma conversa expositiva sobre o êxodo rural e emitimos explicitamente a mensagem: falamos da visão errônea da cidade que os agricultores têm, mostramos dados estatísticos do nível de desemprego nas grandes cida-des do país etc., e apresentamos nós mesmos as conclusões a que quere-mos que o ouvinte chegue, poupando-o assim de todo esforço. Porém, ao invés de fazer isso, preferimos codificar nossa mensagem na forma de radioteatro, através da história de Juan e Rosa. Por quê? Já discorre-

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mos longamente sobre as razões. Sabemos que esta maneira de comuni-car uma mensagem é mais atraente e mais eficaz. Não só interessa e atrai mais, mas ensina mais. Mas, por que ensina mais? Porque o ouvinte tem que fazer uma decodificação ampla, associar, relacionar, interpre-tar; fazer suas generalizações e tirar suas conclusões. E isso faz com que participe ativamente na captação da mensagem.

Disso extraímos uma conclusão importante para nossa pedagogia radiofônica. Vemos que é importante estimular o destinatário a fazer a decodificação. Não é aconselhável dar-lhe as coisas já interpretadas, já ditas e “mastigadas”. Devemos codificar nossa mensagem de tal modo que ele tenha que colocar algo de si, que tenha que participar para de-codificá-la (associar situações, interpretá-las, vivê-las intelectual e emo-cionalmente, extrair conclusões etc.).

Quando nos referimos ao código perceptivo, o comunicador deve facilitar ao máximo sua decodificação, utilizando uma linguagem essen-cialmente simples e acessível: indicamos que ao código verbal se aplique a lei do menor esforço. Mas advertimos também que essa lei deve ser ponderada; agora se entende porquê. Se com respeito à linguagem de-vemos facilitar em maior medida possível a compreensão do ouvinte, neste outro nível – significativo – a lei do menor esforço já não opera em mesmo grau.

Neste nível, já não devemos ser tão óbvios nem ter como objetivo eliminar o trabalho de decodificação do ouvinte; porque então não haverá participação do destinatário, mas o estaremos reduzindo ao papel de receptor passivo de informação e gerando nele uma atitude de dependência ou de submissão (aceitação passiva e acrítica ou indi-ferente de nossa mensagem). O código perceptivo deve ser simples e acessível; mas o significativo deve ser um pouco mais complexo. Não, claro, ao ponto de torná-lo fechado e que o ouvinte comum não possa captar a mensagem; mas o suficiente para que ele tenha que por algo de si em sua captação. Devemos transmitir a informação codificada de tal maneira que ele possa associá-la e interpretá-la; mas exigindo do ouvinte certo esforço, certa participação, para fazer essa interpretação. Sem sua participação não há aprendizagem; sem ela ninguém adquire conhecimento.

Sim, para todos é frustrante sair do cinema sem ter entendido o fil-me – isto é, sem tê-lo decodificado devidamente – mas não é menos

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decepcionante sentir que nos é dado tudo tão explicado que parece um “pão mastigado”. É igualmente desaconselhável usar um código signi-ficativo difícil e desconhecido (que não entendemos o sentido) quanto utilizar outro tão fácil e óbvio que não exija nenhum trabalho de deco-dificação. A nenhum ouvinte de rádio, por menos “culto” que seja, lhe agrada que lhe deem as coisas já digeridas. Se tudo já está dito e ele não tem que fazer o mínimo esforço mental, se aborrece, se irrita, se can-sa, se sente tratado como uma criança; e, em todo caso, a compreensão dessa mensagem que não demanda a mínima colaboração nem partici-pação dele, se dará num nível muito superficial e ele se esquecerá dela muito rapidamente.

O ouvinte adulto sente prazer ao ter que decodificar uma mensagem, porque assim está lhe sendo dada participação na emissão, e porque esse processo lhe dá a dimensão de sua inteligência, sua capacidade de julgar e entender. E isso é aprender: ser capaz de decodificar. Mais importan-te que ensinar conteúdos ou transmitir conhecimentos é estimular esse exercício da inteligência e do raciocínio.

Sob a ótica educativa, o mais importante no ato da comunicação consiste em construir e codificar as mensagens de modo a estimular no destinatário sua decodificação. Esta prática lhe permitirá ser capaz de decodificar cada vez mais mensagens complexas; e é assim que irá se alargando o seu universo de conhecimentos e, sobretudo, a sua capaci-dade de avaliação e de juízo.

Naturalmente, o que o ouvinte decodificará já não será exatamente a mensagem original tal como havia sido formulada na mente do emissor; esta já estará modificada de alguma forma, porque o ouvinte participou, interveio, pôs algo de si neste entendimento. Cada destinatário captará e reelaborará a mensagem de outra maneira, segundo seu modo pessoal de ser e sentir. Mas isto é educativo: que cada qual faça sua própria sín-tese pessoal.

Radioteatro e decodificação. Agora, entenderemos melhor a im-portância de agregarmos aos personagens informações, fatos, situações, como permite o drama radiofônico. Dizemos que uma das qualidades deste gênero é que não fornece mensagens explícitas, mas sugeridas na ação dramática. Precisamente, consiste em estimular a participação e a decodificação por parte do ouvinte.

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Além disso, ao ouvinte, custa decodificar a partir de abstrações: isso seria exigir-lhe um esforço excessivo e fora de seu alcance. Na decodi-ficação a partir de situações concretas, ele pode reconhecer o que se inscreve em sua própria experiência.

Finalmente, o radioteatro desperta um elemento afetivo, emotivo, que, se bem utilizado, não é alienante, mas estimula a participação do ouvinte e o incita à decodificação. Ao receptor é mais difícil decodificar uma mensagem impessoal com a qual não se identifica. A emoção aqui não se opõe ao intelecto, pelo contrário, o complementa.

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Capítulo

4

Outros fatores básicos da comunicação

Completaremos neste capítulo a apresentação dos elementos funda-mentais da comunicação radiofônica, a partir da análise de outras três noções-chave com as quais o educador radiofônico deve estar familiari-zado: ruído, redundância e comunicação de retorno.

Não entraremos nas complexas construções científicas que estão na base de tais noções: não é este o objetivo do presente livro. O leitor po-derá encontrar estes fundamentos em bons textos de Teoria da Comu-nicação. O que interessa aqui é como eles se aplicam ao nosso trabalho concreto. Assim, pois, reduziremos e simplificaremos os aspectos teóri-cos e nos dedicaremos a extrair destes princípios consequências práticas para a boa produção de programas de rádio.

1. O ruído na comunicação

Fontes de ruído

Partiremos mais uma vez de um exemplo elementar. Às vezes ten-tamos realizar uma comunicação telefônica de longa distância, mas ela não se torna possível por que há ruídos e interferências na transmissão. Decidimos, então, que não podíamos falar, nem entender bem, porque havia muito ruído na linha. Ou, em termos mais técnicos, que a comu-nicação fracassou e a mensagem não pode ser transmitida em conse-quência de uma fonte de ruído de natureza mecânica.

Por analogia, a teoria da Comunicação chama de ruído a muitas ou-tras perturbações que podem apresentar-se no processo comunicativo.

91Produção de Programas de Rádio

A fonte do ruído pode ser física, como no exemplo inicial; mas também pode ser intelectiva, psicológica, ideológica etc. O ruído pode advir de um fenômeno auditivo, como na acepção corrente da palavra, mas tam-bém pode ser de origem olfativa, visual etc.

Suponha-se um espectador que vá ao cinema e, minutos antes de começar a sessão, sente-se diante dele outra pessoa muito mais alta, im-pedindo-lhe a visão da tela. Ainda que aqui não ocorra nenhuma ano-malia acústica, estamos também na presença de um ruído na comuni-cação. A mensagem não poderá ser bem recebida pelo espectador, não só porque o obstáculo fará com que perca detalhes talvez importantes para a compreensão da película, mas também porque o esforço de man-ter-se em uma posição forçada e incômoda para tratar de ver, provocará nele fadiga e irritação, com o que não poderá entregar-se ao espetáculo, vivê-lo e apreciar devidamente a sua mensagem.

Muitas vezes, a proximidade de espectadores frívolos que se mexem, fazem comentários depreciativos, manifestam seu aborrecimento e im-paciência etc., impedem de nos concentrarmos, nos tiram do clima, fa-zem com que uma obra séria e valiosa não nos alcance. Todas estas são fontes de ruído, interferências, impedimentos para a comunicação.

Recorde-se, também, que no capítulo anterior nos referimos ao fato de que a rádio é unisensorial – isto é, dirige-se unicamente ao ouvi-do – , motivo pelo qual pode provocar facilmente a distração visual do receptor, e que expressamos essa ideia dizendo que “a comunicação ra-diofônica está extremamente exposta ao ruído, especialmente ao visual”. Imagine-se que, enquanto está sendo irradiado o nosso programa, o ouvinte é solicitado por um estímulo visual – por exemplo, alguém que passa pelo local em que ele está – e deixa de prestar atenção, distrai-se, sua mente para de receber e registrar a transmissão. Diremos, então, que a mensagem não foi corretamente recepcionada e a sua recepção foi interrompida por causa de uma fonte de ruído de origem visual.

Na comunicação escrita, a errata ou o erro de imprensa é um típico ruído.

Em resumo, a teoria da Comunicação chama ruído a tudo aquilo que altera a mensagem e impede que esta chegue correta e fielmente ao destinatário; tudo o que se interpõe entre a fonte emissora – o comu-nicador – e o destinatário ou receptor, fazendo que a mensagem não seja corretamente recebida por ele. Essa pessoa que passou pelo local

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e causou a distração do ouvinte, produziu uma interferência, provocou um ruído na comunicação, foi uma fonte de ruído. É ruído tudo aquilo que perturba a comunicação, que a obstaculiza, que interfere nela ou a distorce. Se o objeto de toda comunicação é que uma mensagem chegue a um destinatário e que lhe chegue fielmente, tal como foi concebida e emitida, tudo o que se opõe a este propósito constitui-se em um fator de ruído.

Como se vê, a maior parte ou ao menos grande parte dos problemas da comunicação estão englobados nesse conceito.

A comunicação como problemaA comunicação entre os seres humanos nunca é fácil, sempre com-

porta problemas, sempre existe o risco de que a mensagem não seja re-cebida ou não seja entendida. “Se a passagem de uma ideia da mente de uma pessoa a outra fosse tão simples como parece, haveria escasso ou nenhum problema para estabelecer a comunicação para conseguir a “sintonia” entre qualquer fonte (emissora) e qualquer destinatário. Mas não o é. A viagem da mensagem de um homem a outro está cheia de perigos, sempre e a tal ponto que conseguir comunicação é uma espécie de milagre do cotidiano. É muito difícil – se é que não é impossível – conseguir que uma pessoa entenda perfeitamente a outra ( ...). A mes-ma complexidade da natureza humana faz com que qualquer intento de um homem para comunicar algo a outro resulte sempre ao acaso, con-tingente, imperfeito (...). Com frequência surge algo que dificulta, que perturba a percepção da mensagem. Outras vezes ocorre algum fator que torna impossível que a mensagem seja captada” (Beltrán, op. cit.). O ruído está, pois, sempre presente ameaçando a comunicação.

O processo de comunicaçãoFrequentemente imaginamos a comunicação de uma mensagem

como um processo muito simples: eu digo algo, o outro me escuta, e a comunicação já se realizou.

Mensagem Fonte Destinatário

93Produção de Programas de Rádio

Mas, na realidade, toda comunicação, até a mais simples, a mais elemen-tar e facilmente analisável, como é a conversação entre duas pessoas, se configura num processo complexo. A teoria comunicativa distingue três etapas básicas em toda a comunicação: a emissão, a transmissão e a recepção.

1. A EMISSÃO. Na origem de toda comunicação há uma fonte, alguém que deseja comunicar algo ao outro. Quando duas pes-soas conversam, aquele que tem a palavra leva consigo, em sua mente, uma ideia, uma informação, uma experiência, um estí-mulo que deseja transmitir ao seu interlocutor; isto é, uma men-sagem. Para este fim, elege e seleciona certas palavras, codifica a mensagem, converte-a num conjunto organizado de signos au-díveis, um sinal, e a emite mediante sons de suas cordas vocais (emissão). O instrumento emissor é, pois, neste caso, o órgão vocal da fonte.

2. A TRANSMISSÃO. Esse sinal emitido deve viajar até o destina-tário através de algum meio ou canal de transmissão. No caso da comunicação interpessoal, o meio ou o canal são as ondas sonoras. Assim, as palavras da fonte viajam através do ar, que transmite o som.

3. A RECEPÇÃO. As palavras transmitidas (sinal) chegam até o ouvido do interlocutor – órgão receptor – que recebe os sinais; por impulso neurológico, eles chegam até o cérebro do seu des-tinatário, que decodifica a mensagem, a reconstrói, a interpreta, a registra e reage diante dela.

Se a mensagem recebida (MR) coincide com a original (MO), que a fonte tinha em sua mente, isto é, se

MR = MOa comunicação foi perfeita. Mas, na prática, isto acontece raras vezes. Todo tipo de ruído pode agregar-se a mensagem até o momento em que ela chega à mente do destinatário. Se chamarmos o ruído que se agrega a mensagem ao longo da comunicação de r, a fórmula com que trabalham habitualmente os analistas é:

MR = MO + r

mensagem

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Não obstante, do ponto de vista da integridade com a qual a men-sagem original é recebida, o ruído reduz sua nitidez e fidelidade, su-primindo ou desvirtuando parte de seu conteúdo. Talvez a forma mais expressiva fosse então:

MR = MO – r

Ainda no caso elementar que estamos descrevendo – a transmissão interpessoal – os riscos de ruído são múltiplos:

• Neste momento passou um caminhão pela rua e o ouvinte não ouviu bem: houve dificuldades, ruído na transmissão.

• O comunicador (fonte) codificou mal sua mensagem, não sou-be expressar-se bem, e em consequência, o destinatário não o interpretou devidamente; captou mal a intenção e o espírito de suas palavras: houve dificuldades na recepção provocadas por uma má emissão; em outros termos, houve ruído na emissão, produzindo uma distorção.

• Durante a comunicação, o interlocutor “saiu com outra coisa”, talvez, inconscientemente, desviou a conversa, trocou de assun-to, impedindo assim a fonte de comunicar a sua mensagem: hou-ve interferência na recepção, que interrompeu a comunicação e ela fracassou.

• O destinatário apresentava preconceitos ideológicos contra o conteúdo da mensagem, ou aversão pessoal contra a fonte; e es-tes preconceitos ou antipatias impediram que a mensagem fosse captada ou recebida: houve intenso ruído na recepção.

Se na comunicação direta interpessoal nunca estamos isentos do ris-co do ruído, este risco aumenta na comunicação radiofônica, indireta e muito mais complexa.

A primeira grande dificuldade está relacionada ao fato de que nela não vemos nossos destinatários, não os temos em frente aos nossos olhos, não sabemos se nos escutam, se prestam atenção, se nos enten-dem, como reagem: não podemos adequar nossa mensagem a suas rea-ções nem aos ruídos que interferem na recepção.

Por outro lado, em uma comunicação coletiva, como é a radiodifun-dida, nossos destinatários são múltiplos e heterogêneos; cada um tem

95Produção de Programas de Rádio

sua personalidade, sua ideologia, suas experiências, suas crenças, seus preconceitos. O que para um resultará num argumento convincente que ajudará a apropriar-se da mensagem (fazê-la sua), para outro constituirá numa estrondosa fonte de ruído, que bloqueará a comunicação e acaba-rá com o diálogo.

Em segundo lugar, as três etapas do processo comunicativo se tor-nam mais complexas; estão sujeitas a uma série de mediações:

1. A EMISSÃO. Na conversação interpessoal, a emissão se fazia através de um só órgão – as cordas vocais da fonte. Aqui inter-vêm dois aparatos emissores:

a) A voz, as cordas vocais do comunicador;b) O transmissor radioelétrico, que converte essas palavras – sons – em ondas hertzianas e as lança no espaço.

2. A TRANSMISSÃO já não se efetua por meio das ondas sono-ras. A mensagem viaja através do ar convertida em ondas ra-dioelétricas ou hertzianas. Por conseguinte, o canal ou meio de transmissão muda: a sinalização acústica se converte em uma sinalização hertziana.

2. A RECEPÇÃO também se desdobra em dois aparatos. Ao apara-to orgânico se antepõe agora outro, o mecânico.

a) Temos, em primeiro lugar, o radiorreceptor que capta a si-nalização – as ondas radioelétricas – e as converte em sons, em palavras, em sinais audíveis, levando-os aob) ouvido do destinatário, que por sua vez repassa-os à sua mente.

Mesmo esta descrição é esquemática. O processo de emissão – quer dizer, a formulação da mensagem, o processo de converter a ideia ori-ginal que o comunicador tem em sua mente em um sinal audível – é bem mais complexo. Geralmente o comunicador radiofônico não expõe diretamente ao microfone suas ideias, sua mensagem; desde a ideia ori-ginal até a transmissão, ela deve passar por uma série, não pequena, de mediações:

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a) Capturamos nossas ideias em um roteiro: codificamos, estrutura-mos, organizamos nossa mensagem utilizando palavras, imagens audi-tivas etc. Mesmo aí a mensagem está exposta ao ruído. O roteiro pode ficar confuso, não refletir ou expressar claramente nossa ideia, por não ter sido bem codificada. Por outro lado, devemos colocá-la dentro de um limite de tempo prefixado e, às vezes, este pode ser insuficiente para desenvolvermos nossa ideia adequadamente, com os devidos matizes etc. etc.

b) O roteiro vai ser lido – convertido em um sinal acústico ou sonoro – por locutores e atores; os operadores intervêm para adicionar a este roteiro música ou sons; se o programa inclui entrevistas, também há a intervenção das pessoas entrevistadas. Todos eles, embora recebam nos-sas expressas instruções, não são autômatos, não podemos nos colocar dentro deles; em maior ou menor medida escapam ao nosso controle, tem sua própria personalidade, suas próprias qualidades, mas também suas próprias limitações. Uma parte das ideias contidas no roteiro se realizará, outra parte inevitavelmente se desvirtuará ou não será alcan-çada.

c) E é preciso agregar ainda as mediações mecânicas: antes de chegar ao equipamento transmissor as vozes e os sons passam por uma série de intermediários: microfones, toca-discos, masterizadoras, amplifica-dores, gravadores. Através de cada um deles, os sons se transformam em impulsos eletromagnéticos e estes, por sua vez, são convertidos em sons para novamente transformar-se em sinal eletromagnético, em uma complexa sucessão.

Vê-se, pois, que há uma longa viagem percorrida pela nossa ideia original antes dela converter-se em uma sinalização irradiada; e através de quantas instâncias a mensagem enfrenta o risco constante de destrui-ção, mutilação ou alteração.

O ruído pode afetar todas e cada uma das etapas do processo de comunicação: pode haver ruído na emissão, na transmissão e na recep-ção (ver pág. 102). Ele pode afetar também cada uma das mediações: pode haver ruídos na redação do roteiro e na realização do programa, ruídos que conspiram, desde o início, contra a correta recepção e o en-tendimento da mensagem por parte do destinatário, impedindo que a mensagem original chegue a ele fielmente.

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Classes de ruídosAlguns autores classificam os ruídos por sua índole ou natureza. As-

sim, falam de ruídos técnicos, ruídos semânticos etc.Definem os ruídos técnicos como as interferências produzidas por

deficiências mecânicas ou fisiológicas do sistema de comunicação.• Ruído mecânico: um corte na transmissão da rádio por uma fa-

lha na emissora.• Ruído fisiológico: a transmissão é normal, mas o ouvinte tem

dificuldades de audição e sua recepção é defeituosa.

Os ruídos semânticos, por sua vez, se originam quando as palavras ou signos utilizados pela fonte não têm o mesmo significado que para o destinatário. Já se falou amplamente sobre este gênero ao expor o con-ceito de código e codificação.

Acerca desses tipos de ruídos ainda acrescentaríamos outro, que chamamos de ruído estrutural: inadequada seleção da estrutura ou for-mato para emissão da mensagem. Por exemplo, a eleição da estrutura para a nossa mensagem radiofônica “classe escolar” ou “fala expositiva”, cujas limitações e contradições já foram assinaladas.

Outro exemplo de ruído estrutural constatado no rádio: escolha de uma campanha de influência de pouco segundos de duração como úni-co ou principal meio para difundir uma mensagem educativa que re-quer, para sua correta eficácia, uma cooperação fundamentada do desti-natário e, portanto, um desenvolvimento mais extenso. Ou a decisão de transmitir uma mensagem de conteúdos educativos renovadores atra-vés de uma tradicional radionovela em episódios, gênero cujo desejo de manter o suspense e a intriga, apresentar heróis idealizados etc., pode conspirar contra o propósito educativo e se sobrepor aos conteúdos re-novadores que se desejava difundir, e até anulá-los.

Sempre que escolhemos mal a estrutura para nossas mensagens, nós mesmos provocamos um ruído em sua comunicação.

Outros analistas tipificam, também com acerto, os ruídos que atuam sobre a fonte mesma – o comunicador, o jornalista –, ruídos que cha-mam de pressão ou de influência. Se as ideias, atos ou experiências que o comunicador deseja transmitir têm conotações econômicas, políticas ou ideológicas, por maior que seja o valor educativo dessa mensagem, ele nem sempre poderá desenvolvê-las; ou ao menos, não como se propôs

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originalmente. Se trabalha em uma emissora privada, seu roteiro terá que contar com a autorização da empresa proprietária, que por sua vez responde a um determinado setor de interesses; e não poderá tampou-co entrar em conflito com os interesses dos anunciantes, que com sua publicidade financiam a emissora. Se trabalha em uma emissora estatal, terá de submeter-se aos cânones governamentais. A fonte se vê, assim, submetida a uma série de interferências na emissão de sua mensagem.

Muito se tem escrito e estudado sobre qual o verdadeiro grau de li-berdade e de independência dos jornalistas e dos comunicadores em geral em nossa sociedade; e em que medida podem se expressar com au-tonomia e de acordo com sua própria consciência. Desse modo muitas mensagens valiosas morrem antes de nascer; e muitas outras têm de ser modificadas e alteradas pelos próprios comunicadores para que possam ser difundidas.

Efeitos do ruídoOs efeitos ou perturbações causadas pelo ruído, também podem ser

classificados em duas categorias principais: distorção e interferência.Diz-se que há distorção quando a mensagem é adulterada,

quando perde sua forma original, desvirtuando-se assim, o pro-pósito da fonte em comunicar-se. Ela pode ocorrer durante a emissão, por alteração da estrutura original, quer dizer, por trans-posição de signos. Um exemplo deste tipo de distorção é o tropeço

ou lapso de linguagem do locutor, que lê o texto e, inadvertidamente, troca uma palavra por outra, omite uma palavra etc., de tal modo que a mensagem perde o seu sentido ou se altera; da mesma forma que um erro de digitação

distorceria o texto impresso.Contudo, esse tipo erro também pode ser provocado pela falta de

clareza da fonte, emissão imperfeita, inadequação do código e defeito na recepção: ou por decodificação ou interpretação incorreta por parte do destinatário.

Igualmente, pode-se produzir distorção por fatores internos da fonte ou do receptor; por exemplo: a distração, a fadiga ou a antipatia do des-tinatário com o comunicador podem fazer com que a mensagem seja mal interpretada e não captada em seu verdadeiro sentido. A fonte quis dizer – e de fato disse – uma coisa, e o ouvinte entendeu – ou quis en-tender – outra, distinta.

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Agora, se a distorção se refere ao significado das mensagens (que se transmitiu ou que se recebeu), já a interferência se relaciona com a quantidade de informação comunicada: o quanto se transmitiu e o quanto se recebeu. Interferência supõe interrupção, mutilação, causada por ruídos que atuam como obstáculos ou barreiras, e interrompem ou bloqueiam o fluxo de comunicação.

A interferência pode ser originada por fatores mecânicos (vg. des-cargas na transmissão), fatores físicos (fadiga, aparição repentina de estímulos ambientais que distraem o receptor etc.), e também por cir-cunstâncias como a falta de interesse do destinatário, falta de empatia na emissão da mensagem, preconceitos etc. Todos eles podem incidir para que a mensagem não seja recebida em sua totalidade, apenas em frag-mentos; e até mesmo podem contribuir para que ela não seja recebida.

Os efeitos provocados por ruídos também podem ser classificados por sua magnitude ou intensidade. A distorção pode ser total ou par-cial: a mensagem pode chegar totalmente alterada, ou sofrer alterações em apenas alguns de seus aspectos, enquanto os demais conservam seu sentido e intenção original.

Entretanto, sobre as interferências, cabe dizer: estas podem ser totais e permanentes, como o caso de um rádio receptor que se danifica ou dei-xa de funcionar; ou podem ser apenas temporárias, como um breve cor-te na transmissão que a interrompe por alguns instantes. A campainha pode distrair os ouvintes por um breve momento; ou afastá-lo definiti-vamente da recepção, se quem os chama à porta requer sua atenção por um motivo importante. Os preconceitos contra a mensagem poderiam ser atenuados se o comunicador os supuser e prevenir-se, evitando-os, e neste caso, a interferência seria relativamente curta e a comunicação recomeçaria; ou poderia descuidar-se deles, bloqueando totalmente o fluxo comunicativo. O cansaço físico de um ouvinte, que escuta um pro-grama de rádio depois de trabalhar o dia todo e que sente sua mente en-fastiada e sua capacidade de concentração debilitada, poderá erguer-se como uma barreira intransponível; ou como uma barreira que pode ser superada diante de uma emissão radiofônica interessante com a qual o destinatário se identifique.

Mas todos esses fatores constituem fontes de ruído na comunicação, causas de distorção ou de interferência, e o comunicador deve tê-los em conta.

101Produção de Programas de Rádio

Os ruídos na emissãoQue ruídos devem nos preocupar aqui? Aqueles sobre os quais, como

emissores – roteiristas e realizadores de programas de rádio – temos al-gum controle; isto é, os ruídos que afetam a produção das emissões. Não podemos controlar os ruídos técnicos na transmissão: interferências de ondas, quedas de energia, pouca potência no aparelho transmissor que se traduz em um sinal fraco, e etc. Esses são problemas dos engenheiros. Tampouco está ao nosso alcance controlar os ruídos na recepção: se a pilha de radiorreceptor do destinatário se esgotar exatamente na hora do nosso programa, ou se houve um apagão em sua casa, ou se um visi-tante imprevisto chegar naquele instante.

Mas sim, está em nossas mãos, e deve ser objeto de constante preocu-pação, evitar ou ao menos atenuar os ruídos da emissão – no roteiro e na realização –, para que nossa mensagem chegue o mais fiel e claramente possível ao destinatário, e para que haja maior probabilidade de que ele a perceba e capte-a corretamente, reduzindo os fatores de interferência, de distorção etc. Estes fatores são múltiplos, certamente, mas sua força e sua intensidade como fontes de ruído dependem, em grande medida, do interesse e da concentração que nossa emissão consegue suscitar, as-sim como da claridade e da eficácia com que a mensagem é formulada (roteiro) e emitida (realização).

O ruído é um dos grandes inimigos do comunicador, que tem de lu-tar constantemente contra ele e dedicar uma grande parte do seu esforço para impedi-lo ou preveni-lo. Os roteiristas e educadores de programas radiofônicos educativos estão – ou ao menos devem estar –, permanen-temente, combatendo o ruído na emissão de sua mensagem e, sobre-tudo, cuidando para não provocá-lo: para não ser, ele mesmo, fonte ou fator de ruído. Um programa de entretenimento, feito para ser escutado de forma superficial e que não se propõe expressamente a transmitir conteúdo, é menos vulnerável ao ruído, ao contrário de um programa educativo que deve ser o mais livre, e isento de ruídos, possível.

Daí a importância de estudar a natureza dos ruídos, suas proprie-dades e as normas, bem como formas de prevenção destinadas a er-radicá-los ou, ao menos, minimizá-los. Devemos ser conscientes dessa constante presença do inimigo, do seu poder e da necessidade de nunca

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“baixar a guarda” contra seus ataques. É preciso que sejamos extrema-mente cuidadosos e exigentes com nossos roteiros e com sua realização, para que o ruído não se infiltre neles.

Constantemente podemos provocar ruídos. No roteiro, a inclusão de palavras desconhecidas para o destinatário, a enunciação de conceitos de forma confusa ou obscura, a apresentação desordenada e não peda-gógica da mensagem, são inúmeras fontes de ruído. Uma má economia no uso do tempo disponível também: dar desproporcionada extensão à introdução do assunto, por exemplo, deixando pouco espaço para o desenvolvimento do tema central, fará com que ele acabe exposto de forma comprimida, apressada e incompleta.

Se não tivermos conseguido apresentar o tema de forma interessante, atraente e de modo que o ouvinte possa se sentir consubstanciado com ele; se a psicologia das personagens não é clara nem está bem definida; se o diálogo é pouco natural, impedindo que os locutores imprimam a necessária convicção, nós mesmos estamos alterando nossa própria mensagem e conspirando para que ela não chegue fielmente ao destina-tário. Isso ainda acontece quando, inadvertidamente, empregamos no roteiro modos de dizer, expressões estereotipadas, que utilizamos dia-riamente sem nos dar conta, mas que contradizem a nossa mensagem e que entram em conflito com o conteúdo que desejamos transmitir.

Na realização, o perigo de ruído é múltiplo. E aqui, a título de exem-plo, alguns dos inúmeros ruídos que podem configurar-se durante a produção e emissão de uma peça radiofônica:

• Um ruído da rua vazou para dentro do estúdio – desta vez no sentido literal da palavra – e, em meio a uma cena que trans-corria nos tempos da chegada de Colombo à América, se ouviu nitidamente a buzina de um automóvel.

• Um locutor se equivocou e disse “lesão” ao invés de “lição”. Ou ainda, sem trocar nenhuma palavra, pontuou mal a frase e mar-cou as pausas e as vírgulas de tal maneira que seu sentido não ficou claro. Ou sua entonação foi errônea: pôs a ênfase em uma palavra acessória, quando a que deveria ser sublinhada era outra.

• Em um momento muito importante do roteiro, um dos partici-pantes ficou muito longe do microfone e sua frase ficou quase inaudível.

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• Um ator não conseguiu dar bom caráter ao personagem ao per-sonagem e este ficou antipático e pedante, quando de modo al-gum deveria dar esta impressão.

• Uma atriz foi inexpressiva, monótona; e era precisamente ela que deveria apresentar a discussão central e devia ser, portanto, particularmente afetuosa e comunicativa.

• O narrador foi enfático, declamatório, altivo, eliminando a natu-ralidade e a serenidade do texto.

• Alguém tossiu ou espirrou no meio de uma cena.• Um som veio na hora errada.• Outro saiu excessivamente forte e acobertou a voz dos atores.• A música não foi bem escolhida e o elenco perdeu o clima.• Os atores gritavam demasiado e deram um tom melodramático

a uma situação que, pelo contrário, requeria simplicidade e na-turalidade para estimular a reflexão do ouvinte.

• O ritmo da emissão foi lento, apático, sem convicção etc.

Como se pode perceber, não se trata aqui de um mero preciosismo estético. Trata-se da eficiência da comunicação educativa. Todas essas fontes de ruído conspiraram para que a mensagem não chegasse ao des-tinatário debilmente; provocaram distração, confusão etc. A correta re-cepção da mensagem, sem distorcer nem interferir, depende em grande medida de uma emissão isenta de ruídos no maior grau possível.

Felizmente, os modernos sistemas de gravação permitem gravar pre-viamente as emissões, possibilitando errar e corrigir, se não todos, mui-tos dos problemas exemplificados. Porém, de pouco serve dispor desses recursos se não há um ouvido exigente, atento e alerta aos ruídos – o ouvido do responsável pela emissão – que os detecte, seja consciente de sua importância e tome em cada caso a decisão de parar a gravação, vol-tar atrás e refazer a passagem insatisfatória, mesmo que isso signifique, talvez, meia hora a mais de trabalho para ele e para o elenco.

A luta contra o ruído“A possibilidade de que se apresentem distorções e interferências no

processo de comunicação é tão grande, que se pode considerar que toda

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a comunicação está em constate risco de ser afetada por alguma delas, de uma maneira ou outra, em maior ou menor grau” (Beltrán, op. cit.).

Em outras palavras não há forma de erradicar ou evitar totalmen-te os ruídos. Não há nenhuma comunicação que possa estar isenta de certa porcentagem deles. A comunicação humana sempre é imperfeita. Homens capazes de uma comunicação perfeita seriam homens que já não teriam nada a comunicar; seres que se bastariam a si mesmos de tal maneira que não sentiriam necessidade de comunicar-se, nem teriam interesse em fazê-lo. O ruído é, de certo modo, uma ocorrência normal, inerente ao processo mesmo da comunicação. Convém que tenhamos consciência deles para não desanimarmos ou nos amargurar muito diante de certos fracassos ou falhas em nosso trabalho.

Se conseguirmos que setenta e cinco ou oitenta por cento da ideia original esteja expressa no roteiro e na realização, podemos nos dar por satisfeitos.

Mas se a perfeição não está ao nosso alcance, ou seja, se a supressão total dos ruídos não é possível, o que está em nossas mãos e constitui o nosso dever, é lutar permanentemente contra eles, evitá-los e combatê--los ao máximo. Devemos ser extremamente exigentes com o nosso tra-balho. Os ruídos podem surgir em uma proporção muito maior e ser muito mais intensos e, portanto, mais prejudiciais, quando a comunica-ção não é planejada adequadamente e não recebe a atenção e os cuida-dos necessários; quando o roteiro é feito com pressa, sem um esquema prévio bem estabelecido, sem submetê-lo à devida autocrítica; quando a emissão foi mal preparada, sem os necessários ensaios previstos, que permitem aos seus integrantes – locutores, atores, entrevistados, encar-regados dos efeitos sonoros e da música, operadores técnicos etc. – sa-ber o que têm de fazer, quando devem fazê-lo e o que se deseja deles.

Dada a complexidade mesma do processo comunicativo, a respon-sabilidade maior recai sobre nós, os comunicadores. O destinatário tem também, obviamente, certo grau de responsabilidade quanto ao êxito ou fracasso da comunicação. E os fatores incidentes no resultado final podem estar em qualquer um dos demais elos intermediários da cadeia; todos eles podem ser geradores de ruído. Mas é a fonte quem desempe-nha o papel de emitir a mensagem de uma maneira que chegue nitida-mente ao receptor e provoque sua participação reflexiva. Há um sabido princípio pedagógico que diz que quando alguma coisa está errada na

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escola, é necessário começar a procurar a causa do problema no educa-dor, não nos educandos.

Nem com o planejamento mais cuidadoso, os ruídos da emissão po-dem ser absoluta e permanentemente eliminados. A meta do comunica-dor não deve ser a de alcançar a perfeição total, mas a de atingir o maior grau viável de eficiência e reduzir a incidência das fontes de ruído até onde seja humanamente factível.

2. Redundância

Embora o problema da redundância já tenha sido previamente men-cionado no capítulo 2, é conveniente, aqui, desenvolver um pouco mais o tema, sobretudo para extrair consequências práticas aplicáveis ao nos-so trabalho.

Já vimos que o rádio é um meio oral e que se inscreve no tempo, quer dizer, que emite um sinal fugaz; e que ele impõe um grau maior de repe-tição nas emissões. O comunicador radiofônico se vê obrigado a reiterar os conceitos e as noções intencionadas pela emissão, a fim de assegurar sua captação e retenção por um destinatário invisível, cujas reações e velocidade de assimilação não podem, portanto, ser medidas; e a quem não é permitido, devido à efemeridade do meio, voltar atrás para repas-sar algo que não ficou claro, como pode acontecer em um texto escrito.

O simples fato de usar a comunicação oral nos submete à redundân-cia. A linguagem falada é por si só redundante. Quando nos expressa-mos verbalmente, coisas que acreditamos ser possível dizer utilizando apenas trinta palavras necessitam, por fim, de setenta ou cem. De algu-ma maneira, somos conscientes de que, por ser fugaz, a comunicação auditiva está muito mais exposta ao ruído do que a escrita.

A redundância como destrezaNo rádio não há outro remédio senão o de ser reiterativo. Mas é pre-

ciso saber como sê-lo; adquirir a destreza necessária para isto.Um erro que poderia cometer o comunicador – e que de fato al-

guns cometem –, é entender que a redundância consiste em repetir duas os três vezes seguidas cada coisa – com as mesmas palavras ou com outras mais ou menos sinônimas – para que assim o conceito seja assimilado.

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Em primeiro lugar, essa forma de reiterar é cansativa, infantil e pro-voca aborrecimento e irritação no ouvinte adulto, que se sente tratado como uma criança do ensino fundamental. Além disso, nem sequer é eficaz. A repetição continuada serve para pouca coisa: se ouve apenas como a um eco, a cada nova repetição perde intensidade e eficácia.

A redundância no rádio consiste em voltar a determinado tema mais de uma vez durante o curso da emissão; ou seja, expor uma ideia e logo adiante reiterá-la brevemente. Na realidade, é isto que ajuda o ouvinte a captar e registrar a ideia. Mas a reiteração se torna ainda mais eficaz se efetuada em um contexto diferente do inicial; quer dizer, se algo já foi dito uma vez, retoma-se a ideia para expressar outro propósito, envol-vendo-a em outro contexto.

Ao traçar o plano da emissão temos de estabelecer dois ou três leit--motivs, ideias centrais, que iremos reiterando ao longo de toda a emis-são, de uma forma distinta, com palavras distintas, e que vão se entrela-çando e repetindo-se. Mas primeiro temos de definir com clareza esses leit-motivs, esses elementos temáticos básicos; e logo jogar com eles, de modo que apareçam duas ou três vezes no decorrer da comunicação; temos de tê-los presentes e aproveitar o momento oportuno para rea-presentá-los, brevemente, da forma mais natural possível, sem que sua repetição fique evidente.

É algo similar ao que acontece com a música em uma sonata ou sinfonia: os temas voltam, cruzando-se e se entrelaçando; e nunca de maneira igual: o compositor procura os expor sempre em novas variações, retomadas por outros instrumentos, variações que recordam o tema inicial, mas não são exatamente idênticas a ele. Apresentar uma mensagem no rádio é algo semelhante: implica certa orquestração dos elementos temáticos.

As possibilidades de construir essa orquestração são sempre maiores numa emissão dramatizada, ou onde há diálogos, do que numa emis-são-monólogo. Quando os diferentes personagens conversam, e há mu-dança de cenas e situações, é mais fácil sublinhar o que já foi dito sem que a reiteração seja percebida e sem cair na monotonia, nem incomo-dar o ouvinte.

Por outro lado, a repetição não é o único recurso de redundância que dispomos no rádio. Certa ênfase ou certo destaque na enunciação de uma palavra ou frase; um sublinhado musical; vocalizar mais lentamen-

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te a frase a que queremos dar destaque; ou colocar esta frase no final de uma sequência, acompanhada de uma cortina musical ou música-tema – fazendo, desta forma, com que a frase em questão siga ressoando por mais tempo na mente do ouvinte –, são outros recursos que também podem ser utilizados para valorizar certas ideias fundamentais.

Redundância vs. abundânciaO maior problema da redundância é que ela se relaciona com a eco-

nomia do tempo disponível. Nossa emissão tem de durar certo tempo e não mais que isso, não só porque este é o horário pré-determinado pela programação da emissora, mas porque, ao se prolongar, excede o limite de atenção e concentração do ouvinte. Nem o tema mais interessante ou a realização mais brilhante e atrativa podem impedir a fadiga e a distra-ção do destinatário se o programa exceder o limite de tempo razoável.

Agora, dentro deste tempo limite, o espaço que necessariamente temos de destinar à reiteração das ideias básicas é equivalente aquele ao qual devemos renunciar, e que seria destinado para fornecer novas informações e incorporar outras ideias. Existe, por lógica, uma propor-ção entre a quantidade de informações que podemos incluir e a redun-dância com que estas informações devem ser apresentadas. Esse dilema consiste, precisamente, na chamada “lei da redundância”, que se anuncia dizendo que a magnitude e a profundidade da redundância estão na proporção inversa à quantidade de informações possíveis de serem emi-tidas dentro de um determinado espaço de tempo.

Se escolhemos dar muita informação, verter muitas ideias, nos ve-mos obrigados a reduzir o grau de redundância; e temos de fazer o in-verso, ou seja, reduzir o volume de informação, quando optamos por aumentar o índice de redundância. Podemos dizer muitas coisas em um programa de rádio de 15 minutos, mas nos restará pouco ou nenhum espaço para insistir suficientemente nas ideias principais. Ou, podemos outorgar mais tempo para a ênfase e valorização do essencial, mas à custa do sacrifício de outros elementos temáticos. Sacrifício este, que se torna difícil e duro em algumas ocasiões, porque as coisas que ficam de fora são, muitas vezes, significativas, ricas e interessantes.

Esse é um dilema que enfrentamos a cada momento em nosso traba-lho de comunicadores radiofônicos; e o equilíbrio nunca é fácil. Quando o roteiro fica muito extenso, o que devemos suprimir? A reiteração ne-

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cessária da ideia central que já foi apresentada, ou a abordagem de uma nova ideia, interessante, ainda que não tão essencial? O que a experiên-cia aconselha é esta última opção: conformar-se com o desenvolvimento de uma ou duas ideias principais a cada emissão e não mais; e lhes dar a extensão necessária, isto é, o grau de redundância que o meio exige. Se existem outras ideias ou aspectos importantes, é melhor deixá-los para a emissão subsequente; e se devido a estrutura do programa essa segunda abordagem já não é possível, pode ser preferível deixar algumas coisas “para lá” – por mais interessantes que sejam –, do que cometer o erro de sobrecarregar a emissão e o ouvinte com um bombardeio ou miscelânea de ideias expostas rapidamente.

Isso implica, mais uma vez, no planejamento minucioso e cuidadoso do roteiro. É preciso uma seleção prévia das informações para determi-nar o que é realmente essencial, quais são as duas ou três noções centrais às quais devemos dar prioridade; e construir sobre elas um roteiro.

Lembre-se, sempre que você for desenvolver uma ideia no rádio pre-cisará utilizar um número maior de palavras do que as necessárias para desenvolver a mesma ideia por escrito. Os dados reunidos em duas ou três páginas de anotações, para serem bem desenvolvidos, consomem meia hora de emissão radiofônica. Se você tem como ponto de partida um material mais extenso, convém selecioná-lo e reduzi-lo antes de es-crever o roteiro; do contrário, as ideias ultrapassarão o espaço disponí-vel e terão de ser apresentadas de modo muito rápido, sem a necessária redundância.

Redundância e participação. No entanto, deve-se observar que, se de fato o rádio exige um grau elevado de repetição para que a mensagem seja capturada e assimilada, também é verdade que esta capacidade de retenção pode aumentar em função do interesse provocado pela trans-missão. Como tão claramente diz a expressão popular, quando uma mensagem interessa vivamente, quando o auditório está interessado nela, as pessoas “não perdem palavra”.

Frequentemente tem-se constatado que uma frase, em um programa de rádio, dita uma única vez e, aparentemente, de modo casual, como de passagem, é surpreendentemente registrada e recordada por uma alta porcentagem da audiência, ainda que não tenhamos dado a ela redun-dância. E quando os casos em que isso acontece são analisados, com-

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prova-se que se tratam de boas emissões radiofônicas, que apresentam um tema interessante e, sobretudo, de grande relevância para o público; e que alcançam, portanto, um alto índice de atenção e de identificação por parte do ouvinte.

Pode-se concluir, pois, que é possível reduzir um pouco da redun-dância e aumentar, consequentemente, o volume de informações, quan-do a emissão consegue mobilizar intensamente a participação sensível e intelectual do público. Já a expressão “lei da redundância” poderia ser talvez complementada com outra fórmula: o grau de redundância ne-cessária para a transmissão de uma mensagem é inversamente propor-cional ao interesse e a participação que a emissão pode suscitar.

Esforce-se, pois, sobretudo, para realizar roteiros que prendam e mo-tivem o auditório. Fale de coisas que interessam ao seu público, para que as sintam como suas. Quando estiver convencido de que isso aconteceu, então, quem sabe, você possa incluir mais ideias ao invés de preocupar--se em reiterá-las.

Redundância e simplificação. Contudo, e ainda assim, nunca será fácil apresentar em um texto para rádio, todos os aspectos de um mesmo assunto que podem ser incluídos em um texto escrito. Uma das grandes limitações da comunicação oral através do rádio é que a sua inevitável brevidade obriga-nos a simplificar as ideias, não podendo apresentá-las com todas as suas matizes e alternativas.

Sabemos que os fatos são sempre complexos, que nunca nada é to-talmente branco ou totalmente preto; que não há soluções absolutas e perfeitas; que toda opção tem prós e contras, aspectos contraditórios. Seguramente nossas anotações prévias sinalizam uma série de nuances complexas acerca do tema que pretendemos abordar; mas, ao tentar traduzi-lo para o rádio, é quase impossível evitar sua simplificação.

Em um texto escrito sempre podemos apelar para expressões como o “mas” e o “no entanto”; inserir um parêntese, uma chamada, uma nota de rodapé; recorrer a soluções que registrem uma reserva e evitem a excessiva simplificação do conceito; mas no rádio, onde só podemos trabalhar com duas ou três ideias centrais e não existe o recurso das notas de esclarecimento, evitar a simplificação é muito difícil.

A comunicação radiofônica – como toda a comunicação massiva – sempre carrega o perigo latente de certo maniqueísmo; uma tendência

de apresentar as coisas em “branco e preto”, sem nuances de cinza. O comunicador deve estar consciente deste perigo, estar alerta, esforçar-se para combatê-lo e atenuá-lo; mas também precisa saber que, no rádio, determinado grau de simplificação é quase inevitável.

Contudo, é melhor lidar com diferentes perspectivas e pontos de vis-ta em uma conversa ou exposição dramatizada, do que em uma palestra expositiva, em uma só voz. As distintas personagens podem assumir di-versas posições, não necessariamente de todo antagônicas, mas também com diferentes nuances que, assim, poderão ser percebidas com maior clareza pelo ouvinte.

3. Comunicação de retorno e participação popular

A Teoria da Comunicação concebe um processo dinâmico, uma in-teração entre o comunicador e o destinatário. A comunicação não ter-mina quando a mensagem chega a este último, senão quando ele reage diante dela e a responde. O destinatário não seria, pois, um mero re-ceptor passivo de mensagens; de uma ou de outra maneira participa ou influencia o processo de comunicação, mediante sua reação ou resposta ao estímulo que recebeu da fonte. De alguma forma – diz-se – a mensa-gem retorna à fonte.

A esta reposta do destinatário chamamos “comunicação de retor-no” (em inglês feedback); mas ela também pode ser denominada reali-mentação ou retroalimentação, porque a intervenção do ouvinte volta à alimentar o sistema comunicacional: a fonte, por sua vez, reage e gera novas mensagens, nas quais a resposta do destinatário estará incorpora-da, estabelecendo um fluxo comunicativo em ambas direções.

Na comunicação interpessoal esta interação entre os dois locutores é muito mais clara e evidente. Se um verdadeiro diálogo se constitui entre

Emissor Canal ReceptorComunicação de retorno

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de apresentar as coisas em “branco e preto”, sem nuances de cinza. O comunicador deve estar consciente deste perigo, estar alerta, esforçar-se para combatê-lo e atenuá-lo; mas também precisa saber que, no rádio, determinado grau de simplificação é quase inevitável.

Contudo, é melhor lidar com diferentes perspectivas e pontos de vis-ta em uma conversa ou exposição dramatizada, do que em uma palestra expositiva, em uma só voz. As distintas personagens podem assumir di-versas posições, não necessariamente de todo antagônicas, mas também com diferentes nuances que, assim, poderão ser percebidas com maior clareza pelo ouvinte.

3. Comunicação de retorno e participação popular

A Teoria da Comunicação concebe um processo dinâmico, uma in-teração entre o comunicador e o destinatário. A comunicação não ter-mina quando a mensagem chega a este último, senão quando ele reage diante dela e a responde. O destinatário não seria, pois, um mero re-ceptor passivo de mensagens; de uma ou de outra maneira participa ou influencia o processo de comunicação, mediante sua reação ou resposta ao estímulo que recebeu da fonte. De alguma forma – diz-se – a mensa-gem retorna à fonte.

A esta reposta do destinatário chamamos “comunicação de retor-no” (em inglês feedback); mas ela também pode ser denominada reali-mentação ou retroalimentação, porque a intervenção do ouvinte volta à alimentar o sistema comunicacional: a fonte, por sua vez, reage e gera novas mensagens, nas quais a resposta do destinatário estará incorpora-da, estabelecendo um fluxo comunicativo em ambas direções.

Na comunicação interpessoal esta interação entre os dois locutores é muito mais clara e evidente. Se um verdadeiro diálogo se constitui entre

Emissor Canal ReceptorComunicação de retorno

ambos, seu intercâmbio é tão ativo, que de fato cada um deles se conver-te, sucessivamente, em fonte e destinatário. Há um ir e vir permanente de mensagens entre um e outro; se produz um contínuo comunicativo, um círculo ou circuito de comunicação recíproca. Algo similar acontece com a comunicação telefônica ou com uma conversa entre radioamado-res: ambos são, alternadamente, emissores e receptores.

Alguns autores atuais consideram que só quando há esta reciproci-dade, esta possibilidade de que nos dois extremos da linha mensagens sejam geradas, pode-se falar em comunicação. Só, então, ambos se co-municam entre si. Por isso, estes autores defendem uma comunicação participativa, dialógica, bidirecional (isto é, de via dupla). Todo o resto seria mais informação, difusão, mas não a verdadeira comunicação.

Rádio e participação Mas quando nos deparamos com o esquema do fluxo comunicativo

e procuramos aplicá-lo a um meio massivo como é o rádio, que envolve simultaneamente milhares de destinatários dispersos, experimentamos uma séria dificuldade. Como fazer com que o ouvinte se converta em falante, em interlocutor ativo? Como fazer com que participe da emis-são?

Os autores clássicos da área sustentam que esta interação sempre se produz de “alguma maneira”, ainda que seja em um meio de massa. Para demonstrar isso, invocam alguns sofismas muito pouco convincentes. Por exemplo, as pesquisas de audiência e de mercado, serviriam para que o ouvinte pudesse expressar-se, para que seus gostos e preferên-cias sejam levados em conta. Como o rádio é regido por elas – afirmam esses autores – o público mesmo é quem determina a programação, e esta acaba sendo produzida do acordo com os gostos e as tendências apontadas e quantificadas por tais pesquisas. Dessa maneira os ouvintes influenciariam definitivamente nas mensagens, resultando na realimen-tação do sistema.

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Este não é o lugar onde podemos discutir a falácia dos índices de audiência. Atualmente este sistema de medição já caiu no descrédito e nenhum autor sério se atreve a supor que por esta via o ouvinte real-mente se expressa e participa.

Estes autores também alegam que as cartas espontâneas do público, as chamadas telefônicas para a emissora, as cartas estimuladas por con-cursos comerciais com prêmios, são outros meios pelos quais o público expressa suas preferências e incide na orientação das mensagens. Argu-mentam, assim mesmo, que “a opinião pública” e suas reações diante das mensagens, são percebidas e levadas em conta pelos comunicadores, o que também é uma forma de os destinatários gravitarem, indiretamen-te, em torno da emissão. Estas afirmações servem apenas para tranqui-lizar a consciência dos teóricos e dos proprietários de radiodifusoras, e para justificar a universalidade do célebre esquema do feedback. Uma autêntica participação do ouvinte não pode ser construída sobre bases tão fictícias e ilusórias. A verdade é que a comunicação de retorno nos meios massivos, geralmente, é decorativa, apenas uma linha pontilhada da direita à esquerda.

Tampouco se pode considerar participativa uma emissora educativa onde o ouvinte se converte em aluno, em mero receptáculo de conhe-cimentos e informações transmitidos pelo mestre ou professor. Mesmo quando o ouvinte-aluno se matricula e envia, semanalmente, suas tare-fas para serem corrigidas, a participação não é maior do que aquela que ocorre em qualquer escola por correspondência.

O problema de como conseguir que o ouvinte realmente se integre à comunicação através de um meio coletivo e intrinsecamente unidire-cional, como é o caso do rádio, é uma questão atualmente em debate e sobre a qual não há ainda respostas, nem soluções definitivas.

O comunicador-educador deve estar consciente dessa reivindicação, da aspiração de que a comunicação de retorno seja o mais real, concreta e intensa, possível; e procurar fazer com que seus programas de rádio sejam participativos e dialógicos à medida em que as limitações técnicas do meio o permitam.

Mas a questão não deve ser reduzida – como geralmente acontece – à mera presença física dos ouvintes. Pode haver programas em que os ouvintes estejam presentes e, contudo, não participem realmente: para apresentar um exemplo extremo, nos programas de concurso com

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prêmios (pergunta e resposta, várias habilidades) o ouvinte concorre, fala, mas não é nem um pouco semelhante a uma real participação. E, ao contrário, pode haver programas onde não há a presença física do ouvinte, onde sua voz não soa no ar, mas onde, sem dúvida, ele esteja participando efetivamente.

Modelos participativosUm dos métodos mais interessantes que já se propuseram nesse sen-

tido, é o programa submetido à crítica direta dos destinatários. Natural-mente o modelo não permite que todos os ouvintes participem, mas que alguns grupos representativos possam realmente orientar o programa e gravitar em torno dele.

O método consiste no seguinte: a produção organiza grupos popu-lares de escuta que desejem tomar parte da experiência; e explica aos envolvidos a importância de sua cooperação, fazendo-os ver que ela permitirá que o programa expresse, de fato, a realidade social e cultu-ral do ambiente onde a emissora está inserida. Grava-se uma emissão experimental piloto, que será escutada pelos grupos constituídos. Cada um deles, reunidos com este objetivo, ouve a gravação, discute e opina, sinalizando, de acordo com seu julgamento, quais coisas deveriam ser modificadas. A equipe organizadora do programa acolhe estas observa-ções, reflete sobre elas e modifica a emissão de acordo com as mesmas. A emissão definitiva, que vai ao ar, já leva, pois, incorporados os resul-tados da pesquisa popular.

O procedimento se repete com cada uma das emissões seguintes ou, se não é possível fazer com todas, ao menos periodicamente com algu-mas delas. Chega um momento em que os grupos não apenas criticam o programa escutado, mas já tem condições de sugerir como ele deve con-tinuar: dialogando com os realizadores, indicam quais temas gostariam que fossem contemplados na próxima emissão, incluindo a forma como eles poderiam ser desenvolvidos. Convertem-se, assim, em coproduto-res do programa.

Este tipo de participação pode ser ilustrado pelas orientações que regem uma emissora de educação radiofônica popular rural: a Rádio Santa Maria de La Vega, na República Dominicana. Antonio Cabezas, seu diretor, a define como “um centro de atividades culturais profunda-mente enraizadas na base camponesa (...). Frente ao conceito tradicio-

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nalmente vertical do que é uma emissora, onde a antena lança progra-mas para ver quem os capta, propomos um conceito horizontal”.

Agora: como essa emissora entende a horizontalidade? Em que con-siste, para ela, a participação do ouvinte? “Entendemos por uma emis-sora horizontal aquela que acolhe a vida do homem da base, aquela que come, chora, se alegra e sofre com o homem comum e lhe dá a possi-bilidade de se expressar por um microfone, para que outros participem de suas experiências. Quando colocamos um programa no ar, sabemos que há milhares de famílias esperando organizadamente este programa, porque antes foram visitadas por ele, e elas mesmas deixaram a marca de suas inquietudes na gravação. Quando a emissora fala, não é ao ho-mem da cidade que sabe tudo, mas ao agricultor sofrido, imobilizado por um intermediário, o usuário ou a falta de técnica para suas lavouras. Não se escolhe uma direção no rádio ‘para ver se cola’, mas porque pre-viamente atraiu uma massa já organizada de agricultores que querem melhorar suas culturas ou saber o que é o mercado interno”.

O importante, então, não é apenas que o ouvinte possa participar di-retamente das emissões, mas consultá-lo. Levar em conta suas necessi-dades e aspirações para, a partir delas, orientar a programação; recolher suas experiências, se inspirar na vida do povo, para realizar os progra-mas e refletir essa vida neles.

Mais do que nos preocuparmos em recorrer a uma comunicação “de retorno”, que compromete o destinatário com a mensagem final, recebendo-o e retornando a ele, talvez devêssemos procurar, sobretu-do, colocar o ouvinte no início do processo: originado as mensagens, inspirando-as.

A função do comunicador neste esquema já não seria o que se en-tende classicamente por “fonte”, ou, ao menos, como fonte exclusiva das mensagens: seu trabalho já não consistiria em produzir suas pró-prias ideias, as que ele considera convenientes, e depois esperar que a mensagem “retorne”. O comunicador, aqui, teria como principal função recolher as experiências da comunidade, estruturar e organizar estes experiências em forma de emissão radiofônica e, assim estruturadas, devolvê-las a comunidade, de modo que esta possa analisá-las, tomar consciência e refletir sobre elas. A fonte da mensagem é aqui dupla: in-clui o comunicador como aquele que seleciona e interpreta as experiên-cias da comunidade, mas também inclui a própria comunidade destina-

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tária. Esta não é apenas envolvida no final do processo, como receptora da mensagem, mas também no princípio, como autora do mesmo: faz parte da fonte manancial, por assim dizer, sua abastecedora.

É o método empregado para elaborar alguns dos roteiros que estão anexos a este livro: distintas comunidades populares foram visitadas, observamos o que acontecia com elas, registramos fatos ocorridos, gra-vamos conversas com os moradores, e depois com este material, orga-nizando-o e ordenando-o, elaboramos o roteiro. Quando o programa foi irradiado, o povo podia reconhecer-se nele, identificar-se com ele, ainda que as vozes que foram ao ar não fossem as suas, mas as dos ato-res profissionais. Ao longo do programa os ouvintes encontravam seus próprios fatos e experiências, mas apresentados pedagogicamente de tal maneira que agora podiam vê-los com perspectiva crítica, analisá-los, discuti-los e refletir sobre eles, emitir um juízo, chegar às causas do pro-blema que até o momento viviam e sofriam como uma mera contingên-cia, sem perceber suas raízes. E então o programa se convertia em um estímulo para busca de soluções comuns.

Talvez fosse a base para a elaboração mais ampla e precisa do con-ceito de participação do ouvinte no rádio quando, no já citado semi-nário da ICI/ALER, em 1975, o intercâmbio de ideias com o professor O’Sullivan, pôs em dúvida a afirmação de que, para que exista o diálogo é sempre necessário que o ouvinte esteja presente. “Talvez o diálogo, mais do que uma presença física, seja a participação de uma verdade interior a outra verdade interior”. Definição sobre a qual vale a pena meditar e tomar como ponto de partida.

Problemas da participaçãoPor último, duas considerações sobre este tema importante para uma

comunicação radiofônica educativa realmente popular e renovadora.

116 Mario Kaplún

Em primeiro lugar: falamos de programas que respondam às neces-sidades da comunidade. Mas é necessário distinguir entre necessidades sentidas e necessidades não sentidas. Podem existir necessidades muito reais e prioritárias que a comunidade, pela falta de consciência crítica, não sente como tais.

O comunicador não pode, pois, basear-se somente no que a comuni-dade sente e expressa como necessidade: é também seu dever oferecer a ela, da forma mais pedagógica e respeitosa possível, a expressão destas outras necessidades que ela tem mas não percebe. Isso não é verticalis-mo nem paternalismo; isso é um serviço legítimo prestado ao povo.

Em segundo lugar, com a participação direta dos ouvintes nos pro-gramas de rádio, enfrentamos outro problema. Sabemos que em grande parte do público existe um alto grau de conformismo, de resignado fa-talismo; sabemos igualmente que grandes setores populares vivem “em uma situação de dependência e alienação criada pela imposição de ou-tra cultura e de outros valores, que não os seus próprios” (O’Sullivan, diálogo citado). Para citar a célebre frase de Freire, “o dominador intro-jetou sua ideologia no dominado” e este a internalizou, e muitas vezes “pensa a partir das categorias e valores do dominador”.

Por exemplo, o refrão “A caridade, assim entendida, começa em casa” é popular; o povo o diz a cada momento; mas nem por isso é menos individualista e anticomunitário.

Abrir o rádio para a participação direta do povo pode ser muito li-bertador, mas também pode significar que a estamos abrindo inadverti-damente para as atitudes e os valores que se busca questionar e superar. Muitas vezes, em programas de rádio participativos, o que ouvimos são expressões de conformismo, de resignação, de individualismo, de espí-rito de competição; chegamos a ouvir os mesmos clichês distorcidos, as mesmas músicas vulgares, as mesmas expressões estereotipadas que tanto criticamos na programação comercial. É o povo que está se ex-pressando, no entanto, expressa o que a cultura dominante lhe introje-tou, o que assimilou dessa cultura.

Uma participação dessa natureza não parece ser educativa nem levar a uma evolução; pelo contrário, tende a reforçar os valores do status quo e torná-lo ainda mais vigente.

Não convém, pois, confundir participação com espontaneidade nem com populismo demagógico. Não basta que “o povo se expresse” se o

117Produção de Programas de Rádio

que expressa não gera um raciocínio, um juízo pessoal, uma consciência crítica. Por isso acreditamos que não é apenas correta, mas indispensá-vel a intervenção inteligente e crítica do comunicador, dialogando com o povo, questionando certos conteúdos assimilados por ele, selecionan-do as contribuições populares para que, por meio delas, provoque uma evolução e um processo autenticamente educativo.

118 Mario Kaplún

Parte II

A técnica radiofônica

119Produção de Programas de Rádio

Capítulo

5Os Formatos Radiofônicos

Para planejar um programa de rádio, pode-se partir: a) dos conteúdos concretos os quais nós nos propomos comunicar,

da temática definida que desejamos abordar. A partir desta, deter-minamos o formato, a estrutura radiofônica mais adequada para veicular estes conteúdos. Por exemplo, se desejamos apresentar a realidade do movimento cooperativo agrário em nossa região, vemos que a melhor forma de desenvolver este tema é fazer uma série de entrevistas com dirigentes e membros de diferentes coo-perativas. Ou se nos parece importante abordar a história do nos-so país, decidimos que a forma mais interessante e pedagógica de apresentá-la é por meio de uma série de radiodramas.

b) ou então de uma estrutura pré-determinada. Neste caso, escolhe-mos um formato que consideramos educativo, de ricas e variadas possibilidades e que se adapta bem a uma mensagem, cuja temá-tica é geral como a que temos em mente. Por exemplo, pensamos um radiodrama cujo personagem central seja um caminhoneiro em suas distintas viagens por todo o país. Em seguida, selecio-namos as mensagens que queremos transmitir por meio das di-versas histórias vivenciadas pelo nosso caminhoneiro, conteúdos que colocaremos em cada capítulo da série. Ou, então, resolve-mos realizar uma série de reportagens sobre os problemas da rea-lidade nacional. Planejamos a estrutura básica do programa. Em seguida, escolhemos o tema que iremos tratando nas diferentes emissões (a inflação, a dependência econômica, a insuficiência do sistema escolar etc.).

Qualquer que seja o nosso ponto de partida – tanto se começamos por definir o conteúdo temático como se determinamos previamente as

120 Mario Kaplún

características formais do programa – necessitamos conhecer e domi-nar bem os distintos gêneros ou formatos radiofônicos dentro dos quais deveremos escolher o mais funcional para o nosso projeto.

1. Doze formatos básicos

Um primeiro descarte

Comecemos por perguntar para que serve e para que nos serve o rádio.

Por exemplo, o rádio não serve para difundir conferências ou falas dissertativas. Quase ninguém está disposto a acompanhar pelo rádio uma longa exposição em monólogo. Aparece rapidamente a fadiga, a distração. Em consequência, salvo poucas exceções, o formato “confe-rência” está excluído da comunicação radiofônica.

Tampouco, por ser meio não visual, o rádio presta-se para ensinar técnicas, métodos e procedimentos: se desejamos ensinar a agriculto-res o método técnico para realizar um determinado transplante ou as operações necessárias para tratar árvores frutíferas ou como se constrói um galpão, é melhor usar um meio audiovisual ou gráfico (por exem-plo, um folheto ilustrado). Descrever procedimentos pelo rádio não é prático, nem eficaz. Os detalhes (números, doses, datas, medidas, ope-rações) não são captados bem, nem são memorizados. Como conse-quência, também devemos deixar de lado o formato que chamaríamos “de instrução”, no sentido descritivo que damos ao termo quando nos referimos aos manuais instrucionais, aos folhetos explicativos, às car-tilhas etc.

O rádio, ao contrário, tem sem mostrado eficaz como meio para in-formar, para transmitir conhecimentos e para provocar inquietações. É possível, também, conduzir a uma reflexão sobre valores e atitudes, esti-mular o raciocínio, favorecer à formação de uma consciência crítica pelo rádio. Vejamos, portanto, os diferentes formatos que podem ser utiliza-dos para estes diferentes propósitos.

Uma primeira classificaçãoInicialmente, podemos agrupar os programas de rádio em dois gran-

des gêneros: os musicais e os falados, ou seja, sendo predominante neles

121Produção de Programas de Rádio

mais a música ou mais a palavra. Evidentemente, para uma finalidade educativa, interessa-nos estes últimos, já que permitem expressar ideias, transmitir uma mensagem. A música poderá ocupar um papel comple-mentar nestes programas, às vezes muito importante, mas a nossa ferra-menta essencial será a palavra.

Centremo-nos, portanto, nos programas falados. Deles, geralmente, é feita uma classificação elementar baseada no número de vozes que intervêm. Assim, pode-se afirmar que há três maneiras de escrever um programa de rádio:

1. Em forma de monólogo.2. Em forma de diálogo.3. Em forma de drama.

Os monólogos constituem o tipo mais comum. Sua forma mais ha-bitual é a fala radiofônica individual. São os que oferecem menos difi-culdades de produção, mas também os mais monótonos ou limitados.

Aqueles em forma de diálogo demandam a intervenção de duas ou mais vozes. Obviamente, duas é o mínimo para um diálogo, mas tam-bém entram neste grupo programas nos quais podem interferir sete ou oito participantes. Neste tipo de programas incluem-se, como veremos, diversos formatos – tais como a entrevista, a mesa-redonda, o diálogo didático, o radiojornal, a reportagem etc. São de produção mais difícil que os anteriores, mas se constituem em conteúdos mais radiofônicos que aqueles. Oferecem mais atrativos e interesse, devido à variedade das vozes, e mais possibilidades educativas, pelo intercâmbio de diferentes posições e opiniões. Enquanto o monólogo tende a ser unilateral, o pro-grama dialogado se abre a muitas facetas, a muitos aspectos.

Os dramatizados (radiodramas) poderiam, de certo modo, aproxi-mar-se do gênero dialogado e serem considerados como uma variante ou subdivisão deste, já que têm em comum com ele o uso de várias vo-zes. No entanto, apresentam com certeza características tão próprias e diferentes que constituem uma categoria à parte. Sua característica prin-cipal reside no desenvolvimento de um enredo, uma estória, uma si-tuação concreta, com personagens dramáticos, os quais são encarnados por atores. Pode-se, deste modo, dizer que estamos diante de um radio-drama – ou radioteatro, como se chama em alguns países da América

122 Mario Kaplún

Latina18 – quando ouvimos uma ação dramática e esta é interpretada por atores.

Suponhamos que em nossa cidade ocorreu um grave acidente. É possível produzir duas emissões de rádio sobre este fato: uma em forma de radiorreportagem, com entrevistas e depoimentos reais variados; e outra, em forma de radiodrama, que reconstrói o fato mediante um ro-teiro, utilizando atores. Apesar do tema comum, a distinção entre uma e outra é muito clara: se aproximamos estas irradiações aos gêneros ci-nematográficos, a primeira equivaleria a um documentário e a segunda a um filme de ficção.

Os programas dramatizados são considerados os mais atrativos em virtude de sua estrutura dinâmica. Já enumeramos largamente no capí-tulo 2 as vantagens pedagógicas deste formato. Mas não é menos certo que são os mais difíceis de utilizar: requerem atributos de escritor dra-mático e um maior domínio das técnicas da composição radiofônica. Para sua produção, é necessário contar com atores, musicalização, mon-tagem sonora etc.

Os diferentes formatos à nossa disposiçãoComo indicamos, a classificação dos programas falados em três tipos

(monologados, dialogados e dramatizados) é muito elementar. Dentro de cada tipo podemos distinguir uma grande variedade de formatos.

Vamos enumerá-los agora, mas pontuando previamente que este inventário não é normativo nem exaustivo. Não esgota a lista de pos-síveis formatos radiofônicos. São tão somente os modelos principais. Podemos idealizar programas que agreguem vários destes modelos ou que contenham uma variedade de elementos tomados de distintos for-matos, ocorrendo assim, por combinação, novos esquemas. Podemos, mesmo assim, criar modelos novos, totalmente distintos dos que aqui estão descritos ou que, pelo menos, não se encaixam nestas tipificações. O engenho e a imaginação de um roteirista criativo podem conceber in-finitas variações. Com vozes, música e sons se podem construir muitos e variados desenhos de programas.

Os doze modelos mais clássicos e usuais no mundo do rádio19 são os seguintes:

18 Como é o caso do Brasil [Nota da tradução].19 Alguns dos formatos e denominações aqui listados divergem do que é usualmente

adotado no Brasil. Assim, optou-se por uma tradução aproximada, em especial, uti-lizando a nomenclatura mais corrente no país [Nota da tradução].

123Produção de Programas de Rádio

1. A fala:a) expositivab) criativac) testemunhal

2. O noticiário (formato notícia)

3. A reportagem20

4. O comentário

5. O diálogo:a) o diálogo didáticob) o rádio-consultório

6. A entrevista informativa

7. A entrevista indagatória

8. O radiojornal

9. A radiorrevista / programa de variedades21

10. A mesa-redonda:a) as mesas-redondas propriamente ditasb) o debate ou discussão

11. O documentário, a reportagem especial22

a) baseado em documentos vivosb) baseado em reconstruções (relato com montagem)

12. A dramatizaçãoa) unitáriab) seriadac) novelada

Alguns destes formatos (por exemplo, a fala, a notícia, a entrevis-ta, a dramatização) são comuns na América Latina; outros, como os documentários e reportagens especiais, são pouco frequentes em nos-

20 No original “nota o cronica” [Nota da tradução]. 21 No original “programas misceláneos” [Nota da tradução].22 No original “radio-reportaje” [Nota da tradução].

124 Mario Kaplún

sa região23, mas amplamente utilizados pelas emissoras educativas em outros países. Nada impede adotá-los nos nossos países, dadas as suas excelentes possibilidades como expressão radiofônica.

Neste capítulo introdutório nos limitaremos a definir e descrever su-cintamente estes distintos formatos; e em capítulos subsequentes anali-saremos cada um atentamente e estudaremos os requisitos técnicos para sua boa realização.

1. A falaTrata-se de um discurso ou monólogo, geralmente breve. Se quere-

mos respeitar minimamente as exigências do meio, deverá ser curta: a conferência e a fala dissertativa, salvo casos muito excepcionais – já assi-nalamos isto –, não são formatos palatáveis para o rádio. Estima-se que uma fala para ser ouvida com atenção não pode exceder cinco minutos.

Dentro deste formato, podemos distinguir três variantes:

a) A fala expositiva. É a mais comum: alguém que “fala por rádio” com o fim de explicar algo, divulgar conhecimentos, dar conselhos etc. É a forma mais singela e econômica de empregar o rádio e, por isso, a mais usual. É também a menos radiofônica e a menos pedagógica.

Convém particularizar que, embora tenhamos feito a distinção entre programas a uma voz e programas a várias vozes e, logicamente, in-cluamos a fala expositiva dentro dos primeiros, existe também a fala radiofônica a duas vozes. O procedimento consiste em escrever um tex-to igual ao da clássica conversa-monólogo, para reparti-lo entre dois locutores (em geral, uma voz masculina e outra feminina) que vão se alternando na sua leitura, isto é, lendo um parágrafo cada um. Mediante este recurso busca-se aliviar a monotonia da emissão. Entretanto, mes-mo com o uso de duas vozes, seguimos em presença de uma conversa apenas disfarçada. Acreditar que tenhamos escrito um diálogo seria um exercício de autoengano. Não há intercâmbio entre os dois leitores: am-bos são locutores e não interlocutores. É o mesmo monólogo, apenas lido a duas vozes. Este recurso resulta, inclusive, mais artificial e mecâ-nico que a fala monologada: percebe-se claramente que os dois locuto-res estão lendo um rígido texto escrito por outra pessoa.

23 O documentário continua sendo um formato pouco utilizado no rádio brasileiro, mas as reportagem especial desenvolveu-se consideravelmente, sendo especialmente utilizada de forma seriada [Nota da tradução].

125Produção de Programas de Rádio

Outro recurso de que é comum fazer-se uso – e abuso – para aliviar a fadiga do ouvinte é cortar de tanto em tanto a fala expositiva com cortinas musicais. É um expediente fartamente empregado, mas pouco recomen-dado. A música assim enxertada arbitrariamente distrai do tema, tira uni-dade e ritmo ao discurso, resulta artificial e não justificada. Interrompe a fala sem integrar-se a ela.

Se você tiver que expor um tema de divulgação, nosso conselho é: não utilize o formato fala. Procure outro entre os que a rádio põe à sua disposição: o drama, a reportagem. Se estes não estão a seu alcance por seu custo e/ou por sua complexidade, você pode recorrer a outro for-mato, não tão singelo como a estereotipada fala, mas bastante simples e relativamente fácil: o diálogo didático. E, para alguns temas, até fica outra possibilidade: procurar fazer uma entrevista sobre o assunto e desenvolvê-lo através do diálogo com o entrevistado.

b) A fala criativa. Não devemos descartar a fala como formato educati-vo. É um meio econômico e singelo. Por sorte, existem outras maneiras de escrever falas para rádio, além da expositiva.

Em primeiro lugar, muda o propósito ou o objeto da fala: já não se trata tanto de expor um tema quanto de motivar, de chamar a atenção sobre uma questão e despertar uma inquietação no ouvinte. Em segun-do lugar, muda – e até de maneira mais pronunciada – o estilo da fala. Uma boa fala se concretiza quando o seu autor se propõe a elaborá-la e construí-la radiofonicamente, quando se propõe a abordar o problema de como atrair a atenção do ouvinte para essa única voz que fala e quan-do encara a sua fala como uma verdadeira criação radiofônica. Quando se esforça por obter este resultado – e o obtém – imprime um caráter pessoal, direto, coloquial.

Isto não é fácil nem simples: produzir uma boa fala verdadeiramente radiofônica é mais difícil que escrever um diálogo, pois o autor dispõe aqui de menos recursos. Tudo deve ser obtido a partir de uma só voz, falando.

Trata-se de uma fala eminentemente vivencial. Deve estabelecer com o ouvinte uma comunicação humana e suscitar nele uma resposta pes-soal. Por seu conteúdo e por sua forma, não se propõe comunicar uma informação simplesmente, mas sim transmitir uma vivência, despertan-do no ouvinte seu sentido de participação e de responsabilidade.

Em algumas ocasiões, o texto de uma fala deste tipo tem tantos ma-tizes expressivos que não pode ser lida pelo próprio autor, nem por um locutor, mas deve ser interpretada por um ator.

126 Mario Kaplún

c) A fala testemunhal. Outro gênero válido e eficaz. Alguém que fala na primeira pessoa e expressa sua própria experiência: “Eu estive aí”, “Hoje, me aconteceu tal coisa”, “Eu estou vivendo este problema”. Passa por autêntica, por vivida, por real. Às vezes, não é um roteiro escrito, mas a expressão espontânea, o relato de alguém que viveu ou está viven-do uma situação, relata esta situação e reflete a respeito dela.

2. O noticiário: a notíciaMais que um programa, o noticiário ou informativo é um serviço

permanente de uma emissora e que é oferecido em determinados ho-rários.

A unidade básica deste serviço é a notícia: informação sintética e direta de um fato, exposta geralmente em menos de um minuto, sem maiores detalhes e sem comentários. Por exemplo: ao tratar de um gol-pe de estado ocorrido em alguma parte do mundo, a notícia limita-se a informar que tal golpe ocorreu, que teve êxito, o nome do novo man-datário etc.

Com um conjunto ou sucessão de notícias, estrutura-se o informa-tivo ou noticiário.

3. A reportagemÉ a informação ampla de um fato, dada em um espaço de três ou

cinco minutos. Não inclui comentários ou opiniões pessoais, mas se ofe-recem detalhes e antecedentes do fato assim como se referem opiniões de outros sobre o acontecido. Deste modo fornece ao ouvinte elementos de interpretação para que forme uma ideia mais completa do fato e, inclusive, elementos de opinião.

A respeito do já citado golpe de estado, por exemplo, começará por nos dar uma localização geográfica do país se este for novo e pouco conhecido; explicará o significado político do golpe – a tendência do governo que foi derrubado e a presumível ou certa do grupo que o derrubou –; resumirá a história da luta entre ambas as tendências e os interesses a que ambas se relacionam; assinalará as consequências e re-percussões que esta mudança de governo pode ter em relação às forças internacionais; resumirá as reações das diversas potências em relação ante o acontecimento, como julgam o fato diferentes jornais, as adesões e as apreensões que provoca nos países vizinhos etc. Em resumo, a re-portagem irá traçar o contexto geopolítico e econômico do fato.

127Produção de Programas de Rádio

4. O comentárioEnvolve uma análise e uma opinião sobre o fato que se comenta.

Procura não só dar informação, mas também orientar o ouvinte, influir sobre ele e incliná-lo a favor de uma determinada interpretação do fato, que se considera a justa e correta. O comentário aprova ou condena, aplaude ou censura.

(Não é necessário precisar que, muitas vezes, uma crônica hábil é um comentário dissimulado, não explicita um julgamento, mas o induz e o sugere.)

5. O diálogo

a) O dialogo didático. Já se assinalaram as limitações e contraindica-ções da fala expositiva. O que fazer então quando é preciso explicar, expor um tema?

Um dos recursos mais simples é o programa dialogado ou diálogo didático. Sem chegar à complexidade da reportagem ou ao drama é pos-sível montar um diálogo sem excessivo desdobramento técnico, resul-tando sempre em algo mais interessante, dinâmico e pedagogicamente eficaz do que a fala explicativa.

Um exemplo deste formato: um médico que dialoga com seu pa-ciente e, de modo cordial, com palavras singelas, fornece informações, noções e conselhos sobre temas distintos relativos ao cuidado da saúde. Ou dialoga com sua enfermeira ou assistente, depois da consulta diária, e comenta com ela, em termos populares e acessíveis, o problema expos-to por algum dos pacientes que o visitou nesse dia.

Outro exemplo: o encontro periódico de um extensionista rural com um agricultor (ou dois ou três) na propriedade deste último. Ambos conversam amigavelmente, o agricultor (ou os agricultores) fazem per-guntas e consultas sobre os problemas que enfrentam e o técnico, em um diálogo ágil, vivaz e natural, lhes dá orientações e conselhos.

É obvio que o formato tem seus requisitos técnicos e pedagógicos, que serão examinados no capitulo correspondente.

b) O rádio-consultório. Outra variante do diálogo. Um programa reali-zado como resposta a consultas dos ouvintes, que as formulam por carta ou também por telefone.

128 Mario Kaplún

Pode ser de caráter geral, como o programa da América Central Escola para Todos, que responde a perguntas de aritmética, geografia, história, economia, ciências, relacionadas a todos aqueles conteúdos ha-bituais das escolas. Ou também ser especializado: por exemplo, um con-sultório agrícola, um consultório jurídico, um consultório sobre temas de saúde, um consultório para as mães que criam seus filhos e desejam informações sobre questões de puericultura etc.

Sua principal vantagem está no fato de que os temas refletem inte-resses reais e concretos da audiência. Sua limitação, do ponto de vista educativo, é que, por sua estrutura, se vê obrigado a dar noções desco-nectadas umas das outras, parciais e fragmentárias. Não permite mos-trar a relação de um problema com outro, aprofundar suas causas nem oferecer uma visão global de uma questão. Sobretudo se a temática que atende é ampla e geral e apresenta, em cada emissão, muitas respostas sobre temas totalmente diferentes entre si, dedicando a cada resposta apenas uns poucos minutos, o valor educativo destas respostas é muito duvidoso. Um consultório sobre um tema específico (o caso do consul-tório rural ou do jurídico) com finalidades práticas de informação, ao contrário, pode resultar como útil.

Convém transmiti-lo a duas vozes: as consultas ou perguntas em uma voz e as respostas em outra. Por exemplo, um consultório sobre temas de puericultura pode adotar a estrutura já descrita de um dialogo entre o médico e sua enfermeira ou assistente, para a qual lê as pergun-tas recebidas e as formula em nome dos remetentes. Uma pergunta pode inclusive dar lugar a um breve diálogo, no qual a enfermeira pede novas explicações e esclarecimentos, comenta a resposta, conclui a respeito de consequências etc.

Se as perguntas são formuladas por telefone, convém gravá-las e, en-tão, veiculá-las na voz do próprio ouvinte que a formulou.

6. A entrevistaPode-se definir esquematicamente a entrevista como um diálogo

apoiado em perguntas e respostas. O entrevistador é o radialista ou o jornalista que pergunta; o entrevistado, alguém alheio ao meio que, ao responder às perguntas do primeiro, contribui com uma informação, uma opinião ou um testemunho que se supõe interessar ao ouvinte.

É geralmente individual: entrevista-se a uma pessoa. Mas também pode ser coletiva: entrevista-se simultaneamente duas pessoas ou, inclu-

129Produção de Programas de Rádio

sive, um grupo (por exemplo, os membros de uma cooperativa agrícola, os organizadores de um evento etc.).

Comumente, a entrevista é gravada antes de ser irradiada; mas há também as que se transmitem diretamente no momento em que têm lugar (entrevista “ao vivo”). Quando são gravadas, podem ser editadas e, geralmente, o são. Chama-se edição a seleção das passagens mais re-levantes e relacionadas ao tema, com a eliminação dos momentos de menor interesse.

Um programa pode ajustar-se exclusivamente a este formato. É pos-sível – e certamente interessante – realizar um programa que, em cada emissão, ofereça somente entrevistas (uma só entrevista por cada emis-são, ou talvez duas ou três). O mais comum, no entanto, é que a entre-vista componha um programa combinado – radiojornal, radiorrevista, radiorreportagem, por exemplo –, que utiliza vários formatos diferentes em cada emissão. A entrevista passa a ser, neste caso, um dos elementos componentes do programa.

7. A entrevista indagatóriaEmbora a denominação possa resultar um tanto agressiva, é a que

melhor descreve o caráter deste formato.Um jornalista experiente convida ao programa, cada semana, uma

personalidade (um político, um alto funcionário, um dirigente) para submetê-lo a um interrogatório exaustivo sobre um tema atual com o qual esta personalidade tem relação direta. Por exemplo: produziu-se uma discussão pública sobre compra de armas e o jornalista convida, então, o senador, presidente da comissão que aprovou a aquisição, para dar ao parlamentar a oportunidade de explicar sua atuação.

Neste tipo de programa, cabem perguntas polêmicas. O jornalista pode recolher as opiniões adversas e, em apoio a elas, fazer perguntas “duras”, questionadoras. O convidado sabe que isto pode acontecer e, ao aceitar o convite para participar do programa, submete-se às regras do jogo. É óbvio que estas regras incluem também um tratamento corre-to e respeitoso ao convidado e a exclusão de perguntas improcedentes, como, por exemplo, as que podem envolver a sua vida privada.

Diferentemente da entrevista informativa, que se pretende breve, aqui se dispõe de tempo para formular várias perguntas e dar oportuni-dade ao entrevistado para que as responda de modo detalhado. Os pro-

130 Mario Kaplún

gramas deste tipo duram, geralmente, meia hora e até mais. Assumem o caráter de tribuna de opinião pública.

Não são gravados previamente: a entrevista é feita no estúdio e trans-mitida simultaneamente. Alguns destes programas preveem mecanis-mos para que os ouvintes possam fazer suas próprias perguntas, antes da emissão ou durante o transcurso da mesma.

Às vezes, não é apenas um entrevistador a interrogar, mas vários jor-nalistas. Nesse caso, o esquema do programa assemelha-se ao de uma conferência de imprensa, mais centrado em um único tema.

8. O radiojornalEste é um formato que, na nossa região, desenvolveu-se principal-

mente na América Central, atribuindo-se a sua criação ao ilustre es-critor guatemalteco Miguel Angel Asturias, considerado o fundador do primeiro radiojornal.

Embora o informativo ou noticiário comum limite-se a fornecer um conjunto ou sucessão de notícias, o radiojornal ou jornal falado, tal como foi concebido originalmente, contém e desenvolve, como um jornal impresso, distintas seções: notícias nacionais, notícias interna-cionais, política, economia, cultura, espetáculos, agropecuária, sindical, esportes, humor etc. Oferece a respeito de cada um destes tópicos não apenas informações, mas também reportagens, análises, comentários etc. Tem, inclusive, o seu editorial. Pode até mesmo conter várias entre-vistas sobre diferentes aspectos da atualidade cotidiana.

Supõe uma equipe de jornalistas especializados, cada um a cargo de uma seção determinada. Terá, assim, seu comentarista político, seu crítico de cinema e teatro, seu cronista esportivo, seu encarregado de assuntos sindicais, seu especialista em questões agrárias etc.

É obvio que é transmitido todos os dias e sempre no mesmo horá-rio. Algumas das suas seções são diárias, enquanto outras alternam-se uma ou duas vezes por semana. Dura até uma hora e não é longo, pois a grande variedade de suas seções e a sua dinâmica mantêm o interesse do ouvinte durante toda a emissão.

No final de semana, o radiojornal pode oferecer um “suplemento” ou edição especial com a síntese dos acontecimentos da semana, pano-ramas nacional e internacional, notas ampliadas, comentários de fundo etc.

131Produção de Programas de Rádio

Embora este formato tenha se desvirtuado e os radiojornais que exis-tem atualmente24 afastaram-se muito destas características, trata-se de um esquema amplamente passível de resgate. Um bom radiojornal, ágil, completo e bem feito pode ser de grande valor informativo e inclusive educativo.

9. O programa de variedades: a radiorrevistaNo rádio existe uma grande diversidade de programas falados que

podem ser chamados de “variedades”, centrados em temas e seções di-versificados. Não são fáceis de definir, dado que sua característica é pre-cisamente a variedade de seções.

Geralmente, a presença de um apresentador (ou de um casal de apre-sentadores) é o que dá o caráter e assegura a unidade do programa. Al-gumas radiorrevistas são predominantemente frívolas, de mero entre-tenimento rápido. Incluem preferivelmente notas sobre modas, beleza, receitas culinárias, horóscopo, curiosidades corriqueiras etc. Mas o for-mato pode adotar, mesmo dentro de sua modalidade variada, conteúdos de maior interesse informativo e educativo. É o caso da radiorrevista de atualidade, um gênero que se desenvolveu muito nas emissoras euro-peias e foi adotado também em alguns países africanos.

Assim como o radiojornal é o equivalente em rádio do jornal escrito, a radiorrevista é o equivalente à revista ilustrada de atualidades. Alterna diferentes temas do cotidiano – embora sem se restringir, como o ra-diojornal, às notícias do dia – e utiliza, em suas seções, diversos forma-tos: entrevistas, reportagens, pesquisa, falas testemunhais, comentários, breves diálogos, as vezes também consultórios. E geralmente intercala duas ou três peças musicais, a fim de amenizar ainda mais o conjunto. Procura-se se essas peças musicais tenham relação com algum dos te-mas tratados nesse dia. Uma nota sobre o Brasil, por exemplo, terá antes ou depois uma dança ou canção do folclore brasileiro. Um apresentador – ou um casal de apresentadores – apresenta o programa e interliga as distintas seções.

Pode-se programar uma radiorrevista dirigida a uma audiência ge-nérica, ainda que o mais frequente é se destinar a um público determi-nado. Por exemplo, uma radiorrevista para a mulher ou para os jovens ou para o setor agrícola.

24 Segunda metade da década de 1970. [Nota da tradução].

132 Mario Kaplún

O valor deste formato é que se aproxima de um público não infor-mado, nem especialmente interessado em um determinado tema ou em informações sucintas a respeito desse tema. Dessa maneira pode infor-mar aos seus ouvintes a existência de um fato ou de um problema sobre o qual, de outra maneira, não teria sido informado. O programa, pouco a pouco, pode ir despertando inquietações, criando consciência e in-teresse sobre diversas questões, ampliando o horizonte informativo e conceitual de sua audiência.

Sua limitação se assenta sobre o seu próprio caráter de variedades: como deve oferecer em cada emissão diversos temas e seções, todos eles apresentados de forma breve e ágil, sem dar mais do que uma visão rá-pida e superficial de cada um dos assuntos.

10. As mesas-redondasSão os programas baseados na participação de dois ou mais convida-

dos, a fim de oferecer à audiência a análise de um problema ou de uma questão determinada.

Os convidados são, em geral, especialistas na questão que se preten-de esclarecer. Mas também pode participar da mesa-redonda “o homem comum”, sobretudo aquele que de alguma maneira viva o problema. Por exemplo, se o tema da mesa-redonda é o funcionamento de um serviço público, pode ser interessante que, junto às explicações dos técnicos e dos funcionários, ouçam-se as queixas, as reclamações e as perguntas dos usuários do serviço; sobre um problema de educação, não apenas podem se expressar os educadores e os funcionários de governo, mas também os pais de família e os próprios educandos.

Há sempre um apresentador ou moderador que coordena o progra-ma, formula as perguntas dirigidas a todos os convidados ou expressa-mente a algum deles, concede a palavra aos diversos participantes, ad-ministra o tempo, regula a duração da intervenção de cada um, resume as distintas contribuições ou as diferentes posições e expõe as conclu-sões a que se pôde chegar ao término do diálogo.

Dentro deste formato, pode-se distinguir dois tipos de programas:

a) A mesa-redonda propriamente dita. É o que os ingleses chamam de painel. Convida-se diferentes pessoas para que cada uma contribua com a sua informação e o seu ponto de vista, da perspectiva de sua res-

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pectiva especialidade. As opiniões aqui podem ser divergentes ou coin-cidentes. Se houver discrepâncias, são assinaladas e confrontadas, mas o programa não procura sistematicamente opor posições antagônicas. Seu propósito é mais esclarecer uma questão, analisá-la desde diversos ângulos. Muitas vezes há convergência de posições com, no máximo, matizes de diferença: as diversas intervenções, mais do que se oporem, complementam-se umas às outras.

b) O debate. À diferença do anterior, o programa polêmico ou debate busca a discussão, a controvérsia. Propõe-se desde o início a opor e con-frontar posições. Se houver uma divergência, são convidadas ao progra-ma as duas partes em conflito para que exponham a sua posição sobre o problema e o discutam. Na discussão de um projeto de reforma agrária, por exemplo, serão convidadas pessoas representativas, algumas que es-tão de acordo com a reforma (talvez os políticos autores do projeto ou os dirigentes do setor agrícola que o apoia) e outras que o rejeitam e combatem (os políticos do setor opositor ou os proprietários de terras).

Se em toda mesa-redonda o apresentador ou moderador tem um pa-pel de grande importância, sua função, no caso do debate, é ainda mais complexa e delicada, requerendo grande habilidade para manter o equi-líbrio e a equidistância do programa. É necessário, ainda, um esquema muito bem pensado para a marcação do tempo, de modo que os grupos disponham de tempos iguais.

O valor destes programas polêmicos consiste em levar o ouvinte a ter conhecimento de uma controvérsia, permitir que escute as duas po-sições e convidá-lo a assumir uma própria depois de refletir sobre as mesmas.

11. O documentário, a reportagem especialJunto com o radiodrama, o documentário radiofônico constitui-se

em um dos dois formatos mais relevantes do rádio educativo. A BBC, de Londres; a Rádio Nederland, da Holanda; a Voz da América, dos Esta-dos Unidos, assim como emissoras da Tanzânia e de outros países afri-canos e asiáticos, utilizam-no com grande assiduidade. A constatação já assinalada de que seja um formato pouco conhecido e pouco comum na América Latina não deve reduzir o seu emprego. Pelo contrário, este li-vro terá prestado um serviço útil se graças a ele mais educadores-comu-

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nicadores aprenderem a fazer documentários e reportagens especiais e se lançarem à exploração desta linguagem eficaz.

Um documentário é uma monografia radiofônica sobre um deter-minado tema. Cumpre no rádio uma função informativa um tanto si-milar à do documentário no cinema (os ingleses chamam de documen-tary, embora também usem a expressão feature). Podemos compará-lo também com o texto jornalístico mais aprofundado publicado junto a fotografias e ilustrações.

O documentário não é uma breve exposição sobre um tema – como o é, por exemplo, uma fala –, mas uma apresentação relativamente completa do tema. Dura em torno de meia-hora ou pelo menos 15 ou 20 minutos. Às vezes há documentários tão interessantes e tão variadas em recursos que chegam a 40 ou a 45 minutos sem que sejam entedian-tes ou excessivamente longos. Para tratar de um tema com essa exten-são não podemos fazer uma conferência ou colocar um locutor ou dois falando todo o tempo. É necessário empregar um conjunto de recursos e formatos, que vão cumprir, ao longo da exposição, o mesmo papel das fotografias e dos desenhos em um artigo ilustrado.

a) O documentário baseado em documentos vivos. Suponhamos que a proposta seja expor à audiência o problema dos ruídos na cidade. Gra-varemos sons reais: poremos nosso gravador nos cruzamentos de trá-fego mais barulhento, nas ruas de maior movimento etc. Realizaremos diversas entrevistas: com um engenheiro de trânsito, com um médico, com autoridades municipais, com o público que sofre com o barulho. Pediremos a um neurologista especialista na questão que nos ofereça uma breve declaração ou uma fala sobre as consequências que a polui-ção sonora tem para o sistema nervoso da população. Talvez organize-mos uma rápida mesa-redonda ou painel de vários peritos sobre o tema. Logo, selecionaremos (= editaremos) de todo esse material gravado as passagens mais significativas e relevantes. E, com todo esse conjunto de documentos, montaremos nosso documentário. Naturalmente, es-creveremos um roteiro, no qual um narrador conduzirá a exposição, encadeando os diversos documentos uns aos outros, comentando-os, concluindo.

De modo análogo, se desejamos fazer um documentário sobre a falta de água potável nos setores “marginalizados” da população, começare-

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mos por recolher documentos “de campo” – isto é, registrados in situ, no terreno. Iremos com o nosso gravador até a fonte de água nesse setor marginal. Lá, não só gravaremos o som da água caindo fracamente, gota a gota, nos recipientes de lata dos moradores, mas conversaremos com as pessoas, pedindo-lhes que contem suas dificuldades para conseguir água, as quadras que têm de caminhar desde as suas casas até o local de fornecimento e vice-versa, as vezes que se dirigem ao local sem encon-trar mais água disponível. Visitaremos seus lares e gravaremos suas de-clarações: vão nos dizer, talvez, que há anos pagam por uma hipotética instalação de rede de água encanada, mas que esta nunca foi instalada.

Isto vai nos levar à administração do serviço público de água enca-nada para indagar por que as instalações prometidas não foram reali-zadas. O médico do centro de saúde local vai nos falar sobre as conse-quências da carência de água potável para a saúde dos moradores do bairro: a proliferação de enfermidades infecciosas de origem parasitária, particularmente entre as crianças. Uma professora da escola do bairro poderá nos dizer quantas crianças se atrasam em seus estudos devido às enfermidades digestivas e nos indicar a queda no rendimento escolar devido ao permanente estado de debilidade dos meninos e meninas. No Ministério da Saúde, procuraremos estatísticas sobre a percentagem de lares da cidade que carecem de água potável; estatísticas sobre taxas de mortalidade e de sãos e doentes em geral e, especialmente, infantis. Talvez, com um pouco de malícia, pediremos também a um técnico um cálculo aproximado da água consumida diariamente nos bairros resi-denciais da cidade para abastecer piscinas e regar jardins. Chegaremos ao órgão de planejamento para perguntar o que está sendo feito para resolver o problema etc. E uma vez mais, com esse conjunto de docu-mentos, distribuídos em um roteiro que os une na voz de um narrador, produziremos nosso documentário.

Muitas vezes, como se pode notar, o documentário radiofônico ado-ta a forma de uma investigação. Vai inquirindo, indagando, à procura de saber mais sobre o tema (é a técnica que os italianos denominam inchiesta ou os franceses enquête jornalística). Uma entrevista dá uma pista e leva à entrevista seguinte. Um dado se encadeia com o que o se-gue. O condutor do programa começa quase como o ouvinte, sem saber muito do tema, mas à medida que sua investigação avança vai desco-brindo mais e mais. Há um pouco de “jornalista-detetive” na estrutura

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destes conteúdos. E o ouvinte acompanha o jornalista em sua explora-ção, aprendendo a relacionar as “pistas”. Se o produtor do programa é brilhante, seu documentário descreverá o problema e também procura-rá suas causas, o seu por quê.

Evidentemente, as entrevistas são o principal elemento de um docu-mentário; mas não o único. Inserem-se também ruídos reais gravados no local; falas ou declarações testemunhais; em algumas ocasiões, mini-painéis etc. Enfim, apela-se a todos os recursos documentais possíveis para ilustrar o tema e lhe dar uma apresentação variada e vivaz. Alguns roteiristas intercalam, às vezes, brevíssimos flashs dramatizados, com atores e narração sonora.

Outros documentários não se diferenciam muito do formato variado de uma radiorrevista. Mas todas as seções, em lugar de tratar de temas diferentes, abordam o mesmo assunto. Por exemplo: o presidente de um país irmão – que chamaremos de país Y – visita o nosso. Então, dedica-mos uma reportagem a esse país. Incluiremos extratos (ou fragmentos) gravados de um recente discurso do presidente visitante no qual apre-senta os esboços principais de sua política exterior; uma entrevista com um escritor destacado que participa da delegação visitante, sobre o mo-vimento cultural atual em Y; um comentário ou crônica sobre a educa-ção em Y, de como está sendo enfrentado o problema do analfabetismo; uma fala de uma compatriota que viveu longo tempo em Y com infor-mações sobre os costumes familiares naquele país, o papel da mulher, a influência da tradicional mentalidade machista etc.; uma entrevista com um dirigente cooperativista que visitou recentemente Y em função de um congresso e a quem entrevistaremos sobre o cooperativismo agrá-rio. Intercalaremos música também: canções típicas do folclore de Y.

Como se vê, através de um mosaico oferecemos várias facetas da vida atual no país ao qual consagramos o documentário.

Mas esta estrutura variada, embora se adapte bem para alguns temas de caráter panorâmico, não tem, certamente, a coesão e a força do docu-mentário-investigação descrito anteriormente, no qual, a partir de uma inquietação, de um desejo de saber, vamos indagando e aprofundando cada vez mais o tema.

b) O documentário baseado em reconstruções (narração com monta-gem). Suponhamos que nos proponhamos a apresentar uma reportagem

137Produção de Programas de Rádio

especial ou documentário sobre um fato histórico, acontecido há tempo. Por exemplo: a revolução que levou à declaração de independência do nosso país. É evidente que, aqui, não dispomos de documentos “vivos”.

Ou então desejamos fazer um documentário sobre um fato contem-porâneo, mas de outro país, como, por exemplo, a organização das al-deias comunitárias na Tanzânia. Aqui tampouco se dá a possibilidade de utilizar documentos “vivos”. Mesmo que dispuséssemos destes, não poderíamos utilizá-los. Um discurso do presidente Nyerere25 pode ser muito interessante, mas mesmo que tenhamos a gravação será no me-lhor dos casos em inglês.

Duas dificuldades se somam aqui: a distância espacial e a distância histórica. Como podemos, por exemplo, produzir um documentário so-bre a obra científica de Madame Curie26?

Podemos realizar uma dramatização sobre qualquer um destes te-mas. Mas nem sempre o tema tem substância dramática ou se presta a uma dramatização. O que nos propomos não é construir um drama, mas informar bem sobre um assunto, dar uma visão informativa. O rá-dio oferece-nos também recursos para fazer documentários sobre temas desta índole: é o tipo de documentário que chamamos de “narração com montagem”.

Voltando ao segundo exemplo: um discurso do presidente Nyerere não pode ser transmitido em sua língua original, mas pode ser traduzi-do e serem usados trechos na voz de um locutor ou mesmo de um ator que irá personificar o governante tanzaniano.

Utilizaremos, então, como em todo documentário, um narrador (ou uma dupla de narradores) que conduzirá a exposição do tema. E iremos intercalando diversos registros, não os gravados originais, mas usando vozes de atores ou de locutores. Assim, para a revolução da indepen-dência, poderemos reunir uma série de referências históricas: trechos de textos de personagens da época, discursos dos heróis da revolução etc.

25 Julius Kambarage Nyerere. Responsável pela união das antigas colônias de Tanganica e Zanzibar, que deram origem à Tanzânia. Presidiu o novo país desde a sua formação em 1964 até 1985, quando deixou a política [Nota da tradução].

26 Marie Curie. Cientista de origem polonesa que, por suas descobertas – junto com seu marido, o francês Pierre Curie – no campo da radioatividade, recebeu o Prêmio No-bel da Física em 1903, laurel também dividido com Antoine Henri Becquerel [Nota da tradução].

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Faremos uma boa seleção destes documentos e vamos inseri-los ao longo da narração. Serão como citações em um texto impresso. E, assim como citações podem ser colocadas em itálico ou negrito em um texto impres-so, aqui utilizaremos os recursos sonoros de colocá-las em outras vozes e, mesmo, se for o caso, com ressonância ou com um fundo musical.

Também necessitaremos de ilustrações, de gravações. Então, algumas breves cenas serão apresentadas dialogadas, dramatizadas e interpreta-das por atores. Reconstruiremos uma batalha com recursos sonoros. Como se vê, o relato montado utiliza alguns recursos do radiodrama (já dissemos que os formatos radiofônicos combinam-se e se mesclam entre si), mas se diferencia dele já que se centra no enfoque jornalístico e se baseia, como eixo, em um relato.

Para montar um documentário sobre Madame Curie recorreríamos também a referências: escritos da própria protagonista – passagens au-tobiográficas etc. –, lembranças e testemunhos de seus contemporâneos. Apelaríamos também a algumas breves cenas dialogadas como instantâ-neos sonoros. Acrescentaríamos música polonesa e francesa como mar-co musical evocativo.

Para falar das aldeias comunitárias da Tanzânia, contamos com os já mencionados extratos de um discurso alusivo de Nyerere, postos na voz de um ator; com crônicas de viajantes que visitaram essas aldeias e relatam suas impressões; com o testemunho de um habitante de uma destas aldeias, que compara sua vida de antes com a atual... Com esse relato, podemos construir uma entrevista imaginária, intercalando per-guntas pertinentes e fazendo com que os parágrafos de seu testemunho apareçam como respostas a essas perguntas (sim: uma entrevista tam-bém pode ser montada). Contamos deste modo com as canções dessas aldeias, tão sugestivas em sua música e cujo expressivo texto podemos traduzir, lendo-as em nosso idioma sobre as vozes do coro nativo, para que o ouvinte se inteire de seu significado e aprecie sua bonita mensa-gem comunitária.

12. O radiodramaNo capitulo 2 já analisamos extensamente as importantes vantagens

deste formato. É o mais ativo e, paradoxalmente, sendo na maioria das vezes ficção, o que mais se aproxima da vida real. Em lugar de um locu-tor narrando uma trama, os personagens ganham vida e falam por eles

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mesmos nas vozes dos atores que os encarnam. O enredo pode ser real ou imaginário, mas, em um ou outro caso, o ouvinte vai se sentir envol-vido por ele, identificado, consubstanciado com o problema que a peça dramática desenvolve e com os personagens que a vivem.

Se a obra “soar” como a vida real, se estiver relacionada com situa-ções, ambientes e feitos que são familiares ao ouvinte, será mais fácil manter a sua atenção com um radiodrama do que com qualquer ou-tro formato, sendo também mais fácil obter a participação intelectual e emocional desse ouvinte. Disto resulta que o radioteatro aparece como especialmente indicado para dois fins:

1) para expor um problema, para mostrar um conflito e colocar o ouvinte diante de uma opção;

2) para veicular uma mensagem.

Entretanto, esta mensagem deve ser sugerida, insinuada, estar implí-cita na ação dramática e surgir desta ação mesma. Um radioteatro que culmine com uma moral explícita e que desemboque em um sermão ou em uma arenga desvirtua-se e acaba sendo prejudicial. É o ouvinte quem deve extrair a mensagem sobre o que desejamos que reflita.

Podemos distinguir três tipos de programas realizados com radio-dramas:

a) Unitário. A ação começa e termina nessa única emissão. De modo semelhante ao que acontece em uma peça de teatro, os personagens não têm continuidade posterior: são criados em função dessa irradiação in-dependente. A peça radiofônica constitui uma unidade em si, não forma parte de um conjunto. Como gênero literário, equivale ao conto.

Mas se for necessário é possível organizar um conjunto de radiotea-tros unitários que tenha certa unidade, se as peças que o integram têm algo em comum. Por exemplo: “Histórias de jovens”. Ou se transcorre-rem em um mesmo cenário – por exemplo, um bairro popular –, embo-ra os personagens mudem a cada trama e os próprios enredos sejam de diversas temáticas e caracteres.

b) Seriado. Como no caso anterior, cada capítulo apresenta uma trama independente, que pode ser seguida e compreendida sem necessidade de haver escutado os capítulos anteriores (no máximo, se alguma histó-

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ria for muito extensa, é apresentada excepcionalmente em dois ou três capítulos). Mas há um personagem central ou um grupo de personagens que é fixo e permanente e dá continuidade à série. É o caso de séries tais como O padre Vicente (diário de um pároco de bairro), Meu tio Juan, Meu caminhão, as pessoas e eu (personagem fixo, o caminhoneiro), De braço com os Varela (personagens fixos, os membros da família Varela).

Às vezes, são a estrutura e a temática da série que vão caracterizá-la. Assim, na série “Trânsito em julgado”, não havia personagens fixos, mas em todos os capítulos eram apresentados casos judiciais reais que, im-plicitamente, convidavam ao ouvinte a formular seu próprio julgamento e a questionar a sentença ditada pelos juízes. Em uma série que dra-matize a história de um país, tampouco há um personagem fixo, mas, sem dúvida, o radiodrama é seriado porque se pode dizer que existe um personagem protagônico permanente, mesmo que inaudível e abstrato: o país mesmo, sua história. Além disto, os diversos episódios históricos terão sido selecionados com base em um determinado critério, o que imprimirá unidade ao conjunto, como vai dar também a forma de apre-sentar esses diferentes episódios.

c) Radionovela. A clássica novela em muitos capítulos, com uma trama continuada. É necessário escutá-la na integra ou quase na íntegra: caso se perca algum capitulo, é difícil tornar a seguir o argumento; se vários capítulos seguidos são perdidos, torna-se quase impossível. Além des-te inconveniente, faz-se muito mais difícil dar um caráter educativo a esta estrutura continuada, porque a necessidade de manter o “suspense” dramático e deixar o interesse pendente ao final de cada capítulo obriga a forçar as situações e leva o autor a cair facilmente na obviedade e até, por vezes, no melodrama.

Pelas razões citadas, para fins educativos, o mais recomendável dos três tipos de radiodramas é o seriado. Não exige escutar todos os ca-pítulos, não impõe um laço extremado como a radionovela, mas, ao mesmo tempo, possui personagens ou elementos permanentes que dão unidade ao conjunto, que, sem obrigar o ouvinte a uma sintonia fre-quente, motivam-no para seguir escutando o programa e fazem com que se identifique mais ainda com este programa. Assim, o radiodrama seriado estabelece com sua audiência uma comunicação mais durável, mais profunda e cálida que o radiodrama unitário.

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Não obstante, não há por que desprezar de todo a estrutura da ra-dionovela. A adaptação radiofônica de boas novelas da literatura na-cional, latino-americana ou universal ou a apresentação de vidas no-veladas (biografias) pode justificar e redimir seu emprego. Apesar de tudo, no século XIX, na época do grande auge do folhetim e das novelas publicadas em capítulos, vimos grandes escritores – um Dostoievsky, um Balzac – publicando suas magistrais criações, primeiro, na forma de folhetins em capítulos.

2. A prática dos formatos

A escolha do formatoQual formato devemos escolher para nosso programa?A resposta é: o que melhor se adapte à temática que nos propomos

tratar. Se os temas tiverem substância dramática, empreguemos o radio-drama; se forem mais expositivos (informação, divulgação de conhe-cimentos), optemos pela reportagem ou pelo diálogo didático ou pela entrevista. Em um ou outro caso, o importante é que imprimamos sem-pre variedade, que utilizemos os recursos radiofônicos. Que ponhamos inquietação, criatividade, para obter uma emissão dinâmica e interes-sante; que não caiamos na clássica e rotineira exposição monologada. Mesmo esta pode ganhar vida se empregarmos efeitos sonoros bem in-tegrados ao assunto, se intercalarmos fragmentos de entrevistas etc. Se buscarmos, em síntese, a elaboração radiofônica do nosso material.

Programas “caros” e “baratos”Como razão para justificar a não realização de programas dinâmicos

– tais como radiodramas ou radiorreportagens – muitas vezes se alega que são mais caros.

No caso dos radiodramas e de outros formatos afins, argumenta-se, além disto, que requerem atores e que, em muitos lugares, não se dispõe deles, por não existir ali uma tradição teatral.

Examinemos ambos os argumentos.

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Os custos. É certo que os programas dinâmicos são mais caros em ter-mos de dinheiro e de recursos humanos. Requerem mais pessoal e maior dedicação de tempo. Mas há que se considerar a relação custo-benefício.

Em rádio, como em todo meio de comunicação de massa, o custo real não é definido pelo orçamento da emissão em números absolutos, mas pelo custo relativo, per capita, resultante da divisão do montante do investimento pelo número de ouvintes alcançado (cobertura). Se um programa custar o triplo que outro, mas atrair e conseguir interessar a uma audiência seis vezes mais numerosa, seu custo real (custo per capita) será, em realidade, duas vezes menor. E se, além disso, como se viu, um programa dinâmico resultar tanto mais educativo, em termos de custo-benefício, teremos de avaliar também os resultados que deixa para essa audiência.

Em consequência, um bom programa pode custar mais, mas, em realidade, não ser mais caro e sim se constituir, pelo contrário, um in-vestimento mais econômico. Em função dos resultados, talvez seja pre-ferível limitar-se a produzir dois bons programas por semana do que oferecer, todos os dias, meia-hora de conteúdo rotineiro.

Por outro lado, muitos serviços de radioeducação talvez devessem rever os critérios com que elaboram seus orçamentos. Pode ser que, comparados com os recursos destinados a instalações técnicas, pessoal – serviços administrativos etc. –, estejam dedicando parcela muito pe-quena à produção. De nada vale ter uma grande emissora de muitos quilowatts se os programas que irradia são pobres e pouco interessantes. Uma redistribuição mais racional dos recursos permitirá atender me-lhor o item que deve ser o número um em todo planejamento orçamen-tário de rádio educativo e cultural: o destinatário dessa elaboração e a produção de boas emissões.

Nem sempre, então, é problema de falta de dinheiro, mas de equivo-cada distribuição dos recursos econômicos totais disponíveis. Não vale a pena gastar dinheiro na distribuição de um produto medíocre.

Os atores. A escassez de atores é também um fato muitas vezes real. Mas se não os temos, podemos formá-los. Não é necessário contar sempre com atores de rádio profissionais. Às vezes, para fins educativos, eles têm mais vícios que qualidades. Mas pode-se obter o apoio de atores de teatro independente. E talvez eles estejam dispostos a atuar por um pa-

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gamento bastante menor que os profissionais, fazendo com que o pro-blema do custo dos programas diminua em grande parte.

Se pedirmos a colaboração destes atores não profissionais para pro-gramas insípidos e pueris, dificilmente eles aceitarão. Se o convite for para atuar em programas com roteiros interessantes e com conteúdos que valham a pena, eles poderão encontrar para a sua atuação radiofô-nica o mesmo estímulo que os leva a fazer teatro (onde também atuam por vocação, sacrificadamente): o prazer de atuar para o público repre-sentando um bom texto e o de prestar um serviço à educação e à cultura populares.

Naturalmente, estes atores terão que aprender o ofício radiofônico, já que atuar por rádio é muito diferente de fazer teatro sobre um cená-rio. Bem orientados e guiados, seguramente quase todos conseguirão aprender.

Os concursos, os prêmiosPode ter talvez chamado a atenção a ausência, em nossa enumeração

de formatos básicos, de alguns que são comuns no rádio. Por exemplo: não mencionamos os programas de tipo “concurso”, com participação dos ouvintes e prêmios em dinheiro ou em mercadorias.

Este formato, com efeito, é comum em rádio, mas não o incluímos porque nosso propósito era o de recapitular os gêneros aptos aos fins educativos e culturais. Tais concursos com prêmios apresentam desde este ponto de vista as mais sérias objeções.

Até aqueles que acreditam ser educativos e culturais porque se apoiam no mecanismo de perguntas e respostas sobre temas de conhe-cimentos gerais premiam em realidade a erudição e a memória, não o verdadeiro saber; trata-se do arquivo mental de dados, nomes e datas, não a capacidade de raciocinar e de relacioná-los. Contribuem para dar uma imagem falsa e deformada do que é a verdadeira cultura.

Quanto à participação dos ouvintes, esta se transforma em uma pseudoparticipação, ilusória e puramente mecânica. Reduz-se a respon-der perguntas. A participação do ouvinte é certamente um dos objetivos que deve ser perseguido prioritariamente no rádio educativo, mas deve ser uma autêntica participação, aquela que permita aos setores popu-lares expressarem-se e dar uma contribuição realmente criativa a estas pessoas.

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Por outro lado, ao se apoiarem na disputa de prêmios, estes programas apelam a um dos mecanismos mais antieducativos: a competição indivi-dual. E, por consequência, a competição com fins de lucro. Vemos com preocupação o fato de que alguns programas educativos, para estimular a colaboração dos ouvintes, organizam concursos e oferecem recompensas econômicas. Se você realmente deseja fazer educação no rádio, considere bem o efeito deste recurso. Pode ser prejudicial e pôr a perder, em boa medida, o propósito educativo que seu programa persegue.

O educativo e o mercantil não se conjugam bem.

O humorTampouco, mencionamos explicitamente o humorismo. Caberia

fazer a pergunta: um programa educativo tem que ser sempre sério? Certamente que não. Pelo contrário, acreditamos que o humor bem di-rigido pode ser um recurso educativo válido e fértil.

Incluímos, dentro dos gêneros educativos, o radiodrama ou radio-teatro. E este não tem por que ser sempre necessariamente sério. Pode muito bem ser também uma comédia. Desde as suas origens, o teatro teve sempre suas “duas máscaras”, a trágica e a cômica. Pense-se no in-dubitável valor educativo das comédias de Aristófanes e Plauto que, aplicando o adágio (castigat ridendo mores), souberam fustigar os cos-tumes, ideias e atitudes de seus contemporâneos por meio da risada. Ou na demolidora eficácia com que Moliére ridicularizou e questionou em suas comédias os preconceitos e os falsos valores de seu tempo. E, já em nossos dias, quem pode negar que Charles Chaplin foi um dos grandes educadores do século XX? Muitas vezes, em uma breve tira de Mafalda, encontramos uma mensagem educativa questionadora formulada em um estilo agudo e contundente.

A piada, o chiste, a ironia, a sátira podem ser recursos educativos muito eficazes. Pode-se criar, por exemplo, um radioteatro hilariante e contundente, cujos protagonistas sejam os membros de uma família “moderna” que se deixa manipular pela publicidade e dominar pelos hábitos e padrões da sociedade de consumo, comprando a granel coisas desnecessárias, enchendo-se de dívidas para vestir sempre conforme a última moda; imitando ridiculamente em seu falar e em seu atuar os modelos impostos pela televisão, cujos filhos são fanáticos (“fãs”) de ídolos populares e vivem dependentes deles etc.

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Naturalmente, um roteirista que queira cultivar o humor tem que possuir os atributos necessários a esse gênero difícil. Uma piada cai muito bem se for mesmo uma boa piada; um gracejo pode ser um bom recurso se for mesmo um bom chiste. Assim como o radiodrama foi corrompido pelos maus relatos melodramáticos da soap opera, também o humor em rádio é muitas vezes abastardado por “programas cômicos” vazios de conteúdo, grosseiros, de mau gosto. Mas em mãos de um ro-teirista capaz de fazer humor com autêntica graça, com conteúdo e com sentido crítico, o humorismo e a comédia têm sem dúvida seu lugar no rádio educativo tal como aqui o definimos e o entendemos.

A relatividade dos formatosPara finalizar este capítulo, gostaríamos de insistir na necessidade

de você não se ater a uma rígida classificação de formatos. Já se viu o perigo e o engano de falar de “programas culturais” e de “programas de entretenimento” como categorias independentes. O mesmo vale para os formatos. É necessário conhecê-los para assim dispor de instrumentos variados de expressão e ter uma visão das distintas possibilidades ofere-cidas pelo rádio. Mas diferenciar em excesso os programas falados dos musicais, os jornalísticos dos radiodramatizados, como se fossem com-partimentos estanques não compatíveis, pode ter um efeito limitador.

Os formatos são relativos. Nem sempre se usam nem devem se usar quimicamente puros. Em mãos de um produtor criativo podem dar lu-gar a múltiplas combinações, difíceis de enquadrar em alguma classifica-ção, mas não por isso menos válidos. Por exemplo, o programa Jurado no 13, do qual incluímos alguns capítulos neste livro, é um radiodrama por seus recursos formais e tem muito de reportagem jornalística por seus conteúdos. É possível, pois, criar programas que se enquadrem em duas classificações, como no caso mencionado, dramáticas e jornalísticas.

Precisamente para ilustrar esta possibilidade de ser criativos acima das classificações e sublinhar a diversidade e as múltiplas possibilidades da linguagem radiofônica, o primeiro exemplo que apresentamos neste livro é um daqueles que resistem a um enquadramento em um dos 12 formatos-tipo previamente catalogados. É um programa musical e fala-do ao mesmo tempo. Utiliza e combina habilmente dois componentes: a música e a palavra, a canção e o radiodrama. Talvez, o mais exato seja dizer que emprega a palavra falada e a palavra cantada.

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A série Canções com sabor de vida incorpora a música já não como atmosfera ou ambientação de um drama, menos ainda na forma cor-rente em que se intercalam peças musicais e canções nos programas de variedades, como intervalos ou descansos. Nesta série, a canção passa a ser protagonista, elemento central. No repertório latino-americano atual27, existem muitas canções populares de texto sugestivo e conteúdo valioso; mas que, nesse ininterrupto “bombardeio” musical que o rá-dio descarrega sobre o ouvinte, podem passar um tanto despercebidas, converterem-se em uma melodia a mais a serem ouvidas sem que se escute a sua mensagem. A série propunha-se, então, a valorizar essas canções. Com tal finalidade, a autora criou para cada uma breve ação dramática inspirada no texto desta canção. Tal ação facilita a captação do significado da canção pelo ouvinte, de seu conteúdo e de sua mensa-gem, convertendo-a em estímulo para uma reflexão.

De uma só vez, o programa beneficia-se com a riqueza de uma lin-guagem tão expressiva e universal como é a musical, através da contri-buição de canções populares bem selecionadas e de formosa e inspi-rada melodia. A série é composta de 40 emissões de nove minutos de duração, das quais o exemplo incluído aqui corresponde à canção do argentino Horacio Guarani “No sé por qué piensas tú”, sobre os conhe-cidos versos do poeta cubano Nicolás Guillén. Naturalmente, a leitura do roteiro só dá uma pálida ideia do programa: pelo papel que joga aqui a música, só é possível apreciar o conjunto quando escutado e não lido; mas isto mesmo confirma sua condição de obra radiofônica, criada para um meio auditivo. Transcreve-se aqui o texto integral da emissão28, com sua apresentação ou abertura, que iniciava cada um dos capítulos e que incluía uma estrofe recitada do poema “El payador perseguido”, trans-crita na voz de seu autor, o conhecido compositor e intérprete argentino Atahualpa Yupanqui.

27 Segunda metade da década de 1970 [Nota da tradução].28 Nesta tradução, manteve-se em espanhol os trechos de canções transcritos

no roteiro e irradiados na voz de seus intérpretes. A versão para o português encontra-se nas notas de rodapé [Nota da tradução].

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Exemplo 1 – Radiodrama musical

“No sé por qué piensas tú”

Série: CANTOS COM SABOR DE VIDA

Transmissão: 13

Autora: Ana Hirsz

Produção: SERPAL

Disco: SERPAL N° 3004 – Lado A, Faixa 1

Duração: 8’28”

PERSONAgENS– Narrador– Soldado– Operário

TÉCNICA

INTRODUÇÃO DE VIOLÃO: FRAgMENTO DE “EL PAYADOR PERSEgUIDO”, DE ATAHUALPA YUPANgUI – SOBRE O VIOLÃO SE OUVE A VOZ DE YUPANOUI (TRANSCRIÇÃO)

YUPANQUI Dicen que no tienen cantolos ríos que son profundos,mas yo aprendí en este mundoque el que tiene más hondura,canta mejor por ser hondoy hace miel de su amargura.1

(1)

TÉCNICA SOM DO VIOLÃO DESCE, CORTA E FUNDE COM SEgUNDA TRILHA DE VIOLÃO FRAgMENTO DE “PAISANO ERRANTE”, DE ATAHUALPA YUPANgUI, DESCE E FICA NO FUNDO.

LOCUTOR Este é um programa da série “Canções com sabor de vida”.

TÉCNICA FUNDE COM TRILHA “LA CUARTELERA”, ZAMBA TRADICIONAL POR E. FALU (VIOLÃO), BAIXA E FICA NO FUNDO

(2)

LOCUTOR Hoje, “No sé por qué piensas tú”, versos de Nicolás guillén, música de Horacio guarani.

TÉCNICA SOBE VIOLÃO, BAIXA E CORTA SOBREPONDO:

EFEITO gRANDE TUMULTO (gRITOS, CORRERIAS, gOLPES, APITOS). BAIXA E FICA DE FUNDO EM 2º PLANO. DURANTE O RELATO, SOBE EM ALgUNS MOMENTOS.

148 Mario Kaplún

NARRADOR É uma rua qualquer, de uma cidade qualquer de nossa convulsionada América. Uma vez mais, os homens se enfrentam. De um lado, os representantes da lei. Da lei? De que lei? Da lei do mais forte? Do mais poderoso? Do outro lado: o povo. O povo que trabalha, que sofre, que nunca tem bastante pão. Sim, é uma rua qualquer de qualquer cidade da nossa América. Dois homens se enfrentam. Por que se enfrentam? É que são diferentes? É outra sua cor? É outra sua origem? É outra sua vida? Não, são iguais. Iguais na cor, iguais na origem, iguais na pobreza. No entanto, na mão de um, há uma pedra prestes a ser atirada. Na do outro, uma arma pronta para ser usada.

(3)

EFEITO VOLTA PARA O PRIMEIRO PLANO (O TUMULTO). DE REPEN-TE, UM DRAMÁTICO gOLPE MUSICAL DE VIOLÃO O DETÉM E, NO SILÊNCIO, SE OUVE A RESPIRAÇÃO ENTRECORTADA DOS DOIS HOMENS QUE LUTAM. (4)

SOLDADO Solta essa pedra, filho da puta!

OPERÁRIO Solta essa sua arma, caralho!

EFEITO RESPIRAÇÃO ENTRECORTADA. gRITO DE DOR DO OPERÁ-RIO. CORPO QUE CAI NO CHÃO.

SOLDADO Te disse pra soltar, filho da puta! (pausa curta. Que tá me olhando? Quer que te arrebente as fuças também?

RELATOR Sim, dois homens estão se enfrentando: um, o representante da lei, com uma arma em punho, disposto a seguir batendo. O outro, caído no chão, com o braço quebrado, olhando, olhando esse homem: “seu irmão”. Que há no olhar do operário caído que detém a arma do soldado?

SOLDADO (com uma raiva em que começa a brotar a dúvida)Por que me olhas assim? O que queres?

CANTOR (a capela, sem acompanhamento, cantando) No sé por qué piensas tú, soldado, que te odio yosi somos la misma cosa,yo, tú.Tú eres pobre, lo soy yo,soy de abajo, lo eres tú.De dónde has sacado tú,soldado, que te odio yo.2

(5)

SOLDADO (repete agora com certa angústia)Por que me olhas assim? O que queres?

OPERÁRIO Não me conheces?

SOLDADO Sim, te conheço muito bem. És um dos que estavam causando pro-blemas na frente da fábrica.

OPERÁRIO Não me conheces? Não te lembras de mim?

149Produção de Programas de Rádio

SOLDADO Não, não te conheço. Mas não... espera. Me parece que sim... Me parece que nos conhecemos há muitos anos.

OPERÁRIO Sim, faz muitos anos, quando os dois éramos crianças ainda.

SOLDADO Sim, agora me lembro, quando vivíamos...

OPERÁRIO ...na periferia. Tu e eu, juntos. Lembras?Tínhamos fome. Íamos juntos nos bairros dos ricos para conseguir comida. Nós éramos, então, muito pobres. Agora, ao contrário.

SOLDADO Agora, o quê? Eu sou pobre e continuo vivendo lá. E tu?

OPERÁRIO Eu também. Só que, agora, tenho filhos e são eles que têm fome.

RELATOR Dois homens, um com uma pedra na mão. O outro com uma arma. (lentamente) Estavam falando, estavam recordando... e estavam descobrindo que eram irmãos. (6)

TÉCNICA VIOLÃO INTERROMPE COM A INTRODUÇÃO DA CANÇÃO (7)

CANTOR (agora com o acompanhamento do violão)No sé por qué piensas tú, soldado, que te odio yosi somos la misma cosa,yo, tú.Tú eres pobre, lo soy yo,soy de abajo, lo eres tú.De dónde has sacado tú,soldado, que te odio yo.Me duele que a veces tú te olvides de quién soy yocaramba, si yo soy tú lo mismo que tú eres yoPero no por eso yohe de malquererte tú.Si somos la misma cosa,yo, tú.No sé por qué piensas tú,soldado, que te odio yo.Ya nos veremos yo y tú,juntos en la misma calle,hombro con hombro tú y yo, sin odios ni yo ni tú,pero sabiendo tú y yoadonde vamos yo y tú.No sé por qué piensas tú,soldado que te odio yo3

TÉCNICA TRILHA “La CUARTELERA”. DESCE E FICA NO FUNDO

LOCUTOR Este foi um programa de série “Canções com sabor a vida”, apre-sentado pelo SERPAL. Hoje, com “No sé por qué piensas tu”, can-ção de Horacio guarani sobre versos do poeta Nicolás guillén.

TÉCNICA SOBE VIOLÃO E, DEPOIS, DESCE ATÉ CORTAR

150 Mario Kaplún

ComentáriosEis aqui um exemplo de como em apenas oito minutos é possível

passar uma mensagem profunda em uma ação radiodramatizada, em que se conjugam canção, personagens dramáticos, efeitos sonoros. Pon-tos a destacar no roteiro:(1) A transcrição, um recurso típico da radiorreportagem, cumpre aqui

uma função artística. Outro pequeno exemplo que ilustra a combi-nação de recursos e formatos.

(2) Uma apresentação de programa musicalmente complexa e rica, combinando três temas musicais diferentes. A unidade é dada pelo instrumento executado nos três fragmentos utilizados – o violão – e pelo uso de trilhas de uma mesma região geográfica.

(3) Uma ordenação que parecia reiterativa adquire ao trocar o último substantivo e aparecer a palavra “pobreza”. Toda a frase parece assim preparada para valorizar essa palavra, que exerce papel muito im-portante no diálogo posterior, como na canção de Guillén-Guarani.

(4) Depois do tumulto, agora a respiração entrecortada dos dois homens que lutam e que cobram toda sua força em meio ao tenso silêncio. De um plano general, vamos a um primeiro plano. Depois de “mostrar-mos” uma multidão anônima e sem rosto, o microfone coloca-nos, agora, ante a dimensão humana do operário e do soldado.

(5) No meio do enfrentamento, a voz do cantor (a capela) responde a essa raiva do soldado “em que começa a brotar a dúvida”. A canção fala pelo operário caído no chão e fala pelo ouvinte, que se identifica com ela. Diz em poesia e arte o que a situação humana exige e vinha preparando.

(6) As últimas palavras do narrador fecham a cena sobriamente. Dizem tudo. Não é preciso acrescentar mais nada. Não há um “final”: é o ou-vinte que vai viver a situação, senti-la, refletindo sobre a mensagem.

(7) Imediatamente sobre as palavras finais do narrador, irrompe o vio-lão com a introdução da canção, que aqui funciona como “cortina musical”. Deste modo, integra a própria canção conceitual e emocio-nalmente a ação que a precedeu e que preparou o terreno para que esta adquirisse, agora, toda a força da sua mensagem de fraternidade humana.

151Produção de Programas de Rádio

Nota importantePara aprender fazer rádio, é fundamental ouvir rádio. Daí a conve-

niência de que o estudante não somente leia os roteiros incluídos neste livro, mas que possa também escutá-los gravados. Com o objetivo de possibilitar esse aprendizado, para a maioria dos exemplos que incluí-mos nesta obra, selecionamos programas que estão gravados e cujas gravações são possíveis de obter29.

Uma vez obtida a gravação, a melhor forma de realizar um estudo proveitoso é ouvi-la acompanhando o texto, desempenhando simulta-neamente a escuta e a leitura. Assim, se observa a forma que o roteirista indicou os detalhes do diálogo e os efeitos que se está escutando e, da mesma forma, como a gravação efetiva, mediante diferentes técnicos, as intenções do autor.

29 A maior parte dos exemplos citados foi produzida pelo próprio Mario Kaplún para o Serviço Radiofônico para a América Latina, SERPAL. Deste modo, no texto ori-ginal, Kaplún indica que os interessados entrem em contato diretamente com os representantes do SERPAL em cada país ou, por correio, com a sede na Alemanha. Atualmente, é possível escutar os citados programas em dois endereços eletrônicos: 1) no repositório da Radioteca – https://radioteca.net/userprofile/serpal; e 2) no repositório da Associação Radialistas Apaixonadas e Apaixonados – https://radia-listas.net/category/serpal. Ambos permitem explorar o acervo, escutando os pro-gramas online ou baixando os arquivos [Nota da tradução].

152 Mario Kaplún

Capítulo

6Música, Som, Efeitos

O rádio – ainda que falado – não é apenas palavra. É também música e sons. Já vimos (no Capítulo 2) que o rádio é particularmente sugesti-vo e que devemos usar este poder de sugestão que é próprio do meio. Foi também demonstrado que, para compensar a unisensorialidade do meio, é necessário suscitar em nossas emissões uma variada gama de imagens auditivas. Através da audição, temos de fazer o ouvinte ver e sentir as coisas.

Pois bem: na produção dessas imagens auditivas, a música e os sons serão nossos dois preciosos auxiliares. Os sons nos ajudarão para que o ouvinte “veja”, com sua imaginação, o que desejamos descrever; a músi-ca, para que sinta as emoções que tentamos lhe comunicar.

1. A músicaFunções da música

a) Função gramatical (como signo de pontuação). Em programas ex-positivos (por exemplo, uma reportagem radiofônica), colocamos tre-chos de música para separar seções ou blocos de texto, para passar de um assunto a outro.

Uma frase musical longa tem a mesma função que a linha ou a mar-cação que traçamos entre duas passagens de um texto para indicar que encerramos um aspecto de nosso tema e nos dispusemos a passar a ou-tro (daí que em alguns países essas inserções musicais sejam chamadas de apóstrofes). Dessa maneira, ao mesmo tempo em que damos uma

153Produção de Programas de Rádio

pequena pausa ou “trégua” ao ouvinte, o advertimos que “vamos mudar a página”, para que ele se prepare mentalmente para uma mutação.

Outra frase musical mais curta cumprirá a função de um ponto à parte: separar dois parágrafos do mesmo bloco ou seção.

Nos radiodramas, igualmente, a música separa as cenas, marca os traslados de lugar e/ou as transações de tempo. Atua, pois, como o pano que baixa no teatro entre um ato (ou cena) e o seguinte. É por isso que, mal traduzindo a palavra inglesa curtain, que significa cortina, mas também pano, se chama a essas separações “cortinas musicais” (sua de-signação mais apropriada seria “pano musical”).

Em suma, a música é intercalada para marcar as diferentes frações que compõem a emissão e para distinguir umas frações das outras.

b) Função expressiva. Ao mesmo tempo em que separa cenas ou passagens, a música comenta o que é escutado, ajudando a criar um clima emocional. Esta é a função principal da música em programas falados: criar uma atmosfera sonora. A cortina que finaliza uma cena pode ser alegre ou triste, agitada ou calma; lírica ou épica; tensa, vivaz, melancólica, fúnebre; sugerir esperança ou abatimento; dar sensação de luminosidade ou de sombra. Tanto ou mais do que em um filme, o co-mentário musical ajuda a criar em torno das palavras o ambiente pecu-liar necessário para causar no ouvinte uma determinada identificação emocional.

Daí a necessidade de que, em nossos roteiros não nos limitemos a in-dicar meramente “música” ou “cortina musical”, mas que tornemos pre-ciso o que queremos que a música expresse, o caráter do comentário mu-sical que se requer, a atmosfera determinada que essa cortina deve criar.

A música não só enfatiza o clima emocional das situações, mas tam-bém o caráter dos personagens: uma cena onde predomina um perso-nagem serviçal, solidário, fraternal, ficará bem com um tema musical de nobreza simples, imbuído de certa ternura; em outra situação onde apresentamos um tipo garboso, afetado, cheio de melindres, pode ser sublinhado ironicamente com um minueto cortesão, do Século XVIII...

Naturalmente, é no radiodrama que a música emprega mais essa função expressiva; mas, às vezes, também, uma reportagem radiofônica, um relato com montagem, um testemunho etc. se beneficiam com essa atmosfera que a música sugere.

154 Mario Kaplún

c) Função descritiva. A música não só expressa estados de ânimo, mas, muitas vezes, nos descreve uma paisagem, nos dá a ambientação de um lugar. Se quisermos localizar a cena em um determinado país, em uma época passada, a música típica dessa época ou lugar nos ambientará e si-tuará. Para uma cena à beira-mar, talvez a música descritiva e poética de O Mar, de Debussy, fará o ouvinte sentir a atmosfera marinha. A alegria monótona de uma fonte com seus jatos de água poderá ser descrita com um trecho bem escolhido de As fontes de Roma, de Respighi; o aspecto guerreiro e marcial de um exército marchando será pintado pela música de A via Ápia, do mesmo autor.

Às vezes, a música descreve tão bem uma sensação sonora que chega, inclusive, a substituir com vantagem o som real, e a torná-lo desnecessário. A música do balé A Fundição de Aço diz mais do que o som real gravado nas máquinas de uma fábrica; a passagem de um pequeno trem rural está muito bem musicalizada por Villa-Lobos, na segunda das suas Bachianas Brasileiras.

d) Função reflexiva. Além disso, essas pausas musicais que introduzi-mos como signos de pontuação e, às vezes, como comentários emocio-nais, servem também para que o ouvinte tenha tempo de recapitular o que acabou de ouvir e pensar sobre isso, antes de continuar ouvindo a história ou a exposição. Às vezes, em um radiodrama, depois de uma cena em que os personagens discutiram e se a discussão é rica em con-teúdo, colocamos uma cortina musical mais demorada para que o nos-so público pense por um momento sobre o que terminou de ouvir. O mesmo fazemos em uma radiorreportagem em que, numa entrevista, o entrevistado disse coisas novas e importantes. Vamos preferir, em tais casos, temas musicais mais lentos e planos – adágios, andantes –, que convidem à reflexão e a favoreçam.

e) Função ambiental. Para completar esta lista, nos resta acrescentar que, às vezes, colocamos música porque a cena real que estamos repro-duzindo a contém. Por exemplo, se nossos personagens estão em uma festa e dançam, devemos ouvir a música em cujo compasso eles dan-çam; se estão em um concerto, ouviremos a música que é executada ali; se estão em um parque de diversões, é natural que escutemos a música do carrossel ou do circo.

155Produção de Programas de Rádio

Em tais casos, a música é um som do ambiente. Mas, às vezes, nem por isso deixa de contribuir para a atmosfera que desejamos criar. Se nossos personagens estão conversando em um bar e há um rádio ligado, a música popular que é transmitida neste momento pode ser, à nossa es-colha, animada ou melancólica, segundo o clima com o qual queremos cercar a conversa. Se alguns rapazes estão reunidos na esquina e um deles começa a tocar uma gaita, pode-se tocar música triste ou alegre, dependendo da situação e do diálogo entre eles.

Em um dos capítulos do programa Jurado no 13, um bairro humilde celebra com alegria um evento: o filho de um dos vizinhos recebeu o diploma de advogado. Na cena da festa, em meio às vozes animadas e felizes de todos, se ouve a música de um acordeão tocando um tema popular vivo e alegre. Mas, posteriormente, o jovem desaponta as espe-ranças do bairro: impulsionado pela ambição de subir posições e “fazer carreira”, rompe com seus velhos amigos, ignora os problemas de seus vizinhos, se envergonha de seus pais. E, neste momento, reaparece o acordeão tocando o mesmo tema da festa, mas agora em tempo lento e com tonalidade triste. Assim, a música mostra como a alegria desses pais e de seus vizinhos se transformou em decepção, em amargura, em frus-tração. A música ambiental assume, agora, uma significação expressiva.

Tipos de inserções musicais

Característica: um tema musical apropriado que identifica o programa. Também chamado de vinheta do programa. É exibido no início de todas as emissões e, geralmente, também no fim, no encerramento. É o logo-tipo, o timbre do programa; sua máscara sonora e, geralmente, também sua contracapa.

Introdução ou abertura: Traz o anúncio da apresentação, às vezes, ao entrar na matéria, abrimos a transmissão com um tema musical. É como levantar o pano. Ao mesmo tempo, comunica a atmosfera da emissão ou da sua cena inicial.

Encerramento musical: Música que fecha a emissão. É como o ponto final de um texto, como o abaixar do pano ao final da peça, como a palavra «Fim» ao término do filme. Geralmente, se usam os compassos finais de uma obra musical; mas se não se consegue um final de obra que

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combine com a atmosfera da última cena, se recorre a uma passagem adequada que tenha caráter de finalização e que sirva para arrematar e fechar a emissão.

Cortina musical. Nós já fizemos esta caracterização: separa cenas ou blocos, enquanto acentua a atmosfera, o clima emocional; comenta musicalmente a cena ou passagem.

Ponte musical. É mais breve que a cortina; por sua brevidade, não se espera que crie uma atmosfera, mas apenas que indique uma transição de tempo ou mudança de lugar. Uma vez que, como veremos adiante, nunca se deve mutilar uma frase musical, não serve para fazer esta pon-te uma parte de uma frase, mas sim uma frase inteira, porém curta, de poucos compassos. Às vezes, se recorre a um arpejo de harpa ou um teclar de piano. Como a ponte não tem uma função expressiva espe-cífica, é preciso ter cuidado para que não destoe do caráter das cenas que envolve: uma frase musical curta, mas alegre e frívola não é a mais adequada no meio de duas cenas sérias.

Rajada. Como o nome sugere, um fragmento breve, rápido e ágil, geral-mente para assinalar uma curta transição de tempo.

Golpe musical. Um acento ou sublinhado musical: um golpe de tambor ou de pratos, um tutti de orquestra, um acorde seco de violão. Seu uso, raras vezes se justifica: geralmente resulta em efeito exagerado, artificial, grandiloquente.

Transição. Precisamos ligar duas cenas de caráter diferente, por exem-plo, passar de uma intensa e emotiva para outra alegre; ou de uma si-tuação lenta a outra ágil e rápida. Por um lado, desejamos prolongar o efeito de cena anterior e, por outro, preparar a seguinte e enfatizar o contraste entre ambas. Buscamos, nesse caso, uma passagem musical de transição, que dê sucessivamente ambas as atmosferas, ou seja, que passe de uma a outra.

Fusão ou mistura. Como é muito difícil encontrar um trecho musical que faça a mudança de um clima a outro, pode-se construir a transição mediante a combinação ou mistura de dois temas musicais diferentes: vai-se diminuindo gradualmente o volume do primeiro tema, ao mesmo tempo em que se vai elevando suavemente o segundo. Chega o momen-

157Produção de Programas de Rádio

to em que o tema inicial desaparece e somente se escuta o novo tema que o sucede e substitui. É um recurso um tanto retórico e artificial.

Outra forma de misturar consiste em combinar um golpe musical com uma cortina. Apela-se a esse recurso quando se quer terminar uma cena com um golpe vigoroso, e em seguida, continuar com um clima musical que comente a situação. Como nem sempre é fácil conseguir que uma cortina que tenha a atmosfera musical necessária já comece com um golpe, se toma o golpe de uma obra e se mistura com um tema musical de outra.

Tema musical. Tema característico de um personagem, de um gru-po ou de uma situação. Aparece várias vezes durante a transmissão, como leit-motiv. Assim, teremos “o tema de Pedro” e vamos colocar, seja como cortina, seja no fundo, toda vez que quisermos enfatizar o reaparecimento de Pedro, ou mesmo evocá-lo em sua ausência. O tema é a definição musical desse personagem ou dessa situação; é des-necessário assinalar, portanto, que o tema deve ser cuidadosamente selecionado.

Fundo musical. Música ouvida em segundo plano, ao fundo das pa-lavras. As radionovelas românticas abusam dos fundos musicais até a vulgaridade; é um recurso válido, mas deve-se saber usá-lo com critério, moderação e bom gosto. A música de fundo é usada:

Em uma história ou fala extensa que, por algum motivo, se deseja ex-pressamente destacar. Em tais casos, o fundo musical serve para colocar essa passagem “em itálico” ou “em negrito”. Retira, separa a passagem do restante.

Para dar emoção e relevo a uma situação dramática que se deseja enfatizar especialmente: um fundo musical triste, nostálgico, sombrio, ou bem plácido, luminoso, sublinhará o clima da cena. Ressaltamos que, nessa função expressiva, é preciso medir o seu uso e reservá-lo somente para momentos particularmente significativos.

Como música incidental, para ambientar certa situação real: a músi-ca em um baile, em uma igreja, em um circo etc.

É claro que não há nenhum propósito ou sentido em colocar um fundo musical em uma fala expositiva ou em um diálogo didático. No entanto, muitos programas educativos e culturais recaem neste vício.

158 Mario Kaplún

Quanto tempo deve durar uma cortina?Alguns roteiristas indicam a duração das cortinas em segundos: pe-

dem, conforme o caso, quinze, dez ou cinco segundos de música.Tais indicações delatam, nesses roteiristas, uma ideia mecânica do

uso da música. Ninguém pode decretar, a priori, quantos segundos vai durar uma inserção de música, porque ela depende da frase musical, que deve ser sempre respeitada e que nunca se pode mutilar ou cor-tar abruptamente. Uma frase que se mutila, não serve como pausa, mas como uma fonte de ruído: o ouvido do ouvinte fica à espera, consciente ou inconscientemente, aguardando o final da frase.

A única postura correta que caberá ao diretor, será ignorar essa indi-cação. Além disso, para colocar cinco segundos de música, é melhor não colocar nada: não há frases musicais que durem apenas cinco segundos.

É preferível, portanto, limitar-se a indicar «cortina musical»; se a deseja especialmente extensa, «cortina longa»; se mais curta, «ponte musical»; se ainda mais breve e ágil, «rajada». Mas, quantificar os cortes musicais em segundos, é sem propósito.

Notação de intensidadesNão só devemos indicar o caráter da música que queremos, mas

também, em muitos casos, a intensidade e o volume com que a inserção musical deve ser manejada.

Normalmente, não se opera a música com um volume constante. Uma cortina musical deve começar em nível baixo e depois subir grada-tivamente até atingir seu volume normal. É o que é chamado de fade-in ou crescendo. Podemos mostrá-lo num gráfico assim:

Também é comum que a cortina musical não deva ser cortada drasti-camente, mas o seu nível deve desvanecer-se, diminuindo gradualmente até desaparecer. Esse efeito de diminuir é chamado de fade-out.

159Produção de Programas de Rádio

Geralmente, duas coisas acontecem: a música vai crescendo e termi-na desvanecendo:

Não é necessário que indiquemos essas graduações de volume no script, porque, como já foi dito, são normais e todo operador, com me-diana experiência, as fará sem necessidade de especificação. Devemos, sim, nos familiarizar com as noções de crescer e desvanecer (fade-in e fade-out), porque se aplicam não apenas à música, mas também ao som e a voz, como se verá mais adiante.

Há casos, no entanto, em que devemos indicar mudanças de volumes musicais. Por exemplo, quando queremos que a entrada da música seja feita de forma muito gradual e suavemente, muito lentamente (steal-in):

Neste caso, indicamos:TÉCNICA ENTRA SUAVEMENTE CORTINA MUSICAL

Da mesma forma, quando queremos que a música se desvaneça mui-to lenta e suavemente, que vá terminando muito gradualmente (steal--out):

Indicaremos assim:TÉCNICA CORTINA MUSICAL / CORTA SUAVEMENTE

Vejamos outras notações frequentes relacionadas com as alterações de volume:

TÉCNICA TEMA MUSICAL / BAIXA E CAI PARA FUNDO

160 Mario Kaplún

O tema de apresentação abaixa e permanece de fundo enquanto o locu-tor apresenta e anuncia o programa. Após o anúncio:

TÉCNICA TEMA MUSICAL / SOBE E FINALIZA

Ou sobe e desaparece (fade-out), para dar lugar às palavras que dão início à emissão do dia. Ou, também, se deseja-se abrir a emissão com tema da introdução:

TÉCNICA CARACTERÍSTICA / FUNDIR COM TEMA SUAVE DE INTRODUÇÃO TRANQUILO E ALEGRE

Além disso, é claro, a música de fundo deve ser indicada. Na linha em que queremos começar o fundo, colocamos:

TÉCNICA ENTRA FUNDO MUSICAL BRILHANTE E ESPERANÇOSO

É bom indicar também desde qual momento deve continuar o fun-do, de onde desejamos que termine e desapareça, especificando na linha apropriada:

TÉCNICA CORTA FUNDO

Às vezes, queremos que uma música que abre uma cena como cor-tina, se prolongue e permaneça tocando, ou seja, de fundo, durante a cena, enquanto os personagens falam. Nossa indicação será:

TÉCNICA CORTINA MUSICAL TERNA / BAIXAR SUAVEMENTE E DEIXAR DE FUNDO

Obviamente, indicaremos também até qual momento da cena dese-jamos que continue esse fundo.

Também é frequente o contrário: que o tema que introduzimos du-rante a cena como música de fundo, suba e seja o que finalize e culmine a situação, funcionando como cortina. A notação, neste caso, deve ser:

TÉCNICA SOBE SUAVEMENTE O FUNDO COMO CORTINA

161Produção de Programas de Rádio

Música sempre?Se é um erro abrir mão de um auxiliar tão valioso como a música,

que traz uma riqueza de imagens auditivas tão expressivas, também é errado colocar música em excesso, ou colocá-la indiscriminadamente, só por colocar.

Mesmo como parte de um drama – o formato em que a música de-sempenha um papel mais específico – cortar a ação a cada momento com cortinas, pontes ou rajadas, acaba saturando e distraindo o ouvinte.

Para separar uma cena de outra, nem sempre é indispensável uma inserção musical. Assim como no teatro, nem sempre se abaixa o pano entre os quadros e, por vezes, é suficiente o escurecimento do palco, também no rádio a separação pode ser feita com um simples silêncio, uma pausa entre as cenas. Se as vozes desvanecem sobre as últimas pa-lavras da cena, indicando afastamento, deixamos uns poucos segundos de silêncio e logo abrimos o microfone em fade-out sobre as vozes da cena seguinte.

Se a cena termina com som (por exemplo, passos), a separação se torna ainda mais clara: desvanecemos esses passos, estabelecemos um breve silêncio ou pausa e podemos começar a próxima cena, sem qual-quer separação musical. O mesmo pode ser feito se a cena tiver música ambiental: se eleva essa música ao primeiro plano, então ela se desva-nece e ocorre uma breve pausa, então se passa à cena seguinte; esta, por sua vez, começa com um som (por exemplo, barulho de trânsito na rua), podemos começar com esse som entrando em fade-in. Vejamos um exemplo:

TÉCNICA PASSOS DIMINUEM / PAUSA / ENTRA SUAVEMENTE RUÍDO DE TRÂNSITO

Especialmente se for uma sucessão de cenas curtas, o melhor é sepa-rá-las assim, com silêncios e, eventualmente, sons que baixam e sobem, do que usar inserções musicais exaustivamente frequentes.

Se isso acontece com o radiodrama, gênero que por seu conteúdo emocional é mais propício ao uso da música, a utilização em outros for-matos informativos ou expositivos deve ser encarada com cautela ainda maior. Aqui não se trata apenas da quantidade de música, mas, sobretu-do, da razão do seu uso. A música é um bom recurso quando está ali por alguma razão; mas utilizada de forma arbitrária, sem uma razão válida, deixa de ter sentido e, além disso, torna-se contraproducente.

162 Mario Kaplún

É bastante generalizado o costume de intercalar cortinas musicais em meio a uma aula ou fala expositiva. A cada tantos parágrafos a conversa é cortada, dando lugar a alguns compassos de uma música qualquer: uma cortina geralmente aleatória, sem nenhuma relação com o assunto da conversa e, pior, repetida mecanicamente. Sempre a mesma. Acredita-se que, assim, se ameniza a fala e se dinamiza e dissimula a monotonia do monólogo. Usada dessa forma mecânica e rotineira, a música não expressa nada, não acrescenta qualquer valor para a emissão, não a acompanha nem a enriquece, mas torna-se um enxerto estranho. Ao invés de entreter, aborrece e distrai o fio da exposição. Como observado por John Vodden, da BBC, referindo-se a programas educativos brasileiros, «é música que se repete sem soar absolutamente nada». Com razão, Vodden opina que, se uma fala é monótona, não deixa de sê-lo porque nela se inserem arbitrariamente pedaços de música; a única solução válida é a de transformar aquela conversa, tornando-a interessante por si mesma.

É, talvez, ainda mais censurável o hábito que existe em alguns países latino-americanos de colocar música de fundo nas falas expositivas e nos diálogos didáticos. Essa música tocando constantemente em segundo plano só serve para distrair e dificultar a atenção e a reflexão do ouvinte.

A intercalação de peças musicaisTambém é comum o uso de música com uma função recreativa: du-

rante a emissão se introduzem dois ou três “descansos” ou intervalos, nos quais se passam peças musicais populares (canções, músicas de dan-ça); muitas vezes, qualquer música escolhida ao acaso, sem se preocupar com suas implicações educativas. Assim, em um programa da América Central sobre um problema social grave e importante – a posse da terra e a necessidade de uma reforma agrária – foi interrompido o diálogo para tocar uma música rancheira cuja letra clama: “A mulher que eu quis me deixou por outro / eu segui seus passos e matei os dois...” (sic).

Mas deixando de lado as incongruências de conteúdo, é o costume mesmo de inserir peças musicais o que se questiona. Os produtores de rádio modernos discordam desta prática, muito comum nos primeiros tempos de radiodifusão educativa, mas que hoje tende a desaparecer. Atualmente, os programas educativos e culturais são considerados como um serviço, em que não se justifica desperdiçar os escassos e preciosos

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minutos disponíveis para colocar música de entretenimento. O ouvinte tem a oportunidade de ouvir esse tipo de música o dia todo (o rádio está saturado dele); ao sintonizar um programa educativo está à procura de outra coisa e não deseja nem necessita de distrações adicionais.

Se o programa for bem feito, se é leve e interessante, não somente não precisa de intervalos ou descansos musicais, pelo contrário, estes vi-riam só perturbar e seriam contraproducentes. A sua intercalação seria forçada; distrairia, interromperia a exposição do tema e tiraria a unida-de e a continuidade da emissão.

Música como preservação culturalNo entanto, se o programa é extenso e de conteúdo variado – ou seja,

se é formado por várias seções independentes – a intercalação de músi-cas entre elas talvez possa cumprir uma valiosa função cultural (obvia-mente empregamos a palavra cultura não na acepção enciclopédica e elitista do termo, mas no sentido antropológico): a função de preserva-ção e revalorização da autêntica música tradicional da região, cada vez mais esquecida. Gravações feitas em festas e celebrações populares po-dem ajudar a manter viva a arte autêntica das nossas populações rurais.

É possível, inclusive, realizar valiosos programas culturais baseados nessas gravações locais. Elas podem ser combinadas com comentários que expliquem a origem e o caráter dessa música, os diálogos, breves dramatizações em que se ouça como os agricultores vivem, trabalham, e expressam as suas lutas e esperanças a que essas canções estão ligadas. Aqui não se trata, pois, de utilizar a música popular como descanso, mas integrá-la ao programa e dar a todo o conjunto o caráter de um resgate da cultura tradicional do campo.

2. Os sons

O som é o cenário radiofônico. Representa o objeto do qual emana. Ouvimos o galope e vemos o cavalo; o ruído do trânsito coloca-nos no meio de uma rua cheia de movimento; a sirene de um caminhão de bombeiros e o crepitar do fogo nos leva a visualizar o incêndio. Segundo Aníbal Arias, “no roteiro radiofônico ruídos e música são tão necessá-rios para as palavras como são para a própria vida, cuja ficção queremos levar ao ouvinte”.

164 Mario Kaplún

Funções dos sons

a) Função ambiental, descritiva. Isto é, com finalidade fotográfica, rea-lista. Utilizamos os sons como fundo da cena, acompanhando o diálogo. Uma noite no campo irá ganhar realidade graças ao canto dos grilos; ao ouvir o murmúrio do público, o barulho de pratos, talheres e copos, nos sentimos em um restaurante; os gritos da multidão nos transportam ao estádio de futebol.

Se está chovendo, ouvimos a chuva que cai; se estamos no mar, nos chega o ruído das ondas quebrando; se nossos personagens estão nave-gando num barco, ouvimos a batida dos remos; se a cena se passa em um carro ou a bordo de um avião, deveria se ouvir o ruído do motor percebido na cabine de passageiros; no teatro ouvimos os aplausos, as risadas, as tosses; em uma fábrica, o zumbido dos motores.

Tudo isso, é claro, não muito forte, para não ofuscar as vozes e não im-pedir a sequência do diálogo. Mas o som tem que estar lá. Mesmo que, às vezes, amplificado: os passos dos personagens, aproximando-se ou afas-tando-se, devem ser ouvidos nitidamente. O rádio tem destacado sons que o ouvido quase não nota, como as passadas ou o ranger das portas.

b) Função expressiva. Mas também, em alguns momentos, os sons as-sumem um valor comunicativo e não apenas de mera referência realista. Em certas passagens eles dizem algo, sugerem, criam uma atmosfera emocional como faz a música.

Em meio ao silêncio da noite, uns passos furtivos que se arrastam, que se aproximam, que param bruscamente, podem contar por si só o que acontece, mesmo sem palavras.

Na adaptação radiofônica de Grandes Esperanças, de Dickens, o som das correntes que o presidiário fugitivo arrastava ao caminhar, não só indicava a sua presença, mas possuía toda a força simbólica do homem acorrentado. Na versão de O Diário de Anne Frank, a batida das botas dos soldados nazistas na calçada reproduzia a sensação de ameaça que os refugiados judeus experimentaram nos seus esconderijos; transmitia o medo e desamparo dos perseguidos. O canto dos pássaros e o som da água caindo de uma pequena cachoeira criam uma atmosfera pacífica e tranquila. Misturamos aos grilos de uma cena noturna o latido de um cão uivando à distância, e a situação vai adquirir um caráter ameaçador e sombrio.

Tchekhov, em suas peças de teatro, utiliza muito o som como cli-

165Produção de Programas de Rádio

ma. Uma porta enferrujada que range movimentada pelo vento e que ninguém se preocupa em fechar, dá todo o sentimento de desolação, de abandono, de tristeza. O ruído de um objeto de vidro que alguém, nervoso, deixa cair e estilhaça, expressa a ruptura violenta de uma crise.

No meio da noite, um velho e desconjuntado caminhão avança por uma estrada de montanha, carregando um homem ferido para o dis-tante hospital da cidade. Chove. Ouve-se o esforço do motor para subir o caminho íngreme; os sons ofegantes e as lamentações do ferido. As rodas ficam presas na lama. Ouve-se o seu patinar. Esses sons pintam toda a desolação em que se vive em áreas rurais isoladas, o estado de abandono em que se encontram as estradas, o desamparo dos morado-res ao enfrentar um acidente.

Os sons são, portanto, uma linguagem. Uma vez que retratam uma realidade, nos transmitem um estado de espírito. Há autores que, en-tusiasmados com a sua força de sugestão, se sentem tentados a usá-los como símbolos puros e colocam, por exemplo, o som de um copo de vidro que quebra para enfatizar uma situação dramática, ainda que na cena real não haja nenhum objeto quebrando e muito menos de vidro. Esta é uma exageração expressionista. Um som só deve ser colocado quando corresponde à ação real. Mas, ao escrever nosso roteiro, deve-mos colocá-lo não apenas para descrever a cena, mas também para dar a atmosfera da situação; valer-nos da linguagem sonora para comunicar um clima. Não usá-los apenas como fotógrafos, para copiar a realidade, mas também como pintores, para dar uma sensação expressiva dessa realidade. Mais uma vez, criar imagens auditivas.

Isso não significa, é claro, que devam ser colocados sons a esmo. Motivados pelo entusiasmo provocado pelo seu descobrimento, mui-tos principiantes tendem a encher os seus roteiros com efeitos sonoros. Esse excesso de sons faz uma emissão cansativa e confusa. O mesmo que foi dito da música cabe aqui repetir em relação aos sons: é preciso utilizá-los, certamente, mas com sobriedade e moderação. E gerenciá--los criteriosamente, colocando-os somente quando forem realmente necessários.

c) Função narrativa. Como já foi explicado, os sons podem servir como uma conexão para ligar uma cena à outra. Por exemplo: ouvimos um ga-lope que se afasta até desaparecer; então ouvimos a chegada do cavalo, o relincho, a batida de cascos. Percebemos que o personagem que na cena

166 Mario Kaplún

anterior partiu a cavalo, agora chegou ao seu destino.Se uma cena termina com um trem que parte e a seguinte começa

com a entrada do trem na estação, com esses dois sons explicamos que os viajantes concluíram sua viagem e agora estão chegando.

Sob uma chuva torrencial, soa um relógio cuco marcando uma hora. Desvanecimento; breve silêncio. Canto de um galo. Trinado de pássaros. Entendemos que a noite passou, que a tempestade parou e agora esta-mos diante de um amanhecer tranquilo.

d) Função ornamental. Sons acessórios adicionados para dar cor. Por exemplo: enriquecemos o impessoal abrir e fechar de uma porta com o tradicional jogo de campainhas que muitas pequenas lojas normal-mente têm; damos assim cor e calor à entrada do nosso personagem na loja, entrada que, por algum motivo, queremos tornar significativa. Em uma cena que transcorre em um bairro popular, colocamos ao longe a algazarra de crianças jogando bola. Os sons não são essenciais, mas envolvem, dando vida e sabor à cena.

Os sons como ilustração; os gráficos sonorosAté agora, temos exemplificado o uso de sons em radiodramas e pro-

gramas afins, tais como um relato editado. Mas também em programas expositivos, muitas vezes o som tem o seu lugar: pode cumprir neles uma função didática, ilustrativa.

Um programa sobre a circulação do sangue vai adquirir interesse e ser sugestivo se o iniciamos fazendo escutar o som amplificado de um coração batendo: som cadenciado, rítmico, que atesta eloquentemente a perfeição dessa maravilhosa máquina que é o sistema circulatório hu-mano. Outro sobre a água pode ser ilustrado com sons como trovões, chuva, fluxo do córrego, fonte, torneira. As possibilidades de criar ima-gens auditivas são múltiplas e muito pouco exploradas em rádios educa-tivas. Temos centenas de sons ao alcance da nossa criatividade.

Numa rádio-reportagem transcrita neste livro e cujo tema eram as doenças parasitárias no Equador, se tentou dar a impressão de gravida-de da ameaça à saúde pública sem nenhum dado estatístico, apenas com o efeito de um tic-tac de relógio inserido na reportagem:

167Produção de Programas de Rádio

TÉCNICA TIC-TAC DE RELÓgIO / ABAIXA E DEIXA DE FUNDO

APRESENTADORA cada quinze minutos... a cada quarto de hora, morre um equatoriano, vítima de parasitose.

TÉCNICA SOBE TIC-TAC DE RELÓgIO

Além disso, com sons podemos criar verdadeiros gráficos sonoros. Sabemos que os números em si dizem muito pouco no rádio. Mas me-diante efeitos sonoros podemos expressá-los com eloquentes magnitu-des comparativas. Por exemplo, em um programa destinado a explicar os benefícios da adoção de sementes certificadas de trigo:

LOCUTOR Rendimento de trigo com sementes comuns:

TÉCNICA DOIS gONgOS

LOCUTORDuas toneladas por hectare. (breve pausa). Rendimento do

trigo com sementes certificadas:

TÉCNICA TRÊS gONgOS

LOCUTOR Três toneladas por hectare.

Outro exemplo, para explicar o problema do trânsito em uma cidade grande.

LOCUTOR Para cada automóvel que circulava por nossa capital em 1960...

TÉCNICA AUTOMÓVEL PASSANDO

LOCUTOR Hoje temos...

TÉCNICA QUATRO AUTOMÓVEIS PASSANDO SUCESSIVAMENTE

LOCUTOR(CONTANDO À MEDIDA QUE PASSAM) Um... dois... (com certo alarme crescente na voz)... três ...mais ainda? Sim: quatro. Em menos de 20 anos, a quantidade de veículos foi quadruplicada.

168 Mario Kaplún

Um último exemplo. Trata-se de assinalar o contraste entre cidade e campo, observando aqui a disponibilidade de água potável.

LOCUTORCapital: de cada cinco casas, contam com serviço de água potável...

TÉCNICAQUATRO JORROS DE ÁgUA (DE IgUAL DURAÇÃO) CAIN-DO SUCESSIVAMENTE

LOCUTOR Quatro. Quatro de cada cinco. Mas agora vamos ao campo, às zonas rurais. Aqui, de cada cinco casas...

TÉCNICA UM JORRO DE ÁgUA / BREVE PAUSA

LOCUTOR Sim. Uma. Apenas uma tem água potável para beber.

Em experiências com esta técnica de gráficos sonoros em um serviço de rádio educativo para estudantes de escolas secundárias, verificou--se que o grau de retenção de dados e proporções entre os alunos eram muito maiores do que quando se utilizavam os métodos de informação convencionais.

Montagem: combinação de música e sonsCombinações com muita capacidade descritiva são alcançadas com

montagens em que se misturam música e sons.Por exemplo, o galope do cavalo de um carteiro portador de uma

mensagem urgente, tem mais vida se acompanhado por um tema mu-sical ad-hoc, ágil e nervoso, que enfatiza e ilustra a veloz e vitoriosa cavalgada. A mistura é feita pela mixagem (crossfade), jogando com volumes diferentes: primeiro entra a música, logo, crescendo, o galope que sobe até alcançar o nível da música. Por um momento música e galope ficam num mesmo nível; logo vamos diminuindo a música e deixamos em primeiro plano o galope até que o cavaleiro chega a seu destino.

Um agricultor vai ao mercado da cidade para vender sua colheita; ouvimos o ranger da carroça e, como pano de fundo, uma música lenta e melancólica que o acompanha e antecipa as fracas vendas. Por efeito da mixagem, a música vai subindo até cobrir o som da carroça, que desaparece e se perde, e só ouvimos o tema musical: quando este baixa, escutamos o ambiente do mercado (vozes, gritos de vendedo-res etc.).

169Produção de Programas de Rádio

Exemplo 2: o uso de som“Os da mesa do fundo”

Às vezes, um som pode adquirir um valor expressivo, quase de protagonista. É o caso do capítulo “Os da mesa do fundo” parte da série Padre Vicente, diário de um pároco de bairro, onde o constante ruído dos dados que se agitam no copo e são jogados uma vez por outra sobre a mesa, descrevem com mais eloquência que as palavras aos jogadores indiferentes. Em certa medida, podemos dizer que este radiodrama está construído sobre o som dos pequenos cubos de plástico.

Para quem não conhece esta série, deve ser esclarecido que o padre Vicente é um religioso bastante jovem, de caráter jovial e comunicativo, que compartilha a vida da comunidade, e para estar mais perto de seus vizinhos, costuma ir comer no bar popular do bairro. Ele mantém um diário de sua vida, em que registra as coisas que presencia e que lhe acontecem. Desse modo, é ao mesmo tempo personagem e narrador das histórias. Ele as relata e intervém nelas.

Série: O PADRE VICENTE – Diário de um pároco de bairro –

Capítulo: n º 48

Título: Os da mesa do fundo

Autor: Mario César (Mario Kaplún)

Produção: SERPAL

Disco: SERPAL Não 7024 – Lado B

Duração: 21’47”

PERSONAgENS

– PADRE VICENTE

Trabalhadores, clientes da taberna– EUSÉBIO 28 anos

– RAUL 27 anos

– DANIEL 32 anos

– JOSÉ 47 anos

– JOgADOR 1Idades entre 35 a 45 anos– JOgADOR 2

– JOgADOR 3

– JOgADOR 4

170 Mario Kaplún

LOCUTOR: A vida. Um padre. Um bairro.

TÉCNICA: TEMA MUSICAL CARACTERÍSTICO

LOCUTOR: Convidamos você a acompanhar outro momento da vida de...

TÉCNICA: TEMA MUSICAL – SOBE

LOCUTOR: O Padre Vicente – Diário de um pároco de bairro

TÉCNICA: FUNDE COM TEMA POPULAR (TEMA DOS JOgADORES)

VICENTE: (DIZ) 22 de abril. Eu nunca havia falado deles no meu diário. E, no entanto, estes quatro homens fazem parte da minha vida diária. Sempre que eu vou jantar no bar do Seu Rômulo, lá estão eles. São quatro ... Vão chegando de um em um ou de dois em dois. Cumprimentam...

JOgADOR 1: VARIOS:

(A PARTIR DE 2º PLANO, ALEgREMENTE) Boa noite. (RES-POSTAS MAIS SÉRIAS). Boa noite... Boa noite...

VICENTE: ... E eles vão sentar-se a sua mesa de costume. A mesa do fundo. Uma mesa isolada, um pouco afastada do resto do salão... uma mesa num canto, que ninguém ocupa, senão eles.

EUSÉBIO: Já chegaram dois.

RAUL: Agora estão à espera dos outros dois.

JOSÉ: Eles não vão demorar. Olhem, aí estão.

JOgADOR 2: JOgADOR 3:

(A PARTIR DE 2º PLANO, ALEgREMENTE) Boa noite.

VARIOS: Boa noite.../ Boa noite...

DANIEL: Aí está o quarteto completo.

VICENTE: E, tão logo os quatro estão reunidos, em seguida começa a se ouvir o som familiar...

ESTÚDIO: DADOS (AgITAR O COPO, ROLAR OS DADOS SOBRE A MESA)

VICENTE: Sim. Esses quatro homens se reúnem quase todas as noites para isso. Para jogar dados. Há muitos anos.

ESTÚDIO: AgITAR O COPO

JOgADOR 1: Bem ... Atenção todo o salão! Vou arriscar o general!4

JOgADOR 2: Ui, que medo! Assim eu deixo cair as minhas calças!

ESTÚDIO: LANÇA DADOS SOBRE A MESA; JOgADORES 2 E 4 RIEM

JOgADOR 4: (RINDO) general é a sua ... madrinha!

JOgADOR 1: (DE BRINCADEIRA) Co-como disse?

JOgADOR 4: Sua madrinha ... está passando melhor? (RIEM OS QUATRO)

ESTÚDIO: VOLTA A AgITAR O COPO, AgORA COM MENOS DADOS

171Produção de Programas de Rádio

VICENTE: Parecem divertir-se como loucos. O jogo os deixa excitados, com-pletamente envolvidos. A toda hora soltam exclamações, risos nervosos...

ESTÚDIO: JOgA OS DADOS QUE ROLAM SOBRE A MESA; JOgADORES 2 E 4 RIEM.

JOgADOR 1: Mas! Hoje esses dados são carregados!

JOgADOR 2: Não, quem está carregado é você.

JOgADOR 4: Sim, de gordura. (RIEM)

JOgADOR 2: Seu Rômulo, vem com outra cerveja, que, se nesta rodada eu tiver três cincos, vai sair de graça.

ESTÚDIO: AgITA O COPO – SEgUEM JOgANDO

VICENTE: E assim vão a noite inteira, até à meia-noite, até a hora em que Seu Rómulo fecha seu estabelecimento; bebendo cerveja e jo-gando dados. O incentivo do jogo parece ser jogar pela cerveja: jogam em duplas e a dupla que perde paga a rodada de cervejas.

ESTÚDIO: AgITA O COPO

JOgADOR 2: (ENQUANTO AgITA O COPO) Bem... agora sim...? Esta é minha!

JOgADOR 3: A minha... me fazia mimos e depois se foi com outro. (RISADAS)

JOgADOR 2: (SOPRA DENTRO DO COPO) Sorte, quero ver você. (AgITA UM POUCO E VOLTA A SOPRAR). Satanás, fique para trás.

JOgADOR 1: São Sebastião, envie-lhe uma decepção! (RISOS) (DESVANES-CER). (1)

VICENTE: Às vezes, enquanto todos estamos bem tranquilos, falando sobre as nossas coisas, de repente dão uns gritos desaforados, que parecem sacudir as paredes do local.

ESTÚDIO: JOgA DADOS

JOgADOR 3: (TRIUNFANTE) Aaaaah! ! Beeeeeeem! Beeeeeeem!

JOgADOR 1: Engole essa! Muito bom, irmão, muito bom!

JOSÉ: O que aconteceu? Endireitou o mundo?

RAUL: Nosso país ficou rico?

JOgADOR 3: general de primeira! general de primeira! Viu só que mão para os dados? Sou um tigre!

JOgADOR 1: (ABRAÇANDO-O) Um bruxo! general de cara! Ocorre uma vez em um milhão! (RIEM COMEMORANDO)

EUSÉBIO: Que tipos felizes, hein? (2)

VICENTE: Como se chamam? Não sei. Ninguém sabe. É curioso. Na hospe-daria nos conhecemos todos, mas deles, depois de tantos anos, nem sequer sabemos os nomes. Os chamamos simplesmente...

172 Mario Kaplún

DANIEL: ... Os da mesa do fundo (3)

TÉCNICA: CORTINA MUSICAL (TEMA DOS JOgADORES)

VICENTE: Nós, os demais, conversamos, falamos das coisas que se pas-sam no mundo. Alguém lê uma notícia no jornal e a comenta.

ESTÚDIO: EM 2º PLANO, MOVIMENTO DE DADOS E VOZES DOS JOgA-DORES

JOSÉ: Mas olhem isso. “O Congresso de Cientistas, reunidos em Esto-colmo, declarou que foi terminantemente provado que, no Vietnã, está sendo empregada uma guerra química, e mais de dez mil lavouras de arroz foram envenenadas”.

EUSÉBIO: Mas que crueldade!

RAUL: Envenenar o arroz que a população come! Isso é desumano!

VICENTE: (AÇÃO) É um crime! Isso é absurdo!

DANIEL: Mas aonde vai parar o ser humano, aonde vai parar o mundo...

JOgADOR 4: Ha, ha, ha! 24 com o 6! Ha ha! Olha só! 24 com o 6!

JOgADOR 2: Ei, amigo! O que eu disse? Esta noite é nossa!

JOgADOR 4: Seu Rômulo, outra cerveja e passe a conta a estes senhores!

JOSÉ: Tipos felizes, hein?

DANIEL: Estes não ficam tristes por nada. (4)

EUSÉBIO: Nem pelos vietnamitas, nem pela guerra química, nem por nada.

RAUL: Eles jogam os dados e pronto. (DESVANECER AMBIENTE)

VICENTE: (DIZ) Outro tema frequente de conversa entre nós é a política.

EUSÉBIO: ... E todo o povo vai votar no galvão, porque o galvão... Faça-me o favor, homem, não me venhas com esse camaleão, que quando ele era ministro...

EUSÉBIO: ... foi o melhor ministro que o país teve. Sim, senhor!

RAUL: Bem, eu digo que se Zabala não ganha, este país não dá jeito.

DANIEL: Claro que sim. Isso, muito bem. O único que está com o povo é o Zabala.

JOSÉ: Por Deus, homem, não me fale deste comunistóide.

RAUL: Isso é o que dizem para enganar as pessoas. Mas eu digo que se não é o Zabala, os pobres estão fritos.

TODOS: FALAM AO MESMO TEMPO.

VICENTE: E nós travamos uma discussão apaixonada, em que cada um de-fende, com convicção, o que acha melhor para o país.

JOgADOR 1: E vão indo embora, que eu já puxei a... sequência! (RI)

RAUL: Vamos ver, vamos perguntar aos senhores. Vocês, da mesa do fundo, o que dizem? Não é verdade que temos que estar com o Zabala?

173Produção de Programas de Rádio

JOgADOR 3: Nós? Nós estamos com o general! (OS QUATRO RIEM)

JOgADOR 2: Por favor, não nos venham a falar de política.

JOgADOR 1: Não entendemos nada disso.

JOgADOR 4: A política. A política é para se amargurar. E nós queremos viver em paz.

JOgADOR 2: Você gosta do Zabala? Que bom, que ganhe o Zabala. O senhor gosta do galvão? Que bom, que ganhe o galvão. (PARA SEUS COMPANHEIROS) Este...e quem joga agora? (5)

JOgADOR 3: Eu aqui. A partido está disputada, hein?

JOgADOR 1: Está bonita...

ESTÚDIO: AgITA O COPO

DANIEL: No fim, não são eles que têm razão? Não são mais felizes assim, ignorando os problemas todos?

ESTÚDIO: OS DADOS ROLAM SOBRE A MESA

TÉCNICA: SOBREPOR COM CORTINA MUSICAL (TEMA DOS JOgADO-RES) (6)

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TÉCNICA: CORTINA MUSICAL

VICENTE: (DIZ) Eu confesso que não consigo entendê-los. Acho incrível que quatro homens passem as horas assim, jogando a sorte nos mo-vimentos de cinco cubinhos de plástico. Mas devo ser eu o errado, porque quando faço alguma crítica, todos os defendem...

ESTÚDIO: VOLTA AO AMBIENTE DA TABERNA / EM 2º PLANO, OS QUA-TRO SEgUEM JOgANDO

EUSÉBIO: E por quê? O que tem de mal? Eles se entretêm assim. Divertem--se. É uma maneira de passar o tempo.

VICENTE: (AÇÃO) Passar o tempo. Que curioso. Passamos nossas vidas reclamando que nunca temos tempo, que o tempo não dá para nada... e quando temos tempo, o que fazemos? Queremos que passe.

DANIEL: E, afinal, o que nos preocupa? Não se metem com nada, não fazem mal a ninguém. (7)

JOgADO-RES:

RIEM COMEMORANDO UMA JOgADA

RAUL: Eles são felizes assim. Não os vê sempre alegres, contentes?

EFEITO: CESSA AMBIENTE

VICENTE: Sim. Nada os perturba, nada os comove. Eu me lembro quando houve a grande greve de construção. Estávamos todos nervosos, preocupados. Como no bairro há tantos trabalhadores da constru-ção, como na taberna vivem tantos companheiros desse sindica-to, todos sentíamos o problema como se fosse nosso.

174 Mario Kaplún

ESTÚDIO: EM 2º PLANO OS QUATRO JOgADORES JOgAM.

EUSÉBIO: Já SE vão 38 dias em greve! 38 dias! É muito!

DANIEL: E nas casas dos trabalhadores estão passando fome!

VICENTE: (AÇÃO) E você sabe algo sobre as negociações?

JOgADOR 3: Aqui... desculpem o incômodo. Caiu um dado no chão. Não estará por aqui? Sim, olhem, ali está. Mas! Justamente um quatro! E veio cair no chão! (PARA SEUS COMPANHEIROS) Vejam que má sorte! O quatro que precisava para o pôquer.

JOgADOR 2: Hoje a sua sorte foi ao chão, hein? (RIEM)

JOSÉ: Estes não se estressam por nada, hein?

VICENTE: Vejam, vocês ouviram falar que há uma greve da construção?

JOgADOR 2: Está falando para nós? Nós não somos da construção.

JOgADOR 4: Bah. Para que preocupar-se. Sempre a chuva para.

JOgADOR 3: Se fôssemos ver problemas em tudo o que acontece, nós já esta-ríamos doentes dos nervos.

JOgADOR 1: É como diz a canção. (CANTA, MARCANDO O RITMO COM O COPO COMO MARACA). Por quatro dias loucos que vamos viver...

OS QUATRO (CANTAM JUNTOS)... por quatro dias loucos você tem que se divertir (RIEM).

RAUL: E talvez eles estejam certos. Você se preocupa com tudo. E eles, por sua vez, sempre felizes, sempre na folia.

TÉCNICA: CORTINA MUSICAL (“POR QUATRO DIAS LOUCOS”)(DIZ) Por que, se não havia falado até agora em meu diário dos quatro da mesa do fundo, falo sobre eles hoje? Porque hoje o Bar do Seu Rômulo se abalou com uma notícia. (8)

ESTÚDIO: EM 2º PLANO OS JOgADORES JOgANDO OS DADOS

DANIEL: (ENTRANDO) Sabiam? Sabiam? O Eusébio?

VICENTE: (AÇÃO) Não. O que aconteceu com o Eusébio?

DANIEL: Esta tarde, trabalhando na obra, perdeu o equilíbrio e caiu de um andaime.

JOSÉ: Não! Que barbaridade!

VICENTE: De muito alto?

DANIEL: Cinco metros e uma tremenda queda.

JOgADOR 2: (2º PLANO) Seu Rômulo, outras quatro cervejinhas!

VICENTE: Para onde o levaram?

DANIEL: Ao Hospital Central. Eu estou vindo de lá.

JOSÉ: Então o caso é grave.

175Produção de Programas de Rádio

DANIEL: Não quiseram dar o diagnóstico. Raul e Ernesto ficaram. Raul prometeu que passará por aqui, assim que tiver alguma notícia.

JOSÉ: Que tragédia! Um homem tão bom, tão querido por todos!

DANIEL: E ainda com família... com filhos pequenos....

VICENTE: (RELATA) A espera por notícias foi longa e cheia de angústia. E mesmo o Seu Rômulo esqueceu-se do bar, do negócio e sumiu pela rua.

DANIEL: Finalmente, estão vindo!

JOSÉ: E aí Raul? Qual o estado dele?

RAUL: Delicado. Parece que fraturou a coluna.

JOSÉ: Fratura de…

RAUL: Mas isto não é o pior. Pode ter ocorrido um derrame e ficar com meio corpo paralisado.

VICENTE: (AÇÃO) Vocês puderam vê-lo?

RAUL: Não, é impossível.

DANIEL: Ele está com máscara de oxigênio e realizando transfusões de sangue.

JOgADOR 3: (2º PLANO) E então Seu Rômulo? Se lembra que há uma hora lhe pedimos quatro cervejinhas?

RAUL: No melhor dos casos, se tudo correr bem, o pobre Magro terá de passar muitos meses no hospital.

DANIEL: Muitos meses? E a família? Como ficará?

JOSÉ: Eles vivem do salário de Eusébio, é o único sustento.

VICENTE: E tem a mulher! E os filhos pequenos!

RAUL: Mas para isso servem os amigos, correto?

DANIEL: Exatamente o que eu pensava. Pelo tempo que necessitar.

TODOS: APOIAM

JOSÉ: Bom, ainda tem o seguro acidente.

DANIEL: Não, infelizmente o seguro não vai valer.

JOSÉ: Como não?

DANIEL: O corretor é um bandido, não havia formalizado o contrato e, por-tanto, o segurado não vai ter um centavo sequer.

JOSÉ: Pode deixar, eu tenho um conhecido no Departamento do Traba-lho e vou tratar disso.

VICENTE: E eu tenho um ótimo advogado que conhece bem estes proble-mas. Amanhã mesmo falarei com ele.

176 Mario Kaplún

RAUL: Ah, há ainda algo muito importante, Eusébio necessita de sangue urgente. A doação deve ser feita a partir de amanhã, às sete horas e, para doar, deve-se estar em jejum.

DANIEL: Eu vou.

TODOS: Eu também… eu também…

JOgADOR 2: E aí, Seu Rômulo mas o que é que está acontecendo? Essas cervejas são para quando? Para hoje ou para aman....?

VICENTE: Vocês não veem que o Seu Rômulo está preocupado com outra coisa... Aliás, estamos todos preocupados com outra coisa?

JOgADOR 1: (TRANQUILO) Mas, o que está acontecendo?

JOgADOR 3: Está acontecendo alguma coisa?

JOSÉ: Mas vocês ficaram aqui o tempo todo e não ouviram nada?

DANIEL: Vocês estão onde? Na lua?

JOgADOR 4 Jogando dados, como sempre.

VICENTE: Não ouviram o que aconteceu com o Eusébio?

JOgADOR 2: Eusébio? Não me lembro.

DANIEL: Como não lembra,…. o Eusébio Ruiz. Um magro que está sempre aqui.

RAUL: Caiu de um andaime esta tarde e está mal no hospital.

JOgADOR 2: (ASSOBIO) Caramba. De um andaime, é?

JOgADOR 3: E estão organizando uma vaquinha, não?

JOgADOR 1: Se tiver que contribuir com algo vocês nos avisem, que a gente… (AOS COMPANHEIROS). Continuamos, pessoal? Esta é a deci-siva. Estamos empatados em 190. Quem joga? (9)

TÉCNICA: CORTINA MUSICAL (TEMA DOS JOgADORES)

********* INTERVALO COMERCIAL *********************************

TÉCNICA: CORTINA MUSICAL BRILHANTE, ESPERANÇOSA. (10)

VICENTE: (RELATA) Quatro de novembro. Depois de muitos meses de an-gústia e incerteza, é chegado o dia da grande notícia:

DANIEL: Amanhã Eusébio sai do hospital, lhe deram alta!

JOSÉ: Mas ele consegue andar bem?

RAUL: E os braços? Ele consegue movimentar?

DANIEL: Estou dizendo, deram-lhe alta, ele está curado!

EFEITO: ENTRA SOM AMBIENTE ALEgRE, DE FESTA (11)

VICENTE: Hoje tem uma grande festa no Bar. Eusébio voltou! Está curado!

RAUL: É como um irmão que está de volta!

177Produção de Programas de Rádio

VICENTE: Juntamos todas as mesas e formamos uma mesa grande, uma mesa comum. Havia uma alegria transbordante... Todos quería-mos ser os primeiros a abraçar Eusébio. (ATENUAR AMBIENTE). Algo muito profundo nos unia. Todos estavam juntos na dor e na desgraça… cada um tinha participado de alguma forma na luta para ajudar Eusébio e, agora que o amigo estava recuperado, nos sentíamos muito felizes, como uma irmandade. (12)

EUSÉBIO: Eu não sei como agradecer a todos. Eu sei que vocês foram ao hospital todos os dias perguntar por mim… José, eu sei como se movimentou para conseguir o seguro de acidentes, que passou dias indo de escritório em escritório... Padre Vicente... Raul... mi-nha esposa me contou que passavam todos os dias pela minha casa para ver se ela e os meninos estavam bem, doaram sangue e parte de seus salários, e....

DANIEL: Bom, e daí? É natural.

EUSÉBIO: Sabem o que disse o médico? Que tive muita sorte. Que em ca-sos como o meu, poucos se recuperam. Muito poucos. Que se eu saí inteiro, foi pela imensa vontade que tive de sair de lá. E sabem de onde me vinha tanta vontade? De vocês. De me sentir tão amparado por vocês.

VICENTE: (RELATA) Por isso a festa desta noite foi tão feliz. Muito vinho, risada e cantoria (eu até havia levado meu acordeão)...

EFEITO (ACORDEÃO). TODOS CANTAM E RIEM

RAUL: Creio que nunca na minha vida tive uma noite tão alegre e feliz como esta.

DANIEL: Verdade.

VICENTE: E todos participamos. Todos? Todos não. Havia muito barulho, muita algazarra, caso contrário seria possível ouvir, como em to-das as noites, o som dos dados no copinho.

TÉCNICA: FUNDO MUSICAL MELANCÓLICO (13)

ESTÚDIO NO PRIMEIRO PLANO, AgITAR O COPO E JOgAR OS DADOS.

VICENTE: Alheios, em seu mundo, os quatro da mesa do fundo seguiam entregues a seus dados, a seus eternos generais.

JOgADOR 1: O que marcou? ? Quinze no cinco, ou full?

JOgADOR 2: Full, full!.

JOgADOR 1: O que disse? Com este barulho não se ouve nada… não se pode jogar...

ESTÚDIO NOVAMENTE SONS DE DADOS

JOSÉ: E eles, os convidamos?

178 Mario Kaplún

DANIEL: Não. Eles não têm nada a ver. Esta festa não é deles, é nossa.

RAUL: E mesmo que convidemos, será que gostariam de participar? Eles estão mais interessados nos dados. Vamos deixá-los em paz com seus dados.

DANIEL: Sim. Pra eles, nosso amigo Eusébio é um desconhecido. Não fi-zeram nada por ele. Por isso, não podem compartilhar da nossa alegria.

RAUL: Nem sequer poderiam entender.

ESTÚDIO NO FUNDO SÓ O SOM DOS DADOS (14)

VICENTE: Eles continuaram jogando. E eu pensei, não, não me venham com essa. Agir assim não é viver.

JOgADOR 1: E o que acha parceiro? Arriscamos o pôquer?

VICENTE: Estes homens tão alegres, tão divertidos e despreocupados... Es-tes homens estão mortos. (DADOS)

JOgADOR 3: E mais vale um pássaro na mão...

JOgADOR 2: Do que dois voando… (RISOS)

VICENTE: Estão à margem de tudo. Propositadamente excluídos da vida (DADOS)

JOgADOR 4 Sequência!

VICENTE: Sim, está bem. À margem das preocupações, à margem das res-ponsabilidades, à margem da dor… (DADOS)

JOgADOR 1: Desta vez nada.

VICENTE: Mas, também, à margem das alegrias. Das verdadeiras alegrias, da verdadeira felicidade, que só se conhece na fraternidade da aventura humana.

ESTÚDIO BARULHO DOS DADOS

JOgADOR 2: Pôquer.

ESTÚDIO AgITAR O COPO COM OS DADOS EM PRIMEIRO PLANO (15)

TÉCNICA: SOBE FUNDO DO ENCERRAMENTO MUSICAL

LOCUTOR: Compartilhamos assim outro momento na vida de…

TÉCNICA: TEMA MUSICAL CARACTERÍSTICO. ABAIXA E CAI PARA Bg

LOCUTOR: O Padre Vicente – Diário de um pároco de bairro.

TÉCNICA: SOBE TEMA MUSICAL

LOCUTOR: Uma produção SERPAL, escrita e dirigida por Mario César e pro-tagonizada por Roberto Fontana.

LOCUTOR: Convidamos-lhe para o nosso próximo encontro com… o Padre Vicente.

TÉCNICA: ENCERRAMENTO CARACTERÍSTICO

179Produção de Programas de Rádio

Comentários

(1) Uma mudança de cena feita mediante um desvanecimento (fade--out) dos risos e do ambiente da taberna.

(2) A avaliação de Eusébio resume a opinião dos frequentadores do lugar e, muito provavelmente, a essa altura, do ouvinte também: esses jogadores são “pessoas felizes”, simpáticas, divertidas, dig-nas de inveja pela sua permanente alegria e despreocupação.

(3) A maioria das cortinas se baseia em um tema musical popular, que constitui o tema dos jogadores e que já apareceu como introdução no começo do capítulo. Assim se dá uma continuidade e unidade musical ao radiodrama e uma descrição do espírito dos jogadores. O tema é alegre, contudo, com certa ponta de melancolia.

(4) Novamente a concepção corrente: “são felizes porque não se in-comodam com nada”.

(5) O típico conformismo indiferente, “o que me importa”?

(6) O ruído dos dados se funde com a música: um exemplo de mon-tagem de música e som.

(7) “Não se metem com ninguém, não fazem mal a ninguém”. O este-reótipo que justifica a passividade, até fazendo disso um mérito.

(8) Um recurso interessante: o mesmo refrão da música que os qua-tro personagens cantaram há pouco, agora é retomado em versão instrumental como fundo musical que remete, coerentemente, à cena e acentua a filosofia despreocupada dos jogadores.

(9) Agora, os quatro jogadores já não parecem mais tão simpáticos e divertidos. Seguem jogando como sempre, mas, se percebe neles, algo de indiferença, de vazio, de insensibilidade.

(10) A troca do tema musical prepara uma cena diferente. Agora não se quer mais chamar a atenção sobre os jogadores, mas sim sobre Eusébio e seus leais amigos.

(11) A troca de cena se marca aqui, ao entrar de forma crescente (fa-de-in) no ambiente da festa.

180 Mario Kaplún

(12) Uma atenuação convencional, mas necessária para a passagem que irá acontecer. O ouvinte aceita, sem dificuldades, essa con-venção.

(13) É o mesmo “tema dos jogadores”, mas agora numa variação me-lancólica, obscura. Tem algo de uma ladainha para estes quatro homens tão alegres, tão despreocupados, “mas que estão mor-tos”

(14) O som dos dados sendo o mesmo, agora soa irritante, agressivo: marca o vazio de quem os cultua.

(15) Agora o agitar do copinho e o rodar os dados se escuta em pri-meiríssimo plano, como em uma tomada de “close-up” no cine-ma. É como uma pá de cal sobre os quatro homens “mortos”. En-tão, montado sobre o ruído dos dados sendo agitados, o fundo de ladainha sobe e culmina com o encerramento.

3. Outros recursos técnicos

Além da música e dos sons, o roteirista dispõe de outros recursos de montagem. As vozes humanas mesmas (locutores e atores) podem ser tratadas com diversos efeitos especiais. Descrevemos aqui os mais usuais.

Filtros, modulaçõesÀs vezes, necessitamos que uma voz soe diferente das outras, “em

itálico”. Por exemplo, uma voz que vem do passado e que está sendo evocada, ou então um personagem que está longe, ausente, e cujas pa-lavras estão sendo recordadas. Ou seja, personagens que intervêm no programa, mas que não se colocam como fisicamente presentes no ce-nário. Dessa forma, se faz necessário separar – isolar – este tipo de voz das demais, para que o ouvinte perceba que este personagem não está ali presente com os outros, mas que se encontra em um plano imaginário. Algo análogo acontece quando queremos diferenciar os pensamentos de um personagem (o que pensa para si e não diz) de suas demais palavras.

Nestes casos, para distinguir estas vozes, a modificamos, fazendo-as passar por um filtro colocado na mesa de controle. O filtro modifica a voz, geralmente retirando os graves, fazendo com que soe mais aguda.

181Produção de Programas de Rádio

Quando este personagem “ausente” entra em cena, coloca-se no roteiro a indicação desse recurso.

Caso a mesa não disponha do mesmo, também se pode conseguir um efeito similar com os recursos acústicos no estúdio. Por exemplo, colocando painéis em torno do microfone ou usando sobre ele uma es-pécie de cone para amortecer o som ambiente. Assim, consegue-se mo-dificar a modulação e a tonalidade. A voz soa mais “acolchoada”, mais escondida e seca, com menos ressonância, e assim se diferencia das ou-tras vozes.

Se a voz em questão tem uma intervenção longa no programa, talvez seja preferível empregar estes recursos de modulação acústica e não o filtro, porque este dá uma tonalidade metálica que tira o calor e a comu-nicabilidade.

Quando utilizamos um narrador-personagem, como no caso do Pa-dre Vicente, necessitamos que sua voz, quando relata, soe de maneira distinta de quando atua. Para conseguir isto na produção desta série, não se utilizou o filtro e, sim, as diferentes modulações. O ator que in-terpretava o Padre Vicente lia toda sua fala de ação de um microfone normal, mas quando devia ler seu diário (isto é, quando narrava, recor-dava, evocava) o ator ia para outro microfone, rodeado por painéis e co-locado na parede do estúdio, de modo que não captasse o som ambiente. Deste modo, sua voz nos relatos soa de forma diferente, um pouco como se estivesse no vazio.

Às vezes, para acentuar ainda mais esta diferença, além do filtro ou modulação é adicionado um fundo musical: o ouvinte percebe que esta voz que aparece com o fundo de música vem de outro lugar ou de outro tempo.

Voz telefônica Em um programa de rádio, pode-se tratar a voz de modo que pareça

que se está ouvindo por telefone. Se utiliza este efeito nos diálogos entre dois interlocutores que estão conversando por telefone. O que está em cena sai com voz normal e o que está do outro lado da linha aparece com um timbre metálico próprio da recepção telefônica.

Como o leitor já deve ter inferido, o efeito se dá pela utilização do fil-tro. No roteiro, indicamos o efeito desejado POR TELEFONE ou então a forma mais utilizada, FILTRO.

182 Mario Kaplún

Eco (ressonância)Outro recurso ou efeito útil. Ainda que se chame habitualmente de

“eco”, o mais correto deveria ser a designação “ressonância”. Consiste, precisamente, em dar uma ressonância especial às vozes. Se utiliza:

1. Quando a situação em si pede. Um exemplo típico é a voz do sa-cerdote quando prega em uma igreja espaçosa. Outro exemplo é o diálogo em uma grande sala de um castelo. Enfim, lugares onde é natural que a voz ressoe.

2. Como recurso artístico, imaginário, para casos semelhantes aos já mencionados do uso de filtros e modulações – invocação de per-sonagens mortos, lembranças do passado – quando se quer revestir essa invocação de solenidade e grandeza como, por exemplo, a sen-sação de que vozes vêm do além.

Nestes últimos casos, o uso da ressonância pode resultar em algo grandiloquente, com efeito em demasia. Por isso, é necessária muita moderação em seu uso.

Indica-se no roteiro a anotação ECO ou RESSONÂNCIA. Muitos estúdios estão dotados de uma instalação acústica ou eletrônica espe-cial (câmaras de eco) conectada à mesa de controle, o que permite dar ressonância às vozes, apenas operando-a. Também se pode conseguir o efeito de “eco” mediante recursos artesanais no estúdio, mas isso é mais complicado.

O produtor deve ter em conta que o nível de ressonância é graduável, podendo ser acentuado ou diminuído de acordo com o efeito desejado. Dessa forma, são necessários testes até chegar ao nível ideal. O roteirista também pode indicar se deseja uma ressonância muito intensa ou outra mais suave.

Advertência importante: um problema da ressonância obtida pela câmara de eco é que, geralmente, não se pode isolá-la, o que afeta todas as vozes que intervém simultaneamente. Serve, portanto, para um mo-nólogo (o sacerdote que prega ou a voz de alguém que já morreu), mas deve-se estar atento caso seja um diálogo ou cena simultânea. Assim, no caso de uma igreja, se queremos que a voz do pregador saia com ressonância, sairão também as vozes dos fiéis que falam ou comentam em primeiro plano, algo que obviamente não é natural. Se queremos

183Produção de Programas de Rádio

reconstruir o diálogo entre Javé e Moisés e dar ressonância à voz do Se-nhor para revesti-la com seu caráter divino, não podemos evitar que a voz de Moisés, em terra, saia também com ressonância. Apenas estúdios com instalação muito sofisticada possuem dispositivos que permitem dar o eco a um microfone determinado e não aos demais que entram simultaneamente. Isto, evidentemente, limita o emprego deste recurso; antes de escrever o roteiro a produção deve verificar se o efeito que se pretende obter é viável.

Voz de alto-falanteTambém na maioria dos estúdios é possível conseguir que uma voz

saia como se fosse por um alto falante. Por exemplo: em um hotel, hos-pital, tribunal, ou seja, onde queremos que se ouça chamar pelo alto-falante por algum passageiro, médico, membro do júri, ou em um ae-roporto – quando desejamos que se ouça o anúncio da partida ou da chegada de um voo.

Em nosso roteiro, sinalizaremos este efeito com a indicação “POR ALTOFALANTE”.

DesvanecimentoNão só podemos desvanecer a música ou o som, mas obviamente

podemos também fazê-lo com as vozes. Com isso damos a sensação de que nos afastamos do lugar, de que o microfone vai para outro local. Os europeus utilizam este recurso, sobretudo, para finalizar uma cena e passar à seguinte sem colocar uma separação musical. O desvanecimen-to ajuda a indicar que a cena terminou.

Este recurso tem um inconveniente, já que, se as últimas palavras são importantes, devemos escutá-las muito bem, para que não percam força e presença. Quando prevemos um desvanecimento de vozes, não deve-mos, pois, colocar palavras muito importantes no final, pois se elas se perdem ou se não são ouvidas nitidamente, isso não afete a compreen-são do programa e o impacto buscado pelo texto. Quando as palavras que encerram uma cena têm muita força (o que acontece com bastante frequência, por se tratar do final da cena), é preferível não recorrer ao desvanecimento, mas colocar uma cortina musical ou também, se isso for possível – e nem sempre o é – finalizar a cena com sons, que possam desvanecer-se sem esse prejuízo.

184 Mario Kaplún

Sinalizamos o efeito mencionado com a indicação DESVANECI-MENTO, DESVANECER ou FADE-OUT.

Fusão ou mixagem de vozesAssim como mesclamos ou combinamos duas músicas (crossfade),

também podemos fazê-lo com vozes. Este recurso, geralmente, é utiliza-do para a leitura de uma carta. Desejamos que a carta seja ouvida na voz de quem a escreveu, porque isso não só dará mais variedade de vozes, mas também mais expressividade (logicamente, o próprio autor da carta poderá lê-la com muito mais sentimento pessoal que o destinatário).

Se procede desta maneira: o personagem recebe a carta, abre e come-ça a lê-la. Mas, em poucas linhas, sua voz se mistura (fundindo) com a outra, de quem a escreveu, que pronuncia ao mesmo tempo as mesmas palavras. Pouco a pouco a voz do leitor inicial vai sumindo e, simulta-neamente, a voz do autor é ouvida cada vez mais alta até se atingir o volume normal mantendo-se até o fim.

No gráfico, o efeito de fusão:

Vejamos como indicamos esse efeito no roteiro. Jorge é quem recebe a carta que Luisa escreveu.

ESTÚDIO OUVE-SE RASgAR O ENVELOPE E O PAPEL SER DESDOBRADO.

JORgE (LENDO) “São José, 15 de maio de 1977. Querido irmão, você irá se surpreender em receber notícias minhas depois de tanto tempo. (1) Por que não lhe escrevi até agora? Talvez porque sentisse vergonha em confessar que falhei. (2) Sofri muito, Jorge.

TÉCNICA MIXA VOZES

LUISA (AO MESMO TEMPO) Você irá se surpreender em receber notícias minhas depois de tanto tempo. (1) Por que não lhe escrevi até agora? Talvez porque sentisse vergonha em confessar que falhei. (2) Sofri mui-to, Jorge. Tive que lutar arduamente contra os outros e, principalmente, contra mim mesma...

185Produção de Programas de Rádio

Mais ou menos até o ponto 1, ouvimos somente a voz de Jorge. De-pois, começamos a perceber a voz de Luisa, que diz ao mesmo tempo as mesmas palavras. No começo, essa voz é fraca, mas vai ganhando cada vez mais força até cobrir a voz de Jorge, que vai se enfraquecendo, se apagando, desvanecendo. No ponto 2, já não ouvimos a voz de Jorge, somente a de Luisa, que continuará até o fim da carta.

Quase não é necessário esclarecer que, para ter sucesso neste efeito, o ator que faz Jorge deve estar posicionado em um microfone e a atriz que representa Luisa em outro, preferencialmente, distantes. O efeito é produzido com o técnico alterando os volumes relativos a ambos os mi-crofones: retira o nível do primeiro na medida em que vai aumentando o do segundo.

Ao final da leitura, podemos fazer o efeito inverso: a voz de Luisa vai diminuindo e as últimas palavras da carta são retomadas e lidas por Jor-ge, em uma nova fusão de vozes. Assim, finalizamos essa parte e retoma-mos à situação presente: a situação do que recebeu e está lendo a carta.

Exemplo 3: o uso do filtro“Um trabalho para Barboza”

Também da série O Padre Vicente incluímos este capítulo, em que o uso do filtro se torna muito importante para trazer à cena e evocar a personagens que não estão fisicamente presentes na ação. Adverte-se que, aqui, não se trata de um mero recurso informativo ou narrativo, mas, sim, o fato de o efeito adquirir função conceitual e expressiva: aju-da a transmitir a mensagem.

Não se transcreve a abertura e o encerramento do programa, já que estes são permanentes e figuram no exemplo número 2.

Série: O PADRE VICENTE – Diário de um pároco de bairro –

Capítulo: n º 58

Título: Um trabalho para Barboza

Autor: Mario César (Mario Kaplún)

Produção: SERPAL

Disco: SERPAL Nº7029 – Lado B

Duração: 22’08”PERSONAgENS

186 Mario Kaplún

– PADRE VICENTE– BARBOZA, Domingo. Pedreiro. Homem rústico. 40 anos– MOLINA, um empregado da empresa de construção. 35 anos– BELTRAN, Emilio (“Mono”). Construtor. Homem ativo, alegre, caloroso, mesma idade de Vicente (foram colegas)– IRMÃ Maria José. Irmã de caridade em um hospital. Sensível, humana, inteligente. Uns 30 anos

TÉCNICA: Barulho de ônibus, de tráfego.

VICENTE: (RELATA) 4 de Maio. Sob o sol da tarde, o ônibus em que eu voltava do centro ia lentamente pela Avenida Independência. Eu ia chatea-do e distraído olhando pela janela.

TÉCNICA: O ÔNIBUS PÁRA E SE ESCUTA O SOM DE MANOBRAS DE UM CAMINHÃO

VICENTE: O ônibus parou em frente a uma construção porque um grande ca-minhão, carregado com areia, fazia manobras.

EFEITO: BARULHO DE VIgAS DE FERRO BATENDO

VICENTE: Sobre os andaimes e vigas de ferro que reluziam ao sol, pedreiros trabalhando.

BARBOZA: (FILTRO) Eu não estou aqui para roubar ou pedir esmola, quero trabalho.

VICENTE: Me passou pela cabeça o rosto com traços chineses de Domingo Barboza… Ouvi sua voz, obstinada e insistente.

BARBOZA: (FILTRO) Olhe, pode ser qualquer coisa, só preciso conseguir algu-ma coisa, de pedreiro, operário, carregador, o que for...

VICENTE: Meu olhar distraído parou sobre um cartaz em frente à construção.

BELTRAN: (FILTRO) Empresa Construtora Emílio Beltrán

VICENTE: Beltrán, Beltrán! Sim, sim, tinha que ser ele!

BARBOZA: (FILTRO) Você deve conhecer muitas pessoas…

VICENTE: Mas claro, me disseram que ao sair do colégio, Beltrán foi para o ramo da construção... e, com o passar dos anos, abriu sua pró-pria empresa. Tinha que ser ele. Como não me lembrei dele antes? Como não pensei nele?

BARBOZA: (FILTRO) Veja Padre, eu devo estar numa maré ruim, sabe? Faz 8 meses que não consigo nada. Me disseram para procurar o Padre Vicente… Ele conhece muita gente, ele pode te conseguir alguma coisa. Não peço por mim, mas sim por meus filhos.

EFEITO: O ÔNIBUS ARRANCA E SEgUE SEU CAMINHO

VICENTE: Pensei tanto em algum trabalho para este homem. Liguei tanto para um e outro sem conseguir nada e nem me lembrava de Beltrán, nem me passou pela cabeça.

BARBOZA: (FILTRO) não peço por mim, mas sim por meus filhos... (1)

187Produção de Programas de Rádio

VICENTE: Tive um impulso, não custa nada tentar… o ônibus já havia retoma-do sua marcha. Corri e desci na primeira parada.

TÉCNICA: PONTE MUSICAL / FUNDE COM RUÍDOS DE CONSTRUÇÃO

MOLINA: O Senhor Beltrán? Acho que está sim. Claro, seu carro está ali.

VICENTE: (AÇÃO) Tive sorte então.

MOLINA: O problema agora é encontrá-lo, pois aqui é muito grande... (gRITA) Ei, Souza, veja se acha o Seu Emílio. Este Senhor está procurando por ele. Como é seu nome?

EFEITO: BATIDAS EM VIgA DE FERRO

VICENTE: Vicente. Padre Vicente.

MOLINA: (gRITANDO) É o pai do Vicente! (PARA VICENTE). Ele já vem. Me-lhor esperar aqui, ali do lado vai cair areia.

VICENTE: Obrigado. E então, muito trabalho por aqui?

MOLINA: O senhor mesmo pode ver...

VICENTE: Será que estão precisando de mais um peão?

MOLINA: Não sei, mas acho que não. Toda hora aparece um aí pedindo em-prego... é um desfile. E o capataz dispensa todos. Acho difícil que tenha algo.

BARBOZA: (FILTRO) Olhe, pode ser qualquer coisa, só preciso conseguir al-guma coisa, de pedreiro, operário, carregador, o que for... Faz oito meses que não consigo nada....

VICENTE Muita gente vem pedir trabalho, é?

MOLINA Com esta situação, né? Com este desemprego... Dizem que é a crise, não sei...

BARBOZA (FILTRO) A coisa está muito difícil com essa crise. Por isso eu lhe peço qualquer coisa que arranje. Qualquer coisa, seja o que for, desde que tenha um trabalho.

MOLINA Por isso quando minha mulher se queixa, eu digo a ela que nós ainda temos sorte. Bem ou mal, ainda tenho um emprego seguro...

BARBOZA (FILTRO) Tenho cinco filhos, padre. Mulher e cinco filhos. Tem dias que não temos o que comer.

MOLINA Conseguir um trabalho hoje em dia é como ganhar na loteria.

BELTRAN (SE APROXIMANDO) E aí, Molina, quem me procura? Vicente! Pa-dreco! Tu! Tinham me dito que era o pai do Vicente, e eras tu! Há quantos séculos não nos vemos! Como vai tua vida, padre bandido? O que te traz aqui?

BARBOZA (FILTRO) Me disseram para procurar o Padre Vicente… Ele conhe-ce muita gente, ele pode te conseguir alguma coisa.

188 Mario Kaplún

BELTRAN É melhor sair daqui, tem muito barulho. Vamos conversar ali no bar da frente. Molina, estamos lá no bar! (AFASTANDO) Mas que mila-gre, homem!

TÉCNICA PONTE MUSICAL AgIL/ EFEITO AMBIENTE BAR

VICENTE Então, homem. Sabes o que venho te pedir como um grande favor? Arranjar um trabalho...

BELTRAN O que? Cansou da vida de padre?

VICENTE (BRINCANDO) Sim, hoje em dia está difícil chegar a bispo. (RIEM) Falando sério, é para um homem casado, com cinco filhos. Não tens ideia de como andam as coisas por aí. As pessoas desesperadas. Todo dia me aparecem quatro ou cinco. E eu tento ajudar a conse-guirem algo... qualquer coisa.

BARBOZA (FILTRO) Eu não quero roubar nem pedir esmola. Só quero um tra-balho.

VICENTE Não sei se acham que um padre pode fazer milagres. E a gente se sente tão impotente, irmão. Além de tudo é o direito mais elementar do ser humano. O direito ao trabalho, a ganhar a vida. O direito de viver. Como é possível que não tenha trabalho, que...

BELTRAN Mas por favor, meu velho! Se neste país o que sobra é trabalho!

VICENTE Como assim? Quer dizer que tens vagas aqui na tua empresa... que maravilha, então não vai te custar nada contratar o Barboza...

BELTRAN Não, vagas na empresa não temos, estão todas ocupadas, mas...

VICENTE (MORDAZ) Ah.

BELTRAN Mas isso não tem nada a ver. Não estou falando da minha empre-sa, estou falando do país. Te asseguro, Vicente, que neste país só não tem trabalho quem não quer. Trabalho tem. Mas ninguém quer trabalhar. As pessoas são moles, preguiçosas. Trabalhar? Não, isso dá muito trabalho. Preferem andar aí deitados no sol, lagarteando. Uma vergonha. Com gente assim, como não vai haver desempre-go? Como esse país vai para a frente? (2)

VICENTE Olha. Homem, não vamos discutir isso. Mas esse que eu te falo precisa mesmo trabalhar.

BARBOZA (FILTRO) Não peço por mim. Peço pelos meus filhos.

BELTRAN Precisar, precisa. Mas a questão é se quer mesmo trabalhar. E aí, Vicente, tu não entende disso. Tu é padre, e qualquer um que te conta uma história te comove. Mas a mim já não enrolam. Às ve-zes, por desgraça, pegamos um destes e é um desastre, irmão, um desastre. Não fazem direito, depois começam a faltar. Vem um dia sim e dois não. Recebem o primeiro pagamento e já estão no bar empinando o copo. E depois choram que não tem trabalho.

189Produção de Programas de Rádio

VICENTE Este não, Beltran. Este vai corresponder. Pelo menos o experimen-ta, homem. Por um mês, por experiência. Põe ele a fazer qualquer coisa, está disposto a qualquer coisa.

BARBOZA (FILTRO) Qualquer coisa. Faço qualquer coisa.

BELTRAN Sim, eu já ouvi essa conversa antes. “Qualquer coisa, eu faço qual-quer coisa”. Quando estão sem um centavo fazem de tudo. E de-pois, quando lhes dá algo, nada mais é bom para eles. É assim Vicente, mas olha,... por que és tu quem está pedindo, e pela sa-tisfação de te ver depois destes anos todos está bem, manda o teu homem que vou dar uma chance.

VICENTE Obrigado, Vicente, nem sei como agradecer. Ele se chama Barboza, e vai dizer que eu é que mandei.

BELTRAN Se aparecer, porque tem muitos que nem isso. Quando conseguem um trabalho nem sequer aparecem. É assim Vicente, por isso te digo que faço por ti, mas vais ver no que dá...

TÉCNICA PONTE MUSICAL

VICENTE Então, Barboza, sabes como chegar na Avenida Independência? Não esquece de dizer ao Beltran que fui eu quem te mandou.

BARBOZA De verdade? É verdade, meu Deus? Não sei nem o que lhe dizer, não sei o que fazer para... tenho vontade de lhe abraçar, de beijar a sua mão...

VICENTE Para com isso, Barboza. A questão agora é se portar direito e cor-responder para ser efetivado no emprego. E não me deixa mal.

BARBOZA Nisso pode ficar tranquilo, tranquilo mesmo. Eu juro pelos meus fi-lhos!

TÉCNICA CORTINA MUSICAL EMOTIVA

*********** INTERVALO COMERCIAL ************************************

TÉCNICA CORTINA MUSICAL QUE PREPARA CLIMA DRAMÁTICO

VICENTE (RELATA) 22 de Junho. Por que será que me lembrei hoje do Bar-boza? Acho que foi voltando para casa, quando o ônibus passou na Avenida Independência, que a lembrança me veio. Como será que está indo no trabalho? Desde que começou a trabalhar não apareceu mais na paróquia. Vai que não quis incomodar. Já passou o mês de experiência, será que foi efetivado? Pensei também que fui mal educado com meu ex-colega Beltran, nem voltei para agra-decer o favor. E resolvi descer na parada em frente à construção. Para que...

TÉCNICA RUIDOS DA CONSTRUÇÃO (MAIS SUAVES)

MOLINA Barboza? (TENTANDO LEMBRAR). Barboza...Barboza... ah, sim. Um que trabalhou uns dias aqui no mês passado. Mas ele não está mais aqui.

190 Mario Kaplún

VICENTE O que? Não está mais aqui?

BELTRAN (APROXIMANDO) Olá, Vicente.

VICENTE (CONSTRANgIDO) Olá, Beltran, tudo bem?

BELTRAN Te vi chegar lá de cima e desci. Veio ver seu apadrinhado? Eu devia ter ligado para contar, mas não tinha teu telefone. Além disso, para que? Para te deixar mal?

VICENTE Mas, o que aconteceu?

BELTRAN: O que aconteceu? Molina, você ainda tem a ficha do Barboza?

MOLINA: Não sei senhor. Vou verificar.

BELTRAN: Acredita, velho amigo. Tem gente que não se pode ajudar. Não fique mal por alguém assim, não vale a pena.

MOLINA: (VOLTANDO) Sim, aqui está senhor.

BELTRAN: Vejamos.

MOLINA: Começou a trabalhar… começou a trabalhar na segunda-feira, dia 07.

BELTRAN: Uma máquina trabalhando. Ah, sim, nos primeiros dias foi um espe-táculo. No começo todos são assim.

MOLINA: Terça dia 8, veio; quarta, dia 09, veio; quinta, dia 10 veio.

BELTRAN: Sim, veio, mas no quarto dia já começou a diminuir o ritmo, fazendo corpo mole...

MOLINA: Sexta, dia 11, veio.

BELTRAN: Mas deixou cair um saco de cimento. Disse que não sabia o que estava acontecendo, que estava com muita dor nas costas.

MOLINA: Sábado dia 12, ele compareceu.

BELTRAN: Veio e fizemos o acerto. Sábado é dia de pagamento. Continuemos.

MOLINA: Segunda, dia 14, segunda dia 14 não veio.

BELTRAN: Sábado foi dia de pagamento… já não vem na segunda. Está ven-do?

MOLINA: Mas mandou um de seus filhos dizer que não pôde vir porque esta-va doente. Estava com muita tosse.

BELTRAN: Agora já não eram as costas, era tosse? Hum…

MOLINA: Continuou sem vir na terça e na quarta. Quinta reapareceu.

BELTRAN: Te dás conta? Trabalha seis dias e já falta três. Disse que estava doente, com febre, tosse. Eu fiz cara de bobo, como se acreditasse e disse: “Está bem, volte a trabalhar, mas esta é a ultima vez. Se continuar faltando...”.

MOLINA: De quinta a sábado ele veio.

BELTRAN: Nessa segunda semana ele só trabalhou três dias; então paguei a metade, nada mais.

191Produção de Programas de Rádio

MOLINA: Segunda e terça ele veio e teve um adiantamento de 50 reais por conta da semana.

BELTRAN: Ah sim… ele disse que estava devendo tanto que o armazém não queria mais vender fiado. Que seus filhos não tinham o que comer.

MOLINA: E na quarta, dia 23, já não veio mais. E ponto final.

BELTRAN: Ele sequer mandou avisar. Dessa forma, você já pode ver. Como se não bastasse, ainda saiu me devendo dinheiro.

VICENTE: Mas não pode ser, não pode ser...

BARBOZA: (FILTRO) Não sei o que fazer para te agradecer. Tenho vontade de te abraçar, de beijar a tua mão... (3)

BELTRAN: Não posso dizer que era um salário de político, mas 15 reais por dia não está nada mal, não é mesmo? Para alguém que está passando tanta necessidade...

VICENTE: Não é possível, tem de ter acontecido alguma coisa.

BELTRAN: Um rio de cachaça goela abaixo. É isso que deve ter acontecido.

BARBOZA: (FILTRO) Eu vou corresponder. Eu juro por meus filhos.

VICENTE: Não dá para acreditar. Se soubesse a quantidade de vezes que veio me pedir, implorar…

BARBOZA: (FILTRO) Qualquer coisa, que seja, só quero trabalhar.VICENTE: E quando finalmente se consegue... e nem sequer passou pela pa-

róquia para me dar uma explicação.

BELTRAN: E que explicação poderia te dar?

VICENTE: Me dá uma tristeza… tristeza e uma raiva.

BELTRAN: Não. Por que?, não vale a pena. É uma lição. Assim, da próxima vez, quando um desses vier lhe implorar, não precisa se comover tanto. (DÁ UNS TAPINHAS NAS COSTAS) Tá vendo? Vês porque tem tantos desempregados nesse país?

TÉCNICA: CORTINA MUSICAL AMARgA, SOMBRIA

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TÉCNICA: CORTINA MUSICAL

VICENTE: (RELATA) 16 de agosto.

EFEITO: TOCA O TELEFONE/ATENDE

VICENTE: (AÇÃO) Paróquia

IRMÃ: (FILTRO TELEFÔNICO) Poderia falar com o Padre? (4)

VICENTE: Está falando com ele.

IRMÃ Aqui é a Irmã Maria José do Hospital Nazaré.

VICENTE: Ah sim, muito prazer irmã. Posso ajudar?

192 Mario Kaplún

IRMÃ: Me disseram, na igreja, que esta semana você está de plantão no Serviço para Doentes.

VICENTE: É verdade, Irmã.

IRMÃ: Aqui no hospital temos um velhinho em estado gravíssimo. Ele está pedindo um sacerdote.

VICENTE: Claro, vou aí.

IRMÃ: Estou lhe esperando Padre. Quando chegar, pergunte por mim. Es-tou no pavilhão da enfermaria, sala 4.

VICENTE: Pavilhão da enfermaria, sala 4. Tudo bem Irmã.

TÉCNICA: CORTINA MUSICAL SUAVE, NARRATIVA

IRMÃ: Por aqui Padre... vamos

EFEITO: PASSOS DE DUAS PESSOAS

VICENTE: (RELATA) Atravessamos uma longa sala, com filas de camas nos dois lados.

BARBOZA: (DEBILITADO) Padre… (TOSSE) Padre…

VICENTE Me parecia ouvir uma voz… alguém me chamando… mas, me virei e não vi ninguém... Me pareceu… Atendi o senhor moribundo, e na volta, quando atravessava a sala, ouvi outra vez....

BARBOZA: Padre (TOSSE). Padre, aqui

IRMÃ: Parece que este senhor lhe conhece Padre. Ele está chamando.

BARBOZA: (TOSSE) Como vai Padre, não se lembra de mim?

VICENTE: Na verdade…

BARBOZA: Barboza. Domingo Barboza

VICENTE: (CHOCADO) Barboza! Você por aqui? Desde quando?

BARBOZA: Faz já uns três meses.

VICENTE: (RELATA) Não quis dizer, mas não poderia reconhecê-lo. Ele estava muito magro, completamente desfigurado.

BARBOZA: Desde maio, me internaram dia… (TOSSE) 24 de maio

MOLINA: (FILTRO) dia 23 ele não veio e ponto final, não veio mais. (5)

BARBOZA: Sim Padre, me internaram dia 24 de maio (TOSSE)

BELTRAN: (FILTRO) (MESMO TOM CÉTICO) Que lhe doía muito as costas, tinha febre, tossia muito.

BARBOZA: Veja que azar. Quando por fim… (TOSSE)… quando por fim… (TOSSE)

VICENTE: (AÇÃO) Bom, Barboza…

IRMÃ: Acalme-se, Barboza, pode lhe fazer mal...

BARBOZA: .…Quando por fim consigo um trabalho… deu azar...

TÉCNICA: FUNDO MUSICAL DRAMÁTICO

193Produção de Programas de Rádio

EFEITO: ABRE UMA PORTA DE FERRO

IRMÃ: Por aqui Padre, por este pátio cortamos caminho

VICENTE: Que vergonha, irmã.

IRMÃ: Por quê, Padre?

VICENTE: Pensei tão mal deste homem e agora o encontro aqui. Assim! (PAU-SA) é muito grave o que ele tem?

IRMÃ: (SUSPIRO) Meio pulmão tomado.

VICENTE: (PENSANDO ALTO) Meio pul.. Então ele não pode ter adoecido nesses dias em que estava trabalhando. Ele já tinha isso de antes.

IRMÃ: Claro, já vinha de antes. Estes processos bacterianos são longos. A bactéria deve ter ficado incubada por um ano ou mais. Mas quando, depois de tanto tempo desempregado, voltou a trabalhar, a fazer esforço, a coisa veio à tona.

BELTRAN: (FILTRO) Deixou cair um saco de cimento. Que não sabia que esta-va acontecendo.. Que estava com muita dor nas costas.

TÉCNICA: ENTRA FUNDO MUSICAL SÉRIO

VICENTE: Mas como ele pegou? Contágio... de quê?

IRMÃ: O médico colocou na ficha: “processo pulmonar agudo, originado por desnutrição crônica”.

VICENTE: Desnutrição crônica

IRMÃ: Tem outro nome mais comum: fome. Este homem passou fome por muito tempo.

BARBOZA: (FILTRO) Oito meses que não consigo nada fixo. Tem dias que não temos nada para comer.

IRMÃ: E foi assim que começou o processo.

VICENTE: Quando, por fim, conseguiu emprego, já era tarde. A fome já havia feito seu trabalho. Já havia minado seu organismo.

IRMÃ: Se você soubesse Padre. Este hospital está cheio de casos assim. É o círculo vicioso da miséria. Não conseguem trabalho, vem o de-semprego. O desemprego gera a miséria, que causa fome. A fome traz doenças e assim não podem trabalhar e assim continua o ciclo, a cadeia. (6)

BELTRAN: (FILTRO) Posso garantir Vicente, que neste país, se as pessoas não trabalham é porque não querem. gente folgada. Trabalho tem de sobra, mas ninguém quer trabalhar...

VICENTE: (RELATA) Hoje não, porque perdi o ânimo. Mas algum dia desses descerei na Avenida Independência. Voltarei a te ver, colega. Conta-rei o caso de Domingo Barboza, talvez lhe faça pensar. (7)

TÉCNICA: FECHAMENTO MUSICAL QUE CONVIDA A REFLEXÃO

194 Mario Kaplún

Comentários

(1) Observe-se que as frases de Barboza não aparecem em uma ordem cronológica, na ordem que se supõe que foram ditas, mas seguem a ordem que foram surgindo na mente de Vicente por associações com a sua situação atual na medida em que esta as faz recordar. Dessa maneira, tira-se o caráter fotográfico, realista, da invocação, e se lhe dá mais força de expressão. Estabelece-se uma espécie de diálogo entre os pensamentos de Vicente e as palavras de Barbosa que lhe vem à mente. Às vezes, as frases deste último se repetem. Voltam, reiterativas, como se estivessem interpelando a Vicente.

(2) Como no exemplo anterior (“os da mesa do fundo”), aqui se questio-na o preconceito, um estereótipo corrente, muito comum até entre os setores populares. Beltran se expressa da forma clássica: “Trabalho tem de sobra, só não trabalha aquele que não quer, quem é pregui-çoso e indolente”. Fala assim, ainda que os comentários anteriores de Molina o desmintam. É o mesmo estereótipo utilizado para ex-plicar o subdesenvolvimento: se existem países pobres é porque seus habitantes são indolentes e não querem trabalhar. Vicente vive dois diálogos simultâneos, mas separados. Por um lado, ouve Beltran, por outro, em seu pensamento, ouve Barboza. Ele está entre os dois, mas não pode colocá-los em comunicação, pois uma barreira de precon-ceito os separa.

(3) Voltam as mesmas reclamações de Barboza, mas agora elas adqui-rem um significado diferente. Vicente volta a se lembrar delas com amargura e indignação.

(4) O efeito de voz telefônica, já descrito neste capítulo.

(5) Barboza é, agora, quem está presente, mas o filtro traz as palavras de Molina e de Beltran. Assim, o efeito cumpre uma nova dimensão expressiva. O contraste entre as frases de Beltran e a realidade de Barbosa, que está internado no hospital, ressalta bem a barreira de preconceitos que faz com que se ignore o drama dos marginalizados.

195Produção de Programas de Rádio

(6) É, expresso em uma história individual, o mesmo “círculo vicioso do subdesenvolvimento”.

(7) As últimas palavras são dirigidas a Beltran, mas também, são indire-tamente direcionadas aos ouvintes que se identificaram com o modo de pensar do personagem e podem, facilmente, fazer coro a estes mesmos preconceitos. É um chamado à reflexão de todos.

196 Mario Kaplún

Capítulo

7A informação no rádio

Uma das funções mais importantes que competem à radiodifusão é a de informar. Para boa parte da população latino-americana, o rádio é a principal, quando não a única, fonte de informação.

O informativo não se constitui em um campo independente do edu-cativo, ao contrário, eles estão interligados. Boa parte do trabalho do comunicador-educador consiste em transmitir informação, dados, co-nhecimentos. Se o público popular adota uma “atitude errônea” é, em boa parte, devido à desinformação. Os preconceitos emanam, muitas vezes, de uma informação insuficiente ou deformada. Dessa forma, co-nhecer a técnica de como informar é necessário para todo comunica-dor-educador: está na própria base de seu trabalho.

Entre as preocupações do comunicador que se propõe a utilizar o rádio com fins educativos, também as notícias devem ocupar um lugar de destaque. Aqui não desenvolveremos a técnica das notícias – como obtê-las, como emiti-las etc. – pois ela faz parte da técnica jornalística e o leitor poderá encontrá-la nos bons manuais de jornalismo. Por outro lado, este livro trata da produção de programas de rádio e as notícias não são propriamente programas, mas se constituem como um serviço das emissoras. Mas daremos orientações sobre o tratamento e manejo das notícias do ponto de vista educativo.

Além disso, muitos dos princípios técnicos que abordamos neste ca-pítulo se relacionam não só com a informação de notícias, mas com toda a comunicação de informação educativa, em geral. De modo que o leitor fará bem em tomar conhecimento deles, mesmo quando não se proponha, especificamente, a um objetivo informativo-noticioso no seu trabalho radiofônico.

197Produção de Programas de Rádio

1. A redação

Os materiais que chegam à mesa do jornalista que atua no rádio não estão, quase nunca, em condições de serem lidos no microfone tais como foram escritos. Ante cada material que se deseja transmitir é preciso se perguntar se foi escrito em um estilo que possa ser lido em tom de conversação, se está escrito para falar e não para ler. Se não for assim, deve-se saber adaptá-lo. Aqui colocamos algumas regras básicas de redação para rádio, a que devemos ater-nos tanto para informar uma notícia, como para comunicar conhecimentos com fins educativos.

1. Vocabulário. Empregar palavras simples, de uso frequente. Elimi-nar ao máximo possível os termos abstratos e técnicos. Quando for imprescindível o seu uso, deve-se explicar de modo que se tornem compreensíveis.

2. Tamanho das palavras. Prefira palavras curtas, de poucas sílabas. Os estudos realizados demonstraram que existe uma relação entre o tamanho da palavra, seu uso coloquial e a compreensão dessa pala-vra pela maioria das pessoas.

3. Sintaxe. A estrutura interna da frase e sua construção são determi-nantes para uma boa captação no rádio. Prefira sempre a construção direta: sujeito, verbo, complemento. Evite o uso de frases subordina-das, parênteses etc. Tente não colocar uma frase explicativa no meio da oração principal: melhor, divida a ideia e organize o conceito em duas frases.

4. Tamanho das frases. Em todos os Meios de Comunicação de Mas-sa é aconselhável a utilização de frases curtas. As pesquisas apon-tam que existe uma clara relação entre a extensão da frase e quanto as pessoas conseguem compreender e reter da mesma. Se é assim para todos os meios de comunicação, no rádio essa premissa ga-nha mais força devido à sua natureza oral. Escreva frases que, em geral, não excedam quinze ou vinte palavras. Quanto mais curtas, melhor.

198 Mario Kaplún

5. Apresentação de números. Se precisar falar de números, é neces-sário simplificá-los e arredondá-los. Não fale, por exemplo, de um valor de R$ 5.174.218,42. Diga “perto de 5 milhões”.

Mesmo assim, os números absolutos têm pouco valor, pois são pou-co percebidos no rádio. É melhor usar quantias relativas, porcentagens, por exemplo. Mas, é claro, sem frações decimais. Diga 49 por cento em vez de 48,8% ou, melhor que isso, “aproximadamente 50 por cento”.

Ainda melhor que as porcentagens são as proporções. Melhor do que dizer 50 por cento é dizer a metade. Mais visual do que dizer 76 por cen-to é dizer três quartos. No lugar de 31 por cento diga “três em cada dez”, em vez de 82 por cento diga “quatro em cada cinco”.

Alguns autores aconselham ainda que, nos casos em que é preciso dar medidas e pesos, deve-se dizer em forma comparativa. Por exem-plo, um objeto mede tanto por tanto é menos eficiente que dizer que mede como um pacote com dez maços de cigarro. É mais provável que o ouvinte consiga visualizar uma determinada altura se é dito que mede o equivalente a um prédio de oito andares, uma distância será melhor visualizada se indicar distâncias aproximadas entre duas cidades conhe-cidas pelo ouvinte, um território será melhor avaliado se comparado com uma cidade ou estado do próprio país.

Um exemplo de adaptaçãoColocamos na coluna da esquerda um texto, pego ao acaso, publica-

do pela imprensa em julho de 1977 e, na coluna da direita, uma possível versão para o rádio.

O presidente Ernesto geisel, anulando a vigente lei de propaganda eleitoral, que concede anualmente duas horas de tempo livre para transmissão por rádio e televisão para propaganda política, utilizou seus poderes especiais para or-denar a suspensão do uso destes meios aos dois únicos partidos autorizados do Brasil.

Os dois únicos partidos políticos autori-zados no Brasil já não poderão utilizar o rádio e a televisão para sua propa-ganda. Assim ordenou o presidente geisel. A lei de propaganda eleitoral concedia aos partidos duas horas por ano em Rádio e TV. Para ordenar a anulação geisel recorreu aos seus po-deres especiais.

Uma pesada oração de 47 palavras foi transformada em quatro frases breves e diretas.

199Produção de Programas de Rádio

2. A seleção da informação

Considera-se, geralmente, que uma emissora informa bem quando ela dá muitas notícias. Na perspectiva deste livro, o volume quantitativo de informações não é o único que se considera, nem é o mais relevan-te. Mais que estabelecer quantas notícias se transmitem, interessa saber quais notícias são dadas e como são apresentadas.

Os conteúdosPesquisas realizadas em cinco países latino-americanos apontam que

a informação radiofônica tem as seguintes características em todos eles: a. Predominância de notícias triviais e insignificantes.b. Pouco interesse pelos aspectos econômicos, pelas notícias relaciona-

das com o desenvolvimento, os problemas sociais, a educação e as questões trabalhistas.

c. No nacional, pouca preocupação com os problemas do interior do país e da população rural. Os noticiários estão monopolizados pelos assuntos da capital, ao interior se dá uma importância muito peque-na.

d. No noticiário internacional, que é escasso, há prevalência majori-tária das notícias procedentes da Europa Ocidental e dos Estados Unidos, com pouco destaque para os países latino-americanos, o ter-ceiro mundo e os países socialistas.

 Deste diagnóstico surgem os critérios seletivos que deveriam nor-tear um bom serviço de informação. Ele deveria priorizar notícias sé-rias, que realmente importam, especialmente em matéria de desenvol-vimento nacional; destacar os fatos políticos e econômicos, dar a devida importância às questões sociais e do trabalho. Deveria dar o devido des-taque as notícias relacionadas à educação, à cultura e à ciência e tecnolo-gia ao invés de dar tanto espaço às notícias triviais, às informações sobre eventos esportivos e à crônica policial (crimes e assaltos). 

 Outro ponto seria aumentar a importância atribuída ao interior e à população rural no conjunto da informação nacional. Na área interna-cional, o destaque para as notícias dos países latino-americanos e um equilíbrio das diferentes regiões do globo incluindo o terceiro mundo e a parte socialista.

200 Mario Kaplún

O tratamento da informação  Outro traço apontado pelos estudos feitos é a superficialidade com

que a notícia é dada.  No rádio latino-americano foi imposta uma moda-lidade que muitos especialistas chamam avalanche informativa.  Usan-do um estilo telegráfico, busca-se lançar num mínimo de minutos o maior número possível de notícias. O ouvinte é submetido a um bom-bardeio de pequenas notícias, não localizadas, não hierarquizadas, não explicadas e não relacionadas. Falta o antecedente, o ordenamento, a localização de cada fato em um contexto. O resultado, de acordo com um renomado jornalista, é que o ouvinte ouve rádio para se informar, mas esse bombardeio, de fato, o desinforma.    

Em um bom serviço de informação, como um bom jornal, a notícia é colocada em ordem, apresentada em seções. E, acima de tudo, é explica-da, situada no tempo, no espaço, na história. A cada uma são dadas suas origens, motivações, seu significado, suas consequências. A informação básica é completada com crônicas, entrevistas e comentários adicionais que permitem ao ouvinte, orientado, entender e fazer um julgamento sobre os eventos que recebe. 

Daí o valor potencial que damos ao formato de notícias de rádio. Conforme descrito no capítulo 5, o noticiário jornalístico é um longo espaço – de até uma hora – sob a orientação de um jornalista capaz, com um corpo de repórteres, editores e comentaristas e que, além de informações, inclui editoriais, comentários, crônicas, entrevistas, seções de análise, cartas de ouvintes etc. Ao superar a leitura simples de tele-gramas, um bom noticiário de rádio, bem estruturado e dirigido, dá ao ouvinte condições de compreender o significado dos acontecimentos de seu país e do mundo.

 

Exemplo Nº4: radiodrama jornalístico ‘‘O caso do que não pôde nascer’’

 Nós conversamos sobre a relatividade dos gêneros no rádio. A  série Jurado no 13 pode ser considerada um programa jornalístico pela temá-tica que trata –  as abordagens de radiorreportagem – e pelas técnicas utilizadas, um radiodrama.

 O programa acontece em um imaginário “tribunal do povo”,  onde se discutem diversos problemas latino-americanos. Cada um dá lugar

201Produção de Programas de Rádio

a um julgamento, com a presença de um réu,   promotor, advogado e testemunhas. Cada processo se desenvolve em três capítulos de 24 mi-nutos. O ouvinte é convidado a ser o décimo terceiro jurado e  a  emitir também o seu veredicto. De fato, cada capítulo começa com esta apre-sentação:

VOZ DA MULHER:

(POR ALTOFALANTE). Jurado número 13, apresente-se na sala, por favor. Jurado número 13, apresente-se na sala, por favor.

TÉCNICA CARACTERÍSTICA MUSICAL / BAIXA E DEIXA DE FUNDO

LOCUTOR 1: Jurado número 13.

LOCUTOR 2: Porque neste Tribunal do Povo há doze jurados e mais um: você.

TÉCNICA LEVANTA CARACTERÍSTICA

No processo que transcrevemos, você poderá observar como é pos-sível  apresentar ao ouvinte informação econômica, política e social bas-tante complexa, de um jeito ágil, divertido e acessível, usando a drama-tização.

 A obra foi escrita em 1970, os fatos e os números são, assim, desa-tualizados. Mas o que importa aqui não é a validade dos dados, mas a estrutura do programa e a técnica dinâmica utilizadas para divulgar informações e  apresentar um problema.

 Série: JURADO no 13

Capítulos; 19 e 20

Título: O caso do que não pôde nascer

Autor: Mario César (Mario Kaplún)

Produção: SERPAL

Disco: SERPAL No. 1310

Duração: 23’46”

 PERSONAgENS– NARRADOR

– JUIZ

– ESCRIVÃO

– OLMOS, Pedro. Um médico humanitário. Idade madura.

– ASSUNÇÃO Lopez de Estrella. Uma mãe humilde. 26 anos

– ARÉVALO, Arturo. Um jovem médico, preparado, impetuoso.

202 Mario Kaplún

– LOCUTOR de anúncios de rádio.

– FOSSATTI. Jovem engenheiro, especialista em dados e números.

– CARBONE, Miguel. Jovem engenheiro agrônomo uruguaio. Sotaque uruguaio.

– SAAVEDRA, Jorge. Prestigiado economista.

– KENT, Stewart. Representante do Programa de Apoio ao Desenvolvimento. Sotaque americano, sem exagero.

SEQUÊNCIA 1Duração: 23’46”

OLMOS Meu nome, senhor Juiz? Eu não tenho nome. Eu não tenho rosto. Eu não tenho corpo. Eu não tenho voz. Eu falo com a voz que outro me empresta. Eu não existo. Eu não sou. Não me deixaram ser. Não me deixaram viver. Não me deixaram nascer.

TÉCNICA CORTINA MUSICAL

JUIZ Então você...

OLMOS Sim, senhor Juiz. Me apresento ante o Tribunal do Povo em nome de meu representado, pedindo justiça.

JUIZ Você não é deste país, não é verdade?

OLMOS Não, Sr. Juiz. Eu pertenço a outro país latino-americano e o meu cliente também. O caso não aconteceu aqui, mas eu pensei que o Tribunal do Povo iria me ouvir de qualquer forma.

JUIZ Pensou bem. Os Estados têm suas fronteiras, jurisdições. Os po-vos... são outra coisa. Este Tribunal trabalha para todos do nosso continente. Suas audiências são ouvidas em muitos países latino--americanos. O Tribunal está aberto a todos os povos da América Latina.

OLMOS Obrigado.

JUIZ Bem: quem é o seu cliente? Qual o nome dele?

OLMOS Quem eu defendo não existe, Sr. Juiz. Ele poderia ter se chamado Juan Estrella, José Estrella ou Maria Estrella. Mas ele não chegou a ter um nome, nem rosto, nem voz. Porque aplicaram um método contraceptivo à sua mãe, Assunção Estrella, e ...

JUIZ Compreendo.

OLMOS Se meu cliente pudesse falar, ele diria: “Não me deixaram nascer.’’ E eu venho reclamar pela vida que lhe negaram.

JUIZ Certo. O Tribunal do Povo vai ouvir a sua reclamação.

TÉCNICA CORTINA MUSICAL

LOCUTOR A partir de agora, esta emissora passa a transmitir diretamente do Tribunal do Povo.

ESTÚDIO AMBIENTE DE ESTÚDIO CHEIO (TÉCNICA REFORÇA) SENSA-ÇÃO DE TRANSMISSÃO EXTERNA (1)

203Produção de Programas de Rádio

NARRADOR Bem, aqui agora está um mar de gente. Câmeras de televisão, re-pórteres, fotógrafos. E não só de nosso país. Eles vieram de toda a América Latina. Vê-se que o problema do controle da natalidade inte-ressa a todo o continente, está sendo discutido por toda parte. Daqui posso ver médicos, economistas, políticos, sacerdotes, homens de governo. Há ainda representantes de organizações internacionais, vindos especialmente dos Estados Unidos, para participar do debate. O Programa de Assistência para o Desenvolvimento, com sede em Washington, enviou um observador ilustre, o Sr. Stewart Kent, espe-cialista em programas de controle de natalidade. Nas últimas fileiras se acotovelam muitos pais e mães de família que querem compreen-der melhor essa questão tão discutida de se limitar os nascimentos. Jurado número 13, você é privilegiado: há um lugar reservado para você na fila da frente, de onde você poderá acompanhar o julgamen-to sem perder nenhum detalhe. Venha.

EFEITO TRÊS gOLPES DE MARTELO

JUIZ O Tribunal do Povo inicia a sessão. Declaro aberta a audiência. (2)

EFEITO UM gOLPE DE MARTELO

JUIZ O acusador.

OLMOS Como você sabe, o acusador não existe, Sr. juiz. Ele vai falar pela minha voz.

ESCRIVÃO O seu nome, senhor?

OLMOS Pedro Olmos

ESCRIVÃO A sua profissão?

OLMOS Médico. Médico de crianças.

ESCRIVÃO Ocupa um cargo público no seu país?

OLMOS Ocupava. Era diretor de um hospital infantil. Assinei com outros mé-dicos uma declaração protestando contra a campanha de controle de natalidade. Me recusei a retratar-me. Exigiram a minha renúncia.

JUIZ Bem, exponha sua acusação, Dr. Olmos.

OLMOS Não sou eu o que acusa. O acusador é um dos muitos filhos (milha-res) que estão deixando de nascer em meu país desde que começou a ser aplicado maciçamente o controle de natalidade. Ouça-o. Ele vem dizer aqui: “Eu poderia ter nascido como vocês. Eu não nasci. Eu fui privado do mais básico dos direitos: o direito à vida. A vida! Existe algo maior do que isso? A vida! Talvez tivesse tido uma vida feliz. Talvez, não. Ou certamente teria sido como a vida de todos: parte alegrias, parte sofrimentos. Mas teria vivido. Teria conhecido a luz solar, o afeto de um amigo, o beijo de uma namorada.

JUIZ E quem decidiu que não viverias? Os seus pais, talvez?

OLMOS Essa é a primeira coisa a investigar. Posso chamar a mãe de meu cliente nesta sala? Posso interrogá-la?

JUIZ Agora mesmo.

ESCRIVÃO A testemunha.

EFEITO PASSOS

204 Mario Kaplún

ESCRIVÃO O seu nome?

ASSUNÇÃO Assunção López de Estrella.

ESCRIVÃO Casada, não? Sua idade?

ASSUNÇÃO 26 anos.

ESCRIVÃO Filhos?

ASSUNÇÃO Três.

OLMOS E sobre as crianças, saudáveis, normais? Existe algum defeito con-gênito na família que poderia fazer com que uma criança não nas-cesse normal?

ASSUNÇÃO Não, doutor. Estamos todos saudáveis, graças a Deus.

OLMOS E seus partos, Assunção, foram normais? Algum médico a avisou que deveria evitar ter mais filhos por risco para a sua vida ou saúde?

ASSUNÇÃO Não, doutor. Eu sou jovem e forte.

OLMOS Quer dizer que não havia razão médica para evitar o parto. “E então – questiona o meu cliente – mamãe, por que você não me deixou nascer?”

ASSUNÇÃO Não fui eu... eu não!

OLMOS Não foi você? Foi quem, então? Preste bem atenção no que eu estou perguntando, minha senhora, porque é crucial. Você decidiu que não queria essa criança livremente, de boa vontade, porque seu marido e você conversaram e decidiram que não poderiam ou não deveriam criar mais filhos agora? Foram espontaneamente à clínica dizer que não queriam mais filhos e pedir ajuda? Porque se foi assim, retiro as acusações e este julgamento termina aqui.

ARÉVALO Ridículo, Sr. Juiz! Protesto! Claro que a senhora estava livre para fazer ou não fazer o que fez! Quem poderia forçá-la? Como?

EFEITO MARTELO

JUIZ A testemunha deve responder. Responda, minha senhora.

ASSUNÇÃO Bem. Eu moro em um bairro pobre (eu sou muito pobre...). De repen-te, fizeram uma clínica no meu distrito, um luxo. Branca, brilhante, linda. Uma clínica... como se diz?

OLMOS Materno-infantil.

ASSUNÇÃO Isso: materno-infantil.

OLMOS E não percebeu a placa na entrada?

ASSUNÇÃO Sim, é verdade, há uma placa, mas...

OLMOS Diz: “Esta clínica foi doada ao Ministério da Saúde pelo Programa de Assistência ao Desenvolvimento”. Prossiga, senhora.

ASSUNÇÃO Eu fui um dia com a minha menina mais nova, porque ela tinha uma dor de garganta. E me atenderam muito bem. Me deram penicilina de graça. E até me deram um presente: eles me deram um monte de leite em pó... norte-americano. Muito bom.

OLMOS Muito amáveis, hein?

205Produção de Programas de Rádio

ASSUNÇÃO Depois a doutora pediu para eu me sentar porque ela queria falar comigo. Me perguntou quantos filhos eu tinha. Respondi: “três”. “É o suficiente para uma mulher pobre”, me disse. Você sabe que agora é muito fácil conseguir formas para não ter mais crianças. É um crime você continuar a ter mais filhos”. Eu fiquei com medo e saí correndo. Um crime? Como é que vai ser um crime ter filhos?

OLMOS Você contou o que aconteceu ao seu marido?

ASSUNÇÃO Sim, e ele ficou irritado e disse para eu nunca mais voltar lá, ele não queria. Mas a médica começou a ir lá em casa quando meu marido não estava.

OLMOS Foi muitas vezes?

ASSUNÇÃO Sim, muitas vezes. E sempre a mesma coisa. Falava que havia ma-neiras de evitar filhos, com pílulas e aparelhos e que não doía nada. Que era uma barbaridade encher-se de filhos. Então, eu comecei a ouvir as coisas que disseram no rádio...

OLMOS Devo esclarecer que, no meu país, o governo está fazendo uma grande campanha publicitária em favor do controle de natalidade. Eu gravei alguns anúncios. Escutem este, por exemplo...

EFEITO ESCUTA DA gRAVAÇÃO POR ALTO-FALANTE

LOCUTOR Seja uma boa cidadã. Ajude a pátria. Limite os nascimentos.

OLMOS E este outro:

LOCUTOR Famílias numerosas são famílias indigentes. Só sairemos da pobreza se frearmos a natalidade.

ASSUNÇÃO Sim, eram estes anúncios. Eu também comecei a ver cartazes nas ruas. Um me impressionou muito, com um menino maltrapilho e do-ente dizendo: “Mãe, por que me fizeste?” Eu comecei a me assustar. E a médica voltava e ficava com raiva, dizia que eu era ignorante e não entendia que era para o meu bem, da minha família e do país. Que, se as pessoas continuassem a ter filhos sem parar, o país afun-daria na pobreza e o que seria de todos? E dos meus próprios filhos também? E a médica me disse que se eu fosse boa e me importasse me dariam leite em pó todos os dias. Mas se eu não lhe desse aten-ção e continuasse a ter filhos, deveria ter cuidado, porque o governo poderia ficar com raiva e cortar o salário-família do meu marido. E o que seria de nós sem o salário-família? E, no final, eu não disse nada ao meu marido e escutei a médica.

OLMOS (COM IRONIA). Estão vendo, jurados. Não! De jeito nenhum! Esta mulher não foi empurrada, não foi pressionada! Agiu livremente, de boa vontade! E? Teve algum resultado?

(3)

ASSUNÇÃO Sim, nunca mais engravidei. Mas até hoje eu ainda me pergunto se fiz bem ou fiz errado. Doutor, fiz certo ou fiz errado?

ARÉVALO Fez bem, senhora, fique tranquila, agiu perfeitamente bem! Me per-mite, Sr. Juiz?

TÉCNICA CORTINA MUSICAL

======= INTERVALO COMERCIAL ===============================

TÉCNICA CORTINA MUSICAL

206 Mario Kaplún

NARRADOR Uma nova voz intervém no julgamento.

ARÉVALO Arturo Arévalo. Médico, como meu compatriota. O colega me conhe-ce perfeitamente. Eu sou o diretor da Campanha Nacional de Con-trole da Natalidade. Venho a este Tribunal assumir a defesa do meu governo e provar que esta mulher agiu perfeitamente bem. Que pode ficar feliz. Que prestou um serviço ao país. Eu posso falar, Sr. Juiz?

JUIZ Com a palavra, a defesa.

ARÉVALO A acusação quer mexer com os nossos sentimentos com esta novela do filho que não nasceu. Mas eu não vou falar de criaturas de ficção, mas de números reais. Senhor Juiz: a população mundial em 1965 ultrapassou os 3 mil milhões de seres humanos. Mas no ano de 2000, seremos 7 bilhões. Vocês conseguem imaginar um mundo povoado por 7 bilhões? É assustador, certo? Mas se o problema é grave em todo o mundo, é infinitamente mais grave para os países latino-ame-ricanos. Porque a América Latina é a região do mundo cuja popula-ção está crescendo mais rapidamente. Eu não vim sozinho. Eu vim com especialistas. O engenheiro Fossatti é considerado eminência internacional nesses assuntos. Engenheiro, qual é a taxa de cresci-mento anual da população da Europa, por exemplo?

FOSSATTI 7 por mil.

ARÉVALO E na América do Norte?

FOSSATTI 14 por mil.

ARÉVALO E na América Latina?

FOSSATTI 28 por mil.

ESTÚDIO COMENTÁRIOS

ARÉVALO Nossa população se multiplica duas vezes mais rápido que a da América do Norte e quatro vezes mais do que a da Europa. A Europa vai ter que esperar cem anos para dobrar a população que o meu país vai dobrar em 20 anos. Engenheiro, qual era a população da América Latina em 1920?

FOSSATTI Nós éramos apenas 90 milhões.

ARÉVALO E em 1960?

FOSSATTI 210 milhões.

ARÉVALO Vocês percebem? Em apenas 40 anos a população mais do que du-plicou... quase duas vezes e meia. Bem, 210 milhões em 60 anos. Quantos somos agora?

FOSSATTI Nós já passamos de 300 milhões.

ARÉVALO Se seguirmos multiplicando dessa maneira vertiginosa, sem fazer um controle de nascimentos, quantos seremos em 1980?

FOSSATTI 380 milhões.

ARÉVALO E em 2000? (O ano 2000 parece uma data muito remota, mas não é mais... os nascidos hoje estarão em plena juventude em 2000).

FOSSATTI Em 2000, se continuarmos nesse ritmo, seremos 640 milhões.

207Produção de Programas de Rádio

ARÉVALO Vocês percebem? A cada poucas décadas, estamos dobrando, tri-plicando nossa população. E se agora já temos os problemas que temos, como será com duas vezes, três vezes mais população? Isso é o que é chamado de “explosão populacional”. Esse é o fantasma que ameaça nos jogar na miséria! Esse é o verdadeiro inimigo do progresso dos nossos povos! É preciso alimentar, dar de comer a todas essas bocas! Se o filho de Assunção tivesse nascido, teria pe-dido para comer. Engenheiro... (4)

FOSSATTI Apenas para manter os atuais níveis de nutrição do nosso povo...

ARÉVALO ... que nós já sabemos que são baixos, que há escassez, que há fome ...Siga, engenheiro, para apenas podermos continuar a co-mer tão mal como agora ...

FOSSATTI ... teríamos que dobrar nossa produção de alimentos nos próximos 15 anos e triplicar nos próximos 25. Precisaríamos, a cada ano, de mais 33 milhões de toneladas de cereais, frutas e leite... de mais 15 milhões de toneladas de carne bovina e mais açúcar...

ARÉVALO É uma montanha de comida! Onde é que vamos chegar? Claro, que o Dr. Olmos não diz. Saúde. Se o cliente imaginário de meu colega vivesse, gostaria de viver saudável.

FOSSATTI Para atender a demanda de saúde dessa população, devería-mos aumentar, até o ano de 2000, em 2 milhões, a capacidade de leitos hospitalares.

ARÉVALO Quero dizer, levantar 3.000 novos hospitais enormes. Educação. O suposto filho dos Estrella reivindicaria aprender. Ele não ia querer ser um analfabeto. Teríamos que ter mais escolas.

FOSSATTI Hoje temos 33 milhões de crianças, já é um problema para conseguir escola e ensino para todos eles. Se não estancarmos a maré, no ano 2000 serão cinco vezes mais. Serão 150 milhões reivindicando escolas! (PEQUENA PAUSA). Agora temos um milhão e meio de pro-fessores. No ano de 2000, precisaríamos de 7 milhões.

ARÉVALO E quanto custa tudo isso?

FOSSATTI Bem. Atualmente, os países da América se consegue gastar em educação apenas 1,6 bilhões de dólares anuais. No ano 2000, se-riam necessários 13 bilhões ao ano.

ARÉVALO E, Dr. Olmos? Você, que a todo custo quer que as crianças conti-nuem a nascer, com quantos milhõezinhos de dólares pensa em contribuir para mantê-las e educá-las?

TÉCNICA CORTINA MUSICAL IRÔNICA

======= INTERVALO COMERCIAL ===============================

TÉCNICA CORTINA MUSICAL

ARÉVALO Sigamos, Sr. Juiz. Sigamos a prever o futuro de felicidade de Juan Estrella. Se sobrevivesse, Juan precisaria de um emprego para tra-balhar.

FOSSATTI Se a população da América Latina continuar a crescer neste ritmo, até o ano de 2000 vai precisar de mais 200 milhões de novos em-pregos.

208 Mario Kaplún

ARÉVALO Como criar todas essas frentes de trabalho? Com qual capital? Quais investimentos? Com o que poupa o casal Estrella, ganhando ape-nas o suficiente para viver? Se agora temos tantos desempregados, quantos mais haverá se a população continua a multiplicar-se nessa velocidade insensata? Logo, o menino iria precisar de casa. Telhado.

FOSSATTI No próximo quarto de século, seriam necessárias 100 milhões de novas casas.

ARÉVALO Cem milhões de casas? Mas isso é simplesmente utópico.

FOSSATTI Claro. Impossível pensar em construí-las nesse período.

ARÉVALO O que significa que os cortiços e as favelas se multiplicarão.

FOSSATTI No ano 2000, teremos 91 milhões de famílias, 450 milhões de ho-mens, mulheres e crianças, mais de dois terços da população total, vivendo em favelas superlotadas!

ESTÚDIO COMENTÁRIOS

ARÉVALO E isto não é ficção científica, senhores! Sem mencionar o transporte, água, saneamento, luz elétrica. Juan Estrella terá que se mover de um lado para o outro, viajar... vai querer beber água potável, lavar-se, ter luz. Ou chegará o dia em que perguntará: por que me deram a vida? Para viver assim, sem pão, sem saúde, sem escola, sem teto, sem emprego? Não é muito melhor, então Juan Estrella, fazermos o que tínhamos que fazer para que você não nascesse? Dr. Olmos diz que é um crime não ter deixado você nascer. Eu digo que é um ato de humanidade!

ESTÚDIO COMENTÁRIOS (A MAIORIA APROVA) / MARTELO DO JUIZ

ARÉVALO A Sra. Estrella se pergunta se fez certo ou errado. E eu digo: «Tenho que parabenizá-la pelo que fez, senhora» O que é melhor? Multi-plicarmos, continuarmos fazendo crianças para morrer de fome, ou limitar o nascimento... para sermos menos e podermos dar um prato de comida para cada um? Querem processar o governo do meu país por ter implantado o controle de natalidade. Eu digo que meu go-verno está fazendo o seu dever, um trabalho patriótico, e que todos os países latino-americanos deveriam seguir o nosso exemplo. Que outra maneira, que outra solução contra essa explosão, além de co-locar uma barreira, um muro de contenção para deter a maré? Se, às vezes, usamos métodos um tanto... de pressão sobre as mães? Mas, senhores, se eu vejo alguém prestes a cometer suicídio, a se jogar debaixo do trem, me repreenderiam por dar-lhe um golpe na cabeça para salvá-lo? E que as famílias que tem filho sem controle estão fazendo é suicídio! A América Latina está indo para um suicídio coletivo! E não é exagero usar a palavra suicídio. Porque se con-tinuarem a se multiplicar, vai chegar um dia em que estas massas famintas, desesperadas, vão explodir e devastar tudo. O crescimento dos países pobres é uma ameaça para a paz mundial! (5)

ESTÚDIO APLAUSOS / PEDIDO DE SILÊNCIO / MARTELO DO JUIZ

JUIZ A sala não deve se manifestar. Doutor Olmos: você ouviu a alegação da defesa. Deseja que se conceda a oportunidade de responder na próxima audiência?

209Produção de Programas de Rádio

OLMOSARÉVALO

Certamente, meritíssimo! Ah, é mesmo? Eu não sei como você pode responder depois dos argumentos arrasadores que foram apresentados. O que pretende o acusador? Que deixemos que os pobres continuem tendo bebês como coelhos?

OLMOS Você ouvirá a minha resposta na próxima audiência, Sr. defensor!

EFEITO UM gOLPE DE MARTELO

JUIZ O Tribunal do Povo está em recesso.

EFEITO TRÊS gOLPES DE MARTELO / COMENTÁRIOS DAS PESSOAS AO RETIRAREM-SE

NARRADOR Todos se retiram da sala do tribunal discutindo acaloradamente. Ima-gino que você também terá que discutir, Jurado número 13. As pes-soas se perguntam quais podem ser os argumentos do Dr. Olmos contra a esmagadora massa de dados apresentada pela defesa. Eu aposto que ninguém vai perder a próxima audiência. Até lá.

TÉCNICA ENCERRAMENTO MUSICAL.

SEQUÊNCIA IIDuração: 23’28”

Apresen- tador

A partir de agora, esta emissora transmite diretamente do Tribunal do Povo.

ESTÚDIO AMBIENTE (MUITO PÚBLICO)

NARRADOR No meio de uma sala completamente cheia é grande a expectativa. Vai recomeçar o julgamento sobre o controle da natalidade, que está tendo grande repercussão. Há muitos curiosos para saber quais os argumentos pode apresentar o acusador, Dr. Olmos, para refutar a defesa brilhante feita, na última audiência, pelo Dr. Arévalo. Hones-tamente, temos a impressão de que Arévalo convenceu. Pelo menos, esta manhã, lendo os comentários dos jornais, a maioria está a favor do controle de natalidade. E você, Jurado número 13, o que acha? Você concorda? Não se esqueça que, no final, você também tem que tomar sua decisão, de maneira que deve ficar muito atento a tudo o que será dito nesta audiência que está começando.

ESTÚDIO TRÊS gOLPES DE MARTELO

JUIZ O Tribunal do Povo está em sessão. Declaro terminado o recesso. A audiência continua.

ESTÚDIO UM gOLPE DE MARTELO.

JUIZ Tem a palavra o acusador.

ESCRIVÃO Dr. Olmos.

210 Mario Kaplún

OLMOS Sim, meritíssimo. Ora, senhores do júri, eu entendo que a defesa os tem impressionado. “Na América Latina, está nascendo gente demais! Nós somos a região do mundo cuja população se multiplica mais rá-pido...” impressiona, certo? Assusta!. Mas, para começar, como fa-larmos de superpopulação esquecendo que quase todos os nossos países são países desabitados! A América Latina é a região onde a população está crescendo mais rápido, é verdade. Mas, também, é uma das menos povoadas, mais vazia, mais deserta! Eu vou me valer aqui do conhecimento do próprio testemunha da defesa. Engenheiro Fossatti, poderia vir aqui um momento?

FOSSATTI (surpreso) Eu?

OLMOS Sim, você. Apesar de ser a favor da defesa, eu também posso ques-tioná-lo. Você vai me ajudar. Vem.

EFEITO PASSOS

OLMOS Você é uma autoridade em demografia, engenheiro: Qual é a den si da-de da população da Europa?

FOSSATTI Mas o que isso tem a ver com...

OLMOS Não importa, tenha a cortesia de responder.

FOSSATTI A Europa tem 61 habitantes por quilômetro quadrado.

OLMOS E a América Latina?

FOSSATTI 9 habitantes por quilômetro quadrado.

OLMOS 61 a 9! Somos um continente enorme e deserto. E queremos alarmar as pessoas porque nascem, nascem, se nós precisamos desespera-damente de pessoas! Qual é, engenheiro, a densidade da Holanda?

FOSSATTI Eu não me lembro exatamente. Eu sei que são mais de 300 habitantes por quilômetro quadrado, mas...

OLMOS Exatamente, 366. E a Holanda é um país próspero! Inglaterra? 316 habitantes por quilômetro quadrado. Japão, 265. Israel, 124. E agora vamos comparar: Venezuela, 10 habitantes por quilômetro quadrado. Brasil, 10. Peru, 9. Argentina, 8. Paraguai, 5. Bolívia, 3!.

ESTÚDIO COMENTÁRIOS

OLMOS Se há terra livre aqui, espaço extra para todos, talvez a nossa pobreza não venha do nascer. Mas ao contrário, porque ainda somos poucos, precisamos ser mais!

ARÉVALO Eu posso, Meritíssimo?

JUIZ Diga o defensor.

ARÉVALO O problema é de como, pobres como somos, vamos conseguir ali-mentar, educar, dar emprego a todos os que nascem.

OLMOS Sim, eu sei... Não seja impaciente, Arévalo, vamos chegar lá. Mas, primeiramente, há um monte de coisas para esclarecer. Engenheiro Fossatti: antes da Primeira guerra Mundial, qual destes três países tinha menos nascimentos? Inglaterra, Alemanha ou França?

211Produção de Programas de Rádio

FOSSATTI França, obviamente!

OLMOS Então, de acordo com os argumentos do Dr. Arévalo, a França deveria ter prosperado mais, certo? E foi exatamente o oposto: era o mais po-bre dos três. Inversamente: após a Segunda guerra Mundial, a Fran-ça incentivou o nascimento. Sua população cresceu rapidamente. O que aconteceu com a França? Foi arruinada? Pelo contrário, alcançou o maior desenvolvimento econômico de sua história! O que se con-clui? Que o aumento da população, longe de engendrar a pobreza, promove o progresso econômico das nações.

ARÉVALO O que você prefere?

OLMOS Senhores, o que faz a riqueza de um país é o trabalho de seus habi-tantes! O principal ativo de uma nação é o seu capital humano!

ARÉVALO Literatura, frases! Eu quero ver, tendo que alimentar milhões de bo-cas!

OLMOS É nos momentos difíceis, quando um homem aguça sua capacidade inventiva, que trabalha mais. Aqueles com filhos vão se sentir responsáveis por eles., e isso os empurra a buscar o sustento.. um impulso para o progresso!

ARÉVALO Isso é infantil! É como o ditado de que cada criança traz o seu pão debaixo do braço.

OLMOS Os provérbios encerram uma profunda sabedoria. As crianças não vêm com o seu pão debaixo do braço, mas nos dão força para sair e lutar pelo pão. O eminente economista norte-americano Colin Clark argumenta que o crescimento da população, não só não impede o de-senvolvimento econômico, mas em vez disso, gera desenvolvimento. “Até que a densidade populacional atinja um determinado nível, diz Clark, nenhuma civilização é possível.” E, apesar disso, em nossos países, quase desabitados, desertos, querem impor o controle de na-talidade!

ARÉVALO Mas esse Sr. Clark disse como alimentar uma população como a nos-sa, que está aumentando com uma velocidade insensata na casa de 30 por mil ao ano?

OLMOS 30 por mil ao ano! Diga-me, Dr. Arévalo, o que seria para você a taxa ideal de crescimento da população da América Latina, o que nos colo-caria para fora da pobreza e permitiria o desenvolvimento e a prospe-ridade de nossos povos?

ARÉVALO Bem... O ideal... Se você está falando sobre o ideal, eu diria que seria o ideal, graças ao controle de natalidade, poder reduzir os nascimen-tos pela metade.

OLMOS Ou seja, 15 por mil. Que tal se nós descermos um pouco mais? A 13 por mil. Já que estamos sonhando...

212 Mario Kaplún

ARÉVALO Ah, isso seria ótimo. Maravilhoso. Ah, se pudesse...! Mas não tenho ilusões, infelizmente, é um sonho impossível. Por mais que faça-mos campanhas de controle de natalidade, as pessoas nunca irão responder a esse ponto.

OLMOS Assim um país latino-americano que pudesse limitar o aumento anual da população em apenas 13 por mil estaria salvo... não teria proble-mas ... seria o paraíso. (COM ENERgIA) Por favor! Senhor juiz, ...mi-nha testemunha do Uruguai!

TÉCNICA CORTINA MUSICAL

======= INTERVALO COMERCIAL ====================================

TÉCNICA (UM TANgO, BAIXA LENTAMENTE E FICA UM POUCO)

OLMOS Acontece, senhores, que este país ideal, com que sonha meu colega, já existe. Uruguai, no sul da América Latina. Um país pequeno: menos de 3 milhões de habitantes. Em termos de crescimento da população, uma exceção ... o mais baixo da América Latina: 13 por mil. Três ve-zes menos do que a Venezuela, por exemplo. Enquanto no meu país cada família tem 4 ou 5 filhos, a família média uruguaia tem 1 ou 2. Se fosse verdade que a baixa taxa de natalidade traz desenvolvimento, bem-estar, o progresso, o Uruguai seria o paraíso latino-americano. Bem, vamos ver como os uruguaios fazem. Ontem, por acaso, conhe-ci este jovem em um café do centro. Uruguaio. Seu nome é Miguel Carbone. É engenheiro agrônomo e acaba de chegar a esta cidade. A passeio, Carbone?

CARBONE Não. Eu vim para residir aqui permanentemente.

OLMOS Abandonou o seu país.

CARBONE Sim, eu deixei o Uruguai. (COM PESAR) Talvez para sempre. Se eu encontrar trabalho aqui, eu vou ficar.

OLMOS Não gosta do Uruguai?

CARBONE Como eu não vou gostar? É um país maravilhoso. E além disso é o meu país. Eu o carrego na alma. Mas... o que vou fazer se não con-sigo um trabalho lá?

OLMOS Como? Um agrônomo não consegue trabalho em um país rural como o Uruguai?

CARBONE Não apenas eu. Ninguém está conseguindo trabalho lá agora. Todos nós temos de emigrar, sair em busca de trabalho no exterior. Há me-nos de 3 milhões uruguaios dentro e um milhão fora. É uma tragédia o que estamos vivendo. Todos vão: profissionais, trabalhadores. Os melhores, os mais capazes. Partimos com o coração partido. Mas que remédio?

ARÉVALO Bem, emigração, gente indo embora há em toda a América Latina. É um mal geral.

213Produção de Programas de Rádio

OLMOS Sim, mas justamente: o Uruguai está igual. Não se livrou desse mal. De acordo com sua tese, Arévalo, o país com a taxa de natalidade mais baixa na América Latina deveria estar próspero... em pleno de-senvolvimento. E está tão ruim quanto o resto, ou pior.

CARBONE Pior. Você sabe qual é a taxa de desemprego no meu país? 15 por cento, ou mais.

ESTUDIO COMENTÁRIOS

OLMOS Mas, então, significa que a baixa taxa de natalidade não resolve nada!

CARBONE Eu não sei. O que eu sei é que estamos em uma crise assustadora.

OLMOS Mas com esta baixa natalidade, a tendência seria sobrar de tudo... estar em pleno desenvolvimento!

CARBONE Desenvolvimento? A produção do país está estagnada. O Uruguai não anda para a frente, ao contrário, vai para trás. Os outros países latino-americanos prosperam. Muito pouco, mas alguma coisa... Nas estatísticas de desenvolvimento econômico de 1967, o Uruguai está em último lugar na tabela, abaixo do Haiti, com sinal negativo.

OLMOS Então, o país que tem a taxa de natalidade mais baixa na América Latina é o país que está pior!

ARÉVALO Será que é um país excepcionalmente pobre, sem recursos...

CARBONE Não. Os recursos sobram. A terra é abundante e fértil como poucas na América Latina. Isso eu posso falar com conhecimento, eu sou um engenheiro agrônomo. Mas o que acontece? Os recursos são mal utilizados. Por exemplo, a terra, é mal distribuída.

OLMOS O latifúndio. O mal de toda a América Latina.

CARBONE Quatro por cento dos proprietários têm 57 por cento da terra. E não produzem. Em seguida, vem outro problema. Nossos produtos são lã, carne, peles. Isso é o que temos para vender. Vivemos disso.

OLMOS Só matéria-prima? Por que não a industrializam?

CARBONE Ah... sim, por exemplo, poderíamos vender nossa lã industrializada, transformada em cashmere. Então, teríamos indústria, teríamos tra-balho. Mas os países ricos nos colocam barreiras. Não querem nos comprar roupas feitas ou tecidos. Eles compram a lã crua, o bruto, do jeito que sai das ovelhas. Não querem comprar sapatos. Só compram o couro. E pelos preços que eles fixam. Pagam-nos uma ninharia. As matérias-primas valem cada vez menos no mercado internacional. Por outro lado, os produtos industrializados que temos de importar es-tão se tornando cada vez mais caros. Então, nós não podemos pagar, e temos que sair pedindo dinheiro emprestado... e os juros a serem pagos sobre os empréstimos têm nos enforcado. Asfixiado.

OLMOS Assim, a crise vem por outro lado. Não são os nascimentos que cau-sam a pobreza. O Uruguai também está pobre, em crise, apesar de sua baixa taxa de natalidade. A baixa taxa de natalidade não ajudou a resolver nada.

214 Mario Kaplún

CARBONE Pelo contrário, tem servido para agravar os nossos problemas. Trou-xe-nos outro problema: o envelhecimento da população.

OLMOS Sim. A população de um país é como uma pessoa: tem idade. Há populações mais idosas e populações mais jovens. A idade de uma população é a média de idade de seus habitantes. E, claro, se diminui a natalidade, aumenta a idade média, a proporção de idosos na popu-lação, em geral, fica maior. Continue, Carbone.

CARBONE

OLMOSCARBONE

No Uruguai, para cada quatro pessoas que trabalham, há um velho aposentado, um idoso que não produz e que se tem que manter. É uma tremenda carga financeira, um peso morto. Então esses são os benefícios da baixa taxa de natalidade. Eu, como uruguaio, digo a todos os latino-americanos: cuidado, ir-mãos! Não se enganem pelas propagandas de controle de natalidade. Elas são mentiras! Olhem para o Uruguai! Com taxa de natalidade muito baixa, temos crise, pobreza, desemprego, jovens que migram, inquietação social. Restringir nascimentos não resolve nada!

ESTÚDIO COMENTÁRIOS VIVOS

CARBONE E, ainda assim ... ainda assim, o Uruguai, esse país despovoado, envelhecido, com a taxa de natalidade mais baixa da América Latina, e ainda assim estão querendo implementar programas de controle de natalidade lá também!

OLMOS Surpreendente! Então há que se pensar que o controle de natalidade não busca sinceramente melhorar a nossa situação, mas serve a ou-tros propósitos, outras intenções!

ARÉVALO (OFENDIDO), Está se referindo a que intenções? O que você está insinuando?

OLMOS Vamos ver. Muito obrigado, engenheiro Carbone. Muito obrigado pela angustiada voz de advertência que veio trazer-nos do seu Uruguai.

TÉCNICA FINALIZA O TANgO

======= CORTINA MUSICAL ========================================

OLMOS Bem, Sr. Juiz, senhores jurados, eu acho que depois de ouvir este testemunho, já não se sentem tão seguros de que reduzir a taxa de natalidade é a grande solução, como a defesa argumenta.

ARÉVALO E deixar a população continuar a aumentar resolve? Pergunto mais uma vez: como vamos alimentar uma população que não pára de crescer? Se não colocarmos um freio nessa explosão, dentro de 25 anos vamos ter o dobro de bocas para alimentar. E com o quê?

OLMOS Este é outro dos seus grandes mitos, Arévalo. Mas, como há pouco, com o testemunho uruguaio, eu destruí um mito, vou agora acabar com esse também. Minha próxima testemunha, por favor.

ESCRIVÃO Professor Javier Saavedra.

EFEITO PASSOS

215Produção de Programas de Rádio

OLMOS Professor, você é um economista conhecido e prestigiado. O que você pode nos dizer sobre os recursos da América Latina?

SAAVEDRA Mas, doutor, você já disse antes: aqui sobra terra! Eu sofro todos os dias pensando que na América Latina há pessoas morrendo de fome e nós estamos apenas aproveitando apenas dez por cento da terra arável. Um verdadeiro crime! 90 por cento das terras são improdu-tivas. Com esse solo produzindo teríamos recursos para alimentar DEZ VEZES mais pessoas!

ESTÚDIO COMENTÁRIOS

OLMOS Não há necessidade de acrescentar mais nada, professor.

SAAVEDRA Mas há mais. As poucas terras que são cultivadas, são mal usadas com sistemas de plantio desatualizados, anacrônicos. Basta aplica-ção racional de certas técnicas para aumentar a produtividade em 50 por cento, ou mais. No Uruguai, para citar o país do jovem que tes-temunhou antes, um hectare de plantação de trigo produz seis vezes menos do que se produz na Holanda, com o mesmo hectare.

OLMOS Mas professor, por que tem tanta terra improdutiva, mal explorada?

SAAVEDRA Foi o que disse o jovem uruguaio. Porque a terra é mal distribuída. A América Latina é a região do mundo onde mais terra está concentra-da em menos mãos. É isso que está dificultando o desenvolvimento agrícola na América Latina.

OLMOS E, em vez de repartir e aproveitar melhor a terra, dizemos que a solu-ção é limitar os nascimentos!

SAAVEDRA Veja, por exemplo, o que acontece em meu próprio país. Segundo a estimativa de fontes oficiais, no meu país uma centena de crianças morre diariamente de fome.

ARÉVALO Muitos mais irão morrer se continuarem a nascer desse jeito!

SAAVEDRA Sim, entretanto, no meu país, existem 15 milhões de hectares de terra fértil (15 milhões de hectares... mais do que toda a superfície da gré-cia) completamente desaproveitadas. grandes propriedades. Porque eles só usam como pasto para gado. Cada animal dispõe de um hec-tare e meio de pastagem, enquanto 300 mil famílias de agricultores possuem menos de um hectare cada uma!

OLMOS E, enquanto isso, as crianças estão morrendo de fome.

SAAVEDRA Então se vê, doutor, que não é uma questão de suprimir bocas, mas de fazer a terra render mais do que tem rendido. E eu falei apenas da agricultura. Mas temos muitos outros recursos! A América Latina tem um quarto das florestas mundiais, a maior reserva de madeira do mundo. Está desaproveitada, inexplorada. Temos de importar madeira! Em nosso porão, há riquezas incalculáveis enterradas: ferro, óleo, cobre, estanho, ouro, prata, zinco, chumbo. Sem mencionar os recursos do mar. O dia em que a América Latina puder explorar livre-mente todas essas riquezas, poderá ser uma das regiões mais ricas do mundo. (6)

216 Mario Kaplún

OLMOS E ainda nos pintam um quadro de desastre, de miséria. E dizem-nos que a única solução é o controle da natalidade. Por que essa insistên-cia? Por que esse empenho? Senhor Juiz, aqui na sala estão perso-nalidades estrangeiras, funcionários de grandes organizações inter-nacionais. Deveria ouvi-los, para pedir uma explicação. Por exemplo, aqui está o Sr. Stewart Kent, do Programa de Assistência ao Desen-volvimento. Os esforços da sua organização deram ao meu cliente o “favor” de não ter nascido. Foi em uma clínica doada pelo PAD onde... Em nome do meu cliente, eu gostaria de perguntar algumas coisas para o Sr. Kent. Se ele tivesse a bondade...

JUIZ Mas o Sr. Kent não está aqui como testemunha, mas como um ob-servador.

OLMOS Claro, não podemos forçá-lo. Mas se ele aceitasse voluntariamente.

NARRADOR O Sr. Kent fica de pé. Falará espanhol?

KENT De minha parte, eu vou com prazer.

NARRADOR Sim, parece que sim.

KENT Mas primeiro teria que consultar a nossa sede em Washington... para pedir permissão aos meus superiores.

OLMOS

JUIZ

Certo. Senhor Juiz, eu peço um recesso para o Sr. Kent conseguir a autorização para responder às minhas perguntas. Concedido.

EFEITO MARTELO

JUIZ O Tribunal do Povo vai a um rápido recesso.

EFEITO TRÊS gOLPES DE MARTELO / AMBIENTE DA SALA

NARRADOR O interesse pelo processo continua a aumentar. A possibilidade de o Sr. Kent prestar uma declaração cria uma nova expectativa. Sentimos que, nesse ponto, as opiniões estão mais divididas. Se os argumentos do Dr. Arévalo na última audiência impactaram, muitos têm se ques-tionado, agora, depois das revelações de Dr. Olmos e, principalmen-te, após a intervenção da testemunha, do Uruguai. E você, Jurado número 13? Pense em tudo que acabou de ouvir porque na próxima audiência será a decisão. (7)

TÉCNICA ENCERRAMENTO MUSICAL

Comentários

(1) O anúncio do locutor de que “a emissora passa a transmitir direta-mente” e a ambientação sonora em torno do repórter de TV dão a aparência de uma transmissão “ao vivo”, um evento que está acon-tecendo ao mesmo tempo em que o ouvinte está acompanhando. Tudo isso contribui para dar ao programa um caráter jornalístico se

217Produção de Programas de Rádio

comparado ao radioteatro em que o narrador fala no tempo passado, sugerindo fatos que já ocorreram.

(2) A voz do juiz é ouvida em um plano um tanto remoto, como que vindo do fundo da sala. Como pode ser observado no áudio dos pro-gramas, na realização desta série foi dada muita importância para a localização dos planos sonoros.

(3) Note-se como a colocação do problema de controle de natalidade não parte de dados abstratos (superpopulação, explosão demográ-fica, a escassez mundial de recursos alimentares etc.), mas de um caso humano concreto, caso por sua vez conhecido pelo público po-pular. Isto estabelece uma relação de empatia com o ouvinte e dá os elementos de identificação. Lembrando Lazareff: “expressar as ideias por meio de fatos e os fatos por meio de seres humanos.

(4) Observe-se a força que os números ganham na argumentação pela forma como Arévalo as usa, reduzindo-as a proporções (duplo, tri-plo etc.), e apresentando-as de modo que resultam em gráficos im-pactantes, facilmente comparáveis pelo ouvinte.

(5) Certamente, a maioria dos ouvintes, na primeira sequência, deve fi-car impressionada com os argumentos de Arévalo e convencida de que ele está certo. Este modo de apresentar o assunto é proposital: devem aparecer primeiro os argumentos conhecidos e as simplifi-cações que constantemente circulam pelos meios de comunicação de massa (superpopulação, escassez de recursos, o crescimento da população supostamente explosivo etc.), para depois desmistificá--los. Pedagogicamente, isso equivale a partir da percepção ingênua de uma questão para então, gradualmente, chegar a uma interpreta-ção crítica.

(6) Veja como, através de três diálogos ágeis (um com Fossatti, outro com Carbone, o último com Saavedra) foi oferecida ao ouvinte um panorama completo de informações, onde apareceram dados da densidade populacional, o valor econômico dos recursos humanos, as teorias de Colin Clark, o caso de um país latino-americano com baixa taxa de crescimento populacional, o potencial de recursos e de riqueza do nosso continente, algumas razões pelas quais estas ri-

218 Mario Kaplún

quezas estão subaproveitadas etc. Os dois últimos diálogos são bons exemplos de entrevistas jornalísticas e o leitor pode levá-las em con-ta ao ler o capítulo sobre a técnica da entrevista. O “entrevistador” (Olmos) tem um objetivo claro do que deseja obter de seus entrevis-tados, e assim o consegue. Perguntas curtas e claras; respostas con-cretas e precisas.

(7) Limitações de espaço impedem incluir a terceira e última sequência, em que através do diálogo substancial e incisivo entre Olmos e Kent se chega ao fundo da questão. Mas pensamos que os dois capítulos incluídos são suficientes para mostrar como é possível tratar no rá-dio um tema complexo e árido de uma forma acessível e amena, e como a informação pode converter-se em um formato de radiodra-ma.

219Produção de Programas de Rádio

Capítulo

8

A Entrevista

Atualmente, não se concebe uma programação jornalística sem en-trevista. Com os modernos gravadores, é possível realizá-las a qual-quer momento e em qualquer lugar para, em seguida, difundi-las no programa. Uma rádio que não sai das quatro paredes do estúdio é uma emissora sem vida, sem comunicação. Os ouvintes não somente espe-ram escutar você, querem também participar do programa, ouvir sua própria gente, conhecer as ideias e as experiências dos demais. Sair para fazer entrevistas é levar ao microfone o que acontece na rua, na comunidade.

A entrevista é um diálogo baseado em perguntas e respostas. Re-sulta, portanto, sempre em algo mais interessante e dinâmico do que o monólogo. Um hábil entrevistador que saiba fazer perguntas oportunas pode conseguir que o entrevistado ofereça informação e opinião de for-ma ágil e atraente.

Mas, talvez, o maior valor da entrevista resida em sua força testemu-nhal. Quando ouvimos um locutor fazer comentários, estes podem pa-recer como mera opinião sem maior fundamento. Ao contrário, quando ouvimos essas mesmas afirmações feitas por um especialista, por al-guém que tem conhecimento e experiência no assunto, elas se revestem de peso e autoridade, cobram outra força de credibilidade. Alguém diz o que sabe e nós o ouvimos em sua própria voz. Poderia dizer que a entrevista no rádio tem um valor semelhante ao que tem a foto no meio impresso: é a ilustração viva, a prova, o documento.

220 Mario Kaplún

1. Técnica de entrevista

A escolha do entrevistado

Realizar uma boa entrevista não é fácil: requer um entrevistador ca-paz e um entrevistado que seja didático, claro e maleável. É necessário, portanto, alguém que saiba perguntar e alguém que saiba responder.

A quem devemos entrevistar? Quando se encara o rádio não como mero espetáculo de entretenimento, mas sim como um fim educativo e construtivo, o caráter das entrevistas varia e, com ele, também o tipo de entrevistas que escolhemos. Um ídolo popular, uma figura da atualida-de, pode estar muito na moda, mas pode ser muito vazio. Um homem comum, porém, pode ser muito mais importante pela contribuição que está fazendo a comunidade ou por ser um verdadeiro especialista em seu campo de atividade.

O entrevistador deve se perguntar sempre quem é o seu entrevistado, porque deseja que os ouvintes o escutem. Se trata de alguém somente popular e famoso, provavelmente não é uma razão suficiente para a sua escolha. Se tem algo a contribuir, algo interessante a dizer, então vale a pena entrevistá-lo.

Em todo caso, a escolha de um entrevistado tem que ter uma razão de ser, um fundamento. Não se pode fazer entrevistas somente por fazê--las, para preencher o tempo de um programa. É importante ter muito claro o objetivo a ser alcançado ao fazer uma entrevista.

Um problema que apresentam as entrevistas é que muitos entrevis-tados tem pouca clareza de expressão, são confusos e obscuros e tem pouca capacidade de síntese, dando longos rodeios sem finalizar o pen-samento. Os personagens importantes, geralmente, querem fazer mui-tas considerações que são periféricas ao interesse comum. Os especialis-tas, os intelectuais, os professores universitários tendem a dar respostas muito técnicas, muito abstratas e complexas que, frequentemente, vão alem da capacidade de compreensão do ouvinte médio. Criptografam sua mensagem em um código que não acessível ao ouvinte. Mesmo a entrevista dirigida ao homem comum, ao operário, ao trabalhador ru-ral, ao dirigente de base, com todo seu indubitável valor testemunhal, tem que estar muito bem preparada para que resulte clara, concisa, pre-cisa e útil.

221Produção de Programas de Rádio

Muitas vezes, depois de gravar uma entrevista, temos a sensação de que poderíamos ter dito o mesmo muito melhor que o entrevistado e com menos palavras. É uma opção. O que é preferível: que as coisas sejam ditas de forma um tanto imperfeita, porém, na voz autêntica das pessoas, ou mais clara e ordenada, mas sem a mesma força dessa presen-ça viva? Talvez uma solução intermediária seja fazer a entrevista seguida de um comentário que a resuma e destaque as afirmações mais impor-tantes oferecidas pelo entrevistado.

Entrevistas gravadas e ao vivo, em estúdio e externa Geralmente, grava-se a entrevista previamente antes de transmitida.

Contudo, há também entrevistas de atualidade que são transmitidas ao vivo, no momento em que são realizadas.

A entrevista gravada pode ser registrada no estúdio da emissora de rádio ou ao ar livre. Tecnicamente, a gravada em estúdio é superior pela nitidez do som, livre de ruídos, com vozes bem equilibradas em tona-lidade e volume. Contudo, as gravadas no local soam mais autênticas, adquirem mais valor de documento, transportam o ouvinte para o lugar onde o entrevistado vive, atua e trabalha. Com os modernos gravadores compactos é possível obter um som aceitável em externas, sempre, claro, que o ruído ambiental não seja excessivo.

Ainda que a gravação no local não seja perfeita, suas imperfeições técnicas são amplamente compensadas pelo seu realismo e sua esponta-neidade. Um trabalhador ou um agricultor falará com maior segurança e naturalidade em seu próprio lugar de trabalho do que se for levado para um local distante e estranho para ele, como é o estúdio de rádio, onde se sentirá intimidado e comedido. A entrevista em estúdio é como a foto de galeria, enquanto a realizada no local é como a instantânea que não sai tão perfeita, mas tem muito mais vida.

Em geral, salvo quando o ruído for excessivo, se aconselha fazer a entrevista em seu cenário natural, onde o entrevistado se sente em sua casa: o médico rural em seu centro de saúde, o agricultor em seu sítio ou no meio do campo, o secretário de cooperativa em sua sede. Porém, como a localização não assegura uma acústica ideal, devemos ter cuida-do especial para alcançar um resultado tecnicamente aceitável, apren-dendo a usar bem o gravador e o microfone. Temos que cuidar que a instantânea não saia “velada”...

222 Mario Kaplún

Técnica de gravação externa1. Tenha um bom gravador compacto de fita rolo ou um gravador cas-

sete de boa qualidade em perfeitas condições de uso30. 2. Certifique-se que seu gravador tenha conta giros31. Este dispositivo

facilitará enormemente seu trabalho momento de editar a entrevista (editar é selecionar as passagens mais significativas e eliminar o me-nos relevante). É conveniente também que o gravador tenha a tecla pausa que permite evitar que seja gravado o ruído de “click” cada vez que você tenha que parar ou retomar o registro.

3. Fique independente de energia elétrica e dos cabos. Utilize gravador a pilha ou, melhor ainda, com bateria recarregável. Porém, certifi-que-se sempre, antes de sair para a entrevista, que as pilhas estejam com carga suficiente ou que a bateria esteja bem carregada (a maior parte dos gravadores tem indicador de carga).

4. Quase todos os gravadores cassete tem microfone embutido. Este tipo de microfone favorece a naturalidade da entrevista, porque, como não é notado, intimida menos o entrevistado. No entanto, como é multidirecional, tem o inconveniente de captar muito ruí-do ambiente. Somente pode ser utilizado em recintos silenciosos e tranquilos. Na rua ou em lugares ruidosos, deve-se utilizá-lo com microfone externo, de tipo unidirecional.

5. Se estiver em um lugar fechado, procure fazer a entrevista sentados à uma mesa. Sente o entrevistado junto a você (e não o entrevistado em frente a você nem de lado) e coloque o microfone sobre a mesa, em meio aos dois. Desse modo, o microfone captará bem tanto a voz do entrevistado como a sua. O microfone deve estar a uns 20 cm de distância da boca de quem fala; se a mesa é baixa, ponha uns livros para levantá-la. Não mova o microfone enquanto grava, direcione-o bem, mantendo-o fixo e quieto.

30 Atualmente os gravadores são digitais, não necessitando mais de fita rolo ou casse-te. No entanto, mantém-se a recomendação de um equipamento de qualidade e em perfeitas condições de uso [Nota da tradução].

31 Com a digitalização dos processos, a edição passou a ser feita em softwares pró-prios, diretamente no computador. Contudo, continua recomendável que o gra-vador possua um visor com marcador de tempo para facilitar que o profissional acompanhe a duração de entrevista e faça suas marcações para posterior edição [Nota da tradução].

223Produção de Programas de Rádio

6. Em recintos grandes e fechados, posicione-se em um ângulo do lugar e não no centro, desse modo atenuará a ressonância. Prefira um ângulo que tenha cortinas, tapetes, ou mesmo perto de sacos de aniagem quando se fala em uma marquise para que absorva a ressonância em lugar de rebatê-la. Os que gravam devem se colocar de costas para o ângulo, em outras palavras, o microfone deve estar voltado para o ângulo.

7. Se a entrevista é realizada ao ar livre, pendure o gravador no pescoço por meio de cinto (para poder ficar com as mãos livres), coloque-se junto ao entrevistado (não em frente a ele, nem de lado) e mantenha o microfone externo a uns 20 cm de distância da boca de quem fala. Segure o microfone com firmeza, sem deslizá-lo nas mãos já que esse tipo de manuseio origina ruídos que sujam a gravação.

8. Antes de iniciar o registro da entrevista, faça um teste de gravação para se assegurar que o microfone está numa distancia adequada do entrevistado, nem demasiado longe (a voz sairia fraca e pouco audí-vel), nem excessivamente perto (a voz sairia confusa por saturação do som).

9. Tenha cuidado com os ruídos não audíveis (por exemplo, de equipa-mentos elétricos como ventiladores e ar condicionado).

Entrevistas individuais e coletivas Uma entrevista é, geralmente, individual, entrevista-se a uma pes-

soa. Porém, também pode ser grupal ou coletiva. Por exemplo, pode-se entrevistar a vários dirigentes de uma cooperativa ou sindicato, a um grupo de pequenos agricultores, a uma delegação etc. Isso abre outro caminho interessante e expressivo ao diálogo.

Entrevistas improvisadas e entrevistas preparadas As entrevistas podem ser:

1. Espontâneas, com pouca ou nenhuma preparação.

2. Preparadas, com base em um roteiro previamente combinado com o entrevistado.

3. Completamente escritas.

224 Mario Kaplún

O primeiro tipo, sem preparação, é frequentemente utilizado em en-trevistas de interesse atual, com pessoas que se leva ao microfone sem prévio aviso. Por exemplo, em ocasião de uma reunião, de uma assem-bleia etc. É também o caso de uma entrevista breve, tipo “povo fala”. Contudo, ainda nesses casos, o entrevistado não deve livrar-se da total improvisação. Deve procurar se informar previamente sobre o assunto para formular as perguntar que fará, de modo que estas sejam oportu-nas e concretas.

No extremo oposto temos a entrevista previamente escrita. É um recurso que se pode sacar da mão com entrevistados que necessitam de uma ajuda profissional. Muitas pessoas, ainda que tenham muito conhecimento, não são boas expositoras, não tem facilidade com a pala-vra, ficam nervosas diante do microfone e, muitas vezes, se desenvolvem melhor com um texto preparado. O entrevistador escreve suas pergun-tas, as entrega ao entrevistado que escreve as respostas. Deste modo, se assegura uma entrevista conceitualmente precisa e completa. O método permite também medir bem o tempo, dando-nos a tranquilidade de que não ficarão sem mencionar aspectos importantes e de que cada ponto terá uma extensão proporcional a sua importância.

Porém, em que pese estas vantagens, a entrevista escrita não é muito aconselhável, pois ao ter que se limitar a perguntas previamente estabe-lecidas e a respostas prefixadas, pode ser tornar demasiadamente rígida. E, sobretudo, se perde a necessária impressão de espontaneidade, por-que se nota que o entrevistado está lendo a resposta.

As entrevistas preparadas estão em um ponto intermediário entre as espontâneas e as escritas. Não são tão improvisadas como as primei-ras, nem tão pré-elaboradas e rígidas como as últimas. Uma entrevista preparada é aquela em que se discute previamente com o entrevistado o esquema da entrevista e se prepara notas breves e anotações para a mesma. O entrevistador conversa previamente com o seu entrevistado e acerta com ele uma sucessão de perguntas básicas que facilitem uma exposição interessante e completa.

Este sistema é o mais frequente e recomendável. Ao discutir com o entrevistado o roteiro da entrevista e a ordem em que serão formula-das as perguntas principais, ele tem a oportunidade de revisar o tema e assegurar-se de que as perguntas lhe darão margem para abordar os aspectos fundamentais do assunto. Se observar que falta uma pergunta

225Produção de Programas de Rádio

importante, peça ao entrevistado que a inclua. Como já está adverti-do sobre o que se vai perguntar, ele pode escrever integralmente suas respostas, fazer algumas anotações, palavras-chave dos conceitos que deseja comentar e os dados mais significativos que se propõe a mencio-nar. Assim se previne o risco de que, chegado o momento de gravar a entrevista, o nervosismo o leve a esquecer alguma questão importante. Uma entrevista bem preparada é a que tem maior possibilidade de che-gar a ser clara, ordenada, ajustada ao tempo disponível e, às vezes, com a necessária dose de espontaneidade e naturalidade.

2. Condições para uma boa entrevista: recomendações para alcançá-la

1. Prepare-se previamente. Antes de ir para a entrevista, informe-se, investigue. Leia sobre o tema, estude publicações do entrevistado e/ou de outros autores, reúna informações. Um bom entrevistador deve ter conhecimento geral do tema que lhe permita fazer perguntas adequadas.

Você representa o leigo, mesmo sendo leigo você não deve agir como tal. Deve saber algo sobre o tema sobre o qual irá perguntar. Se vai para a entrevista sem saber nada do assunto e se passa o tempo todo fazen-do perguntas sem foco, o entrevistado e os ouvintes vão se aborrecer e ficarão impacientes.

2. Tenha claro o tema e o objetivo. Sobretudo, você deve ir para a en-trevista com um objetivo claro, sabendo o que quer conseguir do entre-vistado. Qual o objetivo da entrevista? Se você não sabe responder com precisão a essa pergunta, sua entrevista fracassará irremediavelmente.

Como acontece em todo programa de rádio, não se deve misturar muitos temas numa entrevista, nem introduzir vários assuntos. Em vez de saltar de um tema a outro, abordar várias questões superficialmente e em desordem, numa boa entrevista é preciso se concentrar em um só tema e em poucos aspectos centrais do mesmo.

Não se trata de ouvir uma pessoa falar, por mais interessante que ela seja, por muito que conheça e por mais que tenha a dizer sobre diversos assuntos, mas se trata de oferecer informação sobre determinado tema. No rádio de entretenimento, entrevista-se a uma pessoa que fala sobre

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muitas coisas. No rádio educativo, não se trata de fazer uma entrevista, mas de realizar uma entrevista sobre algo. O protagonista não é o en-trevistado e sim o tema. Primeiro determine o tema sobre o qual deseja informar, depois selecione a pessoa ou as pessoas que podem oferecer informação sobre o mesmo.

3. Preparar o entrevistado. Uma entrevista totalmente improvisada está condenada ao fracasso. O entrevistado pode não se fixar num obje-to determinado, sair do tema determinado, estender-se excessivamente em detalhes... se bem que há o recurso de editar posteriormente, embo-ra não há edição que possa remedar uma entrevista extensa, desconexa, confusa, imprecisa e dispersa. A preparação previa com o entrevistado para organizar a entrevista e acertar as perguntas e respostas básicas é imprescindível.

Dentro dessa preparação, se você, ao longo da entrevista, propor-se a pedir ao seu entrevistado dados preciosos, cifras etc., convém que o advirta dessa demanda, de modo que ele possa obtê-los previamente e tê-los em mãos no momento da gravação.

4. Não ensaiar a entrevista. Prepará-la com o entrevistado não significa ensaiá-la antes. Convém definir com o entrevistado o tema e o enfoque geral das perguntas, conversar um pouco com ele etc., porém, não sig-nifica ouvir todas as respostas por antecipação. Se for ensaiada perderá toda a espontaneidade e a entrevista soará fictícia, artificial, encenada.

Não resta dúvida de que o ensaio sairá melhor do que durante a gra-vação. No momento de gravar, o entrevistado quase nunca repetirá as mesmas coisas, salvo as expressões figurativas que surgirem esponta-neamente. Com temor de se repetir perante o entrevistador, desejoso de expressar-se de modo mais polido e acadêmico, ele dará respostas rebuscada e sem espontaneidade. Assim, a gravação que o público es-cutará, resultará num inexpressivo reflexo do ensaio que somente você pôde desfrutar.

Prepara a entrevista com seu entrevistado, porém não permita que essa rápida preparação se converta num longo ensaio. Se o entrevista-do começar a estender-se e antecipar as respostas completas, detenha-o lembrando-lhe que ainda não iniciou a gravação e que você somente quer ouvir essas respostas no momento certo e não antes.

227Produção de Programas de Rádio

5. Coloque-se no lugar do ouvinte médio. Gert Wolff observa com razão que em toda entrevista há, não dois participantes, e sim, na reali-dade, três: o entrevistador, o entrevistado e o ouvinte. Este último, ainda que não participe diretamente, tem na verdade a parte mais importante. A entrevista se faz para ele. Mais ainda: de certo modo é ele quem en-trevista e pergunta. “O entrevistador é a voz do ouvinte”, afirma Wolff.

Como entrevistador, você representa, assim, o ouvinte médio. Deve ter uma ideia do que ele gostaria de perguntar ao entrevistado. É, mais uma vez, uma questão de empatia. Que perguntaria seu ouvinte? Per-gunte a ele.

Ao fazer perguntas não convém dar a impressão de que se ignora o tema ou de que se está muito pouco informado sobre o mesmo. Tam-pouco se deve adotar uma atitude presunçosa, dando a entender que sabe tanto (talvez mais) que o próprio entrevistado. Quando se entre-vista um especialista, o entrevistador deve assumir o papel do homem mediamente informado que conversa com um especialista e fazer a ele as perguntas que esse homem faria. (Não obstante, às vezes também é bom recordar que certas coisas que o ouvinte, por desconhecimento do tema, não perguntaria, podem revelar-se um aspecto novo e esclarece-dor sobre a questão).

Contudo, se é importante que você se coloque no lugar do ouvinte, é igualmente fundamental que o entrevistado se adapte ao seu auditório. Os especialistas tendem a empregar um vocabulário técnico altamen-te especializado, consciente ou inconscientemente falam para os seus pares, ante os quais querem provar seu rigor acadêmico e sua erudi-ção. Ao preparar a entrevista, é necessário fazer com que o entrevista-do compreenda que não está se dirigindo aos seus colegas ou alunos da universidade, mas a uma audiência ampla. E que o esforço para ser entendido pela maioria e o emprego de termos acessíveis, embora não sejam rigorosamente exatos de sua disciplina, são pequenos sacrifícios que valem a pena, porque graças a eles o ouvinte comum poderá com-preender melhor o assunto tratado.

6. Estabeleça um ambiente livre de tensão. Faça com que entrevista-do sinta-se à vontade. Lembre-se que você está habituado a falar frente ao microfone, mas para os não profissionais esse aparelho provoca um verdadeiro pavor. Não o instale instantes antes de iniciar a gravação.

228 Mario Kaplún

Coloque-o sob a mesa desde o princípio, faça o entrevistado se sentar em frente a ele enquanto conversam e preparam a entrevista, de modo que vá se habituando a sua presença.

Aproveite a conversa prévia para relaxá-lo, estabelecendo uma rela-ção cordial, fazendo-o sentir confiança.

E, durante a entrevista, faça perguntas com amabilidade e prudência. Lembre-se que você está entrevistando uma pessoa, um ser humano, e não uma máquina de dar respostas.

7. Apresente o entrevistado. Antes de começar o diálogo com o en-trevistado, é importante apresentá-lo ao público. Dizer quem é, o que faz, que títulos e antecedentes possui que o autorizam a falar sobre o tema. Desse modo, o ouvinte sentirá que vale a pena ouvir a entrevista. Ao fazê-lo, procure informar corretamente o nome do entrevistado, seu título, cargo ou função.

Alguns jornalistas preferem não incluir na gravação essa apresenta-ção, e sim fazê-la no estúdio, no momento em que a entrevista vai ao ar. Dizem ter comprovado que ao ouvir essa apresentação alguns entrevis-tados ficam nervosos, levando-os a adotar um tom solene e protocolar.

8. Tom coloquial. Conduza a entrevista para um tom coloquial, natural, de conversa. Às vezes é aconselhável que o começo do diálogo seja um tanto sem importância antes de entrar no tema de fundo. Isso ajuda o entrevistado a relaxar.

9. Seja fluído, ordene as perguntas. Faça o possível para que o diálogo transcorra com fluidez. Evite as descontinuidades, os vazios, vacilações e os silêncios, assim como os saltos abruptos e as desconexões. O en-trevistador tem que descobrir em cada resposta algo que lhe dê uma oportunidade para fazer a próxima pergunta. Portanto, não deve sujei-tar-se rigidamente ao texto das perguntas preparadas. O questionário serve como guia e esquema, mas no momento de realizar a entrevista, a medida que se ouve cada resposta, deve-se ser hábil para modificar o enunciado das perguntas, de modo que cada nova questão apareça como suscitada ou sugerida pela resposta anterior. Isto confere a en-trevista não somente maior fluidez e aparência de naturalidade, como também maior clareza: o ouvinte consegue acompanhar o fio condutor

229Produção de Programas de Rádio

do diálogo e fica alerta sobre como se relaciona cada ponto com o que o precedeu.

Articule a entrevista, encadeando-a, seja fluído. Converse. Evite largos silêncios. Porém cuidado, ser fluido não significa falar por falar. Não dei-xe levar por sua facilidade com a palavra, não intercale frases vazias so-mente para cobrir buracos. Poucas coisas são tão negativas para a entre-vista como um entrevistador loquaz, de palavra fácil, mas sem conteúdo.

Por outro lado, é preciso evitar pausas muito longas, que tiram o ritmo da entrevista. Tampouco é natural uma entrevista do tipo “me-tralhadora”, sem nenhuma pausa. Obriga o ouvinte a um esforço de atenção excessivo. Se você está dialogando realmente com o entrevis-tado, o natural em todo diálogo é escutar primeiro a resposta, pensar um instante no que se acaba de ouvir e somente depois fazer a pergunta seguinte. O que dá tempo para o ouvinte escutar a resposta. Do contrá-rio, se imediatamente após a cada resposta dispara uma nova pergunta, sem um segundo de pausa, fica evidente que o entrevistador já conhecia a resposta ou não está atento ao que diz o entrevistado, e que está ali tão somente cumprindo mecanicamente seu papel.

10. Interromper com argumento. Deixe o seu entrevistado falar, não o interrompa a cada momento. Faça interrupções somente para ajudar a fluir a entrevista ou para clarear um termo técnico ou um ponto obs-curo que necessita maior desenvolvimento para ser bem compreendido. Nesses casos, porém, não hesite em interromper (amavelmente, claro). Caso queira que a entrevista resulte proveitosa para o ouvinte, nunca dê por subentendida as explicações difíceis. Quando o entrevistado usar conceito ou termo técnico pouco corrente, peça-lhe que o explique, que o esclareça, que dê algum exemplo ilustrativo etc.

Ainda assim, se o entrevistado está fazendo rodeios muito longos e entrando em detalhes excessivamente técnicos, interrompa-o de forma cortês e faça novamente a pergunta para que volte ao tema e conclua sua resposta.

11. Mantenha o domínio da entrevista. Em todo momento, deve ser você a conduzir. Quando você obtiver o que necessitava, detenha o en-trevistado e passe elegantemente a pergunta seguinte. Naturalmente, faça isso com tato, sem cortá-lo na metade de uma frase. Mas faça-o.

230 Mario Kaplún

12. Não faça perguntas dirigidas. Evite as perguntas que contém a res-posta. Um erro de entrevistadores sem experiência é perguntar e res-ponder a si mesmos, sem deixar ao entrevistado outra alternativa senão manifestar-se de acordo. Não faça nunca afirmações disfarçadas de per-guntas, ou seja, o tipo de perguntas que somente podem ser respondidas “sim” ou “não”. Em geral, faça perguntas abertas que comecem com por quê, onde, quando, como, para quê.

Somente se justifica fazer uma pergunta dirigida quando o entrevis-tado, ainda que versado no tema, fica nervoso e acaba se desviando do tema necessitando de sua ajuda. Nesse caso, uma pergunta desse tipo pode ajudá-lo a recordar a questão, retomar o fio da meada e seguir adiante. Mas, uma vez obtido esse “sim” ou “não”, você imediatamente acrescente: “bem, nos explique agora por que sim (ou por que não)”.

13. Seja sóbrio. Não há pior entrevistador do que aquele que se sen-te a estrela da entrevista. Sua tarefa não consiste em brilhar, nem ex-pressar suas próprias opiniões: você não está entrevistando a si mesmo. Um bom entrevistador não se autopromove, não se coloca em primeiro plano. Seu papel é modesto. Sua função é perguntar de forma breve, deixar o entrevistado falar, saber escuta-lo, para, assim poder esclarecer, resumir e sublinhar. Um entrevistador que ocupe mais de quinze a vinte por cento do tempo total da entrevista, não é bom. A personalidade que deve se colocar em destaque é do entrevistado e não a sua.

14. O tratamento ao entrevistado. O entrevistado deve ser tratado com amabilidade e respeito e não pode ser submetido a um juízo, nem exposto ao ridículo ou humilhação, nem que seja acidentalmente. Seja caloroso, amistoso, cordial, demonstre interesse pela entrevista e estima pela pessoa do entrevistado. Naturalmente, a entrevista investigativa, polêmica, admite outras regras do jogo, mas ela constitui outro gênero, como já foi assinalado no capítulo 5. Aqui estamos referindo a entrevis-ta informativa.

Todavia, tampouco se trata de ser complacente com o entrevistado até chegar ao servilismo. Se você aceita e deixa passar sem questionar contradições, exageros ou afirmações claramente sem exatidão, não es-tará cumprindo bem sua função de representar o ouvinte e, com toda razão, perderá sua confiança.

231Produção de Programas de Rádio

15. Perguntas curtas. As perguntas devem ser curtas e concisas. Não devem demandar respostas longas, porque isso não permite estabele-cer o ritmo de um verdadeiro diálogo. Sobretudo é importante que a pergunta inicial não exija uma densa resposta. É melhor subdividir a primeira pergunta em duas ou mais.

16. Uma pergunta por vez. Nunca se deve perguntar mais de uma coisa de uma só vez. Se várias perguntas são feitas juntas, a entrevista torna-se desordenada e confusa.

17. Não faça perguntas muito amplas e gerais. Como já foi assinala-do, não se deve fazer perguntas que somente podem ser respondidas laconicamente com um “sim” ou “não”, tampouco é indicado sobre-carregar o entrevistado com perguntas de uma amplitude e um grau de generalidade tal que, para respondê-las, ele necessitará fazer uma conferência.

Certa vez ouvimos perguntar a um economista “o que você pensa sobre a inflação mundial”. Ante à perguntas semelhantes, o pobre en-trevistado fica paralisado, sem saber por onde começar. Num programa rural, cujo tema era “o trabalho”, começou perguntando ao agricultor “o que pode dizer sobre seu trabalho” (!). Certamente esse agricultor tinha muitas coisas interessantes a dizer, porém a pergunta o incapacitou e não soube respondê-la.

Quando prepara seu questionário, coloque-se no lugar do entrevis-tado e pergunte se seria capaz de responder a questões tão amplas. Em vez de fazer uma pergunta tão geral, prepare uma série ou sucessão de perguntas que permita ao entrevistado ir por partes, gradualmente.

18. Escute atentamente. Há entrevistadores que não escutam o entre-vistado e se distraem enquanto responde. Pensam que, como já pos-suem perguntas previstas, não necessitam ficar atentos às respostas. Pelo contrario, é de suma importância que se concentre e preste a máxi-ma atenção nas respostas do seu interlocutor. Isso lhe permitirá desta-car com breves comentários, afirmações importantes. Também é muito comum que o entrevistado se adiante a alguma pergunta que você tinha programado. Se não o escuta com atenção, cairá no erro de perguntar--lhe coisas que já havia dito.

232 Mario Kaplún

19. Procure exemplos. Os exemplos dizem mais ao ouvinte porque são mais visuais do que os conceitos abstratos. Peça exemplos ao seu entre-vistado. É bom que ele cite também alguma anedota ilustrativa. Tudo isso pode ser estabelecido e combinado durante a preparação da entre-vista, para que o entrevistado não fique surpreso com o pedido.

Em troca, não lhe peça citações detalhadas, nem lista de cifras. Se ele, por conta própria, começar a citá-las, detenha-o. Naturalmente que, al-guns poucos números redondos podem ser úteis, mas não uma extensa sucessão de algarismos.

Lembre-se que os percentuais são mais expressivos que as cifras ab-solutas, e as proporções comparativas ainda mais do que os percentuais.

A propósito de listas e dados, evite cuidadosamente que, no momen-to em que o entrevistado consultar suas anotações, se ouça o ruído dos papéis. Se em todo programa de rádio esse ruído é contraindicado, em uma entrevista é mais ainda. Perde-se totalmente a impressão de diálo-go espontâneo.

20. Resumir e destacar. Uma de suas funções como conduzir de entre-vista é a de ir destacando e resumindo os dados mais importantes ofere-cidos pelo entrevistado. Evidencie o impacto desses dados, coloque-os em destaque repetindo-os.

De vez em quando, antes de passar a uma nova pergunta, recapitule brevemente o conteúdo das respostas precedentes. Isso facilita a com-preensão do ouvinte. Não se esqueça da lei da redundância.

21. Regravar somente em caso de extrema necessidade. Os entrevis-tados devem ser advertidos de que é possível parar o gravador a qual-quer momento e que a gravação pode ser corrigida, inclusive totalmente refeita caso seja necessário. Mas, na prática, não é conveniente abusar dessa possibilidade. Somente diante de erros ou defeitos muito graves é aconselhável refazê-la. A repetição da entrevista ou de parte dela corre o risco de endurecimento, de perda de espontaneidade. Se o defeito ou erro é de pequena monta, é preferível não interrompê-la.

22. Quanto tempo deve durar a entrevista? Em quase todos os forma-tos de rádio, o tempo é nosso grande inimigo. Em entrevistas, muito

233Produção de Programas de Rádio

mais. Nunca dispomos do tempo para que o entrevistado se estenda e diga tudo o que queria falar de útil e importante.

Algumas entrevistas estão condenadas antecipadamente ao fracasso porque se determina que devem ser realizadas em dois ou três minutos e, em quase todos os casos, esse tempo é totalmente insuficiente. Trate de combater essa tendência do rádio moderno, lute para que seja con-cedida a sua entrevista um tempo mínimo razoável. Uma entrevista de três minutos pode ser frustrante, porque se passa o tempo sem conse-guir dizer nada de importante, porque tudo fica forçado, seco e duro. Uma entrevista de dez a doze minutos pode resultar, ao contrário, em algo ágil porque dá tempo para dizer as coisas que importam com calma e de forma comunicativa.

Contudo, uma entrevista tampouco pode durar uma hora. Há que ajustá-la a um tempo razoável. Portanto, é preciso planejá-la bem para que, no tempo previsto, entre:

a) o importante, o básico, o central do tema;b) a reiteração e explicação do que é importante;c) a anedota, o figurativo, os exemplos que ilustram o tema;d) o humano: a qualidade de uma conversação, de uma comunica-

ção, a personalidade do entrevistado.

Procure fazer com que a entrevista gravada se aproxime o máximo possível do tempo real que deve durar. É certo que a entrevista grava-da permite depois editá-la, isto é, abreviá-la até ajustar-se ao tempo es-tabelecido. Mas editar é uma tarefa demorada e difícil. A edição pode consumir horas. Se você necessita de cinco minutos de entrevista, grave oito, mas não nunca trinta. Previna o entrevistado do tempo real de que dispõe e peça sua colaboração para ajustar tudo o que vai dizer dentro desse limite.

23. Pense no ouvinte. Enquanto grava sua entrevista, tenha sempre em mente o ouvinte. Pergunte-se constantemente: Isto está claro, se enten-de? E esta outra questão está sendo ressaltada suficientemente? E sobre o todo, está interessante? O ouvinte se mantém escutando com interes-se? Recorde-se que uma entrevista não se faz para dar satisfação nem ao entrevistado nem a você, se faz para o ouvinte.

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23. Pensar no ouvinte. Não se trata somente de realizar uma entrevista fluída, interessante e importante. A entrevista tem que servir para algo, deixar algo ao ouvinte: uma informação, um conhecimento, um con-ceito. E uma inquietude: algo novo sobre o qual sequer havia pensado.

A edição da entrevistaApós a gravação, edita-se a entrevista para retirar tudo o que for ex-

cessivo, imprimindo-lhe, assim, maior concisão e agilidade e, caso ne-cessário, para ajustá-la ao tempo previsto. Se o entrevistado fez rodeios ou considerações secundárias, descarta-se o que é excessivo, deixando tão somente o essencial. Se deu alguma resposta vaga, confusa, que o obrigue a reiterar a pergunta, a primeira resposta é suprimida, e com ela, consequentemente, a pergunta repetida.

Porém, ao editar, é preciso ter cuidado para não cortar tanto que a entrevista perca tudo o que ela teria de espontâneo. Grandes “buracos”, silêncios excessivos, defeitos grosseiros devem ser suprimidos, mas não se pode eliminar de todo as pequenas pausas, algumas vacilações ou reticências, enfim, aquelas coisas que conferem a entrevista o ar de uma conversa informal.

No momento de editar, você apreciará o quanto é importante ter um gravador com contador de giros. Este dispositivo permite localizar rapi-damente os fragmentos da entrevista que deseja conservar e os que quer suprimir. De outro modo, esta localização será bem difícil. Como tam-bém são úteis os gravadores mais sofisticados com tecla de memória.

Ao editar, devem-se evitar descontinuidades na exposição do tema. Uma passagem pode ser suprimida por carecer de interesse, mas se a omite, a passagem seguinte pode resultar incompreensível por ser a continuação da anterior ou por estar relacionada ao mesmo assunto. É necessário, pois, revisar os fragmentos selecionados para verificar se guardam sentido por si mesmos. Às vezes, para poder eliminar uma passagem sem retirar significado ao que a sucede, faz-se necessário in-tercalar uma explicação como ponte na voz do locutor, ou reformular a pergunta de tal maneira que permita compreender a resposta.

Há que evitar também que os cortes sejam notados. Um corte pode ser notado se, para emendar os fragmentos, for inserido entre eles uma pausa de silêncio, sem ambiente – trecho de fita virgem. Quando for emendar trechos, é preciso fazê-lo com um pedaço pequeno de fita com o ambiente registrado no mesmo lugar onde se realizou a entrevista.

235Produção de Programas de Rádio

Capítulo

9

Como planejar um programa de rádio

1. O projeto: a estrutura programática

Nos propomos a realizar um programa de rádio. Por onde começar? Primeiro estabeleça o projeto, o plano do programa.

Entendemos que programa não é uma emissão, uma audição, uma unidade de tempo, mas uma série, um conjunto de emissões que têm uma temática comum, agrupadas sob o mesmo título permanente – o nome do programa – que adotam um mesmo formato, duração e perio-dicidade. Isso é um programa, uma série, um conjunto de edições.

Projetar um programa envolve criar uma estrutura, encontrar uma ideia de programa, definir o caráter da série, temática, conteúdo, nome, gênero, formato e suas características distintivas. Estabelecidos esses as-pectos, fixar também a sua duração, horário de transmissão periodici-dade e frequência.

Primeiro: o objetivoEm todo manual de comunicação social se diz que uma mensagem

emitida por um meio de comunicação deve responder a certas pergun-tas básicas. Todos nós conhecemos essa série já clássica de perguntas: quem disse o quê, onde, como e quando.

Sem dúvida, para planejar um programa de rádio temos que respon-der a todas essas questões: definir o conteúdo do programa, o público ao qual se destina, a emissora pela qual será transmitido, o formato ou gê-nero, o horário da veiculação. Porém há ainda uma pergunta prévia que os manuais não mencionam, mas prioritária: além de saber o que vamos

236 Mario Kaplún

dizer a quem e onde, como e quando, é preciso, antes de tudo, saber para quê vamos falar, para quê faremos o programa. Definir seu objetivo.

No rádio de entretenimento, um programa justifica-se por si mesmo. Se completa um espaço e é capaz de entreter a audiência, já é motivo suficiente para acomodá-lo na programação. Na perspectiva educativa em que nos colocamos, um programa somente se justifica se tiver uma finalidade, se preencher uma necessidade; se serve ao ouvinte, se con-tribui ou lhe dá algo; se o ajuda a enriquecê-lo em termos de reflexão e de consciência crítica.

Somente se você tiver um propósito claro e definido, se for capaz de explicar com clareza e concretude para que deseja fazer seu programa, o que se propõe a oferecer ao ouvinte, seu projeto tem razão de ser.

Caracterização da audiência Ao mesmo tempo, é fundamental determinar a que segmento do pú-

blico nos propomos direcionar o programa. Às vezes, essa caracteriza-ção da audiência é previa ao projeto em si.

Normalmente, não fazemos um programa educativo para toda a au-diência possível, mas para atender a necessidade de um segmento de-terminado. A quem se destina o programa, para quem o faremos? Para uma audiência adulta, jovem ou infantil? Para um público urbano ou rural? Para público de um nível de instrução alto, médio ou baixo?

Isso determinará os conteúdos dos programas, suas características, a linguagem que empregaremos, o que será decisivo para a fixação do horário de veiculação.

A estrutura formal Já sabemos para que faremos o programa (objetivo), o que nos pro-

pomos a falar (conteúdo) e a quem nos dirigimos (destinatário). Agora é imprescindível encontrar uma ideia, uma forma, uma estrutura, uma personalidade própria para o programa.

Por exemplo: O Jurado no 13 nasceu com uma temática bem definida: apresentar problemas sociais e humanos comuns às pessoas da América Latina. Mas esta caracterização de seus conteúdos não é suficiente para dizer que estamos diante de um programa de rádio. Além disso, deu-se a ele uma forma, uma personalidade, uma estrutura radiofônica própria. Criou-se um radioteatro jornalístico. Os temas se desenvolvem em for-

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ma de julgamento oral; as edições são apresentadas como transmissões diretas do exterior; e o ouvinte é convidado a julgar e atuar como um jurado imaginário etc.

Num projeto de rádio deve-se pensar e encontrar todas essas carac-terísticas formais que conferem ao programa personalidade e atrativida-de. Além de saber o que vamos dizer e a quem se fala, é preciso encon-trar o modo como abordar o assunto de maneira original, interessante e, ao mesmo tempo, pedagogicamente eficaz.

Essa estrutura quase nunca brota da noite para o dia. Às vezes, le-vam-se semanas ou meses até encontrá-la. Mas, até que não se consiga, o projeto não estará maduro do ponto de vista radiofônico.

Depois, deve-se encontrar um bom título para o programa. Não é o mesmo colocar o nome do programa de “Problemas da América Latina” e dar o título de Jurado no 13. Não é indiferente denominar de “Músi-cas Latino-americanas com Mensagens” ou chamá-lo de “Canções com sabor de vida”. Procure até encontrar um bom título. Faça uma lista de todos os nomes que lhe vão surgindo até encontrar um original e ex-pressivo.

A consistência do projetoGeralmente, para concretizar um projeto, escrevemos um roteiro pi-

loto que serve de amostra ou modelo para toda a série. Nesse roteiro piloto captamos as características formais do programa e ele nos serve de prova para saber se a ideia concebida funciona, se produz algo radio-fônico e pedagogicamente eficaz.

O roteiro piloto é útil e necessário, mas ainda assim não é o suficien-te. Pode acontecer que, ao iniciarmos a redação da série, descubramos que, à medida que se escreve, os roteiros vão perdendo rapidamente o interesse, embora o piloto seja muito bom, mas não conseguimos man-ter o mesmo nível de qualidade durante muitas edições.

Isso pode acontecer por dois motivos:

a. Porque ficamos sem tema. A temática se esgotou rapidamente. Acreditávamos que íamos encontrar muitos assuntos para tratar, mas nos enganamos. A temática era, na realidade, muito limitada.

b. Porque a estrutura, o formato escolhido, era adequado para tratar o tema inicial transformado em roteiro piloto e, depois,

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serviu para desenvolver uns poucos temas a mais. No entanto, provou ser muito limitado e restrito, disfuncional, para enfocar a maior parte dos temas previstos. Por exemplo, havíamos resol-vido que o programa teria formato de julgamento, depois desco-brimos que a maioria dos temas que propomos apresentar não se prestava para ser exposto dessa forma. Toda estrutura, por melhor que seja, tem limitações, presta-se esplendidamente para tratar certos temas, mas nos fecha o caminho para incluir outros.

Assim, ao planejar um programa, é de fundamental importância não se conformar com um bom roteiro piloto, e sim planejar todas as edições da série – ao menos um bom número delas – com o máximo possível de concretude, para assegurar-se da consistência e viabilidade do projeto. É necessário garantir que se tenha material suficiente para escrever, não apenas três ou quatro edições, mas sim muitas; e que o formato escolhido é suficientemente funcional e flexível de modo que pode se adaptar aos diferentes conteúdos programados.

Somente se você descrever um número considerável de edições, es-pecificando o conteúdo de cada uma delas e seu tratamento dentro do formato escolhido, pode se lançar a fazer o programa.

2. Horário, duração e frequência

A duração do programaHá programas que são planejados e nascem sem data fixa para o

término: podem durar muitos meses ou anos no ar. Por exemplo, um programa de atualidade baseado em entrevistas pode ter uma longa per-manência; sempre haverá temas que tratar, pessoas a entrevistar.

Outros, no entanto, por razões de orçamento ou limitação temática, são projetados com uma duração determinada: vinte emissões, trinta ou sessenta. Determina-se, então, que o programa ficará no ar três meses, seis ou um ano. Nesses casos, há que se ter presente que não é con-veniente planejar programas de vida curta. De fato, a experiência tem demonstrado que existe em qualquer emissora de rádio uma espécie de “barreira de som” que é necessário atravessar, sendo preciso certo tempo para consegui-lo.

239Produção de Programas de Rádio

Por melhor e mais interessante que seja um programa, somente de-pois de várias emissões ele começa a popularizar-se e a conquistar au-diência. Todo programa é como uma semente que necessita de tempo para germinar e dar frutos. Daí que uma série que conste de umas pou-cas edições, por excelente que seja, pode significar um esforço perdido: cessa antes de se consolidar. Cai no vazio, porque ainda não havia alcan-çado a condição de passar a “barreira do som”.

Em geral, não vale a pena planejar um programa que não tenha, como mínimo, algo como trinta edições ou, em termos de tempo, uma permanência menor de seis meses.

A duração de cada emissão Quantos minutos devem durar cada programa? Aqui devemos en-

frentar duas tendências equivocadas.Há alguns anos existia uma tendência de medir a importância de um

programa de rádio por sua extensão. Ainda hoje subsiste essa concepção entre aqueles que não conhecem rádio: um educador tradicional se sen-tirá prejudicado se não lhe for atribuído pelo menos um espaço de meia hora. Nos primórdios do rádio, as palestras instrutivas eram verdadeiras dissertações que duravam até trinta minutos.

Posteriormente, ficou comprovado que um programa desse tipo era melhor se fosse mais conciso, que cinco minutos seriam suficientes. Verificou-se que uma palestra radiofônica não era um meio ideal para dar informação cansativa, mas para inspirar idéias. Portanto, não ne-cessitava durar quinze ou vinte minutos, nem conter toda informação detalhada, inútil, ao contrário, já que esta, ouvida pelo rádio, raramente poderia ser recordada e retida. Hoje, os profissionais de rádio sabem que a única medida de valor de um programa está dada pelo interesse em seu conteúdo e na boa qualidade da produção e não pelos minutos de duração. O comunicador de rádio deve ser um bom redator, capaz de sintetizar a informação sem perder o significado.

Atualmente enfrentamos a tendência inversa, mas igualmente equivocada. Hoje existe no rádio um preconceito generalizado contra programas longos. Se pensa que, quanto mais curto, melhor um pro-grama. Existe um exagerado culto a brevidade, exaltada como um mé-rito decisivo. Invoca-se o “ritmo” do rádio moderno, teoriza-se sobre a idiossincrasia do ouvinte de rádio atual, quem, se afirma, não suporta programas extensos. Confunde-se ritmo com fugacidade.

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Bom exemplo dessa tendência é a proliferação nos últimos anos de programas ultra-breves, de dois ou três minutos de duração, chamados de “micro-programas culturais”. São questionáveis, por certo, o valor e a eficácia dessa pseudocultura administrada em pílulas, que somente pode dar uma noção bastante superficial e banal dos temas que pre-tende abordar. Por sua estrutura rotineira, estes programas resultam, em que pese a sua brevidade, pouco atrativos e entediantes, ao ponto que a maioria dos ouvintes muda de emissora quando começa a ouvir o locutor de voz grave dizendo “Ludwig van Beethoven foi um grande compositor alemão que nasceu em Bonn em 16 de Dezembro de 1770”. Com certeza, um bom documentário sobre Beethoven, de meia hora de duração, radiofonicamente bem realizado, não somente poderia contri-buir muito mais com a cultura do ouvinte, como também captar infini-tamente mais o interesse do receptor.

Em suma, a duração de um programa de rádio deve estar direta-mente relacionada com seu interesse e qualidade. Se o realizador sou-ber colocar nele conteúdos valiosos, apresentá-los com recursos ágeis e imaginativos – isto é, com ritmo autêntico – e estabelecer uma rela-ção de empatia com ouvinte, não deve temer que seu programa resulte muito longo – dentro dos limites razoáveis, é claro. Se, ao contrário, o programa é sempre igual, rotineiro e pouco atrativo, por mais curto que seja sempre resultará excessivamente extenso. A questão não re-side, pois, na quantidade de minutos, e sim em ganharmos o direito a cada minuto, justificando-se pelo interesse e qualidade do que se coloca dentro dele.

Por outro lado, deve-se ter em conta a idiossincrasia do público des-tinatário. Em geral, o homem do campo tradicional de quase todas as regiões de América Latina é calmo e paciente, inclusive gosta de progra-mas mais longos e agradece quando se fala mais lento, pausado, porque esse é o seu ritmo. Um profissional de rádio da República Dominicana produz um programa diário de uma hora de duração e garante que pes-quisas realizadas demonstram que o tempo não é somente bem aceito pelos ouvintes como também constitui uma das principais causas do êxito e eficácia do programa. Em zonas metropolitanas, ao contrário, o público tem um temperamento mais inquieto e nervoso. Mais uma vez se destaca, pois, a conveniência de conhecer e estudar bem a audiência destinatária do programa para criar um projeto.

241Produção de Programas de Rádio

Em geral, se considera que, para uma entrevista, a duração normal deve ser de cinco minutos; para programas mais variados e completos (reportagens, radiodramas), a extensão deve situar-se entre quinze a trinta minutos; e excepcionalmente radiodramas muito interessantes e bem feitos podem durar quarenta e cinco a sessenta minutos. Para radiojornais e rádiorrevistas, que constam de várias seções deste livro, aconselha-se uma duração de trinta a sessenta minutos.

A escolha do horário A hora de transmissão é decisiva. Deve ser realizado um cuidadoso

estudo da audiência destinatária para determinar o horário em que a maior parte dos interessados pode ouvir o programa. Se quer alcançar o público rural, um programa transmitido às nove da manhã e às quatro da tarde será inoperante; o trabalhador rural a essa hora está em plena atividade agrícola. Se o programa busca suscitar uma reflexão, determi-nar um horário em que as pessoas estão fazendo refeições pode signifi-car seu fracasso.

Uma vez fixado seu horário, é fundamental que seja constante: sem-pre nos mesmos dias e horários. Caso contrário, o público poderá não se acostumar a sintonizá-lo.

A emissoraA escolha da emissora também deve feita em função do gênero do

programa e em função do público destinatário. Um programa que su-põe uma audiência de alto nível de instrução, não terá êxito em uma emissora de tipo popular; um programa destinado a setores populares não alcançará seu objetivo se for veiculado em uma emissora de progra-mação elitista.

A frequência Neste aspecto, temos quadro possibilidades. O programa pode ser:

1. Diário (todos os dias de segunda a sábado ou de segunda a sexta)2. Dias alternados (segunda, quarta e sexta ou terça, quinta e sábados).3. Duas vezes por semana (segunda e quinta ou terça e sexta. Mas não

segunda e sexta porque uma emissão ficaria muito distante da outra)4. Semanal

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Programas de periodicidade mais espaçada (quinzenas ou mensais) não são aconselháveis: não são lembrados, a menos que cada edição seja precedida por uma intensa divulgação.

Dentro dessas quatro opções, escolha para seu projeto a maior fre-quência que seja possível. Tenha em conta que quanto mais prolongado for o lapso de tempo entre uma edição e outra, menor será a possibilida-de de concentrar uma audiência permanente. É muito mais difícil para o ouvinte recordar os dias de transmissão de um programa espaçado e acreditar que terá o hábito de sintonizá-lo. Sempre que for possível, na medida em que não caia de qualidade, procure fazer programa diário, ou, ao menos, três vezes por semana. O recurso de gravar edições pode, em certos casos, permitir realizar uma série cuja elaboração necessite de mais tempo e depois, uma vez escrita e gravada, pode emiti-la com a frequência desejada.

Programas especiais, de grande envergadura, são colocados, geral-mente, na frequência de uma vez por semana.

3. Colocando em prática o projeto: edição “zero”

Quando se vai lançar um diário ou uma revista nova, costuma-se editar primeiro um “número zero” que não se distribui ao público, mas que serve para azeitar as engrenagens internas da produção, polir a pu-blicação, reparar e corrigir defeitos. É recomendável adotar também esta prática antes de lançar no ar um novo programa de rádio: gravar um ou mais programas piloto, de teste.

Para programas informativos e de atualidade (sobretudo de frequên-cia diária), redigir e gravar as edições durante uma ou duas semanas prévias, a título experimental, sem levá-las ao ar, é quase imprescindível. Não somente para permitir analisar o programa do ponto de vista da sua agilidade e eficácia didática, ajustá-lo e corrigi-lo, como também para assegurar que os distintos serviços (recepção de informação, obtenção de entrevistas etc.) fluam com normalidade e pontualidade requeridas nesse tipo de produção. Desse modo, no dia em que o programa for lançado, sairá da maneira desejada, sem surpresas e nem tropeços de-sagradáveis.

243Produção de Programas de Rádio

Para que a experiência seja válida, a (ou as) edição(ões) “zero” deve ser realizada nas mesmas condições em que o programa será levado ao ar, com os mesmos prazos e tempo reais. Não há que se enganar a si mesmo concedendo à produção experimental mais tempo ou mais fa-cilidades que terá realmente quando o programa começar a ser veicu-lado. Ouvimos muito bons pilotos, mas que consumiram vários meses de produção. Quando o programa se inicia com sua frequência real, o bonito esquema inicial se desmorona. Se seu programa vai ser transmi-tido diariamente, produza cada uma de suas edições “zero” em 24 horas, e não em 48 ou 72.

Convém que especialistas e grupo de ouvintes, aos quais se desti-nam, ouçam os programas piloto para que se possa colher suas reações, observações e críticas. Isto nos orientará muito na tarefa de melhorar gradualmente o programa antes de seu lançamento público.

244 Mario Kaplún

Parte III

O roteiro

245Produção de Programas de Rádio

Capítulo

10

A elaboração do roteiro: princípios básicos

Salvo casos excepcionais, as transmissões de rádio não são improvi-sadas, mas são emitidas a partir de um texto previamente escrito. Mes-mo em uma conversa ou comentário, ainda que o ideal fosse que o co-mentarista pudesse improvisar sua fala com desenvoltura e de maneira ordenada e lógica, de cem pessoas somente uma ou duas podem fazê-lo desta maneira.

Por outro lado, no rádio, onde o controle do tempo é muito estrito, se não escrevemos e dimensionamos o material, corremos o risco de ser surpreendidos ao final do nosso espaço sem ter desenvolvido nosso tema.

E quando passamos aos formatos mais complexos (dialogados, dra-matizados), que exigem a intervenção de várias vozes e inserção de mú-sica e sons, o roteiro se torna, obviamente, imprescindível.

1. O esquema prévioA documentação

Geralmente, um programa educativo não surge da nossa imagina-ção, mas de um estudo prévio do tema. Temos que pesquisar, que nos documentar. Ler livros e artigos, consultar especialistas na área. Fazer uma série de anotações ou fichas com os pontos centrais do tema que nos propomos a desenvolver. Reunir dados concretos, exemplos ilustra-tivos, casos, acontecimentos. (Já sabemos que, em rádio, o concreto, os

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exemplos, têm muito mais força que as abstrações). Com a informação selecionada, organizando-a, elaboraremos um resumo que será a ori-gem conceitual do nosso roteiro.

A outra fonte inspiradora para escrever nossos roteiros é mais am-pla. A observação atenta e sensível do que acontece ao nosso redor. Vá às ruas, percorra os bairros populares, converse com as pessoas, grave essas conversas para depois, em sua casa, escutá-las e refletir sobre elas. Vá ao campo, converse com os agricultores. Em uma palavra, mergulhe na realidade, pergunte sobre os problemas que a população enfrenta. In-clusive em programas informativos, não se restrinja aos dados de livros ou à entrevista com um técnico. Busque o médico da zona rural em seu posto. Aborde o aspecto humano da questão.

A seleção de conteúdosUma vez reunido e organizado o material, começa a tarefa radio-

fônica propriamente dita. O primeiro é selecionar; determinar clara-mente qual é o conteúdo, a mensagem principal que se quer transmitir; ter uma ideia clara do que queremos dizer. Por mais que pareça óbvio, muitos programas de rádio falham, são confusos e pouco significativos, porque a ideia central não foi apresentada claramente.

Depois, organizar o conteúdo em doses. Se é um programa em série, é possível dividir o tema e determinar qual será a ideia central que nos propomos a comunicar em cada uma das transmissões. Escolher uma ideia básica, o leit-motiv, a imagem geradora de cada emissão. Mas ain-da que o tema seja tratado de maneira unitária, em uma só transmissão, esta deve ser construída sempre sobre uma ideia vertebral, sobre uma imagem geradora central.

Lembre que todo programa de rádio implica uma seleção de conteú-dos. Você nunca poderá dizer tudo sobre um tema: terá que selecionar, destacar um ou dois aspectos que considere fundamentais. O essencial é que essas ideias básicas estejam claras para o ouvinte, sejam desenvol-vidas com a redundância necessária e que o motivem a uma reflexão produtiva.

A elaboração do esquema Mas ainda não comece a escrever o roteiro. Antes, escreva um bre-

ve esquema. Esclareça para você mesmo por onde começar; o que será

247Produção de Programas de Rádio

dito depois, como irá desenvolver o tema, quais passos sucessivos dará e como serão encadeados; e qual será a conclusão.

Enquanto você não tiver um esquema claro, não comece a escre-ver. É possível que, quando comece a produzir o roteiro, o esquema prévio vá se modificando, enriquecendo. Não se atenha rigidamente a ele. Mas ainda assim, com tudo o que apresenta de provisório, é im-prescindível.

Uma das razões pelas quais é imprescindível relaciona-se com a ne-cessidade de dimensionar os tempos. Em rádio, o tempo é nosso grande tirano; não se pode evitá-lo. Nosso roteiro deve durar tantos minutos e nem um a mais. Ao desenhar um esquema, determine a cada parte ou cena uma determinada “minutagem” e verifique se a soma total cor-responde ao tempo real que dispõe para seu programa; caso contrário, reveja o plano de tempos, suprima algo, abrevie, sintetize. Depois, ao escrever seu roteiro, atenha-se a essa distribuição de tempos. Se você não trabalha com base em um planejamento, as primeiras sessões sairão excessivamente longas e o resto não caberá. Será necessário condensar demais. E, sobretudo, ficará sem o espaço necessário para desenvolver devidamente a conclusão, o que é fundamental.

Escrever um roteiro de rádio é um pequeno trabalho de arquitetura para garantir que tudo o que é importante tenha seu lugar e que, por sua vez, os distintos elementos do programa estejam encadeados e tra-balhem com os demais fluidamente. Por isso é imprescindível visualizar o totum do roteiro antes de começar a escrevê-lo; partir de um planeja-mento prévio, de um resumo da emissão.

2. A redação

Agora sim nos entregamos à redação de um roteiro. Vamos escrever para rádio, isto é, para um meio oral; temos que converter os conteúdos selecionados em linguagem radiofônica. Vejamos em que isso implica.

O estiloEm primeiro lugar, um estilo coloquial. Seu programa pode alcan-

çar milhares de pessoas. Mas não escreva para uma multidão. Escreva somente para um ouvinte. Converse com ele como se estivessem a sós e não houvesse ninguém mais escutando.

248 Mario Kaplún

Lembre-se que, quando o ouvinte escutar a transmissão na intimi-dade do seu lar, não se sentirá parte de uma multidão. É preciso que ele se sinta o destinatário pessoal do programa. Visualize a emissão radio-fônica não como uma praça pública ou um enorme estádio, mas em um âmbito pequeno e íntimo.

A linguagem: escrever se escutandoAinda que esteja escrevendo seu roteiro, não se esqueça que a lingua-

gem falada é diferente da escrita. Devemos colocar no papel nosso texto; mas ele está destinado não a ser lido com os olhos como um texto impres-so, mas a ser ouvido. Deve ser claro, natural e espontâneo como a lingua-gem falada. Inclusive, às vezes, com as imperfeições da linguagem falada.

O melhor conselho que posso lhes dar é: escreva escutando-se. À medida em que escreve, leia em voz alta o que está escrevendo. Em al-guns casos, inclusive, antecipe-se: pronuncie primeiro a frase e depois a escreva. Dite a você mesmo. (Ainda que corra o risco de que, se seus familiares ou companheiros de trabalho entrarem na sua sala, tenham certas dúvidas sobre o estado das suas faculdades mentais). Escute cada frase; verifique como soa. Sinta seu ritmo oral, sonoro. Caso pareça pe-sada, longa, artificial, complexa, com idas e vindas, refaça, divida-a em duas ou mais frases curtas e diretas. O ouvido lhe dirá onde colocar com mais naturalidade o sujeito, o verbo, o predicado; se um adjetivo soa com mais força e beleza verbal colocando-o antes de um substantivo ou colocando-o depois deste. Ouça não só as palavras, mas também as inflexões, as ênfases, os matizes: busque não somente os vocábulos mais simples, mas também os mais quentes auditivamente.

Se estiver escrevendo um diálogo, ouça os distintos personagens falar. Capte os matizes saborosos da fala popular e reproduza-os. Converta-se em um fino observador da fala corrente. Procure fazer o diálogo soar natural e autêntico. Ensaie até conseguir. Isso é ser roteirista de rádio.

A sintaxeContudo, esta diferença entre o falado e o escrito não nos dispensa

de saber gramática e escrever corretamente. Há roteiristas que escrevem mal, que têm problemas com a sintaxe. Isto é uma carência séria. A con-sequência disso não é uma boa reprodução da linguagem falada, mas uma exposição confusa, difícil de entender, emaranhada – em síntese,

249Produção de Programas de Rádio

um estrondoso ruído na comunicação. Falando também há pessoas que se expressam claramente e outras que são menos inteligíveis: você deve escrever como as primeiras e não como as últimas.

Uma condição sine qua non para ser roteirista é saber escrever bem; ter uma redação clara e segura. Dominar as regras de construção gra-matical. Se em algum caso – principalmente quando se escreve diálo-gos – o autor de peças altera deliberadamente a correção sintática para reproduzir melhor o estado de espírito de um personagem, uma coisa é que o faça ex profeso e outra muito diferente é que simplesmente escreva mal. Se você pretende escrever para rádio – ou ser jornalista – comece polindo sua sintaxe e adquirindo uma redação correta.

A pontuaçãoExiste uma pontuação gramatical, própria da linguagem escrita e ou-

tra fonética ou prosódica. Em rádio, devemos usar ambas. Por exemplo: às vezes devemos colocar vírgulas onde a gramática não prevê, porque indicam pausas que na verdade fazemos ao falar; e, ainda que não se-jam gramaticalmente corretas, ajudam o locutor ou ator a pausar cor-retamente. Vg.: a gramática não admite a vírgula antes da conjunção e, ainda assim, em um roteiro radiofônico convém colocá-la para ajudar o leitor:

ALBERTO Estávamos ali, tão perto um do outro, e entretanto tão distantes...

Mas pior do que poupar as vírgulas é colocá-las em excesso. Há ro-teiristas que colocam vírgulas em qualquer parte, sem nenhum sentido. Isso desorienta e confunde o leitor.

Também há os que quase não usam ponto e em seu lugar colocam vírgula: quer dizer, separam com vírgulas frases que deveriam ser sepa-radas por um ponto:

NARRADOR O dia estava quente, decidiram não sair, estariam melhor em casa, ficariam melhor em casa, à sombra das árvores lendo.

Se gramaticalmente isso é incorreto, radiofonicamente é ainda mais inconveniente. Em um roteiro de rádio, os sinais de pontuação são um guia para o locutor; se estão mal colocados, ele confundirá profunda-mente o sentido das frases. O bom roteiro radiofônico tem mais pontos

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que vírgulas, porque na linguagem radiofônica escrever frases curtas é básico.

Na conversação é comum deixar frases incompletas. Nesses casos utilizamos reticências. Mas há autores que, para dar uma sensação de expressividade oral, encerram quase todas as frases – frases completas – com reticências. Inclusive em reportagens radiofônicas, onde o texto é descritivo, têm uma quantidade excessiva delas em seu roteiro:

LOCUTOR 1 Nessa região está o trilho ferroviário mais alto do mundo...

LOCUTOR 2 Aqui o trem sobe a uma altura de 4950 metros acima do nível do mar...

LOCUTOR 3 A região constitui também uma das mais importantes reservas mundiais de cobre... A produção alcança 150.000 toneladas anuais...

Isso é ilógico e não tem a menor utilidade para o locutor; pelo con-trário, incomoda e confunde, já que ele não sabe quando deve respeitar as reticências e quando não. Este uso – e abuso – arbitrário das reticên-cias é somente um vício de efeito (possivelmente derivado da má reda-ção publicitária) e, como tal, devemos evitá-lo.

Em resumo, em um roteiro de rádio pontuamos de maneira ad hoc, fonética e não gramatical. Não escrevemos para publicar, mas para que o ator ou locutor possa interpretar bem, pausar corretamente. Mas essa pontuação prosódica também deve responder à lógica da fala e não ser arbitrária. A forma de conseguir isso é, novamente, escrever escutando--se. O ouvido nos dirá onde convém colocar uma vírgula fonética; onde colocar um ponto e não uma vírgula; onde devemos colocar realmente reticências.

O uso das perguntasUse muito a interrogação. Lembre-se de Sócrates e do método so-

crático. Se, antes de fazer uma afirmação, é realizada uma série de per-guntas, o ouvinte poderá seguir melhor a argumentação; compreender o que você busca, acompanhá-lo nessa busca. E, quando chegar à afirma-ção como resposta, ele estará mais preparado para assimilá-la. Fazen-do perguntas a nós mesmos, conseguimos fazer com que o ouvinte nos acompanhe no processo argumentativo, dinamizamo-lo para a reflexão, mobilizamos sua mente, estabelecemos um diálogo com ele.

251Produção de Programas de Rádio

Às vezes, deixe a pergunta pairando no ar, sem dar a resposta. Faça com que o ouvinte a responda. Não afirme: crie dúvidas, deixe expostas perguntas que cheguem a ele e o façam pensar. Muitas vezes é mais pedagógico suscitar dúvidas do que fazer afirmações.

Em um radiodrama, não podemos fazer perguntas diretamente ao ouvinte; são os personagens os que se perguntam uns aos outros ou a si mesmos. Não importa: indiretamente estaremos apresentando essas perguntas ao ouvinte. Ele se identificará com a situação e assumirá essas perguntas como próprias.

Em contrapartida, seja muito parco e contido com as frases exclama-tivas. Elimine a ênfase declamatória, as frases bombásticas e discursivas, as hipérboles, a adjetivação exagerada.

Os momentos decisivosTodo o desenvolvimento do roteiro deve ser bom e buscar manter

permanentemente o interesse. Mas há dois momentos capitais: o come-ço e o final.

Os minutos iniciais são decisivos. Se sua transmissão não capta na abertura a atenção do ouvinte, ele desligará o aparelho ou mudará de estação. E todo seu esforço posterior será em vão. Esforce-se para en-contrar um bom início, original e interessante. Não se conforme até conseguir. É necessário que os primeiros minutos persuadam o ouvinte de que vale continuar ouvindo.

Comece normalmente com algo que seja familiar ao ouvinte, algo com que possa identificar-se. Fale de coisas que ele conhece e sente. Para tratar de uma parasitose, não comece por uma descrição científica da doença; apresente as crianças de barriguinhas inchadas. Certamente o ouvinte já viu essas crianças, elas lhe inquietam. A partir daí, acompa-nhará a reportagem com interesse. Para abordar o problema da depen-dência tecnológica, não comece o roteiro com dados estatísticos nem com referências a multinacionais ou royalties; fale do caso dos trabalha-dores de uma fábrica próxima que ficaram sem emprego porque uma moderna máquina superautomática está em seu lugar. Observe como começa a discussão sobre o controle de natalidade em “O caso do que não pôde nascer” (Capítulo 7). Não pela explosão demográfica mun-dial, mas pelo caso de Asunción Estrella.

252 Mario Kaplún

O outro elemento chave de um roteiro é o final, porque é o que per-manece para o ouvinte, o que ele mais vai lembrar de toda a transmis-são. Não termine seus roteiros de qualquer maneira. Trabalhe muito os encerramentos. Procure fazer com que as últimas frases sejam eloquen-tes, penetrantes, ricas de significado. Isso só poderá acontecer se foi rea-lizado um bom esquema prévio: você deve saber desde o começo aonde quer chegar, que conclusão propõe, qual a mensagem que deseja deixar. Dessa forma, você irá preparando o final ao longo de todo o roteiro, indicando elementos que retomará nas últimas linhas.

O final deve ser vigoroso, mas por isso mesmo, breve e sóbrio. Frases curtas, concisas. Às vezes, dez palavras são suficientes para encerrar o roteiro; e essas dez palavras têm mais força que quinhentas. Trabalhe seus finais de modo a que sugiram mais do que dizem. Não diga tudo; deixe que o ouvinte complete o quadro.

O domínio dos recursos técnicosAlguns roteiristas acreditam que, para escrever peças de rádio, não

precisam entender de edição. Para isso – pensam – existem o diretor do programa e o técnico, que se encarregam de produzir a transmissão e colocá-la no ar.

Sério erro. Repetimos mais uma vez que a linguagem radiofônica não se compõe somente de palavras, mas também de música e efeitos sonoros. O roteiro de rádio, portanto, não é somente texto, mas também o planejamento de uma estrutura sonora, de uma “faixa de som”, para utilizar a terminologia de cinema. O roteirista deve indicar com a maior precisão possível os sons, os comentários musicais. E para isso, é preciso que os conheça.

Quem quiser escrever para rádio deve estar familiarizado com todo o processo de realização e conhecer a técnica de produção32. Só assim dominará todas as possibilidades e recursos do meio (o que é possível fazer) e também as limitações (o que não se pode ou não se deve fazer); aprende-se a fazer rádio – inclusive a escrever para rádio – principal-mente no estúdio, vendo e ouvindo como são editados os programas.

32 Os processos de edição passaram por muitas mudanças desde a escrita dos origi-nais desta obra. Então analógica, demandava mais tempo da equipe técnica para a edição e não permitia a manutenção fácil e rápida de uma cópia bruta dos áudios. Em 2017, a edição é computadorizada, digital. Desta maneira, a circulação, mani-pulação e recuperação de áudios é facilitada [Nota da tradução].

253Produção de Programas de Rádio

Um roteirista que não conheça as técnicas de produção seria como um compositor musical que pense em escrever uma peça sinfônica sem conhecer os instrumentos da orquestra, as possibilidades e limitações de cada um.

A parte IV deste livro, “A direção”, não se destina somente aos que querem aprender direção, mas também aos roteiristas.

Uma exigência do ofícioUm bom roteiro quase nunca é finalizado na primeira tentativa. Não

se escreve de uma só vez. Reescreva, reescreva muito. Refaça. Costuma-mos acreditar que os grandes escritores, os gênios literários, concebem suas obras-primas em um impulso. Se víssemos seus manuscritos, tería-mos uma grande surpresa: comprovaríamos que se trata mais de rótulo do que de realidade.

Não se conforme com a primeira versão: exija de você mesmo. Faça um primeiro rascunho: apague, rompa, mude, reescreva, refaça trechos ou páginas inteiras. Passe a limpo e, ao fazê-lo, corrija, modifique o ras-cunho, melhore-o. Depois, releia esse segundo texto e ainda nele mude palavras, modifique frases, suprima trechos desnecessários, acrescente outras coisas.

Não sem certa ironia, Luis Ramiro Beltrán diz que um grande segre-do profissional “reside nisso. Para adaptar nossa escrita às necessidades da educação popular – explica – o único recurso que se conhece é voltar a escrever. Salvo raríssimos casos, uma boa mensagem não sai da má-quina de escrever depois da primeira tentativa. Escreva espontanea-mente da primeira vez. Depois, analise e volte a escrever. Corte, recorte, revise a ordem das ideias, pense de que maneira poderia melhorar seu texto. Revise e reescreva até ficar satisfeito” (ou relativamente satisfeito – adicionaríamos –, já que nunca ficará totalmente).

Costuma-se pensar que o principiante precisa reescrever muito, mas que quando se adquire pleno domínio do oficio, o roteiro sai facilmente. Não é assim. O escritor habitual, caso tenha uma autêntica vocação para o trabalho, revê e refaz tanto quando o novato. À medida que adquire mais maturidade, torna-se mais autocrítico, mais exigente consigo mes-mo. Sua maturidade lhe permite produzir melhores roteiros, produtos mais perfeitos e acabados; não para fazê-los mais rápido.

254 Mario Kaplún

3. A leitura crítica

Caso queiramos formar uma postura crítica no ouvinte, devemos primeiro tê-la em nós. Caso queiramos problematizar, questionar nosso público, devemos problematizar e questionar a nós mesmos.

Podemos ter as ideias teóricas muito “avançadas”, muito “progres-sistas”; mas em um roteiro de rádio, coordenamos diálogos, feitos, personagens, situações concretas, exemplos, expressões, modos adver-biais, imagens; e nossas intenções podem ser traídas ou desvirtuadas quando as colocamos no roteiro. Nosso objetivo explícito pode ser deixar uma determinada mensagem ao ouvinte; entretanto, implici-tamente, sem alertá-lo, podemos transmitir a ele outro diferente e até mesmo oposto.

Por quê? Porque dentro de nós mesmos também há juízos prévios subconscientes, como no ouvinte. Somos produtos de uma educação, de uma sociedade que nos formou; falamos uma linguagem que tem sig-nificados e conotações implícitos. Temos gravados em nós uma série de estereótipos, de clichês mentais. Tudo isso que está em nosso subcons-ciente dispara automaticamente e colocamos no nosso roteiro. A menos que estejamos alerta e sejamos críticos, podemos acabar por reforçar os padrões culturais que já existem no ouvinte em vez de contribuir para mudá-los.

Para citar alguns exemplos elementares: Quantas vezes acreditamos que “a caridade bem entendida começa em casa” sem alertar para o conteúdo egoísta, individualista, anticomunitário dessa frase? Quantos educadores conclamam seus alunos a estudar para “progredir e triunfar na vida”, “para ser alguém”, sem se dar conta de que estão identificando o progresso e o ser com o dinheiro, a ascensão social individual e a con-quista de bens materiais?

Temos, pois, que ser muito críticos conosco e com nosso roteiro. Revisar a escala de valores que tacitamente utilizamos. Buscar e exigir máxima coerência entre nosso pensamento e as formulações (palavras, imagens, símbolos, situações) que utilizamos para construir um roteiro.

A vigilância dos objetivosÀs vezes o resultado final é tão falho que a mensagem em si é

desvirtuada e atraiçoada. Queremos dizer uma coisa e, na verdade,

255Produção de Programas de Rádio

sem nos dar conta, dizemos outra. Propomo-nos a transmitir uma mensagem questionadora, libertadora e em contrapartida deixamos uma mensagem conformista, resignada. Não porque o ouvinte tenha “entendido mal”, mas porque nós, insensivelmente, nos deixamos levar e construímos o roteiro de tal maneira que os valores do status quo ad-quiriram mais força que os valores de mudança.

Ainda que possa parecer um caso limítrofe, acontece com muito mais frequência do que se imagina. É necessário que meditemos e revi-semos bem nosso planejamento ou esquema; e depois, que submetamos o roteiro a um teste objetivo para comprovar se conseguimos permane-cer fieis à finalidade proposta. Este teste pode ser feito com um grupo representativo da audiência pretendida. Lemos o roteiro para eles – sem comentários prévios, que possam influenciar e condicionar a interpre-tação, sem preveni-los antes da intenção que tivemos ao escrever – e verificamos quais são suas reações espontâneas. O que entenderam, a que conclusão chegaram, qual mensagem permaneceu?

Na falta dessa possibilidade, podemos submeter o roteiro à crítica da equipe de colegas com que trabalhamos. Ou, se isso também não é possível, resta o recurso da autocrítica. Perguntamo-nos: qual era a mensagem que nos proporíamos a transmitir? Conseguimos transmi-ti-la realmente, fixá-la no roteiro, ou a perdemos de vista pelo cami-nho?

As mensagens secundárias; a lei da congruênciaMas, sem chegar a esse caso extremo, que equivale a um fracasso

total, podemos – e isso é ainda mais frequente – incorrer em inconse-quências parciais.

Acontece que nunca transmitimos uma só mensagem por vez, mas sempre um conjunto de mensagens paralelas. Mensagens paralelas que podem entrar em conflito com a principal e anulá-la em certa medida.

Como destaca Osorio, “toda mensagem leva consigo uma série de mensagens secundárias. Pausas, tons, titubeios, música e fundo, desta-ques musicais. Estes elementos facilitam ou entorpecem grandemente a captação e a percepção da mensagem. Para que a facilite, é necessá-rio cuidar da harmonia de todas estas mensagens secundárias para que transmitam o mesmo conteúdo. É o que se chama de lei da congruência

256 Mario Kaplún

das mensagens”. Expressamo-nos através de símbolos, de imagens, de frases feitas etc. Cada uma delas tem seu próprio nível de significação e tem subjacente uma mensagem secundária, congruente ou não com a mensagem central.

Por exemplo, nos tocou, uma vez, escutar uma transmissão em que se buscava exaltar a afirmação dos valores culturais nacionais. Mas, sem dúvida, o autor não se preocupou em indicar o estilo da ambien-tação musical em seu roteiro. Não deu importância à música, à qual só atribuiu uma função mecânica de separação entre parágrafos de texto. Deixou-a nas mãos do técnico. E este, mecanicamente, colocou uma música conhecida de um filme norte-americano – talvez porque era a que tinha mais à mão, o tipo de música convencional que costumava utilizar sempre nesses casos; ou quem sabe porque, em seu gosto, “ficava muito bem”.

Não é difícil imaginar as representações de american golden dream que, em nível consciente ou subconsciente, aquela melodia suscitou nos ouvintes, expostos a duas mensagens antagônicas. A música atuou como uma mensagem secundária incongruente. Toda a afirmação de uma cultura nacional contida no texto era simultaneamente negada pelo comentário musical, que gerou um forte “ruído” ideológico, uma interferência de significados.

Um autor de radiodramas, que era considerado sinceramente muito comprometido com o povo, ficou impressionado quando um pesqui-sador fez uma análise de conteúdo de seus roteiros e comprovou que neles 80% de seus protagonistas “bons” e “positivos” eram profissionais universitários – isto é, pessoas brancas, cultas, de alto nível social. Em contrapartida nenhum de seus personagens protagonistas era mestiço, trabalhador braçal, agricultor.

Um exemplo ilustrativoHá pouco tempo tivemos a oportunidade de escutar uma transmis-

são voltada aos agricultores, produzida por uma escola radiofônica de um país centro-americano. O roteiro abordava a independência nacio-nal e a luta contra o colonialismo econômico; e as vinculava à necessi-dade de implantar no país a reforma agrária.

A transmissão tinha as seguintes características: era composta em forma de diálogo entre um locutor de dicção culta e um agricultor (re-

257Produção de Programas de Rádio

presentado por um ator). O locutor era o que sabia das coisas, o que entendia o que estava acontecendo no país, e explicava tudo. O agricul-tor era um pouco bobo, ignorante; perguntava constantemente coisas óbvias e recebia as revelações de seu amigo docto com expressões de agradecimento, assombro e alvoroço. Evidentemente, nunca o ques-tionava.

Além disso, talvez para fazer um programa leve e divertido, o rotei-rista fez do agricultor um personagem “pitoresco”, cômico, até um pouco ridículo. Saldo: a seleção dos personagens e a relação entre eles anulava em grande medida a intenção do autor. O resultado era uma mensagem paternalista e autoritária: o pedante da cidade tirando a ignorância do agricultor atrasado. Ao dar a ele traços cômicos, o roteirista cedeu a um típico clichê ideológico urbano sobre o agricultor, tão frequentemente representado como o rude que faz rir por ser torpe e ignorante.

Mas isso não é tudo. Para “amenizar” a transmissão, ela era inter-rompida na metade para a reprodução de um disco, uma canção (“mui-to boa”, como comentava o locutor); uma canção narrativa popular – mexicana, não nacional – cuja letra dizia:

A mulher que eu quis me deixou por outro; segui seus passos e matei os dois. Eu não fui culpado porque estava louco, louco pelos ciúmes e louco por seu amor. (sic)

Provavelmente, o responsável pelo programa não deu importância a essa música que intercalava e deixou que o encarregado da discoteca pusesse “um disco qualquer de sucesso popular”, sem perceber que es-tava oferecendo uma mensagem secundária pronunciadamente incon-gruente com a principal, que se refere à reforma agrária e à libertação dos sem terra.

Cremos que o exemplo seja ilustrativo e tenha servido para demons-trar porque e em que medida devemos ser críticos em nossos roteiros e cuidar de todos os aspectos para que sejam coerentes com o objetivo almejado. Os iniciantes, particularmente, que estão mais expostos a cair na armadilha das incongruências: absortos pela estrutura técnica e for-mal do roteiro, que ainda não dominam plenamente, perdem facilmente de vista o conjunto de significados.

258 Mario Kaplún

4. Como se desenha um roteiroA função do script

O script ou roteiro é, como já dissemos, algo além do texto; é “a es-trutura auditiva codificada por escrito; o projeto da emissão sonora” (Osorio); “a pauta da mensagem sonora” (Beltrán). É o esquema deta-lhado e preciso da transmissão, que compreende o texto falado, a mú-sica que será incluída e os efeitos sonoros a serem inseridos, e indica o momento preciso em que se deve escutar cada coisa. Só com essa rota detalhada (derivado daí seu nome roteiro) é possível produzir bons pro-gramas e evitar toda a confusão, toda a improvisação, na hora da edição.

A transmissão se produz com base nele. Quando você escreve um roteiro, está escrevendo uma obra literária e educativa, mas ao mesmo tempo um instrumento de trabalho para todos os que irão intervir na produção: diretor, diretor de arte, técnico de áudio, locutor, atores, cro-nometrador. Cada um deles receberá uma cópia do roteiro e realizará sua parte de acordo com suas indicações. Elas permitirão saber o que se deve fazer antes da gravação ou transmissão e durante a mesma; e quan-do é necessário fazê-lo. Daí a necessidade de que você escreva e desenhe seu roteiro de forma precisa, organizada e detalhada.

Normas para o desenhoO script é diagramado em duas colunas: à esquerda, uma pequena,

de cerca de doze espaços; e à direita, a coluna principal.Os nomes dos locutores ou personagens que devem falar, escritos

em letras maiúsculas, localizam-se na coluna pequena da esquerda; e ao lado, à direita, o que esse locutor ou personagem deve dizer – isto é, o texto ou fala correspondente.

RAQUEL E a Elsa, Pedro?

PEDRO Lamentavelmente, a Elsa não pode vir.

ELISA Hoje também não?

PEDRO Tito, o bebê mais novo, está com muita tosse e não podia ficar sozinho.

RAQUEL Que pena, já é a terceira reunião que ela perde.

PEDRO Ela sentiu muitíssimo, ficou muito triste, porque disse que estas reuniões lhe fazem muito bem. Mas vocês sabem, quando se tem filhos...

259Produção de Programas de Rádio

Quando se deseja começar uma inserção musical, se coloca na colu-na da esquerda a palavra TÉCNICA e na da direita a indicação corres-pondente, em maiúsculas e sublinhado.

TÉCNICA CORTINA MUSICAL: “CARNAVALITO”, DE H. DIAZ (CHARANgO).

Ou ainda:

TÉCNICA CORTINA ALEgRE, POPULAR (FADE-IN NAS ÚLTIMAS PALA-VRAS PASSA A PRIMEIRO PLANO E FICA DE FUNDO)

Os sons também são indicados da mesma maneira, em maiúsculas e sublinhados, seja em efeitos sonoros pré-gravados, operados pelo técni-co na mesa de edição:

TÉCNICA VENTO FORTE, ESTILO FURACÃO

Seja em efeitos produzidos no estúdio, caso este em que na coluna da esquerda se colocará EFEITO ou ESTÚDIO:

EFEITO PASSOS RÁPIDOS (COMEÇA EM 1º PLANO, PASSA A 2º / ABRE A PORTA)

Nos textos de narração se coloca, sempre que necessário, indicações de modo, inflexão ou direção da voz, tais como (IRRITADO), (NERVO-SO), (ALEGRE), (AFASTANDO-SE) etc. São escritas em maiúsculas e entre parênteses, mas sem sublinhado.

gONZALEZ (EM PRIMEIRO PLANO, PARA LUCHO) Mas vamos ver essas plantas.

EFEITO PASSOS NA TERRA, DE 1º PARA 2º PLANO

gONZALEZ (AgORA EM 2º PLANO, COM TOM DE SUAVE REPROVAÇÃO) Estou com o coração na mão: há quanto tempo você não cuida dessas plantas? (AMIgÁVEL) Mas a verdade, hein?

Também se define da mesma maneira, com a indicação (TRANSI-ÇÃO) – ou o abreviado (TRANS.) – quando se pretende destacar ao ator que deve mudar a entonação em uma mesma fala.

LUISA Por favor, basta. Não vamos falar mais. Já estou cansada disso, entende? (TRANS.) Alguém veio esta manhã?

Da mesma maneira são marcadas as pausas dentro de um trecho, in-dicando no meio dele (PAUSA) ou, se deseja uma breve, (PAUSINHA).

260 Mario Kaplún

Estas convenções gráficas (nomes em coluna, maiúsculas, parênte-ses, sublinhados) têm o propósito de que cada participante que esteja ao microfone identifique rapidamente sua parte e saiba quando agir e como fazê-lo; em que momento deter-se para a inserção de outro parti-cipante ou de uma cortina musical ou de um efeito sonoro; e que pala-vras dentro de seu script são textos que deve dizer e quais correspondem a indicações de ações.

O resto do roteiro, isto é, o texto propriamente dito, é escrito em le-tras correntes. Também é usual sublinhar algumas palavras que peçam uma ênfase especial:

gONZALEZ Tudo como eu indiquei? Está certo disso? Vamos ver, amigo Lucho: Quando você semeou?

Esta prática de sublinhar as palavras que desejamos que sejam enfa-tizadas ou acentuadas é conveniente.

Uma frase lida oralmente pode variar muito de sentido segundo a sua palavra tônica; isto é, aquela em que se coloca ênfase ou acento. Mesmo sem mudar nenhuma palavra, um texto pode ser totalmente desvirtuado pelo locutor ou ator por adotar a palavra tônica que não corresponderia à proposta pelo roteirista.

Às vezes, quando se deseja uma ênfase ainda maior, se separa uma palavra para sugerir uma pronúncia marcada dela:

RAMIREZ É isso, Juan, é isso: von-ta-de! Muita vontade.

Numeração das linhas. Quando o roteiro é copiado para distribuição entre o pessoal que atuará na produção, a datilógrafa33 respeita todas as indicações do original, mas além disso agrega outro detalhe importante: numera as linhas de forma correlativa. Localiza essa numeração sobre a margem esquerda de cada folha:

33 A circulação dos roteiros, com a digitalização dos processos comunicacionais, foi completamente alterada. Hoje a redação é realizada diretamente nos computado-res, sem a necessidade da datilógrafa e pode ser circulada em via impressa, através de email ou por sistemas internos de gerenciamento de conteúdo das emissoras [Nota da tradução].

261Produção de Programas de Rádio

282 MENDEZ Mas é que é urgente...

283284

VICENTEUrgente ou não, eu não assino. Conversamos quando eu me levantar.

285 MENDEZ Mas... (TRANS.) Está bem, pai. Boa noite.

286 VICENTE Boa Noite.

287288

EFEITOPASSOS AFASTANDO-SE/PORTA ABRE E FE-CHA

289290

Da.CLARA(DEPOIS DE BREVE PAUSA) Pobre Méndez. Deve ter ido muito corrido.

291292293294

VICENTE

(INCOMODADO CONSIgO MESMO) Bom, mas por-que me traz uma coisa para assinar que até uma criança se dá conta de que... Caramba! Não vê que assim eu...?

295296297

TÉCNICAFADE-IN TRILHA AgITADA, NERVOSA, FUNDE COM BATIDAS DE RELÓgIO MARCANDO DUAS HORAS.

298 VICENTE (ALTO, CHAMANDO) Dona Clara! Dona Clara!

Esta norma de numerar as linhas é muito prática. Durante os ensaios e a gravação, economiza muito tempo: todos encontrarão imediatamen-te o lugar em que se começa ou recomeça, a passagem que se deve re-petir, modificar ou cortar, o erro de leitura ou a falha de entonação que se quer corrigir. Basta que o diretor indique simplesmente o número da linha correspondente.

Mas não é necessário que o roteirista já enumere as linhas em seu original. Esta é uma tarefa incômoda e, além disso, inútil, já que difi-cilmente suas linhas coincidirão exatamente com as da cópia definitiva que a datilógrafa fará. Basta indicar a ela que acrescente a numeração ao copiar o roteiro.34

34 Em 2017, um formulário do editor de texto faz o trabalho de diagramação que competia à profissional datilógrafa no tempo da máquina de escrever, quando foi escrito o livro [Nota da tradução].

262 Mario Kaplún

Terminologia do roteiro

Entrada: uma intervenção breve de um ator ou locutor; uma réplica rápida. Meia linha, uma linha, talvez duas.

Discurso: um texto longo, continuado, de várias linhas, na boca de um mesmo locutor ou personagem.

Deixa: as últimas palavras da entrada ou do discurso precedente. No exemplo transcrito acima, as palavras de Vicente “Conversamos quando eu me levantar” são a deixa para Méndez, para que este diga sua entrada na linha 284. Quando nos ensaios se retoma ou repete uma passagem, é comum que o ator, para poder fazer a réplica com a entonação adequa-da, peça a seu companheiro: “Me dê a deixa”. E este lhe diz as últimas palavras da sua parte. Quando se corta uma passagem, o diretor adverte: “A deixa para X mudou: agora é...” (e lê as últimas palavras da entrada ou discurso imediatamente anterior à passagem suprimida).

Outras normas práticas para o roteirista1. O elenco. No início do roteiro, o autor insere uma lista de locutores e personagens que agem. Para orientar melhor o diretor e os intérpre-tes, convém que adicione uma breve descrição de cada personagem: sua idade, seu perfil psicológico, seu jeito de falar, seu nível sócio cultural, seu sotaque e outras características especiais que tenha.

2. Os símbolos ortográficos. Nem todas as máquinas de escrever tra-zem os símbolos de abrir interrogação (¿) e de exclamação (¡)35. Como são fabricadas em países onde esses símbolos não são utilizados, é co-mum que sejam omitidos. Entretanto, na grafia espanhola esses símbo-los existem; e não gratuitamente. Em rádio, são muito úteis e necessá-rios: ajudam muito a leitura correta do locutor e do ator.

Em outros idiomas não são necessários porque a pergunta e a excla-mação são demonstradas através de uma construção frasal distinta e a entonação interrogativa ou exclamativa são marcadas somente ao final das mesmas. Já no espanhol, a inflexão de voz é a única coisa que marca a interrogação ou a exclamação; e ela afeta toda a entonação da frase,

35 O destaque no texto a estes símbolos deve-se à língua em que foi escrito original-mente, o espanhol. Neste idioma, os símbolos de abertura de interrogação e excla-mação são determinantes para a entonação da leitura [Nota da tradução].

263Produção de Programas de Rádio

desde o começo. Deriva daí a importância desses símbolos em um meio oral como o rádio.

Se eles não existem na sua língua, coloque-os. E acostume-se a colo-cá-los sempre em seus roteiros.

3. O espaçamento. Ao escrever seu original na máquina, faça-o sempre em espaço duplo. Isso permitirá inserir correções manuscritas. Deixe também uma margem larga à esquerda para poder fazer complemen-tações à mão.

4. A cópia. Na hora da impressão, faça uma ou duas cópias extras do seu original. É um pouco incômodo, mas plenamente justificado. Um original pode ser perdido acidentalmente, extraviado etc.: se não hou-ver uma cópia, todo o trabalho será perdido. Além disso, ao entregar o original, a cópia permanece como documento de consulta: se precisar reler um roteiro para escrever outro posterior que dará continuidade ao mesmo tema, o terá à mão sem precisar esperar que se faça outra cópia. Finalmente, essa cópia permite adiantar a produção (a seleção do elen-co, a edição musical e sonora).

Caso faça correções manuscritas no seu original, faça também na cópia.

5. O cálculo do tempo. Uma pergunta que os iniciantes comumente fazem é quantas páginas deve ter seu roteiro para adequar-se a uma du-ração fixa.

Na verdade, é impossível calcular o tempo pelo número de páginas. Uma página de entradas curtas, de mais linha cada uma e de ritmo ágil e rápido pode durar um minuto ou um minuto e meio; uma página de discursos extensos e que devem ser falados lentamente pode chegar a três ou quatro minutos. Só a prática e o instinto ensinam a medir o tem-po que a música e os efeitos sonoros consomem, tempo muito variável.

Como um guia: em programas dialogados, calcule para cada página tamanho ofício em espaçamento duplo, com margem normal e escrita de máquina standard, ao redor de dois minutos e meio. Para uma fala corrida de cinco minutos, escreva uma página e meia. Mas considere o aleatório que envolve essas estimativas.36

36 No computador, estima-se que a contagem de mil caracteres de texto de fala corres-ponda a um minuto de gravação [Nota da tradução].

264 Mario Kaplún

Capítulo

11O roteiro de fala ou monólogo

LOCUTOR Amigos agricultores, bom dia. Neste espaço da Central Nacional de Cooperativas – CENACOOP – hoje continuaremos tratando dos planos cooperativos de produção.Hoje abordaremos a comercialização das colheitas dentro dos planos cooperativos.Recentemente, a Direção Administrativa da CENACOOP, com o objetivo de organizar as operações de comercialização das coo-perativas associadas ao sistema e assegurar aos sócios uma li-quidação remuneratória em prazos de tempo adequados, imple-mentou uma série de disposições...

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Você continuaria escutando uma fala como esta? Então não a escreva assim.

Por que isso não funciona em rádio? Porque soa como uma lingua-gem escrita e não falada. Não estabelece uma comunicação pessoal com o ouvinte. É atemporal, impessoal, formal. Nela se reconhece imedia-tamente a típica redação do técnico ou do funcionário administrativo.

Como se poderia construir esse texto de outra maneira, em lingua-gem radiofônica?

gARCIA Não há coisa pior do que ter uma dúvida e não falar sobre ela. Domingo, no mercado, encontrei meu compadre Julián meio de-sorientado... meio confuso. “Diga lá, garcía, você que está nes-sa... falando sério... é bom entregar o milho para a cooperativa? Vale a pena? Que segurança você tem para receber seu dinheiro? Porque andam dizendo que o pagamento demora muito. E que no fim das contas o preço que se tira não é certo”.Bom, um monte de sócios está me perguntando a mesma coisa; então eu prometi que iria falar sobre isso no rádio. Vamos ao assunto. Como é essa coisa de vender através da cooperativa?

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265Produção de Programas de Rádio

O que mudou aqui? Que agora estamos contando uma história e, através dela, estabelecendo uma relação de empatia com o ouvinte; dia-logando, conversando com ele. Partimos de uma referência da vida coti-diana do que escuta ou do que fala, de uma experiência comum. Não se parte do que a Direção Administrativa da CENACOOP quer dizer, mas do que o ouvinte quer saber.

O conteúdo que se vai transmitir é o mesmo: a forma de pagamento do milho reservado para a cooperativa. Os autores da primeira e da se-gunda fala vão tratar do mesmo assunto, tinham em suas mãos o mes-mo material para desenvolver; mas o primeiro se limitou a divulgar esse material “no bruto”, como o recebeu; enquanto o segundo o trabalhou, elaborou o material radiofonicamente para convertê-lo em uma con-versação interpessoal. A fala se despojou de seu caráter solene, de sua formalidade; humanizou-se, se fez vivencial.

1. O tratamento radiofônico

A aparente simplicidade de um gênero difícilÉ comum acreditar que escrever uma fala é, em rádio, “o mais fácil,

o mais simples”; que não exige maior técnica ou elaboração. Basta ter o que dizer, alguma coisa a transmitir; e dizer.

Certamente o formato monólogo oferece vantagens consideráveis. É o meio mais direto de comunicar uma ideia. E é o de mais baixo custo de produção: tudo o que se precisa é uma voz.

Mas também pode ser o mais cansativo. E o menos eficaz. “Não há nada mais fácil que ouvir uma só voz sem escutar o que está dizendo”37. Justamente porque dispõe de um só recurso – uma única voz – e não oferece todas as possibilidades de variedade de um diálogo, a fala exige mais da atenção e vontade do ouvinte, que pode distrair-se facilmente. O roteirista deve esforçar-se mais para chegar à sua audiência.

Produzir uma boa fala não é fácil. Não se trata somente, como se pode pensar, de reunir o material e organizar os conteúdos que nos

37 HUGH BARRETT y BRIAN WELSH: The Talk, in A Handbook for Scriptiwriters (sic) of Adult Education Broadcasts, tomo I. The Friedrich-Ebert-Stiftung, Bonn-Bad-Godesberg, 1973. Nesse capítulo apresentamos várias abordagens pontuais deste trabalho.

266 Mario Kaplún

propomos a transmitir. Como em qualquer outro programa de rádio, é preciso ser imaginativo e criativo; encontrar a maneira de transmitir esse conteúdo de forma atraente, capaz de atrair a atenção e o interesse do ouvinte. O como é tão importante quanto o quê. É necessário que a fala se converta em uma mensagem pessoal, que estabeleça um laço de comunicação com o ouvinte; que tenha cor, vida; que apresente uma es-trutura atraente e vívida; que crie imagens acústicas que tornem o tema visual e façam o ouvinte vê-lo e vivê-lo.

Outras pautas para escrever uma boa fala

Clareza. O responsável pela fala no rádio não pode ver seu interlocuto-res ou perceber suas reações, como em uma reunião; não sabe se está ou não atingindo seu objetivo de ser atendido e entendido. Por outro lado, eles não podem fazer nenhuma pergunta para esclarecer possíveis dú-vidas ou pedir que repita algo. Deve, então, esforçar-se ao máximo para expressar-se de maneira clara. Prever as dúvidas que seu público possa ter e antecipar-se; imaginar as reações de seus ouvintes e responder a elas.

Seja claro e simples. Escreva para que todos o compreendam. Pense em seu público. Nunca perca de vista para quem está escrevendo ou nunca se esqueça para quê está escrevendo.

Simplificação. Nos dirigimos a uma audiência profana e que não está amplamente interessada em temas científicos, econômicos etc., que queremos tratar. Em uma fala radiofônica, necessariamente breve, não podemos dar uma informação profunda e extensa. A fala serve para motivar, para despertar uma inquietude, não para oferecer uma exposi-ção detalhada de um assunto. Assim, uma simplificação se impõe. Cer-tamente esta é uma limitação; não há outro remédio que não assumi-la.

Escreva suas falas para motivar, não para expor. Simplifique os con-teúdos. Faça um esforço para ser simples sem cair na trivialidade ou na superficialidade. Sintetize. Diga o importante de uma maneira comuni-cativa e que sacrifique o que não é tão importante. Foque em uma ideia central e desenvolva-a de forma clara e convincente.

Reduza os dados ao mínimo. Dado o curto tempo de que dispõe, é preferível que o ouvinte absorva dois ou três aspectos principais do que submergi-lo com muitos detalhes dos quais ele não se lembrará depois.

267Produção de Programas de Rádio

Motivação. As primeiras frases são decisivas. É preciso captar o inte-resse do ouvinte desde o começo para que permaneça escutando e pres-tando atenção à nossa transmissão. Para isso, o melhor é partir do co-nhecido, do cotidiano, do familiar. Coloque-se no código experiencial do ouvinte. Parta do que interessa a ele, não do que interessa a você ou à sua instituição. No primeiro exemplo, o locutor partia das disposições administrativas adotadas pela CENACOOP; no segundo, das perguntas e dúvidas do compadre Julián.

Exemplificação. Sempre se valha de exemplos. Use-os em abundância. Humanize seu tema. Conte acontecimentos, casos.

Linguagem. Tão simples e acessível quanto possível. Palavras simples, familiares. Se precisa nomear produtos químicos, espécies vegetais ou animais, doenças humanas, pragas de cultivo ou gado etc., use sempre o nome popular dado na área e não a fórmula química ou nome científico. Abra mão de tecnicismos sempre que possível. Você não está falando com seus colegas profissionais, mas para o público. E quando for im-prescindível usar um termo técnico, traduza-o, explique-o.

Sintaxe. Frases curtas e diretas.

Estilo. Seja coloquial e informal. Personalize sua fala, atribua-lhe afe-tuosidade, fale para um indivíduo. A um ouvinte ou a um pequeno gru-po deles, não a uma grande audiência. Envolva-se na fala. E envolva o ouvinte com quem você conversa. Escreva em estilo conversacional. Não seja solene. Não faça discursos. Não imite o estilo de locutores pro-fissionais. Siga sendo “você mesmo”.

Modéstia. Não seja prepotente. Não dê uma aula. Não fale com superio-ridade. Coloque-se ao lado do ouvinte; lembre-se que você também não nasceu sabendo; que você também trabalhou para aprender as coisas que sabe agora e para aceitar e se convencer das coisas em que acredita agora. Ao escrever sua fala, relembre esse processo de aprendizagem, lembre disso antes e durante a aquisição do conhecimento e ajude o ou-vinte a fazer essa passagem e a superar as dificuldades que alguma vez você possa ter apresentado.

Análise de dados e números. Poucos dados, poucos números. E esses poucos, eloquentes e significativos. E sempre arredondando-os. Lembre

268 Mario Kaplún

o que viu nos capítulos anteriores: é melhor usar percentuais do que números absolutos e ainda melhor usar proporções do que percentuais. Faça com que o ouvinte dimensione os números com comparações grá-ficas.

Reiteração. Já falamos antes: o rádio é um meio fugaz. O ouvinte não pode “voltar atrás” para reler o que não compreendeu em uma primeira leitura. Reitere; repita os pontos confusos. Diga mais de uma vez o mes-mo com outras palavras mais simples. Use exemplos. E ao final da fala, reapresente a ideia central.

Usar música?Para “aliviar” a monotonia de um monólogo, costuma-se usar – e

abusar – do recurso de cortar a fala com cortinas musicais intercaladas entre parágrafos. Na verdade, com isso o que se consegue é torná-la mais monótona e mecânica. Os cortes musicais em uma fala acabam sendo artificiais, tiram sua naturalidade conversacional, que flui espontânea; interrompem a conversa sem integrar-se a ela; e distraem do tema que está sendo tratado. Para impedir a monotonia, o importante é escrever um texto fluido, criativo, vivencial, pessoal. Se é assim, as interrupções musicais estão fora do lugar. Se não é assim, a música torna a transmis-são ainda mais convencional.

Ainda menos justificável é o fundo musical contínuo colocado em segundo plano na voz de quem fala. Só serve para distrair da mensagem que se quer transmitir.

2. O monólogo dramático

Em um monólogo falamos diretamente com o ouvinte. Mas também com uma só voz podemos criar um personagem falando com um inter-locutor imaginário. Este já é um recurso expositivo dramático. Cria uma situação, um cenário.

Como a fala, o monólogo dramático tem a vantagem de seu baixo custo de produção: precisa de um só ator. E é um formato que abre possi-bilidades radiofônicas muito interessantes e dignas de serem exploradas.

Salvo algumas exceções – tais como, em teatro, o célere monólogo “Ser ou não ser”, de Hamlet – ninguém fala sozinho, consigo mesmo.

269Produção de Programas de Rádio

Mas pode falar com um interlocutor invisível (ou melhor, em termos de rádio, inaudível). Há ótimos exemplos literários: o monólogo do Grande Inquisidor de Os Irmãos Karamazov de Dostoievski, em que o ancião inquisidor fala com um prisioneiro – Cristo – que permanece o tempo todo em silêncio. E teatrais: de Antes do Café da Manhã de O’Neill, a mulher, personagem único da peça, fala com seu marido, que está no banheiro, barbeando-se; em A Voz Humana de Cocteau, é uma mulher quem fala com um interlocutor fisicamente ausente. Podemos criar re-cursos similares no rádio.

No Uruguai, durante muitos anos, houve um programa humorís-tico monologal excelente e original: O Barbeiro, de Arthur N. García (Wimpi). Um barbeiro, tagarela e charlatão como costumam ser os pro-fissionais dessa área, conversava com seu cliente enquanto cortava seu cabelo e fazia sua barba. Comentava ao mesmo tempo questões de polí-tica, temas atuais, acontecimentos do bairro; contava histórias de outros clientes, fazia confidências sobre suas próprias questões familiares etc. As prolongadas pausas ou silêncios, que parecem ser tão contraindica-das no rádio, são curiosamente valorizadas em um solilóquio: em al-guns momentos o barbeiro parava de falar para se concentrar em seu trabalho, deixando uma frase pela metade para retomá-la logo depois ou passar abruptamente para outro tópico. Durante aqueles silêncios, só se ouvia o constante clic-clic da tesoura ou o raspar da navalha. A conversa diária do barbeiro com seu impassível cliente durava dez mi-nutos; e constituiu-se em um dos programas mais divertidos e originais da radiodifusão.

Outro recurso com grandes possibilidades é o epistolar: uma carta a alguém, como no exemplo que apresentamos a seguir. Algo semelhante pode ser obtido com a técnica moderna de enviar cassetes38 pessoais como cartas faladas: podemos imaginar um personagem que grava uma

38 A fita cassete era uma tecnologia popular de gravação de áudio na época da escrita deste livro. A produção massiva de fitas cassete iniciou nos anos 1960, prepon-derantemente na Alemanha. Consolidou-se como um dos formatos mais comuns para gravação entre os anos 1970 e 1980. Apresentava qualidade de áudio mais bai-xa, mas facilitava a gravação e a reprodução de som, o que representou uma revo-lução para o setor. Posteriormente, a fita cassete foi substituída pelo CD, tecnologia com capacidade para preservar o som com maior qualidade de áudio, já através de tecnologia digital [Nota da tradução].

270 Mario Kaplún

fita cassete e a envia a um familiar ou amigo – ou uma sucessão de-las durante um certo período de tempo – e compor com essas fitas ou fragmentos delas uma história, seja dramática ou cômica. Pode se tratar sempre dos mesmos personagens; ou a cada transmissão um remetente diferente dirigindo-se a um destinatário também diferente.

Exemplo no. 5: o monólogo dramático“Cartas a uma consciência”

Esta série é definida pela sua própria autora: “um programa de rádio que tenta fazer uma reflexão, usando a forma íntima e pessoal de uma carta; dando a sensação de um amigo com quem se conversa. Seu obje-tivo é fazer com que os ouvintes conscientizem-se dos hábitos mentais e preconceitos que muitas vezes estão implícitos em nossas atitudes. E na responsabilidade pessoal e coletiva que cada um de nós tem na so-ciedade”.

Cada transmissão, com duração de cinco minutos, consiste, então, em uma carta, escrita em cada caso por um personagem diferente (ho-mem ou mulher) a um destinatário também diferente. Naturalmente, estas cartas não foram escritas para serem lidas por um locutor, mas para serem ditas por uma atriz ou ator que atribua expressividade e for-ça ao texto, ainda que em uma entonação íntima e coloquial.

O exemplo é útil para mostrar como podemos fazer um programa radiofônico interessante, mesmo que esteja limitado ao recurso de uma só voz – uma fala – se somos criativos ao contar uma história; se conse-guimos humanizar a fala, personalizá-la, dar a ela vida e cor, povoá-la de imagens acústicas, convertê-la em um diálogo vivencial.

Série: CARTAS A UMA CONSCIÊNCIA

Transmissão: 35

Autora: Ana Hirsz

Produção: SERPAL

Edição: SERPAL, Munich-Bogotá (2tomos)

Duração: aprox. 5’

271Produção de Programas de Rádio

LOCUTOR Esta é outra página viva da série...

TÉCNICA TEMA MUSICAL: BAIXA E SEgUE

LOCUTOR “Cartas a uma consciência”.

TÉCNICA SOBE SOM E VAI A ZERO

MARINA Querida María Delia:

Volto de sua casa com um desassossego muito grande. Eu não sei, minha filha querida, se tenho razão ou não, mas estou preocupada. Por que não falo com você diretamente? Não sei, possivelmente porque não esteja certa e tema dizer coisas inexatas. Acredito que escrever me permite refletir ao mesmo tempo e possivelmente o que chegue até você seja algo mais claro e sereno do que o que senti ao sair da sua casa.Veja, María Delia, eu sei que sou velha e que nos meus tempos se educava as crianças de outra maneira. Sei e por isso mesmo nunca me intrometi na educação dos meus netos. Acho que nunca te incomodei com meus conselhos ou opiniões, não é? Mas agora é diferente; agora acredito que deva falar, porque acho que o que está fazendo faz mal às crianças. E sei – como não saberia – que você os ama muito para lhes querer mal.A televisão, eu sei, está incorporada à vida da família, quase como um membro dela. As crianças e os adultos passam muitas horas de sua vida diante desse aparelho que é tão necessário que sua ausência, ainda que temporária, perturba a vida da família. Bom, eu acho que isso é muito sério. Mas enfim, agora não quero falar da televisão, de seu conteúdo ou do efeito que produz. Acho que esse não é o momento.

(1)

Além disso, pode ser que eu realmente já seja muito velha, muito de outra época para entender isso. Não, não é sobre isso que que-ro falar, mas do que está fazendo com os meninos e a televisão. Quando as crianças voltaram do colégio, começaram a brincar. E claro, a casa encheu-se de sons. Bendito barulho, o das brinca-deiras e risos das crianças! Mas você perdeu a paciência, ficou nervosa. Começou a gritar com eles que se calassem, que não corressem, que sujariam o chão. Os meninos pararam um pouco... mas claro, em seguida esqueceram seus resmungos e voltaram às brincadeiras. Então, você, irada, ligou a televisão, procurou um “programa para crianças” e os deixou ali. Claro, não houve mais ruído na casa, salvo os tiros, os gritos, a música súbita que saía da televisão. As crianças estavam quietas, absortas diante da tela que lhes oferecia uma imitação da vida e do movimento que você impediu que eles fizessem. Então você me levou a outro quarto e me disse: “Agora eles vão ficar tranquilos e podemos conversar”. Mas eu já não tinha vontade de conversar. Eu não podia entender que, depois das horas de silêncio da escola, depois das tarefas que haviam feito, você não compreendesse a necessidade de brincar e de se mover que seus filhos tinham.

(2)

272 Mario Kaplún

Diga-me, María Delia, você se esqueceu completamente da sua infância? Não lembra de quando voltava da escola... como corria, como ria, como brincava? Não se dá conta de que isso é indispensável para as crianças; que sem isso não se de-senvolvem nem física nem psicologicamente? Você não pode, simplesmente para evitar o ruído, impedir que seus filhos fa-çam o que a natureza deles pede. É que a força e a energia que não gastam normalmente, gastarão de forma negativa. E eles e você, a longo prazo, vão sofrer as consequências. Pen-se nisso, querida.

E me perdoe por desta vez, contra meu costume, eu tenha me intrometido no que me importa, e muito.

(3)

Meu amor por vocês me dá o direito. Sua mãe. (4)

TÉCNICA FUNDO MUSICAL / VAI A Bg

LOCUTOR Foi o que falou essa carta... mais uma da série “Cartas a uma consciência”, apresentada por SERPAL. Até logo.

TÉCNICA SOBE FUNDO MUSICAL

Comentários

(1) Já no começo antecipa uma história, a comunicação de uma expe-riência.

(2) Marina não se coloca com superioridade; não dá uma opinião drás-tica. Só comunica uma inquietude.

(3) Não há agressividade, mas afeto: “Pense nisso, querida”. Algo indis-pensável para que uma fala questionadora chegue ao ouvinte, seja aceita por ele e o leve à reflexão.

(4) Compare-se o efeito dessa “carta” ao de uma fala convencional feita por um psicólogo que dê conselhos às mães sobre o mesmo tema. Qual você acha que seria mais ouvida e mais eficaz?

273Produção de Programas de Rádio

Capítulo

12

O roteiro de uma reportagem radiofônica

Definimos a reportagem radiofônica como uma monografia radio-fônica sobre um determinado tema. Um programa de reportagem ra-diofônica trata um tema em cada emissão, o qual é abordado com certa profundidade, considerando seus diversos aspectos e pontos de vista. Utiliza para isso uma variada gama de técnicas e recursos auditivos: vo-zes diferentes – de estúdio ou de exteriores-, seja em exposição direta, seja em forma de entrevista ou debate; sons, músicas etc.

Junto com o radioteatro, pode-se considerar a reportagem radiofô-nica como o formato com maior eficácia do ponto de vista educativo; aquele que mais pode contribuir para ampliar os horizontes e a visão do ouvinte adulto.

No capítulo 5, ao tratar dos diferentes formatos, já descrevemos com detalhes as principais características da reportagem radiofônica. Aqui ampliaremos e complementaremos essas noções e nos deteremos na execução do roteiro para uma reportagem, incluindo exemplos. Con-tudo, e a fim de evitar repetições desnecessárias, consideraremos que o leitor tem presente o que ali foi apresentado – sendo que nunca é demais uma recapitulação.

1. O gênero

A temáticaDos exemplos enumerados no capítulo 8, o leitor já pode deduzir

que os temas a serem tratados no formato de reportagem radiofônica são praticamente ilimitados.

274 Mario Kaplún

A temática é inesgotável: assuntos de atualidade local e nacional (o aumento dos preços, o êxodo do homem do campo para a cidade; a escassez de moradia); da atualidade internacional (a crise do petróleo, a OPEP, o antagonismo sino-soviético, a proliferação de armas nucleares (reportagens históricas: o sonho de Bolívar de uma América Confede-rada; a vida cotidiana no Império Inca); biografias (Einstein, Artigas, Bartolomé de las Casas, Ho-Chi-Min); reportagens sobre uma região, um país, uma cidade, um povoado; sobre um projeto governamental, uma nova lei, um problema educativo (a evasão escolar) ou sanitário (a desnutrição infantil).

De fato, quase não há assunto que não possa ser tratado numa repor-tagem radiofônica. É questão de permanecermos bem informados, de estarmos atentos ao que acontece no nosso país e/ou mundo e termos sensibilidade e olfato para encontrar assuntos que respondam ao inte-resse da audiência em geral.

Apesar disso, um conselho: os temas “importantes”, grandes, com-plexos, abstratos, nem sempre garantem as melhores reportagens. Con-vém evitar as intelectualizações e reduzir o alcance do tema, delimitá-lo, concretizá-lo e colocá-lo numa “escala humana”.

A FrequênciaUma reportagem pode ser uma emissão especial, eventual, por mo-

tivo de um determinado acontecimento (o aniversário de um fato his-tórico, a chegada ao país de um visitante ilustre, uma homenagem a um personagem público ou um grande escritor que acaba de falecer). Mas normalmente é um programa estável, de frequência semanal, que apre-senta um tema diferente a cada semana.

Assuntos para alimentar o programa não faltarão: o problema é pro-duzir uma reportagem por semana.

É quase impossível pesquisar o tema, reunir a documentação, conse-guir os entrevistados, gravar e editar as entrevistas e escrever o roteiro nesse espaço de tempo. Geralmente é preciso dispor de 15 dias para que seja possível cumprir a frequência semanal. Há duas soluções possíveis:

Adiantar os roteiros: somente depois de ter escrito todos ou pelo me-nos mais da metade, iniciar a transmissão do programa (obviamente, esta solução não é aplicável se as reportagens forem sobre temas de atua-lidade imediata: perderiam a vigência antes de chegar a hora de ir ao ar).

275Produção de Programas de Rádio

Formar duas equipes de trabalho que se revezem, de modo que en-quanto uma entrega seu roteiro a outra já está produzindo a seguinte reportagem.

O primeiro passo: a pesquisa, a documentaçãoSe todo bom programa de rádio educativo exige um cuidadoso tra-

balho de pesquisa, no caso da reportagem radiofônica esta exigência é imprescindível.

Com o tema definido, começa a etapa de contatar com expertos (eco-nomistas, sociólogos, médicos, engenheiros, agrônomos, estatísticos), que irão dar assessoria técnica; leituras, consultas; reunir muitas fichas. Além das referências proporcionadas pelos especialistas, muitas vezes informações frias, abstratas e conceituais, há que incluir os dados jor-nalísticos, os exemplos ilustrativos, as referências humanas do assunto.

Em muitas ocasiões a documentação deve ser feita in loco: visitare-mos as prisões, se o tema for a situação do regime penitenciário; hospi-tais, para abordar a assistência sanitária; os bairros marginais, se a pro-posta é discutir o déficit de moradias populares; propriedades rurais, se a reportagem focalizar os problemas dos minifúndios e das terras esgotadas pela exploração desmedida.

2. A reportagem baseada em entrevistasO segundo passo: a gravação de entrevistas

Uma reportagem baseada em entrevistas é uma montagem. Portan-to, o roteiro é escrito no final, somente depois que o material coletado que será incluído (entrevistas, declarações, testemunho etc.) foi gravado e selecionado.

Antes de produzir o material é necessário fazer um primeiro esque-ma, um esboço do programa; mas o roteiro definitivo somente poderá ser escrito a posteriori, com os fragmentos gravados na mão.

Quem ficará encarregado de fazer as entrevistas? Se o roteirista tam-bém tiver capacidade para ser entrevistador e dispuser de tempo para assumir mais essa função, o ideal é que ele mesmo faça as gravações. Ninguém mais indicado, já que tem claro o contexto global da sua re-portagem e uma visão de conjunto do tema, o que facilita a condução da entrevista para obter o que necessita de cada entrevistado.

Quando não é possível contar com o roteirista-entrevistador, os pro-

276 Mario Kaplún

gramas de reportagem formam sua equipe de trabalho com um roteiris-ta e um ou dois jornalistas que se encarregam das entrevistas. Pode ser também o locutor do programa.

A ediçãoUma vez reunido o material gravado (entrevistas, declarações), é

preciso selecioná-lo. A edição constitui uma parte fundamental da rea-lização de uma reportagem, que ganha forma quando a editamos, isto é, quando escolhemos os melhores trechos das várias gravações e elimina-mos o irrelevante, as partes confusas.

Muitas vezes não descartamos só “o que não serve”, mas também temos que sacrificar partes boas e interessantes, mas que não cabem dentro do tempo que dispomos ou que nos afastariam do tema central.

A economia de tempo joga como um fator decisivo. É muito frequen-te que tenhamos uma hora ou uma hora e meia de material gravado e o tempo total disponível para nossa emissão nos obrigue a aproveitarmos somente 15 minutos. Às vezes, de toda uma entrevista, utilizamos ape-nas uma frase.

Editar é também decidir em qual ordem vamos apresentar o material selecionado. O desenvolvimento do tema deve ser claro, pedagógico, or-ganizado. Temos que ordenar os fragmentos escolhidos de forma didáti-ca que, ao mesmo tempo, dê um ritmo interessante ao programa. É cla-ro que não será preciso obedecer a ordem cronológica da gravação das entrevistas: pode acontecer que, ao organizar os fragmentos, a primeira entrevista ou declaração que gravamos seja a última a ser incluída.

Às vezes, de uma entrevista, selecionamos apenas um fragmento e em outras ocasiões fazemos a seleção de três ou mais passagens signi-ficativas. Editamos esses fragmentos juntos, formando um só bloco, ou os distribuímos em diferentes momentos da emissão.

Nessa distribuição também não seguimos necessariamente a ordem original da entrevista gravada: talvez seja mais conveniente abordar o que o entrevistado disse no início, na terceira ou quarta intervenção ao longo do programa.

Também contamos com o recurso de repetir algum trecho breve mas significativo: uma frase eloquente, por exemplo, pode aparecer duas ou três vezes no decorrer da reportagem, reiterando, enfatizando ou con-testando, criando um contraste com outras declarações.

O importante, portanto, é agir com grande liberdade ao “montar” as

277Produção de Programas de Rádio

passagens selecionadas, reorganizando-as em função da eficácia didáti-ca e do ritmo jornalístico da exposição.

Exemplo nº 6: A ediçãoO inimigo oculto (resumo)

Numa oficina de rádio, dentro de um curso realizado pelo CIESPAL, em 1977, foi produzida a reportagem que será apresentada de forma resumida a seguir. O tema escolhido: a parasitose.

As entrevistas foram feitas sem roteiro, em diversos lugares de Quito e também em uma zona rural. O grupo realizou 13 entrevistas que to-talizaram mais de uma hora de gravação.

A edição e organização desse material seguiu o seguinte planeja-mento:

1. Introdução: definição da doença, descrição dos sintomas.2. O alcance da enfermidade, suas consequências.3. As causas.4. Medidas adotadas para combater a doença.5. Resumo e conclusões.

Em função deste esquema, a emissão teve o desenvolvimento que passamos a descrever de forma resumida:

1. Narrador: Por todos os cantos do Equador, perambulam crianças com suas barriguinhas inchadas, crianças com rostos tristes e o cabelo sem brilho, temos certeza que você já os viu. (…) Possivelmente você não saiba, mas dentro dessas barriguinhas há um inimigo, um inimi-go oculto que mina as suas vidas e pode levá-los à morte. Descubra conosco quem é esse inimigo. (…) Vamos até Mulató, um pequeno povoado localizado as pé do vulcão Cotopaxi, na província de mes-mo nome. Dona Sara María Chalco é uma das moradores desse lu-gar. Vive num barraco de uma peça, com chão de terra batida, local que serve de cozinha, quarto e abrigo para os animais domésticos.

278 Mario Kaplún

2. Transcrição nº 1: conversa com a trabalhadora rural (1min10s). Conta que uma das suas filhas pequenas, de dois anos, está muito doente: tem os pés e a barriguinha inchados, tem diarreia e muita febre. Mas ela não sabe de qual doença a filhinha padece. Responde à entrevistadora que seus outros filhos também ficam doentes, com diarreia, com muita frequência.

3. Narrador: breve comentário e emenda com

4. Transcrição nº 2: Entrevista com o médico do posto de saúde mais próximo, Dr. Corzo. Primeiro fragmento (35s). Ele explica que as mães trazem os filhos “porque lhes dói a barriga”, mas não sabem que têm parasitose, não sabem o que é a parasitose.

5. Narrador: breve comentário e emenda com

6. Transcrição nº 3: outra passagem com o Dr. Corzo (20s). Ele diz que, além das crianças, os adultos também padecem dessa doença, mas como aguentam a dor, não vão consultá-lo.

7. Narrador: é feita a pergunta sobre o que é a parasitose: O que quer dizer essa palavra.

8. Transcrição nº4: explicação de um médico (57s), que explica de forma simples o significado do termo e os sintomas mais comuns da doença. Explica como os parasitas atuam no organismo e enfatiza que podem provocar a morte.(Cortina musical: música andina equatoriana)

9. Narrador: pergunta sobre o número de afetados pela doença.

10. Transcrição nº 5: Fragmento da entrevista como diretor do Centro de Saúde do bairro El Camal, na periferia de Quito (48s): “É a grande maioria da popu-lação equatoriana; eu diria que 100%”. Toda a população está exposta à ação dos parasitas, mas as pessoas bem nutridas e que vivem num ambiente higiê-nico os vencem com facilidade; enquanto os que não podem comer o suficiente e moram em zonas sem água potável e rede de esgotos são presas fáceis dos parasitas.

11. Narrador: emenda com

12. Transcrição nº 6: terceiro fragmento da entrevista com o médico rural (10s). Ele confirma que, no campo, a parasitose constitui o principal problema de saúde.

13. Narrador: Destaca que as opiniões coincidem e que o problema é extrema-mente grave.

14. Transcrição nº 7: Conversa com José, um menino de dez anos que mora no El Camal (16s). Ele conta que em três dos seus seis irmãos apareceram “minho-cas” no cocô (parasitas).

15. O narrador comenta as consequências da parasitose nas crianças: “os irmão-zinhos do José estão sempre tristes e cansados, quase nunca brincam e re-cebem castigos dos professores porque não fazem as tarefas escolares. Os parasitas consomem a energia e eles ficam sem forças para brincar e muito menos para estudar.

279Produção de Programas de Rádio

16. Transcrição nº 8: entrevista com o Dr. Troncoso, funcionário do Ministério da Saúde – primeiro fragmento (13s). Ele reitera que a parasitose é um dos maio-res problemas sanitários que o Equador enfrenta.

17. O narrador constata a coincidência de opiniões e emenda com:

18. Transcrição nº 9: quarto fragmento da entrevista com o médico de Mulató (15s). Explica o processo posterior da doença: a parasitose provoca desnutri-ção que resulta em anemia aguda. A pessoa morre de anemia, mas a origem foi a parasitose.

19. O narrador conclui que essa doença “está afetando grande parte da força de trabalho do Equador”.

20. Transcrição nº 10: Médico (12s) que fornece dados estatísticos. A parasitose é a causa da metade das mortes que ocorrem no Equador.

21. Narrador: Este inimigo leva a vida de um entre cada dois equatorianos.

CONTROLE SOM DO TIC-TAC DO RELÓgIO/ DIMINUI E FICA DE FUNDO.

Narrador: A cada quinze minutos morre um equatoriano vítima da parasitose.

CONTROLE AUMENTA O SOM DO TIC-TAC DO RELÓgIO E FINALIZA

22. Transcrição nº 11: Quinto fragmento da entrevista com o Dr. Corzo (18s). Ele diz que em Mulató o índice de mortalidade infantil por parasitose atinge índice de 80%. Emenda com o 6º fragmento (28s): destaca que a parasitose é mais que en-dêmica: é pandêmica. Constitui uma pandemia, uma vez que afeta a todas as faixas etárias da população.(Cortina musical: música andina equatoriana).

23. O narrador questiona a razão dessa pandemia, quais são as causas.

24. Transcrição nº12: sétimo fragmento da entrevista com o médico da zona ru-ral (25s). Resposta: falta de condições mínimas de higiene, carência de água potável, consumo de água contaminada, inexistência de redes de esgoto e infraestrutura sanitária básica.

25. Narrador: “Na zona rural, de cada doze habitações somente uma possui água potável; uma em cada 35 casas possui rede de esgoto.

26. Transcrição nº 13: fragmento da entrevista com um médico da periferia de Quito (35s). Ele enumera como causas as mesmas que foram listadas pelo seu colega da zona rural, acrescentando as condições socioeconômicas: baixa renda, famílias de até oito pessoas vivendo amontoadas numa única peça: moradias insalubres.

27. Narrador faz um breve comentário e conecta com

28. Transcrição nº 14: oitavo fragmento da entrevista com o Dr. Corzo (12s). “Po-demos curar uma criança que padece de parasitose, mas ao voltar ao ambiente sem a mínima condição de higiene, ficará doente num prazo de três meses”.

29. Narrador: “É quase inútil tentar curar com remédios e “devolver” o paciente a um ambiente infectado: fatalmente voltará a contrair a doença. Este é o círculo vicioso da parasitose diante do qual o médico se declara impotente”.(Cortina Musical: tema andino equatoriano).

280 Mario Kaplún

30. O narrador pergunta sobre as medidas que estão sendo tomadas para comba-ter esse nefasto inimigo.

31. Transcrição nº 15: segundo fragmento da entrevista Dr. Troncoso do Ministério da Saúde (25s). Defende que o único meio realmente efetivo para erradicar a enfermidade são os planos de saneamento básico do Instituto de Obras Sani-tárias (água potável, rede de esgoto, serviços higiênicos).

32. Mas, comenta o narrador, esses projetos são de longo prazo. De maneira ime-diata, a única ação é a do Ministério com o seu Plano de Saúde Rural.

33. Transcrição nº 16: continua o Dr. Troncoso (15s) com uma breve informação sobre os centros e subcentros de saúde que existem no país.

34. O narrador intervém, informando que, infelizmente, muitas pessoas não vão aos centros de saúde, porque desconfiam dos edifícios brancos e dos médicos.

35. Transcrição nº 17: diálogo de uma lavadeira da periferia de Quito (38s). Ela diz que seus filhos estão gripados. Revela, porém, que eles têm lombrigas, mas não os leva ao médico porque este somente quer ganhar dinheiro.

36. Narrador: “Além desse testemunho, gostaríamos também de poder esquecer um cartaz que vimos na porta de um centro de saúde rural: “NÃO CONFIO ”. – Faz em seguida uma referência à automedicação: as pessoas se automedicam comprando os remédios anunciados nos meios de comunicação.

37. Transcrição nº 18: em outra parte do diálogo com a lavadeira (20s) ela conta que está “tratando” os filhos com uns comprimidos que comprou numa farmá-cia. Informa a marca. É um produto que conta com muita publicidade, mas é indicado para gripe, não para a diarreia provocada pela parasitose.

38. O narrador lembra que, de qualquer forma, os medicamentos são apenas uma parte do tratamento da parasitose. Faz um resumo do que foi abordado e enu-mera algumas conclusões: “A solução não está exclusivamente na medicina, mas numa transformação global que permita que todos tenham uma boa ali-mentação e que dê acesso à água potável e saneamento básico aos milhões de equatorianos que hoje carecem desses serviços indispensáveis.

Alguns comentários. Foram utilizadas oito das 13 entrevistas gravadas, das quais foram selecionados 19 trechos. Do total de mais de uma hora de material gravado, os trechos aproveitados somaram apenas oito mi-nutos e meio.

Da entrevista com o médico da zona rural foram escolhidas oito passagens, distribuídas oportunamente ao longo da reportagem. Mas é importante indicar que esses oito trechos não chegam a durar três mi-nutos, quando a entrevista gravada original contava com 17 minutos.

1. Estes dados dão ideia do que significa editar.É quase desnecessário assinalar que as entrevistas não foram incluídas

281Produção de Programas de Rádio

na ordem cronológica na qual foram gravadas, assim como os trechos selecionados também não seguem a ordem original do que foi dito nos depoimentos. Cada fragmento foi tratado de maneira independente e reinserido segundo uma ordem. Editar uma reportagem deste tipo é como montar um quebra-cabeça.

O leitor deve ter notado que a reportagem começa por uma imagem conhecida e familiar ao ouvinte (as crianças com as barriguinhas incha-das); assim como reitera e propõe referências humanas (os diálogos com a trabalhadora rural, com o menino, com a lavadeira; a descrição dos irmãozinhos do José, o cartaz “NÃO CONFIO” na porta do Centro Ru-ral de Saúde); a forma gráfica e simplificada de trabalhar com os dados estatísticos (conferir as passagens 20, 21 e 25).

3. A estrutura do roteiro

Com as entrevistas gravadas e editadas chegou o momento de escre-ver o nosso roteiro. Podemos optar entre duas estruturas:

a) Por seções. A reportagem radiofônica por seções ou variedades se assemelha na sua estrutura ao radioteatro ou rádio revista, com a dife-rença de que todas as seções – tertúlias, entrevistas, crônicas, comen-tários, apresentações musicais – se referem a um mesmo tema. Aqui é importante reler o exemplo do programa sobre a visita do presidente de Y, anteriormente descrito.b) Único (Exclusivo). Não há seções: a reportagem flui como uma uni-dade. “O inimigo oculto” que se acaba de resumir acima exemplifica este tipo de reportagem. Dentro dela também podemos optar por duas variantes, segundo a finalidade que pretendamos.

1) A reportagem descritiva: Objetiva informar sobre uma questão, dar uma visão do assunto, um panorama do material coletado. Muitas re-portagens são descritivas devido à natureza do tema que tratam: por exemplo, uma reportagem sobre uma região ou sobre a construção de uma represa, tenderá à descrição, a contar o que está passando, a infor-mar o que está sendo feito – sem que isso exclua, é óbvio, a crítica e os

282 Mario Kaplún

questionamentos quando estes forem pertinentes.Outros temas também podem ser apresentados com esse tipo de

abordagem. Vejamos: se a questão é o estancamento da produção agrá-ria no país, uma reportagem nessa linha deverá estar baseada num diag-nóstico da situação: dados, fatos. O objetivo central será chamar a aten-ção sobre a baixa produtividade agrícola. Se incluir opiniões, não deve tomar partido. Um representante dos trabalhadores rurais apontará o latifúndio e a injusta distribuição da terra como as principais causas da baixa produção; já um empresário agrícola culpará a política oficial de fixação de preços, que desestimula o investimento. O autor da reporta-gem deve ter o papel de um cronista: adotar certa neutralidade frente às diferentes posições (ainda que já se saiba que a neutralidade é sempre relativa); deixar que o ouvinte tire suas conclusões.

2) A reportagem interpretativa. Aqui, além de dar uma informação, o propósito é tratar o tema de forma didática, levar o ouvinte a uma refle-xão crítica. Apresentam-se os fatos, como no caso anterior, mas através de uma determinada visão, de uma determinada interpretação, e orga-nizados em função desse ponto de vista. O autor não é um cronista, mas assume o papel de comentarista.

A reportagem descritiva apresenta os fatos notórios; não questiona, não aprofunda suas causas; a interpretativa se compromete com uma explicação, se propõe a demonstrar algo, investigar a fundo. À primeira, interessa o que e, à segunda, o porquê.

Na segunda modalidade se destaca o modelo que denominamos “pesquisa jornalística”. Adota a forma de uma indagação, de uma inves-tigação. O jornalista quer averiguar algo, encontrar a explicação de um fato e organiza a sua reportagem para obter este resultado.

Para definir, usando a terminologia de Freire: uma reportagem-pes-quisa parte da “consciência ingênua” para chegar à “consciência crítica”. Parte do simples, da percepção evidente da realidade imediata, a um questionamento dessa realidade.

Muitas vezes parte inclusive da percepção deformada, do preconcei-to, para confrontá-la com os fatos e dados que o ouvinte não conhece e que a pesquisa vai revelando. Nesse sentido, pode-se definir, para usar uma expressão atual, que são programas de contrainformação.

Exemplo nº 7

283Produção de Programas de Rádio

A estrutura da reportagem-pesquisa“Por detrás da notícia” (Resumo)

No que diz respeito ao trabalho de edição e montagem, o presente exemplo é muito mais simples e linear que o anterior. Ilustra muito bem a construção da pesquisa jornalística, ao mesmo tempo em que mostra como é possível fazer programas eficazes deste tipo com recursos limi-tados e meios artesanais.

A duração da emissão era de 20 minutos e, como no caso precedente, não será transcrito o roteiro integral, mas uma descrição resumida da sua estrutura (2).1. JORNALISTA Quando você lê a mesma notícia em dois jornais diferentes e a

considera tão alterada, deve se sentir confuso. Possivelmente pergunta onde está a verdade. Este mesmo descontentamento e esta perturbação é o que eu sinto quando redijo uma informa-ção para o jornal onde trabalho. Quando o meu chefe me manda reescrever a matéria, me corrige, dá sugestões e ideias… Quan-do faltam minutos para o fechamento da edição e não tenho o texto acabado, quando o espaço para escrever é pequeno… penso em você, que quer saber a verdade e não me sinto satis-feita. Quem intervém…onde está a causa do problema…como se produz a notícia… qual é a opinião do povo? São as pergun-tas que você faz e não obtém respostas. Neste programas ten-taremos ir decifrando os bastidores da notícia. Me acompanha?

TÉCNICA TEMA MUSICAL CARACTERÍSTICO (ÁgIL, RÍTMICO) / DIMI-NUI O VOLUME E MANTÉM DE FUNDO)

JORNALISTA Por detrás da notícia

TÉCNICA AUMENTA O VOLUME DO TEMA MUSICAL E VAI DIMINUINDO

2. Voz de um locutor que lê uma notícia: comerciantes de Lima foram presos e suas lojas fechadas por especularem com alimentos de primeira necessidade. Cross--fade com voz de outro locutor que faz um anúncio do governo aconselhando a população a denunciar os especuladores.

3. A partir dessas notícias, a jornalista começa a questionar se o custo de vida realmente está subindo tanto; se há especuladores e quem são eles. Depois descreve detalhadamente o cenário da primeira entrevista.

4. Transcrição nº 1: num mercado popular, o testemunho do público consumidor: fragmentos editados e montados de entrevistas com donas de casa (1min30s). Todas se queixam e protestam contra o aumento vertiginoso dos preços. “Tudo aumentou e os salários não acompanham; estão especulando com a vida das crianças, com a fome do povo”. Opinam que os varejistas não têm culpa; que os especuladores são os grandes comerciantes, os atacadistas.(Cortina, musical ágil)

284 Mario Kaplún

5. A jornalista propõe encontrar o atacadista apontado como o responsável. Para poder identificar de modo mais claro a pista do aumento de preços, a indagação se concentrará em um único produto: o atum enlatado, que teve aumento con-siderável. Novamente faz uma descrição gráfica do comércio onde acontece o diálogo.

6. Transcrição nº 2: num comércio atacadista, entrevista com o comerciante (3min.). Declara, como todos os atacadistas, que o abastecimento de atum é feito através das companhias comerciais que distribuem o produto. No seu caso, menciona concretamente duas empresas: a Distribuidora E… e a L… Declara que elas, repentinamente, aumentaram o preço em quase o dobro. Ele segue vendendo ao varejista com a mesma margem de lucro (10%), de modo que não é o responsável pela subida de preços. Reclama da imagem negativa criada pela campanha do governo que denuncia os especuladores: “Agora tenho vergonha de ser comerciante. Eu nunca especulei, não faço estoque, nem tenho capital para fazê-lo. Compro e vendo”. Os responsáveis pelo aumento de preços são as grandes empresas que fabricam e comercializam.(Cortina, musical ágil).

7. Diante dessa resposta, a jornalista decide visitar uma das maiores empresas pro-dutoras de conservas de peixe. A sede da fábrica fica longe de Lima, num porto pesqueiro, mas há um escritório administrativo na capital. Embora hesitantes, dois empregados atendem à jornalista com gentileza: “O gerente está muito ocu-pado”.

8. Transcrição nº 3: no escritório da empresa industrial, entrevista com um em-pregado (3min45s). Explica que o aumento do preço se deve à escassez de pei-xe, o que provocou o aumento do custo da pesca. Informa que a fábrica não vende diretamente aos comerciantes: comercializa toda a sua produção através da companhia “E”, com a qual tem um contrato de distribuição exclusiva, o que inviabiliza a comercialização direta. Justifica esse sistema argumentando que as-sim evita ter que montar e manter sua própria estrutura de distribuição e venda (caminhões, pessoal, cobranças etc.): entrega toda produção à empresa “E” e ela se encarrega do resto.(Cortina, musical ágil)

9. A jornalista se pergunta por qual motivo, de repente, o atum começa a ficar es-casso em plena temporada de pesca. E ao mesmo tempo falta farinha, feijão, arroz etc.

10. Transcrição nº 4: montagem. Repetição de uma frase do atacadista: “Eu compro o atum da empresa “E” e da empresa “L”; Junta com vozes de outros comercian-tes que também declaram que compram o atum de distribuidoras, entre as quais a mais mencionada é a empresa “E”. “Não há saída”, explica um entrevistado,; “quando algum produto de primeira necessidade fica escasso, essa é a única empresa que nos fornece, mesmo que seja pouca quantidade”.

11. A jornalista questiona porque quase toda a produção de atum enlatado é distri-buída e comercializada exclusivamente por poucas companhias, que assim mo-nopolizam o mercado. O público acusa os atacadistas, mas não sabe da existên-cia destas grandes organizações de vendas. “Parece que estamos chegando ao ponto principal do problema. Também é preciso visitar a empresa “E”.(Cortina musical, sofisticada)“Ocupa seis dos 12 andares de um moderno edifício no centro de Lima. (…) Tudo tem uma aparência de organização e eficiência”. A jornalista é encaminhada de um andar a outro, se depara com todo tipo de resistências e evasivas: “Nunca tivemos tanta dificuldade para conseguir uma entrevista. Até que finalmente…”.

285Produção de Programas de Rádio

12. Transcrição nº 5: na companhia distribuidora. Entrevista com um funcionário (2min). Perguntado sobre o motivo do aumento do preço do atum, responde que não sabe e nem pode saber, pois são as produtoras que fixam o preço de venda: a Companhia se limita a vender o atum pelo preço indicado e cobra uma comis-são pelo seu serviço de distribuição. Não revela o valor da comissão e se é fixa ou variável: são assuntos confidenciais. Quando é questionado sobre as exigências expressas no contrato (exclusivida-de, proibição das empresas industriais de venderem diretamente), diz que não conhece o contrato e não sabe se é de exclusividade. No que diz respeito às relações entre a empresa produtora e a Companhia, a única relação é o contrato de comissão mercantil e ponto”.(Cortina musical, ágil).

13. A jornalista comenta porque a empresa “E” deu respostas tão evasivas. Resolve dirigir-se à CONACI – Confederação Nacional das Comunidades Industriais (3). “Depois de escutar, como vocês, as entrevistas anteriores, associados da CONA-CI nos respondem:

14. Transcrição nº 6: Na CONACI. Entrevistas sucessivas de três trabalhadores integrantes de comunidades industriais (3min20s). Não se surpreendem com a relutância da empresa distribuidora para dar informação. Baseados no seu co-nhecimento e experiência em matéria empresarial, fornecem uma série de dados e exemplos de casos similares, que nos levam a presumir que entre a Companhia “E” e a produtora existe algo mais que um contrato de distribuição: que há interes-ses e capitais comuns. Que a comercializadora controla a produtora e é ela que maneja os preços e determina o aumento.

15. Jornalista: os associados apontam a empresa comercializadora como a grande especuladora, que move ‘os fios’… Não seria conveniente que este setor fosse investigado e controlado?

Comentários: A emissão tem defeitos no seu desenvolvimento: por

ser um trabalho de oficina, que não dá tempo para uma investigação mais profunda, a argumentação oferecida é pouco convincente – faltam dados, provas. Mas o que interessa é que o leitor considere e guarde a estrutura que é válida: o modelo de reportagem investigativa. A ma-neira como a jornalista vai avançando na sua indagação e ligando uma entrevista à outra, conseguindo imprimir à sua reportagem o interesse de um relato, de uma história, de um processo de investigação que o ouvinte presencia e compartilha. Como, ao colocar-se “por trás da notí-cia” (contrainformação), consegue revelar aspectos da comercialização desconhecidos pelo público.

Outro acerto: ter optado por não tratar o tema do aumento dos pre-ços de forma global, mantendo o foco em um único caso, um produto, o atum. Um bom método de reportagem radiofônica é, precisamente, partir do particular, do concreto, para o geral.

Vale enfatizar a introdução (1º parágrafo): cálida, pessoal, que esta-belece desde o início a comunicação entre a jornalista e o ouvinte.

286 Mario Kaplún

Exemplo nº 8: O roteiro de uma reportagem baseada em entrevistas

“Produto importado”

Série: Reportagem de Atualidade Nacional

Emissão: “Produto Importado”

Autor: Enrique Rondón

Documentação: Prof. Víctor Córdova

Produção: CONAC – Conselho Nacional de Cultura – Venezuela

TÉCNICA MÚSICA ELETROACÚSTICA (PODE SER ALgO DE STOCKHAU-SEN) DIMINUI

LOCUTOR (COMO SE ESTIVESSE TESTANDO UM gRAVADOR) Testando, testando…um, dois, três…testando. Estão me ouvindo bem? E a música? Ok? Isso quer dizer que seu o seu rádio está bem sinto-nizado. Já que está mexendo nos botões, veja qual é a marca do seu aparelho. (1)

TÉCNICA BREVE PAUSA DE MÚSICA

LOCUTOR Já tinha se dado conta que a marca do seu rádio não é nacional? Pense um pouco, eu o desafio que em dez segundos diga duas marcas nacionais de aparelhos de rádio.

TÉCNICA UNS DEZ SEgUNDOS DE MÚSICA

LOCUTOR Lamento, o tempo acabou e você perdeu. E também seria derro-tado se eu pedisse o nome de duas marcas nacionais de automó-veis, de tratores, de refrigerantes, alimentos enlatados e de outros produtos. Isso porque…

LOCUTORA (INTERROMPENDO) Desculpe a interrupção. Mas isso é porque, simplesmente, a Venezuela é um país em pleno desenvolvimento. E com certeza nosso ouvinte está de acordo com o que estou di-zendo.

LOCUTOR Sim, é verdade. A Venezuela está em pleno desenvolvimento e por isso precisa de tecnologia para fabricar tratores e demais maqui-naria. A Venezuela necessita tecnologia para refinar o seu petróleo e explorar seus campos.

LOCUTORA Certo. E por isso o país compra maquinaria fabricada nos Estados Unidos, na Alemanha ou no Japão. Então é lógico que essas má-quinas tenham marcas em inglês, alemão ou japonês. (2)

LOCUTOR E precisamente aí está o problema. Como a Venezuela não fabrica esses equipamentos, sabe quanto tem que pagar pelo uso dessa tecnologia aos países estrangeiros? Eu tenho um amigo que pode dar essa cifra: o engenheiro getúlio Tirado, diretor da equipe de ciência e tecnologia do Conselho Nacional para o Desenvolvimen-to – CENDES.

TÉCNICA TRANSCRIÇÃO Nº 1

287Produção de Programas de Rádio

ENgENHEIRO Basta ver as cifras de importação de maquinaria – que na Vene-zuela será em torno de 90% da maquinaria que se utiliza; e basta ver que 37% do valor da produção industrial é enviada ao exterior para pagar os gastos de maquinaria, de matérias primas e paten-tes das empresas. Em 1976 estes valores somaram 13 bilhões de bolívares.

LOCUTORA Treze bilhões de bolívares por ano! Mas… Você consegue imagi-nar 13 bilhões de bolívares juntos?

LOCUTOR É algo como… três barcos cheios de moedas de um bolívar. Isto é o que a Venezuela paga anualmente aos países estrangeiros pelo uso de maquinaria e tecnologia importadas. (3)

LOCUTORA Eu acho muito esquisito que na Venezuela haja tanta tecnologia importada, principalmente porque contamos com inúmeros insti-tutos tecnológicos. Então, se não temos tecnologia própria, o que ensinam nesses institutos?

LOCUTOR Olhe, quem poderá responder essa questão é o professor Victor Córdova, da Escola de Sociologia da Universidade Central da Ve-nezuela. Ele contará o que é ensinado nos institutos tecnológicos venezuelanos.

TÉCNICA TRANSCRIÇÃO Nº 2

PROFESSOR Tecnologia importada. Na Venezuela tudo o que se ensina é em relação à tecnologia estrangeira. (4)

LOCUTORA Então, segundo a sua explicação e se entendi bem, existem dois grupos de países: um com tanto desenvolvimento tecnológico que pode exportá-lo, formado pelos EUA, Japão, Alemanha; e outro que precisa importar tecnologia, como é o caso da Venezuela.

LOCUTOR A classificação não é má, mas alguns sociólogos a descrevem com outras palavras. Os países que possuem e produzem conhe-cimento científico e tecnológico têm, graças a esse conhecimento, um imenso poder de domínio em termos econômicos, políticos e militares.

LOCUTORA Isto que dizer que nós – a Venezuela e os demais países da Amé-rica Latina – dependemos deles?

LOCUTOR Exatamente. Esta é a definição: dependência. A Venezuela é, nes-te momento, um país tecnologicamente dependente.

LOCUTORA Mas já ouvi muitas vezes que essa tecnologia estrangeira é algo favorável para nós, que nos convém.

LOCUTOR Por quê?

LOCUTORA Porque requer menos mão-de- obra e a produção fica mais barata. (5)

LOCUTOR Também ouvi várias vezes essa afirmação, por isso fui consultar o professor Córdova. (6)

TÉCNICA TRANSCRIÇÃO Nº 3

288 Mario Kaplún

PROFESSOR Não, eu não acho que o custo da produção diminua. Ao contrário, aumenta. Porque, se não fosse nada mais que um problema téc-nico, um país que consiga incorporar mais tecnologia incrementa o seu parque industrial e tem mais possibilidade de produzir; mas isso se refere apenas ao tema técnico. Além disso, a incorpora-ção tecnológica deve considerar os demais fatores conjunturais do país. No caso venezuelano, a tecnologia que se incorpora é extremamente cara, porque é uma tecnologia intensiva de capi-tal, proveniente de países onde o capital é o bem mais abundan-te. No nosso caso, o bem mais abundante é a mão-de-obra. Nós devemos precisamente incorporar um tipo de tecnologia que não prescinda de mão-de-obra, que atenda às demandas nacionais, no qual promover o trabalho é o mais importante.

LOCUTOR Ficou claro? Segundo Víctor Córdova, a tecnologia dos países de-senvolvidos responde às condições desses países, onde sobra o dinheiro e há pouca mão-de-obra. Já na Venezuela a situação é contrária: aqui o que esse tipo de tecnologia faz é aumentar o desemprego.

TÉCNICA TRANSCRIÇÃO Nº 4 (7)

PROFESSOR …. E você sabe que num país, quando há aumento do desempre-go, a problemática social se multiplica.

LOCUTOR O engenheiro Tirado fala o mesmo e recorda dois casos nos quais a tecnologia está provocando desemprego para um grande núme-ro de venezuelanos.

TÉCNICA TRANSCRIÇÃO Nº 5

ENgENHEIROPor exemplo, o que está acontecendo no setor de artes gráficas que é… a automação dos processos de composição, que levou à demissão dos … tipógrafos. Chamam-se assim, não? Ou o que acontece – e está deflagrada uma luta – com os trabalhadores por-tuários; o uso dos contêineres para o desembarque das cargas.

LOCUTORA Portanto, essa dependência tecnológica tem um custo duplo.

LOCUTOR O que quer dizer custo duplo?

LOCUTORA Veja bem, por um lado pagamos 13 bilhões de Bolívares aos paí-ses produtores de tecnologia. Por outro, temos um custo…. vamos chamá-lo social, que consiste no aumento do desemprego.

LOCUTOR E ainda há outro custo. Sim, não se surpreenda. O custo ambien-tal. O dano causado à natureza devido ao uso de uma tecnologia importada e em muitas ocasiões de resíduo.

LOCUTORA Como assim “de resíduo”?

LOCUTOR Eu fiquei sabendo disso pelo professor David Flores, do Instituto de Zoologia Tropical da Universidade Central da Venezuela: grande parte da tecnologia que chega ao nosso país está proibida nos EUA por ser contaminante.

TÉCNICA TRANSCRIÇÃO Nº 6

289Produção de Programas de Rádio

FLORES Apesar de os Estados Unidos serem um país capitalista, seu de-senvolvimento permitiu que seu povo adquirisse certa consciência política; e o povo norte-americano defende seu ecossistema – ou o que restou do seu ecossistema. Pela pressão popular, o governo viu-se na obrigação de tomar medidas, gerar uma grande quanti-dade de leis de proteção do meio ambiente. Tais leis impedem o desenvolvimento rentável das empresas… quero dizer, a obtenção de fortunas pelos acionistas dessas companhias… assim sendo, instalaram essas empresas na América Latina e em outros países, onde o nível cultural, a dependência tecnológica e cultural, não estabelecem limites, não impõem leis de proteção.

LOCUTOR Por essa falta de leis conservacionistas, que protejam a nature-za, na Venezuela temos vários casos em que a tecnologia rompeu esse equilíbrio natural chamado ecossistema. O professor aponta esses casos:

TÉCNICA TRANSCRIÇÃO Nº7

FLORES Veja bem, atualmente no nosso país praticamente todos os recur-sos estão afetados. E os que mais preocupam são os não renová-veis, como os minerais. Mesmo quando para o público a destruição das renováveis não constitui um problema, quero dizer que, sem a produção vegetal, a sobrevivência do ser humano seria impos-sível. (Não somente o homem: nenhum animal). E esta destruição no nosso país é, na maioria das vezes, irreversível. E posso dar exemplos. Há florestas no Brasil que foram totalmente destruídas. Não faz muito tempo, creio que no governo anterior, houve uma tentativa de exploração da Amazônia. Uma grande área foi desma-tada para o plantio de soja. Milhares de hectares de mata nativa foram destruídos; que a natureza levou séculos gestando. As plan-tações não consideraram o problema do substrato mineral. O solo não continha minerais em grande quantidade. Ao ser submetido ao cultivo intensivo, depois de três ou quatro colheitas, houve o esgotamento dos nutrientes até deixarem o solo estéril.

JORNALISTA Que casos concretos de destruição do ecossistema por causa da tecnologia existem na Venezuela? (8)

FLORES Bem, há centenas de casos. Vou citar os mais relevantes. Contarei dois: o do Lago de Valência e o do Lago de Maracaíbo. Nos dois a tecnologia aplicada destruiu o ecossistema. No Lago Maracaíbo por causa das contaminações petroleira, industrial e da exploração agropecuária da região. Os três fatores afetaram drasticamente o ecossistema. E o fato mais grave, sem dúvida, foi a dragagem na entrada do lago, que permitiu a entrada de água salgada em zonas que anteriormente eram de água doce. É claro que isso deteriorou tremendamente a fauna e flora da região. O outro é o do Lago de Valência, totalmente destruído pelos resíduos gerados por uma in-dústria construída nas suas imediações. Além disso, o teor de sal da água vem aumentando significativamente. A salinização é resul-tado das queimadas, desmatamento, drenagem, ações que rom-pem o equilíbrio de entrada e recuo das águas dos rios e também alteram a estrutura geológica da região. Mas o fator fundamental de destruição ecológica, que eu considero, o pior caso que existe em nosso país, é a provocada pelo desenvolvimento urbano: a poluição das grandes cidades. Sobretudo Caracas, com sua tremenda po-luição provocada pela fumaça expelida pelos carros e caminhões.

290 Mario Kaplún

TÉCNICA MONTAgEM: MIXAgEM DE MÚSICA ELETRO-ACÚSTICA COM RUÍDO DE TRÂNSITO MUITO INTENSO QUE PASSA AO PRI-MEIRO PLANO: BUZINAS; BARULHO DE MÁQUINAS. CORTA E FICA SÓ A MÚSICA DE FUNDO.

LOCUTORA A Venezuela paga de três formas a sua dependência tecnológica.

LOCUTOR A Venezuela paga uns 13 bilhões de bolívares anuais por importar tecnologia.

LOCUTORA A tecnologia importada requer pouca mão de obra o que, para a Venezuela, significa desemprego.

LOCUTOR A tecnologia importada não leva em consideração nosso meio-am-biente e, portanto, não respeita os recursos naturais. (9)

TÉCNICA AUMENTA O FUNDO MUSICAL COMO CORTINA E CORTA. IME-DIATAMENTE ENTRA A TRANSCRIÇÃO Nº 8

FLORES Olhe, nem toda tecnologia atenta contra o equilíbrio ecológico. Um exemplo: as práticas agrícolas utilizadas pelos índios da Amazô-nia. Elas não comprometem o sistema ecológico, pois o respeitam. A tecnologia começa a ser um risco para o ecossistema quando a sua execução não visa satisfazer às necessidades da população, mas para obter lucro desmedido.

JORNALISTA Mas quanto à prática que o senhor citou dos índios da Amazônia: não há algum método que seja prejudicial, como a queima da ter-ra, por exemplo?

FLORES Não. Sociólogos inclusive fizeram pesquisas na Amazônia…tenho acompanhado estudos recentes… Eles fazem um rodízio das zo-nas exploradas, não somente em relação ao aspecto agrícola, mas também quanto à caça. Eles fixam um ponto central e desse ponto vão mudando periodicamente as zonas de cultivo, a fim de que o próprio ecossistema se encarregue de equilibrar a área utilizada.

LOCUTORA (ALARMADA) Mas com esse exemplo dos índios da Amazônia, o professor Flores parece defender que voltemos ao primitivismo.

TÉCNICA TRANSCRIÇÃO Nº 9

FLORES Não, ao contrário. Mas devemos nos inspirar na sua cultura, no sábio respeito que devemos ter pela natureza. (10)

LOCUTOR E repare que a imposição da tecnologia não é algo recente. Já na época da colonização, os espanhóis impuseram uma técnica agrícola que também não resultou num bom negócio…

TÉCNICA TRANSCRIÇÃO Nº 10

FLORES No passado remoto, quando os timotocuicas povoavam os Andes, sua tecnologia agrícola era superior à dos espanhóis. A tecnologia dos índios lhes permitia o cultivo nas montanhas e possibilitava a conservação do solo dessas montanhas. Já a tecnologia importada dos espanhóis, ao modificar a tecnologia nativa, provocou a des-truição de grandes zonas dos Andes.

291Produção de Programas de Rádio

JORNALISTA Também dizem que, depois da incorporação das técnicas espa-nholas, essas terras não voltaram a produzir a mesma quantidade como na época em que era cultivada pelo sistema dos índios.

FLORES Bem, é lógico supor isso, não? Lógico… O cultivo que os espa-nhóis utilizaram nos Andes, são cultivos que permitiam… quer di-zer, não eram cultivados em terraços, portanto permitiam o desli-zamento. A água da chuva elimina a camada vegetal, arrasta toda a terra, deixa praticamente só a rocha.

LOCUTORA Eu insisto que o professor Flores pretende que retornemos ao primitivismo. Isto é impossível. A Venezuela é um país em via de desenvolvimento.

LOCUTOR Eu não interpreto assim.

LOCUTORA E como o senhor interpreta?

LOCUTOR Flores reconhece que a Venezuela precisa se desenvolver.

LOCUTORA E então…?

LOCUTOR Mas também acha que a Venezuela deve ter uma tecnologia pró-pria, que parta das nossas experiências e nossas necessidades. Lembro de um exemplo citado pelo professor Víctor Córdova: há profissionais universitários que estão aprendendo com trabalhado-res rurais.

TÉCNICA TRANSCRIÇÃO Nº11

CÓRDOVA É sabido que os novos agrônomos têm que ir escutar e ver a prá-tica dos agricultores, como uma maneira de aperfeiçoar seus co-nhecimentos. Os agricultores possuem a experiência que poderia fazer com que a introdução de novas tecnologias se convertesse em uma alta produtividade.

LOCUTORA Essa valorização do homem do campo é louvável e nos faz sentir orgulhosos dos nossos trabalhadores rurais. Mas como romper a dependência em relação às máquinas e demais equipamentos? Tenho entendido que existem as patentes, que garantem a um país a propriedade exclusiva da tecnologia que desenvolve.

LOCUTOR Exatamente. As patentes estabelecem uma espécie de monopólio da tecnologia.

LOCUTORA Como assim? Então, estamos amarrados.

TÉCNICA ENTRA TRANSCRIÇÃO Nº 12

TIRADO Bem, mas a corda pode ceder. Estamos amarrados, mas não de maneira irremediável. A corda pode ceder; basta ter uma política econômica nacional que vise uma verdadeira autonomia. É perfei-tamente possível, por exemplo no caso das patentes, que o Execu-tivo Nacional – acho que está contemplado na Decisão 24 da Junta do Acordo de Cartagena –, que o Executivo Nacional diga: em tais segmentos da atividade nacional não serão outorgadas patentes a estrangeiros. Nesse caso… Basta que o Estado diga – e não somente diga: que desenvolva um plano de produção de bens de capital para o país. (11)

292 Mario Kaplún

JORNALISTA O que são bens de capital?

TIRADO Maquinarias e equipamentos. (12)

LOCUTORA Humm… (NUM TOM REFLEXIVO).A solução que propõe o diretor da Equipe de Ciência e Tecnologia do CENDES é interessante. Não outorgar patentes a empresas estrangeiras em alguns setores econômicos e desenvolver planos próprios de produção de máquinas e equipamentos. Mas para isso surge outro problema.

TÉCNICA ENTRA TRANSCRIÇÃO Nº 13

JORNALISTA Professor David Flores: A Venezuela tem pessoal adequado para desenvolver uma tecnologia própria?

FLORES Bem, a pergunta é bastante difícil. Creio que o país conta com uma população que estaria capacitada para afrontar um desen-volvimento tecnológico; mas não nas condições atuais. Porque o problema do desenvolvimento tecnológico não depende da vonta-de de uma pessoa, de um engenheiro; depende de todas as con-dições políticas, sociais e econômicas. Tal como se vê a situação no nosso país, as condições atuais, fazem com que o desenvolvi-mento tecnológico não se veja por nenhum lado. Isso pode ser ex-plicado por vários fatores fundamentais. O primeiro, a presença, na essência do nosso povo – seja no nível de direção como no nível da massa – de uma percepção negativa quanto à capacidade do nosso povo para desenvolver uma tecnologia própria. Em segundo lugar, as leis, quero dizer, a estrutura legal do país, praticamente impede o desenvolvimento tecnológico. Não dá o mínimo incentivo ao desenvolvimento tecnológico. Uma análise dessas leis apurou que, em vez de aumentar a tendência ao desenvolvimento tecnoló-gico, o que fazem é bloqueá-lo.

TÉCNICA ……. E ENTRA TRANSCRIÇÃO Nº 14

JORNALISTA Engenheiro getúlio Tirado: A Venezuela tem profissionais prepara-dos para desenvolver uma tecnologia própria?

TIRADO Bem, não se pode afirmar de maneira taxativa. Eu creio que o país conta com número suficiente de profissionais. Atualmente deve ter uns quinze mil engenheiros. E em mão-de-obra qualificada deve haver… bem, não posso precisar um número, mas basta ver que na indústria há duzentos e tantos mil trabalhadores técnicos. E…há uns três mil agrônomos na Venezuela. O problema é que há que organizar esta gente. E organizar os técnicos para que eles também possam organizar a população de forma técnica.

TÉCNICA SOM DE UMA BADALADA E ENTRA A TRANSCRIÇÃO nº 15

JORNALISTA Professor Víctor Córdova, a Venezuela tem pessoal com formação adequada para desenvolver uma tecnologia própria? (13)

293Produção de Programas de Rádio

CÓRDOVA Eu acredito que sim. E vou fazer o papel de advogado do diabo... Eu acho que se a Venezuela programar uma atividade econômica e social que corresponda às necessidades do povo venezuelano – não do povo norte-americano, mas do povo venezuelano – aqui sobram os recursos humanos não só para criar uma tecnologia própria, mas para atingir um desenvolvimento satisfatório em todos os aspectos da vida social.

TÉCNICA SOM DE UMA BADALADA

LOCUTOR Esta é a opinião dos especialistas. Mas o que pensa um venezue-lano comum?

TÉCNICA ENTRA A TRANSCRIÇÃO Nº 16 (ENTREVISTAS NA RUA)

JORNALISTA O senhor que está consertando um radinho. Quando vai comprar um aparelho deste tipo, procura uma marca nacional ou estran-geira?

ENTREVISTADO Bem, importada. Custa mais caro é melhor, dura mais tempo.

JORNALISTA E quando tem que comprar pilhas, baterias … também prefere os produtos importados?

ENTREVISTADO Importados. (Retrata-se): não essas aqui são nacionais, porque as importadas estão em falta.

JORNALISTA Em geral o senhor compra produtos nacionais ou importados?

ENTREVISTADO Tanto faz. O que eu encontrar no momento.

JORNALISTA Mas qual é a sua preferência?

ENTREVISTADO Bem, eu prefiro as coisas importadas.

JORNALISTA Por quê?

ENTREVISTADO Porque os produtos são “mais bons” do que os nacionais.

TÉCNICA MÚSICA ELETROACÚSTICA (A MESMA DO INÍCIO), DIMINUI O VOLUME E FICA DE FUNDO. (14)

LOCUTOR E você, que no início deste programa olhou os botões do seu rá-dio… você procura marcas nacionais ou importadas? Continua pensando que é melhor nós importarmos tecnologia? (15)

TÉCNICA AUMENTA O VOLUME DA MÚSICA E DIMINUI LENTAMENTE.

Comentários

(1) O recurso da utilização do cotidiano, da experiência imediata do ouvinte como ponto de partida.

(2) Para conseguir mais movimento de vozes e poder evitar os longos parágrafos, os autores da série contaram com uma dupla de locuto-res. Rondón a empregou de forma inteligente: não para comparti-

294 Mario Kaplún

lhar entre os locutores um texto impessoal e continuado (“monó-logo com duas vozes”), mas para estabelecer um diálogo. Cada um tem o seu papel, suas ideias, que são mantidos de forma coerente durante toda a emissão. O locutor representa o pesquisador; a locu-tora, com suas perguntas e objeções, representa o ouvinte.

(3) “Três barcos”: a imagem auditiva gráfica, visualizadora. Para muitos ouvintes diz mais que a cifra dos 13 bilhões.

(4) Uma resposta breve e contundente.

(5) A “consciência ingênua”

(6) A passagem para a entrevista acontece de maneira informal, evitan-do o clássico anúncio convencional. Nada de formalidades como “nesse sentido, o professor expressa…” ou “Sobre esse tema o nosso entrevistado opina que…”.

(7) Aqui foi posto de lado o anúncio: não era preciso. A gravação entra diretamente.

(8) Como nos exemplos anteriores, o jornalista foi também roteirista: ele realizou e gravou as entrevistas para o seu roteiro.

(9) A certa altura da reportagem, uma oportuna recapitulação: boa aplicação do principio da redundância.

(10) O entrevistado aparece sem anúncio prévio, respondendo à obje-ção da locutora, e se integra ao diálogo. Com certeza o jornalista ao entrevistá-lo já havia feito esta objeção; e agora aproveita a resposta.

(11) O mesmo recurso acertado já referido na nota anterior.

(12) O pedido de esclarecimento de um termo técnico.

(13) Três transcrições sucessivas, sem interrupções, sobre uma mesma pergunta. Aqui o roteirista monta um mini-painel, uma pequena mesa-redonda.

(14) Não teria sido um mau recurso de redundância repetir aqui, após o diálogo com o “entrevistado da rua”, a frase da última interven-ção do professor Flores: “A presença, na essência do nosso povo,

295Produção de Programas de Rádio

seja no nível de direção, como no nível da massa, de uma percepção negativa quanto à capacidade do nosso povo para desenvolver uma tecnologia própria”.

(15) Em vez de conclusões, perguntas dirigidas ao ouvinte.

Nota: Reproduzimos para o leitor o conteúdo integral das gravações. Mas num roteiro de trabalho não é preciso transcrever tudo o que foi gravado. Basta indicar em cada caso o número da transcrição e, como referência para o operador, as primeiras e as últimas palavras do frag-mento selecionado. Por exemplo: Transcrição Nº 6. A partir de “Olhe, nem toda tecnologia atenta…”. Até “…não impõem leis de proteção”. Pode ser útil indicar também o número que marca o gravador (do nú-mero 094 até 124, por exemplo).

296 Mario Kaplún

297Produção de Programas de Rádio

Capítulo

13

O roteiro de uma narração com montagem

A “narração com montagem” é outra forma de reportagem radiofô-nica que se caracteriza por não utilizar entrevistas e ser toda roteirizada. Em vez de documentos pré-gravados, utiliza reconstruções interpreta-das por atores.

No capítulo 5 foi feita uma descrição bastante pormenorizada desse tipo de programa; foi enfatizado que é utilizado geralmente para apre-sentar um fato histórico, uma biografia ou um assunto internacional no qual não podemos contar com entrevistas. Como solução, utilizamos breves cenas com diálogos e, principalmente, documentos: fragmentos de textos ou discursos etc. Assim, no caso de uma biografia, inserimos frases do próprio biografado e de seus contemporâneos.

Para dar ‘movimento auditivo’ ao programa, essas frases são ditas por atores. Eles assumem o papel de “entrevistados”. Incluímos também breves sketches dramatizados e efeitos sonoros. Exemplo: se estamos fazendo uma reportagem sobre a Revolução Francesa podemos recons-truir com vozes e efeitos a Queda da Bastilha. Esta passagem será como uma foto sonora do acontecimento, uma ilustração auditiva.

A narração com montagem é, em síntese, uma reportagem radiofônica que utiliza alguns recursos do radioteatro: atores, diálogos, sons, música. A diferença é que a narração com montagem não tem como objetivo desenvolver uma ação dramática, mas informar, explicar e analisar os fatos. Consequentemente, os dois gêneros têm estruturas diferentes. O radioteatro é, sobretudo, diálogo, ação; as cenas dramati-zadas, interpretadas por atores, ocupam toda a emissão ou grande parte dela, tanto que o narrador é inexistente ou desempenha uma função

298 Mario Kaplún

secundária. A narração com montagem, ao contrário, constitui uma ex-posição informativa: a narração – a cargo de um narrador ou às vezes dois para dar mais variedade de vozes ao programa – desempenha um papel principal e é a coluna vertebral do roteiro.

Os episódios não seguem necessariamente uma ordem cronológica. Algumas vezes, para tornar a emissão mais chamativa e/ou para sermos mais didáticos, partimos de um momento culminante (por exemplo, se estamos fazendo a reportagem sobre a Revolução Francesa, iniciamos com a Queda da Bastilha, depois retomamos os fatos anteriores que ex-plicam o acontecimento: neste caso, voltaremos aos dias que antecede-ram o dia 14 de julho e documentaremos a situação na qual vivia o povo sob o domínio da monarquia.

A combinação de recursosÉ claro que, pelo fato de a reportagem baseada em entrevistas e a

narração com montagem consistirem duas variantes de um mesmo formato, nada impede combiná-las. Isto é, escrever um roteiro fundamentado em reconstituições e citações ditas por atores, mas complementado com alguns fragmentos de entrevistas ou declarações pré-gravadas de pessoas que possam acrescentar algo interessante ao tema.

Um exemplo desta combinação é a reportagem sobre o Canal do Panamá reproduzida no final desse capítulo, nas declarações de uma professora e um jornalista panamenhos de passagem por Caracas, cuja presença circunstancial o jornalista soube aproveitar39.

O recurso da entrevista imagináriaUma entrevista também pode ser criada. Embora o personagem

não esteja presente – inclusive já tenha falecido – e somente dispomos de seus escritos, é possível estabelecer um diálogo imaginário com ele.

39 Outra fórmula interessante e dinâmica para uma reportagem radiofônica roteiri-zada e realizada com vozes de atores pode ser encontrada na série de Mario César: Tierra de Muchos (12 capítulos), editada pelo SERPAL em 1974. O prólogo (cap.1) se aproxima do radiodrama, mas a partir do capítulo 2 e até o final, o programa combina a estrutura da discussão ou debate com técnicas de reportagem (relato montado). Mais uma prova das diversas possibilidades de combinação de gêneros e criação de novos formatos que o rádio oferece.

299Produção de Programas de Rádio

Desse modo – e sempre contando com um ator – conseguimos dar maior dinamismo a um texto que desejamos citar extensivamente numa narração com montagem: em vez de inseri-lo integralmente, vamos in-tercalando perguntas que permitam transcrever o pensamento do autor. Dessa forma, podemos entrevistar Gandhi, Martin Luther King, Benito Juárez e até mesmo Platão ou o apóstolo São Tiago.

Suponhamos, como exemplo, uma reportagem sobre o Terceiro Mundo, sobre as condições do comercio internacional, na qual quere-mos citar o Papa Paulo VI. Temos suas palavras:

“As nações altamente industrializadas exportam, sobretudo, produ-tos fabricados, enquanto as economias pouco desenvolvidas vendem apenas produtos agrícolas e matérias-primas. Graças ao progresso téc-nico, as primeiras aumentam rapidamente de valor e contam com mer-cado garantido. Os produtos primários originários dos países em via de desenvolvimento, ao contrário, sofrem grandes e repentinas varia-ções de preços, muito aquém do aumento progressivo dos outros. Daí provêm as dificuldades para as nações pouco industrializadas, quando precisam contar com suas exportações para equilibrar sua economia e realizar seu plano de desenvolvimento. Os povos pobres permanecem sempre pobres e os ricos tornam-se cada vez mais ricos”.

“Isso quer dizer que a regra do livre mercado não pode seguir de-terminando as relações internacionais. Suas vantagens são certamente evidentes quando as partes não se encontram em condições demasiado desiguais quanto ao poder econômico: é um estímulo ao progresso e recompensa o esforço. Por isso os países que são potências industrializa-das consideram essa regra como uma lei justa. Já o mesmo não acontece quando as condições são demasiado diferentes de país para país: os pre-ços ‘livremente’ estabelecidos no mercado podem levar a consequências injustas. Devemos reconhecer que está em causa o princípio fundamen-tal do liberalismo como regra de transações comerciais”. (Populorum Progressio, parágrafos 57-58).

Podemos incluir este texto na forma convencional e transcrever a ci-tação integralmente, fazendo uma apresentação (Por exemplo: “O Papa Paulo VI já afirmava em 1967: …”). Mas também podemos transformá--la numa entrevista imaginária com o Pontífice:

300 Mario Kaplún

NARRADOR Vossa Santidade: O senhor acha que as denúncias do Terceiro Mundo nas conferências da UNCTAD e do gATT têm fundamento?

Paulo VI Sem dúvida são denúncias legítimas. Veja o que está acontecendo atualmente. As nações altamente industrializadas exportam, sobretu-do, produtos fabricados, enquanto as economias pouco desenvolvidas vendem apenas produtos agrícolas e matérias-primas, não é? Então: o que acontece? graças ao progresso técnico, as primeiras aumen-tam rapidamente de valor e contam com mercado garantido.

NARRADOR E as matérias-primas dos países subdesenvolvidos não seguem essa regra?

Paulo VI Sabemos que não. Pelo contrário, os produtos primários provenientes dos países em via de desenvolvimento sofrem grandes e repentinas variações de preços, muito aquém da subida progressiva dos outros.

NARRADOR E quais as consequências que isso ocasiona às nações do Terceiro Mundo?

Paulo VI Bem… Essas nações precisam contar com suas exportações para equilibrar sua economia e realizar seu plano de desenvolvimento. En-tão, como não vão ser afetadas por grandes dificuldades? A realidade é que os povos pobres permanecem sempre pobres e os ricos tornam--se cada vez mais ricos.

NARRADOR Bem, mas como conciliar essas situações dentro do livre jogo de pre-ços no mercado internacional?

Paulo VI Livre jogo? Não! A regra do livre mercado não pode seguir determinan-do as relações internacionais.

NARRADOR Contudo, essa não é uma regra justa, um estímulo ao progresso, uma recompensa ao esforço dos mais persistentes?

Paulo VI Veja bem. Não nego que estas vantagens são evidentes quando as partes não se encontram em condições demasiado desiguais quanto ao poder econômico. É natural que os países que são potências indus-trializadas considerem essa regra como uma lei justa.

NARRADOR Então?

Paulo VI … Mas quando as condições entre os países são excessivamente de-siguais, já não é o mesmo.

NARRADOR Por quê?

Paulo VI Porque nesse caso os preços que se formam… “livremente” no mer-cado – e digo livremente entre aspas – podem levar a consequências injustas.

NARRADOR Mas o sistema de livre comércio como regra das transações comer-ciais é o princípio fundamental do liberalismo!

Paulo VI Eu sei. E é justamente esse princípio que eu questiono.

301Produção de Programas de Rádio

Transformamos um texto denso num ágil diálogo, no qual a participa-ção de Paulo VI foi adaptada à linguagem do rádio, radiofonizada, resul-tado das suas citações, mas sempre mantendo a fidelidade e o respeito ao seu pensamento.

O elenco: os atoresPara compor uma reportagem baseada em citações precisamos in-

cluir geralmente muitos personagens históricos, como vamos ver no exemplo transcrito a seguir. Isso não significa, porém, que a produção terá um alto custo e que será preciso um elenco numeroso.

Como se trata de intervenções isoladas e independentes, de citações transcritas e não de personagens dramáticos, a reportagem não exige o realismo do radioteatro, no qual cada personagem deve ser interpretado por uma voz diferente. Para o roteiro que será reproduzido aqui, apesar da quantidade de personagens incluídos, basta o revezamento de quatro atores e leves mudanças no tom e na modulação em cada intervenção.

Exemplo nº 9: A narração com montagem

“Panamá: a quinta fronteira”

Série: Reportagem sobre a Atualidade Internacional

Emissão: “Panamá: A Quinta Fronteira”6

Autor: Jorge Luis Ornstein

Documentação: Oswaldo Capriles e Miguel Ron Pedrique

Produção: CONAC – Conselho Nacional de Cultura – Venezuela.

(ABERTURA DO PROgRAMA: ANÚNCIO DA EMISSÃO)

TÉCNICA MÚSICA DE NOTICIÁRIO

APRESENTADOR: Poderia haver um acordo em relação ao Canal do Panamá. Um porta-voz do Departamento de Estado declarou, na sede das Nações Unidas, que o presidente Carter considera primordial o assunto panamá. “O Acordo com Torrijos é iminente”, assegurou o alto funcionário, enfatizando que os passos dados são indi-cadores da nova política da administração Carter com os seus vizinhos latino-americanos.

302 Mario Kaplún

TÉCNICA AUMENTA A MÚSICA E CORTA. APARECEM SONS CARAC-TERÍSTICOS DE UMA TRANSMISSÃO DE ONDA CURTA. VOZ OSCILANTE, DISTORCIDA

COMENTARISTA (MULHER; NUM TOM CARACTERÍSTICO DE COMENTARIS-TA INTERNACIONAL)

…coincidem em afirmar que o presidente norte-americano quer causar impacto, pois mesmo que seja uma decisão no âmbito da América Latina, está dirigida a impressionar o mundo inteiro. Mas, sem dúvida, o novo tratado terá que garantir a eliminação de algumas práticas abusivas que agora não seriam toleradas pelos panamenhos. (A VOZ VAI SUMINDO). A política do Big Stick parece ter sido arquivada…

TÉCNICA AUMENTA O SOM DE EFEITOS DE ONDA CURTA, COMO QUEM PROCURA SINTONIZAR

COMENTARISTA 2 (HOMEM PERSUASIVO, TAMBÉM COM UMA VOZ PECULIAR)

… mas neste caso Carter não se move com a mesma seguran-ça na política interna, onde influentes membros do seu próprio partido e da maioria dos republicanos irão, obviamente, se opor no Congresso frente a qualquer mudança no status do Canal…. (DESAPARECE)

TÉCNICA FUNDO MUSICAL BREVE INDICANDO FINAL E SUSPENSE (PODE SER CONCERTO PARA PERSUSSÃO E CELESTA DE BÉLA BARTÓK

LOCUTOR O que está acontecendo no Panamá?

TÉCNICA MESMO EFEITO MUSICAL ANTERIOR

LOCUTOR O problema do canal e a sua zona voltou a ser atual. Fala-se insistentemente de um novo tratado. O velho já foi esquecido. Resta somente a certeza de que o Canal é um problema. Para os panamenhos, em primeiro lugar, e para os norte-americanos, para os latino-americanos, enfim, para todo o mundo… Mas sa-bemos o que realmente está acontecendo no Panamá?

TÉCNICA MESMO EFEITO ANTERIOR (BREVE)

LOCUTOR É uma pergunta que não se pode responder de maneira simples, nem em poucas palavras, pois se trata de uma longa história, com muitos personagens e um cenário contraditório.

TÉCNICA ACORDES DE VIOLÃO (“FANTASÍA PARA UN GENTILHOM-BRE” DE JOAQUÍN RODRIgO)

LOCUTOR Tudo começou quando Núñez de Balboa avistou o Oceano Pa-cífico quando atravessava o Istmo do Panamá…

303Produção de Programas de Rádio

TÉCNICA BARULHO DE ONDAS, CANTO DAS AVES MARINHAS COM A MÚSICA DE RODRIgO AO FUNDO

LOCUTOR (TOM COTIDIANO, CONVIDANDO PARA CONVERSAR)

Será realmente necessário voltar tanto tempo?

LOCUTORA Eu acho que sim. Porque, certamente, Núñez de Balboa, repre-sentante de um rei e de um império, enxergou aquele descobri-mento de uma maneira diferente da dos nativos.

LOCUTOR Com certeza. Tanto é verdade que passados só 42 anos do descobrimento da América, um Real Comunicado do Imperador Carlos V determina:

CARLOS V Que especialistas estudem um meio de abrir a terra em questão para juntar os mares.

TÉCNICA MÚSICA DE RODRIgO AUMENTA E DIMINUI, MANTENDO UM FUNDO SUAVE

LOCUTOR Houve, porém, quem sentenciou:

TÉCNICA LEVE RESSONÂNCIA

ESPANHOL O que Deus uniu nenhum homem poderá separar.

TÉCNICA MÚSICA DE RODRIgO (SUAVE)

LOCUTOR Assim responde Dom Pascual de Andagoya ao Rei da Espanha e Imperador da Alemanha

TÉCNICA RUÍDO DE UMA PLUMA AO ESCREVER

ANDAgOYA Nem com todo o dinheiro do mundo, isso seria possível…

TÉCNICA MÚSICA FANTASÍA DE RODRIgO (SOMENTE UMAS NOTAS)

LOCUTOR Mas nem todas as respostas foram negativas. A de López de gomara deixa transparecer otimismo:

LÓPEZ g. (ENTUSIASMADO) Dê-me quem o queira fazer que será feito; que não falte ânimo porque dinheiro não faltará. Para um Rei de Castela o possível é pouco.

TÉCNICA AUMENTA O VOLUME DE ‘FANTASÍA’ LENTAMENTE (SEgUE UM POUCO MAIS)

LOCUTORA Então, por que o Canal não foi feito?

LOCUTOR Pequenos tropeços burocráticos. Uma simples demora de um par de séculos e algumas dezenas de anos. Quando as Cortes Espanholas decidiram abrir um canal, a América estava lutando pela sua independência.

LOCUTORA 1814… É claro, nesta época Bolívar…

LOCUTOR Bolívar, exatamente, no ano seguinte, escreve na sua “Carta de Jamaica”:

TÉCNICA VOZ DE BOLÍVAR ENTRA EN FADE-IN

304 Mario Kaplún

BOLÍVAR Os estados do istmo do Panamá, até a guatemala, formarão talvez uma associação. Esta magnífica posição entre dois mares poderá ser, com o tempo, o centro do comércio internacional; seus canais diminuirão as distâncias do mundo e estreitarão os laços comerciais entre Europa, América e Ásia; trarão a esta fe-liz região os tributos das quatro partes do globo. Somente ali poderá se estabelecer, algum dia, a capital da terra, como Con-stantino desejou que fosse Bizâncio, a capital do antigo Oriente.

LOCUTORA Foi uma bela profecia, da qual somente se cumpriu uma parte.

TÉCNICA LEVE RESSONÂNCIA

BOLÍVAR …seus canais diminuirão as distâncias do Mundo, estreitarão os laços comerciais entre Europa, América e Ásia…

LOCUTORA Mas quanto à “feliz região”, que diferente e cruel foi a realidade.

LOCUTOR É que a “magnífica posição entre dois mares”, que o Libertador apontava como uma vantagem para as novas nações, também dava àquela região um enorme valor estratégico. E, da forma como foi utilizado politicamente, se transformou num problema grave.

LOCUTORA Bolívar tinha concebido o Panamá como um centro de comércio para o benefício de todos os países.

LOCUTOR A realidade mostrava um território destinado, parece, a ser so-mente um corredor, uma passagem para o das pessoas e mer-cadorias. Por que se converteu num problema? Porque controlar esse acesso significava lucrar.

TÉCNICA CANTO TRISTE DE ESCRAVOS NEgROS: O SOM AUMENTA E DIMINUI DANDO A IMPRESSÃO DE UMA CARAVANA QUE PASSA. MANTÉM-SE COMO FUNDO

LOCUTOR Do Panamá a Portobelo desfilou toda a riqueza que uma Europa exploradora extraía de uma América jovem, conquistada e do-minada. Talvez a única retribuição tenha sido o sangue africano, muitas vezes derramado sobre a terra, mas que se misturou e fecundou a raça americana.

LOCUTORA Coerente com os seus sonhos, Bolívar convocava o Congresso Anfictiônico em 1824.

LOCUTORA Mas, um ano atrás, o presidente da União, James Monroe, tinha lançado ao mundo o slogan da sua doutrina:

MONROE A América para os americanos.

LOCUTORA Monroe excluía a intervenção dos europeus no continente.

LOCUTOR Mas abria precedente para que os Estados Unidos pudessem in-tervir sem restrições a fim de garantir a segurança do continente.

305Produção de Programas de Rádio

LOCUTORA De fato, segundo a opinião de numerosos líderes políticos latino--americanos, o slogan passou a ser “A América para os norte--americanos”. A doutrina Monroe serviu para justificar agres-sões, invasões, anexações.

TÉCNICA MARCHA DOS MARINES QUE VAI AUMENTANDO ATÉ FICAR EM PRIMEIRO PLANO, MESCLADA COM TIROS DE CANHÃO E BOMBARDEIO

LOCUTOR Diante da união dos Estados Hispano-americanos, foi levantado um verdadeiro muro contra o qual se despedaçaria o sonho boli-variano. Desiludido, o Libertador escreveria em 1826:

TÉCNICA FUNDO MUSICAL TRISTE

BOLÍVAR O Congresso do Istmo me parece uma representação teatral. (PAUSA COM MÚSICA). O Congresso do Panamá, instituição que poderia ser admirável, se fosse mais eficaz, não passa de ser como aquele louco grego que pretendia dirigir a navegação dos navios encima de uma rocha. Seu poder será uma sombra e seus decretos meros conselhos… Nada mais…

TÉCNICA AUMENTA O FUNDO TRISTE E MESCLA COM O RUÍDO DE UM TREM ATÉ PASSAR AO PRIMEIRO PLANO

LOCUTOR A história toma outro caminho e abandona a época heroica. Na metade do século surgem os aventureiros a transitar pelo Istmo. Estoura a febre do ouro na Califórnia.

TÉCNICA MÚSICA ESTILO FAROESTE. AMBIENTE DE BAR, RISADAS, TIROS PARA O ALTO

LOCUTORA Aquilo foi como nos filmes. O bar, as mulheres alegres, o uís-que rolando a noite inteira, brigas para resolver os problemas e muitas mortes…

LOCUTOR Como nos filmes. Só que não era ficção. Ao ritmo dos trens, pelas estradas de ferro Pacific Mail, o capital norte-americano começava a sua viagem inacabada rumo ao sul do Rio grande.

TÉCNICA AUMENTA O SOM DO TREM. MIXAgEM COM MARCHA DOS MARINES/SILÊNCIO

LOCUTOR (MUDA DE TOM). A história não foi generosa com o Panamá.

LOCUTORA Atrevo-me a dizer que a geografia também. Parece tão fraco e desprotegido, ali entre dois mares.

LOCUTOR O Panamá limita-se ao norte com o Oceano Atlântico, ao sul com o Pacífico, ao leste com a Colômbia, a oeste com a Costa Rica…

LOCUTORA E ao centro… com os “Estados Unidos da América do Norte”.

LOCUTOR A quinta fronteira.

TÉCNICA ENTRADA SÚBITA DE MÚSICA/ CONFUSÃO DE SONS AO PROCURAR SINTONIZAR.

306 Mario Kaplún

APRESENTADOR … e mais uma vez, este pequeno país de um milhão e meio de habitantes é notícia. O Istmo tem uma extensão de 75.400 qui-lômetros quadrados, incluindo a zona do Canal alugada aos Es-tados Unidos. Esta faixa atravessa o Istmo pelo centro e mede 1.432 quilômetros quadrados. O interesse demonstrado pelos Estados Unidos para chegar a um acordo contradiz a posição daqueles que argumentam que o Canal perdeu importância es-tratégica. Na era atômica, do avião a jato e dos enormes trans-portes aéreos, o Canal do Panamá segue lotado de navios; e os Estados Unidos não se sentem seguros a ponto de liberá-lo do seu controle, ao qual chamam de proteção e vigilância.

TÉCNICA VAI DESAPARECENDO A VOZ DO APRESENTADOR

LOCUTOR Certamente estamos tratando de um problema geopolítico que está pendendo sobre o Panamá como a espada de Dâmocles.

LOCUTORA Quando o Canal foi construído?

LOCUTOR Bem, isso é outra história. E podemos dizer que não traz boas recordações aos panamenhos, mesmo estando unida à sua in-dependência. A primeira tentativa de construção foi um tremen-do fracasso. O construtor foi o francês Ferdinand Lesseps.

LOCUTORA O mesmo construtor do Canal de Suez.

LOCUTOR Exatamente. O êxito conseguido com a construção do Canal de Suez provocou na França uma ânsia de especulação e enrique-cimento fácil. A empresa francesa contou com a hospitalidade dos ianques e dos ingleses, rivais e competidores; mas foi ven-cida pelo trópico, os pântanos e a febre amarela.

TÉCNICA ZUMBIDO DE MOSQUITOS/TORMENTA TROPICAL

TRABALHADOR Socorro! Socorro! Este lugar é o inferno!

TÉCNICA CORPO QUE CAI

TRABALHADOR (ESgOTADO, REPETE COM VOZ FATIgADA) O Inferno.

LOCUTOR (PAUSA) Com a falência da empresa construtora, mais de 850 mil franceses perderam o dinheiro investido, em meio a proces-sos onde apareciam ministros e financistas corruptos.

LOCUTORA Então, a construção foi adiada.

LOCUTOR Não houve outro jeito. Mas eis que aparece outro francês: Phili-pe Buneau Varilia, que poderia ter sido um personagem de Bal-zac. Ele foi responsável por uma surpreendente mudança dos acontecimentos. Este aventureiro não se resignava a estar de-sempregado, depois de ter sido diretor da companhia francesa do Canal. Para ele, oferecer ao governo dos Estados Unidos as ações da companhia era uma ideia brilhante.

LOCUTORA Talvez não tenha sido brilhante, mas foi eficaz.

307Produção de Programas de Rádio

LOCUTOR E sobretudo oportuna, principalmente para os norte-americanos. Para usar uma metáfora, digamos que a águia, emblema nacio-nal dos Estados Unidos, havia começado a alçar voo e voava em círculos cada vez mais amplos, sobre território próprio… e alheio.

LOCUTORA Li em algum lugar que Benjamin Franklin não gostava da águia como símbolo.

LOCUTOR É verdade. Por isso havia declarado, Muitos anos antes…

FRANKLIN (PAUSADO, EM TOM DIDÁTICO). A águia careca é um pássaro de mau caráter, que vive do roubo e da rapina. É lamentável que tal animal tenha sido escolhido como símbolo dos Estados Unidos.

LOCUTORA Mas continuemos com a história do Canal.

LOCUTOR Já estamos chegando. Recordemos que o Istmo do Panamá pertencia à Colômbia. Como os colombianos não quiseram ce-der as terras para construir o canal, o francês Buneau Varilla deu outro golpe de mestre, ao estilo de um executivo moder-no: a saída era tornar o Panamá independente. Detectou dois aliados: os panamenhos, que queriam a independência, e os norte-americanos, que procuravam vias de expansão para o seu capitalismo crescente. Era questão de colocá-los de acordo e cada um alcançaria seu objetivo.

LOCUTORA Mas os únicos que ficaram satisfeitos pelo bom negócio foram os norte-americanos… e o inegável francês.

LOCUTOR A independência do Panamá se transformou num paradoxo. No dia em que se separou da Colômbia, a proteção que pensava encontrar nos Estados Unidos se converteu numa nova e mais triste dependência.

HAY Temos um tratado satisfatório e lucrativo para os Estados Uni-dos. Mas para o Panamá não será tão vantajoso, devemos confessar envergonhados. Sabemos que esse tratado contém cláusulas que provocariam objeções de qualquer panamenho patriota.

LOCUTORA Assim se expressava o Secretário do Departamento de Estado, Mr. Hay, que firmou o tratado original de 1903.

LOCUTOR Em virtude desse tratado, foi cedida à zona do Canal uma faixa de 959 quilômetros quadrados localizada nos coração do terri-tório panamenho.

LOCUTORA Novecen..? Não. Me parece que a Zona do Canal é mais ex-tensa. Sim, olhe, aqui diz que segundo o Serviço de Estatística Panamenho, A medida é de 1.432 quilômetros quadrados.

LOCUTOR O CEPAL, por outro lado, afirma que mede 1.616 quilômetros quadrados.

LOCUTORA Será que a zona continuou crescendo?

308 Mario Kaplún

LOCUTOR Então, o que aconteceu? Pedi a um jornalista panamenho um esclarecimento sobre esse ponto e esta foi a resposta:

gRAVAÇÃO Nº 1

JORNALISTA Podemos considerar que, desde 1903 e até hoje, vai se esten-dendo a quantidade de terreno sobre o qual o governo norte--americano passa a ter jurisdição e controle total. Que atual-mente apareçam dois números: uma de 1.432 quilômetros quadrados e outra de 1.616. Eu considero que a correta é a de 1.616. Porque ultimamente, depois dos problemas estudantis, quando se reivindicou que a bandeira nacional fosse hasteada na Zonal do Canal, como território soberano, foi possível ver que, em menos de um mês, começaram a instalar uma cerca. Não foi feita nenhuma medida do território, mas simplesmente considerando que a partir da Avenida de los Mártires – ou 4 de julho, como eles a chamam – era deles. Simples assim. Insta-laram uma cerca de arame farpado para proibir o acesso aos panamenhos. “Território norte-americano. Proibida a entrada de panamenhos”. Em pleno centro da cidade do Panamá.

LOCUTORA Mas realmente de quem é a Zona do canal?

TÉCNICA EFEITO DE UMA MANIFESTAÇÃO DA POPULAÇÃO NA RUA

VOZES O Canal do Panamá é dos panamenhos!

LOCUTOR A Zona do Canal é parte da soberania panamenha, mas nela os panamenhos são cidadãos de terceira categoria.

TÉCNICA AUMENTA EFEITO DA MANIFESTAÇÃO. gRITOS DE PRO-TESTO. VIDROS QUEBRADOS, TIROS/MESCLA COM TEMA MUSICAL ADEQUADO

LOCUTORA Creio que começo a compreender cada vez mais o que aconte-ce no Panamá.

LOCUTOR Eu acho que entendi, quando ouvi uma professora panamenha, de aspecto frágil, com voz suave…

TÉCNICA gRAVAÇÃO Nº 2

PROFESSORA Não se pode viver com um punhal cravado no coração. E é isso que o Canal é para nós. A zona norte-americana incrustada no nosso território, dividindo-o em dois, partindo-o em dois e, o que é pior, dividindo também a nossa gente. Tantas gerações de pa-namenhos não devem e não podem pagar por um erro histórico. Eu quero, quando ensino os meus alunos sobre as fronteiras do Panamá, que sejam só quatro; que a quinta fronteira seja extinta para sempre.

TÉCNICA CORTINA MUSICAL

LOCUTOR Essa quinta fronteira levou muitas vidas desde o principio.

LOCUTORA Milhares de trabalhadores chineses e negros morreram de malá-ria e febre amarela durante a sua construção.

309Produção de Programas de Rádio

LOCUTOR Entre 1906 e 1912, os Estados Unidos intervieram militarmente no Panamá nas vezes que consideraram conveniente.

LOCUTORA As declarações do presidente Theodore Roosevelt eram cada vez menos convincentes…

ROOSEVELT Senhor presidente Amador guerrero, o senhor pode ter a certe-za de que nós não temos a mínima intenção de estabelecer uma colônia independente no território da Zona do Canal do Panamá.

LOCUTOR Uma longa lista de incidentes demonstrava o contrário. Culmina-ram no dia 9 de janeiro de 1964 com a morte de 22 panamenhos que quiseram hastear a sua bandeira na Zona do Canal. Esse fato provocou a ruptura das relações entre o Panamá e os Es-tados Unidos.

PANAMENHO (gRITA) Abaixo a quinta fronteira!

TODOS Abaixo a quinta fronteira!

TÉCNICA MULTIDÃO, gRITOS; TIROS/ DIMINUI

LOCUTOR Em 1971, o general Torrijos, mandatário panamenho, retomou as negociações com Washington. A América Latina respaldou sua ofensiva. As Nações Unidas emitem uma resolução favorá-vel à posição do Panamá. Um candidato à presidência dos Esta-dos Unidos, Jimmy Carter, assumiu o desafio e o transformou na sua bandeira eleitoral. Um novo tratado passa a estar na ordem do dia e tem de ser diferente “na sua letra e no seu espírito”

TÉCNICA REPETE FINAL DA gRAVAÇÃO Nº 2 COM FUNDO MUSICAL

PROFESSORA Que a quinta fronteira seja extinta para sempre.

TÉCNICA EFEITO DA MANIFESTAÇÃO DA MULTIDÃO (SEgUE FUNDO MUSICAL).

PANAMENHO Abaixo a quinta fronteira!

LOCUTOR Veremos concretizado este desejo do povo panamenho? O Pa-namá conseguirá extinguir a quinta fronteira?

BOLÍVAR Os estados do Istmo do Panamá talvez formem uma associação. Esta magnífica posição entre dois grandes mares poderá ser com o tem-po o centro do comércio internacional; seus canais diminuirão as distâncias do mundo e estreitarão os laços comerciais entre Europa, América e Ásia; trarão a esta feliz região os tributos das quatro partes do globo. Somente ali poderá se estabelecer al-gum dia, a capital da terra.

LOCUTORA Veremos realizado algum dia o sonho de Simón Bolívar?

TÉCNICA ENCERRAMENTO CULMINA COM FUNDO MUSICAL.

310 Mario Kaplún

311Produção de Programas de Rádio

Capítulo

14O roteiro de um radiodrama

Para escrever um radiodrama40, são necessárias três coisas:

1) Um conteúdo2) Uma história3) Personagens A já mencionada proposta de Lazareff de apresentar “as ideias por

meio dos fatos e os fatos por meio de pessoas”, envolve a presença des-ses três elementos: a ideia é o conteúdo do radiodrama; os fatos são a história, o argumento da peça; e as pessoas, os personagens. Os três ele-mentos são indispensáveis para um radiodrama; nenhum dos três pode faltar.

1. Os três componentes do radiodrama

1º) Um conteúdo

Não basta ter uma história interessante para contar; tem que haver um “que”. Que ideia, que mensagem nós pretendemos comunicar ao ou-vinte através de nosso radiodrama? Sobre o que queremos que reflita ao ouvi-lo? Tem que haver um motivo, uma intenção para escrever, algo que queremos dizer por meio dele.

40 Já no cap. 2, apontamos as qualidades do radiodrama, que o indicam como o gênero mais adequado para chegar a uma audiência popular e comunicar uma mensagem. No cap. 5, ao tratar dos diferentes formatos, foi feita uma introdução ao radiodrama e foram apresentadas suas diversas modalidades. Não vamos repetir o que já foi exposto naquelas passagens.

312 Mario Kaplún

O conteúdo não é o mesmo que o argumento ou a trama da peça. O argumento deve servir para expressar e significar esse conteúdo, para ilustrá-lo objetivando-o em uma situação concreta.

Uma vez definida com precisão a ideia motora do roteiro, grave-a bem na sua mente, tendo-a sempre presente enquanto escreve. Trate de assegurar-se de que a história, a ação, os personagens, o final, traduzem com claridade e coerência essa ideia que você se propôs a comunicar. Ela tem que surgir da obra.

Os objetivos. A questão do conteúdo nos leva à dos objetivos. Para que escrevemos o radiodrama? Segundo a natureza do conteúdo que pre-tendemos transmitir, nosso propósito pode ser didático, ou formativo.

a) Didático. Perseguimos um objetivo didático ou informativo quando buscamos que o ouvinte, através da ação, receba uma informação, um conhecimento; isto é, quando a finalidade é a divulgação ou o ensino. Este tipo de radiodrama é o mais perigoso e o qual mais frequentemente resulta em fracasso como obra dramática. O radiodrama não serve para expor, para explicar, mas sim para desenvolver uma ação, uma historia.

Não é certo colocar em forma de pseudodiálogo uma explicação; soa falso, forçado. Não são aceitáveis personagens que, no meio da ação, começam a expressar uma erudição de catedráticos e se põem a dar uma aula ou a defender uma tese dissimulada, além de demonstrar uma me-mória incrível para lembrar no momento dados, números, nomes, cita-ções etc. Referimo-nos a esses personagens que do nada saem dizendo coisas tais como:

DON EUCLIDES Hum! Que delicioso está seu arroz, Timótea! E a propósito: Sabes quantas toneladas de arroz produziu o vale de Victoria no último quinquênio em relação ao quinquênio 1935 – 1939?

Se o objetivo é ensinar noções, o veículo adequado não é o radio-drama. É preferível optar por outros formatos mais adequados a uma finalidade cognoscitiva (diálogo didático, entrevista, radiorreportagem, relato montado etc.)

Não obstante, se o tema, ainda que sendo de caráter didático, tem por si mesmo ação, história, personagens com substância, riqueza hu-mana, é possível levá-lo ao radiodrama. Por exemplo, temas da história

313Produção de Programas de Rádio

nacional ou universal, onde há fatos, episódios, homens, constituem um rico manancial para o radioteatro educativo. Assuntos de educação coo-perativa ou de educação sindical, tais como a história do sindicalismo e de seus líderes ou os problemas que enfrenta uma organização coo-perativa à raiz das distintas atitudes de seus membros, se prestam para um tratamento dramatizado. Também é possível dramatizar questões econômicas e sociais, se forem traduzidas ao nível humano, em fatos concretos.

No Chile, o programa “Sentencia” utilizou o radioteatro para divul-gar, através da dramatização de casos concretos, problemas jurídicos que costumam afetar os setores mais carentes do país, e para divulgar possíveis soluções legais. “A temática se prestava extraordinariamente para a dramatização; o conflito dramático surge de um conflito verda-deiro – o debate sobre o que é legal”41.

Em suma, é possível escrever radiodramas didáticos sempre que haja personagens e história, fatos humanos, não mera informação recitada por atores.

b. Formativo. O propósito aqui é suscitar uma reflexão, fazer pensar. Contamos uma historia para que o ouvinte, vivendo-a e assumindo-a, se enriqueça humanamente.

Este é o campo mais específico do radiodrama, o mais próprio do formato, o mais fértil e fecundo. O radiodrama serve principalmente para isso: para motivar, para chegar não só na mente do ouvinte, mas, sobretudo, na sua sensibilidade e na sua consciência. O radiodrama pode conter e transmitir certa dose de informação, mas tem que ter essência humana, emoção, vivência dramática, clima. A “matéria” que funciona melhor não é nenhuma das que figuram nos programas de estúdio, mas sim essa outra matéria chamada vida. Daí sua adequação a assuntos tais como problemas sociais e culturais, situações humanas, atitudes, condutas, valores, costumes, crenças, preconceitos etc.

A finalidade de um radiodrama formativo pode ser:• inquietar o ouvinte, problematizá-lo; • convidá-lo a emitir um juízo: que faça um julgamento, um ques-

tionamento, de certa realidade – social ou individual;

41 NICOLÁS LUCO R. El derecho en radioteatro. Boletim CELA No. 1, Santiago de Chile.

314 Mario Kaplún

• provocá-lo a uma opção; esclarecer suas escolhas vitais; • propor um exemplo positivo, um modelo de conduta a admirar

e a assumir.

Daí que o radiodrama seja um instrumento extraordinário dentro do campo da educação que se convencionou chamar de não formal.

2º) Uma história Em segundo lugar, tem que acontecer, que suceder algo. Tem que

ter uma história, um argumento interessante; uma trama que o ouvinte possa partilhar, que tenha empatia. Pode ser um fato real ou uma his-tória imaginária; porém em ambos os casos tem que transmitir vida, inserir-se no âmbito das vivências do ouvinte.

Essa ação dramática é a que vai conter implícita a mensagem que se deseja comunicar. Sublinhemos o caráter implícito, porque nele reside uma das chaves do gênero: a mensagem de um radiodrama deve surgir da ação. O radiodrama não deve ser nunca um conto com moral no fi-nal (“isto ensina que...”, “ouvindo esta história aprendemos que...”) nem deve apelar a um personagem professoral que na última cena lance seu sermão, seu discurso explicativo. É regra básica do radiodrama que a ação deve falar por si mesma, sem “legendas explicativas” que a tradu-zam. O que há para ser dito tem que o ser no curso do diálogo, de uns a outros, entre os personagens mesmos, com suas próprias palavras, sua própria mentalidade e seu próprio nível de consciência. O que os per-sonagens não possam dizer sem sair de seus próprios limites, o ouvinte deve inferir da situação, da história.

Em um radiodrama, por outro lado, não é necessário explicar tudo. Tem que ficar algo que o ouvinte deva decodificar por si mesmo. Se não induz a esse trabalho de participação e de decodificação pessoal por parte do ouvinte, o radiodrama perde grande parte da sua eficácia pedagógica.

Daí a importância da trama. Ela é que deve veicular a mensagem, sugerindo-a implicitamente através dos fatos.

A tessitura do drama. Aprofundemos um pouco mais, então, na ques-tão do argumento; na natureza da ação dramática. De forma geral e um tanto esquemática se pode afirmar que o princípio da ação dra-

315Produção de Programas de Rádio

mática é o conflito. De uma ou de outra maneira, o drama envolve uma tensão, um antagonismo, uma contraposição, um problema, uma discrepância.

Muitas vezes este conflito é encarnado em personagens que repre-sentam as diversas forças em disputa: o protagonista e o antagonista. Assim, em nosso Exemplo 142, “Não sei por que você acha”, os anta-gonistas são o Operário e o Soldado; no Exemplo 4, “O caso de quem não conseguiu nascer”, o conflito se materializa no binômio Arévalo/Olmos.

Não tem que ser necessariamente um enfrentamento, um confli-to declarado; pode ser também um conflito surdo, tácito, latente. Por exemplo em “Um trabalho para Barboza” (Exemplo 3) há uma oposição Barboza/Beltrán que não explode, mas que os contrapõe como símbo-los; e há outra contraposição Vicente/Beltrán. No Exemplo 2, “Os da mesa do fundo”, a contraposição está dada entre os quatro jogadores de dados e os demais frequentadores da hospedaria. Uns e outros não se chocam diretamente, o contraste se objetiva ali em duas atitudes para-lelas que não se encontram (salvo na decisão final dos últimos de não convidar os primeiros para sua festa); porém de todos os modos há um contraste dramático entre a atitude solidária dos trabalhadores e a indiferença dos jogadores.

Outras vezes, o conflito não se materializa em personagens contra-postos. Um protagonista pode se ver enfrentado, não por um antago-nista concreto, mas por uma realidade, uma situação, um sistema, a sociedade, as circunstâncias: o estudante pobre que não pode continuar estudando por falta de recursos econômicos; o agricultor a quem a sua escassa terra não lhe dá o suficiente para subsistir e se vê obrigado a emigrar para a cidade; o sindicalista que luta contra a exploração; o bairro que padece de falta de água encanada. Porém sempre há no fun-do da história uma situação conflitante, um “choque de forças” (estu-dante/pobreza, agricultor/falta de terra, sindicalista/exploração, bair-ro/água etc.).

Ante o conflito, os distintos personagens reagirão de formas dife-rentes: uns serão ativos e lutadores, enquanto outros o assumirão pas-

42 Os exemplos aqui citados referem-se aos roteiros e programas apresentados nos capítulos anteriores e, ao longo deste capítulo, serão designados pela identificação numérica aqui pontuada (exemplo 1, exemplo 2 etc.) [Nota da tradução].

316 Mario Kaplún

sivamente, em uma atitude, expressa ou tácita, de aceitação. Arévalo, Olmos, Beltrán, são ativos; Barboza, passivo.

Em outros radiodramas o choque de forças se dá no interior do per-sonagem: este vive um dilema, um conflito consigo mesmo (e o exemplo poderia ser o de Asunción Estrella no ex. 4); se sente em contradição, tem uma dúvida ou um problema de consciência. Porém também neste caso assistimos a um conflito dramático.

No momento de criar seu argumento, convém pois que o roteiris-ta o possa conceber e visualizar nesses termos: em termos de conflito, de contraposição. Sobre que personagens antagônicos, sobre que atitu-des ou condutas contrapostas, sobre que forças em oposição é que será construída a ação dramática? Que atitude tomará cada personagem: ativa ou passiva? Como vai se desenvolver o conflito: que progressão dramática vai ter ao longo da peça? E como vai terminar?43

3º) PersonagensPor último, é indispensável que a história seja vivida por persona-

gens. Isto pode parecer obvio: toda história – se dirá – comporta perso-nagens. Porém não é suficiente. Queremos dizer personagens humanos, isto é, reais, acreditáveis. Com a sua psicologia, com a sua idiossincrasia, com suas características. Não arquétipos: pessoas. Personagens consis-tentes em suas ações. Podem ser contraditórios, porém deliberadamen-te, porque o autor os vê assim – ambíguos, ambivalentes – e não por descuido do escritor. Personagens com que o ouvinte possa estabelecer uma relação, os sentir como reais, identificar-se, consubstanciar-se com eles.

Poucas coisas são mais insatisfatórias do que um radiodrama com pseudopersonagens; personagens de marionetes, de cartolina, como os que costumam ser encontrados nos maus radioteatros didáticos:

JUAN Oi, José, bom dia, Como vai?

JOSÉ Bom dia, Juan, Como vai você? Aonde vai?

43 Já apontamos no cap. 5 que o radioteatro não tem porque ser sempre sério, dramático; pode ser também muito eficaz como instrumento educativo um radioteatro risonho, humorístico. O que não impede que haja também nele uma contraposição, contraste: a sátira é precisamente um contraste levado a um alto grau de acentuação.

317Produção de Programas de Rádio

JUAN Pois olha, José, vou para o posto de saúde para ver se me dão vacinas contra a aftosa para minhas vaquinhas.

JOSÉ Ah!, Vai vacinar a suas vacas contra a aftosa? Que bom que nos encontrarmos, então. Explique-me como é que vai fazer, porque eu também quero vacinar as minhas.

De longe se nota que esse encontro feliz, esse diálogo, não existe; que esses “personagens”, esse Juan e esse José são meros curingas, robôs que o autor fabricou como puros instrumentos mecânicos para fazer um radioteatro de apoio à campanha de vacinação contra a febre aftosa.

Os personagens de um radiodrama tem que ser de carne e osso; res-pirar vida. O autor tem que tê-los conhecido, ou ter se inspirado em seres reais; em todo caso, ser tão concretos, tão convincentes, que o ro-teirista possa dizer como são, como falam, como caminham, e até des-crever suas características físicas.

Viva as situações, os personagens. Sinta-os. Transforme-se num bom transmissor do que esses personagens são e querem dizer. Escute-os; entregue-se a eles. Deixe que o rodeiem, que invadam seu local de tra-balho, que adquiram vida própria. Que chegue um momento em que possam lhe dizer: “Não, você está me traindo, deformando; eu não sou assim, eu não atuaria desse modo, eu não diria nunca essa frase. Essas não são minhas palavras, esse não é o meu modo de ser”. E que você tenha que apagar e iniciar a cena novamente.

Ponha-lhes nomes. Mesmo nos secundários – a menos que sejam totalmente episódicos. Não os chame “Homem”, “Mulher”, “Alguém”, “Outro”, “Vizinha 1”, “Vizinha 2”. O ator, ao interpretar o roteiro, se sen-te desestimulado se percebe que o personagem que ele vai interpretar é tão insignificante e inofensivo que o autor nem se quer se incomodou em batizá-lo. Ao dar-lhes um nome, ao chamá-los Manuel ou Teresa ou Rogério, você começará a senti-los como pessoas, não como coisas.

2. Técnica do radiodrama

As CenasAs unidades em que se descompõem o radiodrama são as cenas.

Todo radiodrama compreende uma sucessão de cenas de distinta ex-tensão.

318 Mario Kaplún

Montar o relato dramático é, em primeiro lugar, traçar um esquema, um plano de como vai se dividir o argumento; como vai se desenvolven-do e progredindo a ação nas cenas. Nesse plano determinaremos quan-tas cenas colocaremos, que personagens irão intervir em cada uma, o que acontecerá em cada cena, quanto tempo transcorrerá de uma a ou-tra. Assim, o Exemplo 3 foi construído sobre o seguinte esquema:

Cena 1. No ônibus. Vicente (e Barboza na sua lembrança). Vicente passa na frente da obra em construção e lembra do pedido de Barboza. Desce do ônibus.

Cena 2. Na obra. Vicente, Molina (e Barboza na lembrança); depois Beltrán. Vicente fala com Molina sobre as oportunidades de trabalho. Chega Beltrán.

Cena 3. No bar. Vicente, Beltrán (e Barboza na lembrança). Vicente pede um trabalho para Barboza. Beltrán se mostra muito cético, mas concede.

Cena 4. Horas depois. Na igreja. Vicente, Barboza. Vicente comunica a Barboza que lhe conseguiu trabalho. Barboza assegura que vai corresponder.

Cena 5. Um mês e meio depois. Na obra. Vicente, Beltrán, Molina (e Barboza na lembrança). Vicente fica sabendo que Barboza não foi mais trabalhar.

Cena 6. Dois meses depois. Na igreja. Vicente, Irmã Maria José (por telefone). A irmã pede a Vicente que vá ao hospital assistir a um idoso que está agonizando.

Cena 7. Pouco mais tarde. No hospital. Vicente, Irmã, Barboza (e Beltrán na lembrança). Vicente descobre que Barboza está internado, doente.

Cena 8. No pátio do hospital. Vicente, Irmã (Barboza e Beltrán na lembrança). Reconstroem a verdadeira história de Barboza e por que deixou o em-prego.

Epílogo Na igreja. Vicente, sozinho, promete voltar a ver Beltrán e contar-lhe o caso.

Mas é preciso ter claro; o rádio é um meio exclusivamente auditivo. Não podemos – como no cinema ou na TV – mostrar os cenários para que o ouvinte localize com a vista o lugar em que transcorre cada cena e os personagens que vão intervir nela. E é fundamental que o ouvinte possa seguir a ação sem dificuldade; que esteja localizado. Como suprir essa carência?

Há duas soluções possíveis:

1) Valer-se de um narrador que indique as mudanças de cena, de tempo e de personagens.

319Produção de Programas de Rádio

2) Prescindir do narrador, fornecendo na própria ação os dados que permitam ao ouvinte localizar os distintos cenários.

O Uso do NarradorO recurso ao narrador é o mais cômodo e simples: evita muitos pro-

blemas, já que situa as cenas e as encadeia. Podemos nos valer do narrador convencional, ou ainda de outros

recursos mais originais e de maior interesse dramático, tais como o nar-rador-personagem e o narrador-testemunha, dos quais falaremos mais adiante.

Contudo, se resolvermos utilizar um narrador, e particularmente se empregarmos o narrador clássico, devemos fazê-lo com a máxima moderação, somente quando sua intervenção seja realmente impres-cindível. O narrador em nenhum caso deve substituir a ação: não deve contar o que se pode dramatizar, monopolizando e absorvendo a peça. O radiodrama não deve converter-se em um relato com apenas algumas cenas dramatizadas.

Até mesmo a sua função básica de localizar a ação em tempo e lugar deve ser cuidadosamente dosada. Se a própria cena permite ao ouvinte localizar-se nela, sem necessidade de explicações, a intervenção do nar-rador deve ser suprimida. Não deve intervir sistematicamente no início de todas as cenas, mas somente naqueles casos em que realmente se considera indispensável.

Em nosso Exemplo 3, utilizamos um narrador – e era um narrador muito mais integrado na ação, como é o narrador-personagem; contu-do, das nove cenas apenas três são precedidas por intervenções dele para localizar o ouvinte, as seis restantes entram diretamente. Nestas outras, o ouvinte se localiza perfeitamente no bar, na igreja e no hospital etc., por referências que recebeu no diálogo. Inclusive a visita de Vicente ao hospital não é explicada por um relato, mas sim pela própria ação (a chamada telefônica da Irmã).

No Exemplo 4 (técnica do narrador-testemunha), os diversos inter-rogatórios se sucedem no Tribunal sem que o narrador tenha que inter-vir: é desnecessário.

A razão principal desta moderação no uso do narrador, é que uma das formas em que o ouvinte participa no radiodrama é imaginando, decodificando. Quando o ouvinte pode seguir a mudança de cenas e

320 Mario Kaplún

localizar-se nos distintos cenários por si mesmo, sem necessidade do narrador, só com os dados que lhe oferecemos no diálogo e com os sons que situam os distintos lugares cênicos – e que operam com signos de um código sonoro, isto não só lhe dá o prazer gratificante de sentir--se capaz de compreender e captar a ação, como também estimula uma maior atenção e uma mais intensa participação. O ouvinte ativa sua imaginação, decodifica, “preenche” os vazios do que não foi explicado, coloca mais de si, se integra mais na trama.

Digamos agora umas palavras sobre os diversos tipos de narrador.

O narrador convencional. A via mais simples. Representa o autor. Nar-ra em terceira pessoa e no tempo passado: “Naquela manhã, Juan foi ver Elisa na loja onde ela trabalhava”. É como um espectador invisível que goza do dom da ubiquidade: igual a um autor de romance, está em todas as partes, consegue ver tudo sem ser visto. É alheio à trama; não se integra nela.

É uma convenção universalmente aceita; porém não deixa de repre-sentar a solução mais rotineira, menos criativa. A advertência sobre a necessidade de dosar e administrar as intervenções do narrador com tanta moderação, aplica-se especialmente a este tipo convencional de narração.

O narrador-personagem. Equivale ao romance escrito em primeira pessoa. O resultado é muito mais quente e comunicativo, mais vivo, menos artificial, porque se integra na trama. Joga em dois planos: relata e atua. É o caso do padre Vicente na série que leva seu nome (Exemplos 2 e 3): é um personagem da ação e, ao mesmo tempo, um testemunho presencial da mesma. O recurso neste caso é validado pelo fato de que Vicente usa um diário em que anota as coisas que vivencia ou que pre-sencia.

O narrador-personagem não tem que ser necessariamente o prota-gonista, o personagem central do radiodrama: dentro da trama pode ser um personagem relativamente secundário. Porém participa nela.

Permite desdobrar a história em dois planos: o da ação e o plano ín-timo, pessoal, de quem a evoca. Este último delimita a ação, a esclarece, com comentários ora sérios e reflexivos, ora irônicos e humorísticos, sublinhando os fatos ou se contrapondo a eles (este duplo plano pode ser percebido nas primeiras cenas do Exemplo 2).

321Produção de Programas de Rádio

É precisa ter cuidado para que não fale demais na função do narra-dor, para que a história não se converta num relato monologado, apenas ilustrado com momentos de encenação.

Uma limitação: como no caso do romance escrito em primeira pes-soa, o narrador-personagem só pode contar o que ele vê, o que presen-cia pessoalmente, ou o que lhe relatam os outros. Só podemos incluir as cenas em que pareça natural que ele esteja presente. Não tem a ca-pacidade de estar em todos os lugares como o narrador convencional. No Exemplo 3, se tivéssemos querido incluir, por exemplo, um diálogo entre Beltrán e Molina sozinhos, não teríamos podido fazê-lo; Vicente – e com ele o ouvinte – só pôde ficar sabendo das ausências do trabalho de Barboza quando Beltrán lhe contou.

Esta técnica requer, necessariamente, um intérprete extremamente hábil, capaz de passar do relato à ação e vice-versa a cada momento, e dar a um e à outra o adequado tom de voz que os diferencie.

O narrador-testemunha. É um cronista que está visivelmente presente nos lugares onde transcorre a ação e se insere de alguma forma neles, sem no entanto constituir um personagem dramático. É o caso do Re-lator da série Jurado no 13 (Exemplo 4): um jornalista que a emissora colocou ali para retransmitir os julgamentos. Fala em tempo presente. Ele está ali, à vista; sua função de narrador está justificada pela própria ação. Seus relatos adquirem assim mais naturalidade e vigência.

No Exemplo 4, este narrador tem uma escassa participação, já que toda ação transcorre no Tribunal e se centra no julgamento mesmo; porém em outros processos do Jurado no 13, pode-se apreciar melhor as interessantes possibilidades dadas pela introdução de um narrador deste tipo. Faz entrevistas com os jurados, com as testemunhas e com o público do tribunal; sai na rua para fazer pesquisas, para investigar a realidade, para detectar as reações da opinião pública; funciona como cronista dos fatos que acontecem fora do tribunal44.

Demos dois exemplos de como se pode imprimir outra vida e dar outra personalidade ao narrador. Esperamos que, estimulado por eles,

44 Confira as funções múltiplas do narrador-testemunha nos seguintes capítulos de Jurado no 13: Proceso a um alcade (cap.1); Proceso a los quietos (cap.9-10-11); Pro-ceso a un ídolo del fútbol (cap.29); Proceso en un aula (cap.35). Para obter estes e outros roteiros do SERPAL e as respectivas gravações, cf. nota final do capítulo 5.

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o leitor, ao escrever seus radiodramas, saiba descobrir outras soluções interessantes e evitar a rotineira fórmula convencional.

O Radiodrama sem NarradorA outra opção consiste em dispensar totalmente o narrador. Já não

há mediador entre a ação e o ouvinte: levantamos o “pano” e imediata-mente começa a trama, sem explicações, como em uma obra de teatro ou em um filme. A ação tem que falar por si mesma.

Porém não é tão simples que a ação fale por si mesma quando não temos o apoio da visão; quando nosso espectador não pode ver os ce-nários. É imprescindível que o ouvinte saiba onde e quando transcorre cada uma das cenas, pois caso contrário se perderá, e confundirá, e não poderá seguir o desenvolvimento da peça. Vejamos os recursos de que dispomos para isso (recursos que não se aplicam só a este tipo de ra-diodrama, mas também aos que utilizam narrador já que, como temos visto, devemos ser muito moderados em sua utilização e evitá-la sempre que seja possível).

1. Se a ação tem continuidade por si mesma e segue um esquema de unidade de lugar e de tempo, se evita o problema. O ouvinte se situa facilmente. É o caso do Exemplo 4, em que as distintas cenas se suce-dem umas a outras no tempo e todas transcorrem no mesmo cenário. Só temos que separar as cenas diversas mediante silêncios, ou mediante cortinas musicais adequadas ao clima de cada uma.

2. Porém, geralmente, uma ação radiodramatizada não correspon-de – nem deve corresponder – a esta unidade de tempo e de espaço. Uma das grandes vantagens do radioteatro é justamente o fato de que podemos contar com uma grande variedade de cenas; “montar” quantos cenários queiramos, transferirmos de um lugar a outro quantas vezes o desejarmos (coisa muitíssimo mais difícil de fazer e cara no teatro, no cinema ou na TV). Não devemos então, desperdiçar esta liberdade de movimento, que estimula a imaginação do ouvinte; porém com a con-dição de dar-lhe os dados que lhe permitam seguir estas mutações sem desorientar-se. Como fazê-lo?

a. No diálogo: colocamos – até o final da cena – alguma frase que pre-para e situa a cena seguinte: Como no Exemplo 3, na segunda cena, em que Beltrán convida Vicente para ir conversar no bar; desse modo,

323Produção de Programas de Rádio

quando passamos à cena seguinte, no bar, o ouvinte se localiza facil-mente.

Ou então as primeiras palavras da nova cena podem conter um dado que a localiza: na oitava cena do mesmo Exemplo 3, a Irmã começa dizendo: “Por aqui, padre; por este pátio cortamos caminho”. E o ou-vinte já sabe que agora deixamos a sala do hospital e nos encontramos num pátio exterior do mesmo. Outra solução poderia ter sido a de, ao terminar a cena anterior, Vicente se despedir da freira e esta lhe dizer: “Acompanho-o até a saída, padre”.

O mesmo acontece quando temos que indicar uma mudança de tem-po: é necessário que alguns dos personagens diga algo que permita ao ouvinte saber que entre a cena anterior e esta transcorreram tantas se-manas ou tantos meses.

É preciso ser cuidadoso, contudo, para que estas frases localizadoras soem como naturais, não forçadas; de modo que não fiquem vulga-res, notoriamente postas só para explicar a localização. Por exemplo, na cena do hospital, se a freira dissesse: “Venha, saiamos da sala e caminhe-mos pelo pátio”; seria uma frase absurda. Em vez disso, disse: “Por este pátio se corta caminho”, frase que contém a informação que se deseja transmitir ao ouvinte e que, ao mesmo tempo, soa natural no diálogo. Para fazer a transição de tempo, faremos que um personagem diga “Pa-rece mentira que já tenha passado duas semanas daquilo”, ou “Esses três meses sem nos vermos foram intermináveis”. Porém sempre terá que ter, na cena precedente ou na própria cena que se inicia, dados que embuti-dos no diálogo permitam ao ouvinte localizar-se.

b. Com ajuda de música ambiental. Se a nova cena contém música ambiental, reforça a localização: música dançável nos situa num baile ou em uma festa, orquestra afinando nos coloca na sala de concerto, o órgão tocando a Marcha Nupcial nos situa em uma igreja onde se cele-bra um casamento.

Se no diálogo da cena anterior foi preparada esta mutação, a locali-zação é ainda mais clara. Por exemplo, os vizinhos do bairro anunciam que farão uma festa para inaugurar a Associação de Moradores; a cena seguinte começa com sanfona tocando um tema festivo e ambiente de festa. Outro exemplo: na cena precedente, Luis convida Adélia para ir num baile no sábado a noite; a música dançável da cena seguinte nos

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diz desde os primeiros compassos que estamos na noite de sábado e nos encontramos no baile.

Sempre que possa, utilize a música ambiental para definir o cenário.

c. Com ajuda dos efeitos sonoros. No diálogo entre Beltrán e Vicente no bar, os sons ambientais (ruído de copos, murmúrio dos frequentado-res), servem para situar a cena. Se os personagens do nosso radiodrama estavam nas cenas anteriores planejando ir a um acampamento de fé-rias, bastarão uns sons campestres (cantos de pássaros, grilos etc.) para saber que agora nos encontramos no acampamento. Se estão preparan-do uma viagem e a cena começa pelo apito da locomotiva e o ruído da marcha do trem ouvido desde o interior de um vagão, os sons nos dizem que agora nos encontramos viajando. Vejamos outro exemplo:

ALBERTO: Estamos combinados? Nos vemos amanhã às cinco, na saída da fábrica?

FREDERICO: Às cinco? Combinado. Estarei lá.

TÉCNICA: DESVANECEM AS ÚLTIMAS PALAVRAS BREVE SILÊNCIO / ENTRA EM FADE-IN SIRENE DE FÁBRICA; VOZES DE TRA-BALHADORES SAINDO

FREDERICO Ei, Alberto! Alberto! Estou aqui. A sirene da fábrica nos situou em um novo cenário.

Vimos diferentes recursos para fazer uma troca de lugar e/ou de tempo sem intervenção de nenhum narrador. No entanto, quando a tra-ma impõe dar um salto muito grande e inesperado no tempo ou/e no espaço – e ainda por cima os personagens que intervêm na nova cena não são os mesmos da anterior – explicar a situação só pela ação e o diálogo é extremamente difícil; e obriga a colocar na boca dos persona-gens longas frases tão explicativas, forçadas e pouco verossímeis, que é preferível recorrer ao narrador.

Como Separar as Cenas

No capítulo 6, já estão detalhados (e ilustrados com exemplos) os diferentes procedimentos utilizados na mudança de cenas:

a. Com música (cortina ou ponte musical);

325Produção de Programas de Rádio

b. Com desvanecimento do diálogo: terminam as últimas palavras da cena que finaliza, faz-se um breve silêncio e entra o diálogo da cena seguinte (se desejar, pode entrar em fade-in);

c. Com desvanecimento de sons: se a cena que finaliza tem sons ambientais, esses se desvanecem e, após um breve silêncio, co-meça a cena seguinte;

d. Com o surgimento de sons: se a nova cena que começa tem sons ambientais, após o breve silêncio, entram esses sons (o exemplo da sirene da fábrica).

O recurso b, do desvanecimento do diálogo, é útil e evita o emprego abusivo de cortinas musicais, porém tem um inconveniente: frequen-temente, as últimas palavras de uma cena são muito importantes. Se desvanecem, perdem força e inclusive às vezes audibilidade. Isto obri-ga a fechar as cenas com frases incidentais, sem importância se forem ouvidas fracamente; ou com a repetição do que foi dito, o que às vezes resulta em redundâncias desnecessárias.

A Ordem Cronológica das CenasNem sempre as cenas devem seguir necessariamente uma ordem

cronológica. Há, sobretudo, dois recursos que devemos conhecer e fazer uso quando acharmos conveniente.

1. O flashback. É um retrocesso no relato. A evocação encenada de algo que aconteceu antes. Se permitirmos que um dos atores o conte, seu relato ficará longo e tedioso. É preferível dramatizar, reviver o fato; transportar-se ao passado.

Às vezes é conveniente, e inclusive necessário, prevenir o ouvinte de que vamos fazer este retrocesso no tempo. Então, um dos persona-gens, no diálogo, prepara e anuncia esta volta ao passado com uma frase como:

ALEJO Lembro muito bem daquele dia. Mamãe estava socando o milho no pilão. De repente, virou pra mim e disse...

Em outros casos, o efeito é mais expressivo se o retrocesso toma o

ouvinte sem aviso prévio: colocamos uma separação musical adequa-

326 Mario Kaplún

da, que possa sugerir passagem de tempo, e passamos a cena em flash-back, deixando que o ouvinte descubra pouco a pouco que agora nos transportamos ao passado. Ao finalizar o flashback, repetimos o mesmo tema musical que lhe deu inicio e que agora nos retorna ao presente, e continuamos a ação45.

O avanço (trailer). Um radiodrama pode começar pelo princípio, mas também pode começar, sem anúncio prévio, por um de seus momentos culminantes, e inclusive pelo final. O ouvinte assiste a um fato intenso, cujas circunstâncias ainda não são explicadas (por exemplo, um perso-nagem que se pergunta como chegou a uma situação assim); logo a ação retrocede no tempo e começa a reconstruir a história que desembocou naquela situação, até chegar novamente ao ponto de partida46.

A identificação dos personagens Assim como é importante que o ouvinte situe o lugar e o momento

em que transcorre cada cena, não é menos importante que possa situar e reconhecer os personagens que estão falando e atuando em cada uma.

Não ponha personagens demais em seu radiodrama: como o ouvinte não pode vê-los, este excesso de vozes pode confundir. Quando apare-cer na cena um novo personagem, cuide para que o diálogo dê dados suficientes para que o ouvinte saiba quem é, e que relação tem com os outros. E, sobretudo, não ponha muitos personagens juntos em uma mesma cena: se são mais de quatro ou cinco os que participam simulta-neamente, o ouvinte terá dificuldade em fazer a identificação.

Faça todo o possível para ajudar a sua audiência a reconhecer os personagens que falam. Lembre que você, ao escrever seu roteiro, sabe quem está fazendo falar naquele momento; porém o ouvinte, só pela voz de cada ator, nem sempre consegue reconhecê-los, especialmente quando na cena envolvida há vários deles que falam de novo depois de um longo tempo em silêncio.

45 Cf. por exemplo a narração do acidente de Lito, na primeira parte do Pro-ceso a los quietos (cap.10 de Jurado no 13).

46 Cf. uma história que começa pelo final em La trampa, cap.66/4 da série Pa-dre Vicente; histórias que começam por uma cena decisiva em La herencia, cap.39-40-41 da mesma série; e em Proceso a un reincidente, cap.16-17-18 de Jurado no 13.

327Produção de Programas de Rádio

Para facilitar ao auditório sua identificação, faça com que os persona-gens, com certa frequência, ao dirigir-se um ao outro, sejam chamados pelo seu nome. Não de uma maneira forçada, notória, que soe artificial: as pessoas quando falam não ficam mencionando o interlocutor a todo momento. No entanto, há vezes em que fazemos isto naturalmente. Por exemplo: “Mas Laura, isso que você está dizendo me parece uma bestei-ra”. Ou “Juan, por favor, pense no que você fala”. Ou “Ah, não, Martín, não estou de acordo contigo em absoluto’. Ou “Olha Rosário: tenho que te dizer algo muito sério”. Ou “E você, Ana, por que está tão calada? O que diz disso?”. Aproveite esses momentos em que o vocativo é natural, para que o ouvinte possa situar o interlocutor.

Os planosIndique também, no roteiro, o plano em que se encontra cada per-

sonagem num dado momento. Quando um deles se afasta e fala de cer-ta distância, indique (2o PLANO). Não abuse destes segundos planos e menos dos terceiros: o personagem perde presença e, se o que vai dizer é algo importante, a frase terá pouco vigor. Mas um uso moderado dos planos dá dimensão ao cenário, naturalidade à situação; e estimula a imaginação do ouvinte. Repare no jogo de planos no Exemplo 2: os jo-gadores da mesa do fundo, podemos ouvi-los geralmente em segundo plano. Outro efeito acontece com o Juiz, nos julgamentos da série Ju-rado no 13: sua posição no segundo plano dá amplitude ao recinto do Tribunal.

Visualize a cena, imagine-a enquanto a escreve, e procure que os deslocamentos dos personagens sejam refletidos nos planos sonoros. Quando um personagem se afasta dos outros, o que você deseja? Que a ação continue onde se encontra o grupo? Nesse caso, indique que a voz e os passos do que se vai serão ouvidos afastando-se, em 2º plano. Quer que o microfone siga com aquele que se vai? Neste caso, indique que os passos deste ao caminhar devem ser ouvidas no mesmo lugar, quer dizer, em um plano fixo, sem afastar-se; e que sua voz deve seguir sendo ouvida todo o tempo em primeiro plano enquanto caminha, e que são as vozes do resto do grupo as que devem agora afastar-se gradualmente em segundo plano, até perderem-se. Lembre que o microfone, mesmo que na realidade esteja sempre fixo no mesmo lugar, é como a câmera cinematográfica: pode permanecer imóvel ou também “deslocar-se”, se-

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guindo o movimento dos personagens. A sensação de que o microfone se desloca, é realizada na verdade pelos atores, afastando-se ou mesmo aproximando-se do mesmo, conforme indicamos os planos sonoros no roteiro.

O diálogoA principal virtude do diálogo de um radiodrama deve ser sua na-

turalidade. O diálogo tem que soar espontâneo, sem rebuscamentos retóricos, sem construções próprias de linguagem escrita, sem efeitos melodramáticos, sem ênfases grandiloquentes.

Os personagens devem falar tal como eles são e como falam na vida diária. Escute-os falar enquanto escreve o roteiro: que eles lhe ditem o diálogo. Cada personagem deve refletir, em seu léxico e em sua sintaxe, o grupo sociocultural a que pertence. Um trabalhador não fala como um fazendeiro, um agricultor não fala como um agrônomo nem tampouco como um trabalhador urbano. Os jovens não falam como os adultos.

Contudo, nosso realismo não deve ser tal que tentemos algo assim como uma “cópia fotográfica” do diálogo real. Na vida, ao falar, gasta-mos um montão de palavras desnecessárias. Nem todas elas devem ser incluídas em nosso roteiro: o diálogo seria excessivamente longo (no rádio temos uma limitação de tempo, não esqueça) e além disso se tor-naria complicado, confuso, carente de interesse. Devemos selecionar, sintetizar, ser mais concisos do que na fala natural; e ao mesmo tempo, mais claros e expressivos. Não gaste palavras em vão.

Por outro lado, não devemos ir tampouco ao extremo contrário, de reduzir a linguagem só ao informativo. No falar humano, há palavras que não são imprescindíveis conceitualmente, mas que respondem a outro tipo de razão – uma razão psicológica, afetiva. Há frases que tal-vez agreguem pouco ou nada ao conceito, porém dão sabor, cor, vida, calor humano ao diálogo. Através do diálogo temos que refletir o esta-do de ânimo dos personagens, sua tristeza, sua alegria, seu abatimento, sua esperança; a relação que estão estabelecendo uns com os outros, o prazer que lhes dá encontrar-se e conversar; enfim, tudo o que caracte-riza seu selo peculiar à comunicação oral humana. Como no rádio não podemos ver os personagens, essas nuances do diálogo tem que suprir o que, muitas vezes, na realidade as pessoas não expressam com palavras, e sim com gestos.

329Produção de Programas de Rádio

Não vacile em entregar-se por momentos, quando a cena se presta, a um certo lirismo, a um certo voo poético. Sempre dentro da simplicida-de de um vocabulário coloquial, sem rebuscamentos, imprima beleza a seu diálogo. A qualidade literária – já dissemos – não precisa ser oposta à simplicidade. E seus ouvintes – não tenha dúvida – merecem e sabe-rão apreciar essa qualidade.

O ritmo dramático. Acima de tudo, as cenas, os diálogos, o radiodrama todo, tem que ter essa qualidade, difícil de definir, algo indescritível, que chamamos de “ritmo”. Musicalidade. A palavra falada não tem só uma significação: tem também um som, uma musicalidade, uma ressonância afetiva, que deve estar presente em nossos diálogos.

Ritmo não deve confundir-se com velocidade. Em uma obra musical, há movimentos rápidos (ligeiro, alegre) e movimentos lentos (adágio). Porém, todos tem seu ritmo. Nossas cenas serão, umas intensas, e então os diálogos serão curtos, incisivos – uma espécie de pingue-pongue ver-bal; outras mais lentas, com falas mais longas e pausadas; porém umas e outras devem ter seu próprio ritmo, sua forma, sua estrutura.

Quando as frases são duras, disformes, quando estão construídas sem naturalidade e sem ritmo, os atores não podem dizê-las bem, não sabem como dizê-las. Queixam-se frequentemente, então: “Não tenho onde me basear para dizer isto; esta fala é irreal”. Dê apoio aos atores para que possam interpretar o diálogo com força, com expressão e natu-ralidade. É, fundamentalmente, uma questão de ouvido.

Um dos segredos do ritmo é a fluidez do diálogo. As frases dos di-ferentes personagens, na conversação, devem encadear-se entre si de modo que a intervenção de um suscite a réplica do outro. Uma vez mais, para obter isto é essencial entregar-se aos personagens em ação, identifi-car-se com as suas personalidades, e escrever escutando-os.

Os “coros”. Outro pequeno detalhe com respeito ao diálogo. Em cenas de conjunto (gente que comenta, que protesta, se manifesta, que celebra uma festa etc.), nem tudo o que diz essa multidão, se ouvirá claramente. No jargão do radioteatro, a esse texto ad libitum que se ouve em vozes distintas para dar a sensação de conjunto, se chama “coro”.

No entanto, mesmo que não se ouçam suas palavras, é muito conve-niente que você indique no roteiro, algumas frases que os atores deve-

330 Mario Kaplún

riam dizer no momento; ao menos, algo aproximado. Oriente os atores, proporcionando-lhes algumas pistas, algumas frases modelo. Caso con-trário, corre-se o perigo de que o coro soe demasiado claramente como um bru-bru-bru pouco convincente; ou que, por desorientação, digam frases que, embora não se consiga entender claramente, sejam notadas pela inflexão que não corresponde a tal situação dramática e resultem como contraditórias, ou impróprias.

A música, os sons Dedicamos todo um Capítulo 6 a esses recursos, o que nos exime de

reiterar aqui o que já foi exposto. Basta que lembremos que é precisa-mente no radioteatro onde a música e os sons exercem todo seu valor expressivo, toda a sua força de imagens auditivas. Um radiodrama que não os utilize, será como um quadro sem cor.

O FinalComo vamos terminar nossa peça? Um radiodrama tem que ter um

final, uma conclusão, uma culminância.A primeira coisa que devemos ter em conta a esse respeito, é que

essa conclusão tem que surgir da própria ação, ser sugerida por ela sem necessidade de que um personagem a explicite discursivamente.

Em segundo lugar, devemos levar em conta que há vários tipos possíveis de final. Um pode ser a solução do problema colocado. Por exemplo, o personagem (ou o grupo) resolve o dilema e opta, toma uma decisão; ou o antagonista compreende seu erro e muda de atitude, pro-duzindo uma reconciliação. Quando nossa história necessita de uma solução final para que a mensagem fique explicitada, damos-lhe um de-senlace positivo: ele forma parte da ideia que queríamos comunicar, do exemplo de conduta que nos propusemos a apresentar47.

Em outros casos, sentimos que seria falso e pouco verossímil que esse desenlace positivo se produza tão rapidamente: as pessoas nem sempre mudam – nem podem mudar subitamente, soaria como uma conversão milagrosa. Então, apontamos para esse final, insinuamos como próximo, como possível. O antagonista reconhece seu erro e diz,

47 Cf. exemplos de uma solução positiva como resultado de uma evolução: Proceso a los quietos, cap.10 a 12 de Jurado no 13; Cartas de Cerro María, cap. 30 de Padre Vicente.

331Produção de Programas de Rádio

por exemplo: “Estou tão confuso...me dá um tempo, me deixa refletir”. E o ouvinte ficará com o esperançoso sentimento de que o personagem finalmente, mais adiante, mudará de atitude. Digamos que isto seja um semi-desenlace48.

Outro desenlace parcial pode ser aquele em que o protagonista (ou o grupo de protagonistas) toma consciência de sua situação e resolve lutar para mudá-la. O problema em si não foi resolvido; porém agora o perso-nagem vai lutar pela mudança, dando o primeiro passo para resolvê-lo e se empenhando numa luta que pode levar toda a vida (costuma ser um final muito adequado para um problema de tipo social, em que a solução depende de uma mudança profunda, global).

Porém há também outra variante que devemos considerar. “Final” não quer dizer forçadamente “desenlace, solução”. Um radiodrama pode terminar sem que o problema tenha sido solucionado, nem ainda en-caminhado uma solução. Muitas vezes, sentimos que resolvê-lo seria forçado, inverossímil. E além disso, pouco pedagógico: daria ao ouvinte uma fácil catarse, uma cômoda tranquilidade de consciência: “No final tudo deu certo”. Estamos escrevendo um radiodrama provocativo, não uma radionovela comercial com obrigação de final feliz. Nestes casos, talvez o melhor seja deixar o problema como uma interrogação. Ou com questões em suspenso49. Às vezes isto resulta mais pedagógico, mais mobilizador para o ouvinte: inquieta-o, transfere-lhe o problema. No caso do Exemplo 3, não há um desenlace propriamente dito: simples-mente Vicente se informa da verdadeira razão pela qual Barboza teve que deixar o trabalho, e promete ir um dia para contar a Beltrán: “talvez o faça pensar”. Isso é tudo. E contudo, há um final. É um arremate, uma conclusão dramática.

O que queremos dizer é que “final” não equivale necessariamente a “solução”. O que tem que haver sempre é uma culminação, um arre-mate; algo que opere como ponto final do discurso dramático e feche a ação, arredondando a mensagem. Não devemos deixar nosso roteiro

48 Este tipo de semidesenlace pode ser ilustrado por Una mancha de grasa (cap.22) e Órdenes són órdenes (cap. 68) de Padre Vicente.

49 Finais com questões em suspenso: Malas companías (cap. 38), El Dr. Al-meyda está muy ocupado (cap.61), La trampa (cap.63/4) de Padre Vicente; Proceso a un líder (cap.55 a 57) de Jurado no 13. Este último pode servir também para ilustrar o uso de vozes e coros em cenas conjuntas.

332 Mario Kaplún

“pendurado”, e terminá-lo de qualquer maneira e em qualquer parte. O que acontece na última cena e o ritmo com que ela transcorre, de-vem marcar claramente o final do radiodrama. Porém não significa que em todos os casos devamos dar uma solução ao conflito apresentado. Isto depende da possibilidade, da probabilidade dessa solução; e do que consideramos mais eficaz pedagogicamente. Devemos eleger o final em função da mesma situação e em função do ouvinte, nosso destinatário, em quem nos propusemos a despertar um processo de reflexão.

Um Último Conselho De tudo que foi dito, o leitor terá percebido que o radiodrama não é

um gênero fácil. Há principiantes particularmente dotados que o domi-nam quase desde o início; porém não é o mais comum. Em geral, exige prática, exercício. Talvez seja conveniente, antes de abordá-lo, transitar primeiro em outros formatos mais simples. Uma vez adquirido certo domínio das técnicas radiofônicas, poderá enfrentá-lo com mais segu-rança e possibilidade de êxito.

E, quando comece a experimentá-lo, talvez seja conveniente come-çar, não com argumentos da sua própria cabeça, mas sim com adapta-ções. Comece adaptando ao radiodrama, contos da literatura nacional e universal. Contos de bons escritores. Primeiro, alguns contos que te-nham muito diálogo; depois outros pouco ou nada dialogados, que lhe exijam criar totalmente as falas. Passe depois a encenar episódios histó-ricos, crônicas jornalísticas; dramatize por último fatos reais que você tenha presenciado ou que tenham lhe contado. Por fim, lance-se a criar radiodramas sobre temas imaginários. Tendo sempre presente que uma história não vale a pena ser escrita se não ilustra um conteúdo; e que, por sua vez, um conteúdo necessita de uma história interessante, vívida, humana, e personagens de carne e osso.

Levará um tempo e lhe custará algum esforço para dominar o for-mato. Porém é um tempo e um esforço que valem a pena. Terá adqui-rido um instrumento de expressão de estupendas possibilidades para fazer um bom trabalho de educação popular.

333Produção de Programas de Rádio

Parte IV

A realização

334 Mario Kaplún

Capítulo

15

Frente ao microfone

Já está escrito no roteiro. Agora temos que “colocá-lo no ar”, isto é, dirigi-lo: converter o texto em vozes e sons, os signos escritos em sinais auditivos.

Uma boa direção é quase tão importante e decisiva quanto um bom roteiro. Todo o esforço realizado para conseguir um roteiro pedagogi-camente eficaz, um texto criativo, natural, comunicativo, pode ficar em grande parte arruinado se for dirigido de forma burocrática, inexpres-siva, ou ainda descuidada e negligente; ou talvez viciada pela afetação e grandiloquência.

Por isto, devemos ter tanto esmero e preocupação com a colocação no ar, quanto tivemos na elaboração do roteiro.

1. O estúdio de rádio

Vamos começar por familiarizar-nos com o lugar em que vamos tra-balhar: o estúdio de rádio.

Ou, mais propriamente, o estúdio de gravações. Na verdade, qua-se não existem programas (exceto informativos, de bate-papo, musi-cais simples etc.) que vão diretamente ao ar, “ao vivo”. Quase todos são gravados previamente. A experiência tem mostrado as vantagens desse procedimento. Em primeiro lugar, ele permite corrigir os erros e defei-tos – quase inevitáveis em toda produção – e conseguir um resultado fi-nal satisfatório: quando algo dá errado, pausa-se a gravação e excluímos o trecho defeituoso para refazê-lo.

335Produção de Programas de Rádio

E, em segundo lugar, há algumas montagens complexas que não é possível fazer diretamente no ar porque não há tempo para ir mis-turando e regulando os distintos elementos, o que só se viabiliza pela gravação. Ganha-se assim em qualidade, em riqueza de expressão, em possibilidade técnicas.

Por outro lado, atualmente, muitos programas são produzidos para serem difundidos por várias emissoras, o que leva à prática de gravá-los para depois distribuí-los. Cada vez mais em maior escala no mundo do rádio diferenciam-se dois campos: por um lado, as emissoras que trans-mitem; pelo outro, os centros de produção, que realizam e fornecem programas.

Daí que, no que resta deste livro, ao nos referirmos ao processo de produção, daremos por entendido que se tratam de programas previa-mente gravados. Não obstante, a maior parte das noções práticas que se incluirão, aplicam-se igualmente aos transmitidos ao vivo.

Um estúdio se compõe de dois compartimentos, cada um com sua entrada independente: a sala – ou estúdio propriamente dito – e a cabi-ne, a qual também costuma chamar-se técnica ou cabine de controle. O estúdio é a sala onde estão os microfones e onde se situam os que vão fa-lar; na cabine se encontram os aparelhos e aí se situa o técnico operador de programa. Pode-se dizer que o estúdio é a área “humana” e a cabine é área “mecânica” ou “técnica”.

A comunicação visual entre os compartimentos acontece mediante uma grande janela que permite a visibilidade recíproca. Para que não vazem ou se infiltrem na gravação ruídos procedentes da cabine, esta janela tem vidro duplo, ou às vezes triplo.

O Estúdio O básico de um estúdio é um bom isolamento acústico. Não deve

infiltrar-se nenhum ruído proveniente do exterior. Mesmo os ruídos aparentemente pequenos – uma buzina distante, um grito da rua – dis-traem o ouvinte e perturbam sua atenção e concentração; e, se tratando de um radiodrama, rompem o realismo e afastam a escuta da situação. Por outro lado, por mais fraco que seja um ruído, os sensíveis micro-fones modernos o captam e amplificam. Daí que as paredes do estú-dio estejam revestidas de materiais isolantes, a porta seja maciça e seu fechamento hermético. É muito comum inclusive que, para assegurar

336 Mario Kaplún

maior isolamento, haja uma primeira e uma segunda porta. É claro, não há janelas abertas ao exterior.

Além do profundo silêncio, outra coisa que nos chama a atenção ao entrar num estúdio, é que as vozes soam diferentes: mais surdas e apaga-das. Não ressoam como em um ambiente comum. Com efeito, ao cons-truir um estúdio, é necessário tratar acusticamente com revestimentos e cortinas que absorvam o som, de modo a eliminar ressonâncias, re-verberação e atenuar o brilho da voz. O piso é silencioso: de carpete ou de material macio e absorvente, de modo que os passos sejam pouco audíveis.

Ao não ter janelas, a renovação do ar requer instalações mecânicas, que devem ser de um tipo especial, silencioso. Os condicionadores de ar comuns produzem um zumbido incompatível com a gravação. Obviamente, a proibição de fumar é absoluta: nesse recinto hermético, o tabaco muda instantaneamente o ambiente.

A iluminação é, claro, artificial. Outra das exigências de um estúdio é uma boa iluminação, que projete em todo o âmbito da sala uma luz clara, abundante e sem sombras sobre os roteiros dos intérpretes. Eles precisam poder ler bem, sem esforço: caso contrário, a insegurança e a fadiga visual os deixará nervosos e os fará errar continuamente.

Equipamento de estúdio. Basicamente, o equipamento de estúdio con-siste nos microfones. Pelo menos dois; em estúdios maiores encontra-mos três e até quatro ou cinco. No radiodrama, um dos microfones, co-locado numa altura baixa, é destinado ao contrarregra, para os efeitos, enquanto os outros são para os intérpretes.50

Normalmente, em frente a cada microfone podem ficar até duas pes-soas, para que suas vozes sejam bem audíveis. Na maioria das vezes, os microfones podem ser operados bidirecionalmente, de modo que tomem ambos os lados e permitam captar três ou mais vozes, porém quando se opera com vários microfones a interação entre eles produz efeitos não desejáveis; daí ser preferível utilizá-los em forma unidirecio-nal, frontal, caso em que só é possível situar um intérprete ou no máxi-mo dois simultaneamente, um ao lado do outro. Isso explica que em um

50 Atualmente a figura do contrarregra – profissional que produzia ruídos ao vivo com diversos instrumentos – está praticamente extinta na produção radiofônica, que o substitui por efeitos eletrônicos [Nota da tradução].

337Produção de Programas de Rádio

radiodrama, onde podem intervir às vezes numa mesma cena quatro ou mais atores além do narrador e as vozes de apoio, precisamos pelo me-nos de dois microfones e, em certas ocasiões, três ou quatro. Sem contar o microfone do contrarregra.

Junto aos microfones, se encontram vários pedestais para que os ato-res possam apoiar seus roteiros, liberando suas mãos.

Para permitir a intercomunicação auditiva com a cabine, há uma cai-xa de som instalada. Por esta, pode-se ouvir a voz do diretor e do técnico transmitindo indicações e instruções; quando necessário, podem sair também por ele uma passagem da gravação, uma música etc., proce-dentes da cabine. Porém esta caixa de som deve permanecer silenciosa enquanto se grava, porque caso contrário será produzida microfonia.

Outra forma de intercomunicação auditiva consiste em um timbre surdo (campainha) que o operador toca como prevenção, para estabe-lecer silêncio absoluto na sala antes de começar a gravar e, já durante a gravação, para que os intérpretes parem e não continuem lendo (por exemplo, quando algo deu errado e é preciso regravar).

Alguns estúdios estão equipados também com um tabuleiro de si-nais luminosos; a luz vermelha indica “silêncio, não deve falar agora”, quando se acende a luz verde, ela indica “microfone aberto, agora deve começar a falar”.

Outros implementos que geralmente encontra-se em um estúdio, são biombos ou telas, de teto acústico absorvente ao ruído, que permi-tam isolar um microfone do outro, evitando desse modo a sua interação. Esses painéis isolantes estão montados sobre rodas, portáteis para que possamos situá-los onde melhor convenha a cada gravação.

Em alguns estúdios encontramos também uma pequena caixa ou cabine revestida de teto acústico, onde podemos colocar um narrador que se deseja isolar do ambiente geral (na gravação da série Jurado nº 13, o relator foi colocado em uma cabine deste tipo). Dentro dela, se coloca um microfone; de modo que se torne um mini-estúdio dentro do estúdio. Com pequenas janelas de vidro para que o narrador possa ver o estúdio e os sinais que lhe são feitos; e, às vezes, um jogo de luzes para sinalizar que está conectado à cabine de controle.

O equipamento do estúdio se completa com os acessórios utiliza-dos para a produção de efeitos de som ao vivo, que descreveremos num capítulo posterior.

338 Mario Kaplún

A CabinePassemos agora a examinar a cabine de controle.51

A mesa de áudio. A mesa de áudio é a alma da equipe da produção da rádio. Dela se controla tudo; tudo passa por ela.

Cada microfone está conectado à mesa por seu próprio canal de en-trada, o que permite regular independentemente seu volume. Nas mesas mais completas, também a tonalidade (equalização) pode ser regulada de forma independente, dando a cada microfone seu próprio tom, mais grave ou mais agudo. Inclusive sua própria proporção de eco ou res-sonância (em outras mesas, a equalização ou regulação de tonalidade é possível, porém afeta todos os microfones ao mesmo tempo; e o eco ou ressonância operam simultaneamente para todos os microfones que estão abertos nesse momento).

Também estão conectados à mesa os gravadores e os toca-discos; en-fim, todas as distintas fontes de som. Porém, a função da mesa vai além: não somente mistura os sons procedentes de microfones, toca-discos e gravadores, mas ainda nivela, equilibra as vozes e os sons e dimensiona seu volume relativo. Permite efetuar também todo tipo de transcrições: de disco para fita, de um gravador de fita a outro, de um gravador de cassete a outro de fita de rolo.52

Para controlar a intensidade dos volumes, a mesa está equipada com um dial de medição de agulha oscilante, chamado vu meter53. A agulha não deve jamais chegar a zona vermelha situada a direita do dial: Isso indica que o volume está excessivamente intenso, que o som está saindo distorcido ou deformado. Neste caso se diz que a gravação está saturan-do ou distorcendo: é preciso baixar o volume do microfone correspon-dente, ou da fonte de som. Porém se a agulha apenas oscila e se mantém o tempo todo no setor esquerdo do dial, isso significa que o som está chegando muito fraco e resultará pouco ou nada audível: É necessário

51 O autor descreve uma cabine típica da década de 1970. O texto original foi mantido aqui como registro histórico, e as notas de rodapé inseridas nesta edição brasileira procuram comparar a descrição com a situação tecnoló-gica vigente em 2017 [Nota da tradução].

52 Nos estúdios contemporâneos, os computadores são a principal fonte de sons e também o equipamento utilizado para gravá-los e armazená-los [Nota da tradução].

53 Hoje os VU’s são, em sua maioria, digitais [Nota da tradução].

339Produção de Programas de Rádio

levantar o volume. Conseguimos um volume correto quando a agulha se movimenta à direita do dial, sem entrar no setor vermelho.

A mesa está conectada também em seus canais de saída a uma ou duas caixas de som situadas na cabine, chamadas monitores, que permi-tem escutar a gravação enquanto esta se realiza. O técnico costuma co-locá-las a um volume bastante alto, para assim poder perceber pequenos ruídos que podem infiltrar-se na gravação, ou imperfeições mais leves. Também como componente da mesa, funciona um intercomunicador ou microfone de ordens, conectado ao altofalante do estúdio, mediante o qual se pode falar com os locutores para dar indicações e instruções.54

O toca-discos. Outro importante componente da cabine de controle é o toca-discos55, para reproduzir a música ou os sons gravados nos discos que devem inserir-se na emissão. Toda cabine tem pelo menos um toca discos; as cabines bem equipadas possuem dois e até três. Por isto, estão conectadas por canais de entrada à mesa de áudio.

Os gravadores. Obviamente, todo estúdio de gravação deve possuir um bom gravador de fita de rolo, onde se gravam os programas. Porém um só não basta, já que os gravadores não só funcionam como tais, em po-sição de gravação, para receber e registrar os programas, sendo que são utilizados também, como os toca-discos, como fontes emissoras de som, em posição de play, para fornecer músicas e efeitos sonoros transcritos em fita, assim como também entrevistas, montagens, efeitos especiais e

54 Kaplún não fala do uso de fones de ouvido no estúdio, porque provavel-mente ainda não eram comuns na América Latina quando escreveu o li-vro. Atualmente são obrigatórios para locutores e atores acompanharem as gravações de forma simultânea e receberem instruções da cabine [Nota da tradução].

55 Os toca-discos, que na época descrita pelo autor utilizavam discos de vinil, foram mais tarde substituídos pelos tocadores de CD a laser (compact--disc) e MD (mini-disc) e, mais recentemente, todos eles substituídos pe-los arquivos digitais de áudio de músicas e efeitos armazenados no compu-tador. Eventualmente os estúdios mantém estes equipamentos antigos para o caso de necessitarem usar algum registro sonoro ainda não digitalizado (o que é cada vez mais raro). Em 2017, os discos de vinil voltaram a ser produzidos em grande escala, e novos toca-discos estão sendo lançados, diante da insistência de muitos adeptos de que as gravações digitais não os superaram em qualidade de áudio [Nota da tradução].

340 Mario Kaplún

cenas complicadas que são pré-gravadas e depois inseridas na gravação. Para programas de montagem complexa, inclusive dois gravadores nem sempre são suficientes: às vezes são necessários três (um gravando, os outros dois reproduzindo e tocando efeitos, música, montagens etc.).56

Naturalmente, todos os gravadores estão conectados a mesa; e estão por canais de via dupla, de entrada e saída, de modo que a mesa possa enviar a voz e o som a um dos gravadores para que este os registre e possa também receber do mesmo outras passagens pré-gravadas (sons, música, montagens, entrevistas etc.).

As cabines estão equipadas também com um ou dois gravadores de cassete; porém quase sempre a gravação de cassete se edita primeiro, quer dizer, se transcreve à fita de rolo antes de ser utilizada.57

As cartucheiras. Em alguns estúdios, os fundos sonoros gravados não se reproduzem a partir de um disco ou de uma gravação de fita de rolo, mas sim desde um cartucho. Para tal efeito, a cabine está equipada com um aparelho reprodutor de cartuchos, a cartucheira. A vantagem do sis-tema reside em que, enquanto o disco e a gravação em fita tem uma duração limitada com determinada quantidade de minutos, estes car-tuchos são sem fim; quer dizer, giram continuamente, como uma polia. Desse modo, quando precisamos manter um som constante de fundo (tráfego de rua, canto de pássaros, ondas do mar, máquinas de uma fá-brica etc.) durante toda uma longa cena, nunca vamos correr o perigo de ficar sem som antes que a cena finalize.58

56 Nos estúdios contemporâneos, todos os gravadores (inclusive os de cassete e de cartucho, citados a seguir no texto) foram substituídos pelo compu-tador, que assumiu todas as suas funções (gravar, editar, tocar) [Nota da tradução].

57 O gravador cassete (originalmente K-7) foi muito usado em gravações ex-ternas por ser portátil e ter a fita embutida num estojo de plástico, o que facilitava a sua manipulação em movimento. Não possuía, no entanto, a mesma qualidade de som do gravador de rolo, por operar com menor lar-gura de banda [Nota da tradução].

58 O cartucho foi uma evolução do cassete que, além de ser usado como des-creve Kaplún, também poderia ter um fim e início demarcado num ponto, com a vantagem sobre as tecnologias anteriores da fita parar sempre neste mesmo ponto e não ser preciso procurá-lo antes de tocar (como acontecia com os discos, rolos e cassetes). Durante os últimos anos da era analógica dos estúdios, foi a forma mais prática encontrada de armazenar e reprodu-

341Produção de Programas de Rádio

Disposição da cabine. Geralmente, os equipamentos estão dispostos em forma de U: ao centro, apoiada sobre a janela que dá para o estúdio, a mesa de controle; a um lado os toca discos, e a cartucheira e do outro lado a bateria de gravadores. Desse modo, o técnico operador, sentado em frente aos comandos da mesa, de cara para a janela e sentado numa cadeira giratória com rodas, tem todo o equipamento ao alcance da suas mãos; e ao mesmo tempo controla os deslocamentos dos intérpretes no estúdio, e abre e fecha os microfones conforme a necessidade.

Os gravadores estão mais distantes, porém a mesa tem comandos de controle remoto que permitem operá-los desde lá: colocá-los em mar-cha e detê-los à distância e inclusive avançar e retroceder a fita.59

Mais difícil é determinar onde deve se colocar o diretor. Na maior parte das cabines não está previsto um lugar para ele. Toda a largura da janela costuma ser ocupada pelos equipamentos, de modo que só o técnico tem uma visão cômoda do estúdio e é visto facilmente pelos intérpretes. Ao diretor não lhe resta outro recurso que situar-se de pé atrás do técnico, com grande incômodo para ambos. Conhecemos al-gumas cabines bem desenhadas, com janela ampla, que permitem ao diretor situar-se comodamente em frente dela, de um lado da mesa e, desse modo, ver e ser visto. Inclusive em algumas cabines se instala uma pequena mesa e uma cadeira reservada ao diretor, de modo que este pode dirigir sentado e tem onde apoiar seu roteiro e papel para anotar suas observações durante o ensaio.

A audição de conjunto Se o leitor seguiu com alguma atenção esta descrição, não será difícil

entender que o verdadeiro programa de rádio não se faz no estúdio, mas sim na cabine. No estúdio, só ouvimos a voz dos atuantes; e mesmo assim, fraca, apagada, sem realce. Na cabine, essa mesma voz, recolhida através do microfone e amplificado e equalizada na mesa, soa completa-

zir gravações, tendo enorme utilidade nas emissoras de rádio para arquivar e tocar vinhetas, músicas, comerciais e reportagens já editadas [Nota da tradução].

59 Nos estúdios contemporâneos a disposição é semelhante, feita a atualiza-ção dos equipamentos (mouses e teclados substituem os controle remotos, e o operador monitora as telas dos computadores ao mesmo tempo que a janela do estúdio) [Nota da tradução].

342 Mario Kaplún

mente diferente: adquire presença, matizes e ressonâncias que no estú-dio não se percebem. E, além disso, se soma às vozes toda a decoração sonora: a música, os efeitos, as montagens etc.

Por isso o diretor fica na cabine. E por isso também, se você quiser aprender rádio, não cometa o erro, frequente nas escolas, de acompa-nhar a gravação dentro do estúdio. Deixará de aproveitar a oportuni-dade de aprendizado. Procure uma cópia do roteiro que será gravado e acompanhe o trabalho da direção na cabine: escute como saem as vozes e os efeitos, observe a atuação do diretor, veja como o técnico insere a música, mistura os sons e ouça o resultado final. Desse modo aprenderá mais.

2. O equipamento humano

Agora que se conhece brevemente o equipamento técnico necessário para uma produção de rádio, vejamos o equipamento humano; ou seja, o pessoal requerido para realizar um programa e as distintas funções que devem ser preenchidas. Falamos de funções mais do que de pessoas porque, como se verá a seguir, uma mesma pessoa pode assumir mais de uma função.

Vejamos agora as tarefas a cumprir:

1. O roteiro (a cargo do escritor ou roteirista).2. Cópia do roteiro: datilografia, revisão e correção da cópia, tira-

gem das cópias em mimeógrafo numa copiadora.60 3. A direção (a cargo do diretor)4. A musicalização: seleção das cortinas e fundos musicais (tarefa

do programador musical ou sonoplasta).5. A atuação, a cargo dos intérpretes: locutores, atores; eventual-

mente vozes de apoio para as cenas em conjunto.6. A gravação, edição e mistura de sons, a cargo do operador téc-

nico.

60 Em 2017 as cópias do roteiro são digitadas no computador e impressas, ou lidas na própria tela [Nota da tradução].

343Produção de Programas de Rádio

7. Os efeitos sonoros produzidos no estúdio, a cargo do contrar-regra.

8. A cronometragem ou medição do tempo, a cargo do assistente. Como já explicado, algumas funções podem concentrar-se: (1-3) a direção pode ser assumida pelo roteirista. Se este está capa-

citado para a tarefa de diretor e tem tempo para isso, ninguém mais indicado para dirigir o programa do que ele que o concebeu e escreveu e sabe o que quer de cada fala, de cada entrada musical.

(4-3) ou (4-6). A musicalização pode ser encomendada como tare-fa exclusiva a um colaborador, ou ser realizada pelo próprio diretor ou pelo operador técnico.

(7-5). Se os efeitos de som que devem produzir-se ao vivo no es-túdio são muitos e complicados, é necessário ter um contrarregra na sala; porém se são simples e não muito numerosos (portas, passos etc.), podem encarregar-se deles os próprios atores que no momento não in-tervenham na ação.

(8-3) ou (8-6). Se o programa deve ajustar-se a um limite de tem-po muito estrito e em se tratando de um programa complexo em que o diretor e o técnico devem concentrar-se em sua tarefa e não podem atender funções acessórias, será preciso contar com um assistente cro-nometrista. Porém, se o tempo não está limitado a uma duração exata e se o programa é relativamente simples, o técnico ou o diretor podem encarregar-se de medi-lo.

(5). Também veremos que, na atuação, a distribuição de vozes ou elenco admite às vezes algumas reduções: em certos casos um mesmo ator pode cobrir dois personagens. Nas reportagens, como já foi expli-cado, basta um pequeno elenco para preencher a distribuição de vários personagens.

Entretanto, é preciso indicar também que nem todas as fusões são convenientes. Concretamente, é totalmente desaconselhável a fórmu-la (3-5): na qual o diretor atue e assuma ao mesmo tempo a tarefa de diretor e a de intérprete (narrador ou ator). O diretor tem que estar na cabine, atento ao conjunto, ao todo. Sua função é incompatível com a de intérprete. No máximo, pode designar-se alguma pequena intervenção isolada que possa ser gravada previamente.

344 Mario Kaplún

3. Técnica do microfone

Antes de expor o processo de produção, que será matéria dos pró-ximos capítulos, temos que conhecer os princípios da emissão da voz diante do microfone, e as normas básicas da atuação radiofônica.

A emissão da vozPoucas pessoas impostam bem a voz; poucas a possuem naturalmen-

te bem impostada. Entretanto, quase todas as vozes podem ser melhora-das se forem educadas.

Faça o teste de soar uma corda de violão fora do instrumento: só ouvirá um som opaco e seco, sem os harmônicos, sem ressonância. Já colocada no violão, a mesma corda soa completamente diferente: é que agora a caixa de ressonância que está no violão faz com que a vibração adquira amplitude e clareza. O mesmo acontece com a voz humana. A mera vibração das cordas vocais na garganta só produz um som pobre, sem cor. É obrigatório que a voz ressoe. Toda nossa estrutura facial é uma caixa acústica que devemos fazer ressoar ao falar. A voz não tem que vir diretamente da garganta, sem antes passar primeiro pela parte anterior do paladar e, sobretudo, pelos seios nasais, buracos ósseos si-tuados por cima do maxilar superior.

A voz radiofônica é uma voz impostada, isto é, exercitada para uma emissão com ressonância. Isso lhe dá esta “pastosidade” que caracteriza as vozes que costumam ser chamadas de microfônicas. E além de tudo permite falar um longo tempo sem cansar e sem afetar a laringe e as cor-das vocais. Convém que as pessoas de seu elenco façam algumas aulas de impostação e inclusive consultem um fonoaudiólogo para adquirir a técnica da emissão vocal.

É preciso aprender a controlar e evitar pigarros, tosses e espirros. E, quando não dá para reprimir, o indicado é distanciar-se o quanto for possível do microfone, virar-se de costas para ele e amortizar o ruído com um lenço.

Como norma geral, pelo rádio não se deve falar gritando. O rádio bane os que gritam: o microfone não reproduz a voz, ele a amplifica.

Respiração. Uma boa respiração é essencial. Todo radialista deve apren-der a respirar bem, pois disso depende em grande medida a emissão da voz.

345Produção de Programas de Rádio

É comum que “fiquemos sem ar”, que nos afoguemos ao final de uma frase, ou que tenhamos ao menos que diminuir o volume, faltando força e convicção às palavras finais, que são talvez as mais importantes da oração. Isso se deve porque respiramos com o peito, utilizando somente a cavidade do tórax, que é reduzida e na qual armazenamos pouco ar.

O radialista deve fazer exercícios respiratórios e aprender a técnica para respirar com o abdômen e com o diafragma. Este músculo, que separa a cavidade abdominal da torácica, controla em grande parte o processo de uma boa respiração. A respiração profunda e completa é a que preenche totalmente os pulmões fazendo comprimir o diafragma e dilatando o abdômen e as costelas. Desta forma é possível armazenar em cada inalação uma maior quantidade de ar.

É importante respirar sempre pelo nariz, nunca pela boca aberta. A respiração em rádio deve ser silenciosa: o microfone amplifica a respiração ruidosa, transmitindo uma impressão muito desagradável.

Locutores e atores devem aprender também a administrar bem a sua respiração: aproveitar todas as pausas do texto, por breves que sejam, para tomar suave e rapidamente um pouco de ar e manter assim sempre uma reserva nos pulmões.

A posição do corpo. Convém atuar mais de pé ou sentado? De pé se emite melhor a voz, respira-se melhor e se dá mais expressividade ao texto; porém alguns correm o perigo de tender à declamação e às ênfa-ses. Sentados ante uma mesa, podemos ser mais íntimos e coloquiais e temos mais comodidade para mexer anotações, livros, papéis etc. Porém a voz não sai tão “cheia”. Cada um deve buscar sua melhor posição.

Tanto de pé como sentado, devemos manter diante do microfone uma posição ereta. Isto ajuda a respiração. Porém não se deve entender posição ereta como rígida e tensa. A posição deve ser relaxada, descan-sada, sem armaduras na nuca, no pescoço ou no torso. A atitude é a de quem está conversando tranquilamente. O bom radialista ganha muito se conhece as técnicas da relaxação muscular (relax).

O uso do microfone É um fato que o microfone assusta e deixa nervoso a quase todo o

mundo, mesmo se tratando de um experiente ator teatral ou de alguém muito acostumado a falar em público. O diretor deve contar sempre

346 Mario Kaplún

com a falta de intimidade com o microfone dos novatos, que só se con-segue superar depois de várias atuações. Por melhor voz que tenha e por melhor intérprete que seja, nunca confie um papel importante a um estreante no rádio.

Presença. Se você dirige programa de rádio, e sobretudo se este tem uma finalidade educativa, não se contente apenas que as vozes saiam audíveis, que se escutem as palavras e que a agulha do VU registre o volume correto. É necessário algo mais: que as vozes tenham corpo, cor, calor, plenitude; isso que em rádio se chama “presença”. Um primeiro plano definido, completo, que chegue ao ouvinte sem esforço e facilite uma atenção constante. Salvo em casos especiais, indicados pelo roteiro, em que uma voz deve ouvir-se afastada, é preciso cuidar e manter per-manentemente uma forte presença das vozes. Esta presença se consegue pela forma com que o intérprete emite sua voz e, sobretudo, por sua correta e cuidadosa colocação diante do microfone.

Colocação diante do microfone. A que distância do microfone deve-mos nos colocar? A mais curta possível, sempre que não “sature” nem se ouça excessivamente a respiração. Geralmente, uma distância de vinte centímetros é a conveniente; porém isso varia segundo o volume indivi-dual de cada voz. Se a voz é particularmente forte, devemos nos colocar um pouco mais para trás; se é fraca, algo mais para frente. O intérprete não deve forçar a voz falando mais alto ou mais baixo que habitualmen-te, porque não poderá manter esse esforço durante toda a gravação e, sem notar, retornará a seu volume normal.

Antes de iniciar a gravação, o técnico faz um teste de vozes: mede a voz de cada intérprete e indica a cada um a distância que deve colocar-se para que sua voz, falando em um volume normal, dê um bom resultado. A partir desse momento, todos devem manter-se nesta posição.

Se chegarem muito perto – tendência generalizada entre os inexpe-rientes que acham que assim se saem melhor e chegam quase a beijar o microfone, o resultado é uma voz deformada, que satura a gravação; se afastam-se perdem presença e tem que falar mais forte, gastando ener-gia inutilmente e cansando-se. Os microfones modernos, de alta sensi-bilidade, captam esplendidamente em primeiro plano, porém quando se vira a cabeça ou se afasta um pouco da distância ideal, a voz sai pro-nunciadamente distante.

347Produção de Programas de Rádio

Nunca devemos nos colocar diretamente de frente ao microfone, pois certas consoantes sairão batidas como estalos e os esses soarão si-bilantes; porém tampouco excessivamente de lado. A posição correta é a de meio perfil. Dito de outro modo: não podemos falar dentro do microfone, em cima dele, mas sim um pouco de lado.

Não se deve movimentar a cabeça de um lado para o outro – tendên-cia muito frequente entre os atores de teatro que, quando fazem rádio, gesticulam e se movem – porque isso desequilibra o nível da voz. A boca deve ser mantida a uma distância constante do microfone.

Ao falar, é necessário falar ao microfone e não ao papel. Se olhamos de frente para o roteiro, a voz ficará opaca e perderá presença, pois o papel absorve os matizes brilhantes da voz. Daí também a importância do ensaio e de estar familiarizado com o texto, para poder falar com soltura, olhando para o microfone, sem estar “colado” ao roteiro. Por esse mesmo motivo, é preciso segurar o roteiro na vertical, frente ao rosto. Ou, melhor ainda, quando transmitimos de pé, ter o roteiro numa estante, ao lado do microfone.

Como representar os planos sonoros com a voz. Descidas e elevações da voz devem ser compensadas com aproximações e afastamentos do microfone. Assim, quando a situação dramática exige falar em voz mui-to baixa ou em sussurro, o ator deve avançar um passo e, mantendo sempre sua colocação um pouco de lado, sussurrar articulando bem e cuidando para suavizar as consoantes explosivas.

No entanto, em uma cena intensa, tal como em uma discussão, em que há a necessidade de falar alto, deve-se retroceder um ou dois passos. Se, por exigência do roteiro, o intérprete precise gritar, deve afastar-se um tanto do microfone e colocar-se a 45 graus. E se tem que dar a im-pressão de que está gritando de longe, em segundo plano, afasta-se um metro ou um metro e meio e gira o corpo 90 graus.

Quando o roteiro indica “aproximando-se”, o ator se aproxima len-tamente a uma distância de 2 metros, sempre de frente para o micro-fone, falando enquanto se aproxima. Desse modo, se dá a impressão auditiva de que o personagem está entrando no lugar onde se situa a cena e aproximando-se de seu interlocutor. Geralmente, para acentuar essa impressão, agrega-se ao mesmo tempo o som de passos que se aproximam.

348 Mario Kaplún

Se o roteiro indica “afastando-se”, o intérprete fala caminhando len-tamente para trás, porém sempre de cara para o microfone. Assim se dá a impressão de que o personagem está indo, ou de que o microfone se afasta dele.

Não é preciso afastar-se tanto como na realidade: os microfones mo-dernos tendem a acentuar a impressão da distância. Para dar a sensação de que está a quatro metros, não é preciso afastar-se mais do que um ou dois.

O microfone, um amplificador. Como regra básica da atuação radio-fônica é preciso ter sempre presente de que o microfone não é um mero reprodutor. Amplifica. É como a lente de aumento. Não é seletivo como o ouvido humano: registra tudo. Qualquer pequeno ruído se amplia, qualquer erro aparece em primeiro plano. O movimento das folhas do roteiro ao virar a página soa como o crepitar de um incêndio. A ínfi-ma batidinha de uma dentadura postiça dentro da boca, inaudível na conversação comum, por incrível que pareça é registrada. Esta hiper-sensibilidade do microfone abre grandes possibilidades na direção ra-diofônica se souber aproveitá-la; porém impõe também muito cuidado na produção.

Não se deve tocar nem raspar o microfone de forma alguma; um ligeiro toque com o dedo ou com o lápis soa como um grande estrondo.

Faz-se necessário especial cuidado nas consoantes que “batem”, como: p, v, b, t, d, f. O leve golpe no ar que produzimos com os lábios ao pro-nunciá-las, amplificado pelo microfone, soa como uma pequena explo-são (se chama “puf de microfone”). É preciso emiti-las com suavidade e, sobretudo, cuidar para não pronunciá-las muito de frente ao microfone.

O ruído de papéis deve ser radicalmente evitado. Nunca vire as fo-lhas, porque estas estalam. Para poder passar de uma folha a outra, sem virar as páginas, todos devem tirar o grampo ou clips com está prenden-do o roteiro. Já separadas as folhas, ao invés de virá-las, levanta-se cada folha levemente, e se desliza sobre a seguinte. Depois, com cuidado, ra-pidamente e sem ruído, coloca-se a folha já lida por baixo das outras.

A dicção Poucas são as pessoas que pronunciam bem, com dicção clara e cor-

reta. Na agitação diária da vida, nos tornamos descuidados e comemos algumas letras, cortamos as palavras, suprimimos sílabas inteiras.

349Produção de Programas de Rádio

O radialista deve praticar até conseguir uma articulação nítida, em que cada letra seja ouvida claramente. A vocalização deve ser cuidadosa; as vogais, emitidas francamente e com movimentos decididos dos lábios e dos músculos da boca, nunca entre dentes. As palavras tem que ser ouvidas claras, distintas, completas, sobretudo as últimas sílabas. Não devemos deixar “cair” a voz ao final das frases.

Velocidade. Quase todos nós falamos normalmente muito rápido, atro-pelando as palavras. Quando falamos no rádio, é preciso ter sempre presente que o que chega pelo ouvido é difícil de ser compreendido; e saber controlar a velocidade. É preciso observar uma certa lentidão, separando bem as palavras, mas que seja natural ao dizer e também sem falar tão lentamente que o resultado seja irritante.

Nas cenas intensas, tais como uma discussão que, por seu caráter, exigem falar com rapidez, devemos cuidar da articulação e a vocalização para que o ouvinte possa entender com clareza o que se está dizendo.

Como norma geral, não devemos correr. Se um roteiro é longo, é pre-ferível cortar algumas frases e dizer um pouco menos, do que pretender ajustá-lo à força ao tempo fixado, à custa de acelerar os intérpretes.

Há diretores que se vangloriam de ter conseguido, “enfiar” um ro-teiro de quinze páginas em vinte e cinco minutos. O único fruto de tal façanha é encher os ouvintes com uma cansativa chuva de palavras, que não entendem nem registram. Um bom diretor contém seus intérpretes: “Não se apressem tanto. Respirem, ocupem seu tempo, façam pausas e as mostrem ao ouvinte”.

A expressãoHá dois riscos a evitar: o primeiro, é o de sermos inexpressivos e

monótonos provocando o aborrecimento da escuta; o outro, é de cair na afetação arrogante e declamatória.

Modulação. O locutor ou ator de rádio deve modular sua voz; fazer com que seus sons sigam uma linha ondulada, mutante, com matizes. Em alguns momentos levantar o tom; em outros baixá-lo. Colocar expressi-vidade e vivacidade na leitura. Se a voz é emitida num tom igual e uni-forme, a mensagem chegará monótona e tediosa. Em rádio não temos a ajuda do gesto: devemos dizer tudo com as inflexões e matizes da voz.

350 Mario Kaplún

Alguns não conseguem ser bons radialistas porque esquecem para quem estão falando. Deixam perceber que estão “sentados” no estúdio e lendo para eles mesmos. Em rádio falamos para pessoas vivas. Devemos tratar de visualizar o nosso interlocutor e falar com ele, para ele, buscan-do transmitir-lhe nossa convicção.

Naturalidade. Porém a expressividade não deve ser confundida com ênfase oratória. A regra geral em rádio é que, mesmo sendo ouvidos por milhares, não falamos para uma multidão nem para uma massa, devemos falar sempre como se nós nos dirigíssemos a uma pessoa só. O tom deve ser coloquial, de conversação. Os textos devem ser lidos sem parecer que são escritos; devemos dar a impressão de que estamos con-versando, falando naturalmente. Não devemos ficar solenes nem fazer discursos.

O bom radialista é aquele que consegue ser expressivo dentro da simplicidade e da naturalidade. No rádio educativo, é necessário erradi-car de vez esses vícios de afetação tão frequentes no rádio comercial (“E agora...!múuusicaaaaaa!..”Escute pela rádio Sensaçãooooo”...”Com vocês ...!Paulinhoooo...Ortegaaaaaa!).

Ainda no radiodrama, os atores que representam uma situação devem adaptar a ênfase ao meio radiofônico: não declamar, não gri-tar como no teatro. Aqui também se aplica a regra de que o microfone atua como uma lente de aumento. O que no teatro soa intenso, no rádio parece grandiloquente, exagerado, falso. É preciso passar os estados de ânimo dentro dos meio tons.

A entonação. A entonação é a curva melódica que nossa voz descreve ao falar uma frase. Ao falar, nossa voz sobe e desce, emite intensidades ascendentes e descendentes, dando expressão sensível às palavras e im-primindo significação; valorizando-as. Todos nós fazemos isto espon-taneamente quando falamos; porém ao ler um texto escrito, como no caso do roteiro de rádio, temos que ser cuidadosos para reconstruir e reproduzir na leitura essas inflexões que nos surgem naturalmente ao falar. A naturalidade da arte interpretativa nunca é espontânea, mas sim produto de uma elaboração, que não se nota, mas existe.

É preciso observar bem a pontuação. Se as palavras se agrupam ca-prichosamente, sem plano, e a oração é dividida com pausas arbitrárias,

351Produção de Programas de Rádio

o seu significado é alterado ou a frase ficará incompreensível e sem sen-tido. Ao ler no rádio, é obrigatório administrar bem as pausas, seguindo com cuidado o sentido lógico de cada vírgula. Respeitar os signos: o ponto final, as reticências, os dois pontos, o ponto e vírgula, as vírgulas. É bom marcar em vermelho as pausas, dando-lhes um signo distinto se-gundo seu valor (isto é, sua duração relativa). Lembrar, por outro lado, que, além das vírgulas gramaticais, a expressão falada precisa introduzir outras pequenas pausas, semivírgulas que poderíamos chamar prosódi-cas. É preciso também marcá-las e fazê-las.

É igualmente importante levar em conta as inflexões. O peso e a força das palavras variam com a inflexão que damos à voz. O sentido todo de uma frase, sua intenção, podem mudar segundo a entonação. É necessário buscar em cada frase a palavra mais significativa, a palavra--força em que devemos colocar ênfase, e sublinhá-la, para que na hora da leitura; sempre dentro da naturalidade, dar a ela o valor central.

Alguns radialistas se valem do recurso de marcar seu roteiro com signos gráficos, que eles mesmos criam ou inventam; que os ajudam a dar uma entonação correta e expressiva. Sublinham as palavras que devem ser destacadas dentro de cada frase; marcam com duas linhas verticais os pontos e com uma as vírgulas, incluídas as não escritas que chamamos de prosódicas. As subidas e descidas da voz são indicadas com setas para cima e para baixo; as passagens planas com uma suave linha ondulada. É bom que as pessoas de seu elenco adquiram também esta prática.

Você, como diretor, deve assumir como função central a de conse-guir de seus narradores e atores uma boa entonação, ao mesmo tempo lógica e expressiva. Quando eles não acertam, você deve corrigi-los, in-dicando como deve ser dita a frase e quais inflexões requer (a isto se chama “marcar” ou “dar o tom”).

Tenha especial cuidado com as frases interrogativas. Umas das coi-sas mais difíceis ao ler e interpretar, é fazer bem as perguntas. Estas saem artificiais, exageradas, forçadas, ou também não saem direito e são ditas como frases afirmativas. Como temos visto, no roteiro de rádio educa-tivo as perguntas adquirem primordial importância. Faça com que seus intérpretes trabalhem muito as interrogações até alcançá-las.

352 Mario Kaplún

Capítulo

16

O processo de produção: a preparação

1. As cópias do roteiro

Este é o primeiro passo do processo de produção: o roteiro original deve ser copiado em quantidade suficiente e qualidade gráfica. Os locu-tores e atores necessitam de cópias bem legíveis para fazer boas locuções ou apresentações dramáticas: uma infinidade de erros de leitura, de tro-peços e de interpretações inexpressivas se devem a roteiros rabiscados com correções, cópias ilegíveis e desorganizadas, que obrigam o locutor ou ator a desviar a atenção da interpretação, para decifrar o que está escrito.

1. Letra grande: utilizar fontes que facilitem a leitura. Evite sempre fontes pequenas;

2. O roteiro deve ser formatado com espaço duplo, as entrelinhas mais largas ajudam a leitura;

3. Deixar uma margem bastante ampla a esquerda da lauda, para que o diretor e o técnico possam fazer as anotações manuscritas necessárias durante os ensaios (“marcar” o roteiro);

4. Atentar para as normas de disposição e diagramação do roteiro, que foram indicados no Capítulo 10;

5. Tal como já foi explicado e dito naquele Capítulo, numerar as linhas em sequência, e na margem esquerda de cada lauda;

6. O redator deve inserir sinais de interrogação (?) e exclamação (!) no início e no final de cada linha, para que os locutores e atores

353Produção de Programas de Rádio

consigam visualizar, com antecipação, as frases interrogativas e exclamativas;

7. É melhor redigir as cópias do roteiro em tamanho A4, que é maior, evitando-se ao máximo a troca de páginas que podem causar ruídos no estúdio.

8. Uma vez digitado, o texto deve ser cuidadosamente revisado e as laudas devem ser numeradas e agrupadas em sequência.

9. Cada ator ou locutor, diretor, técnico de áudio, engenheiro de som, cronometrista e, eventualmente, os extras (vozes de apoio) devem receber cópias individuais do roteiro. Nunca se deve tra-balhar com uma mesma cópia para dois intérpretes, fator que pode contribuir para hesitações e erros de leitura.

10. Havendo opção, procure imprimir o roteiro numa qualidade de papel que faça menos ruído ao ser manipulado.

11. As cópias devem ser feitas de um só lado da folha: lembre-se que no rádio não se deve virar as páginas por causa do ruído.

12. A impressão deve ser intensa, nítida e igual.61

2. A distribuição

A primeira responsabilidade do diretor de uma peça radiofônica é escolher os interpretes e decidir a quem será atribuído cada persona-gem. Cabe a ele estudar cuidadosamente o roteiro e conhecer bem o po-tencial interpretativo de cada participante de seu elenco. Assim, poderá repartir os papéis de tal maneira que as vozes e o temperamento dos atores possam incorporar, do melhor modo possível, as características dos diversos personagens.

Ao mesmo tempo, ele deve ter cuidado com o contraste de vozes, para que durante os diálogos, os timbres de voz ajudem a distinguir cla-

61 No rádio do Século XXI, a tendência é do roteiro ser lido diretamente da tela do computador dentro da cabine técnica e do estúdio e, neste caso, as recomendações devem ser adaptadas ao novo suporte, garantindo a legi-bilidade mais ergonômica possível por todos os envolvidos na produção [Nota da tradução].

354 Mario Kaplún

ramente um personagem do outro. Como em uma ópera, o diretor deve procurar repartir os registros: soprano, mezzo-soprano, contralto, tenor, barítono, baixo. Um diretor experiente sabe fazer a combinação correta de vozes dos atores, dando mais cor a uma peça de rádio.

Se há idosos em um roteiro, é preciso tomar cuidado com quem irá interpretá-los. Um elenco de atores e atrizes jovens fingindo ser idosos, com vozes em falsete ou trêmulas não funciona: o ouvinte nota que é uma simulação grosseira. Se não há idosos em um elenco, o diretor deve procurar, pelo menos, algumas vozes maduras que possam interpretar pessoas velhas, sem que pareça artificial.

Um roteiro com crianças também representa bastante dificuldade para um diretor. Não é fácil conseguir crianças com talento para in-corporar personagens convincentes e naturais. Muitas vezes será pre-ciso utilizar atrizes que consigam simular vozes infantis, um recurso que nem sempre garantirá uma boa interpretação. Algumas delas não conseguem ser convincentes na interpretação de crianças; outras con-seguem representar bem vozes infantis, mas tem dificuldades em ex-pressar a naturalidade dos pequenos, um fator que denuncia que aquele ator não é uma criança. Então, o ideal é que sejam crianças reais a atuar, ainda que leve muito tempo para descobrir pequenos atores talentosos e interessados em aprender a arte de representar.

Se o roteiro utiliza a técnica do narrador-personagem, temos que encontrar um ator ou atriz versátil, que possa simultaneamente relatar e atuar; que seja capaz de desdobrar-se nesse papel duplo, que exige cons-tantes trocas do modo de interpretar.

Para programas do gênero de reportagens, é essencial contar com narradores inteligentes e estudiosos, que saibam “entrar” no assunto e dar sentido ao que estão lendo, utilizando um tom natural, quase uma conversação informal, sem empostação ou afetação. Eles devem ser nar-radores convincentes e também jornalistas bem informados e críticos.

O narrador de um radiodrama deve ser expressivo, capaz de impri-mir certa emoção ao seu relato; contudo, não tanto que o confunda com os atores da trama. Afinal, um narrador realiza a locução de alguns tre-chos de uma história e não é propriamente um ator. Ele não está fora da ação, mas também não está totalmente dentro dela. Um bom narra-dor consegue conciliar alguns recursos narrativos, tanto de um locutor, quanto de um ator, e está numa posição intermediária entre eles.

355Produção de Programas de Rádio

Dupla Interpretação. Como norma geral, nos radiodramas deve haver um ator para cada personagem. A atribuição de mais de um persona-gem para o mesmo intérprete é um procedimento que vai obrigá-lo a trocar constantemente de voz, o que não é recomendável: uma das vozes vai sair forçada. O ouvinte notará o artifício do ator em seus dois papéis, um fator que compromete a naturalidade da interpretação e quebra o realismo da peça.

Contudo, às vezes em um roteiro aparecem personagens episódicos, que apenas dizem poucas frases. Estes podem ser assumidos – “dobra-dos” – por um ator que faz outro papel. Se ambos os personagens apa-recem em cenas bastante distanciadas uma da outra, e além disso o ator contribui com uma troca de voz, então, não haverá perigo disso atrapa-lhar, e pode permitir, às vezes, economizar atores.

Em narrações montadas, como já se viu no Capítulo 13, o recurso da dupla interpretação pode ser utilizado sem muita dificuldade, já que os atores não estão compondo personagens por suas interpretações dra-máticas, mas apenas dando expressão a frases de distintos personagens históricos.

Vozes de apoio. Se no roteiro há cenas de multidão ou de grupos de pessoas, não há que confiar só em efeitos sonoros gravados para con-textualizá-las. O resultado pode ser um fundo artificial, convencional e mecânico. Com discos de efeitos é possível reforçar a cena e dar ao ouvinte a sensação sonora de que ele ouve os ruídos de uma multidão. Entretanto, não é recomendável contar somente com recursos grava-dos, eles devem entrar como reforço apenas. Convém ressaltar, que em situações em que uma multidão está no primeiro plano de um registro sonoro, desfechando uma ação ativa que mistura gritos, aplausos, pala-vras de ordem, palavras de protestos, reações de medo e de desconcerto etc. – nenhum efeito sonoro prévio servirá e será conveniente compor a cena no próprio estúdio.

Quando uma peça dispõe de muitos atores porque há uma grande quantidade de personagens, em algumas cenas sempre haverá atores que não terão participação e poderão ajudar a cobrir essas situações de conjunto. Mas quando o elenco é reduzido, ou se os atores estão ocupa-dos no momento com a representação de seus respectivos personagens, então a figuração deverá ser atribuída a “extras, como acontece no cine-

356 Mario Kaplún

ma: duas, três ou quatro vozes de apoio. Somados aos atores disponíveis e eventualmente reforçados pelos efeitos de sonoplastia, os extras conse-guirão desempenhar satisfatoriamente, no estúdio, o alarido e as reações de uma multidão.

Distribuição dos roteiros

Depois de ser feita a seleção de atores, se distribui aos selecionados as cópias do roteiro, para que eles leiam e estudem a interpretação. Em rádio, existe uma prática inadequada, mas muito generalizada: os atores são agendados para a gravação e somente recebem o roteiro no momen-to em que chegam ao estúdio, o que prejudica na prática a interpretação de suas falas e o domínio dos personagens que irão representar. Isso é totalmente inadequado. Supõe que o ator é um robô que, no próprio momento, sem prévio estudo nem preparação, sem conhecer o roteiro, pode interpretar o papel. Nessas condições, o ator somente consegue improvisar uma interpretação rotineira, mecânica e convencional, me-ramente baseada na experiência do ofício. É inclusive, uma falta de res-peito ao intérprete, é desconsiderar a sua dignidade de ator; é convertê--lo em um robô, em uma máquina de ler e de atuar.

O roteiro deve ser entregue com antecipação, para que cada locutor ou ator o leia, marque, estude e ensaie a interpretação de seu perso-nagem. Todos devem chegar ao estúdio com conhecimento do roteiro: não só da sua parte, mas da totalidade do enredo, para saber como sua interpretação irá se encaixar no conjunto da história.

3. A musicalizaçãoA seleção musical de um programa é de vital importância. Como já

vimos, a música cumpre uma função muito significativa na emissão, lhe imprime clima e caráter. A música comenta, fala, sugere, descreve e suscita imagens auditivas. Se o diretor não se encarrega diretamente da seleção musical, deve ao menos intervir ativamente na definição do repertório. A eleição das inserções musicais não deve ser definida ape-nas pelo critério dos operadores técnicos; é necessário orientar e super-visionar seu trabalho para que ele atenda as características artísticas e estéticas definidas pela direção.

357Produção de Programas de Rádio

O diretor, depois de estudar o roteiro e verificar as necessidades mu-sicais para sua produção, deve se reunir com bastante antecipação com o técnico de som para explicar-lhe os detalhes pensados para cada uma das cortinas sonoras e dos fundos musicais, as funções expressivas que devem desempenhar e quais estilos musicais que serão utilizados na peça. Depois que o técnico de som fizer sua primeira pesquisa e seleção, será preciso uma nova reunião para avaliar a adequação das músicas escolhidas com as necessidades e o padrão que diretor imaginou para aquela produção. A música deverá ser aprovada pelo diretor e se o técni-co apresentou um repertório musical inadequado, ele deverá pedir uma nova pesquisa. O mesmo procedimento avaliativo deverá ser aplicado a cada uma das cortinas e demais efeitos musicais do programa.

Este processo exige que a trilha seja tratada com bastante antecipa-ção, para que haja tempo de correções caso não esteja adequada. Evite deixar esta etapa para o último momento, pois quando isso acontece, a direção terá que aceitar a música disponível, esteja ela adequada ou não.

Fazer uma boa seleção musical leva horas. O técnico de som, além de estudar bem o roteiro, terá que se trancar no estúdio e escutar muitas opções, até encontrar um repertório que pareça adequado para musi-calizar a produção que está desenvolvendo62. Ao pesquisar, o técnico deve ter a preocupação de escolher trilhas e músicas compatíveis com as temáticas narrativas e com as sensações que deverão ser despertadas no ouvinte e também de localizar os trechos musicais indicados para reforçar algumas ações dramáticas.

62 O uso de gravações para a musicalização dos programas: convém advertir que a legislação de grande parte dos países proíbe a utilização gravações musicais sem a autorização expressa. Igualmente, em alguns casos, e exigi-do o pagamento correspondente aos diretos aos compositores, interpretes e/ou gravadoras. Deste modo, ao se tomar a decisão de inserir músicas, tri-lhas instrumentais ou mesmo trechos de obras musicais em programas de rádio, deve-se conhecer a legislação de cada país. No Brasil, Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, dispõe sobre os direitos autorais e a Lei nº 12.853, de 14 de agosto de 2013, dispõe sobre sua gestão coletiva. É válido men-cionar que, em nota de rodapé, Kaplún comenta que as grandes emissoras preferem gravar músicas especialmente para seus programas, como se faz no cinema [Nota da tradução].

358 Mario Kaplún

Determinar a função de cada cortina. É preciso começar orientando o técnico sobre o que pretendemos com cada cortina musical: sublinhar e comentar a cena que termina, ou preparar o clima para a cena seguinte. Geralmente, a primeira opção, às vezes a segunda. Mas é preciso ter claro qual delas.

Às vezes temos um propósito mais ambicioso: as duas juntas. Co-mentar a situação precedente e, em seguida, introduzir a que vai co-meçar, estabelecendo um contraste entre ambas. Em algumas ocasiões, temos a sorte de encontrar passagens musicais que expressem sucessi-vamente os dois climas. O músico passa de um tema a outro, há como uma transição musical: de uns compassos agitados e tempestuosos para outros plácidos e serenos; de uns tristes e sombrios para outros esperan-çados e luminosos. Mas encontrar estas transições não é frequente ou fácil. Então, apelamos para a sucessão de duas frases musicais indepen-dentes. Mas é preciso que ambas tenham a mesma tonalidade, para que não se produza uma dissonância que resultará em cacofonia.

A seleção musical: o que devemos evitar Onde iremos buscar a música para nossos programas? Procedamos

por descarte, indicando primeiro aquelas que não devemos utilizar.

1. Melodias muito conhecidas, sobretudo os sucessos do momento: os ouvintes se distraem ao reconhecê-las e a atenção deles se desvia-rá do programa. Mesmo que uma música de filme possa ser muito adequada para a cortina que estamos buscando, se ela está no auge do sucesso, não devemos recorrer a ela: o ouvinte a associará com o filme assistido, não com a nossa história. Se produzirá um ruído na recepção. (Exceto se o roteiro tem a intenção de, por algum motivo expresso, remeter precisamente ao tema da música ou do filme).

2. Música cantada. Ela também gera interferência, porque atrai a atenção do ouvinte para a letra da canção. (exceto quando essa mú-sica é utilizada deliberadamente como recurso expressivo, porque existe um paralelismo muito evidente entre o que sua letra diz e a situação contida no roteiro). Nesse caso o roteiro indicará expressa-mente as estrofes que deverão ir intercalando e comentando o texto falado. Em uma reportagem, breves passagens cantadas podem re-sultar num comentário – irônico ou afirmativo – muito sugestivo.

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3. Música dançada, rítmica, de ritmo compassado. Mesmo sendo instrumental e não cantada, e ainda que tenha muita característica de uma determinada cultura regional (como as músicas havaianas, músicas carnavalescas, tangos, rancheiras etc.) a música rítmica não cria clima, atmosfera para envolver o ouvinte; se nota que é a parte de uma peça para dançar; e motiva mais o ouvinte a seguir o ritmo musical, do que interpretar a narrativa. A música rítmica não se in-tegra à ação do roteiro, mas rompe a atmosfera e dispersa a atenção dos ouvintes. Obviamente, que poderemos utilizá-la como fundo musical para ambientar uma cena de baile; mas para cortinas, ne-cessitamos de música escrita e tocada para escutar, não para dançar.

4. A chamada “música melódica” das orquestras modernas (Mela-chrino, Mantovani, Frank Pourcel, Percy Faith, Ray Coniff etc.); também, os arranjos baratos da chamada light classic music (música clássica ligeira): Waldo de lós Rios, André Kostelanetz; os arran-jos comerciais executados em órgão eletrônico; os efeitos melosos e bregas, tão típicos das produções Disney: “coros celestiais”, “glorio-sas” apoteoses de violino. Desgraçadamente, toda esta música kits-ch, sentimentalóide e enjoativa, é a mais usada para cortinas musi-cais, porque é a mais fácil de se conseguir, e por que a maior parte dos encarregados de escolher as músicas não tem o gosto educado e nem imaginação para tal tarefa.63 Devemos erradicar totalmente os repertórios kitsch de nossos programas, se pretendermos fazer pro-gramas com sentido cultural nacional. (Exceção: às vezes utilizamos deliberadamente essa música pra descrever um falso ambiente “ele-gante” e sofisticado).

5. A música sinfônica do século XIX. Utilizadas em cortinas, esse grande acervo sinfônico – mesmo quando trata de compositores geniais como Beethoven –, dará uma sensação de grandiosidade e exaltação dramática que raramente estará de acordo com o caráter bem mais íntimo, sensível, sóbrio, que queremos imprimir a nos-sas transmissões. Particularmente, há sinfonias como a Quinta e a Sexta, de Tchaikovsky, ou a do Novo Mundo, de Antonín Dvořák, costumeiros “cavalos de batalha” de técnicos de som burocráticos, que deveriam ser proibidos de utilizar em cortinas musicais.

63 Para uma análise do que é kitsch, e por que devemos evitá-lo, ver UMBER-TO ECO, Apocalípticos e Integrados, cap. “Estrutura do mau gosto”.

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6. Não usar arquivos musicais mal gravados ou com ruído. Toda a atmosfera de uma cortina pode vir a se perder se for extraída de um disco gasto, com ruído de agulha durante a exibição. O ruído, além de desfazer a cena, poderá produzir um anticlima que irá com-prometer totalmente a atenção do ouvinte nas cenas seguintes. Por mais adequada que seja uma música para alguma cena, não a utilize se não estiver gravada com boa qualidade sonora. Há que ter um cuidado especial com os discos de solistas, particularmente os que têm tempo adágio e andante: são em registros com um único ins-trumento, e durante a execução de passagens suaves, que os ruídos mais são notados pelos ouvintes.

Fontes de músicaEm vez desses últimos, podemos obter boas cortinas musicais de:

1. Música instrumental de câmara: pequenas orquestras de cordas, quartetos, instrumentos solistas (violão, flauta, violoncelo). São músicas com grande força subjetiva e sempre soam de maneira mais intimista.

2. Música de concerto de compositores do Século XX: Prokofiev, Stravinsky, Bela Bartok, Manuel de Falla, Joaquim Rodrigo, Holst, Britten, Honegger etc. Especialmente os latino-americanos.

3. Trilhas sonoras gravadas em disco. A música escrita para cinema é muito adequada para nossa finalidade. Porque é música inciden-tal, descritiva, escrita para comentar situações, ambientes, criar at-mosfera. Tem a ruim – vulgar ou grandiloquente – mas também há muitas boas e inspiradas. A questão é procurar a mais adequada (evitando, como já se explicou, as muito conhecidas ou que estejam na moda).

4. Música popular de nosso próprio país ou de nossa região geo-gráfica. Constituem o principal manancial. O problema para a pro-dução de cortinas ou de outros efeitos musicais é que, geralmente, as versões disponíveis são dançantes, rítmicas e não elaboradas. Contudo, é possível buscar e encontrar estilizações. Alguns com-positores (Revueltas e Chávez no México, Villa-Lobos no Brasil, Gi-nastera na Argentina, Fabini no Uruguai etc.) criaram, inspirados

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no folclore de seus respectivos países, obras das mais sofisticadas. E também alguns artistas populares são mais criativos, fazem versões mais musicais, mais trabalhadas. Às vezes são músicas cantadas, mas é possível encontrar nelas trechos instrumentais com grande expressividade e beleza.

5. A música popular em geral, mesmo que não seja a de nosso país, oferece ao menos temas mais simples e vinculados com a expressão popular e utilizam instrumentos mais adequados ao caráter de nos-so programa. Mas, desde que se tratem de versões não dançantes, com harmonia concebida apenas para se escutar.

Unidade musicalUm requisito básico para a trilha musical de um programa é a unida-

de. É preciso evitar que o programa se converta num mosaico de temas musicais incoerentes. Como observa Daniels: “No dia do programa, os inexperientes entram em um estúdio com uma grande variedade de dis-cos, os experientes, com um ou dois discos”.

Se possível, toda a música do programa deve ser escolhida de uma mesma obra musical. O técnico de som não deve começar a recolher cortinas de diversas obras diferentes, mas buscando a obra ou a peça em que baseará todo o repertório musical do programa. Ele começa ou-vindo a obra completa –seja ela um concerto, uma suíte, uma trilha sonora de algum filme, uma série de temas populares – até encontrar aquela apropriada para o roteiro; assim deve escolher uma obra plástica, variada, que ofereça diferentes cores e climas, que seja possível dividi-la em vários fragmentos que se encaixem bem na atmosfera pelicular das distintas cenas ou em partes mais significativas do roteiro. Em seguida, atribui-se a cada cena o fragmento mais adequado. Não é preciso ter medo de repetir algum fragmento, principalmente se esse for o mais adequado, em mais de uma cortina.

Muitas vezes, em uma obra, um mesmo tema é desenvolvido pelo autor em diversas variações: umas mais lentas, outras mais rápidas; umas tristes, outras alegres. Estas são as obras mais adequadas para a musicalização de produções radiofônicas. Se observarmos como são fei-tas as boas trilhas musicais de filmes, veremos que existe um leitmotiv, um único tema musical que volta uma e outra vez ao longo do filme,

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mas em distintas variações. Esta trilha baseada em um leitmotiv é a mais indicada em rádio.

Se desejamos que um tema musical identifique um determinado personagem – ou uma família, ou uma comunidade –, é importante en-contrar uma obra deste tipo, variada. Assim, a música identificadora sempre será reconhecida pelo ouvinte; mas, em suas sucessivas reite-rações, aparecerá executada com diferentes instrumentos e arranjos, e traduzirá para o ouvinte diferentes climas expressivos.

Se não encontrar uma obra tão plástica que se adapte a todas as situações do roteiro, recorra a duas obras, mas que sejam do mesmo compositor. Ou então, que sejam do mesmo estilo e da mesma época; que estejam executadas pelos mesmos instrumentos; ou que venham da mesma região. O importante é que compartilhem um mesmo “código sonoro”. Esta unidade musical ajuda o ouvinte a se concentrar e permite que ele siga melhor o programa.

Só se justifica utilizar uma música que difere totalmente do reper-tório geral da peça, quando o próprio roteiro pede isso. Por exemplo, se aparecem em contraponto umas cenas que se passam no passado e outras no presente, tem sentido utilizar dois tipos de música, uma antiga e outra contemporânea. Se o texto descreve a história de um homem muito atormentado, utilizaremos, talvez, para toda a peça uma música nervosa, agitada, turbulenta – talvez música eletrônica, concreta. Mas se na última cena o personagem finalmente encontrar a paz e a esperança, a música deverá ser trocada para expressar a atmosfera. O final da his-tória poderá exibir um adágio de Bach, por exemplo.

Se existe, portanto, um contraste muito marcado entre as cenas de uma peça, utilize duas obras de diferente caráter; mas nunca use uma grande variedade, evite um mostruário de estilos. Não misture músicas de concerto e música popular; nem faça uma salada de Brahms, Stra-vinsky e Vivaldi.

Os fundos musicaisAssim como buscamos, para produzir cortinas, frases musicais com-

pletas, de melodia definida, a música para fundo deve ser uniforme, parelha, linear. Mais que uma melodia marcada, que pode distrair o ou-vinte e o levar a escutar com mais atenção à música de fundo do que à interpretação dos personagens, deve ser um cenário musical suave que

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flui horizontalmente: um adágio, um andante. Mais do que orquestras, utilize somente instrumentais (um violoncelo, um oboé etc.). Convém evitar, contudo, os instrumentos de som muito agudo.

É necessário calcular o quanto dura a cena que se deseja “fundear” e encontrar um fundo com duração suficiente, pois todo o efeito se perderia se a música se cortasse abruptamente antes do tempo ou se subitamente uma música fosse interrompida por outra. Se não se encontra um fundo com a duração adequada, pode-se duplicá-lo: gravar o tema por duas vezes seguidas (nesse caso, deve se tomar cuidado para que o ouvinte não note a emenda musical: para isso, deve-se atenuar o volume no momento em que a passagem termina e recomeça).

Mais difícil é encontrar um fundo que culmine uma cena e possa subir como cortina. É necessário que dure o tempo necessário e que precisamente no momento indicado pelo roteiro, haja um fecho, um remate melódico. O efeito sonoro fica esplêndido; mas não é fácil en-contrar uma música de caráter desejado e que, além disso, atenda a tal necessidade. Nesse caso, deve-se optar por baixar muito lentamente o fundo até finalizar a cena, e colocar em seguida, como cortina, um tre-cho diferente da mesma obra.

Podemos ter nossa própria música?Seguramente o leitor já terá pensado, enquanto falávamos das difi-

culdades de se encontrar, em discos, trechos para a musicalização de um programa: o ideal seria ter nossa própria música, composta e gravada expressamente para atender às necessidades de produção de fundos e cortinas do roteiro, como se faz no cinema. Infelizmente, com o orça-mento de uma produção de rádio, o custo de produção de uma música própria é absolutamente proibitivo.

Contudo, se não é possível dispor de músicas compostas especial-mente para o programa, conseguir algo que se aproxime disso não é fácil, mas também não é impossível.

Talvez haja na rádio algum violonista inspirado e criativo, que tenha imaginação; talvez tenha entre seus amigos algum que toque muito bem acordeão ou uma harmônica. Convide este músico a ir ao estúdio, fique algumas horas com ele e o ensaie: veja se é possível que ele grave as cortinas e os fundos para a peça. Leiam juntos o roteiro; busquem so-luções musicais apropriadas para as distintas situações. Naturalmente,

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não se pretende que o músico componha temas originais, mas sim que crie, sobre um tema popular, distintas estilizações, diferentes variações, umas brilhantes e alegres, outras tristes e melancólicas. Isso sempre re-sultará em algo muito mais adequado ao caráter das distintas cenas do que o que se pode conseguir nos discos. Como será música tocada espe-cialmente para uma determinada cena, se conseguirá cortinas precisas, frases musicais completas, redondas, que tenham todas o seu final e seu ponto culminante, coisas quase impossíveis de se encontrar em discos. E o som sairá sempre mais vivo, mais quente, com muito mais presença se comparado ao disco: um som muito mais integrado à peça que pro-duzimos64.

Outra possibilidade é de ir enriquecendo aos poucos o arquivo mu-sical com temas “exclusivos” para serem utilizados no momento ade-quado. Para isso, independente de já ter um roteiro determinado, é interessante organizar seções de gravação com alguns desses músicos, pedir-lhes para gravar trechos musicais de diversos estilos e para di-ferentes finalidades. Inclusive, é bom produzir uma série de variações sobre um mesmo tema. Em uma seção de duas ou três horas de grava-ção, será possível obter, junto a alguns temas triviais, pouco utilizáveis, vários bons e interessantes; e assim, formar uma coleção de música pró-pria, que depois de classificada por tema, poderá ser bastante útil.

Compilação Musical Assim como se editam as entrevistas, a música escolhida para uma

peça dramatúrgica também é editada. Depois de fazer a seleção musi-cal, o técnico compila os diferentes fragmentos musicais, que vão ser utilizados, em um único arquivo. Assim, com todas as cortinas e fundos pré-gravados e colocados, na ordem, em um único arquivo, evita-se, durante a gravação, ter que procurar, colocar e retirar vários discos com as músicas escolhidas, o que representa uma complicação ao andamento do trabalho no estúdio e obriga muitas vezes o técnico a parar a produ-ção até que encontre exatamente a passagem musical selecionada.

64 Na série Jurado no 13 utilizamos algumas vezes músicas gravadas especial-mente para o programa. Sugerimos a escuta das cortinas e fundos musicais em Proceso a los muchachos de la esquina (capítulos 43 a 45) e também o uso do acordeão em Proceso a un triunfador (capítulos 49 a 51). Estes são exemplos de como usar músicas ad hoc em programas de rádio.

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Este arquivo em que se compila todo o conteúdo musical, é chamado no jargão profissional, de “a torta”. Vejamos brevemente as regras para prepará-lo.

1. Todas as músicas devem ser gravadas na ordem em que apare-cem no roteiro. Deste modo não é necessário avançar ou retro-ceder o arquivo para encontrar as distintas cortinas.

2. Se uma cortina será escutada várias vezes ao longo da transmis-são, ela é gravada outra vez para estar nos lugares certos todas as vezes em que a cortina for utilizada. Assim, nunca há necessida-de de retroceder a gravação para procurá-la.

3. Tanto a cortina, quanto os fundos, devem ser gravados em volu-me alto. Durante a produção se regulará a intensidade. Procede--se assim porque, ao gravar o programa, sempre se poderá baixar o volume sem perder a qualidade, mas se a “torta” é gravada em um volume muito baixo e no momento da produção se desejar aumentá-lo, teremos uma sensível perda de qualidade do áudio. Como diz o dito popular, “é melhor que sobre do que falte”.

4. De cada cortina ou fundo musical, sempre gravamos alguns se-gundos a mais do que nos propomos a utilizar. No jargão, isso se chama “deixar pano”, “ter pano”. Aqui também se aplica o ditado. Essas pequenas sobras não atrapalham; na produção, a música se vai baixando, desvanecendo, no compasso indicado. Mas, em troca, poderemos ter um sério transtorno se, por qualquer pe-queno erro de operação, a música terminar antes da hora.

5. Mesmo que a gravação de programas conversados seja feita com o gravador na velocidade de 7 ½ (isso é, 7 ½ polegadas por se-gundo), que assegura uma gravação de qualidade de som sufi-ciente para registros deste tipo, se aconselha gravar a “torta” na velocidade de 15 polegadas por segundo. O efeito é a maior ve-locidade, com isso se consegue uma melhor qualidade de sons e uma maior riqueza de agudos (mais brilho). Como a músi-ca contida na “torta” terá que ser novamente transcrita para a gravação definitiva e toda regravação implica sempre em certa perda de qualidade, é preciso que a “torta” seja capaz de absorver essa perda. Se a gravamos em uma velocidade corrente de 7 ½ , a

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diminuição de agudos produzida na transferência do disco para a “torta” e desta para a gravação final, será mais pronunciada. A produção poderá sair um tanto opaca, apagada, com falta de brilho e de contrastes.65

6. Alguns técnicos incluem também na “torta” os efeitos de som que vão ser utilizados. Os efeitos que mais convém incluir já preparados, são as montagens requeridas: a mistura de música e de sons, as misturas de duas ou mais músicas diferentes etc. Ter tais materiais preparados e pré-gravados, faz com que o técnico ganhe muito tempo no momento da produção; e assegura que todas as faixas saiam com total precisão e limpidez, coisa muito difícil de se conseguir quando se tem que fazê-los em tempo real durante o processo de gravação.

7. Em programas de reportagens, se inclui também na “torta”, além das cortinas musicais e os efeitos de som que se podem requerer, as diferentes entrevistas editadas. Deste modo, o operador dis-põe de todo material preparado em um único registro, que terá que inserir durante a produção. Ou então prepara duas “tortas”: uma com as entrevistas e outra com a música e os sons, que irão sendo inseridas alternadamente, de acordo com as indicações do roteiro. Mas, obviamente, para poder trabalhar com duas “tor-tas” simultâneas, é necessário contar com dois gravadores no es-túdio, além do gravador onde se registra o programa.66

65 Aqui Kaplún se refere a gravação analógica em fita de rolo, que já não é uti-lizada no Século XXI. No entanto, cuidados semelhantes devem ser toma-dos na gravação de arquivos digitais. A compressão de um arquivo .wav em mp3, por exemplo, produz uma queda de qualidade quase imperceptível, mas a compressão em mp3 de um arquivo já compactado anteriormente em mp3 multiplica esta perda, e vários sons sairão truncados ou distor-cidos. Por isso, conforme os softwares utilizados, é importante produzir a “torta” sem compactação, para que essa só ocorra, se for necessária, na gravação do próprio programa [Nota da tradução].

66 Com a gravação sendo feita atualmente nos computadores, numa lógica não linear, se utiliza as interfaces gráficas dos diversos softwares disponí-veis para organizar os arquivos sonoros nas janelas, de forma a que possam ser disparados nos momentos adequados por um clique do mouse. Mas a pré-edição destes arquivos, utilizando a lógica proposta para a “torta”, con-tinua sendo útil e necessária. Neste trecho do capítulo, suprimimos apenas

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A abertura e o encerramento do programaAntes de se iniciar um programa (recorde-se que entendemos por

programa, uma série de emissões) é recomendável gravar a abertura e o encerramento do mesmo; quer dizer, a vinheta permanente que irá no começo de todas as emissões (característica musical, locução de abertu-ra) e a despedida padrão que as encerrará.

Portanto, a abertura e o encerramento não são feitas em cada emis-são, são gravadas previamente e repetidas em cada emissão. Assim, é possível gravá-las com especial cuidado, dedicar um tempo para produ-zir um bom arranjo musical e uma locução impecável. Devemos gravar a abertura mais de uma vez e escolher a versão que ficou melhor. As-sim, o técnico irá arquivar a gravação aprovada e a utilizará em todas as emissões.

Não é necessário dizer que a música de abertura deve ser objeto de uma cuidadosa seleção: ela será como uma identidade sonora do pro-grama e contribuirá bastante para definir a personalidade do mesmo. O texto de apresentação deve ser também muito bem pensado, original, expressivo.

Para simplificar seu trabalho, o técnico transcreve na “torta” que pre-para para cada emissão, no começo da mesma, a abertura e ao final, o encerramento. Assim, evita-se trocas de arquivo.

4. A sonorização

Os sons necessários para a produção de um programa de rádio po-dem ser obtidos tanto de discos e gravações de efeitos sonoros, quanto de sua produção ao vivo no estúdio.

Os discos de efeitosPara produzir sons de um trem em movimento, de um automóvel ou

da decolagem de um avião, um bombardeio aéreo ou o latido de um cão etc., sempre poderemos recorrer aos arquivos de efeitos. Todo o setor

os trechos que descreviam minuciosamente a técnica de operação de equi-pamentos que já não são utilizados, para não prejudicar a fluidez da leitura [Nota da tradução].

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de produção de um programa de rádio deve reunir uma boa coleção de discos de efeitos sonoros. Como produzir no estúdio o rugido de um leão no circo, ou a sirene de um navio, as rajadas de uma metralhadora, os estrondos de trovões, raios e o sopro intenso de uma tempestade, o repique dos sinos de uma catedral? Os discos nos permitem criar qual-quer cenário sonoro.

Por paradoxal que nos pareça, há alguns sons naturais que quan-do são gravados diretamente da fonte sonora, não soam nada “reais”: o microfone os amplifica e os deforma até torná-los irreconhecíveis. Ou pode ser impossível isolar um som (de uma carroça na rua, do zumbido de uma vespa) de todos os demais ruídos ambientais. As produtoras de efeitos sonoros possuem verdadeiros laboratórios para tratar acus-ticamente os ruídos para que soem de modo natural. Tal tarefa é tão complicada, que especialistas e engenheiros de som às vezes produzem artificialmente alguns ruídos muito difíceis de se registrar.

A formação de uma sonoteca. Como e onde conseguir discos de efei-tos? Em quase todas as lojas de discos é possível encontrar discos de trilhas e de efeitos, que são utilizados para sonorizar filmes e vídeos amadores. Eles incluem poucos efeitos – geralmente aqueles que os pro-dutores domésticos irão precisar para sonorizar as suas filmagens de viagens ou de cenas familiares.Além disso, são muito curtos: cada peça dura em geral, um minuto ou menos, porque as filmagens feitas por amadores também são breves.

Por outro lado, existem coleções profissionais muito completas: a BBC de Londres, por exemplo, vende uma com infinidade de sons e cada efeito dura vários minutos. Porém, pelo alto preço, estas coleções estão fora do alcance dos centros de produção médios e pequenos. En-tretanto, é preciso formar uma sonoteca bastante completa, o que exi-ge classificar e catalogar o acervo sonoro disponível, para saber onde buscaremos cada som necessário durante a produção dos programas de rádio, em quais discos poderemos encontrá-los. É preciso numerar cada disco, fazer um catálogo ou fichário no qual cada efeito esteja listado por ordem de faixa, e em qual disco. 67

67 Em 2017, o acervo de sons disponível na internet e os sites especializados em efeitos suprem a maior parte das necessidades de uma produção, e são localizados facilmente pelos mecanismos de busca [Nota da tradução].

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Com frequência, quando se trata de estabelecer um som de fundo para toda uma cena, o efeito sonoro gravado no disco geralmente é mui-to curto; não chega a cobrir toda a cena. A solução consiste em dupli-car o som; ou seja, ao gravá-lo previamente, repetir e mesma sequência várias vezes, para que a fita consiga durar o tempo necessário. Deve-se ter a precaução de fundir ou misturar o final de cada repetição com o começo da próxima, para que o ouvinte não perceba as emendas de cada repetição e ouça um som contínuo, sem “cortes” ou interrupções.

Um conselho ao diretor: não se conforme quando o técnico lhe diz que há na emissora, som de carro ou trem ou avião. Antes do dia da pro-dução, verifique se o som disponível atende ao que o roteiro precisa. Um carro antigo não tem o ronco igual a um atual, um trem a vapor, uma locomotiva diesel e um trem elétrico de passageiros tem ruídos muito distintos, um avião a jato não soa igual a um turboélice. Se o roteiro cita um jipe, o som de um carro de passeio não servirá. Por outro lado, se a cena acontece dentro do veículo (trem, automóvel ou avião), esteja ciente que o som que se escuta no interior de tais veículos é totalmente diferente daquele ouvido do lado de fora. O ouvinte percebe todas essas incongruências.

Os sons de estúdio Assim como há sons que sempre são tirados de discos, há outros

que sempre são produzidos no estúdio, como por exemplo, os passos e o abrir e fechar de portas. Para isso, todo estúdio de produção de rádio deve estar equipado com o material para produção dos sons necessários:

– Um retângulo de madeira para produzir os passos em assoalhos (como o piso do estúdio é acarpetado, nele os passos não ressoam).

– Outro de retângulo de ladrilhos para reproduzir passos em am-bientes calçados (rua, pátio, chãos de pedra). Os ladrilhos são montados em uma moldura de madeira.

– Uma caixa retangular de madeira cheia de pedras ou cascalhos, para produzir som de passos sobre o pedregulho. Geralmente, esta caixa é montada sobre rodas para ser possível deslocá-la até o estúdio.

– Uma porta cenográfica para reproduzir o ruído de abrir e fechar.

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É uma pequena porta portátil, prática, de aproximadamente 1,20 m. de altura, que deve ter atrás um fundo fixo de madeira, de modo que sirva de caixa de ressonância para amplificar os ruídos de portas sendo aber-tas ou fechadas. Ela deverá ter trinco, fechadura, tranca, um passador de corrente para cadeado, ou qualquer outro dispositivo que produza o tipo de ruído pedido no roteiro. Pode-se adicionar na porta cenográfica, aldrava e campainhas, como as dos comércios antigos. Também é pos-sível construir uma janela de guilhotina para reproduzir sons de abrir e fechar janelas. Sobre a moldura vertical da janela podemos colocar um trilho de madeira com argolas para fazer deslizar e produzir um ruído de cortinas se abrindo ou fechando. Todos os apetrechos cenográficos mais pesados devem ser montados sobre uma base com rodas, para fa-cilitar a entrada e saída no estúdio o armazenamento depois do uso, em um local que não incomode.

– A porta metálica de um automóvel acoplada de modo prático, à pa-rede do estúdio para que se possa abrir e fechar. Não é tão frequente ter este acessório, mas é muito útil, porque é um som que é utilizado com frequência e mesmo que exista o efeito gravado em discos, nem sempre é possível sincronizá-lo bem durante as cenas.

– Um pequeno gaveteiro, para fazer o som de abrir e fechar gavetas de armário.

– Um telefone completo. Com ele se consegue os distintos efeitos: levantar o fone, discar o número, levantar o gancho, desligar o fone ao final de uma conversa. Não é necessário campainha, já que o som cor-respondente pode se dar com uma instalada no estúdio e que pode ser acionada pelo técnico na mesa de controle.

– Uma campainha elétrica, alimentada com pilhas e fixada em um quadrado de madeira, para o som de campainha de porta.

– Um interruptor elétrico (para produzir o som de acender e apagar a luz ou algum outro aparelho elétrico com ruído equivalente).

– Louça: copos, pratos, xícaras, talheres, garrafas, jarras, para as ce-nas em que os personagens comem, bebem e se servem de bebidas.

– Panelas para as cenas ambientadas na cozinha.

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Ao vivo ou com discos?Sempre que for possível conseguir um som “ao vivo” de maneira

satisfatória, é preferível que ele seja produzido no estúdio, em vez de usar discos de efeitos. Os sons ao vivo soam mais naturais e com mais presença, além de serem mais fáceis de sincronizar com a ação da cena.

Assim como os passos e as portas, há outros sons que devem ser pro-duzidos necessariamente ao vivo, porque só assim é possível sincronizá--los com o diálogo. Podemos recorrer ao disco, se for necessário colocar como fundo o barulho contínuo de alguém escrevendo em um teclado, em uma cena de escritório. No entanto, se o ruído da digitação deve ser ouvido em primeiro plano e às vezes parar (porque o personagem que redige precisa dizer alguma coisa), deve-se manter a sincronia do ruído ao recomeçar a escrever. Se o personagem escreve com outra pes-soa ditando as palavras, não há outra forma de sincronizar som e ação, se não houver um equipamento no estúdio e alguém habituado com digitação rápida, para produzir os sons no ritmo da interpretação das personagens.

O mesmo se aplica aos instrumentos musicais (um piano, uma gui-tarra etc.). Se a cena ocorre em um concerto ou em um salão de baile, qualquer disco de música pode ser usado ao fundo, mas se trata de re-presentar um pianista ensaiando, estudando ou compondo, ou mesmo alguém que toca e interrompe bruscamente, isto somente é possível de ser feito com um pianista no estúdio.

O uso de discos de efeitos é limitado, porque só permitem extrair de-les som mecânico rígido, sem estas variações que somente são possíveis de produzir de improviso.

Para reproduzir risada, aplausos ou gritos de uma grande quantidade de público em um teatro ou em um estádio, temos que usar os discos. Mas faça também que os atores no estúdio aplaudam, riam ou gritem e misture os sons do disco com o som ao vivo, para imprimir ao efeito uma sonoridade mais viva e natural.

Sons criados no estúdioAté aqui só temos referido aos sons reais que produzimos no estú-

dio. Mas também é possível criar efeitos. Há alguns sons que atualmente estão disponíveis em discos, mas que no princípio do rádio tinham que ser simulados artesanalmente no estúdio, porque não havia amplas co-

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leções de efeitos gravados. E, hoje, os diretores começam a se dar conta que, às vezes, se conseguia naquele tempo um maior realismo dos efei-tos.

Por exemplo, se o roteiro indica um galope distante, sem dúvidas que o podemos fazer com um disco com sons de galope, mas se a ação pede para que se ouça o cavaleiro partir, ganhar velocidade e se afastar, para em seguida se aproximar até o primeiro plano, quando a monta-ria é freada vai se detendo aos poucos, não há disco que nos permita simular essa partida e muito menos essa chegada do cavalo. O recurso de ir freando gradualmente o disco com a mão pode servir para simular a freada de um automóvel, mas não serve para diferenciar o ritmo do galope de um cavalo.

Eis aqui alguns sons específicos podem ser criados artificialmente no estúdio e como se faz:

– Galope de um cavalo. O sonoplasta bate alternadamente as mãos abertas sobre o peito.

– Marcha de uma carruagem leve (uma charrete ou um trole). As duas metades de um coco vazio batidas uma contra a outra, soam como o andar de um cavalo de passeio. Chocalhos agitados entre os dedos completam a simulação.

– Sino de uma pequena igreja rural. Pendura-se um cano de ferro de uns 6 cm. de diâmetro, e bate-se nele com uma pequena barra de metal.

– Homem ou mulher nadando. Em um balde cheio batemos com as mãos na água.

– Chapinhar ao caminhar por um pântano. Use o mesmo efeito an-terior.

– Passos sobre folhas secas (bosque etc.). Bater suavemente em uma bola de papel celofane erguida com a outra mão.

– Crepitar do fogo em um incêndio. Apertar forte a mesma bola de celofane com ambas as mãos.

– Pios de pássaros. Esfregar uma rolha sobre a superfície de uma garrafa com água.

– Disparo de uma arma. – Se queremos utilizar uma arma real com explosivo, o som resultante não irá soar como um disparo. Soa muito mais “real” fazer estalar secamente uma régua sobre uma tábua de ma-deira; ou estourar um saco de papel cheio de ar.

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– Passos de um batalhão em marcha. Utiliza-se um acessório com dozes cubos ocos e feitos de madeira, com uns 15 cm de diâmetro e furos no centro de duas laterais, por onde se passa uma corda para uni--los. Os cubos, em fileiras de três, são presos em uma moldura de ma-deira, que manejada com ambas as mãos, faz os cubos colidirem todos ao mesmo tempo sobre um piso de lajota. O ruído produz perfeitamente o efeito de soldados marchando juntos. Assim, é possível dispor de um batalhão dócil, que marcha ao passo que desejamos, além de parar e retomar a marcha quantas vezes o roteiro indicar.

Ambientes. Playbacks.Os fundos de ambientes humanos (gente em um bar, burburinhos de

uma reunião, de um teatro, de uma assembleia etc.) quase nunca podem ser conseguidos com um disco: soam muito artificiais e convencionais e, mesmo que pareça curioso, mesmo neste burburinho informe corre-se o risco de que o ouvinte note que a língua falada no som de fundo, é in-glesa ou alemã. É melhor produzir esses sons em um estúdio, mas temos que prepará-los previamente e pré-gravá-los, ou seja, fazer o que se cha-ma de playback. Isso é feito em primeiro lugar, porque quando a maioria dos atores estiver atuando e intervindo nos diálogos das cenas, não po-derá fazer ao mesmo tempo o burburinho de fundo. Mesmo se houver atores livres, não é possível utilizá-los para produzir simultaneamente o burburinho e o diálogo, porque não será possível regular o volume para diferenciar as vozes dos personagens daquelas do fundo sonoro, uma vez que tudo em cena é captado pelos mesmos microfones. Se os atores falarem ao fundo demasiadamente alto, vão encobrir o diálogo, se emitirem sons em surdina para não interferir na gravação das vozes dos personagens, a ambientação soará abafada e sem naturalidade.

O melhor é pré-gravar a ambientação desejada antes de iniciar a gra-vação do programa. Assim, todos os atores poderão participar e falar normalmente, com volume natural de voz. Depois, já durante a gravação, o técnico, ao misturar o fundo de burburinho com os diálogos, poderá regular na mesa de som o volume do playback como se faz com qualquer disco de efeitos. Quando se tratar de um ambiente de bar, deve se incor-porar durante a gravação do playback os ruídos de copos, garrafas etc.

Quando temos poucos atores para montar esse ambiente, é possível duplicá-los ou até triplicá-los mediante um truque técnico. São feitas

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duas tomadas sucessivas do som ambiente, que são registradas em gra-vadores distintos; e, ao mesmo tempo em que se grava a segunda parte, se mistura com a primeira. Desse modo, com cinco atores já teremos dez vozes. Com uma terceira tomada e uma nova mistura, conseguire-mos quinze.

Este recurso pode ser empregado inclusive para ampliar um coro, ou seja, para duplicar as vozes que cantam em um pequeno coro. (no caso de um coro, ao gravar a segunda tomada, os cantores necessitam escutar a primeira para poder cantar em uníssono, então a técnica envia a primeira gravação para o estúdio em volume baixo, para evitar inter-ferência).

Montagens de música e somQuando o roteiro indica montagem – mistura ou fusão – de música

e som, é preciso cuidar para que os dois elementos se conjuguem har-moniosamente. Quando se trata de um som rápido (por exemplo, um trem passando em grande velocidade ou um galope veloz), a música que ilustra a cena também deve ser rápida, de ritmo ágil e intenso. Se o ambiente da cena é tranquilo (com canto de pássaros e grilos noturnos), a música deve transmitir essa mesma sensação de paz campestre, se é lento e pesado (como a marcha de um carro de bois), o compasso da música deve também traduzir a lentidão do cenário.

Temos que nos preocupar, em síntese, para que a música e o som se integrem em uma mesma unidade sonora.

5. A direção: o plano de trabalho

Vejamos, finalmente, que outras tarefas deve realizar o diretor antes da gravação (além de fazer a distribuição dos papéis e a supervisão, e às vezes, preparar ele mesmo a musicalização necessária).

Estudo do roteiroEm primeiro lugar, o diretor deve estudar o roteiro cuja produção vai

dirigir e fazer um plano de trabalho. Resolver como vai fazer interpre-tarem cada sequência da cena, o ritmo que vai imprimir, o caráter que

375Produção de Programas de Rádio

deverá ter cada personagem, as indicações e as recomendações que dará para cada locutor e ator para conseguir uma boa interpretação do texto. Ele estudará detalhadamente o diálogo para determinar como que vai ser dita cada frase e marcará em sua cópia do roteiro as palavras-chave, as palavras-força sobre as quais os intérpretes deverão se apoiar na en-tonação expressiva.

No aspecto técnico, o diretor vai estudar as dificuldades que terão que ser superadas e terá que prever as soluções. Irá verificar se há pas-sagens que exigirão montagens especialmente complexas, que convenha desmembrar do roteiro e pré-gravar separadamente. Mas, sobretudo, irá se concentrar no conteúdo do roteiro. Não se trata só, e nem tanto, de conseguir uma gravação formalmente brilhante, mas principalmente de conseguir transmitir um conteúdo, uma mensagem. A principal missão do diretor é zelar para que esse conteúdo chegue ao ouvinte, graças a uma atuação adequada dos intérpretes.

A marcação: os planosAssim como o diretor teatral faz a marcação do movimento cênico,

também em uma produção de rádio é necessário planejar os desloca-mentos e as posições dos intérpretes no estúdio.

Temos que determinar bem os planos, em que posição e em que mo-mento cada personagem estará diante do microfone. O microfone está fixo, mas é como uma câmera de cinema: o ponto de referência dos atores.

Se dois personagens vão conversando pela rua, o que é que o roteiro exige? Que se ouça o que é dito enquanto se afastam conversando? Nes-se caso, diga aos atores que se afastem do microfone enquanto falam e faça soar passos no chão, também se distanciando com eles.

Ou então o roteiro exige que os personagens estejam caminhando, mas é preciso que se ouça todo o diálogo nitidamente? Desse modo, se supõe que o microfone deverá se deslocar com eles – como uma câme-ra em travelling – que os acompanha. Indique aos intérpretes que, sem distanciar-se do microfone, imprimam aos seus corpos um movimento de caminhada, para que sua voz e sua respiração adquiram o mesmo rit-mo peculiar de quando caminhamos e falamos. E marque os passos no mesmo lugar: para permitir que se ouça o ruído repetido dos sapatos no chão, sem avançar nem retroceder: (os próprios atores podem produzir o efeito, se tiverem uma caixa com lajotas debaixo dos pés).

376 Mario Kaplún

Em todos os casos, decida muito claramente onde estará cada per-sonagem da cena: se é mais longe ou mais perto do ponto de referência dado pelo microfone; e se há deslocamento, decida se quer que o micro-fone permaneça “quieto”, ouvindo como os personagens se distanciam ou se aproximam, ou que “se mova” acompanhando um deles.

Suponhamos uma cena em uma sala de aula. Personagens: o profes-sor e os alunos. No começo da cena, o que importa é o que dizem os alu-nos ao fundo da sala: nesse caso, ponha estes em primeiro plano, mais próximos do microfone, o professor ficará em segundo plano, ao longe. Depois, o professor chama um dos alunos para a frente da sala, para expor a lição do dia. Vai haver um longo diálogo com ele enquanto o professor o interroga; então não convém mais que a frente da sala fique em segundo plano. No momento em que o aluno for chamado, marque os passos dele no espaço, faça com que o microfone fique perto também do professor e, a partir desse momento, o diálogo professor-aluno se de-senvolve em primeiro plano; e as vozes dos outros alunos, agora longe, chegam em segundo plano. O ouvinte terá compreendido que a ação se transportou do fundo para a frente da sala e que o microfone, que até aquele momento estava captando o som dos alunos, se “moveu”, acom-panhando o aluno que veio para a frente.

Tudo isto você deve ter marcado antecipadamente, para no dia da gravação explicar claramente aos atores, ao sonoplasta, ao técnico. Por isso, há necessidade de estudar com antecipação cada detalhe, cada mo-vimento pedido pelo roteiro.

Distribuição dos microfonesMesmo nas cenas em que não haverá deslocamentos e que todos es-

tarão em primeiro plano, é necessário fazer a marcação no estúdio.Já vimos que na frente de cada microfone somente poderá se colocar

um ou, no máximo, dois atores, para que estejam bem acomodados e, sobretudo, para que possam ficar bem perto do microfone e destacar todas as nuanças de suas vozes. Se houvesse a mesma quantidade de mi-crofones e de atores, não haveria dificuldade. Mas é rotineiro gravarmos sete ou oito atores com somente dois, ou no máximo, três microfones no estúdio. Se não houver um bom planejamento da gravação e não for indicado previamente a cada ator, com qual microfone deverá trabalhar em cada cena, não se obterá uma gravação de boa qualidade.

377Produção de Programas de Rádio

Por exemplo, em uma cena, três ou quatro atores se aglomeram na frente do microfone número 2 e tentam buscar espaço ao mesmo tem-po; assim irão chocar-se e terão que adotar posições forçadas, o que vai impedir a enunciação correta de suas vozes durante a atuação, enquan-to diante do microfone 1 está sobrando espaço com só um ator diante dele. O excesso de atores por microfone poderá contribuir para erros da entonação em suas falas. Se, antes da gravação, for feita a distribuição adequada entre os microfones 1 e 2, não haverá erros de interpretação e o resultado da cena será satisfatório.

“Diagramar” o estúdio de rádio é, sobretudo, administrar os micro-fones da melhor forma possível, tirar o máximo possível do espaço dis-ponível na frente deles, distribuir os atores de modo que estejam con-fortáveis e com acesso fácil ao microfone. Deve-se estudar o roteiro cena por cena e mostrar para cada ator seu lugar, da forma que todos possam falar ao microfone e não fora dele.

É sabido que os atores que interpretam cenas com diálogos precisam falar um após o outro e dispor de dois microfones para não perderem o ritmo da interpretação. Se o diálogo está centrado entre Juan e Pedro, Juan deve estar no microfone número 1 e Pedro no número 2. Dessa maneira, não se estorvarão mutuamente e cada um terá tempo de se colocar bem em frente ao microfone antes de começar a sua fala. Assim, não haverá perigo de que as primeiras palavras de Juan soem distantes porque Pedro ainda não terminou sua parte e não há espaço para ele se aproximar do microfone. Naturalmente nem sempre é possível de se conseguir o ideal na diagramação do estúdio; se em uma cena há cinco personagens e dois microfones, a alternância de diálogos nem sempre conseguirá evitar a coincidência, em um mesmo microfone, de atores com falas sucessivas. Mas, no geral, uma diagramação racional consegue evitar, com uma boa marcação, de 70 a 80 por cento de aglomerações em um mesmo microfone.

Quando não se consegue evitar a coincidência de três ou mais atores em um mesmo microfone, devemos preveni-los antecipadamente, para que durante essa situação de incômodo momentâneo, se ajudem mutua-mente e facilitem o acesso de todos ao microfone.

Outro aspecto que deve ser levado em conta, ao se fazer a marcação no estúdio, é a estatura dos atores. Os microfones são de altura regulá-vel, mas uma vez que se coloca a uma determinada altura, assim ficam,

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não se pode tocar neles durante a gravação para adaptar a estatura de cada intérprete. Por isso, ao distribuir os atores, há que procurar que os mais baixos falem em um mesmo microfone e os mais altos em outro, de modo de ambos os microfones fiquem regulados desde o começo, na altura conveniente para todos e que todos tenham o mesmo microfone na distância justa, para que sua voz saia em primeiro plano. Se uma criança vai interpretar, coloque uma pequena plataforma para que ela suba e alcance melhor o microfone.

As cenas de conjuntoO diretor deve planejar as cenas de conjunto (um acidente, uma

manifestação, uma assembleia, uma rebelião etc.). Gente murmurando qualquer coisa entredentes, emitindo sons inarticulados, não exprimem o clima da situação encenada. Os ouvintes irão notar claramente que aquele fundo sonoro é falso. É necessário que os extras tenham um texto geral, um guia do que devem dizer em cada intervenção. Se o roteiro se esqueceu desse detalhe, o diretor deve providenciar para os “figurantes” pelo menos frases aproximadas que imprimam sentido à cena.

Naturalmente, no produto final essas frases ditas ao fundo não são inteligíveis, se perderão no conjunto. Porém as vozes soarão com uma entonação expressiva, de acordo com a situação, e se perceberá que es-tão pronunciando frases concretas, palavras articuladas, que irão refor-çar a situação representada na cena.

Previsão dos cortesSe o diretor presumir que o roteiro é muito longo e irá exceder o tem-

po do programa, deverá ver antes quais cortes serão possíveis antes de ir para a gravação. Cortar criteriosamente leva tempo, é difícil encontrar trechos que podem ser suprimidos sem prejudicar o sentido original do roteiro. Os cortes não devem ser improvisados ou deixados para o mo-mento da gravação. O nervosismo e a indecisão sobre o quê cortar po-derá suprimir inadvertidamente uma passagem fundamental, que fará o texto perder força dramática ou até a sua clareza narrativa. Estude, pois, antecipadamente os cortes possíveis. Há duas formas de cortar:

1. Pentear o roteiro: é tirar umas palavras aqui, outras ali, supri-mir algum pedaço, reduzir algumas réplicas, eliminar algumas

379Produção de Programas de Rádio

frases reiterativas. Consegue-se, assim, vários segundos, tirando somente alguns acessórios.

2. Podar: Quando o roteiro é muito longo, não há outro remédio senão fazer grandes cortes, suprimir blocos de textos, falas com-pletas, às vezes uma cena inteira. É uma ação que poderá retirar algo significativo, deve-se optar pela retirada do que seja menos essencial.

Às vezes, para tornar possível um corte, para poder suprimir uma cena ou uma fala, é necessário reescrever algumas linhas, modificar ou introduzir alguma frase, para que o resto do texto mantenha a fluidez, continuação e sentido. Estas mudanças de redação somente poderão ser feitas com tranquilidade e antecipação.

Se você está seguro de que o roteiro é longo e que de nenhuma ma-neira irá se adequar ao tempo, elimine definitivamente as passagens cortadas e mostre aos intérpretes, antes do ensaio, as falas que foram retiradas. Se você tem dúvidas quanto ao tempo, se pensa que o roteiro poderá eventualmente ser encenado inteiro, limite-se a marcar com um lápis fino os possíveis cortes: só depois do ensaio, quando for medida a duração real do texto encenado, indique aos atores e ao técnico, as pas-sagens que devem ser retiradas para se ajustar ao tempo do programa. No entanto, leve isto já previsto ao estúdio.

380 Mario Kaplún

Capítulo

17

A execução: o ensaio, a gravação

Todos já chegaram? Bom, podemos iniciar o ensaio. Quem começa? Bem, então comece a ler a sua parte.

Assim se costuma iniciar uma sessão de gravação. Não acredito que esta maneira fria de começar seja a melhor. Os intérpretes não são má-quinas. Devem atuar conscientemente, sentir-se parte de uma equipe de trabalho e atuar bem compenetrados no espírito do programa.

Antes de iniciar os ensaios, é bom que haja uma rápida troca de ideias entre o diretor e os intérpretes, acerca do roteiro que vão gravar. Todos que irão participar do programa já deverão ter recebido e lido o roteiro. Então, é útil comentá-lo brevemente. Que cada um fale da parte que lhe toca, como a vê e como crê que deve interpretá-la. E, sobretudo, que falem do roteiro em conjunto, da mensagem que ele deve transmitir aos ouvintes.

Ao longo dos ensaios e gravações, não se deve perder de vista em nenhum momento o objetivo educativo da transmissão. Todas as con-tribuições que deem brilho e realce à gravação são bem vindas à medida que contribuem para dar destaque a esse conteúdo formativo. Mas se, pelo contrário, esses detalhes ilustrativos podem distrair o ouvinte do propósito central da transmissão, por mais brilhantes que sejam, de-verão ser eliminados. Não se faz rádio educativa para brilhar, mas para dizer algo ao ouvinte. A rádio educativa exige um espírito de humildade e de serviço.

O comentário prévio, com participação de todos, ajuda a criar esse clima de serviço e a motivação para que todos assumam sua função com carinho e convicção, compenetrados em fazer o programa e para que

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fazê-lo. A partir desse debate, cada um fará sua parte com mais proprie-dade e com mais afinco.

Agora sim, podemos começar a ensaiar.

1. Os ensaios

A sequência dos ensaios:Devemos distinguir dois tipos de ensaio.

a. O ensaio do roteiro (de leitura ou ensaio “seco”) em que se ensaia somente o texto. Os intérpretes fazem uma leitura expressiva se-guindo a orientação do diretor. Pode-se ensaiar no estúdio ou em outra sala anexa, porque não são necessários microfones ou outros equipamentos durante o ensaio. É suficiente um lugar si-lencioso e tranquilo, com boa iluminação e cadeiras para todos.

b. O ensaio de microfones (ou ensaio geral ou “úmido”), em que é ensaiado o roteiro completo, tal qual será na gravação, com tex-to, música, sons e efeitos. O ensaio geral deve ser feito no estúdio de gravação.

O normal é fazer dois ensaios: um de leitura e outro de microfone. O mais recomendável é fazer três: dois secos e um “úmido”. Desse modo os intérpretes se concentram mais em suas partes e dominam melhor o texto. No entanto, não é possível fazer três ensaios seguidos no dia da gravação, seria muito cansativo para os atores: eles teriam que gravar com suas vozes fatigadas. Para evitar o cansaço vocal, deve-se fazer a primeira leitura no dia anterior. Ensaiar na véspera é uma vantagem adi-cional para os intérpretes que, já orientados pelo diretor, poderão dispor de algumas horas antes da gravação para “afinar” suas falas e amadure-cer a sós os papéis que irão desempenhar na gravação.

A sequência do trabalho é a seguinte.

I. No dia anterior à gravação: primeira leitura (optativa)

II. No dia da gravação:

1. Ensaio de leitura

382 Mario Kaplún

2. a) provas e pré-gravações do ensaio geral

b) Ensaio Geral

c) Correções e cortes eventuais

3. Gravação

4. Escuta para realizar eventuais ajustes e correções da gravação

Veremos agora em detalhe cada uma dessas etapas.

O ensaio de leituraÉ o ensaio de leitura coletiva do roteiro sob as orientações do diretor.

Se não houve um primeiro ensaio no dia anterior, logicamente, que ele será mais intenso. O objetivo é dar ênfase na entonação das falas, na expressão, nas características dos personagens, definir o caráter e o ritmo de cada cena. Será um ensaio mais conceitual, se o programa for uma radiorreportagem, será mais vivencial, quando for um radiodrama; mas, em qualquer caso, será feita uma leitura expressiva, com entonação. Não é produtivo passar o texto em ritmo apressado: o diretor deve interromper o ensaio cada vez que ouvir uma entonação não adequada, explicar como a passagem deve ser dita e fazer o ator repetir até que consiga interpretá-la perfeitamente.

Simultaneamente, o diretor vai fazendo algumas observações técni-cas: indicando com precisão as entradas, as saídas, os planos, a execu-ção das cenas de conjunto. Ele indica em que momentos os intérpretes devem pausar suas falas para que seja inserida uma cortina musical, um som ou um efeito, e esperar o sinal para voltar a falar novamente. Os in-térpretes devem anotar em seus roteiros todas as orientações do diretor. O diretor também deve indicar ao técnico no estúdio, quando e como ele deve inserir os distintos efeitos sonoros ao longo das cenas. Mesmo não intervindo diretamente no ensaio de leitura, o técnico também o assiste, para tomar nota de tudo o que lhe cabe durante a gravação: vo-lumes, planos, pausas etc. Ao final do ensaio, todos devem saber exata-mente o que o diretor deseja que cada um faça, e como.

383Produção de Programas de Rádio

As provas e a pré-gravaçãoDepois do ensaio “seco”, se realiza uma série de testes para preparar

o ensaio geral.

1. Distribuição de microfones: o diretor indica para cada intérprete em que microfone deve atuar em cada cena.

2. Regulagem da altura dos microfones, de acordo com a estatura dos diversos intérpretes.

3. Teste de vozes: o técnico testa as vozes dos distintos intérpretes e indica a que distância do microfone cada um deve falar, para que a voz soe bem.

4. Teste de planos: quando alguns trechos do roteiro serão ditos de longe, se testa a distância e o volume de voz com que o ator deve falar, para dar a impressão da distância sem que a fala deixe de ser audível no rádio.

5. Teste de filtros, equalizações, resonância: se algumas passagens ou falas devem ser equalizadas com ressonância ou ser “filtra-das”, é preciso testar até que se consiga um nível, uma tonalidade e uma intensidade que o diretor considere adequadas.

6. Teste de certos sons de estúdio, até obter o efeito desejado.

7. Teste das cenas de conjunto: devem também ter um ensaio pré-vio para regular os planos e volumes sonoros e para determinar se os extras (ou figurantes) devem ser colocados mais distante ou mais perto dos microfones, falar mais alto ou mais baixo etc.Obviamente, que todos esses testes são feitos pelo microfone e com o diretor escutando pela saída da mesa de som. São testes essenciais: se não forem feitos antes, haverá frequentes interrup-ções no ensaio para corrigir esses detalhes.

8. Sincronização dos fundos musicais com o texto. Se há falas que devem ser ditas com fundo musical, também é necessário, antes do ensaio geral, ajustar a sincronização da música com a fala. Coloca-se o trecho musical escolhido e, simultaneamente, pede--se ao ator para ler o texto correspondente, na mesma velocidade que será empregada na transmissão. Desse modo, se verifica se o fundo musical tem a duração suficiente para cobrir toda a passa-

384 Mario Kaplún

gem. Está medição é particularmente necessária se há previsão de transformar o fundo em cortina no final da cena: é preciso que a leitura seja finalizada exatamente no compasso em que a música deverá subir para o primeiro plano.

Uma vez feita a medição (cronometrada para maior precisão), bus-ca-se a solução adequada para que o texto e o fundo musical fiquem bem sincronizados. Algumas soluções são possíveis em tais casos:

a. Iniciar o fundo uns segundos antes do que o previsto no roteiro;b. Iniciá-lo uns segundos depois;c. Indicar ao ator que diga sua fala levemente mais rápido, com

pausas um pouco mais curtas;d. Indicar aos atores ou locutores que leiam mais lentamente.

Pré-gravações. Às vezes o roteiro contém passagens particularmente complicadas, que exigem combinar a atuação dos intérpretes com a in-serção de vários efeitos técnicos sobrepostos ou muito próximos uns dos outros. Nesse caso, as passagens deverão ser separadas do roteiro, pré-gravadas antes do ensaio geral e então inseridas na gravação final. Desse modo, é possível repetir essas passagens quantas vezes forem ne-cessárias, até que se consiga o resultado mais adequado, sem que se tire o clima e o ritmo do ensaio geral. Assim, o ensaio e a gravação da peça poderão ser feitos com menos nervosismo, e mais ritmo, com todos tendo a tranquilidade de que aquelas passagens mais difíceis já estão resolvidas, gravadas e prontas para serem incluídas no momento certo.

Também os fundos de ambientes, de que se falou no capítulo ante-rior, são pré-gravados antes do ensaio “úmido”.

Assim como também se grava antecipadamente os efeitos de som produzidos no estúdio, que são difíceis de acertar: muitas vezes falham, obrigando a paralisar a gravação para refazê-los. Para evitar este incon-veniente, antes do ensaio geral se deve gravar repetidas vezes até que se consiga uma tomada adequada que possa ser utilizada.

O ensaio geralDepois de um curto descanso de alguns minutos, inicia-se o ensaio

de microfone. Ao mesmo tempo em que serve para firmar a atuação dos

385Produção de Programas de Rádio

intérpretes, seu objetivo é também treinar a parte técnica. É o ensaio da transmissão completa, com falas, música, efeitos de som, montagens etc., tal como será depois gravada ou transmitida ao vivo.

Se for possível, deve-se fazer o ensaio “úmido” por completo, sem in-terrupções, como é feito um ensaio geral no teatro. Deter o ensaio para repetir ou corrigir alguma coisa, só em caso de imprescindível neces-sidade. Apenas assim, atuando de forma continuada, se consegue que os intérpretes tenham coesão e ritmo em suas falas. Um ensaio geral que é interrompido com frequência não cumpre a sua função: cria-se um estado coletivo de impaciência e de nervosismo, que irá interferir negativamente na gravação final. Precisamente para prevenir e evitar interrupções, que devem ser realizado todos os testes e pré-produções, conforme mencionamos nos parágrafos anteriores.

As falhas que o diretor vai encontrando na atuação dos intérpretes e na montagem técnica, ele deve anotar para corrigir depois do ensaio. Tais anotações devem ser rápidas, quase telegráficas, já que o ensaio não deve parar. Anota-se a linha do roteiro em que se percebeu a falha, e uma ou duas palavras que ajudem a relembrar o que precisa correção. Em muitos casos, o diretor só tem tempo de assinalar um x no roteiro, no ponto em que identificou o erro que deve ser sanado, seja de entona-ção do locutor, seja um efeito técnico que não lhe satisfez e que deseja corrigir ou melhorar.

No ensaio de microfone, se aproveita também para medir o tempo da transmissão. Como já foi explicado, a duração exata de um roteiro não pode ser calculada pelo número de páginas: depende muito do ca-ráter do texto, para se determinar a velocidade e o ritmo da atuação. No ensaio é possível verificar a verdadeira duração de uma transmissão, medir se ela “está no tempo” ou se são necessários ajustes ou cortes.

CorreçãoDepois do ensaio “úmido”, o diretor regressa ao estúdio e reúne todo

o elenco para corrigir ou repetir tudo o que não saiu bem, tanto na atua-ção quanto na parte técnica. Se considerar necessário, ele torna a ensaiar alguma cena.

É, por certo, o momento em que mais se nota a utilidade de ter as linhas numeradas. Essa numeração facilita e agiliza a localização dos trechos que o diretor marcou para serem repetidos ou aperfeiçoados.

386 Mario Kaplún

Sem a numeração, se perde tempo até que os intérpretes encontrem uma determinada linha no roteiro citada pelo diretor.

Se durante o ensaio o diretor detectou que a transmissão ultrapassou o tempo, ele indica os cortes que devem ser feitos (e que já foram pla-nejados antecipadamente). A numeração das linhas também serve para que todos possam localizar rapidamente no roteiro os ajustes necessá-rios e as falas que deverão ser retiradas.

Depois de uns minutos de descanso, tem início a gravação da trans-missão.

2. A interpretação

A expressãoUma das tarefas básicas do diretor é cuidar para que a entonação

dos intérpretes (locutores ou atores) saia correta, desde o ponto de vista lógico, significativo, e ao mesmo tempo expressivo, do ponto de vista psicológico.

Lembremos que, no rádio, temos que expressar tudo com um só re-curso: a voz humana; a palavra, suas inflexões, suas matizes, suas pau-sas, a que só podemos adicionar – e somente em radiodramas – outros “gestos” auditivos, tais como risos, suspiros, soluços contidos, pigarros, balbucios etc.

“Marque” os tons para seus intérpretes. Explique a intenção, o cará-ter de suas falas; sobretudo dê o exemplo, leia as falas para eles, do jeito que você o faria se fosse para ser o intérprete. Não para ser imitado, pois cada um fará a sua maneira, mas para que o compreendam melhor. Marque a entonação no ensaio “seco”; depois do ensaio geral, corrija os tons que não estiverem “afinados”, marcando-os novamente, e os faça repetir até que o resultado seja bom. Durante a gravação, se for percebi-do um erro de entonação muito grave, o diretor deve paralisar a peça e pedir para o intérprete repetir a passagem.

Combata especialmente as entonações convencionais, pomposas, afetadas, a que são tão propensos os locutores profissionais. Defenda o caráter sensível, simples, comunicativo e coloquial de sua emissão. Lute contra os clichês: os falsos velhos de voz cansada, os estereótipos

387Produção de Programas de Rádio

de “bons” e de “maus”. Há atores que ao interpretar um padre, adotam imediatamente uma voz solene de catedral. Em sua imensa maioria, os padres de verdade não falam dessa maneira. Assim como pretendíamos construir personagens de carne e osso ao escrever o roteiro, devemos perseguir agora, ao cobrar mais vida na voz dos intérpretes, que essas criaturas soem naturais, como gente de carne e osso.

O RitmoO grande inimigo do ritmo radiofônico – e da emissão de rádio em

geral – é o “branco”, a ausência do som. Na verdade, poucas coisas são tão antirradiofônicas como estes silêncios em meio de um diálogo, pro-duzidos por distração ou vacilação; essas entradas atrasadas ou fora de hora. Um dos aspectos com que o diretor deve se preocupar mais é com o encadeamento das falas. O bom ritmo depende, sobretudo, da sobre-posição articulada das réplicas; de que o diálogo flua continuadamente, sem brancos, ou seja, sem pausas injustificadas.

Os motivos por que ocorrem os brancos geralmente são:

a. Distração. O intérprete não estava atento, não seguia a leitura e perdeu o “ponto” de entrada.

b. Insegurança, imperícia. Os inexperientes seguem com atenção o roteiro; mas quando chega o momento de atuar, vacilam. Não tem noção do tempo radiofônico. Deixam que o interlocutor ter-mine sua parte e somente depois se preparam, hesitantemente, para dizer sua resposta. Os experientes, por sua vez, já estão pre-parados, com uma rápida olhada no roteiro observam as deixas da fala do outro e sabem onde entrar, e ao final da fala do inter-locutor respondem de imediato e resolutamente.

c. Por falta de cópias. Se dois ou mais intérpretes têm que ler um mesmo roteiro, os brancos se fazem inevitáveis.

Por isso, há a necessidade de que na gravação prevaleça um clima coletivo de concentração, para que ninguém se distraia. Daí também a importância dos ensaios, para que todos se familiarizem bem com o texto e, sobretudo, com as deixas respectivas, para não ficarem atados a uma leitura “mecânica” do roteiro. Por último, a norma de fazer cópias em quantidade suficiente para que cada intérprete tenha a sua.

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As interrupçõesEm um diálogo dramático, muitas vezes um personagem reage vi-

vamente (em uma discussão acalorada), e interrompe o outro intérpre-te na metade de uma frase. Isso se chama “montar” a réplica, ou seja, começar a falar antes que o outro termine, sem escutar ao outro, sem deixá-lo completar sua frase. Estas interrupções dramáticas devem ser bem ensaiadas.

No ensaio seco, se deve determinar em que momento preciso da fala de seu interlocutor, sobre qual palavra (ou “deixa”), o outro ator deve in-terrompê-lo e começar a falar. E é necessário que ele esteja muito atento a sua entrada. O branco mais ridículo e de pior efeito é o que se produz quando um ator diz sua parte e termina com pontos suspensivos espe-rando a interrupção do interlocutor e suas palavras ficam no ar, porque o outro ator não entrou no tempo correto.

Mas, também pode ocorrer de o segundo ator adiantar-se demais e interromper antes do tempo; antes que o outro tenha dito às palavras que produzem a reação e a interrupção. Este erro é frequente.

Em segundo lugar, para que o efeito resulte natural, o interrompido deve atuar como se fosse surpreendido pela interrupção e não como se ele já esperasse que fosse interrompido. Não deve deixar de falar instan-taneamente, mas sim articular algumas sílabas antes de se calar. Isso é o que fazemos naturalmente na vida real quando alguém nos interrompe. E é precisamente por isso que este efeito se chama “montar” as réplicas. Por um instante, ambos os atores falam ao mesmo tempo até que o in-terrompido se cale.

Para maior segurança, o ator que será interrompido sempre deve ter sempre algumas palavras a mais que as figuram em seu texto. Assim, se o outro se atrasa uns segundos e demora em sua interrupção, ele pode seguir falando coerentemente e evitar um branco na transmissão.

As pausasSe no geral, as réplicas devem ser rapidamente encadeadas, também

é antinatural em certos casos replicar muito cedo. Em um diálogo nor-mal, se o interlocutor coloca uma opção, uma dúvida ou uma objeção, o lógico é que o personagem reflita uns instantes no que acaba de ouvir e na resposta que dará. Em casos assim, a pausa se impõe. Se o ator res-ponde de forma instantânea se notará que ele está lendo, que está falan-

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do mecanicamente e, pior, que não está escutando ao outro ator; porque não é convincente, no caso, uma resposta que surge tão rapidamente.

Se a presença de brancos na transmissão é ruim, a ausência de pausas naturais também é. Quando falamos, todos fazem pausas no meio do discurso para pensar no que vão dizer na continuação e para dar tempo à reflexão do outro. Nos momentos de emoção, também falamos len-tamente, pausando. Além disso, no rádio as pausas ajudam o ouvinte a captar e assimilar melhor as ideias e a viver o processo do personagem que fala. É importante saber fazê-las e valorizá-las.

3. A direção técnica (música, sons, efeitos)

O tratamento da música: volumesComo devem ser inseridas as cortinas musicais em uma transmissão

falada? Em que volume devem ser operadas?Como norma geral, que se aplica tanto a radiodramas como a outros

formatos de programas, as cortinas musicais não devem irromper nem terminar bruscamente, de forma abrupta, a todo volume. As músicas devem ser introduzidas suavemente, de forma gradual (fade in). Depois, já tocando, levantá-las até alcançar o volume normal. Do mesmo modo, devemos fazer com que desapareçam gradualmente, por desvanecimen-to (fade out).

Há casos, no entanto, em que a frase musical escolhida culmina em um remate redondo. Somente nesses casos excepcionais, não se as des-vanece, mas se finaliza com o volume normal.

É fundamental que as cortinas se casem bem com o texto e estabeleçam uma total continuidade com ele, sem o mínimo branco. Devem começar imediatamente no momento que o intérprete deixa de falar, sobre sua última sílaba. Inclusive, às vezes a música começa a se insinuar suavemente enquanto o texto ainda não terminou, e serve como fundo para as últimas palavras. E, antes de finalizar a cortina, quando a música está começando a sumir, já se dá o sinal aos intérpretes para que comecem a falar, de modo que ela ainda seja ouvida por um momento durante o início da fala, até que imperceptivelmente, desapareça por completo.

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A fragmentação da músicaÉ o diretor que indica ao técnico o momento em que ele deve baixar

o volume da música para inserir as vozes dos atores. Quando ele deve dar o sinal para o técnico? Quanto tempo deve durar a cortina, antes de começar a baixá-la?

O diretor deve estar consciente de que toda obra musical está com-posta de frases melódicas, e que só poderá cortá-la respeitando o de-senvolvimento da frase. Jamais uma cortina deve ser cortada no meio de uma frase musical, tal interrupção iria mutilar a música. Isso perturba o ouvinte, cria mal estar, é um ruído. No Capítulo 6 havíamos assinalado que a duração de uma cortina musical não pode ser imposta pelo rotei-rista, a priori, em uma determinada quantidade de segundos. A duração da cortina depende da extensão da frase que o técnico de som escolher.

Ao supervisionar a seleção musical para um programa, o diretor deve se familiarizar com as músicas escolhidas e gravá-las no ouvido para saber, no dia da gravação, onde poderá cortá-las. Se não conhecer bem a música que vai utilizar, poderão ocorrer dois problemas durante a gravação:

a. A música pode ser cortada antes da hora, mutilando a frase mu-sical ou eliminando alguns compassos que, por sua particular expressividade, eram os mais valiosos para dar a atmosfera dese-jada à transmissão.

b. A música pode durar demais e invalidar o efeito desejado, passa-do o trecho que se escolheu para criar o clima e se transforman-do em outra coisa qualquer que não tem nada a ver.

Com o que foi dito antes, se compreende porque não se deve termi-nar uma cortina musical a todo volume e sim fazê-la desvanecer gra-dualmente já sob o início das primeiras palavras do texto. É um recurso também para não produzir choques bruscos no ouvido do ouvinte. Vai--se baixando o volume até o final da frase musical, de modo que ainda se ouça as últimas notas, porém mais baixo, já desvanecendo. Outra opção é deixar o ouvinte escutar a frase musical completa e logo quando se insinua sua repetição ou uma nova frase musical que a sucede, o técnico vai baixando o volume suavemente. O momento de começar o desvane-cimento da música depende da estrutura da obra musical empregada;

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é questão de ouvido. Mas sempre que a frase musical for respeitada, o corte não truncará a música.

Combinação de duas músicasQuando se deseja combinar duas músicas diferentes para mudar o

clima dramático de um programa e provocar uma transição ou um con-traste entre a cena que finaliza e a que começa, alguns diretores utilizam a fusão ou mistura de ambas (crossfade). No entanto, não aconselhamos a fusão de dois fragmentos musicais diferentes, mesmo que sejam da mesma obra e da mesma tonalidade, tal recurso poderá ter um efeito dissonante e antimusical.

Para combinar duas passagens musicais, é melhor baixar lentamente a primeira até fazê-la desaparecer; estabelecer uma brevíssima pausa ou silêncio de um ou dois segundos e entrar com a música seguinte. Se, por exemplo, a primeira passagem é suave e melancólica e a segunda, ao contrário, é intensa, e soa vigorosamente após o breve silêncio, con-seguimos o efeito de transição ou de contraste desejado, sem que haja dissonâncias desagradáveis.

O tratamento dos fundos musicaisQuando uma cena utiliza fundo musical, é importante cuidar do vo-

lume do mesmo. Se for excessivo, encobrirá as vozes, impedirá de ouvir as falas e dispersará a atenção do ouvinte. Se, ao contrário, for demasia-damente baixo, o fundo será inútil já que quase não será ouvido, ou o ouvinte terá que fazer um esforço para percebê-lo e também se distrairá. Então, é necessário regular bem o nível dos fundos musicais, até que se consiga um volume médio adequado.

Não convém que o fundo comece no meio das vozes falando, o téc-nico sempre deve esperar uma breve pausa do texto. E deve inserir gra-dualmente, em fade in.

Os sons gravados: seu volumeSe a cena emprega efeitos sonoros no fundo, poderemos ter um pro-

blema: se os colocamos no volume real, eles encobrem as vozes e não permitem ouvir os diálogos.

Há uma técnica para evitar este inconveniente: o técnico insere o ruído em volume normal e o mantém assim por um tempo breve até

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que o ouvinte possa identificá-lo, em seguida ele o reduz, para que não encubra a voz dos intérpretes. Esse artifício é inegavelmente convencio-nal: os sons reais não reduzem o volume por conta própria. No entanto, utilizar tal efeito é inevitável e o ouvinte já está acostumado e adaptado com alguns recursos da narrativa radiofônica. É como se primeiro fizés-semos um plano geral do lugar, com o microfone aberto para captar o ambiente em volume total; e logo depois os diálogos dos personagens é que aparecem em primeiro plano, enquanto o ruído ambiente se man-tém em segundo plano, como cenário.

O importante é que o som, mesmo que atenuado, esteja ali todo o tempo que deve estar, como uma referência constante. O que não se pode admitir, mas que acontece em vários programas, é que o som de-sapareça totalmente, pouco depois de começar a cena. Ou que fique in-termitente, e que seja ouvido apenas em fragmentos. Se um personagem diz que está chovendo, a chuva deve ser ouvida durante toda a cena; se estamos em um estádio de futebol, a gritaria de uma multidão deve ser escutada, mais forte em alguns momentos, mais fraca em outros, ao longo de toda a sequência. Mas em segundo plano.

Mesmo com essa precaução, devemos prevenir aos intérpretes de que a cena possui fundo, e eles por conta disso, deverão falar mais alto. (Não se esqueça de que os intérpretes no estúdio às vezes não escutam os sons da cabine técnica). Neste tipo de cena não ficam bem interpre-tações sussurradas, nem diálogos íntimos a meia voz. Por mais baixo que se coloque o fundo, falas assim serão pouco audíveis. Em verdade, na vida real, quando duas pessoas querem falar entre si em um estádio de futebol, elas são obrigadas a levantar a voz e, às vezes, a gritar. Terão que fazer o mesmo se querem conversar a bordo de um pequeno avião, em um jipe ou num caminhão em marcha. Então, elevar a voz durante a simulação de situações como as descritas antes, contribuem para dar um caráter realista e natural para uma cena.

Os sons de estúdio: sua execuçãoNo capítulo anterior já explicamos as formas comuns de produzir

sons e efeitos de estúdio. Complementaremos as informações, com mais algumas recomendações práticas sobre sua execução.

393Produção de Programas de Rádio

Os passos. Concordamos com Daniels, quando diz que em muitas emissões de rádio, os passos costumam ser os pontos débeis. Geralmen-te, soam com um som sujo, indefinido, distante e confuso: quase sempre parecem mecânicos, alheios à situação dos personagens que suposta-mente os estariam produzindo.

É preciso dedicar especial cuidado para que os passos soem audí-veis, nítidos, no plano correto que corresponde ao personagem que os produz; isto é, na mesma distância que a voz. É preciso fazer perceber nitidamente se os personagens se afastam, se aproximam ou se perma-necem no mesmo lugar; devem ser passos lentos em um homem que caminha triste ou preocupado; rápido se caminha nervoso, assustado ou fugindo.

Para que os passos reflitam os estados de ânimo dos respectivos per-sonagens, acreditamos ser preferível que eles sejam produzidos pelos atores mesmo que os interpretam. Nesse caso devemos ter a precaução de solicitar aos intérpretes que venham à gravação com sapatos apro-priados (os passos dados com alguns tipos de sapatos quase não são au-díveis). Há que se perceber que os passos de mulheres não soam iguais aos dos homens. Mesmo que conte com um técnico que cuide da sono-rização da sala, os passos femininos devem ser feitos por atrizes. Elas devem ser avisadas para virem no dia da gravação, com sapatos de salto ou com sola de madeira e para evitarem calçados esportivos.

O microfone destinado à captura de sons de passos e de outros ruí-dos rasteiros é colocado a baixa altura, para assegurar que sejam regis-trados nitidamente e no plano adequado. Se o microfone estiver muito alto, irá registrar de modo débil e distante.

As portas. Também devem soar de acordo com a situação: não é a mes-ma coisa quando quem anda tranquilamente fecha a porta suavemente e com cuidado, que quando um personagem sai furioso e bate a porta com toda as sua força.

Os planos sonoros. É preciso cuidado para que o som produzido no estúdio seja ouvido a uma distância lógica e natural em relação ao personagem que supostamente o origina.

Isto, que pode parecer tão obvio, é muito frequentemente descuida-do nas produções de rádio. Quando um personagem fala ao telefone, por exemplo, é muito comum ouvir sua voz em nítido primeiro plano,

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mas os sons de levantar o fone e discar o número, que por lógica tam-bém deveriam ser ouvidos no mesmo primeiro plano, soam distantes, como se o telefone estivesse a um metro ou dois da pessoa que o utiliza. É que em geral, os acessórios de cenário são colocados arbitrariamente, em qualquer lugar. Pensa-se que produzir de qualquer forma o ruído já é suficiente.

Para evitar tal incongruência, é preciso definir, para cada caso, em que lugar estará o personagem que produz o ruído e em função dele, colocar o acessório a uma determinada distância e altura em relação ao microfone.

A naturalidade dos ambientes. Entre as coisas que soam artificiais, é apresentar uma cena em um local amplo, onde se supõe que há muita gente – como um professor falando para uma classe cheia, um orador discursando em uma assembleia política, ou um pregador fazendo ser-mão para seus fiéis – todos cercados de silêncio absoluto.

Sempre nesses casos, por mais atento e silencioso que o público seja, haverá pequenos ruídos de fundo: tosses, pigarros, leves murmúrios, ranger de cadeiras. Em cenas desse tipo convém “sujar” a limpeza assép-tica do estúdio fazendo com que os atores, bastante afastados do micro-fone, produzam de vez em quando estes leves ruídos.

Recursos técnicos com a vozNo Capítulo 6 nos referimos a diferentes recursos para tratar e alte-

rar as vozes, tais como filtros, ressonância, voz por telefone etc., assim como à fusão ou mescla de vozes. É necessário agora indicar como se consegue e produz alguns desses efeitos, conforme peçam os roteiros.

Filtros, equalizadores, modulações. Às vezes o texto pede para diferenciar, destacar uma voz entre as demais vozes. Por exemplo, a leitura de uma carta feita não por quem a recebeu, mas por quem a escreveu e que está fisicamente ausente da cena. Com tal destaque, o remetente da carta poderá ser ouvido na cena, assim como uma citação de um personagem histórico (no caso dos relatos montados); ou o que um personagem pensa de si mesmo e não expressa aos demais; uma voz do passado que se evoca etc. Enfim, uma fala que se localiza em outro plano, em outro lugar ou em outra época, diferente do resto da cena.

395Produção de Programas de Rádio

Esta diferenciação de uma voz poderá ser feitas na mesa de áudio, e de diversas maneiras:

– dando ressonância à voz que se quer destacar. É a solução menos aconselhável: em geral, e salvo em casos muito específicos e justificáveis, resulta em vozes grandiloquentes, inchadas.

– Fazer com que a voz passe por filtros, para suprimir graves ou agu-dos. O filtro diferencia claramente esta voz das demais, mas mantém seu calor e qualidade.

-Equalizando, isto é, modificando a tonalidade dessa determinada voz. Mediante a equalização podemos reforçar e realçar os graves ou agudos. Através desse procedimento a voz não se diferencia tanto das outras como com o emprego do filtro, mas a voz sai com mais natu-ralidade e qualidade. Seu emprego se complica, entretanto, se essa voz “especial” tem que entrar em diálogo com outras. Nesse caso, será ne-cessário um estúdio com equalização independente para cada canal, fa-cilidade que, como já foi explicado, nem todas emissoras oferecem.

Também podemos valer-nos de recursos acústicos no estúdio: – Rodear essa voz de painéis que absorvam o som– Pendurar no estúdio cortinas grossas, colocar o microfone na fren-

te delas e fazer o ator falar em direção delas. As cortinas, igual aos pai-néis, absorvem a ressonância e o brilho da voz, fazendo com que ela saia mais apagada que as restantes.

– Se há uma cabine acústica isolada (Capítulo 15), utilizá-la para essa voz.

– Acoplar ao microfone um tubo de papelão. Para reforçar o efeito, convém que o microfone esteja colocado perto da parede e direcionado para ela.

– Quando vai falar esta voz diferenciada, fechar todos os demais mi-crofones, deixando só funcionando o da voz “especial”, assim ela sai com menos brilho que as outras.

Um fundo musical que se ouve só quando fala esta voz ajuda a dife-renciá-la das vozes restantes. Não obstante, este recurso tem suas limi-tações: se a voz aparece com frequência, o uso abusivo de fundo musical torna-se cansativo e retórico.

396 Mario Kaplún

A voz do narrador-personagem. É uma variante do caso anterior. Tra-ta-se aqui também de diferenciar a voz de um ator quando ele narra de quando atua. O ator deve empregar dois microfones colocados em V bem perto um do outro, para poder trocar os microfones rapidamen-te com um ligeiro movimento do corpo, falar por um dos microfones quando está narrando e por outro quando intervém na ação. Se o estú-dio tem equalização (controle de tom) independente para cada canal, se dá ao microfone destinado à narração uma tonalidade mais grave; do contrário, para diferenciar ambos os microfones, nos valemos de um recurso acústico, como os que já exemplifiquei. Em qualquer caso, con-vém que o microfone de narração esteja perto da parede e apontado para ela.

Mais que o recurso técnico empregado, é o próprio intérprete que deve contribuir para fazer os dois planos, mediante a constante troca de voz e de seu modo de falar. No meio de uma cena violenta em que o ator falará agitadamente, quando intercalada com um comentário ou relato, tem que se passar ao tom mais calmo, mais íntimo, próprio daquele que evoca um fato já sucedido; e imediatamente, ao retomar a ação, voltar a falar com força e intensidade.

Cabine Isolada. Às vezes é necessário poder isolar uma voz das restantes. Suponha-se um programa que desenvolve uma ação muito ruidosa (um acidente, um tumulto) e no qual, em meio da ação, um narrador vai descrevendo e comentando simultaneamente todo o ocorrido. Isto dá uma sensação muito jornalística, de reportagem ao vivo e de transmissão direta. Mas cria um problema para conseguir que a voz do narrador seja ouvida em meio a gritaria e os ruídos do estúdio. Se o narrador estiver com os demais, isso não é possível. Mas se o lo-cutor estiver dentro de uma cabine acústica isolada, é possível regular e manejar independentemente o volume da voz em relação ao ambiente geral do estúdio, exatamente por que o seu microfone também estará isolado: não captará o ruído da cena.

Ressonância, com ou sem câmera de eco. Normalmente, a ressonância é feita com câmera de eco, eletrônica ou acústica, controlada da mesa de som. Basta passar a voz por ela, para conseguir inserir maior ou menor ressonância.

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Mesmo sem câmara de eco é possível conseguir ressonância com o uso de um piano de cauda. Abre-se a tampa do piano e se coloca o mi-crofone sobre as cordas. O ator inclina-se, introduz sua cabeça dentro da caixa do piano acercando-se assim do microfone; e simultaneamen-te o mesmo (ou o técnico de áudio ou outro ator) mantém apertado o pedal direito do instrumento. As cordas do piano vibram com a voz do ator, a tampa aberta cria uma caixa acústica, e se consegue ter um estu-pendo efeito de ressonância.

Voz telefônica com ou sem filtro. O efeito de voz que se escuta por telefone é produzida por um filtro que elimina os graves e dá um tom metálico e agudo. Mas se não se dispõe desse recurso técnico, também se pode conseguir o efeito enfiando o microfone em uma lata de conser-va furada na base para passar o microfone. A vibração da lata deforma e dá um tom metálico para a voz.

Efeito de voz que se escuta por alto-falante (anúncio ou chamado em aeroporto, hotel, fábrica, hospital etc.). O efeito deve ser pré-gravado e utilizado na gravação. Grava-se o texto do anúncio ou chamado, dando--lhe ressonância e passando-o simultaneamente por um filtro que exclui os graves e lhe dá a tonalidade aguda.

Outra possibilidade é gravar o texto (com ou sem filtro, como se pre-fira), enviá-lo para o autofalante do estúdio e de lá regravar o retorno. Pode-se deixar a porta do estúdio aberta, para dar efeito de um grande recinto.

Se não dispõe das facilidades técnicas requeridas, o efeito também poderá ser gravado acusticamente. O locutor introduz sua cabeça em uma caixa de madeira aberta por um só dos lados ou aproxima bem sua boca da caixa, em seguida se coloca o microfone bem próximo à mesma, para que se capte a resonância da voz ao falar.

Para simular um discurso que se escuta em alto-falantes (por exem-plo, em um ato público), colocar ressonância e filtro, simultaneamente.

Efeitos de receptor de rádio. Se o roteiro apresenta uma situação em que os personagens estão escutando algo pelo rádio, o efeito pode ser produzido pré-gravando a transmissão (música ou palavras) que os per-sonagens vão ouvir e tocar a gravação em algum aparelho com caixas de

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som pequenas. Coloca-se o microfone perto ao reproduzir a gravação. Dá a sensação de que se está escutando um receptor de rádio. Para dar mais realismo, pode-se adicionar um efeito de sintonia: se gra-vam os sons que saem de um receptor de rádio real ao girar rapidamente o dial para passar pelas distintas estações.

Fusão de vozes (cross-fade). Já foram explicados os princípios básicos para se conseguir esse efeito. Os atores devem colocar-se em microfo-nes diferentes, distantes um do outro, e ler ao mesmo tempo. O técnico vai tirando volume gradualmente do primeiro microfone enquanto vai aumentando o segundo. A mistura deve ser feita lentamente, durante dez ou vinte segundos, nos quais ainda escutamos as duas vozes, até que finalmente uma desaparece totalmente e permanece apenas a outra.

4. A gravação

Finalizado o ensaio geral, o técnico faz um teste de microfones para balancear e equilibrar seu nível (é importantíssimo que todos os micro-fones estejam em volumes iguais) e se inicia a gravação.

Quase todos os diretores dirigem a gravação da técnica. De lá, eles dão as ordens ao técnico ao seu lado. Com os intérpretes no estúdio, assim como o técnico de efeitos, a comunicação é visual e por sinais. A mão levantada indica “atenção, esperem”; o indicador apontando, “co-mece a falar”. Todos conhecemos e utilizamos na vida diária esta lingua-gem universal de sinais e gestos que são empregados de diversas ma-neiras no rádio, para indicar, por exemplo: “mais rápido”, “mais lento”, “mais alto”, “mais baixo”, “distancie-se do microfone”, aproxime-se do microfone” etc. Quando a gravação é interrompida por algum erro, o diretor pode utilizar o microfone da mesa para dar instruções para que os intérpretes possam corrigir os erros.

Outros diretores preferem trabalhar dentro do estúdio, junto aos in-térpretes. Dessa maneira, podem impor mais ritmo e mais vida às inter-pretações. Mas, nesse caso, como também necessitam ouvir a música, os sons da cabine, a mistura das vozes etc., tem que utilizar fones de ouvido conectados na mesa de som. Assim, embora estejam fisicamente no estúdio, escutam a partir da técnica.

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Quando começa a gravar, o técnico põe as caixas em volume alto para poder perceber qualquer defeito, mesmo que pequeno; qualquer ruído intruso que entre na gravação.

Durante a gravação: cuidados a tomar

A concentração. É importante velar por um ambiente de seriedade e disciplina no estúdio. Um pouco de brincadeira faz bem, inclusive é ne-cessário: afrouxa a tensão nervosa do trabalho, que por si só é pesado (há que parar muitas vezes, voltar, refazer etc.). Mas se prevalecer um ambiente de falta de concentração na atividade, o resultado final será nefasto.

A distração é contagiosa. Se os atores que não estão em uma cena co-meçam a fazer outras coisas ou iniciam conversas paralelas no estúdio tiram a concentração de quem está atuando. Todos devem seguir con-centrados no roteiro. Ninguém deve andar ou falar em seus momentos livres. O silêncio deve ser absoluto: todo ruído é captado pela gravação, o que obriga a refazer uma parte da produção.

Disciplina não significa ambiente de quartel. O diretor pode con-seguir orientar os envolvidos no programa com cordialidade e compa-nheirismo. Nossa experiência nos diz que os fatores para conseguir isso são, basicamente:

a. Um roteiro bom. Se o ator percebe que está lidando com um roteiro bem feito, respeitável, consequentemente, ele trabalhará com entusiasmo e respeito. Se o roteiro é ruim, o ator não se sentirá motivado a investir esforço nele.

b. A conduta do diretor. Ele dá o exemplo. Se não é pontual, não pode exigir pontualidade aos demais. Se ele chega com seu rotei-ro apenas lido, se não valoriza nem dá importância ao seu traba-lho, o que poderá esperar de seus colaboradores?

c. A motivação. O diretor deve estimular no elenco um sentido de equipe, certa vocação de serviço, uma valorização do que se está fazendo. Ele deve estimular todos a participar, a fazer sugestões e considerar as contribuições de todos. Ao final da gravação, deve felicitar e manifestar gratidão àqueles que se empenharam e rea-lizaram um bom trabalho.

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d. Por último, mas não menos importante. Quando se trabalha com profissionais, uma remuneração justa e adequada. Aquele que se sente mal remunerado, explorado, dificilmente encontra estímulo para seu trabalho.

A tomada de vozes. A menos que o roteiro indique que uma voz deva ser captada à distância, todas devem aparecer em um primeiro plano bem definido, com “presença”. Em um programa trivial de entreteni-mento, não importa que algumas frases se percam um pouco; mas em uma transmissão educativa, cada palavra deve ser escutada claramente e sem exigir do ouvinte um esforço extra para sua percepção auditiva. Deve-se vigiar permanentemente a colocação dos intérpretes diante do microfone, a emissão das vozes, a regulagem de volumes pelo técnico.

A respiração não deve ser ouvida. Exceto os casos especiais (por exemplo, um ator que deve simular cansaço), deve ser totalmente silen-ciosa.

É preciso estar muito atento aos pufs de microfones, provocados pela emissão frontal de consoantes explosivas. Quando se produz um destes golpes, deve-se deter imediatamente a gravação e refazer a passagem afetada.

Os ruídos. A gravação deve sair totalmente isenta de ruídos alheios aos programados. De todos os ruídos indesejáveis, o mais frequente no es-túdio são os estalidos de papéis ao passar as folhas do roteiro. É preciso preveni-lo. A primeira função de um locutor profissional ao chegar ao estúdio para o ensaio é retirar o grampo de seu roteiro. Sabe-se que as folhas não devem ser viradas, mas sim levantadas e deslizadas umas so-bre a outra. Se, apesar de tudo, houver ruído proveniente das folhas, a passagem deve ser apagada e gravada novamente.

As correçõesErros, atrapalhações, defeitos, falhas, devem ser apagadas e corrigi-

das. Esta é, precisamente, a vantagem de gravar os programas e a razão de fazê-lo. Mas, em relação a isso, o diretor deve agir com moderação. Se não refazer é mal, refazer em excesso também é.

Frequentemente – especialmente quando se trata de uma emissão longa e complicada – o diretor tem que tomar decisões difíceis, entre

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uma atmosfera boa no estúdio e a perfeição da gravação. Se os intérpre-tes estão atuando bem, conseguindo o clima desejado, é perigoso inter-rompê-los demais: as frequentes interrupções quebram o clima, cansam e enervam os atores, fazendo com que eles, muitas vezes, passem a in-terpretar mecanicamente. Às vezes é preferível deixar passar pequenos defeitos durante a gravação.

Por outro lado, a emenda pode resultar pior que o soneto. Corrige-se a pequena falha de dicção ou de técnica, mas pela repetição excessiva perde-se o ritmo, a força, a frescura e a naturalidade que se havia alcan-çado originalmente.

Mas há ocasiões em que é mais producente mandar parar a gravação, não pelos erros cometidos, mas por que tudo está sendo feito de forma distraída, displicente, sem ritmo nem expressão. Então, há que parar com tudo, chamar a atenção dos intérpretes, exortá-los a atuar com mais profissionalismo, concentração e entusiasmo... e começar de novo toda a gravação desde o princípio.

As emendasTeoricamente, apagar e refazer uma parte parece simples. O princí-

pio técnico é elementar. Mas há que conseguir isso sem que se note, sem que a troca seja percebida pelo ouvinte. Tudo deve parecer, depois, ao escutar a gravação, como se a peça tivesse corrido sem nenhuma inter-rupção. E conseguir emendas que não se notem, sem saltos de nível ou de entonação, requer perícia e paciência.

Imediatamente, depois de perceber equívocos ou falhas, o diretor deve parar a gravação e começar novamente de um ponto anterior.

O primeiro passo é encontrar uma pausa, um silêncio, de onde possa retornar a gravação. Vale dizer, o lugar em que se fará a emenda entre a gravação anterior e a nova. É preciso retroceder a gravação até encon-trar uma pausa propícia para o recomeço, que nem sempre é fácil. Às ve-zes, basta voltar algumas poucas palavras, um par de linhas, até aparecer um silêncio suficientemente longo para a emenda. Inclusive dentro da mesma fala que se deseja refazer. Outras vezes, se tratando de uma cena muito intensa – uma disputa, uma discussão – em que as réplicas são muito próximas uma a outra, sem pausas, se faz necessário retroceder muito até achar um momento adequado para a emenda, o que obriga a repetir e gravar novamente uma longa parte já feita.

402 Mario Kaplún

Uma vez encontrado o lugar para a emenda, o técnico apaga o trecho com problema na gravação original. Então, o diretor deve avisar os in-térpretes a partir de que linha e de quais palavras devem retomar.

Mas é necessário que a nova frase seja dita com o mesmo volume, tom, e inflexão com que vinha transcorrendo o diálogo até aquele mo-mento. Se não sair assim, a gravação fica com uma troca súbita e brusca de volume e de tom na voz do ator, o que delataria e colocaria em evi-dência a parte regravada e tiraria toda a naturalidade da interpretação. Para conseguir essa continuidade, é preciso retroceder um pouco mais a gravação e colocar os intérpretes para escutá-la pela caixa de som do estúdio. Deste modo, eles podem recordar o volume e o ritmo com que vinham falando até o momento escolhido para retomar.

É igualmente necessário que a frase de onde se retoma seja precedida de uma pausa normal, a mesma que tinha originalmente; se a fala da nova gravação entra em cima do trecho anterior, sem pausa, fica artifi-cial e mecânica, pois ninguém fala duas frases seguidas sem pausa para respirar. Entre a primeira gravação e a segunda se deve, portanto, deixar uma pausa natural e somente depois começar a regravar. Mas cuidando para não alongar em excesso essa pausa, para que não se converta em um branco na gravação.

Emendas impossíveis ou difíceisO maior impedimento para corrigir uma passagem de uma gravação

provém da música utilizada nela. Em uma passagem de pura fala, a cor-reção e a emenda são mais fáceis, mas se há uma mescla de música, as coisas se complicam.

Obviamente, não é possível fazer uma emenda no meio de uma cor-tina musical, é sumamente difícil, para não dizer impossível, retomar uma música no meio de uma frase, na nota exata.

Pela mesma razão, não se pode fazer emenda sobre o final de uma cena seguida de uma cortina musical, se a música em questão já houver começado a insinuar-se em fade in; nem tampouco sobre o começo de uma cena precedida de cortina musical, se ainda se escuta no fundo, sob as palavras, em fade out, a música que vai baixando. Caso se faça a emenda nesse lugar; as palavras podem ser reconstruídas, mas a música será cortada abruptamente. Não há remédio a não ser voltar bastante a gravação e retomar a partir da cena anterior, com a cortina incluída.

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A maior dificuldade se apresenta nas passagens com música de fun-do. O texto pode ser emendado, mas a música, não. Quando um ator se equivoca em uma cena com fundo musical, no estúdio há um mal estar coletivo: será preciso regravar toda a cena, desde antes de começar a música.

Se o erro se produz em uma cena com efeitos sonoros, às vezes é possível refazer um fragmento da mesma cena e conservar o resto; isto é, fazer uma emenda no meio da cena. Depende do tipo de som e da ha-bilidade com que o técnico conseguirá dar continuidade, de modo que não se note um corte brusco, uma interrupção ou uma troca de volume do som. Em algumas ocasiões, por mais desagradável que seja, há que regravar toda a cena com efeito sonoro.

Agora o leitor pode entender melhor porque o diretor, apesar de ser muito exigente e consciente, deixa passar pequenos erros. Pode resultar pior o remédio do que a doença. Mas, claro que isto não significa acon-selhar complacência ante os erros e defeitos notórios, que devem ser corrigidos por maior que seja o trabalho a ser refeito.

Depois da gravaçãoA gravação terminou. Mas ninguém pode deixar o estúdio ainda, até

que a gravação tenha sido escutada e aprovada. Por outro lado, ninguém tampouco quer ir embora: todos desejam ouvir o trabalho completo, acabado. O resultado do esforço coletivo.

A gravação é escutada em silêncio, atentamente, para verificar se tudo ficou bem gravado (os equipamentos também podem falhar): se não há nada que necessite ser repetido e regravado. Às vezes, ainda que seja raro, aparecem defeitos graves, que não foram percebidos durante a gravação.

Todavia, é possível corrigi-los. Já não mais por emenda na mesma gravação. Mas se é possível regravar a passagem errada em outro arqui-vo, cortar a parte que se deseja tirar e colocar a parte nova em seu lu-gar. Os bons técnicos são hábeis nisso. São capazes de cortar uma breve frase de poucas palavras, incluindo outras palavras, sem que ao ouvir a gravação, se note a menor emenda. Podem cortar um ruído intruso, a vacilação de algum interprete; unir e emendar.

Para conseguir estas substituições, é importante que o novo trecho fique exatamente no mesmo volume e no mesmo ambiente que o origi-

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nal. Um estúdio vazio, onde se encontra somente o intérprete que tem que gravar o novo pedaço, não irá soar igual que o mesmo trecho da gravação original, feita em um espaço cheio de gente.

Às vezes, ao escutar a gravação, se nota que em uma emenda, uma pausa ficou excessivamente longa, provocando um branco. É preciso cortá-la e deixá-la em sua duração normal.

Em outra emenda, a pausa por acaso ficou demasiada curta, o intér-prete começou a falar muito em cima da gravação anterior. Também é possível “abrir” essa pausa, prolongando e acrescentando um pouco de tempo. Porém não de silêncio, pois ao ouvir-se a gravação se poderia notar a inserção deste momento inerte: a pausa deve ter esse mínimo de sonoridade que dá o ambiente do estúdio – ainda que em silêncio – ao microfone aberto. É preciso impregnar – sujar de ambiente – a pausa que se vai incluir, captando o som do silêncio no estúdio.68

68 Todo profissional ou futuro profissional de rádio deveria conhecer o ex-traordinário conto de Henrich Boll “Os silêncios do Dr. Murke”. Além de ser uma denúncia e uma sátira magistral dos artifícios técnicos da grava-ção, constitui uma lição insubstituível sobre o que se pode fazer manipu-lando, cortando e colando fitas sonoras gravadas. Fica evidente que este grande escritor alemão – Prêmio Nobel da Literatura em 1972 – fez rádio e aprendeu os segredos da profissão.

405Produção de Programas de Rádio

Anexo

I

A medição e o ajuste do tempo

A cronometragem

Quando o programa deve atender à requisitos rigorosos de tempo, deve-se fazer uma medição cuidadosa: cronometrando não só na grava-ção, mas antes, no ensaio geral. Só assim é possível ter uma ideia precisa da duração da transmissão e evitar os cortes e ajustes necessários para enquadrá-la dentro do limite de tempo que a emissora concedeu-nos. Se esperarmos para medir a transmissão somente na gravação, será tar-de: não haverá quando fazer os cortes e ajustes necessários.

Como – tanto no ensaio quanto na gravação – sempre há interrup-ções e paradas, necessita-se de um cronógrafo com dispositivo inter-ruptor, que permita pausar a medição do tempo cada vez que ocorrer um problema no trabalho, e reiniciar com a continuidade da produção. Cronógrafos deste tipo, são os que se usa para medir os períodos de jogo em alguns esportes, tais como futebol ou basquete, nos quais também ocorrem interrupções no jogo que devem ser descontadas. Este é o tipo de cronógrafos que precisamos para medir uma produção de rádio.

Também não é suficiente calcular o tempo total do ensaio e da gra-vação. Deve-se fazer ainda uma medição de tempo parcial, minuto a mi-nuto. Somente assim será possível comparar o que a transmissão durou no ensaio e o que está durando na gravação, e saber se esta última não está se atrasando em comparação com o primeiro.

O assistente cronometrista deve proceder da seguinte maneira:

– Ao começar o ensaio e a gravação o cronógrafo deve estar em zero. No exato momento em que se começa a ensaiar ou a gravar a transmis-

406 Mario Kaplún

são, com a primeira palavra ou o primeiro compasso de música, inicia--se o cronógrafo.

– No ensaio, cada vez que o ponteiro do segundo percorre um novo minuto, o cronometrista marca em seu espelho a linha correspondente. Por exemplo, se o cronógrafo marcar exatamente oito minutos e o en-saio estiver pela linha 117 do roteiro, anota sobre a margem esquerda de seu espelho, ao lado da linha 117 e de forma claramente visível, o número 8, e se, quando o cronógrafo completa o minuto 20 a linha que se estava interpretando era a 304, marque junto a ela a indicação 20´.

– Durante a gravação, volte a fazer a medição da mesma maneira, minuto a minuto, mas fazendo anotações no roteiro com outra cor, para que a minutagem do ensaio e da gravação se diferenciem claramente.

– Cada vez que o ensaio ou a gravação forem interrompidos, pare o cronógrafo instantaneamente (isto significa que o cronometrista deve permanecer muito atento às eventualidades do ensaio e da gravação).

– Como vimos, na gravação (e ainda no ensaio) é muito comum ter que voltar atrás para corrigir e refazer uma passagem em que houve equívocos ou falhas. Logicamente, as passagens que se repetem não de-vem ser cronometradas novamente, pois isto alteraria a medição. Para evitar a sobreposição de medições, proceda do seguinte modo: cada vez que o ensaio ou a gravação pausar, o cronometrista, enquanto para o cronógrafo, marca seu roteiro com uma cruz na palavra na qual se pro-duziu a interrupção. Então, quando a passagem se repetir segue com o cronógrafo parado: e só ao chegar à palavra marcada volta a reinicia-lo. Deste modo, a passagem repetida não é considerada na medição.

– Ao finalizar o ensaio e a gravação, para-se o cronógrafo e anota--se em minutos e segundos o tempo total que marcava neste momento. Assim, obtemos a duração total, por exemplo, 24: 12 (24’12’’). Depois disso, volte a colocar o cronógrafo em zero.

– Ainda se faz uma terceira e última medição (esta já não parcial, minuto a minuto, mas somente total) quando a gravação, já realizada, é escutada direto. Em virtude das repetições sempre pode ter alguns segundos de diferença que se registra quando a gravação definitiva é escutada sem pausas.

407Produção de Programas de Rádio

Os cortes e ajustes Se a medição do ensaio demonstra que o roteiro é grande e excede

o tempo estipulado, o diretor resolve a extensão dos cortes que se deve fazer. Dos que já tem previstos, escolhe os que calcula necessários para ajustar a gravação ao tempo.

Mesmo se o ensaio mediu exatamente tempo de transmissão delimi-tado, o diretor deve se preocupar e tomar medidas de precaução, porque a experiência demonstra que normalmente a gravação sempre tende a ser mais lenta e alongar-se com relação ao ensaio. Os atores, mais pos-suidores de seus personagens, tendem a fazer mais pausas e, para dar mais expressão à suas falas, vão perdendo segundos, o próprio diretor tende a aumentar a duração da música, para que suas frases expressivas sejam ouvidas por completo. O fato é que, geralmente, o mesmo roteiro dura mais na gravação que no ensaio. Portanto, se um ensaio excedido em tempo equivale a uma luz vermelha, um ensaio exato não significa que o diretor pode ficar tranquilo e despreocupado, mas equivale à uma luz amarela.

Se o excesso de tempo não é muito, talvez o diretor opte por não fazer cortes. Talvez o ensaio foi um pouco lento, hesitante, alquebrado e o diretor acredite que pode ganhar alguns segundos ou minutos pedin-do ao elenco que levem a gravação com mais vivacidade e mais ritmo. São muitos os segundos que se podem ganhar durante uma gravação de meia hora atenuando as pausas, falando um pouco mais rápido.

Mas tenha muito cuidado com esta opção. Em um programa de rádio, especialmente se tiver caráter educativo, nunca é bom que os intérpretes se apressem demais e “corram”. Talvez assim, consiga-se fazer caber todas as palavras, mas o conteúdo será perdido. A emissão não vai cumprir o seu papel educativo. Se o resultado tem de ser um script sem pausas, sem “respiração”, sem expressão, uma chuva de palavras, é preferível fazer cortes. Em qualquer caso, fazê-los opcionalmente (ver abaixo).

Depois de indicar-lhes cortes necessários, os intérpretes devem fa-zer um rápido teste de leitura das passagens afetadas pelos cortes; em primeiro lugar, para garantir que todos tenham entendido e que não se tenha cortado demais ou de menos; e, em segundo lugar, para verificar o encadeamento: para que vejam como irão articular na leitura expressiva a passagem que antecede o corte, com a réplica depois dele, a fim de manter a continuidade do conjunto.

408 Mario Kaplún

Durante a gravação: o controle de tempoComo já indicado, durante a gravação o cronometrista volta a medir

a emissão minuto a minuto e a comparar frequentemente o tempo que está durando a gravação com o que a mesma parte do roteiro durou no ensaio.

A razão para este procedimento pode ser inferida a partir do que foi exposto acima: o tempo de gravação e do ensaio não são idênticos nem coincidem; em geral, este último tende a levar mais tempo do que o pri-meiro. Se não se faz o devido controle, minuto a minuto, pode-se ter a desagradável surpresa de perceber que a emissão que pareceu folgada e sem problemas de tempo no ensaio, excedeu o tempo na gravação. Daí a necessidade de controlar o tempo de gravação constantemente, para assegurar-se de que esta não está demorando muito.

Periodicamente, o diretor pergunta ao assistente: “Estamos bem de tempo? Não estamos atrasando muito?”. Para fornecer estas informa-ções o cronometrista compara ambos os tempos – o da gravação e o do ensaio – no mesmo trecho do roteiro: quantas linhas acima ou abaixo estão agora, considerando a mesma quantidade de tempo. E pode dizer ao diretor: “Estamos quase dois minutos atrás com relação ao ensaio”. Ou “Estamos quase igual ao ensaio”. Ou “Ganhamos cerca de um mi-nuto”.

Assim mesmo, se o roteiro era longo e teve que sofrer cortes, esta comparação permite saber se os cortes efetuados – e / ou os ajustes de ritmo – tornaram possível ganhar os segundos ou minutos necessários.

De acordo com esta informação, o diretor vai regulando o ritmo de gravação e, se necessário, acenando para os intérpretes não atrasarem ou até mesmo para se apressarem um pouco mais.

Se alguns dos cortes planejados estão localizados nas últimas páginas do roteiro, podem ser feitos de forma opcional. Se ao chegar-se a esse ponto de gravação o cronógrafo indicar que já se ganhou segundos ex-cedentes, o diretor pode considerar que estes cortes adicionais não são mais necessários e advertir aos intérpretes que não os levem em conta.

Quando o script é curtoNo exemplo acima, não consideramos a possibilidade inversa: que

o script seja curto. Nós não a consideramos porque, sem dúvida, é menos dramática. No entanto, se o tempo atribuído ao programa é de

409Produção de Programas de Rádio

25 minutos, não deixa de ser uma falha grave entregar uma gravação de 18.

Mas, na realidade, o diretor pode fazer muito pouco nesse caso. Po-de-se pedir aos artistas para “esticar” um pouco de gravação falando mais devagar e com mais pausas; pode-se alongar as cortinas musicais em alguns segundos. Mas só um pouco. A emissão feita de modo lento, sem ritmo, é chata e entediante. O diretor, neste caso, não pode suprir ou salvar a responsabilidade do roteirista.

410 Mario Kaplún

Anexo

II

O sistema de gravação em duas etapas

Alguns técnicos, para simplificar a montagem de uma emissão, suge-rem que a gravação seja feita em duas etapas: utilizando um gravador de pista dupla, gravar primeiro, em uma das pistas, o texto “seco” (ou seja, apenas a voz), deixando pausas previamente calculadas e cronometra-das, para inserção das cortinas e efeitos, e, em seguida, tranquilamente, sem ninguém no estúdio, fechar-se na cabine de gravação e adicionar na outra faixa a música e os sons. Este método de separar o texto e a ambientação e manejá-los independentemente, parece tentador; mas, na prática, raramente funciona. Eles criam muitos problemas no nive-lamento dos volumes de voz e de efeitos sonoros e a sincronização da música com o texto.

O melhor é gravar de uma vez a emissão completa, como aparece no script: vozes, inserções de música, sons, tudo em ordem. Assim, alcan-ça-se coesão, unidade, ritmo, volumes bem equilibrados.

No entanto, emissões de montagem e interpretação particularmente complexas, podem ser realizadas em duas etapas, se o procedimento for o seguinte:

1ª) Gravação seca. Em uma primeira etapa grava-se apenas o texto, a voz. Nos locais onde devem ir inserções de música ou de som, os in-térpretes fazem breves pausas convencionais (não importa de quanto tempo, porque no final o técnico aumentará a distância, tanto quanto necessário). Esta gravação seca é feita em toda pista e a velocidade 15 para não perder brilho em excesso ao copiá-la. Ainda incluem-se nela, naturalmente, os passos e outros sons de estúdio.

411Produção de Programas de Rádio

2ª) Gravação com trilha ou final. Copia-se a gravação a seco para um outro gravador e, simultaneamente, vai-se mesclando esta segunda gravação à música e aos sons gravados. Sempre que for adicionar uma entrada musical ou um efeito, o operador para o gravador onde está a gravação seca, faz a inserção e, logo depois, volta a ligar o gravador.

O sistema tem suas vantagens significativas:

– Os atores não se cansam desnecessariamente. As falhas técnicas não os afetam. Somente repetem o texto quando eles mesmos erram. Elimina-se o problema cansativo de fundos musicais que obrigam re-fazer toda uma longa passagem quando alguém comete algum erro de leitura.

– Durante a gravação a seco o diretor pode concentrar-se totalmente na interpretação e na entonação.

– Na gravação com trilha, se o efeito sonoro ou musical der errado, pode-se repeti-la quantas vezes forem necessárias sem cansar os intér-pretes. Estes já fizeram a sua parte e a gravação a seco está lá, para ser reproduzida quantas vezes forem necessárias até que a montagem fique perfeita.

– Porém é um método que consome muitas horas de trabalho do técnico. Também requer um técnico de grande perícia. E com uma cabi-ne de gravação completa e muito bem equipada. Apenas aconselhamos, pois, para emissões particularmente complexas.

412 Mario Kaplún

Epílogo da edição brasileira

O mestre apaixonado

Q uando meu pai escreveu este livro a internet não existia e nin-guém imaginava que chegaria a existir. A música circulava em discos de vinil e cassetes. As rádios iam ao ar com programas

ao vivo ou com um operador que colocava discos ou fitas e nenhum computador podia fazer seu trabalho. Para produzi-lo, meu pai usou uma máquina de escrever, na qual teclava ruidosamente até bastante tarde da noite e, a seu pedido, desenhei com tinta nanquim os diagra-mas que apareciam em alguns capítulos.

Daquele tempo a este mundo digital de hoje muito mudou, no rádio e na vida. Entretanto, este livro segue sendo lido em universidades e escolas de comunicação e até surge, aos 35 anos de sua primeira edição, o interesse por traduzi-lo ao português.

Sem dúvida algumas coisas ficaram velhas desde então. O próprio Mario pensou em atualizá-lo quando foi publicada a edição mexicana, nos anos 90. Mas desistiu ao notar que inclusões tardias lhe fariam per-der a unidade e a coerência. O livro, em sua versão original, havia se tornado um clássico, e parece que segue sendo-o.

As razões para que isso tenha ocorrido podem ser várias. Talvez a totalidade de seu percurso, que vai desde a ideia inicial de um programa de rádio até os detalhes mínimos da emissão ou gravação. Talvez seu en-foque desde uma perspectiva educativa, com sólidos fundamentos pe-dagógicos. Sem dúvida o ameno e a clareza de sua escrita, que combina rigor conceitual e um sem fim de exemplos concretos.

Eu creio que a principal explicação desta vigência tem a ver com a origem do livro: uma grande experiência de fazer rádio, de muitos modos diferentes e, por sua vez, a partir de uma perspectiva central que não mudou ao longo de sua vida: a do rádio como um meio para fazer pensar e sonhar, para provocar debate e emoção.

413Produção de Programas de Rádio

A rádio já havia conquistado para sempre a meu pai quando se tor-nou professor na Argentina dos anos 40. Como contei em outro texto, pouco antes de sua morte:

Sua paixão pela rádio foi, antes de mais nada, uma paixão de ouvinte. Paixão compartilhada por milhões, em uma Buenos Aires onde progra-mas como “Chispazos de tradición” obrigaram os cinemas de bairro a interromper sua programação para transmiti-los e logo a dar lugar a suas legendárias “fonoplateias”, dando de imediato trabalho a centenas de atores e músicos desempregados pela crise. Um destes espaços foi o “Platea Club”, da Rádio Stentor, um programa de “atualidade cultural” cujo diretor facilitou o início de uma experiência seminal que lhe pro-pôs um jovem Mario Kaplún de 17 ou 18 anos: o Clube do Livre Debate, onde sábado a sábado uma multidão de jovens discutia sobre tudo.

Entretanto Mario consegue, por casualidade, seu primeiro trabalho como “faz tudo” em um estúdio de gravações. Gravar nos anos 40 era na realidade produzir discos, ou bem precárias gravações de uso publi-citário com técnicas já esquecidas, anteriores à fita magnética. Aquele estúdio sobrevivia penosamente, até que uma agência decide concentrar ali a transmissão de três ou quatro radioteatros que, com o patrocínio de uma conhecida marca de sabão, emitia cada tarde em distintas emisso-ras. Não para gravá-los, o que era impossível, mas sim para evitar a cor-rida de toda a equipe de atores, diretores e roteiristas de uma emissora para a outra. Vendo e ouvindo tarde a tarde, Mario começa a entender um ofício que o acompanharia a vida toda.

Em 1º de setembro de 1942, no dia seguinte de completar seus 19 anos, Rádio do Estado e a Rede Argentina de Emissoras Splendid trans-mitem seu primeiro roteiro: um ciclo sobre a historia argentina, que for-mava parte da programação da chamada “Escuela del Aire”. Para aquela pioneira experiência de rádio educativa, este professor sem aula havia sido um achado valioso, por que os roteiristas comerciais não tinham interesse ou não se adaptavam e os educadores não conheciam o ofício radiofônico. O professor não voltou às aulas até muito depois, mas a comunicação educativa o havia conquistado para sempre.

Segundo parece, aqueles programas eram bastante retóricos e gran-diloqüentes, e seu autor resgata desses dias, na realidade, a aprendiza-gem de um ofício: escrever dois roteiros por semana, dirigir uma equi-pe de atores e técnicos, ir ao ar com um mínimo de ensaio, criar uma

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ambientação sonora convincente com efeitos artesanais... e tudo direta-mente no ar, sem gravações.

No início dos anos 50, meu pai emigra ao Uruguai e ali começa outra história, que combina o rádio, a televisão e a publicidade. Seu primeiro programa radiofônico desses anos se chamava “Buenas noticias”, que buscava e compartilhava, dia a dia, o que as pessoas faziam por outras pessoas e não costumava estar na agenda informativa de ninguém. Mais tarde, já nos anos 60, começa sua vida de viajante incansável pelo conti-nente latino-americano. Como dizia naquele texto, se tratavam de múl-tiplas viagens:

Em primeiro lugar, os que realizaram seus radioteatros (agora sim gravados) por todo o continente, em centenas de milhares de discos e cassetes, em centenas de emissoras e milhares de grupos, em espanhol, em quíchua, em aimará, em português. O Padre Vicente e Jurado no 13, entre outros, ganharam uma audiência incomum e incessante (...). Jurado no 13 se fez também sobre a base do que logo Mario chamaria “pré-alimentação”: uma viagem por sete países latino-americanos onde, junto com minha mãe, levaram a vida, os sofrimentos e as esperanças que logo traduziram em centenas de programas. Em muitos deles anda a minha voz (personagem infantil ou adolescente) e a de meu irmão mais velho (cantando e tocando a guitarra), entreverada com a de cem atores de primeiro nível (...).

Em algum momento, meu pai falou e escreveu sobre a modesta téc-nica daqueles programas multipremiados. Com franqueza, creio que exagera. Embora seja verdade que o estúdio de gravações não era de úl-tima geração e a equipe de produção quase familiar, o cuidado na reali-zação era absolutamente obsessivo. O rigor com que dirigia as gravações resultava francamente insuportável em alguns momentos, mas, como aconteceu depois em muitas outras áreas, com o tempo todos termina-vam lhe agradecendo.

Esse rigor e essa paixão se transformaram , em seu momento, nes-te livro. Talvez por isso, então, segue vigente. Porque ainda que muitas coisas tenham mudado desde aquele mundo a hoje, a alma e a vida do rádio, a paixão de fazer rádio seguem estando aqui.

Gabriel KaplúnMontevidéu, agosto de 2013

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Os tradutores

Antonio Francisco Magnoni - Professor da Graduação e da Pós-graduação no Departamento de Comunicação Social da Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho (UNESP). Jornalista pela Universidade de Bauru, doutor em Educação pela UNESP e pós-doutor pela Universidad Nacional de Quilmes. Tradução: Capítulo 16 - O processo de produção - a preparação e Capítulo 17 - A execução: o ensaio, a gravação.

Bibiana De Paula Friderichs - Professora da Universidade de Passo Fundo (UPF). Graduada em Comunicação Social - Radialismo e em Comunicação Social - Jornalismo pela UPF. Mestra e doutora em Comunicação Social pela PUCRS. Tradução: Capítulo 4 - Outros fatores básicos da comunicação.

Debora Cristina Lopez - Professora do curso de Jornalismo e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Graduada em Jornalismo pela UEPG, mestra em Letras pela Unioeste e doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA. É coorde-nadora adjunta do Grupo de Pesquisa Rádio e Mídia Sonora da Intercom. Tradução: Capítulo 10 - A elaboração do roteiro: princípios básicos e Capítulo 11 - O roteiro de uma fala ou monólogo.

Juliana Gobbi Betti - Graduada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade Metodista de São Paulo. Especialista em Filosofia e Direitos Humanos pela PUCPR. Mestra e Doutoranda em Jornalismo pela UFSC. Tradução: Anexo I - A medição e o ajuste de tempo, Anexo II - O sistema de gravação em duas etapas e Epílogo da edição brasileira - O mestre apaixonado.

Juliana Gomes - Graduada em Comunicação Social - Jornalismo e Especialista em Gestão de Processos de Comunicação pela Universidade Regional do No-roeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí). Mestra em Jornalismo UFSC. Tradução: Capítulo 3 - A linguagem radiofônica.

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Luciano Klöckner - Professor da Faculdade de Comunicação Social da Ponti-fícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Graduado, mestre e doutor em Comunicação Social pela PUCRS. Pós-Doutor pelo Instituto de Estudos Jornalísticos, da Faculdade de Letras, da Universidade de Coimbra.Tradução: Capítulo 12 - O roteiro de uma reportagem radiofônica e Capítulo 13 - O roteiro de um relato com montagem.

Luiz Artur Ferraretto - Professor do curso de Jornalismo e do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Graduado em Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo Gráfico e Audiovisual, mestre e doutor em Comunicação e Infor-mação pela UFRGS. Coordenou o Grupo de Pesquisa Rádio e Mídia Sonora da Intercom (2007-2010). Tradução: Capítulo 5 - Os formatos radiofônicos

Maria Cláudia Santos - Graduada em Jornalismo pelo Centro Universitário de Belo Horizonte (UniBH). Mestra em Gestão Social e Desenvolvimento Lo-cal pelo Centro Universitário UMA. Tradução: Capítulo 6 - Música, som e efeito e Capítulo 7 - A informação no rádio.

Nair Prata - Professora do curso de Jornalismo e do Programa de Pós-Gradua-ção em Comunicação da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Jor-nalista pela UFMG, mestre em Comunicação pela Universidade São Marcos, doutora em Linguística Aplicada pela UFMG e pós-doutora em Comunicação pela Universidad de Navarra. Coordenou o Grupo de Pesquisa Rádio e Mídia Sonora da Intercom (2011-2014). Tradução: Capítulo 6 - Música, som e efeito e Capítulo 7 - A informação no rádio.

Nélia Del Bianco - Professora da Faculdade de Comunicação e do Progra-ma de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de Brasília (UnB). Professora do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Goiás (UFG). Mestra em Comunicação pela UnB e Doutora em Comunicação pela USP. Pós-doutora pela Universidade de Sevilha. Coordenou o GT Rádio da Intercom (1995-2000). Tradução: Capítulo 8 - A entrevista e Capítulo 9 - Como se projeta um progra-ma de rádio

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Patrícia Rangel - Professora das Faculdades Integradas Rio Branco e da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM-SP). Graduada em Publicidade e Propaganda e em Jornalismo pelo Centro Universitário FIAM, mestra em Comunicação na Contemporaneidade pela Faculdade Cásper Líbero e doutora em Processos Comunicacionais pela Universidade Metodista de São Paulo. Tradução: Capítulo 14 - O roteiro de um radiodrama e Capítulo 15 - Frente ao microfone.

Valci Regina Mousquer Zuculoto - Professora da Graduação e da Pós-Gra-duação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Jornalista pela UFRGS, mestra e doutora em Comunicação pela PUCRS. Pós--doutora pela ECO/UFRJ. Coordena o Grupo de Pesquisa Rádio e Mídia So-nora da Intercom. Tradução: Capítulo 1 - O Rádio como instrumento de educação popular e Ca-pítulo 2 - A natureza do meio.

Wanir Campelo - Professora do Centro Universitário de Belo Horizonte (Uni-BH). Graduada em Comunicação Social pela UFMG, especialista em Língua Portuguesa pelo UniBH e mestra em Educação, Administração e Comunicação pela Universidade São Marcos. Tradução: Capítulo 6 - Música, som e efeito e Capítulo 7 - A informação no rádio.

Wellington Leite - Professor das Faculdades Integradas de Bauru (FIB). Gra-duado em Comunicação Social com habilitação em Rádio e Televisão, mestre em Comunicação Midiática e doutorando em Mídia e Tecnologia pela UNESP. Tradução: Anexo I - A medição e o ajuste de tempo e Anexo II - O sistema de gravação em duas etapas.

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Os revisores

Doris Fagundes Haussen - Professora do Programa de Pós-Graduação em Co-municação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Graduada em Co-municação Social/Jornalismo pela PUCRS, mestra e doutora em Ciências da Comunicação pela USP. Desenvolveu pesquisa de Pós-Doutorado na Universi-dade Autônoma de Barcelona. Coordenou o Grupo de Pesquisa Rádio e Mídia Sonora da Intercom (1991-1993).

Eduardo Meditsch - Professor do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pesquisador 1d do CNPq. Graduado Comunicação Social/Jornalismo pela UFRGS, mestre em Ciências da Comunicação/Jornalismo pela USP e doutor em Ciências da Comunicação/Jornalismo pela Universidade Nova de Lisboa. Realizou estágio sênior de pós--doutorado na University of Texas at Austin com bolsa da Capes. Coordenou o Núcleo de Pesquisa em Rádio e Mídia Sonora da Intercom (2003-2004).

Sonia Virgínia Moreira - Professora do Departamento de Jornalismo e do Pro-grama de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Graduada em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Gama Filho, mestra em Jornalismo pela Universidade do Colorado nos Estados Unidos, doutora em Ciências da Comunicação pela USP. Coordenou o Núcleo de Pesquisa em Rádio e Mídia Sonora da Intercom (1994 e 2000-2002).

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Este livro foi impresso para a Editora Insular em setembro de 2017.