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RIO*I)JE JANEÍtlO.
B.. L. G S M E R , EDltTOR
69,—RUA DO OUVIDOR,—69
1860. -»
Si''
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OBRAS DE ARLINCOURT. - * • -
4 òodoa de sangue, romance histórico, 4 volumes
e,n 8.0, 8*000. Á estrangeira, 2 volumes em 8.°, 4*000. liervanaria, 2 volumes em 8.°, 3*800. M&Lseguida de Nathalia, 2 volumes em 8.°, 4*000. Ipíi^oê, novella, 2 volumes em 8.*» 4*0.00. Jacques.Arteville, chronica flamenga do século XIV,
2 volumes em 8.°, 3*600. Os esfoladores, ou a usurpação e a peste, fragmen
tos históricos, 2 volumes em 8.°, 4*000. Os rebeldes, chronica do século XIV, 4 volumes
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AS MINAS DE PRATA
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J. DE ALENCAR.
AS MINAS DE PRATA
R O M A N C E .
,.tm -Ã.IVM V.
RIO DE JANEIRO.
B. I. GARNIER, EDITOR
69,—RUA DO OUVIDOR,—69
1866.
TYPOGRAPHlA DE QUIR1NO & IRMÃO
rua da Assembléa n. 54
Em que o Tato fura a casca do queijo, mas não chega ao miolo.
Terça feira da Purificação, em que se contavam
dois de fevereiro do anno da grsça de 1609, O
Provedor-mór da alfândega de S. Sebastião do
Rio de Janeiro estava oecupado em rever papeis
velhos, quando sua mulher lhe mandou avisar pela
caseira, que um padre da Companhia o procurava.
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O fidalgo ordenou que o fizessem entrar, e interrompendo as suas notas, esperou a visita an-nunciada.
D. Diogo de Mariz teria cerca de trinta annos; mas os últimos cinco decorridos depois da catas-trophe que lhe roubara de um só golpe toda a família, haviam assolado aquella mocidade robusta e viçosa. A sua fronte alta e intelligente, como a de seu pae, começava á despovoar-se, e a tez morena, menos crestada do sol do que outrora, parecia curtida pela dor e saudade.
Mas o que perdera em brilho e frescor da idade, ganhara em gravidade de aspecto e nobreza de gesto. Começava a adquirir a belleza varonil, que adornava o busto veneravel de D. Antônio de Mariz, ainda nos últimos dias da sua existência.
A sala em que st achava o fidalgo era como a pagina desdobrada do intimo de sua alma : ali estavam em torno, a tingi-lo, as recordações mais palpitantes de sua vida. Os retratos de seus pães, da Cecília e Isabel pendiam das paredes; e em frente á papeleira onde escrevia, um pintor do tempo imaginara sob as indicações do fidalgo uma copia muito semelhante da. casa do Paquequer, assentada sobre o rochedo á margem do rio. A
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um lado via-se uma palhoça, e encaminhando-se á ella um indio que figurava Pery : no terreiro D. Antônio passeando com um mancebo fidalgo que representava Álvaro de Sá. Mais longe, perto do casarão dos aventureiros, a desengonçada figura de Ayres Gomes. D. Lauriana e as moças appareciam sentadas nos degráos da escada, trabalhando em obras de agulha e debuxo.
Bastava ao fidalgo erguer os olhos e circular esse aposento para se imaginar ainda no Paque-quer, vivendo a alegre e descu.idosa vida de mancebo que fruira naquelles ermos, cercado de sua família. Então embalava-se algumas horas nessa 'doce illusão, até que afinal lhe subia á memória uma idéa pungente que amargurava todas as re-miniscencias; recordava-se com desespero que fora elle, insciente é verdade, a causa primeira da calamidade que o isolara no mundo.
Nesse instante, ao recolher no canto da arca as notas que escrevia, assaltou-o essa idéa suscitada pela vista de um objecto ali guardado. A visita que -entrou depois veio encontra-lo submerso no doloroso recordo dos tempos idos.
O P.e Gusmão de Molina, pois era elle quem procurava á essa hora o provedor, penetrou no
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aposento com a orgulhosa humildade que acompanhava o jesuita ao palácio, como á choupana ; e era 'o traço característico dessa , mais que de nenhuma outra ordem religiosa. Cada membro delia sentiarse pequeno como individualidade, mas como parte da poderosa associação conhecia que nelle estava a força da Companhia. A humildade trajando as vestes profanas da soberba, o corpo do apóstolo sob a túnica do patriciado; eis- o jesuita.
Da porta ao fidalgo que se erguera para recebe-lo , o P.e Gusmão fez as três reverências, conforme o rithual da Companhia, cruzando as mãos no peito á moda oriental. Mas não foi unicamente á cortezia que se applicou a attençâo do frade durante esse curto instante : aproveitando o movimento da cabeça, seus olhos circularam duas vezes o aposento, uma de alto á baixo, outra da esquerda á direita.
— E' o senhor D. Diogo de Mariz, em presença de quem estou?
— Sim, Reverendo. Queira ter a bondade de acommodar-se.
O jesuita sentou-se. — Minha pessoa é desconhecida á vossa mercê,
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senhor Provedor; mas não assim o meu nome. Eu sou o P.e Gusmão de Molina !...
— Gusmão de Molina... Não me recordo I .. disse lentamente o fidalgo sondando sua memória.
— Não admira, pois faz mais de anno que viu esse nome e uma vez tão somente.
— Dir-me-ha V. Paternidade onde o vi? — Na carta que em setembro do anno atra
sado escrevi a vossa mercê, de Lisboa onde então me achava.
— Sobre que objecto ? perguntou o fidalgo, como quem se lembrava, mas queria verificar a lembrança.
— A propósito do roteiro que pertenceu á Ro-berio Dias e sè acha em poder de vossa mercê.
— Ah ! exclamou D. Diogo. — Nessa carta avisava eu ao senhor Provedor
haver-se perdido a que sua mercê escrevera anteriormente á mulher de Roberio Dias...
O frade com os olhos cravados no semblante do fidalgo proferiu as ultimas palavras e continuou repetindo:
— Escrevera á mulher de Roberio Dias; pelo que, sendo possível apresentar-se com ella alguma pessoa, inculcando-se procurador daquella dama,
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para receber o roteiro ; prevenia em tempo que só á mim, em nome da Companhia, cabia reclama-lo, pois o filho de Roberio Dias e seu único herdeiro, é nosso irmão noviço.
— Recordo-me agora perfeitamente ; tenho-a ali. D. Diogo ergueu-se, e abrindo a arca tirou de
um escaninho um papel, que estava atado á um embrulho cerrado e lacrado com pingos verdes. Desdobrando o authographo já amarellado do P.e
Molina, e percorrendo-o com os olhos para certificar-se de sua identidade, o apresentou ao jesuita. Este agradeceu; por comprazer recebeu o papel e leu o que elle sabia de cór.
Emquanto isto, o fidalgo de novo acabrunhado por essa evocação do passado, que ainda á pouco o pungira, reclinára a nobre fronte custada de magoas. Ao erguer a vista do papel deu o P.e
Molina com essa phisionomia quebrada por triste desanimo, e torvou-se ; os cantos de sua boca plicaram-se como duas garras, que elle teve logo o cuidado de cobrir com ura sorriso angélico.
— Vejo porem que foi em pura perda o aviso, pois me apresento tarde para reclamar o nosso direito!... insinuou a voz dolente do frade.
O fidalgo solevou a fronte sorpreso :
AS MINAS DE PRATA t i
— Donde vê tal, V, Paternidade?...
—Do modo pezaroso com que me recebe o senhor Provedor, o qual por seguro não annuncia boa nova.
D. Diogo sorrio com melancholia :
— Não quero mal á V. Paternidade pela severa lição de cortezia que me deu agora , pois a mereci. Não é com rosto magoado e animo pezaroso que se agasalha o hospede que nos Deus envia ; e nem D. Diogo de Mariz costuma semelhante hospitalidade. Mas si V. Paternidade soubesse que passado doloroso acorda em mim á menor circumstancia relativa á catastrophe que me enlutou o resto da existência?...
— A «"orte do senhor D. Antônio de Mariz, pae"dA11 V mercê?...
— Teve V. Paternidade noticia delia? — Achava-me nesta cidade quando aconteceu. — Talvez não a referiram com todas as par
ticularidades.
— Ouvi fallar apenas de longe; e pesou-me não saber mais miudamente do acontecido.
— Si o P.e Molina a deseja ouvir, creio que acharia consolo em confiar-lhe as minhas penas,
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e especialmente um escrúpulo de consciência, que nada ainda pôde apagar.
— Para mim será gosto e dever escutar a sua mercê. Essas dores occultas e recônditas, sao as que buscamos nas profundezas d'alma, com mais affan que o mineiro as veias de ouro nas entranhas da terra.
O P.e Molina ouviu em grave silencio, sem perder um gesto da phisionomia do fidalgo. Seu olhar agudo e penetrante apalpava o seio daquella alma que se desnudava ; e sondando o ponto em que ella parecia fender-se, conhecia não ser mais do que o Jisim da pedra.
— As almas de mais forte tempera, pensava elle, são sujeitas á essas falhas ; como são justamente as pedras rijas, que racham mais profundamente.
D. Diogo começou a narração dos factos que precederam a catastrophe do Paquequer desde o momento da morte por elle dada involuntariamente até o dia da. sua partida para a cidade de S. Sebastião em busca de soccorro.
— Quando voltei áquelles lugares onde havia deixado quanto amava neste mundo, só encontrei a terra devastada pelo fogo. As ruinas que jun-
AsífiííAè bÊíiRtTA 13
cáWm « c'hao em que fóirá à cásá, àtíriühcia-rám-me ío'goi a férrive! caiastrophe. Na seguinte manha minha gônte captivou três indias velhas, únicos restos da tribu aymoré, que vagavam na matta próxima ; delles sube os pormenores do acontecimento fuuesto. Meu pae alcançara morte digna de um cavalleiro porttrguez ; perecera sepultando comsigo os seus inimigos.
A' recordação do heroísmo paterno, um ligeiro sorriso trespassou a máscara triste do fidalgo ; porem breve apagóu^se, deitando a phisionomia mais opaca e torta que d'antes. Abriram-se dos olhos aos cantos da4 boca duas rugas profundas, onde jaziam sepultas, mas não desfeitas, as dores cruas' daqüella câtâstròpne :
— Avalie V. Paternidade de minha rateeria* e angustia nesse transe. Pois sobre essa chaga Viva imagine que punham um ferro em braza, é terá uma idéa longe do que soffri, lembrando que eu era o causador da desgraça dos meus!. . .
A nobre fronte do fidalgo vergou cotíio o cimo do cedro robusto, quando á carcoma ataca-lhe o cerne.
O P.° Molina, que o ouvirá ettt grave sileticio, faliou então ; e com a éfbc(tíehcia: pérSüáslva que
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14„ AS. MINAS DE PRATA
possuia no mais alto gráo, espargiu nas ulçeras dessa, alma chagada o balsamo de sua palavra ungida e elevada. Aproveitou habilmente esse espiraculot
que se abria naquella alma para. insinuar-se dentro delia.
-^, A Providencia é que desenvolve das varias; causas os .effeitos diversos; tial poder não fo» dado ao homem, simples, utensílio na grande fabrica do universo. Quantas vezes do peccado não se gera grande virtude, ou obra meritoria? E, quantas do cumprimento do dever as desgraças ?i. Praticastes uma acção innocente, porque não tivesrj tes a intenção do mal. ,t
— Quem osabe !... exclamou o fidalgo. j — Sei-o eu que prescruto os refolhos de vossa t
alma. Não a tivestes, não. E pois offendeis o Senhor,] deixando-vos abater por semelhante pensamento,, e gastando na dôr uma coragem de que tanto ha mister a Santa Religião Catholica e o serviço de El-rei. O sophisma de vossa consciência é o mesmo de Job amaldiçoando o dia em que nasceu ! ...
A' medida que o frade faliava, sentia D. Diogo abrandar a angustia de sua alma. Mais calmo [toude reatar o fio á narração :
— Consinta V. Paternidade que finalise esta pe
AS MINAS DE PRATA 1 5
nosa narrativa. O que resta, mais de perto lhe interessa, pois explica como se acha em meu poder o manuscriptò de Roberio Dias.
— Escuto á Vossa Mercê, como devo.
— Apezar da cruel certeza que viam meus olhos e da affirmativa das velhas selvagens, a esperança ainda não me abandonou de todo. Tratei de percorrer os arredores á ver si descobria algum vestígio animador. Demos então com um claro na mata, onde sem duvida uma partida de gente de D. Antônio de Mariz travara combate mortal com os aymorés. De uma banda estavam alinhadas as ossadas dos aventureiros já descarnadas pelos abutres, mas cobertas ainda de alguns trapos das roupas. Contamos nove. Da outra banda haviam seguramente vinte e tantos esqueletos de selvagens, signal de que os nossos haviam vendido a vida bem caro.
— Esse combate deve ter precedido de perto a catastropbe em que*' a tribu dos aymorés foi destruída.
i — De que induz isso V. Paternidade?
— Os selvagens tem por dever de religião en-i terrar os seus mortos depois do combate, e si o não
1 6 AS MINAS DE PRATA
fizeram é pqrque sobrevejo a catastrophe em qufj
pereceram I < — E' bem possível, Um dos homens que eu
havia assòldado para acompanhar-me, remephendo| com a ponta de um chuço naqualle monturo de; ossos e trapos, espetou uma bolsa de malha ; e abrindo-a na esperança de topar com alguma moeda,| achou um*rolo de papel. Quiz o acaso que observando^ á distancia me achegasse, á tempo de lêr-1 lhe por cima do hombro a palavra roteiro. Apoderei me logo do manuscrito, que pelorotulo conheci pertencer ao famoso Roberio Dias, do Sal- i vador, filho de outro de igual nome, por alcunha Moribeca, descobridor das minas de prata.
— E o manuscrito?... disse com paciência evangélica o P.s Molina.
— Deixe V. Paternidade que conclua dé uma vez: depois conversaremos do mais. O homenVj que achara a cinta, não sabia ler felizmente ; mas da primeira palavra roteiro que me escapara, con cebera elle suspeitas, ainda que erradas, do valor do papel. Era em 1604, e então já envelhecida a historia das minas de prata que tanto rumor fizera, começara a ganhar muita voga a fábula da cidade] encantada ou reino do el-dora^q, Para ahi torceu, a
AS MÍNAS DÉ P^ATA 17
fatitásiâ do íttàriòlá, que sè itírágináva já senhor dê palácios e thesouros. Desenganei-o de sua pre-tençãb; ô aceitando ó deposito sagrado que Deus mè incumbida èm nome dos ausentes e desvalidos, apenas chegado ao Rio de Janeiro escrevi á esposa dé Roberio que sube viver ainda nd Bahia. Mais de anno decorreu Sem" resposta alguma, ejáeüiadé novo insistir, quando me vieram ás mãos às respeitáveis léttras de V. Paternidade.
— Nefcte casO, résfà unicamente qUè eu apresente os meus poderès para recèiièr d rtianuá-criptoí... murmurou o P.e Molíha.
— Taes podèrés, acredito que V. Paternidade os tem, pois sabedor como é e tão respeitável de sua jtâíssóá 6 ministério sagrado, nãò seria admissível quo os ignorasse, ou sem elles se apresentasse ; de
I resto em tempo e lugar próprio averiguaremos esse ponto.'
— Não sei qual tèmpò e lugar sejam mais próprios do que este em que estamos I retorquiu o P.6 Moíiná sempre áfiavel ecortéz.
D. Diógb èrigio d busto com a altivez que ' tiôrriárá dó pàí:
— Lembro haver dito á V. Paternidade que II aceitara' dé' Deus o deposito d[üe éílé rilò incum-
1 8 .AS MINAS DE PRATA
bira em favor dos ausentes e desvalidos. Pois bem, esse deposito sagrado, para que delle me exonero é necessário que sua restituição se faça perante official de justiça, e fique era publico e raso no livro de notas. E' hoje dia sanctificado, e pois amanhã pôde V. Paternidade receber o que de mim requer, comparecendo no cartório do Tabellião Ferreira, antes da alfândega.
— Ecoe homo l murmurou comfsigo o frade.' O semblante do P." Molina ficou impassível;
sua attitude não soffreu a menor alteração ; mas o ligeiro empanado dos olhos, effeito de uma conversão da luz para o intimo, denotava que uma idéa grave surgira no seu espirito, que reclamava máxima atlenção. O ^Visitador vira com as ultimas palavras do fidalgo surgir um obstáculo formidável aos seus planos tão bem combinados ; e tomando o peso a esse fardo, dispunha-se' a carrega-lo sobre os hombros, e alija-lo á banda para desimpedir o caminho.
— Ouvi a V. Mercê, sem logo ir-lhe á mâo, esperando pelas razões em que fundou a resolução tomada ; mas ou me engano eu, ou não foram ellas deduzidas.
— Para que fim, P.e Mestre ? A minha honra
AS MINAS DE PRATA 1 9
me ordena de proceder nesta conformidade, e pois dispenso argumentos. Pôde V. Paternidade produzir outros mais engenhosos; nenhum lhe aflirmo de maior força que aquelle.
— Permitia sempre o senhor Provedor observar-lhe que o escripto publico e suas solemnidades só é uso exigi-lo, quando existe. uma obrigação anterior revestida de igual sacramento. Ora é S. Mercê quem confessa tçr recebido esse deposito de Deus, sem ter passado, titulo algum ; parece que da mesma forma o deve restituir ?
— .0. P.e Mestre esquece que ha uma testemunha?...
— Bem sei; o mariola que achou a bolsa. Mas é realmente uma testemunha?... Penso que não: uma testemunha quer-se idônea, sabedora do ob-jecto, e nesse caso não está um mariola, que ignora a natureza do objecto. De resto que valha como testemunha, em troca delia dou á V. Mercê duas mais conceituadas, o dono do roteiro e seu procurador. ,
— Bem adverti eu que V. Paternidade havia de acabar por ter rasão contra meus argumentos, pois que não sou versado nestas cousas; mas da minha convicção é que o desafio a que, me demova.
2é AS «ií*AS DÉ PttATÁ
•*«• Aá mesmas rochas Se móVém èespéda^am; e ptira iSso bástá Um sopro do Senhor. Delle 0S-però •que alcàntíárci persuadir á S. Mercê.
— E' lenta-lo, P.e Mestre í... <-i Senhor D'. Diogo de Mariz ! profariu o Vi-
sitâdòr assumindo uma altitude grave, e um tom solemue ; a honra'que V. Mercê invoca em prol dé Sua resolução, é o mesmo titufo sagrado pelo qual eu neste instante em nome de trieü consti-tuihté e da Companhia que representei, em nome especialmente dús brasões de sua còtá d'armáS, reclamo e prbtestô contra a insólita exigência que me acaba de ser feita.
— Cautèllâ, padre!... Medi bem as vósSas palavras ántéS dé enuncia-lás; e dizei lôgbqUedi-rèftós1 vos dá1 meUS bràzôes e miriha hOhrà !...
-«-Todos, riübré fidalgo, còrfio vou proVar. Otíça-mè! o Penhor Provedor áem receio dé que òffen-dà ói sóus brios. Ha cè^ca de cfüàlrO ánhos que foi pela espósS de Roberio Dias reóebida a carta que annunciava a achada do manuscripto' pertencente á seu marido ; e Sabendo ènfí que mãos estava elte depositado, jülgou-o ah? mais seguro do que nas Sti&s próprias. Frnou-se dtixündó ao filho o cUidàdò de receber o tnariuscriptò; esse rnorjó,
A?, MjfoAS BÇ Ç*iTf 21
apezar do imraepso valor 4e semejhepíe papel, continuou a ppnfiança materna» até que, renunciou seus djreiíQs na Compaphia, a qual perse,yeroo por mais de anno no nobre exemplo de seus antecessores. Nenhum q"ps sucessivos proprietários do thesouro de que o senhpr D. Diogo d? Mariz tem a guarda, duvidou um instante j ^ ipyiolabilidade desse deposito.
— Nem o devia!... Ha mais de cjjiatrp annos que esse papel existe em meu poder : desde o primeiro dia em que li o rotulo nunca mais estes olhos o buscaram para lêr uma palavra; na mesma hora em que á esta cidade cheguei, p cerrei sob meu sello, e p depuz nç> mesmo lugar da prateleira onde jaz ainda intacto desta, mãos,.
— Eu o-sabia antes que o dissesse V, I jercê, e qomp eg p sabiam aquelles que dormiam na major tranqüilidade e segurança, acreditando que seu thesouro estava sob, a guarda de,peus, pois estava sob a honra de tão honrado fidalgp. Essa confiança nobre não merece reciprocidade ? Não, pede que dispenseis igual com quem a teve comvosco ?
— Tinham a punha parta ? - T E depois de perdida?... Por oufcrp. lado não
ignora Yt, Bíer^a fri^orja, tfe,sse roceiro e 4a deSr
2 2 AS MINAS DE PRATA
coberta de que elle resa : por lh'o terem roubado, o que então ninguém acreditou, finotf-se Roberio desgraçado, e ainda assim feliz por não ver cumprir-se o confisco que se executou sobre seu ex-polio, reduzindo á miséria mulher e filho.
— Tenho noticia desses fados, ainda que era eu menino quando se deram.
— Pois considere V. Mercê nos effeitos da sua exigência. O acio publico divulgará a existência do roteiro que se suppõe perdido, ou incógnito! Logo se açularão de um lado as perseguições dos Governadores, do outro a cobiça dos aventureiros para disputarem a preza ; proseguirá a serie interrompida dos crimes á que já deu lugar esse fatal segredo; eu perecerei victima delle, mas isso é o menos. A Companhia não poderá fazer o uso nobre que pretende, qual é o de restitui-lo á El-rei em nome do filho de Roberio Dias, pedindo em recompensa unicamente a rehabilitação da sua memória, e o disimo do quinto da mineração para edificação de novos'collegios.
D. Diogo callou-se ; o P.e Molina depois que o contemplou um instante, concluiu :
— Consulte V. Mercê sua consciência e diga. Seria conforme á honra que tanto preza, sacri-
AS MINAS DE PRATA 2 3
ficara meros escrúpulos a honra alheia ? E houvera fiel cumprimento do deposito, si o segredo, essência delle, fosso violado? Supponho que não. Em-íim o senhor Provedor tão susceptível em matéria de culpa, que imputou á si a desgraça de sua família só porque ella derivou de um facto por elle praticado, embora sem intenção; o senhor Provedor, repito, deve com maior rasão temer as conseqüências fataes que hão de resultar necessa-mente da divulgação do segredo. Com a diffsrença que neste ultimo caso não só ha proprosito, mas está V. Mercê advertido domai.
A argúcia _do Yisitador abalou fortemente o fidalgo : o apello á sua honra ao mesmo tempo que a allusão á cathastrophe do Paquequer, tocaram o fidalgo nas duas fibras mestras de sua alma. Elle esteve um momento recolhido ; e respondeu ao frade :
— Careço de meditar sobre o que me disse V. Paternidade. Quando uma vez se tcmou uma resolução, que foi creando raízes no animo, não é de um instante para outro que a arranca a gente ea joga fora. .
Outro, que não o P.e Molina, de certo insistira á ver si obtinha naquella mesma hera o ambi-.
2 í AS HÍÍÍAS DE PIRATA
ciónàdo íhesoüro. Mas o Vísiwdfor tinhaí, Como ninguém, 0 dom admirâVel de preSCrutaí os arca-hos do pensamento, e de avaliar rapidamente daS situações. Efle conheceu que séu argumento imprimira naquelle coração uma doce flèxão, qüe rtO isolamento podia ir á pouco e pouco augmentandó até que de todo vergasse. Si ao contrario procurasse forçar acjuèflá rijeza de aço, bem podia reagir cdbtra a mãò imprudente, e feri-la cóm às ásperas vibrações. Tòcâr-lhe depois fôrà, sèhâó impossivèl, perigoso.
O Visitador portanto è^guéü-só, é déépètfiü-se do fidalgo, ficando de voltar no dia seguinte á hora da sesta para saber da resolução final.
Ganhando à rua o jeSuita atravessou para o lado opposto, e fingindo a attitude de um homem irrésolUtó no caminho" qüe deve torriâr, eStéve parado algum tempo á examinar a dàsà dé óiide sahira.
Não ha muitos ahnos, que foi de fodd rècóü-struidó um antigo sobrado de caixões na rua de S. JóSé eritré o Cotovello e Ajuda. Éra á rrití-rada de D. Diogo de Mariz, em frente á q"bal se achava 0 P.e Mdliriá. Á' éáquerda do edifício frcává uma càsà térrea dé porta e jahella, tom
AS MINAS DE PRATA 2 5
agua furtada sobre o telhado. Era este dé tal modo agudo e afunilado, que a cumieira entrava no outão do sobrado quasi pela altura das biquei-jas do telhado.
Na rotula da casa estava uma mulher cosendo, que mal avistou o habito do frade, debruçou-se ao parapeito para lhe pedir a sua benção si passasse rente, e acompanha-lo com os olhos si tomasse opposta direcção. A curiosidade feminil de que era objecto não escapou ao jesuita, que examinando o sobrado, examinou também a casa térrea, e a moradora como accessorio delia.
— A agua-furtada toca justamente com a reca-mera , pela parede á que está encostada a arca dos papeis, pensava 0 P.e Molina sorrindo.—Jus est poíior^direito é força.
O frade tornou a atravessar a rua , e entrou na casa térrea pela porta de rotula, que foi abrin-do-se deante delle, como por encanto: era o encanto do olhar imperativo qne atravessara as grades e estremecera a devota. Um quarto de hora bastou ao hábil operário para amollecer aquella cera e fazer delia uma figura á seu geito.
— Mulher, não me viste d'ali defronte olhando esta casa?... Passando meu caminho, Ordenou o
voi.v. 3
2 6 AS MINAS DE PRATA
Senhor que erguesse os olhos, e mostrou-me por sua infinita misericórdia, e para salvação tua, os signaes do mau espirito. Esta casa está mal assombrada, mulher I
— Jesus, Maria, valei-me! gritou a mulher ca-híndo de joelhos.
— Não te assustes, peccadora; pois o Senhor enviou-me para salvar-te.
— Sim, meu bento Padre, salvae-me! Cobri-\ me com vosso manto I murmurava a devota en-rolando-se no habito do frade.
— Recommendo-te todo o silencio 1... Não bo1-quejes disso a pessoa alguma.
— A ninguém I... — Eu voltarei dentro de uma hora com o
livro para começar o exorcismo. E' especial-; mente na água furtada que Satanaz assentou as suas diabruras.
— Senhor Deus , quando pensei eu que estivesse tão perto das garras do tinhoso 1...
O P.e Molina depois de algumas recomrmnd^ ções mais, sabiu apressado, e subindo a ladeira do Cotovello, recolheu ao Collegiono aho do C..,a-tello. Quando elle entrava a portaria , tocava á refeitório : reuniu-se á comrounidade no poio, e
AS MINAS DK PRATA 3 7
comendo ás. pressas o necessário, ergueu-se, oh-tida a venia do Reitor.
0 P." Molina se apresentar» na, casa de S. Sebastião na qualidade do delegado do Provincial da Bahia para incumbência de summa importância ; a carta de Fernão Cardina recommendava que se lhe desse toda a ajuda e subsidio de que por ventura necessitasse,; Chegado na véspera por tarde, mal tivera tempo de descançar, e já andava* em deligencia. -'I-
Levantando-se do refeitório, foi direito ás ofli-cinas, onde costumavam muitos irmãos exercitar-se nas artes" mecânicas, de, que sabiam afinal peritos officiaes e mestres, O Visitador percorreu-as, examinando com attonção os vários utensílios espalhados pelos bancos de trabalha, ou guardados
I nos respectivos bahus. De entre elles escolhia alguns que ia mettendo na sacola occulta por baixo do habito. Concluído este trabalho, sobraçou o
í livro dos exorcismos, e voltou á casa da devota que o esperava em ancias. > v
li Momentos depois estava o frade installado na 4 agua-furtada, ninho de ratos e andorinhas, que media quando muito uma braça em quadra. En-
i costado nas traves, com a cabeça a roçar nos cai-j,
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bros, o frade tinha os olhos pregados na parede opposta que tocava com o sobrado de D. Diogo de Mariz. Seu olhar firme e claro media como um compasso sobre o papel as dimensões da-quelle muro, e traçava as linhas com a justeza de uma regoa. Era um mathematico de primeira plaina, dos que nascem como Paschal com os dois instinctos especiaes do algarismo e do metro, para as suas operações de outros instrumentos senão do olhar e da memória, s
Comtudo o jesuita não se julgou habilitado á solução definitiva do problema : accusando na parede com a ponta de uma pinça o resultado do calculo que acabava de fazer, remetteu para depois a verificação do calculo.
No dia seguinte á hora aprasada Molina entrava na habitação de D. Diogo de Mariz: desde que pisou a soleira da porta, póde-se quasi dizer que não era um homem quem penetrava na casa, mas um instrumento geométrico. De feito o frade so movia e regulava, como se o seu corpo fora uma esquadria ou um compasso.
Contou os passos que deu até o gabinete, os degráos que subiu, calculou as differenças produ-j zidas pela inclinação da escada e desvio da linha
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recta; e concluiu de todas essas equações a distancia exacta em que se achava o gabinete do alinhamento da rua, e confrontou-a com a distancia já por elle conhecida da agua-furtada. Quando pois .entrou no aposento, seu olhar, como si a parede do outão fosse transparente, viu desenhar-se a figura pontuda do tecto visinho; metade do armário ficava dentro dessa figura, e essa metade era justamente aquella onde estava guardado o roteiro.
O Visitador aproveitou o instante de espera no gabinete' para ractificar os seus cálculos. Quando o fidalgo entrou achou-o já em repouso.
— Padre-mestre, as razões de V. Paternidade pesaram em meu espirito. Reflecti no que me ponderou, e reconheço que devo ao dono do deposito o segredo, sem o qual corre eminente risco a segurança da pessoa á quem o entregue, e pôde falhar a rehabilitação do nome de Roberio Dias. Preso muito a minha honra para baratear a reputação alheia.
— Esperava achar hoje o senhor Provedor deste accordo I disse o P.e Molina.
— Portanto desisto da entrega perante official
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publico e me satisfaço simplesmente com um es* crípto dó punho de V. Paternidade. i
Molina estremeceu interiormente ; a exigéticii do fidalgo, reduzida agora aos verdadeiros limites, era formidável porque se tornara justa e rasoa-vel. Mas as circurastancias especiaes em que se achava o jesuita não lhe permittiam accédér á vontade do fidalgor» Estacio podia , a pfezár da prisão e da distancia, chegar um dia ao Rio de Janeiro e apresentar-se á D. Diogo. Si na mâó deste ficasse um documento assignado por elle P.' Molina, ficaria destruída toda sua obra. O filho de Roberio Dias naturalmente havia de recorrer á authoridade de El-rei; e dahi resultaria em vez de importante serviço, grande damno á companhia.
Era necessário pois ao plano do jesuita que elle se apoderasse do roteiro sem deixar vestígio de sua passagem -, e para isso empregou todos os recursos de sua intelligencia, mas debalde. A quanto argumento adduzia o prompto e fértil espirito, respondia o fidalgo com uma única razão, na qual se havia acãstellado heroicamente: *
— Para que o roteiro saia de meu poder ê indispensável que fique no seu lugar o documento
AS MINAS DE PRATA í l
da sua entrega. A honfa è como a mulher de César que nènr'déVè ser suspeitada.
O jesuíta rérfiroa se, pedindo vertia para voltar» não era elle homem que se desse por batido assim de primeira vez.
— Não ha homem previdente neste mundo !... suspirava o Visitador. Eu me tinha nessa conta, e não passo de um calouro. Si tivesse escrípto a carta com supposto nome, não me esbarraria agora neste obstáculo ! :"? <
Breve porém só cuidou dé reparar o erro passado. Seu projecto estava formulado e prompto. Si podesse apoderar-se pelo ardil do roteiro, preferia esse meio; do contrario subscreveria á con-dicção do fidalgo, e quanto ao futuro, Deus a a sua intelligencia proveriam.
O frade entrou na casa da devota, ganhou a água furtada, e ratificando o seu calculo traçon na parede um quadrado de palmo de face; descascando o ligeiro émboço da parede com um escorpo de que se munira viu com alegria que acertara nas juntas do tijolo, de modo que o trabalho facilitava-se.
Os cinco dias que seguiram foram repartidos por Molina entre duas occupações ; iiv á casa de
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D. Diogo persuadi-lo á entregar-lhe o roteiro independente de questão, e trabalhar no rombo da parede, escondido na água furtada da casa visi-nha. Já elle tinha chegado á outra face, e descoberto a madeira da arca ali encostada. Ser vi n-do-se então de uma serrilha estreita e fina de serralheiro, que introduziu pelo buraco da verruma, começou a cortar um tampo circular no armário. Essa era a parte mais, delicada do trabalho, que só podia ter lugar quando o fidalgo estava ausente e porisso havia de avançar lentamente.
Mais três dias, e o P.e Molina era senhor do roteiro.
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II
flomo Estado evadiu-se de uma p»isão para cahir em outra.
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Que aventuras corria Estacio emquanto sua fortuna era tão ameaçada na cidade de S. Sebastião ?
Antes que tudo cumpre encher a lacuna de sua evasão do castello de S. Alberto na noite de 20 de janeiro. Si bem recordamos, ficava o mancebo no seu cárcere coacto sob a impressão poderosa
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da carta de seu mestre e amigo. A liberdade era sem duvida cousa de muito preço para que a desejasse elle ardentemente ; mas o seu coração liso e a sua rasão direita não podiam ficar surdos á voz austera do velho advogado, faltando em nome da honra e virtude.
— Socegae, mestre 1... murmurou como si Vaz Caminha o ouvisse. Não sahirei d'aqui assassino.
Escondeu entre o corpo e a camisa os objectos que lhe enviara o velho, e apagando o rolo, estendeu-se sobre a pedra, como na véspera, não para dormir, mas para meditar durante as duas ou três horas que faltavam para meia noite.
Vaz Caminha lhe pedia a procuração para ir ao Rio de Janeiro receber o roteiro e po-lo á bom recado. Recordando a partida do P.e Molina, Estacio comprehendia de quanta urgência era prevenir, si ainda fosse tempo, as machinações do frade. Mas ao mesmo tempo temia, já pelo advogado a quem semelhante viagem seria por demais penosa e arriscada, já pelo thesouro guardado apenas por um velho débil e desprotegido de própria ou alheia força.
Os assomos de uma impetuosa impaciência bor-botavam-lhe no coração e subiam-lhe á cabeça
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abraaada : sentia-se suffocar naquellé cárcere, pequeno de Riais para conter os ausos de sua coragem-
A declaração juiada de D. Fernando, que o advogado pensou devesse amainar o seu desespero e impaciência, ao contrario mais a insuflaram. Reanimado outra vez nas doces esperanças de seu amor, que o impossível como que esmagara , o mancebo anciava agora por conquistar nome, powção e riqueza para offerecer a Inezita.
Enleiado nestas cogitações revolvia-se elle sobre o frio lagedo, quando o mesmo sussurro de vozes que na véspera o surprehendera, veio outra vez distrahi-lo. Ou súbita inspiração, ou necessidade que sente o espirito fortemente occupado de uma diversão, o mancebo ergueu-<se e obedeceu ao impulso de egriósidadje que espertara nelle. Bateu o fuzil, accendeu o rolo, e examinou attenta-mente o lugar por onde as vozes -pareciam sa-hir do chão, Retirando o toro de pau descobriu então á claridade da candeia o que a dúbia luz da seleira não lhe deixara ver durante o dia. O cimento da lage onde repousava a cabeça fora todo alnido ; com o auxilio do prego introduzido nas fendas pôde Levantar um canto da pedra.
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Nisso lembrou-se que a luz o podia denunciar; ficando no escuro ergueu de todo a lage, que era grossa e bastante pesada : immediatamente refrescou-lhe o rosto uma baforada de ar encanado. Estacio era um espirito observador; e pois essa circumstancia lhe indicou logo que o buraco tinha outra boca , e que não estava fechada naquella occasião. De repente occorreu-lhe que o seu antecessor de cárcere ali fallecera depois de muitos annos de prisão, e era bem provável fosse elle quem preparasse aquella mina para uma evasão que não conseguira effectuar.
— Sem duvida elle se communicava com os
visinhos. As vozes tinham emudecido. Estacio sondou
a mina com o braço, e nada encontrando de suspeito, arriscou a cabeça, depois os hombros e a final todo o corpo. Formava a solapa um arco de circulo que se estendia atravez do alicerce' por baixo do pavimento do visinho cárcere. A sup-posição do mancebo não era, como sabemos, destituída de fundamento ; elle estava na mina aberta por Staed.
No momento em que Estacio chegava ao ponto de intercessão onde se reuniam os três ramos com-
AS MÍNAS DE PRATA 3 7
municando com a galeria e os cárceres visinhos, Beltrão erguia a lage e chamava por Hugo. Entre ambos teve então lugar a pratica sabida, de que Estacio hão perdeu uma só palavra. Imme-diatamente concebeu elle não só n idéa de sua evasão, como o plano de fazer abortar a fuga dos dois prisioneiros.
Quando pois a palavra do santo foi transmittida por Beltrão aos prisioneiros, o mancebo que a ouvira, ganhou a galeria logo apoz os flamengos, passou incólume entre as sentinellas, e chegou ás ameias onde encontrou o indivíduo que parecia adormecido. Esse era Esteves, bem acordado, e esperando a hora de meia noite para acabar com a incumbência que lhe dera Vaz Caminha. Reconheceu o pescador á Estacio, quando este o apalpava, e felizmente foi tamanha a sorpresa nelle de o ver ali, que embargou-lhe o menor gesto ou palavra. Era o tempo em que o estudante também o reconhecia:
— Silencio I E pendurou-se á ameia para escorregar ao longo
do muro. Esteves que de manhoso se embrulhara na aderissa, passou a ponta delia ao mancebo, e instantes depois estavam ambos no .mar, nadando
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de mergulho, para que Os não descobrissem do
barco. Vogavam o Anselmo e sua gente pouco avante,
seguindo na direcção das tercenas. Os nadadores cortaram em linha recta ; ao pisarem terra sur-giu-lbes Gil que esperava a volta de Esteves, e cuidou morrer de alegria reconhecendo seu querido amo e cavalleiro.
Seguindo a praia deitaram-se a correr para esperar os fugitivos no lugar do desembarque. Estacio deixou Esteves de espreita ali é seguiu com Gil até a rua da Palma o rastro dos fugitivos. Entrados que fdram estes, o estudante passando revista á casa deparou com a corda suspensa é janella por onde havia descido o Anselmo, quandc partira á toda a pressa para o castello de Sâc Alberto.
Em qualquer outro caso, Estacio teria escrúpulo de penetrar furtivamente na casa alheiaí mas tratava-se de graves interesses da republica, e pois não hesitou. Foi bem compensado do sua fadiga; as palavras trocadas entre o rabino e o; flamengos lhe revelaram uma e a mais terrive parte da trama dos judeos, por elle ainda ignorada o plano da rendição da Bahia aos hollandezes.
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Estacio sentiu ferver-lhe o sangue de indignação. Deixando Gil de alcatea em frente á casa do judeo, deitou a correr para a morada de Mari-quinhas dos Caixos. Sabia pelo que ouvira que tinha deante de si três horas; mas a impocieo-cia dava-lhe azas. Não encontrando Christovão, foi ter com elle perto da casa de D. Luiza de Paiva onde se achava cora João Fogaça.
Que serviço ali prestou ao amigo e como deile se despediu, é já sabido;
Entrando na cidade Estacio e sua gente subiram a ladeira da Palma. O vulto de Gildesen-trochou-se do vão de uma porta onde estivera agachado.
— Ainda não voltou ? — Ainda não I respondeu o pagem. — Houve cousa de novo ? — Um defuncto que atiraram lá, no meio da
rua I balbuciou o menino tremulo o benzendo-se. — Onde? — SeguindoXdeste mesmo lado, quasi á esquina. — Espera que volte o outro.!.,. Eu estarei na
praia, Estacio deixou um índio com Gil, e seguiu rua
acima. No lugar indicado viu o corpo de que lhe'
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fallára o pagem, e pelas roupas, mais que pela phisionomia julgou reconhecer o alferes ; elle não tinha porém tempo para esperdiçar em investigações que reservou para mais tarde. Chegou acompanhado de sua gente á ribeira, perto dos trapiches. A sombra de Esteves destacou-se de uma pedra com a qual formava uma massa compacta.
— Dormem? perguntou Estacio. — Somno velho 1... Si esvasiaram o odre 1 — Onde estão as cordas? O pescador mostrou um rolo de cordoalhas de
barco. — Bem; esperarás aqui por Gil. Estacio voltou a seus homens e transmittiu-lhes
em termos breves as suas determinações, mostran-do-lhes á tiro de berço da praia, a chalupa de Pedro que as ondas balouçavam docemente. Logc foram todos despindo lentamente as roupas e armas pesadas, que deitavam dentro da canoa dt Esteves ali arrastada como por acaso.
Nús, com a adaga nos dentes e uma cordí amarrada á cintura, escorregaram pela praia e nadaram para a chalupa. Saltar pela borda, cahir de chofre sobre os nove remeiros adormecidos, amarra-los e tirar-lhes as roupas como quem desça-
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misa espigas de milho ()foi para Estacio e sua gente negocio de minutos. Os sorprehendfídos, estremu-nharam seu tanto, soltaram arres e juras, mas a adaga que lhes reluzia ante os olhos ou a palavra que lhes soou ao ouvido, aquietou-os por encanto.
— Si meches ou fatias, morto és I disse cada um ao seu vencido.
Etíectuada a captura da tripolação do barco, foi ella, com excepção de Pedro, transportada para a praia, a uma distancia considerável, e enfileirados como toros de madeira sobre a areia. Ahi os deixou Estacio guardados por um dos índios e por Gil :
— Si alguém der o menor signal de querer bulir ou fallar, apertem-lhe o gasnete, e mergulhem-n'o dentro d'agua. ;
Ouvindo a recommendação e o gesto com que a recebeu o indio, os oito malandros atados de pé e mão morderam a língua para tirar-lhes a vontade de tugir, si tal tentação o diabo lhes metesse.
Dahi despediu Estacio o pagem, apesar das sup-plicas que elle fez para acompanhar seu cavalleiro naquella empreza: £
— Não, Gil: tua presença nos trahiria." \\
4 2 AS MINAS DE PRATA
— Posso me encolher n'ura cantinho I... — Demais, é preciso que fiques para contar
ao doutor o que é passado. Diz-lhe que amanha nos veremos 1...
Força foi ao menino ceder. ] De volta ao barco Estacio ordenou á Antào,
Esteves e aos índios que vestissem as roupas dos pescadores e guarnecessem a cinta com as armas que tinham trazido, e as que acharam no barco.
Pedro amarrado como os companheiros de pés"' e mãOs, tendo na boca uma mordaça de panno, que lhe introduzira o Antão, jazia estendido no fundo da catraia e por baixo dos bancos. A um signal de Estacio, os índios o pozeram em pé, I diante do mancebo.
— Pedro ! O pescador fez um gesto desorpreza. — Admira-te que saiba teu nome ?. . Coüsas
peiores seu eu á teu respeito, que contadas ao senhor Governador agora, te fariam amanhecer pendurado na forca do Rosário 1
Pedro levantou as mãos engalfinhadas e sup-plices:
— De combinação com outros, destes escapula á dois flamengos presos de estado, que estaes aqui
AS UNAS DE PRATA 4 3
esperando para conduzir a Itapoam, onde se acham os navios de sua nação com quem pas-saes contrabando!
O mísero fungou pelas ventas um soluço, único signal que elle pôde dar de- sua afflicção.
Estacio armou um laço na ponta de uma corda, e passou-o ao pescoço do Pedro.
— Ora bem; abri os ouvidos è escutae. Tendes á escolher entre duas cousas: este baraço amanhã na forca e mesmo aqui esta noite conforme a vossa impaciência ; ou a escapula e por cima a bolsa de um dos flamengos, que ha dé vir fornida de boa chelpa pelo velho judeu. Qual proferis? A corda ?...
Pedro abanou fortemente com a cabeça.
— Ah t Sois homem de juízo; agrada-vos mais a segunda I Pois está em vossas mãos. Ides responder com verdade ás minhas perguntas, na certeza que a mais pequena mentira custar-vos-ha a vida.
O mancebo voltou-se para An tão :
— Tirae-lhe a mordaça; mas caso elle, levante a voz meio tom alem do que é necessário, aper-tae o baraço sem dó.
— Estaes ouvindo, malandro?.,. Tente com a língua I
M AS MINAS DE PRATA
Logo que o pescador teve.a boca desentupida^
começou o interrogatório : v^ — Qual o signal para os navios flamengos ? — Em chegando a tiro de falcão, um grito. — Dae o tom desse grito ; mas cuidado ! Sem
levantar a voz. O pescador obedeceu. — Isso-é o grito da gaivota I — 0 mesmo. — E porque não o dissestes logo? Estou vendo
que serei obrigado bem contra meu coração a mandar-vos enforcar.
— Mas eu não menti!... murmurou o rapaz tremulo.
— Se não mentiste de palavra, mentiste de pensamento, subtrahindo parte ds verdade. E depois, ao approximar dos navios ?
— Três salvas de remos na distancia de um cabo.
— E para atracar ? — Nada I Elles me conhecem. — Estaes mentindo. Não se entra a bordo de
navio armado em guerra, sem trocar uma senha. E' o mesmo que em um forte. A senha ?...
— Nenhuma, já disse 1...
AS MINAS DE PRATA 4 5
— Apertae o baraço, Antão 1 disse o mancebo.
Quando a corda já o suffocava, o pescador levantou a mão, com gesto desesperado e borbotou esta palavra.
— E* esta a senha 1 — Senhor, sim. — Quantos são os navios flamengos? — Dois. — De que lote? — Um bergantim e uma escuna. v
— Qual é a tripolaçãe de cada um ? — Não posso saber ao justo ! — Orçae pelo que viste. — O bergantim ha de ter sessenta e a escuna
trinta 1 — Onde estão os navios ? — Alem de Itapoam. — A' anchora ou á vela ? — A' unha d'anchora ; promptos a partir. Estacio reflectiu: — Como se chama o homem que acompanha os
flamengos? —- Anselmo.
46 AS UNAS DE PRATA
— Elle fica na praia, ou embarca com os outros ? — Embarca. — Conhece-te elle? — Muito I Estacio reflectiu um instante, ao cabo do qual
ordenou a Antão que de novo amordaçasse o pescador e o deitasse no fundo da catraia.
— O promettido?... balbuciou o pescador. — Quando chegarmos ao ajuste de contas. — Ham !... Cuidavas tu marreco, que te havias
de pôr ao fresco tão depressa I... exclamou rin-do-se. o Antão.
O mancebo poz Esteves ao leme; segurou no croque, e ganhou a proa, onde esperou de pé, encostado ao fuste, e com os olhos pregados na ladeira dos Padres que ficava de esguelha :
— Armae os remos e prompto ao primeiro signal! dissera elle ao Antão.
Os oito remos, quatro por banda, encaixados nos toletes, ficaram com as pas erguidas , como as azas abertas de uma gaivota prestes a cortar as ondas.
Não tinha decorrido um quarto de hora, quando desembocou na ribeira pela ladeira um grupo de cinco. Eram uma dama e quatro homens; destes
AS «totÁS DÊ PRATA 4 7
Estacio reconheceu OS dois hollandezes e 0 Anselmo }ue lhes servia de guia ; o ultimo dava mostras le jtídeu pela roupa talar. Estacio fez osignala Antão, e OS Oito remos fendendo cadentes as águas impeliram com velocidade a catraia pára a praia. Receiando que a falta de Pedro podesse dar suspeitas ao Anselmo e fazer gorar todo o plano, o mancebo resolvera afastar esse obstáculo. Abi-car á praia, quando lá chegassem os flamengos, incutir-lhes o terror de um imaginário perigo, disfarçando com uma bebedeira o pretendido somrio dé Pedro, e finalmente embarcar de sopetão os dois fugitivos e largando a catraia a tempo de deixar em terra o filho da Eufrasià ; era o expediente ousado de que se pretendia servir o estudante. Caso falhasse, a força suppria o ardil, ou Já tocavam terra, quando do lado da Victoria appareceu o vulto de um homem que parecia nú á correr ao longo da praia na direcção da barca, gritando & toda força dos pulmões:
•*- Traição tíV. Fora o caso que um dos remeiros tripolantes da
catraia, amarrados e entregues á guarda dos três índios, achando-se deitado de bruços sobre uma case* de ostra que ali jazia entre a areia, con-
4 8 AS MINAS DE PRATA
seguira calçando sobre ella, cortar os laços que lhe prendiam as mãos. Depois manhosamente desfizera o nó das cordas que o peavam, e apenas achou ensejo favorável, de,um pulo poz-se fora do alcance do indio e deitou a correr para o ladOé| onde avistara os flamengos, esforçando por dar-lhes rebate.
Estacio adivinhou o que passara.; mas não des-animou:
— Sem perda de tempo I... Embarcae 1... Espiam-nos!... disse antes mesmo de atracar.
— O Pedro?... Onde está o Pedro? perguntou Anselmo sorpreso*
— Não o vedes ali espojado com a carras-i pana que tomou l. . . Aviae ou não respondo pelo que acontecer;
Nesse instante o remeiro esbaforido gritou comp desesperado:
— Traição I... Traição I... Ia talvez dizer mais; porem cahiu redonda
mente por terra : a setta do indio o havia tras-passado.
— Estaes ouvindo?... perguntou Estacio» E' um dos nossos que eu puz de vigia. fc
— Vinde, pae I disse a voz maviosa de Rachel.
AS MINAS DE PRATA 4 9
E saltou a primeira na chalupa; os hollande-zes ajudaram o velho judeu a embarcar, e saltaram loga^Bpoz.jiImmediatamente ao forte im* pulso do croque manejado por Estacio, a chalupa
* afastou-se de súbito e vigorosamente. O Anselmo, que já tinha o pé na borda, trebuchou no raso da maré. <$' ,• • -'•'•> •
— Com mil diabos!... exclamou elle erguen-do-lse e correndo para o barco. Não podias esperar, bruto 1... •.habiitbv . , ~iw>-> >>t;y
— Quem embarcou, embarcasse, amigo !... Es-tiqa 1 Força ! disso para os romeiros.
< iQa Índios deitaramt-se sobre os remos e a ca-íraia fwideu garbosamente as águas, fugindo de terra. '.w~ •; »;."'."' i'-i.f"'
O Anselmo acompanhou-à da praia com um rosário de imprecações ao maldito catraieiro ; mas tembrando-se, do grito que haviam soltado e do aviso relativo á gente suspeita, foi tratando dè porosa em segurança. «u?0'i ríiY> JÍA
Entretanto prdseguia a éétraia a sua rápida sin-gradura mar em fora. Os dois flamengos senta-< dos á .popa praticavam á meia voz em sua língua ; Rachel olhava as estreitas; o velho rabino meditava, calculando quantos mil cruzados lhe cus-
Vol. v 5
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tava o heróico sacrifício feito á religião. Estacio, sentado ao leme, não perdia um só de seus gestos, apezar da escuridão da noite. Os Índios esticavam os remos, e o Antão, collocado'• no primeiro banco, remexia-se de impaciência.
Deixaram á esquerda a ponta do Patrão, e seguiram fronteiros com a costa que se prolonga até o Rio Vermelho. Ventava fresco de nordeste; mudado o rumo podiam agora navegar entre bo-lina e seis quartas, bordejando ao largo.
— Panno fora !... disse Estacio. Ergueu-se o Antão de um salto, e ajudado por
dois índios tirou, do fundo o mastro da vela grande para arma-lo, emquanto outros desenrolavam a bujarrona á proa.
— Olha a escola!.:, gritou o antigo coritra-mestre atirando a ponta da corda, a Esteves.
Começaram então a desfraldar a vela, mas com tal desaso e confusão que os dois flamengos, attentos á rqanobra, trocaram um sorriso de muda e intima satisfação. Foi o orgulho nacional dos successores e rivaes dos intrépidos navegantes por-tuguezes, que se expandiu no coração dos dois prisioneiros. Mas outro sentimento os agitara, si elles pôdessenií adivinhar qual o motivo occulto
AS MÍNAS DE PRATA S I
daquella confusão. Não era de certo "o que pensavam. Antão era um antigo marinheiro tostado aos soes da índia, digno emulo de Caminha ; e melhor marinheiro do que o selvagem americano não existiu ainda.
De repente a grande vela soltando-se do mastro, cahiu. .sobre os passageiros e os envolveu : ao mesmo tempo Estacio e Esteves de um lado, Antão e os índios do outro, saltaram e subjugaram os três homens que antes de voltarem á si' da sorpresa estavam atados de pés e mãos, amordaçados e estendidos'no fundo do barco.
— Mettei-lhes bastante estopa na boca e nos ouvidos.
A judia ficara immovel de espanto e de indignação : insensiveimente levou a mão ao punhal de madreperola que trazia á cinta, mas rejeitou-o desdenhosamentu.
Estacio visitou as algibeiras dos presos; alem dás bolsas bem fcrnidas achou em poder de Hugo Antônio, escondida no peito entre a carne e a camisa, um grosso e largo cartapacio, que elle contava encontrar, á vista da conversa que ouvira. Era realmente a missiva dos rabinos da Bahia, em nome de seus irmãos do Brasih
5 2 AS MlNAS DE PRATA
O mancebo guardou comsigo, no mesmo lugar que o flamengo, aquelle precioso documento^ di*-rigindo ao pescador e ao contramestre uma re-commendação: ' &* '-'•< ' :> ''
— Si tu succumbir, tirae-o daqui, e levae-o em meu nome ao governador. Em caso algum, que elle caia nas mãos do inimigóJ... ÍIJ • ^
A vela fòi desfraldada ao vento ; impellida agora pela rajada fresca e pelos oito remos vigorosos, a catraiai voava sobre as ondas como um espadart&v
Estacio voltoU-se então para a linda judia que assistira com a mesma altiva impassibilidade á toda esta scena, e dirigiu-lhe a palavra com polidez:
— Não contava, senhora, com a vossa presença neste barco, á semelhante hora daí noite; e dão vos occultarei que embora agradável sempre, neste momento me embaraça mui seriamente; -x»-
— Tendes um meio de livrarmos delia; matfte-me. — Não sou um assassino, nem El-rei a quem
sirvú carece de vossa vida , mas unicamente do vosso absoluto silencio. Não ousando eu pôr mãos em uma dama, para reduzi-la á posição destes homens, sou forçado á empregar o único meio que me restó. wi-túia, -ofttfa* i . ,&'!%
— Qual, senhor? ;:;rn i r >H
AS MINAS DE PRATA 5 3
— Vou deixar-vos em terra por algumas horas, durante que executo a empresa á que me destino. Ficareis abi até que eu volte para receber-vos.
— Juntamente com meu pae ? — Um desses homens é vosso pae? Sem du
vida o judeão Samuel Levi?... Não, esse por segurança devo conserva-lo em meu poder.
—• Então onde elle estiver estará sua filba. Quanto ao meu silencio, podeis contar com elle; vou dar-vos um juramento -
— Menos que um juramento; vossa palavra, senhora, me bastara, si fosse eu o empenhado neste objecto: preferira perder-me á duvidar da vossa sinceridade. Mas em negocio do Estado não posso fiar o êxito de uma empreza da boa fé de ninguém. Portanto permittireis que vos conduza á terra.
— Pois bem, senhor; dae-me os instrumentos precisos, e eu mesma me condemnarei so silencio e á immobilidade para garantia vossa. Prefiro esta humilhação á que me separem de meu pae.
— Mas attendei que ides correr comnosco perigos immensos. <
— Eu os arrostarei de- bom grado; não ha
AS MINAS DE PRATA
maior para mim do que a separação a que me que-reis forçar.... «.•*.-,
— Façarse segundo a vossa vontade. t O estudante sentado á popa, pozera de lado
uma das bolsas, que reservava para Pedro, e esvasiando a outra sobre o banco, contou es moedas. Esse mancebo tinha o talento de César; maxi-mus in minimis; elle sabia curar das pequenas cousas no meio das maiores emprezas, o que foi uma das bases da gloria daquelle grande capitão e político. MI
A bolsa continha cem moedas, de meias do-blas, o que orçava em cerca de seiscentos e quarenta mil réis. Í ,
— Sois dez I disse elle. Cabe oito moedas a cada um, e vinte ao capataz.
— E vós, Sr. Estacio?... disse Antão.^n^ O mancebo sorriu; elle recordou-se do seu
Plutarcho, na vida dos homens illustres, e de uma passagem que lera^ahi sobre Alexandre; respondeu parodiando a resposta do filho de Phi-lippe aos seus generaes: -••— Eu, reservo-me a esperançai...
Por ordem do estudante os dois flamengos id-\ ram separados, um á popa, outro á ré da chalupa.
AS MINAS DE PRATA 55
( — Tirae' a mordaça á este; mas tapaé os ouvidos ao de lá. , Estacio queria interroga-los: -, •<•„. % — Que nome has? 'nbí)"> c H»!;; •
— Hugo Antônio 1 ' — Sabes? a sorte, que te espera. Queres a vida
salva? — Com que condição? — Em chegando á falia dos navios, dirás a
senha para'que nos recebam como amigos. — Uma traição 1 Contra os meus compatrio
tas? — Em paga daqpella que vos tirou de onde
estáveis. Vamos, resolvei! ..;— Por tal preço me- asseguraes vida e liberdade?
— Liberdade, não; a vida unicamente. Vol-tareis ao vosso antigo cárcere ou á outro mais
I seguro 1 i — Recuso ; antes a morte do' que o novo cap-i tiveiro. ,
— E' vosso gosto ? Si soubesseis que gênero de morte vos espera, talvez'não fosseis tão fácil na
li escolha. Dizei-lhe , Antão ,u como pretèndèis tra-i ta-lo.
3 6 AS MINAS D l PRATA
— Com o maior mimo 1... Assa-lo, não em grelhas como os hereges da sua casta delle fizeram ao bom S. Lourenço, mas n*uma certan, com alho e toucinho 1...
— Ahi vo-Io entrego I... Estacio proferio essas palavras em tom deci
dido, e afastou-se. — Esperael... balbuoiou o miseto flamengo. — E' tarde, amigo !*disse o mancebo sorrin
do á surrelfa. — Outra vez, si resuscitardes sereis mais pru
dente !... accrescentou philosophicamente Antão. : !^'Estacio fez igual interrogatório a Dick; más o altivo flamengo, de animo inabalável não se dignou de responder; apenas quando o mancebo lhe offe-receu a vida em troca da traição, elle sorriu com déspresÓJ V'1
— Não me conheces, portuguez I
O mancebo cravou es olhos no semblante enérgico do inimigo e pronunciou com firmeza e pausa esta ameaça:
— Ouve bem, flamengo. Logo que estejamos i falia dos navios, tu has de dar-lhes a senha para que nos recebam em amigos. Eu não entendo tua
AS MINAS DB PRATA 5 7
língua; porem ao menor signal suspeito, minha adaga te cortará a palavra na gorja. ' <
Diek foi de novo amordaçado, emquanto Estacio s|ítisfeito da resulta de seu plano, murmurava entres!:
— Calculei bem 1... A humanidade n&o está ainda tão degenerada, pois entre dois homens, um prefere a honra á vida 1 ' 'llr%- >'"
Um vulto negro como o dorsò de um cetáceo adormecido á tona d'agua foi ainda longe assomando pela proa.
~ Vedes ? perguntou Estatiio. — A ilha de Itapoam?... disse O Antão. — AH está b inimigo ; ali vamos nós. — Bem me parecia !... — São dois navios, um bergantim e uma es
cuna. "'•'' — Dois 1 exclamou Pereira. — Parece*-vos de mais ? perguntou o mancebo.
pensando que o velho tinha medo. — Sem duvida ! retrucou o marítimo : falta-nos
gente para tripolar á ambos. Estacio riu-se: — Para a viagem que tem a fazer, não carecem.
Escutae; é o momento de communicar-vos á todos o
5 8 AS MINAS DE PRATA
plano; daqui a um instante será tempo de obras, não de palavras. < ;<
Ao aceno de Antão os Índios estenderam! o pescoço sobre os remos para escutar, e por alguns momentos ouviu-se o murmúrio da voz do mancebo de envolta com a surdina, das vagas, que babujavam nos flancos da catraia. ,4]
Um gazeio de admiração escapou dos lábios dessa gente afoita ás lutas desde o berço, e para quem uma nova espécie de perigo era distracçãq,,e sainete.
— O risco é igual para os que vão como para os que ficão. Escolham I... ,i| .-.
— Fico eu e este caboclo 1 disse o Pereira apontando para um indio robusto que remava na frente.
— Estevão , solta o grito da gaivota! disse Estacio.
Um dos índios apertou as bpxexàs entre o po-legar e o indicador, e o estridulo conhecido da ave 'aquática vibrou pelas solidões do mar. Nesse instante dobrava a catraia a ponta norte da ilha, e a um tiro de berço appareceram os dois navios hollandezes, fundeados á meio do canal.
Na oceasião achavam-se alongados á pique de ancora, com a proa para o norte de onde vin
AS MÍNAS DE PRATA 5 9
a catraia; o fluxo da maré mais vivo sobre a caravella, do que sobre o bergantim por ella abrigado, fizera garrar a popa da ' primeira a cerca de duas braças do outro. ,
*Quasi ao mesmo tempo soou o apito a bordo do bergantim, e uma lanterna foi içada no cas-tello de proa.
Os remos afrouxaram á um signal de Estacio, e a catraia approximou-se vagarosamente dos navios: no emtanto foi a gente despindo alguma roupa mais pesada e tirando da cinta os pisto-letes que deitaram sobre a mesa do mastro. Chegando á falia do bergantim, os remos deram as três salvas indicadas por Pedro, á que de bordo respòhderam com signaes de lanternas. , Então o mancebo erguendo Dick pelos hom-bros, e obrigando-o á ter-se de pé Um instante, mandou-lhe tirar a estopa da boca e ouvidos.
Flamengo! E' chegado o momento de salvar a tua vida : ali está o navio; cumpre com o que te ordenei. ou prepara-te para morrer.
; O hollandez sorriu e fitou os olhos mudo' no bergantim, como se fora um torrão de sua pátria :
—-Porque esperas? perguntou Estacio que adivinhou a intenção do estrangeiro.
(i(t AS MINAS DE PRATA
„ — Ainda estamos longe ; < a minha voz não se ouviria. :. ,j H . u u . u i - •*<' >< " l y "'• ,<•*'• >?w , Desta vez foi jEstacio quem sorriu-1 A catlaií avançava prudente e vagarosa; já se divisavam djsÜQctamente vultos debruçados ás amuras, e eu-via-.se o sussurro zombetelro da maruja, á galrar da aventura nocturna e da feliz escapula de seus compatriotas. •-,</, ,i!(i i . r ,.
Dick ergueu então a voz calma o vibrante que traspassou como uma veia sonora o silencia da poite, e soltou na linguagem pátria algumas palavras lentas e pausadas. up.y*
— Compatriotas !... estae alerta !... Ha neste barca inimigos traidores que maquinam vossa perda!
Estacio pão entendia o flamengo; mas elle tinha os olhos no navio, e o sobresalto que ali pro-duzio as palavras de Dick lhe derão a significa* ção dellas. Immediatamente o mancebo calcando a mão na boca do prisioneiro, ergueu também a voz sonora e disse: r...^
— Morrey herege!. . . i -••"•' Arrancando um pistolete da cinta desfechou d
tiro, cuja explosão fuzilou nas trevas, retumbandl ao longe. O flamengo cahiu , mas não ferido, que o tiro fora apontado ao ar; cahiu prostraM
AS MINAS DE PRATA ' 6 1
pelos índios que o sogigaram de novo no fundo do barco;
Estacio, o pescador e os sete índios, resvallaram feia borda e sumiram-se nas ondas, que abriram-se docemente para recebe-los no humido seio ; já com o corpo. mergulhado o mancebo voltou o rosto para ainda murmurar a Antão:
— Não esquecei!... Eu virei do Outro mundo pedir-vos conta do que de vosso valor confio !...
— Ide tranquillo !... E' como se fossem a pelle de meus ossos. Em ultimo caso ao mar!...
Os mergulhadores desapparacem sobre o espelho liso e mudo do oceano, cuja face impassível, como a dos grandes ânimos nãotrahiu o segredo do seu intimo.
Antão deu um safanão á cana do leme, e a catraia virando o bordo, partiu veloz com a proa feita .ao mar para dobrar de novo a ponta de Itapoam.
A esse tempo os hollandezes tanto do bergan-tin cômoda caravella postos em alvoroto pelo aviso de Dick, saltavam quaes sobre as armas e os remos, quaes sobre os ovons e estingas. As cha-lupas foram deitadas ao mar; e quasi toda a ma-
Vol. v 6
6 2 AS MINAS DE PRATA
reja se preeipitouf par a embarcar* e corre» á salvarão de seus compatriotas ou á sua vingança*
As palavras, graves de Dick, a exclamação vibrante de fEstacio; o tiro que segwVsé, e tógq apoz a fuga da catraia; todas.essascircumstanciais foram como uma súbita revellação; para os hollande-zes em massa. Elles acreditaram* que a evasão de seus compatriotas fora descoberta pelos guardas, que fingindo favorece-los pretendiam á sombra delles penetrar a bordo como aluados, e apanhando a trípdlaçáo de sorpreza, capturarem os navios. Dick porém suspeitara a trama, e sacrificara he-róicámérite á vida para salvar seus compatriotas.
Ora vendo a catraia, que se punha em fuga precipitada, duas ídéas Iam pejaram de repente no espirito desses homens. A primeira, que não estavam os inimigos em numero para affronta-lòs á peito descoberto, ainda que bastantes fossem pára a emboscada ; a segunda, que seus compatriotas ali estavam á algumas braças esperando de seu dè-nodo serem salvos ou vingados. *
Si por um lado a indignação contra a peiiiilia do inimigo e o espirito nacional, sublevaram toda a guárnição como um só homem ; pot outro a cer teza d* victoria e o medo dos inimigos que' fu*
AS MINAS DE PRATA 6 3
giam, adormeceram nos officiaes aquella vigilância sempre necessária. No meio do tumulto embarcaram quasi todos a trouxe e mouxe; e as quatro chalupas partiram de ambos os navios, levando cerca de setenta homens; ficaram pois apenas vinte homens á bordo, sem contar com os moços de cosioha, lambazes e grumetes, e outra casta de serviçaes.
Todos esses trepados pelas enxareiasegurupés, acompanhavam com anciedade immensa os ba-teis que lutavam de velocidade á caça da catraia. Essa aproveitara bem o avanço devido já á distancia em que estava dos navios, já á demora no apresto das chalupas. Agora ia ella dobrando outra vez a ponta da ilha, por onde á pouco passara. ' '< i
Entretanto que a áttenção de bordo estava assim toda empregada além, peta popa deserta do bergantim grimpavam ligeiramente uns vultos que surgiam do seio das ondas : subio o primeiro, depois outro e outro até oito: agacharam-se todos junto á babitacula. O principal delles murmurou :
— Esperas um momento aqui!... Si me ou-virdes um grito, atacae !... Ü
0 mancebo desceu pela escotilha de popa até
6 4 AS MINAS DE PRATA
a camera : entrou na sala d'armas, onde ficava ao fundo a porta do paiol. Como conjecturara* ali estava postada uma sentinella de arcabuz ao hombro. A luz mortiça de uma lâmpada embutida no tabique pelo lado exterior, esclarecia o lugar.
Estacio dirigiu-se intrepidamente á sentinella, trocou o santo, imitando a pronuncia de Hugo, e fingio querer introduzir a chave na porta. O flamengo,tomando-o por um marujo, que vinha á busca de munições por mandado do capitão,' disse-lhe :
— Então ha refega lá por cima ? O mancebo conservou-se impassível, e conti
nuou a fazer tinir de encontro ao ferro uma moeda que tinha entre os dedos. O soldado voltou-lhe as costas despeitado. O estudante que esperava o ensejo favorável, atirou-se á elle como um tigre, cerrando-lhe a garganta com as mãos ambas. Essa gargalheira animada foi estreitando a suffocar o mísero, que lutava vigorosamente. Durante todo o tempo da estrangulação os braços crispados pelo desespero manejavam o arcabuz, como uma catapulta, atirando para as costas boles furiosos, que moiam as espaduas ao mancebo. Mas elle
AS MINAS DE PRATA 6 5
insensível á dôr estringia sempre ; até que a massa frouxa amolgou-se a seus pés e inteiriçou.
Estacio, apezar do tempo que urgia, demorou um olhar sobre o cadáver •; era a primeira vida que elle sacrificava.
— Foi pela pátria!... murmurou. Rápido dirigio-se á porta da sala d'armas ar
rastando o corpo por prudência ; podia o soldado não estar morto, mas apenas desmaiado ; voltar á si dentro em pouco, e com um tiro no paiol fazer saltar o navio, o que elle buscara previnir com risco de sua vida. Mais breve era cravar-lhe um punhal no peito; mas repugna-va-lhe semelhante atrocidade n'um corpo exanime ou quasi.
Empurrando a porta,' esta não cedeu : de fora a tinham fechado. Naturalmente alguém do navio 0 presentira, e encerrando-o correra a dar rebate.
— Embora ! Ainda a victoria me pertence. Assim "exclamou o valente mancebo erguendo
os olhos para o tecto da camera, como para af-frontar o furor dos hollandezes. Travando de um dos cem pistoletes que pendiam á parede do ca-bide d'armas, poz-lhe a mira no óculo do paiol,
6 6 AS MINAS DE PRATA
e esperou* cora o ouvido alerta, e a mão prestes a desferir o raio.
A chave rangeu na porta. — Até... o céo, Ignez minha ! suspirou o co
ração de Estacio.
-^£(âSO-
IIÍ
Do céo ao fundo tio mar.
A gente do bergantim se apinhara na proa para acompanhar as chalupas, que lançadas á remo e vela decididamente ganharam avanço sobre a catraia.
Um grumete se aproveitará dessa circumstan-cia e da completa solidão em que estava a ca-
6 8 AS MINAS DE PRATA
mera, para correr á dispensa e lambiscar alguma passa e queijo desgarrado. Estava o ratinho de bordo bem occupado a roer com as unhas o miolo de um parmezáo já estreado, quando sentiu passos subtis na escotilha. J
Cuidou que fosse o dispenseiro, e esgueiran-do-se como uma sombra ao rez do tabique, ganhou o passo da salla d'armas, e agachou-se junto á porta : ora do outro lado estava justamente um monte de lambazes, que fez simetria perfeita com a trouxa do rapazito. Estacio entrando investigou1
com os olhos e apalpou depois com o pé o primeiro dos vultos; conjecturando do outro por esse, passou sem a minima suspeita. Levava a attenção na sentinella, e por isso não percebeu o suspiro do grumete.
Este já livre do susto ia-se desenrolando para ganhar o convez, quando ouviu extranho rumor na salla de armas: deitou o nariz á fresta da porta, e viu em morte côr o quadro terrível; a sentinella com os olhos esbugalhados, as boxexas enternecidas, e a língua bolsando da garganta. Viu, e desmaiou de susto ; mas por um movimento instinctivo de défeza, antes de: perder o sentido, a mão frouxa conseguira dar volta á
* AS MINAS DE PRATA 6 9
chave, levantando assim barreira entre elle e o perigo. A Vertigem foi curta; recobrados alguns espíritos, o rapaz recordando a imagem que virá, fugiu espavorido : a voz anciava na garganta, queria gritar e não podia.
A essa, circumstancia fortuita devia Estacio a critica e desesperada posição em que se achava. O menino galgava aos dois e três os degráos da escada,- e ia cego á proa avisar a tripolaçãó e abrigar-se á sombra dos marujos. Estes correriam ás armas, e assim previnidos esmagariam os sete indios.
Mas a sagacidade do selvagem brasileiro estava nesse momento á bordo. ,L
Os indios obedecendo á recommendação de Estacio esperavam immoveis e mudos: mas o ouvido sempre á espreita, o olho sempre vivo, a mão sempre lesta. Os saltos do grumete na escada não lhe escaparam f um dos selvagens resvalou pelo convez approximando-se da escotilha ; mal viu elle assomar um vulto que não era o do estudante, e virar de corrida para o lado de proa, imaginou por longe o que havia passado na camera.
0 menino estava fora do alcance do braço, e
7 0 .AS MINAS DE PJUTA
a proa pouco distava ; o menor grito ou ruído suspeito dftspwtava a gente.'*Felizmente «os .eobps;; que suspendiam as cbalupas estavam ainda enrp-> lados ao longo do tombadüho ; o selvagem espreitou o momento, imprimiu-lhe um movimento, e o gr «meta escorregando estendeu-se: já o indio ' cahia sobre elle, cobrindo-o com o corpo, como cobrimos um pbjeçto com a palma da mão.
Seu primeiro cuidado foi apertar a boca do menino de encontro ao peito para lhe abafar o grito ; depois «nrplandoio em trouxa, despeu com elle a escotilha :
n~ Onde está o branco? O menino forcejou para fatiar. — Aponta!.., ^ Guiado pelo dedo do grumeie, foi até á porta J
da salla d'armas. O selvagem levpu a mão á chave ; Estacio ouvira o rangido ; a explosão pairou sobre o navio. Mas p selvagem lembrou-se, súbito que o raaqfiebp ali fechado pelp inimigpy devia estar prpmptp, como no seu cago elle es.-taria, ácahjr sobre no primeiro instante ; retiro» poisa m|o, ç.pelp buraco da fechadura, fez signil,
— Abre!... disse Estacio adivinhando a prer, sençft de um dos seivagens, . 41 u •
AS íflNAS ítÊ PRATA 71
iwA pdrta abrisse etitãfô. Serri éfcfar fceítémpo arnorMa>çat*»ni d grumtíW, '& éítt falta1 dfe ifdfdíá ó prendéfafft debalSô de- Uttlá cotiraçã âÜfêrrô; fè'-f hada a salla d'armâs, subiram ao tombadirarj,' è trancaram b estfoiilha, pafàí èvítaf çftfô o mirnigo s« abrigasse Htt ctfméra'. ': ""' i!
*fi Então1 divídfotos1 'em' dôfs pelbtõéS '"càfhirann' dé improviso e por ambos".oS bordos SÔDW tis desapercebidos hollandézesv O" cítidíftíe'foi teWíVéf; dos que não succumbiMm, uns- dèTtátanf-se ao rriary outros grimparam pelas íôífdas1 tfhftàWfras, & resto escoou entre' o ferro inimigo gariTraTldo, á outra extremidade do náfvio. AValWhcfo rhélhór do numero dos assaltantes,, fizeram rosto ao perigo. O combate renhiu-se coíftt furW, e foi páèjddtt cerca dçp meia hora. wn aüS^ i>." '
Afinal Estacio e sua gente; melhor armados, fortalecidos pela: calma, levaram a melhor. O grupo dos bravos flamengos»,. repéMidSs1 àté à amurá dó naviôr s«ocUmbèo á um e um ; do lugar* Onde estavas»} á medida que o ferio mirnigo os abatia, sepultavam-se nas ondas; como vinte annos depois o seu almirante Adriãó Patrid. Também para èlles, Simples, mas valentes marujos, o oceano era o'único túmulo digno, e quiçá o mais grato aos stíüs tiitfíieS.
7 2 AS MINAS DE PRATA
Tres badaladas soaram no sino de bordo : era o signal convencionado para annunciar á Antão que a victoria era ganha, e podia recolher ao navio. fi#'
Senhor do bergantim, o pensamento do mancebo voou como um pelouro ao outro navio. Elle e sua gente Unham recebido algumas feridas, porém ligeiras: precedidos pelo terror da primeira victoria, a segunda os esperava.
— Ao outro!... exclamou. ú',a í/fr^ Saltaram ás enxarcias para passar á bordo da
caravella pelos estais e aderiças da gavia; mas o inimigo burlou o seu arrojo.
O terror, como sempre costuma, exagerara o perigo á proporções enormes: a gente da caravella em alvoroço suppunha que era a guarnição inteira de alguma nau inimiga que tomara o bergantim de abordagem ; e os fugitivos, escapos d'ali á nado, longe de reduzir o vulto ao medo, ao contrario o agigantavam. Temendo pois igual sorte, a gente da caravella só pensara na fugida; em um instante picaram a amarra, deram panno ao vento, e surdiram avante, singrando para o norte.
Estacio os olhou iroso e despeitado de que lhes escapassem..
AS MINAS DE PRATA 7 3
— Agora toca ai enxugar o corpo: vamos brincar com fogo, rapazes!...
A roupa molhada do mar foi substituída por trapos e pannos que encontraram no navio; da * salla d'armas trouxeram cabides de arcabuzes e mosquetes, bem como munições e mechas.
Escoryado de novo o rodízio de popa, o mancebo encostou-se á elle e esperou.
Raiava a manhã. r Nesse momento, pela ponta sul de Itapoam sur
gia a catraia, e logo em seguida escaladas apequena distancia as quatro chalupas hollandezas. O Antão fizera proezas. A principio valeu-se da estratégia de guinar á miúdo o bordo, fingindo mudar de direeção; parecia ora qüe buscava, ganhar a terra firme, ora que seguia rumo direito, ora que ia abiear á ilha. A cada uma dessas evoluções as chalupas igualmente variavam o rumo; e dahi resultava sempre para a catraia uma vantagem; não. só por ser prompta a iniciativa c a imitação ter de demorar-se o tempo preciso para ver, mas sobretudo pela rapidez com que se effectuava sua manobra: Da popa dava elle aviso ao selvagem que estava na proa, e este
saltava no mar; então um empuxão á cana do Vol. v 7
7 4 AS MINAS DE PRATA
leme a bomhordo, uma peitada á estebordo, e o batelão virava como um molinete sobre si mesmo.
M»$ apezar da estratégia e do avanço1 qu© tivera, a catraia perdia terreno : uma manobra habilmente executada ao voltar a outra ponta da ilha deu algum fôlego ao Antão. Os hollandezes pensavam que o inimigo trataria de escapar-se para um lado ou para outro, e não podiam imaginar que commettesse a loucura de approxirriar-se dos navios de que fugira. O capataz aproveitou-se desse engano, e de repente contornando a ilha se distanciara dos seus perseguidores-. !',
Afinal urna das chalupas chegando á tiro de arcabuz, disparou contra a catraia a primeira carga de fuzilaria, quasi toda perdida ; porém segunda e terceira iam seguir-se, e afinal viria a abordageM
Estacio porém avaliou de longe a situação da catraia.
— Qual tem melhor olho ? perguntou! ^ — Em falta de Guarassú, eu l disse um. *y|j — Na popa, que apanhe o mastro. O indio ajoelhou e fez a pontaria ; o mawcebp
ractifieando-», achou-a perfeita. '••• — Fogo!... :
O grito de Antão respondeu ao longe. "'•?• i .u>
AS MINAS DE PRATA 7 5
— Bravo !... Dissipado o turbilhão de fumo conheceu-se 0
estrago produzido na chalupa : aproveitando-se do espanto causado entre os hollandezesí a «atraia
'continuou a salvo e. atracou ao navio: os três prisioneiros foram içados como fardos, e a judia recebida pelo mancebo com a possível cortezia. O Antão Gonçalo pisou com sentimento indisivel de júbilo esse pavez de taboas, que fora seu chão tantos annos. r<
— Olál mestre !,.. gritou lhe Estacio ; cuidado com a catraia 1
E continuou a fulminar os escaleres hoilande-zss, dos quaes só escapou o ultimo, arripiando carreira. Os tripolantes ou morreram no combate, ou foram acabar depois ás mãos dos selvagens n'algum ponto da costa, pois delles não* houve mais noticia. ftj?«-
— A caravella ? perguntou o Antão.
Estacio apontou para o horisonte, onde o navio apparecia como uma sombra.
— E então ? Que fazemos aqui parados ? gritou o velho marujo.
— Sois papaz de navegar o bergantim ? Com que mareja,? , ; .^ , f
7 6 AS MINAS DE PRATA
— Os meus índios!... Que mais quereis?. .. São antas; tanto correm em terra como nadam n'agua. rVereisl...
— Pois arranjae-vos com a manobra ; eu me
ponho ao leme. — Ah 1 Entendeis do riseado?... — Não ; mas Deus provera. A intenção de Estacio era queimar os dous na
vios e voltar á Bahia com seus prisioneiros; mas tendo-lhe escapado a caravella, o plano do Antão lhe sorria. '..^-
Mandou que lhe trouxessem Pedro : — Toma, rapaz, a bolsa do hollandez, que te
foi promettida. Põe-te á nado, e safa-te!... — Já agora prefiro ficar comvosco!... — Acho que não fazes bem. — Por que razão, senhor? — Não tenho confiança em ti; por conseguinte
porei ao teu lado um destes camaradas para torcer-te o gasnete á primeira suspeita. Pensa bem; êt ura perigo. »'
— Senhor, eu não sou velhaco I replicou o rapaz com lagrimas nos olhos. Si me passei para vós, abandonando os que me assoldaram, foi porque . me vencestes á força; resisti quanto pude,
AS MINAS DE PRATA 7 7
do mais n$q tenho eu culpa. A bolsa, aceitei-a porque vejo do meu ganho ; e pois que me pri-vastes de tão ,bpa. freguesia, justo era que me desforrasseis. Mas agora que me ganhastes, não posso ser senão vosso.
r j Está bem; fiçae! Com pouco q,bergantim desfraldando ao vento as
vejas todas até os últimos papafigos» singrava ai-rosamente rumo do norte, com a proa, sobre a caravella. Á, : . . • . . , •
Eram 0|to horas do dia; o sol entornava cascatas de luz sobre as solidões do mar. O bergantim deitando cinco a seis nós, por hora, pro-seguia com ardor a caça começada; ganhava sobre a caravella meio nó, de modo que só lá por volta da tarde á não escassear o vento podia chegar a alcance do canhão.
Antão desçançado á respeito da manobra passara uma revista pela dispensa ; e havia arranjado sobre a meia laranja um; succulento almoço ; paios, bolacha, queijo e vinho ; elle e o estudante fizeram-lhe as honras com excellente appetite. .
Quando estavam no fim da refeição, achegou-se delles Esteves: .,, — A judia vos busca, senhor Ustacio.;
7 8 AS MINAS DE PRATA
— Dizei-lhe que já sou com ella. Como preparava-se para descer á camera, viu
que lhe vinha ao encontro a formosa israelita. O mancebo não se poude esquivar á admiração contemplando a bella creatura. Os grandes olhos negros, de intenso brilho, nadavam em um fluido límpido, como si ainda os orvalhasse o soro das lagrimas: não havia sorrisos no seu lábio, mas qüe sorrisos valiam a bonina delles? !
— Senhora escusai, disse o estudante catando a corte/ia devida ás damas, si não vos agasalho como era meu dever e mais ainda meu desejo. O caso imprevisto que me fez hospede vosso, quiz que ainda neste ponto incorresse em vosso desagrado;
— Outra cousa para mim de maior monta me traz á vossa presença, senhor cavalleiro.
— Melhor farieis ordenanado que fosse eu á vossa.
— Vai quem espera mercê ; e muito alcança ás vezes, si obtém audiência para o que tem a pedir. « — Desterrai esse temor* senhora ; com muito empenho vos escuto.
Rachel afastou-se fazendo ao mancebo um aceno
AS MlNAS DE PRATA 7 9
para que a seguisse. Tirando então de sob a pe-liça que a envolvia o cofre de filagrana com suas jóias, abriu-o de modo que só Estacio o visse :
— As jóias quo estão neste eofre velam, segundo ouvi, muitos centos de mil CMizados: além dellas meu par traz aoparlarida«osida de ouro ; tudo isto vos pertence si concederdes * a vida ao velho Samuel e á sua filha.
Estacio-sorriu com benevolência : ' — Guardai, donzella, vossas lindas jóias para
adereçar-vos, que a nenhuma iriam eliastrrerhor que á sua formosa senhora. Quanto ao ouro de Samuel, todo elle fundido não pesa um só fio do cabello de , sqa cabeça-,; Vosso pai ,é mercador, e vós filha ; pensa elje, que tudo s& compra, vós que tudo se pôde esperar em beneficio do authòr de vossos dias. Porisso á ambos vos perdôo.
Rachel, apezar do tora brando dessas palavras, sentiu a tempera d'almà varonil, como sob o macio estofo de um dívan assetinado sente-se a vibração elástica do aço. Arrependeu-se quasi do passo que tinha dado, e receiou tivesse aggravado a sorte do pai, offendendo o brio do mancebo. Sob essa pressão vergou a fronte languida.
— Outra moedá,; senhora, tendes para mim de
,80 AS MINAS DE. PRATA
maior.i preço, com a qual muito, senão, tudo pqdeis obter. ;,; •
Rachel corou, jarguendoos olhos magoados:
— Essa linguagem, cavalleiro... — Apresso-me em declarar-vos ; a moeda de que
vos fallei, não é outra, senão a; verdade. Essa sim, é ouro fino e de lei I
— Não seria capaz de faltar á ella I — Creio bem; mas podeis encerrar-vos no
sjlencio.. . u • — Que exigis de mim? . ,
— A confissão inteira do que é passado á respeito da fuga dos dois flamengos.
— Uma impiedáde! Que* as* palavras da filha sirvam para condemnar o pai!. . .
— Para a condemnaçáo de vosso pai, com ma-r goa' vos digo,'não heí mister de mais do que sei já da melhor fonte. Samuel, grãó-mestre dos judeus do Salvador, foi quem promoveu a fuga dos flamengos. Em sua casa se occultaram até se partirem da cidade; delle receberam dinheiro e a missiva que pára em meu poder, convidando o inimigo a vir atacar a Bahia.
Rachel estremecia á ,cad,a palavra do mancebo:
AS MINAS DE PRATA 8 1
— Pois se tudo sabeis, que mais quereis de mim?
— Ha um ponto que eu ignoro; não com-promette mais vosso pai, antes pôde favorecê-lo. ' -*JiQual elle é? ' *•" <
— Quem foi o traidor, que descobriu o santo e entregou a planta da cidade levantada pelo Sargento-mór ?
Rachel empallideceu : a palavra borbotou-lhe do seio como uma lava :
— Foi o mais vil dos homens!... -P*- Fidalgo? ,>'; • •
— Para vergonha de seu nobre sangue!... • — O nome?...
— Poupai-me a dôr de o proferir! «f •"'•-'' Estacio refleotiu : -*«ü ' #
v — Esse homem, senhora, seria o meSmo, cujo corpo depois que o assassinaram, foi lançado á rua, pouco distante de vossa casa, cerca de onze horas? «'»'• • ••- m
— Não estava morto; sim ébrio! — Era elle então?... Um ôfíiciál de aacVàllos,
senão me engano!.;. lítttUl':
— Pois que tanto sabeis, vede o resto 1 Rachel tirou dó seio o valle de D. José, que na
8 2 AS MINAS DE PRATA
noite antecedente tomara das mãos do pai, e entregou-o ao mancebo.
Estacio leu corado de vergonha ; terminando, a donzella referiu-lhe em poucas e acres palavras a scena passada na véspera entre ella eoalferes.
— A vida e a liberdade de vosso pai, senhora, por este papel e o segredo profundo do que elle encerra !
— Gyardae-o e Deos vos recompense. — A promessa q,ue vos £iço não se pôde rea»
lisar já; depende ella do Governador, em nome de quem procedo; mas empenho-vos minha palavra .
— Ella me basta 1 disse a judia com nobreza.' Estacio ficou pansativo, relendo lentamente o
papel que tinha diante dos olhos: — Muito amigo sois desse homem, oavalleiro ? — Elle? exclamou Estacio. Vota-me ódio pro
fundo. . . — Bem me parecia que entre vós e elle só
ódio pôde existir. Mas então porque exigis que se cale sua infâmia !...
— E' irmão da mulher que, eu amo 1 — Dr Ignezl... .!-
,;—- ÇomprenendeisKine?... Todo o segredo I...
AS MINAS DE PRATA 8 3
i — Eu vo-lo juro. ' Nesse instante um indio soltou um pequeno grito
gutural com que costumava chamar a attencão, e que se pôde: talvez exprimir assim:
— Huhui... -rj * A' esquerda na extrema do horisonte, deseo-
•briarse a. oaastreação e- velame de uma embarcação de alto bordo* que seguia o mesmo rumo, porém, muito aroarada; devia estar a três léguas de distancia. Estacio assestou o óculo, que passou ao contramestre : ,. — E'iuma fragata... e portugueaa. Vai para
S. Sebastião 1 -upíju '^'W — Vira de rumo?... ' vl!ê ; ' -^-Ou de Pernambuco. <í v
iV —t Be» póá* ser o novo Governador, D. Francisco de Sousa I;. , •
r — Estava a «fcegar? ' .:amt: ' õ$Ql.'-—,J,á taisdava.l ^bi:,oi3Ó.• • <:>f j(H — Entã©! não ié outro. ••4Í\ ,í(éta':r-
Ambas as supposições ,«ram exactas,' oíiiA fragata era! realmente portugueza e traria a seu bcrdo D. Francisco de Souza, Gevoraador nomeado para >o. Estado do SuJ; topdo se demorado na tfavessüa, áa Europa por caosa da caça
8 4 AS MINAS DE PRATA
á dois navios hollandezes que a desviaram de sua rota, refrescara alguns dias em Pernambuco, e demandava agora o porto do Rio de Janeiro.
D. Francisco de Souza é um vulto importante na historia dos tempos colouiaes, pela energia do caracter, agudeza de engenho e grandes lettras : embora apenas um momento perpasse pela scena deste drama, teve uma grande tnfluefl cia na chronica das minas de prato. «Em* 1591 viera elle á cata daquellas minas com a promessa de uma recompensa negada ao seu descobridor1, agora, desoito annos depois voltava com renovação da promessa á busca daquelle immenso thesouro, cujo segredo a terra guardava.
Vaz Caminha não se enganara pois; era o roteiro de Roberio Dias quem trazia outra vez á America o, orgulhoso fidalgo portuguez.
Quando mestre Braz ao desembarcar em Lisboa foi ao palácio dos Souzas visitar o antigo Governador, não o levou mera reverencia e acatamento. O judengo que embaçara o frade e OÍ companheiros, fingindo-se enjoado e ébrio duranti a palestra da ceia, ouvira tudo; e como o P. Molina farejara: a exisfencia do roteiro no pode de D- Diogo de Mariz. Revelou portanto ao fi
AS MINAS DE PRATA 8 5
dalgo o que sabia e conjecturava. D. Francisco correu a Madrid; teve larga conferência com o ministro; e por fim, depois de mil protelações, obteve a divisão do estado e o provimento para o sul.
Seria a sua segunda vinda ao Brasil tão funesta ao filho, como íôra a primeira ao pai?
Já a Providencia os approximava. De milhares de léguas que separavam esses dois homens, o soberbo fidalgo e o órfão láesvalidô, só restavam três; e em pouco talváz se tenham elles de encarar frente á frente como dois inimigos hereditários; entre ambos erguia-se a memória da vic-timal.. .
"' Também de bordo da náo tinham avistado o bergantim á popa e a caravella á proa com os dois extremos da base de um triângulo, de que ella ocupasse 0 vértice. O commandante depois de examina-los attentamente com o óculo delonga-mira, ficou pensativo :
— Não vos parecem os nossos dois hollande-zes da ilha de, Fernando de Noronha?
— Eu jurara que são! . . . respondeu o im-mediato. ,, \)U;': Ü
Vol. v. 8
8 6 AS MINAS DE PRATA
— Si não fosse o senhor Governador estar tão impaciente de chegar!...
— Pois vão no mesmo rumo, que máo és tentar!... í ; i
— Avisaes bem! i Embocando a busina mandou a manobra : — Larga escotas a bombordol Cassa a esti-
bordo i Orça á terra I... Uma i hora depois, mestre Gonçalo exclamava á
bordo do bergantim : — Oh! ohl.. . Os amigos vão-se cheganc
Quem sabe si já não farejam a caça. — Quem? os da náo? perguntou Estacio vi
vamente. — Os ditos cujos. Não vedes como atravessam
manhosamente ? Por tarde temo-los comnosco. — E não ha meio de evita-los?... — E' o que não casta ; mas deixaremos es
capar a caravella? — Isso não !... — Depois quem sabe?... Talvez os fl.imen-
gos com medo da náo se cosam com, a terra, e vão se esconder nos baixos dos Abrolhos! N ssè caso embaçamos cá os camaradas, e podemos pilhar a caravella como tatu no buraco. -
AS MINAS DE PRATA 8 7
— Conbeceis estas paragens?... — Si não conhecera!... Muito herege inglez
e francez caçamos por aqui no tempo do senhor D4 Jeronymo de Albquerque. Bom capitão de mar, aquelle 1 Como elle não vem cá segundo.
O contra-mestre voltou-se : .->.-. — Olá de proa!... Foi Pedro quem acodiu : — Vai lá por baixo, e vê si me desencavas a
bandeira real de Hespanha. E' impossível que estes cães de flamengos não a trouxessem á bordo, para nos pregar das suas.
Por volta da tarde o horisonte appareceu acol-choado de grossas nuvens bronzeadas. O Vento ponteiro que se levantou de sudoeste annunciou a repetição da tempestade da véspera.
O bergantim, singrando galhardamente, ganhara tanta vantagem, que estava quasi á tiro de canhão da caravella; como previra o contra-mestre, os flamengos, que á principio buscavam a salvação no alto mar, com o apparecimento de outra vela se encostaram á terra. Não obstante a náo tomando o vento em cheio pela popa approxima-va-se rapidamente do bergantim que apenas o tomava aseis quartas.
8 8 AS MINAS DE PRATA
Estacio estava inquieto, receando algum obstáculo. — Que alcance daes a este rodisio, mestre Pe
reira ? — Cincoenta quititaes... Póá& alcançar cerca
de trezentas braças. — E a caravella está?... — Pouco mais do que isso ! — Então experimentemos!... Carregada a peça com uma carga formidável,
o moço fez a pontaria. — Na mastreação 1... - disse o contra-mestre.
Cortar-lhe as azas!... , A bala partiu, e foi cahir perto da caravella,
mas já fria e sem força; comtudo o mancebo não desanimou, e os tiros succedcram-se uns aos: outros. A' medida que o alteroso bordo da'náo se approximava, o sangue fervia-lhe no coração: de impaciência ; e nova descarga partia. Afinal? foram seus esforços coroados de successo: uma bala cortou a meio o mastro da mezena , diminuindo consideravelmente o panno à caravella, cujèí marcha atrasou. ••*.
A tempestade rugia ; sobre o manto delia desdobrara-se a noite tormentosa. Quando o prfr meiro trovão soou a sotavento, do lado opposttfj
AS MIRAS DB PRATA 8Ü
ouviu-se o tiro do canhão á bordo da náo ; as
quinas portuguezas desdobraram-se magestosameute
na popa, «roquanto o pavilhão de capitão, gene
ral borboleteando pela aderiséa, foi tremular no
tope dó mastro grande.
0 bergantim correspondeu á salva, içando igual
mente a bandeira real do Hespanha e Portugal.
Os dois navios alongando-se em rumos paralelos,
foram assim um instante a par e par, e tão pró
ximos que se podia fallar sem bosina de um á
outro bordo.
->- Que navio é esse ? perguntaram.
— Uma presa flamenga.
— Venha o oommandante á bordo.
— Não tenho tempo ! . . . respondeu Estacio.
— Obedecei, senão vos metterei ao fundo!.. .
O mancebo calou um instante :
— Ponde vós o escaier ao m a r ; a mim não
sobra gente para isso. j>"i>. .•*.
Em um instante arreou-se o «escaier da náo
com dois marinheiros e um official; os navios
ficaram ao pairo durante a travessia, continuando
depois a sua marcha. Estacio, havendo, feito suas
recommendaçõe» á Antão e Esteves,«passara-se
para bordo da náo, onde apenas chegado foi
9 0 AS MINAS DE PRATA
conduzido á popa. Ali estava o Governador D. Francisco de Souza com sua comitiva, e ao lado o capitão-mór do vaso e officialidade.
A presença do mancebo produziu no grupo de fidalgos e officiaes varia impressão. A belleza viril de sua phisionomia, que realçava nesse momento um assomo de intrepidez, inspirava interesse e sympathia ; mas as roupas enxovalhadas no mar e no combate, as mãos negras de pólvora, deviam excitar uma prevenção á respeito da qualidade e posição do mancebo.
— Sois então o commaudante da presa? in-j terrogou o Governador.
— Quem me interroga, ecom que autoridade? .— Aquelle pavilhão já vo-lo annunciou, man
cebo ! replicou o fidalgo com severidade. — Como a bandeira real içada a meu bordo
annunciou ao Sr. capitão-general, que eu navego ao serviço d'Elrei I „
— Prudência, mancebo. Fallaes á D. Francisco de Souza, Governador e capitão-general do Estado do Sul. -<i
Estacio empallideceu : — Acatarei em Vossa Senhoria a autoridade de
El-rei, nosso senhor. ' t
AS MINAS DE PRATA 91
O mancebo carregou nas ultimas palavras para tornar bem frisante o seu pensamento, que era separar o cargo da pessoa, nivellando ao mesmo tempo á ambos, o poderoso .fidalgo e o fraco mancebo, na qualidade de subditos do mesmo soberano.
— Como vos chamaes? — Melhor é que o ignoreis, senhor; porque
esse nome deve ser uma recordação pungente para Vossa Senhoria.
— Que significa isto?... Explicae-vos melhor l exclamou o Governador dardejando um olhar de cholera.
— Sou filho 'de Roberio Dias, Senhor Governador! ^
— Ah ü... Sim, elle deixou um filho!.,. — Na miséria, em que.tem vivido até hoje. — Não se trata disto agora. Onde e como fi
zestes esta presa? — Capturei-a hontem á noite na ilha de Ita-
puam, onde estava fundeada. — Com que autoridade ?... Admira-vos a per
gunta ? Igual me fizestes pouco ha! — Com a autoridade que tem todo o subdito
de El-rei de servi-lo e deffender os seus estados ;
9 2 AS MINAS DE PRATA
autoridade justa e legitima como nenhuma outra, pois nasce de um dever sagrado. Onze homens apenas mettem-se n'uma catraia, e á custa de grande esforço e ardil obtém capturar um bergantim tripulado por sessenta marujos, matando a maior parte da tripulação; e quando servindo-se das armas do inimigo o perseguem, tudo isto sem custar um ceitil ao real erário, vós, Sr. Governador, lhe sahis ao encontro, para lhe perguntar com que autoridade fez isto?
Essa linguagem firme abalou todos que a ouviram : mas restava uma suspeita no espirito de D. Francisco.
— Sem duvida, mancebo, que pratioastes uma acção valorosa, e eu vos louvo por vosso arrojo; mas não sabendo se a fizestes em nome de El-rei como dissestes, ou por conta própria, viajareis de conserva comigo até S. Sebastião, onde averiguaremos o caso, e si fôr como dizeis, darei conta a El-rei que vos premiará.
— Suspeitaes que eu seja um pirata, senhor !... replicou o mancebo com azedume. Assim devia julgar o filho, quem ha dezoito annos condemnoc o pae como traidor 1
-— Deixae em paz as cinzas paternas, manoebô,
•
A» MINAS DE PRATA 9 3
não as revolvei que podem tisnar-vos ainda 1 .. Basta ; já resolvi o que tenho por melhor.
— Com vossa permissão; o que resolvestes não é possível.
— Porque ? — A minha obra não está acabada ! — Nós a acabaremos juntos. — Que dirieis , senhor governador, de quem
vos quizesse Usurpar os poderes de que vos El-rei investio?;.. • •* ^
— Qual paridade^ha nisso!? ' f
— A captura daquelle navio é meu direito, como é vosso a patente dada por El-rei.
— Quero eu toma-lo!... — Não ó a mim que o. toma V. S., mas ao
senhor D. Diogo de Menezes e Siqueira, governador e Capitão General do Estado do Brasil, á quem só reconheço como tal, pois a nenhum outro ainda prestaram homenagem as câmaras das cidades e villas I... 4p
— Onde está a patente que delle trazeis ? —dão careci delia para arriscar a minha vida,
rr.enos agora que a empreza está feita. — Tenho resolvido I v
•— Attenda o senhor Governador que será causa
9 4 AS MINAS DK PRATA
de escapar-nos o inimigo; já elle ganhou sobre nós, e com a noite nos escapará.
Era real o que dizia o mancebo , nem essa circumstancia escapara aos officiaes.
— Bem ; consinto que tomeis a dianteira ; mas metter-vos-hei á bordo uma guarda, para segurança.
— O primeiro soldado que pisar nas taboas do bergantim sem permissão, será também o ultimo, porque o navio arrebentará com a explosão do paiol. E' minha ordem!... E agora podeis fazer de mim o que vos approuver!....
O mancebo cruzou os braços, o poz-se a olhar a caravella , que envolta pelas sombras da noite tormentosa, confundia-se já com o vulto da terra assomando á sotavento.
As organiSações superiores tem um poderoso magnetismo, ao qual não escapam outras de igual tempera. O heroísmo da empreza audaciosa, executada pelo brioso mancebo em tão verdes an-nos, a firmeza do seu animo junta á agudeza de engenho, conquistaram a admiração dos fidalgos. Por outro lado D. Francisco sentia, que elle não tinha justo motivo para reter o navio; a suspeita de pirataria era inverosimil; quando muito se po-
AS MINAS DE PRATA 9 5
dia supppr um corso feito sem carta e por conta própria. • Mas na colônia do Brasil, tão desamparada da metrópole quanto acommettida por aventureiros de todas as nações, e onde a defensão do estado estava quasi sempre confiada aos esforços particulares, podia-se com razão imputar como delicto a Estacio o seu acto de bravura, e impedi-lo de coroar a sua obra com a destruição do outro navio?
Essas razões ponderadas em conselho modificaram a primeira decisão do Governador; o mancebo foi restituido ao seu navio. Quando elle sentiu de novo sob os pés as taboas do bergantim, respirou como Antheu depois de tocar a terra.
— Reparemos o tempo perdido 1... A tempestade desabava. O bergantim, como um
corsel por algum tempo soffreado, disparou corco-veando sobre as ondas. Impellido pela refega do temporal, arrostando temerariamente a fúria dos elementos, parecia um dos brancos alcyons, que ao cahir da tormenta, atravessam calmos e serenos por cima das ondas.
D. Francisco sorriu murmurando comsigo esta parodia sinistra :
— Sit tibi aqua profunda.
IV
Que refere o suicídio de uma virtude.
Eis-nos outra vez na cidade do Salvador. Muito ha que é noite. Elvira sentada no escabello dourado, crava os
olhos com uma fixidez espantosa no óculo aberto ao alto da janella : a inflexão da cabeça sobre a espadua indica a attenção que presta seu ouvido
Vol. V. 9
9 8 AS MlNAS DE PRATA
aos rumores subtis que vêm de fora. Em sua
phisionomia se debuxa com viva côr a anciã de
uma alma angustiada entre uma dôr intensa que
a opprime e uma esperança que vacilla.
O que soffreu a misera donzella desde a noite
fatal do que para outros fora anno bom, e para ella
tão máo , já exprimiram suas queixas na carta
escripta á Garcia de Ávila. O Reverendo P. e Fi
gueira , acodindo á toda pressa ao chamado ;
urgente da viuva, ouvira com a maior altenção a
historia dos acontecimentos da noite ; e logo re
conhecera que um obstáculo serio oppunha-se ao
projecto tão afagado por seu espirito, e cuja rea~
lisação lhe parecia infallivel.
O jesuita teve uma longa conferência com D.
Luiza de Paiva, que reassumiu a calma habi
tual, e na despedida acompanhou seu contes-
sor até a porta com um sorriso angélico. Nesstf:
mesmo dia foi chamado um serralheiro que fechou'
com grades de ferro as janellas e a porta do apo
sento de Elvira , agora seu cárcere, de camera
que fora. A, alimentação reduziu-se á pão e água
durante os dias magros da semana ; nos outros
apenas havia de mais algum legume. ' >\
c, Ou isolamento e je jum, tinham sido os meioí
AS MINAS DE PRATA 9 9
aconselhados pelo jesuita; serviam não só de penitencia pela culpa commettida, como de remédio contra o peccado original do amor de Elvira. O P." Figueira sabia que influencia exerce o phi-sico sobre o moral da creatura ; e esperava amainar a çharama dó coração debilitando e empobrecendo o sangue que o fazia pulsar.
Para apressar a cura d'alma empregaram-se outros meios; tentaram fazer acreditar á Elvira que seu amante havia suecumbido ás feridas que recebera ; e a ameaçaram com o castigo divino se continuasse na desobediência á sua mãe; ao mesmo tempo recorriam ás promessas e rogos para demoverem a moça de sua paixão. Mas foi tudo baldado ; o coração de Elvira se acrisolava no soffrimento*
No dia de Reis, D. Luiza por inspiração do con-fessor resolveu levar a filha á igreja ; depositavam ambos muita esperança no sermão do P.° Molina ; não porque devesse o exímio pregador tentar especialmente o assumpto, mas pelo effeito que a palavra sagrada, manejada por tão insigne mestre, havia de produzir geralmente na multidão dos devotos. Contava o frade tirar d'ahi nova força e autoridade para seus conselhos.
100 AS MINAS DE PRATA
O resultado foi bem contrario á espectativa. Bem longe de impressionar-se com a magestada da festa religiosa, a donzella no fundo do palan-quim onde a haviam encerrado , só teve olhos para Estacio, que lhe appareceu naquelle instante como a sombra de Christovão. Recolhendo á casa trouxe a certeza de que o amante vivia, e a esperança de que breve o havia de ver.
No dia seguinte lembrou-se de escrever ao amigo; era um modo de approximar-se delle mais cedo. Começou a carta sem ainda saber porque meio a enviaria á seu destino, e confiando tudo do acaso. Quando estava nessa doce occupação foi de repente sorprehendida pelos passos de sua mãe, que se approximava acompanhada do P." Figueira. Elvira apenas teve tempo de occultar o papel no seio, e afastar-se rapidamente da mesa onde escrevia.
A viuva entrou, correndo pelo aposento um olhar suspeitoso ; emquanto o jesuita com sorriso melífluo dirigia-se á donzella :
— Deus esteja cómvosco, filhai... — O Senhor é misericordioso e espero não me
ba de desamparar nesta minha tributação ! respondeu Elvira com altivez.
— Não desampara, não; e a prova é que me
AS MINAS DE PRATA 101
envia á vós para fallar-vos em seu santo nome I A donzella voltou o rosto com visível desgosto;
ella acreditou que a palavra sagrada não podia manar daquelle lábio fino e delgado como uma lamina.
— Fostes victima, filha , da seducção de um mau homem, que felizmente não conseguiu seu feio intento , pela soliicitude e zelo materno de vossa respeitável mãe. Errar não é vergonha ; sobretudo quando o arrependimento lava a culpa. Foi o que vimos no vosso caso ; a falta que com-mettestes, ouvindo os requebros de um casquilbo, estimulou6vos a virtude. Desde então vosencer-rastes nesta camera solitária e propicia ao recolho do espírito ; ao mesmo tempo que por penitencia condemnastes a carne á jejum rigoroso de pão e água ! Tão grande fervor e humildade tem excitado a admiração dos estranhos e chamado sobre vossa cabeça as bênçãos celestes.
Elvira fitou no frade um olhar pasmo; o seu espanto ouvindo o jesuita attribuir-lhe como penitencia espontânea, o que lhe haviam inflingido como severo castigo, era extremo; mas redobrou notando a impassibilidade austera que conservava a phisionomia de sua mãe deante daquella falsidade.
1 0 2 AS MINAS DE PRATA
— O amor da respeitável matrona que o Se nhor vos concedeu por mãe, si um instante re tirou-se da filha culpada, voltou já o com maic res estremecimentos á filha arrependida. Não verdade quanto digo, senhora D. Luiza, minh respeitável devota?...
•-*- Só a verdade falia pela boca de V.iReve rendissjma.
— Mas, si já fizestes muito, virtuosa donzella não fizestes tudo para a redempção de vossa alma E' preciso coroar dignamente a obra detãosant abnegação, offertando emfim as premissas de voss alma cândida, que o bafo impuro do tentadores capou de manchar, á quem somente as merece I. Para recebe-las e satisfazer esse voto intimo d vossa alma , enviou-me Deus á vossa presença
Elvira não prestava attenção ao jesuita ; ancios de ficar só para concluir a carta, e receando qu a sua replica suscitasse a cholera materna e a longas contestações que se lhe seguiam, resolver callar-se para abreviar a pratica. Arredára o es pirito das pessoas<que ali estavam, e o dirigir para o seu alvo favorito, Christovão. Só voltoi a si quando o P.e Figueira impondo-lhe as.mão ambas sobre o missal, e com a dextra benzendo-a
AS MINAS DE PRATA 1 0 3
três vezes, proferiu estas palavras graves e solemnes: — Em nome do Senhor recebo e santifico o
voto solemne, que fazeis vós, D. Elvira de Paiva, d e consagrar-vos corpo e alma á religião em uma ordem regular, como esposa de Christo!...
A donzella, que a principio não tinha compre-hendido, e emmudecêra ante a magestade do acto, espavorida arrancou as mãos soltando um grito de horror:
— Misericórdia, Senhor Deus! Vós bem sabeis que não fiz outro voto senão de amar eternamente o escolhido de meu coração !
A donzella cahiu de joelhos : ^ M%(. — Calae-vos, filha. — Compaixão, mãe, desta infeliz ! — Deste instante em deante, filha, já não po
deis sentir outro amor, que não seja o evangélico ; o amor puro e immaculado !
— Eu enlouqueço I... — vSerenae vosso animo. Nós vamos, vossa mãe
e eu, tratar dos modos de realisar depressa os impulsos de vossa alma.
O confeSsor sahiu seguido pela viuva. Elvira pasma e estática, ficou de pé no meio do aposento, inclinada para a porta por onde acabavam
1 0 4 AS MÍNAS DE PRATA
de sahir, como si houvessem levado apozsiop tame de sua alma. Mas afinal o instincto da sa vação dominou o atordoamento. Ouvindo entn rem no visinho gabinete, a donzella precipito para uma porta occulta na tapeçaria, que serv de communicação entre os dois aposentos, e e cutou.
Sentou D. Luiza justamente n'uma poltrona qi havia contra essa porta, e o padre ao seu lado
— Não nos ouvirá ? perguntou o jesuita e tom de segredo, mas com a voz bem clara.
— Nem suspeita que estejamos aqui 1 Pôde fí lar, P.e Figueira.
Elvira pensou que a Providencia a favoreoii fazendo-a ouvir o que á respeito de seu desti decidia o confessor e conselheiro de sua mãe; bem longe estava de suspeitar a verdade, propósito o P.e Figueira combinara com D. Luí toda aquella scena, afim de exercer no espirito
,Elvira uma prçssão favorável aos seus intenti Conhecia que suas palavras eram recebidas p donzella com uma desconfiança que ella não p curava disfarçar: outro tanto não succederia o o que surprehendesse daquella conversa secre
AS MINAS DE PRATA 106
— Estão todas as difficuldades vencidas, continuou o padre. Vou escrever para Lisboa ao Provincial - que se entenda com a Superiora de Santa Clara sobre a admissão ao noviciado da menina Elvira. Justamente está á partir por estes dias um galeão.
— Neste ponto confio tudo de vosso zelo, senhor P.° Figueira. De onde ainda receio é daqui.
— Não vos entendo. • j — Da resistência de Elvira.
— Essa! E' impossível, á menos que não julgueis vossa filha uma renegada l
— Deus me defenda de tal. — Lembrae-vos que ella já fez voto de ser freira;
e portanto é como si já estivesse clausurada. — Suppondes então que o voto que ella fez a
obriga eternamente? .! — Sem duvida ! Como se fosse feito em pro
fissão solemne; as formulas são nada; o acto é tudo l o; :!»>>
As vozes abaixaram, e não se ouviu mais que o murmúrio de palavras.
Elvira aterrada, ficara immovel e hirta. A trama do jesuita, que em pessoa mais conhecedora do mundo, talvez não suseitasse senão desprezo,
106 AS MINAS DE PRATA
n'alma ingênua da donzella, impregnada das crenças profundas do tempo, produziu o effeito calculado pelo astuto frade. Acreditou a innoGBiits j que de feito estava para sempre ligada por um voto que ella não fizera espontaneamente, mas por sor-preza lhe haviam arrancado ; julgou-se já freira, noiva; do Christo, e separada para sempre, nesta e na oUtra vida, daquelle á quem amavaf " j
Prostrou-se de joelhos ante o crucifixo : — Meu Deus, eu não sou digna de vós I Dei-
xae-me ao amor daquelle á quem me destes, muito * antes de me quererem para vós. a
Mais que nunca sentiu a necessidade de ter Christovão á seu lado para a proteger e salvar sua alma, que ella sentia delirar dentro de um corpo convulso. Voltou á mesa e de um impeto| terminou a carta começada pela manhã e tão brus-i camente interrompida.
Mas como envia-la? Muito tempo girou inso-frega pelo aposento, como uma mariposa que buscai na treva uma restea de luz. Veio a noite e encheu os muros que a enclausuravam de silencio e escuridão. Da novo implorou a misericórdia divina, de quem só esperava soccorro.
Deus a ouviu. •*
AS MINAS DE PRATA 1 0 7
Foi justamente nesse momento que a setta despedida por Estacio, atravessando o aposento e cravando a parede, lhe trouxera as lettras queridas de seu amante e o fio conductor que devia levar a 'resposta. Nos primeiros momentos que succe-deram á essa feliz sorpreza, Elvira não teve alma e vida senão para a carta de seu amante. Chris-tovâo nada lhe dizia que ella não soubesse; eram juras e protestos, mil vezes repetidos, de um amor ardente ; eram suspiros de saudade e gemidos de desventura, como ella também exhalava. Mas isso escripto pela mão amada, valia como caricias vivas, enGerradas no papel, que ao abrir se atiravam ás faces e ao seio da donzella para afaga-la.
Quando o tiro soara, ella acordou do seu doce enlevo, Sua aííliccão durou até a gargalhada do capitão de matto e as palavras por elle proferidas que a tranquillisavam á respeito da vida de Chris-tovão naquella noite. Mas podia não ser elle outra vez tão feliz, e já ella se aceusava de o haver exposto á morte, chamando-o á si.
Nestas inquietações passou até a noite seguinte, em que novo accidente a veio distrahir. Uma segunda flecha penetrou como a primeira no aposento, trazendo-lhe urn recado de Christovão :
108 AS MINAS DE PRATA
« Antes que me cbamasseis, senhora minha, já minha alma tinha voado para vós e estaria á Vos* sos pés neste instante, si o corpo enfermo não me encadeiasse á um leito de martyrio.
a Breve nos veremos, espero em Deus, apezar dos obstáculos que se erguem entre nós; mas sobre todas as cousas eu vos supplico, Elvira minha, não acrediteis um instante que haja poder para nos separar jamais! »
— Si elle soubesse !... Na terceira noite, ás mesmas horas mortas, a
mensageira fiel, que ella ja esperava como si fora uma amiga, entrou sibilando pela fresta da ja-nella. Desta vez trazia a setta, como da primeira, | alem da carta um fio conductor:
« Já me approximo de vós, doce Elvira minha. Ajudae-me. Conservareis em vossa mão o fio que esta setta conduz; uma segunda vae parir que leva outro fio; ligai ambas as pontas; e esperae-me. Não vos assuste qualquer estranho rumor que por ventura vos chegue ao ouvido: é vosso amigo que se avisinha. Até amanhã talvez, ajudando Deus. »
Mal acabava de ler, ouviu o sibilo da flecha annunciada; ella executou á risca as instrucçôes»
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e observou que o segundo fio fazendo moutão de um dos ferros da grade, puxava o primeiro, o qual foi substituído por uma corda de ticum á elle presa. Também por sua vez a corda foi rolando pelo balaustre até que depois de algum tempo tornou-se firme. Elvira julgou ouvir as suas vibrações produzidas por uma forte destenção, e logo depois, rumor no telhado.
E não se enganava. João Fogaça, autor deste plano, calculado sobre a inspiração de Estacio, depois de firmada a corda no ramo da arvore, enviava sobre essa maroma Olho,x\a qualidade de explorador. O indio,agachado como um gato,depois de sondar a treva que não lhe offereceu nada de suspeito, resvallou rápido até a janella; afinal galgou o telhado, e arrancando algumas telhas insinuou-se no forro. •
Christovão com a saúde e a anciã de ver a amante, readquirira a audácia ; embora não desejasse dar escândalos, já o não retinham pequenos escrúpulos, que durante a sua moléstia se lhe antolhavam como factos gravíssimos. João Fogaça desembaraçado de seus movimentos também de seu lado recobrara a costumada fecun-diJade. O plano que elle tratava de pôr em
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l i O AS MINAS DE PRATA
execução era bem concebido: resolvera penetrar na casa pelos ares; era o único meio de • burlar a vigilância exercida pelo Baptistà e sua gente, -i Sobre as cabeças dos vigias postados embaixo das jânellas de Elvira, o indio suspenso á corda e occulto pela ramagem do arvoredo, passou desapercebido. E* escusado advertir qüe tudo isto se fazia em profundo silencio, e que uma linha de atiradores deitada aó longo dó fosso, esperava o primeiro signa! suspeito de algum dos vigias para traspassá-lo com as settas.
Christovão, ao escrever á Elvira lembrara-se de pedir-lhe algumas indicações sobre o interior da casa, que facilitassem a exploração incumbida á Olho; mas João Fogaça oppoz-se com todas as forças.
— Nada, Christovinho !... Isso de mulheres, é sempre fogo de palha ; muita charrvma de repente, e logo abaixa. Pôde a menina assustar-se com o que se vae fazer, e transtornar tudo. Deixae cá o negocio ao meu cuidado; chegareis quando ella menos o pensar, e por onde nem cuida I
O capitão de matto andou bem avisado, pois Elvira sentindo os ligeiros rumores que percorriam o tecto da casa, começou a tremer de suslo,
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e arrependida de haver chamado Christovão, se afigurava já como a causa de sua morte-
— Em vez de chama-lo, eu devia ter procurado açreda-lo "o mais possível de mim !... soluçava ella.
Nisto pareceu-lhe que abriam e tornavam á fechar subtilmente a porta da camera ; cuidou que fosse D. Lqiza que tendo ouvido algum rumor, viesse escutar á ver si ella dormia. Essa circam-stancia ainda mais augmentou seu grande terror. / Depois os rumores cessaram no tecto, e a corda
começou de novo a rolar, sendo substituída; pelo fio, e desapparecendo completamente. Ella compreendeu que por aquella noite estava tudo terminado. \
Entretanto Olho voltara ao lugar onde havia deixado Christovão e Joãp Fogaça, á dar conta da. sua exploração:
—; Olho entrou no forro da casa, e logo viu lá nò fira um canto menos escuro.
—r Já sei; era um buraco no forro. — Sim,';. Olho amarrou a corda no oaibro;, e
desceu. s , — vEm que lugar? — Np corredor. Junto do quarto da senhora
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está outro quarto, que tem janella, por onde senhor pôde entrar.
— Qual é das janellas ? — Uma, duas, três... Aquella!... respondeu o
indio apontando. — E a porta da camera?... — Aberta com este ferro. O capitão de matto tomou o molho de gaztias
que dera antes ao indio, e delle separou aquella que servia na porta de Elvira.
— Guarda, Christovinho 1 Amanhã á esta hora lá estarás!.
— E porque não hoje, agora mesmo ? — Por trinta e uma razões ; sendo a primeira
que não se pôde. No dia seguinte, logo que fechou a noite, os
dois amigos estavam no mesmo sitio : ainda então era necessário que o capitão de matto contivesse a impaciência de seu collaço. Força foi á Christovão esperar até noite alta.
Emquanto isto, o terreiro da casa de D. Luiza '; era investigado pelos sentidos do capitão de matto; como na véspera, dois homens de vigia vellavam daquelle lado da casa ; um embaixo mesmo da janella de Elvira, o outro no canto do edifício. 1
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Desde a noite da fuga de Estacio a vigilância redobrara, por causa da ameaça de João Fogaça ao Baptista.
— Agora 1 disse o capitão de matto. * Christovão avançou rápido:
— Escutai primeiro 1... Eu com meia dúzia dos caboclos vou para o lado de lá da casa, e façu como quem quer atravessar o vallado. Elles me pressentem, e naturalmente açodem todos para aquella banda. Emquanto isto, tendes o caminho livre ; com a gente que vos fica, amarrai os dois vigias; não vos embaracem os gritos, ninguém os ouvirá! Já Olho deve ter segura a escada de corda á janella; subi, entrai, e boa noite!...
O capitão de matto teve um sorriso brejeiro : — João, não me falleis assim nesse tom á res
peito de meu amor : tal gracejo mesmo na vossa boca é uma injuria, que eu não tolero. Acreditai, amigo, que Elvira só, naquella camera solitária, entregue a mim pelo. affecto ao mesmo tempo que pelo receio dos seus, me ó mais sagrada do que o fora ante o altar, em face de Deus e presença de toda gente! Amareis um ,dia, João, para com-prehender a santidade do verdadeiro amor, e qual céo é para a mulher amada o coração que a ama.
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— Ta, ta, ta l . . . Não vos amofineis agora póf um gracejo ! Não vos conheço eu desde as faixas, para saber o quanto vaieis? E a não ser assim julgais que vos prestasse as mãos para levar a deshonra ao seio de uma família?... Quero-vos muito, Christovão, para preferir vosso brio ao vosso prazer 1...
— Obrigado; estou tranquillo. Podeis ir. -'- Recommendo-vos toda a prudência.
— Descansai; eu me pouparei para ella que de mim carece.
João Fogaça afiastou-se com um grupo de indios.
E' neste momento que encontramos Elvira sentada na sua camera, com a attenção suspensa ao. menor ruido.
De repente um sibillo atravessou os ares; a pequena flecha, sua conhecida, vibrou na parede, portadora do pspel e do fio. Repetiu-se a scena da véspera; a corda foi esticada no ferro da grade; os ligeiros rumores propagaram-se pelo tecto da casa, depois pelo corredor; pareceu-lhe que a janella próxima era aberta. Nesse instante porém um ruido forte soou do lado opposto;
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ouviram-se imprecações e juras embaixo das ja-nellas. >
Elvira apezar de prevenida não podia repri-nyr o terror que á enregelava, quando a porta da camera abriu-se, e Christovão deitando-se a ella, a cingiu nos braços, afogando contra o peito a exclamação que exhalaram os lábios da donzella.
Sentados no estrado, onde quinze dias antes os tinha sorprehendido a viuva, já nem se lembravam dos máos dias passados; dir-se-hia aove-los tão prasenteiros, que dissipado o cruel pesadello, elles continuavam aquelle interrompido coíloquio, antes transfusão reciproca de duas almas. Tinham tanto a dizer, e tão. pouco a contar! A noite embebeu no vasto âmbito tantas meiguices ternas e suaves queixas, que os dois corações influíam e 'refluíam um no outro, como a veia serena de um lago ondula de uma á outra margem.
E ò tempo fugace voava ; as horas da noite desfiadas uma apoz outras cahiram ; o primeiro vislumbre da alvorada palléjou as sombras escuras do horisonte.
— E' tempo de ir-me, Elvira minha 1 — Já, Christovãol disse a donzella estremecendo.
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O mancebo abrindo a porta a conduzio á ji-(
nella por onde penetrara na casa, e á qual es
tava suspensa a escada de corda.
— Vede 1 E' a- primeira luz da alvorada quí
bruxulea no horisonte ! v
— Como é possível, bem meu, si ha tão pouco
tempo anoiteceu ; aquelle clarão é da lua !... — Não sentis esta brisa fresca e perfumada que
brinca com os vossos cabellos?... E' o primeiro: hálito da manhã, fragrante como o de vossos lábios! senhora desta alma ! • '""
— Enganai-vos, amor meu : esta frescura e da
viração do mar que sopra á meia noite, quando as
palmeiras abrem suas flores!... Ella nos diz que
o dia ainda está longe. j
Sakspeare foi realmente um grande phistologisfl do coração humano. Dois amantes, ém uma noite da America, representavam a mesma scena de amor, que o grande poeta desenhou na entrevisüj nocturna de Romeu e Julieta, sobocéode Itália.
De repente o primeiro rubor da manhã tingiu alguns capuchos de nuvem desfiados pelo azul do céo; a alvorada rompia.
— Duvidais ainda?...
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i
— Não! exclamou a donzella estremecendo ! Tendes rasão ; é o dia !
— Adeus, pois, doce Elvira minha 1 •"•- Quereis me deixar outra ,vez?... Christovão sorprezo não respondeu :
— Christovão, senhor de minha alma, levae-me comvosco. Não me abandoneis na solidão desta casa, immenso deserto, ondeminha razão se perdei Tenho medo de enlouquecer! Levae-me com-voseol... Por Deus e pelo nosso amor, por tudo quanto ha para vós de mais sagrado, não me des-ampareis um só momento, não vos arredeis do 'meu lado, porque temo perder-vos para toda a éter" nidade. Eu sou vossa esposa ; ninguém já me pôde roubar a vós, que sois meu senhor e dono : devo acompanhar-vos. ,
Surgira no espirito da donzella a lembrança horrível do que ouvira ao P.e Figueira, e que o embevecimento da presença de Estacio desvanecera até o instante da partida. Christovão também escutando aqueüas impetuosos palavras recordou-se do que lhe dissera Elvira na sua carta.
— Socegae, Elvira minha ; não nos hão de separar. Mas dizei-me que ouvistes que tanto vos
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horrorrisou, para que melhor possa desfazer a trama.
A donzella abrio os lábios para referir tudo; mas assaltou-a uma lembrança cruel, que já anteriormente se apresentara á seu espirito. Si Christovão acreditasse que ella estava ligada á religião, como dissera o frade, e matasse em sua alma um amor sacrilego... Oh ! Era horrível só de pensar ! Ella escondeu o rosto nas mãos, como para,, arredar a prespectiva que se desenhava á seus olhos hallucinados.
— Agora não I Depois sabereis!... Mas eu vos supplico, levae-me desta casa.
— E' isso impossível, doce amiga. Nãopodej| desamparar o tecto materno, senão para entrar na igreja onde nos devemos esposar.
— Pois sim. O dia' vem raiando ; daqui em pouco as portas das igrejas vão abrir-se ; e em qualquer dellas Deus nos ha de enviar um ministro seu para abençoar a nossa união.
— Quero que seja como dizeis. De que modtf' heis de sahir d'aqui ? Pelo mesmo caminho por que vim?... Nem pensar em semelhante cousaf
— Entãq si não é possível que eu vá, ficaevós junto a mim!
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— Que próferis, Elvira ! Aqui na vossa camer3 de donzella?...
— Na minha camera nupcial !... Não sou eu esppsa vossa ?
— Anjo! disse Christovão affagando-a. Vossa innocencia e candura não conhecem o mal. Jul-gaes que alguém, vossa própria mãe, acbando-me aqui encerrado comvosco acreditasse que a minha honra e a vossa virtude vos tinham guardado virgem immaculada ?... Tal é a sordidez do mundo 1...
Elvira teve uma vibração intima. Seus olhos scintillaram. Um sorriso extranho, bruxulear de uma idéa sinistra que despontara em sua mente esvairada, desabrochou nos lábios.
— Vihdé ! exclamou travando arrebatadamente das mãos de seu amante, e levando-o ao seu aposento.
Fechou então a porta ; e caminhou pára Christovão, envolvendo-o com um olhar de Sapho. Parou; seu lábio mudo não sabia a linguagem daquelle delírio ; ella esperava que o mancebo bebessé em seus olhos o segredo de sua alma. Mas este sorpreso daquella attitude exlranha, en-
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tristecia pensando que os pezares houvessem alterado a saúde de sua linda virgem.
Súbito outra revulção operou-se no espirito de Elvira. As lagrimas espadanaram de seus olhos,je o seio offegou soluçante. Cahiu de joelhos e arrastou se aos pés de Christovão, soluçando : • — Ainda ha um meio de salvar o nosso amor, Christovão!... Matae-me neste instante!
— Que preferis, Elvira!... — O desejo de meu coração. Matae-me; nos
reuniremos no céo! Nenhum poder já nos po
derá separar.
— Tão pouca fé tendes em vosso amor, El vira, que já perdestes toda a esperançai... .
— Oh ! vós não sabeis!...
Segunda vez a lembrança terrível do voto pru riu seus lábios, e segunda vez recalcada abalai profundamente aquelle coração.
— Não me quereis matar, Christovão? excla mou a donzella com vehemencia.
— Que turbação é a voSsa, Elvira minha$' Elvira revestiu-se de, uma energia extraia
e sua voz, embora surda e velada, vibrou ao oi vido do amante com uma entonação solemne.
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— Então é preciso que eu seja esta mesma noite vossa esposa !...
Quando a primeira onda da claridade matutina insinuou-se pela fresta da janella, os dois amantes, longe um do outro, se isolavam em sua alma, tentando debalde fugir á si mesmos para libertar-se da idéa horrível que os esmagava. A luz, penetrando de repente na escuridade do aposento como na treva de sua alma, os fez estremecer. Foi como si desnudassem suas consciências. En-treolharam-se rápida efurtivamente. Christovão contemplando no abatido semblante da donzella a copia descorada da virgem que ainda na véspera amava com tão santo fervor, suspirou :
— Oh ! minha para sempre perdida felicidade! Elvira, que viu abrir-se no sorriso pungente
do mancebo o abysmo onde ia sepultar-se o casto e puro affecto que inspirara, também gemeu no fundo d'alma :
— Que fiz, Deus meul... Os rumores do dia encheram a casa, e che^
gando até á camera, lembraram a Christovão onde estava. Ergueu-se erftão, e despedindo-se friamente da donzella, encaminhou-se á porta. Sahir assim em pleno dia, sem a mínima precaução, era
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uma.loucura, que traria em resultado a morte de Christovão e a deshonra de Elvira. Entretanto elle não hesitou um instante • ella não pensou em rete-lo.
— Talvez me acabem 1 disse comsigo o mancebo.
— Já agora, quanto mais perdida para o mundo mais delle serei 1...
Christovão pallido e sinistro atravessou com passo firme, os vários repartimentos da casa. Ia tão recolhido na sua dôr, que passava alheio a quanto;-o cercava. Os fâmulos da viuva, encontrando-o no caminho, paravam sorpresose tomados de susto", e só depois que elle afastava-se, corriam a dar parte á dama do estranho caso. Assim chegou são e salvo ao caminho, onde João Fogaça inquieto o esperara a noite inteira. ' ' ]
'j !
->s 3 . j . i .
v - . v:- t
Do.mais que succedera na Bahia.
Ainda não é dia claro, e já D. Meneia, sempre aceada e bem pregadinhn , sahe do quarto.
A dama, inquieta pela ausência de Estacio, de quem não sabe desde o dia do desafio, ia já para uma semana , resolvera durante a noite tirar á limpo o mysterio de que a cercavam. Em prin-
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cipio o Dr. Vaz Caminha a viera ver, e a soce-gara a respeito do sobrinho, pretextando um passeio. Gil também de seu lado respondia o mesmo ás suas reiteradas perguntas. Mas os dias correram ; Estacio não voltou ; e sua tia reparou na tristeza do pagem, á quem na véspera surprehen-dera lágrimas nos olhos. Essa desacostumada sensibilidade no petulante menino, deu-lhe que pensar; de novo inquiriu delleá respeito do ausente, mas Gil disfarçou.
Apenas clarêa a manhã, ergue-se do leito onde levara á rolar o corpo e juntamente essas inquietações ; depressa se compõe e lá vae direita ao cubículo onde dormia o pagem :
— Gil! oh ! Gil!... Espertae, pequeno !... O menino já ali não está ; erguido muito antes
delia, e trepado no mais alto dos coqueiros do quintal, devora com os olhos o horisonte e os bate-lões que vellejam barra dentro com a viração da manhã. Por ali se fora Estacio; por ali espera o menino que elle volte nas azas do vento. Três dias eram passados depois da partida do mancebo, e aquelle era o segundo de sua afflicção por essa tardança.
A' voz da dama, que o chama desce o pagem:
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— Filho, ide já deste passo ao senhor Vaz Caminha, e dizei-lhe que careço de fallar-lhe esta manhã mesmo. Não posso mais com isto. Quero sjber de uma vez o que é feito de meu sobrinho. Si morto é, não me occultem ; declarem logo para que o chore á minha vontade e reze a Deus por sua alma.
0 pagem dispara em pranto. — Jesus!... Tu que choras, Gil, é que está
morto mesmo 1 exclamou a velha chorando. — Não, dona ! Eu não sei nada 1 Ninguém
sabe! replicou o menino soluçando. Elle foi-se e não voltou I...
— Leva o recado!... Hojo mesmo isto ha de ficar deslindado.
O pagem parte ligeiro. Antes mesmo que a velha o incumbisse do recado, já elle tinba na tenção ir ao doutor, á quem desde a partida do amo via constantemente.
Vaz Caminha também está aífticto com a demora do afilhado. Desde a madrugada em que Gil lhe viera, bater á porta, para trazer-lhe o recado de Estacio, o velho advogado ficara em uma inquietação constante.
Porque meios se evadira Estacio do castello?
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Despresára elle* sempre lão dócil ao seu conselho, a advertência da carta, e comprara a liberdade com o assassinato ? Que homens eram esses a quieto elle seguia; e quaes indios os que o acomparJM$j vam naquella expedição ? Onde e a que fora, barra fora, embarcado na chalupa arrebatada aos pescadores, que deixara amarrados na praia ?
Todas estas questões eram de natureza á perturbarem a serenidade do animo de Vaz Caminha; e infelizmente Gil não sabia do plano de Estacio bastante para esclarecer todos aquelles pontos obscuros. Com a celeridade da execução e a idéa de voltar no dia seguinte, não cuidara o mancebo de revelar ao pagem para que levasse á seu velho mestre particularidades que o instruíssem de sou intento.
Entretanto cheio de cuidados, esperou elle de-balde por todo o seguinte dia ; o temporal sobra] veio nessa noite para ainda mais assusta-lo. Rompendo a alvorada, se dispunha a sahir para colhei novas, quando lhe appareceu o pagem.
Ouvindo novamente de Gil as circunstancias qut elle já referira, fixou o advogado a dos indios que acompanhavam o estudante, e associando essa outra recordação do duelo, ocodio-lhe aoespírí
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o nome de João Fogaça. Sem duvida era o capitão de matto quem fornecera a Estacio a escolta. ? -'#*)
* — Onde é encontradiçn o João Fogaça, amigo de Estacio? . a "t!
— Ou em casando senhor Christovão, ou da viuva? do Tendeiro.
O advogado encaminhou-se á toda pressa para a casa de Christovão. Já restabelecido, o cavalleiro desde a véspera se passara da casa de Mariquinha dos Caixos para a sua no Terreiro do Collegio, onde o amigo e cnllaço se alojara temporariamente para lhe fazer companhia.
Vaz Caminha achou-os ambos praticando sobre o assumptotque o levara ; o em poucas palavras ex-poz-lhes o fim da visita. Infelizmente Christovão sabia menos do que Gil sobre a empresa do amigo; apenas adeantou uma circumstancia.
— O de que bem me recordo, é dtí haver-me elle falindo do um Segredo de estado. Qual fosse, a pressa não deixou que nos confiasse.
— Talvez se possa sabor alguma cousa mais 1 disse João Fogaça. Um dos dez 'eaboclos.que dei ao senhor Estacio para acompanha-lo, ficou em terra 1. . s^qn . • ; • • • > • ' •
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— E' verdade! acodiu Vaz Caminha. O que esteve de guarda aos marujos amarrados ! 1#
— Justamente. Vou manda-lo vir; é natural que adeante alguma cousa.
O indio foi chamado a toda a pressa. Segando as ordens que recebera de Estacio, logo que vinha rompendo o dia, como não visse apontar a chalupa, fora á guarda próxima, chamara um soldado e lhe entregara os marujos:
— Presos á ordem do Governador! Quando o soldado voltou-se para interroga-lo
sobre a extranha prisão, já não o viu. Os presos não obstante foram recolhidos á guarda ; e logo'7
deu-se aviso do caso para palácio. Chegado de Nazareth á toda a pressa, foi o indio
interrogado pelo capitão de matto a respeito da em-preza de Estacio :
— Foi tomar navio em Itapoam !... — Assim me quiz parecer! disse Christovão; j — Perguntae-lhe, senhor João Fogaça, como elle
sabe o que diz ? Si ouvio á Estacio, ou a qualquer5,
outra pessoa ? acodiu o advogado. — Estaesouvindo?... Responde! O indio nada vira ; farejara. — Japy sabe, porque tempo depois que elle foi-se,
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ouviu no meio do ronco do mar tiro de peça, um primeiro, depois outro e outro e outro, muitos. Pelo som, tiro era longe, em Itapoam ; lá não tem fortaleza : devia ser navio.
João Fogaça affagou a face do indio, satisfeito da sua perspicácia; esto beijou-lhe a mão com uma meiguice de rafeiro.
— Sabemos pois que houve combate ; disse Vaz Caminha pensativo; e isso ainda mais deve aug-mcntar as nossas apprehensões. Succumbiria Estacio?
— Qual I desterrae semelhante receio, senhor Vaz Caminha ! exclamou Christovão com a confiança que tinha no valor e intelligencia do amigo.
— Vosso afilhado sabe o que faz !... E' ura homem como se encontram poucos; disse Fogaça.
— Eu o conheço I accrescentou o advogado com orgulho. Mas é joven ainda ; talvez não medisse suas forças ou a sorte o desamparasse.
— Si elle tivesse succumbido, ao menos algum de meus caboclos se salvaria para nos trazer a noticia do desastre.
— Não entendo destas cousas de guerra; mas si não me engano, a empreza de Estacio contra os navios com tão pouca gente não podia ser outra senão toma-lo de abordagem. Não vos parece ?
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— Sem duvida I — Que significam então os tiros de peça ouvlaj
dos por esse índio ? Que a abordagem não teve lugar, e os assaltantes pressentidos pela gente de' bordq foram metralhados sem piedade.
Esta observação de uma lógica rigorosa trás-passou como uma punhalada o coração dos dois amigos. Christovão vergou a frente.
— Nada de desanimar fora de tempo. Tu dizes'i que o negocio.foi em Iiapoam, Japy? Pois seguirás neste instante para lá por mar, etnquanto eu com oatros iremos por terra explorar aquellas paragens...
O capitão de matto despediu-se dé ambos.
— Cá estarei de volta esta noite; e apenas chagado vos buscarei, senhor licenciado.
— Deus vos pague tamanho serviço, senhor! — Já estou pago com a amisade de vosso afi
lhado; si me quereis dar também a vossa é usura dè judeu !
— Os amigos de meu filho são para mira seus irmãos: elle tinha um; terá dois agora.
Gil esperava o advogado na porta :
— Então,; senhor Vaz ?...
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— Esta noite teremos novas, e hão de ser boas, Gil.
Comprehendendo com seu instincto infantil o que valia aquella palavra de consolação no lábio do advogado, o pagem separou-se com o coração opresso. Adeante encontrou o caboclinho da ta-berna. Martim apenas o avistara, deitára-se á correr para elle; e sem reparar no semblante pesaroso que trazia, começou conforme o costume sua lamúria pelos máos tratos do taberneiro.
As queixas do caboclinho recordaram-ltíe a parte que o Braz tivera na aventura nocturna em que Estacio se empenhara :
— Foram os amigos deito que Ihe fizeram mal 1 pensou. ,t»íí'.vv
Em geral o homem tem duas espécies de afféi-ção; as affeições activas, com que dominamos os entes por quem as sentimos; e as affeições passivas, que nos submettem aquelles que no-las inspiram. Gil sentia a segunda por Estacio, que elle adorava como seu heroe: a primeira por Martim, de quem elle gostava como dé um cão favorito.
Ora succedia que ambas essas affeições eram a um tempo offendidas peto mesmo homem,
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por Braz. Um ódio violento brotou de repente naquelle coração de creança, onde o amor não tinha germinado ainda. Mísera creatura I... O fado lhe entornava nos lábios a taça de fel, antes de lhe ter adoçado as bordas com algumas tênues gottas de mel: os espinhos lhe vinham n'alma antes do desbotoar da flor!... Era a vida sem primavera, começada pelo estio da paixão. ^ —, Paciência, Martim 1 Vae soffrendo 1... Um dia, breve, eu te vingarei I...
' Tinham chegado em frente á taberna. O caboclinho abraçou o pagem, e sumiu-se pela porta entre-aberta.
Gil teve a curiosidade de ir olhar pela fresta. O taberneiro, sentado no púlpito, fazia suas contas sobrej, a lousa. Também elle estava triste e succumbído. De alguns dias á essa parle as cou-sas não lhe corriam de boa feição. Começara pela brusca e inesperada partida de Samuel, seu melhor .freguez, e homem com quem sempre se entendera perfeitamente á respeito do contrabando. Depois a decepção que soffrera o alferes lhe valera uma hora de amargura; si não fosse a sua habilidade cômica o a necessidade que delle tinha D. José de Aguilar para vingar-se do velho
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* judeu, certamente o teria desancado ; comtudo ainda o Braz não se julgava seguro.
Finalmente tinham vindo juntar-se graves inquietações á respeito do feliz successo da fuga dos flamengos: primeiro o referido por Anselmo a respeito do alvoroço do embarque ; depois o boato espalhado sobre os homens amarrados, que foram achados na ribeira ; por ultimo o cadáver tras-passado, que ficara na praia, e no "qual elle quiz reconhecer um dos contrabandistas; todos estes incidentes eram de natureza á assustar o prudente taberneiro.
Elle sommava pois certas verbas de suas economias e avenças, na previsão de ser obrigado de um momento para outro a eclipsar-se como o velho rabino, cuja filha, aqui para nós, não deixava de fazer umas cossegas em seu coração de judengo, apezar dos cincoenta annos, ou mesmo por causa delles. Nem haja motivo para admiração, que nutrindo esta idéa secreta, prestasse o Braz de tão boa vontade as mãos ao negocio do alteres; longe de lamentar, elle rego-sijou-se com essa circumstancia que abaixando a gentil noiva á seu nível, ao mesmo tempo lhe
devia elevar o dote; pois o rabino não deixaria Vol. v 12
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de encher com ouro de bom quilate o vacüô deixado pela virtude; nem o alferes de proteger o pai de sen filho, e o marido de sua namorada.
Gil esteve á fitar por algum tempo com mau olhado o rosto do taberneiro. Armando-se com um caco de telha que apanhou no chão da rua disparou o projéctil pela fresta da porta, e deitou a correr. Ouviu-se dentro um chincalhar de botelhás partidas, e ò vulpino focinho do Braz assomou á janella pallidó e espantadiço. Já não podia ver o pagem, que dobrara a esquina.
Avistou porém o Anselmo, que vinha á todo o estírão das pernas pêlo lado opposto. O carpinteiro fora enviado pelo Braz á Itapoam para colher noticias á respeito dos flamengos evadi-dos; si tinham felizmente chegado aos navios, e dado estes logo á vela para a pátria.
— Então?
— O negocio não está nada bom. Nãobanfl-, ves de Pedro e sua gente. Os navios desappa-receram na mesma noite, depois depois de terem dado combate á umas chalupas.
. — Que chalupas eram essas?
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— Ninguém sabe, senão que morreram muitos, e alguns também dos flamengos, pois os corpos vieram á praia,
é — Diabo os leve, si os entendo, exclamou o taberneiro dando um soco no ar : sua vontade era da-Io no Anselmo, mas não se atreveu-
Entretanto chegava Gil á fonte do Gravata, onde esperava que Joaninha não tardasse á passar. De feito com pouco ouviu o cantarolar da mulatinha, e logo apoz bruxuleou entre o arvoredo o era-mezim de sua vasquinha de lã com vivos pretos. Ao tão conhecido psio do pagem voltou ella o rosto bregeiro e approximou-se aos pulinhos.
Sentaram ambos sobre a relva. — Tardei muito? Já estavas cançado de es
perar, falia a verdade ! \ . — Si também agora mesmo cheguei 1
— Pois não te conto, Gil I... E's tu capaz de adevinhar quem esteve agora em casa?...
— Sei cá !... Vae dizendo logo de uma vez!.. — O tal D. Fernando!.. O noivo!... — Deveras ! E que foi elle lá buscar, Joaninha ?
Dar-se-ha acaso que fosse pedir-te para levar algum recado I... • — Cruzes, Gil! . . . Sempre, tens idéas! . . , Cui-
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das tu então que qualquer, seja fidalgo embora, tem lá topete para me pedir cousas destas?. ..Isso é só para certo capetinha de meus peccadosl... E eu em vez de eastiga-lo pelo atrevimento, ainda fui tão tola que lhe perdoei a paga.
E a mulatinha assim faltando, amimava as faces rosadas de Gil.
— Mas então qual outra cousa o levou á tua casa, rapariga?
— Sabes tu?... Assim eul . . . Lá esteve, perguntou por uma ruma de cousas, andou, virou e eu que tinha mais que fazer... Passe por lá muito bem, meu senhor. E eis-me aqui rente conforme o promettido. Que me queres ?
Estas palavras despertaram a dôr no coração do pagem :
— Nada mais, Joanninha 1... respondeu lagri-mejando.
— Deus I.,. Que has tu, Gil? Que te aconteceu ?...
— Meu pobre amo, Joanninha, o senhor Estacio, que a esta hora talvez esteja no céo !
Gil ao proferir estas palavras disparou em pranto, escondendo a cabeça no seio da alfeloeira ; esta quasi estimou semelhante pesar que conchegava
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ao seu coração aquelle por quem tanto e em vão palpitava. Dedicou-se toda a consolar o afflicto pagem, já escutando o que lhe elle referia sobre a partida de Estacio, já buscando fortalecer-lhe a
'esperança não de todo apagada.
— Si te quiz fallar hoje foi para que levasses á doninha novas delle, pois de certo não sabe ainda as resultas do desafio... Mas agora de que serve isto?...
— Pois não serve, Gil?... Ella hade ficar bem satisfeita com saber!... E quando o senhor Estacio voltar que contentamento não hade ser o seu 1
— Deus te ouça, Joanninha!... respondeu se-guindo-a.
— Queres tu apostar?... Este coração não me engana; e eu tenho aqui um presentimento de que elles hão de ser felizes... Assim fosse eu!. .
— E porque não serás, rapariga ? — Porque não queres, Gil 1 — Eu não quero !... Mas o que devo eu fazer
para isso?... -^ Minto !... Não sabes querer, o que ó peior
ainda. Joanninha estremeceu. Vira o Anselmo que
apressava ó passo para vir ter com ella; desde
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a noite de annõ bom era a primeira vez que ó encontrava. Quiz evita-lo ; mas já não era tempo1;
—- Gil acode-me ! — Que tens, Joanninha ? — Elle!... — Ai! O carapina ? -Nisto chegava o mariola ; a tumescencia das
feições e os lampejos dos olhos annunciavam o esto da paixão nessa alma rude.
— Desta vez náo terás quem te dispute a mim: disse elle com uma voz curta e offegante.
Joanninha teve medo e horror; medo por ella, horror por Gil, que ella via pròmpto á acodir-lhe e sacriGcar-se.
— Vae esperar-me adeante; murmurou ella ao pagem.
Este riu e obedeceu. Voltando-se então para o Anselmo, com o rosto banhado de indignação e cholera, atirou-lhe este desafio :
— Podes agarrar-me; mâs primeiro morrerás tu, que te larguem estes dentes!
Affrontando a ameaça ia abraça-la o Anselmo! quando de repente ouviu-se uma gargalhada de tnáo agouro, e logo depois dppgreceu Zana, a feiticeira :
AS MlNAS CÊ PIRATA 1 3 9
— Não te bastou a primeira, carrasco? Queres segunda ?
Perturbou-se o mariola de tal forma com a appa-rição, que Joanninha pôde escapar-se. Logo adeante achou Gil que a esperava.
Chegados a Nazareth, ficou Gil esperando fora a alfeloeira, que penetrou com ligeiresa no interior da casa.
Inesita estava no mesmo lugar onde a encontrara a mulatinha da primeira vez ; sentada junto á mãe, e occupada em bordar. Vinte-dias apenas eram passados desde a tarde de anno bom, em que a sua lindeza se expandira tão mimosa e faceira entre as galas da festa; e entretanto uma revolução se operara em toda a gentil pessoa. A luta do coração lhe imprimira na belleza um gesto serio e pensativo, aroma»precoce de flor que os soes estivos desabrocharam fora da estação.
Quando a alfeloeira entrou, a donzella ergueu-se e retirou para outro aposento, lançando á rapariga um olhar melancólico. Joanninha não atinou com a causa desse extranho acontecimento. Teria Inesíta receio de ser compromettidã por ella, ou era esquivança ao arrtor, de Estacio, a quem desejasse esquecer?
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Resolvida á averiguar o que passava, e aproveitando-se da nimia bondade da velha D. Is-menia, a alfeloeira pretextando umas encommen|j das que a filha lhe havia feito sobre pontos de bordados, penetrou até onde estava a donzella. Esta vendo-a, sobresaltou-se, e nem deixou que se approximasse ; voltou-se para uma escrava que ali estava a acompanha-la : >.
— Dize á alfeloeira que meu pai me prohil hiu que lhe fallasse e ouvisse palavra delia ; pelo que lhe peço eu que se retire, para me não obrigar a despedi-la de minha presença. ,m
Inesita enunciou estas palavras com dignidaeg e nobreza, mas repassadas ao mesmo tempo da doçura que emanava sempre de seus lábios, ou na voz ou no sorriso. Comtudo Joanninha, extraordinariamente sorpresa, quer do que ouvira, quer do gesto da donzella, sahiu arreba-tadamente d.a casa de D. Francisco. Na port|j encontrou-se com o alferes, o qual, aepeso em ira, ameaçou-a de faze-la amarrar ao pelourinho, se tornasse a passar a soleira da casa.
— Sabes que mais, Gil?... Eu não metto outra vez as minhas mãos neste negocio !... ^
— Porque então?... Offendeu-te o alferes? 1
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— Isso é o menos! Zombo delle e do mal que me pôde fazer. O que desespera a gente é ver que está perdendo seu tempo!... O Sr. Estacio que empregue melhor seus cuidados !
— Melhor, Joanninha?... Como melhor?... — Em quem o saiba querer! Entanto que era assim julgada , Inesita enso
pava o lenço nas lagrimas abundantes que bor-bulbavam de seus lindos olhos. Como filha nobre e leal que era , obedeceu ao pai, a quem havia promettido não trocar uma palavra com a alfeloeira ; mas seu coração de donzella, livre da snbmissão paterna e estremecido de puro aflecto, pranteava o infortúnio dos castos amores, cortados em bonina. Esta virgem ebristã era digna do mancebo espartano que a amava.
Na tarde deste mesmo dia, Vaz Caminha, depois do jantar, se dirigiu á casa misteriosa da rua de Santa Luzia.
Desde que ' pela primeira vez ali fora introduzido na noite de anno bom, tomara o advogado o costume de lá ir todos os dias, algumas vezes por tarde, outras já noite para não excitar suspeitas com tão repetidas visitas.
O que lá ia fazer o bom velhp, é fácil de sa-
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ber, si quizermos tomar o trabalho de acompa nha-lo. Ei-lo que é já fronteiro á espessa touej de bananeiras, e entra a cancella lateral, corai pessoa familiar da habitação. A Brasia abre-lhe Í porta da varanda, onde está sentada ao fundo sempre triste e pensativa, a formosa D. Dulce Ao vê-lo, um sorriso dorido deslaça os lábios di dama, que lhe estende a mão saudando-o. O ad vogado senta-se á par, e começão á meia vo: uma conversa que dura até á noite :
— Acho-vos triste hoje, Sr. doutor, ou sen engano meu?...
— Não vos enganaes, D. Dulce ; estou con effeito mais triste do que já ha muito me fize ram os annos e fastios deste mundo.
— E não posso eu, que vos fiz depositaria di minhas magoas, saber de que provêm as vossas
— E' esse filho, de quem tanto vos tenbj fatiado, a causa única !...
— Ah!.. . exclamou Dulce corando. Que Ih succedeu então !...
— Ignoro-o, e é isto o que me traz afflicto não saber o que seja feito delle á estas horas
— Não me dissestes ha dias que o tinhat prendido ?
AS MINAS DE PRATA 143
— Logrou evadir-se hà dois contra méu voto ; mal livre dá prisão, embarcou-se logo em não sei que arriscada em preza, da qual não é tornado, nem delle ha novas. *
— Deus o ha de proteger, doutor. Usae de uma pequena porção dessa esperança, dé que sois tão pródigo para comigo.
— E se não fosse ella, quem me animaria ainda neste instante? i. — Penso que fazeis o caso mais feio do que elle é realmente. Vosso afilhado voltará aos vossos braços, e cumprireis o que me promettéstes de traze-lo á esta vossa casa, para que o conheça de perto.
Não foi sem algum esforço que a dama conseguiu pronunciar estas ultimas palavras; o advogado muito preoccupado com seus pensamentos, não fez nisso reparo. Seguiu-se uma pequena pausa, em que um e outro se isolaram dentro de suas recordações. Vaz Caminha foi o primeiro que reatou 0 fio á interrompida pratica :
— Não roubem porém meus cuidados os momentos consagrados ao allivio dós vossos, D. Dulce. Gomo vos encontro hoje? MaiS socegada da afflicçSo dos dias passados ?...
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O semblante de Dulce annuviou-se: — Bem sabeis, doutor, que desde o momerijoí
em que pela segunda vez reconheci meu marido sob o habito do jesuita, e o senti perto de minj não é possível que eu tenha socego I Não 1... Descança algumas vezes a dôr; mas para recp| ser!... Si ao menos eu tivesse o consolo de lhe fallar e prostrar-me á seus joelhos para sup-plicar que me attendesse!... Mas a fatalidade que me persegue, assim como o apresenta de súbito á meus olhos, tão depressão evaporai... Si vos não tivesseis opposto, certo que o teria seguidjj
— Fora baldado intento; talvez antes de che> gar ao Rio de Janeiro tivesse elle de lá partido.
— Saberia para onde, e o seguiria!... — Si elle volta, para que esse trabalho? Não
é melhor espera-lo aqui? — Affiançaes então que elle volte? — Tenho esta convicção. E' possível, que se
não verifique ; mas tudo neste mundo é fallivetl e mais que tudo seria a vossa viagem ! f
Anoiteceu, e Brasia com uma vela na mão, precedeu até á sala da frente a dama e seu hospede, que ali ficaram sós. Então fechando a porta sobre si, Dulce tirou do bahú de sua roupa va*
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rios instrumentos que o advogado havia á pouco e pouco nas suas vistas trazido occulto nas vestes. Vaz Caminha afastando o tapete do oratório descobriu o ladrilho : um dos tijolos quadrados estava solto, e por baixo delle via-se um buraco profundo, dentro do qual surgia já a meio descoberto o tampo de uma eaixa de jacarandá embutida de cobre amarello.
Sentados de um e outro lado do buraco, a dama e o advogado puzeram-se á obra : elle cavava, ella recolhia aterra sobre uma manta de lã, d'onde era depois espalhada .pelo jardim. A' cabo de uma boa hora de trabalho incessante, ouviu-se um ligeiro rumor subterrâneo.
— Elles que chegara!; murmurou Dulce. O advogado restabeleceu as cousas como esta
vam. Logo soou a pancada surda de um instrumento cavando subterraneamente o chão da casa; fácil era de perceber pelo foco do ruido o lugar até onde já tinha chegado a mina: mas outro indicio ainda mais certo era a natureza do som, que indicava ser retinido do ferro sobre a pedra.
— Temos tempo dé sobra, disse o advogado. Agora é que estão no alicerce desta parede, que os ha de demorar seguramente oito diasl. . .
Vol. V. 13
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— E nós, Sr. doutor, quando terminaremos? — Talvez em três, talvez em quatro. — Em verdade, ás vezes pergunto á mim mes
ma para que busco eu deffender com tanto affan esta riqueza, si ella não pôde fazer a minha felicidade? -'.;,•.. ' ,, -!-• Si não fizer a vossa, fará a de outros, de
quem sereis a bemfeitora. Ha tantos pobres espalhados na teira! De mais podeis dispor delia como vos approuver, e mesmo em beneficio' da quelles que tanto a cubiçam. Más nesse caso fa-zei-lhes doação delia* antes do que acoroçoar uni crime !...
— Rasão tendes, Sr. doutor I Quando não séN vir á minha ventura, ha muito emprego- nobre que possa dar-.lhe.
Vaz Caminha ao recolher encontrou João Fò1-gaça. As novas não eram boas: versavam pouco mais ou menos pelo mesmo que ao Braz referira o Anselmo. Confirmava-se o faoto do combate: entre os navios e as chalupas•; muitos corpdí já dilacerados e meio devorados dos peixes ou abutres, tinham vindo á praia ; alguns menos despedaçados pareciam de flamengos. A gente de Rià Vermelho nada mais sabia do acontecido, senão
AS MINAS DE PRATA 147
te alguns pescadores do lugar haviam desappa-cido. O capitão de matto referindo estas informações te acabrunharam o advogado, despediu-se delle m esta palavra : — Tudo annuncia uma desgraça ; mas eu ain-
i espero para acabar de crer por uma cousa. — Pelo que, Sr. João Fogaça ? — Por um dos meus caboclos, que venha ainda esmo do outro mundo, dar-me conta do acon-cido.
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•pWq 'òf^f-t-í^
VI
Mais vai quem Deus ajuda do que quem cedo madruga.
. ,1*
Vinte e um dias depois, que se contavam oito de fevereiro, a náo Santiago, entrava a bahia de Nicterohy, e fundeava junto ao forte de Villegaignon. Recebido com a costumada formalidade pelo senado da camera, e acompanhado do povo, foi o Governador alojar-so nas casas para esse fim des-
ISO AS MÍNAS DE PRATA
tinadas, na "rua Direita, próximo á Alfândega. Depois da audiência de cumprimento, á qual compareceu a gente principal da terra , encerrou-se ° Governador com o Provedor-mór da alfândega D. Diogo de Mariz.
Acreditaram os da comitiva, que traria o Governador alguma recommendação especial sobre o trafego do porto e serviço da aduana ; e bem longe estavam de suspeitar do verdadeiro assumpto daquella pratica.
— Sem duvida que tendes noticia das famosas minaS de prata de Jacobina,'"Senhor Provedor?
D. Diogo teve um leve sobresalto; mas logo restabeleceu a calma de seu nobre aspecto. >
— Por certo, senhor Governador. Tanto se tem fallado sobre ellas, que hingura ha nesta America, que as ignore.
— Sabeis também o que houve com seu descobridor, Roberio Dias, no anno de 1591, em qüe S. Magestadè El-rei me mandou por Governador á este Estado ? ^ H ' ' '"'" ' ' '
— Ouvi "de varias péssoas:Yíl"' íjii íV ' : f r m , } ^ - i i -,if. .•• , ' • .
' — Corre' qüe o roteiro não é perdido,'e menos falso, como ehtaô muitos 'suppozeram ? iAn"n>m
O sagaz e 8stuto Governador espiava o eítòito
AS MINAS DE PRATA f51
dé suas palavras na phisiohorriia de D. Diogo. Este calou-se um instante visivelmente perplexo ; mas tomando logo uma resolução enérgica, e re-
•vestindo' ares de severa dignidade, fixOu no seu interlocutor um olhar límpido e calmo, reflexo do uma alma leal.
— E' D. Francisco de Sõuzá quem mé interroga, ou o Governador deste Estado ?' ; -
— Suppondè que sejam ambos! acodiu logo ó fidalgo coto um sorriso. ' — Nesse caso : ao primeiro eu não responderia, mas cortezmente lhe pedira que mudássemos de assumpto.
— E ao Segundo ? — Diria com todo o respeito:—Não me inter
rogueis sobre este objecto, porque me collócarieis na dura necessidade dé desobedecer à vossa àu-thoridâde, para guardar a minha' honra!
O Governador fogou o sobrôlho. Abah.donãhdó dè repente a sua primeira táctica, investiu direito ao alvo. '
— E' inútil a reserva; D! Didgò de Mariz. O roteiro de Roberio Dias está ém vosso poder.
O provedor jfoòu impassível ; •''-'• '— N e g a e s -f
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— Já respondi á V. Senhoria, nâo responr
dendo. — Não o podereis negar. Não só tenho plena
certeza; mas estou informado da circumstancia que vos fez depositário deste segredo.
O Governador referiu o quanto o Braz tinha ouvido, .do Anselmo á bordo do galeão Rosário,
D. Diogo não se abalou; ouviu silencioso sem o mínimo signal de confirmação ou negativa.
— Vosso mesmo silencio, concluiu o Governa;-dor, é a prova mais robusta do facto. Em vossos lábios mudos ha uma confissão mais clara doqUesi faltassem.
D. Diogo sentiu o peso dessa observação : — Não sou e nunca fui homem dearguciase
ambages,, senhor Governador; na minha família sempre houve timbre de franqueza e verdade. E' exacto que o roteiro das minas de prata foi confiado á minha guarda pela Providencia; e que eu acceitei a responsabilidade desse perigoso deposito, resolvido a cumpri-lo. Eis o que me cabe communicar á V. Senhoria.
— E como contaes cumpri-lo, senhor Provedor? — Restituindo-o á seu legitimo senhor. — Não me enganaram os que tão bons prolo-
AS MINAS DE PRATA 1 5 3
gos me fizeram no reino e aqui da vossa nobreza, D. Diogo de Mariz: sois credor da estima de todos os homens de bem pela vossa probidade austera, e constante lealdade.
— Folgo de ver meu procedimento confirmado por' pessoa de tanta authoridade !
— Sem duvida que vos approvo e lpuvD. De-veis restituir o roteiro a seu legitimo senhor. E quem pensaes que seja esse ?
— O herdeiro de Roberio Dias 1 - . — E' incontestável. — Então está o senhor Governador de accordo
comigo? perguntou o Provedor serenando. c v ' — De perfeito accordo ; respondeu D. Francisco
sorrindo. D,. Diogo ergueu-se para retirar.
— Portanto só me resta receber o deposito e dar-vos quitação. i
— Vós, senhor D. Franeisco de Souza? ' ,-—i Mas de certo I -— Em que qualidade ? — Na de procurador bastante do herdeiro de
Roberio Dias. <
— Qual herdeiro? Poiso filho...
AS MINAS DE PRATA
— O unioo legitimo herdeiro, Sua Magestade El-rei, nosso senhor.: ^
— Não compreendo. ••;• — A sentença de condemnação de Roberio
Dias, ordenando, o (cpnfisco de seus bens.üons.ti-tuiu o real erário seu único herdeiro. Creio que não me contestareis este ponto: mas accresce ainda que El-rei já era successor desse roteiro por cessão qüe delle lhe fizera o próprio Roberio : e embora se argumente com ter sido condiccional...
D. Diogo teve tempo de rèfiectír; é interrompeu o Governador:
— Me levaes para' outro terreno, senhor D. Francisco de Souza, em que sou ainda mais peco, que nà diplomacia, o da rabüíice. Os lettrados vos darão mil rasões; concedo mesmo que seja exacto quanto expendestes. Mas o roteiro que tenho era meu poder, reeebi-o como de Roberio Dias; e para com elle me obriguei perante Deus, em cujo tribunal não ha confiscos. Só a elle pois ou á seu filho que o represente, restàuirei otnie me foi confiado. Si El-rei, ou quem quer que seja, tem direitos á este objecto, discuta-os nos seustri-bunaes, entre elle e seu adversário. Comigo não, que só me relevo no juízo, de, üteus,; M .
AS MINAS SE PRATA 1'55
— Nesse caso recusaes< entregar-me? — Sou á-isso forçado; ÍJ ' — E a El-rei também;recuSareis? 0ÇIW;;
— A El-rei como á qualquer. •— Led«.ii; • '
O Governador apresentou um alvará em que Phélippe III ordenava a D. Francisco de Souza, queapprehendesse, em mão de quem quer que o tivesse, o roteiro das minas de prata-descobertas; por Roberioi Dias; empregando a esse fim se fosse necessário a coação, derogados1 para tal effeito todos privilégios e isenções de nobreza.
D. Diogo leu o alvará, e tornando-ó'ao Governador, dissa-lhe friamente:
— Execute V. Senhoria o alvará!... i-^-f-Desobedecei* á El-rei, senhor Dlri Diogo do
Mariz? — Desobedece quem recebe uma Ordem e não
a cumpre. EUrei não pôde ordenar-me uma cousa contraria á minha honra e dignidade.
D. Francisco bateu o pé arrebatado, e passeou agitado pela sala.
— Estaes sob a influencia de uma nimia sus* ceptibilidadei senhor D. Diogo de Mariz; também eu sei prezar a honra e dignidade de meu
156 AS MINAS DE PRATA
nome, e não seria capaz de exigir de vós cousa que não fosse digna.de um fidalgo. Quero dar-vos tempo para reflectir, antes de uma decisão que vos pôde ser fatal. Recolhei á vossa habitação.: amanhã ao meio dia, me direis a vossa ultima palavra, e espero em Deus que será propicia. Jurae qne desde este instante até então o deposito que tendes em vosso poder não mudará de lugar*...
— Jurarei si o quereis, senhor Governador. Mas amanhã, como hoje, a minha resposta será a mesma :
— Jurae I D. Diogo satisfez o desejo de D. Francisco e
retirou-se. . A reputação de astuto e sagaz que adquerira
D. Francisco de Souza era merecida. Elle contava que o pranto da família e a influencia da noite, operassem fortemente no animo do fidalgo e o rendessem á sua vontade. Desse modo evitava um acto de força, que empregado logo no principio do seu governo e contra um fidalgo de alta linhagem e official superior de fazenda, seria perigoso. D. Diogo era pela sua inteireza e severidade de costumes geralmente estimado da gente
AS MINAS DE PRATA ítt
boa ; a sua desobediência', longe de pareder crime, daria talvez maior realce' áquéllás virtudes. No estado em que então Se achava a colônia um tumulto popular não era impossível; e El-rei não duvidaria dar rasão á gente dá terra contra seu Governador como muitas vezes aconteceu.
Demais qüe arriscava o Governador com esse adiamento de vinte e quatro horas? Estacio estava á estas horas ou sepultado nas ondas ou era luta com ellas : quanto á difficuldadè q"Ue podia crear o Provedor"escondendo melhor o roteiro, 0 juramento dado éraf uma garantia.
Seriam duas horas da tarde, quando do collegio dos jesuítas nó morro do Castellò se avistou a náo Santiago, dobrando o Pão de Assucar para entrar £ barra.
OS Padres íetantando-se do refeitório caminharam ás janellas para acompanharem com os olhos a magestósa singrádüra da alterosa náo, que tendia as ondas, como uma princeza do oceano, soltas ao vento as brancas roupagens.
Antes delles porem o P.e Molina sempre alerta a tudo que passava erri torno, com ura óculo de loftgs mird é dó1 interior da celía examinava o navio.
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A escolha de, D. Francisco de Souza era idadç avançada para Governador do Estado do Sul, acordara no espirito de Molina a mesma idéa que suscitara na lembrança de Vaz Caminha : porque para ambos a nova desse facto coincidira com a noticia da existência do roteiro de Roberio Dias. Como porem a partida de D. Francisco de Souza estava marcada para p começo do outro anno, o Visitador deixando a Hespanha em outubro de 1608, trazia cerca de três mezes de avanço; e por conseguinte podia concluir a sua missão antes mesmo que o Governador se fizesse á vela.
Deste lado estava pois o jesuita de animo tran-quillo, quando o sorprehendeu a chegada inesperada do Governador. Ao primeiro signa! de náo portügueza 4 barra, teve elle um presentimento, que logo tornou-se em certeza, quando pôde distinguir o pavilhão de capitão-general içado no tope do mastro e saudado pelos fortes e navios da armada. ,;i
Que razão tivera o governador para assim prer cipitar a partida ?
O espirito do jesuita cingindorse á investigaçiQ| desse problema, acabou por concluir que o mo-, tivo da alteração fora relativo ás minas de prata,
AS MINAS DE PRATA 15!)
e nenhum outro senão uma suspeita sobre os pro-jectos da Companhia. E' certo que o segredo ficara entre o General Cláudio AqUavia a elle P.e Molina , entre um abismo e um túmulo. Mas o Vi-• sitador sabiá por experiência própria que o espirito humano é dotado de uma espécie de faro moral, capaz de perceber ao longe fados de que não há noticia. E' por esse dom singular que a gente de uma cidade annuncia ás vezes uma victoria ou um naufrágio, ao me mo dia e hora em que elle tem lugar á centenas de léguas distante ; o que fez dizer ao provérbio: voz dovpovo, voz de Deus, quando divulga o bem, do diabo quando annuncia o mal.
Ora, pensava o P." Molina, era bem possivel que embora do abismo profundo onde estava sepultado o segredo não escapasse echo delle, com-tudo se levantasse, algum ligeiro odor, que prurisse o fino olphato da diplomacia castelhana, discípula aproveitada da inquisição e do jesuitismo.
Cogitando destas cousas, dirigiu-se á toda a pressa para a rua de S. José.
O Visitador não se enganava. Fora justamente essa a razão, que precipitara a partida do Governador. Mestre Braz,'quando visitara D, Francisco
1,60 AS M1N.IS DE PRATA
em Lisboa, lhe fallara do P.e Gusmão, e com. municara algumas leves suspeitas que tivera., C astuto diplomata não desdenhara essas informações ; todavia chegando a Madrid e sondando ai como em Lisboa a casa provincial, não percebjj vestígio suspeito. Logo porem que veio-lhe ac conhecimento a partida do P.e Gusmão de Mo lina para o Brasil, elle ficou inquieto. Sabendjç do que pôde colher do Prelado, ser essa partida ordenada de Roma pelo Geral, que desliga^ o professo da sua obediência á casa de Hespanha, o Governador não duvidou mais, e instando com o ministro, fez-se á vela ao cabo de quinze dias, que tanto se despendeu com o apresto da náo. ,<*
Si- não fosse a demora da caça aos hollande-zes, talvez que D. Francisco de Souza aporta^ á S. Sebastião antes do P.e Molina.
Emquanto repicavam os sinos e ardiam no ai fogos de artificio para festejar a boa vinda,de novo Governador, 0 p» Gusmão indifferente;ái demonstrações festivas chegava á casa de D, Diogo, resolvido á satisfazer a exigência.da qu tação e receber o roteiro. Deixaria,assim nas mãos do fidalgo um documento de sua falsidade ; ma! engendraria modo» de reparar esse mal,
AS MINAS DE PRATA 161
-"* Tenha eu o papiet em meu poder, <6 o essencial. Ao mais Deus provera. .ofch'
O frade pensava qüe a perfuração da parede ,serviria para snbtrahir o recibo, desde qu^ ô roteiro estivesse em suas mãos.
D. Diogo não estava em casa; já tinha sahido para ir ao acompanhamento do Governador, d'ondfe só recolheu á noite, depois da pratica que se referiu. O frade desgostoso desse contratempo, mas não desanimado, recorreu ao meio extremo; subiu á água furtada, e poz mãos à obra, deixando a beata de vigia á rotula para o avisar da volta do fidalgo, logo que o avistasse no principio da rua, Entretanto trabalhava com ardor extraordinário ; faltava-lhe ainda muito para concluir o rombo; a taboa além de grossa devia ser delicadamente serrada afim de não cahir do lado opposto e chamar a attenção.
Nesse ponto do trabalho foi o Visitador dislra-, hido pela beata que o chamava do pata mal da
escada'. O Provedor recolhia taciturno e sob o peso de graves pensamentos: tjuBttdo o jesuita sahiu á porta ainda vinha á vinte passos de distancie, pelo lado opposto da rua. Deixando que approximasse foi-lhe direito o P.e Gasmão: »H!<< V
162 AS MINAS DE PRATA
— Vosso servo, senhor Provedor 1... ia elle dizendo.
Mas uma estrambotica figura , que não tinha percebido, metteu-Se de repente entre elle e o Provedor, de" modo, que este distrahido como vinha, passou adeante sem dar fé de quem lhe faltara . *
— Reverendo, uma palavra!... disse o receou chegado.
— Segui vosso caminho, irmão, e deixae-me ir o meu , que tenho muita pressa I... replicou o frade.
— Mais tenho eu, Reverendo!... — Pouco me embaraça I — Embaraça-me á mim I O jesuita procurava passar, e o desconhecido
esbarrava-lhe o passo postando-se em frente. — Que quereis de mim, então? — Que o Reverendo venha ouvir de confissão
uma pobre mulher... •—Não posso agora 1.,.-,,'• -i — Sangue de Chrisro !... Um padre que recusa
confissão á enfermo mortal I..;. E' peior bicho, que a besta fera, pois; esta come só a carne!...
O P.e Molina, que opezár da escuridão da noite.
AS MINAS DE PRATA 1 6 3
estava entreconhecendo o desastrado sugeito , ao ouvir a tão familiar jura de outrora, recordou-se immediatamente do capitão Fuerte-Espada. Este reconhecimento levou-o logo e naturalmente á uma conjectura. O aventureiro, que elle deixara em Lisboa, nas#garrasda inquisição, para escapar-lhe devera ter sido amparado por pessoa de grande valimento : e essa não era outra senão o Governador D. Francisco de Sousa, que o tomara á seu serviço.
Tudo isto foi rápido e pensado em quanto o aventureiro terminava seu dizer, ao qual o jesuita retrucou:
' ''— Assim era, irmão, si não estivesse eu suspenso de ordens!...
— Caramba I o Reverendo está suspenso! Que tal!.,. Por bom não ha de ser!...
— Deixo-vos com Deus,, senhor!...
O capitão Fuerte-Espada, que não. primava pelos dotes do espirito , ficara estatelado com o expediente do frade.; e em quanto raminava elle o modo de letorquir ao argumento e convencer o jesuita para que o acompanhasse, este seguira o seu caminho desimpedido, e já pisava o lumiar
164 AS MÍNAS DE PRATA
da porta de D. Diogo, quando o aventureiro m dois saltos o ífllctinçoU e toraou^he a deanteira.1
—- Nada, HeVerendo, haveisde acompanhar-me. Ocoorreu-me que assim como qualquer sem ser padre baptisa em artigo de morte, podeis vós mesmo de ordens suspensas confessar l..-. -
— Então também vós, sem ser padre; e portanto não oareceis de mim ; disse 0 frade a rir.
— Sangue de Christo ! O Reverendo está chas-queando do próximo!... Pois saiba que lhe falia o capitão D. Annibal Achiles Seipiào dé Ia Fuerte Spada, com quem ninguém ainda brincou»• nem mesmo sua mãe quando elle era fedelho l Disse eu qüe o Reverendo me havia de seguir á confessar a mulher, e é como si já estivesse lá.
No comenos desta .altercação fechou-se a porta do Provedor; o sino de recolher começava de ser tangido. O frade pensou que o melhor modo de se desvencilhar do aventureiro, era condescender com elle; e pois resolveu-se' á segui-lo.
-—' Mostrae o caminho, irmão. ;„ — Em frente I 'Sempre em frente I E' a mi*
nha divisa !... Seguiram os dois rua acima. Com um galrador
da força de D. Annibal, não era diíflcil ao P.'
AS MINAS DE PRATA 165
Molina verificar o que já suspeitara a respeito da sua vinda ao Brasil. D. Francisco de Sousa, guiado pelas revellações de mestre Braz , com-prehendêra que lhe seria útil o concurso do aven" tureiro, e tirou-o dos cárceres do Santo Oííicio, para logo dar-lhe um lugar, em sua comitiva. O aventureiro, que já se considerava queimado, recebeu aquelle favor do céo sem saber á que cir-cumstancia o devia :
— 0 tal mestre Braz!... concluiu o soldado balando. Um dia havemos de ajustar contas!...
O frade que revolvia nesse instante tristes pensamentos, sorriu de ver attribuir ao taberneiro a denuncia por elle deitada na caixa secreta : mas logo uma idéa amarga derramou-se no seu espirito, confrontando as circumstancias agora referidas com outras por elle antes sabidas.
— A intelligencia humana é uma burla do Crea-dor!... Eu, Gusmão de Molina,com vinte annos de um .estudo incessante, eu discípulo melhor dos grandes mestres, deixar-me illudir por um taberneiro!... Quando podia pensar que aquelle bruto seria capaz de contraminar um plano meu I
Chegavam os dois á rua da Ajuda. — Aohmenos reparemos o erro!...
1 6 6 AS MINAS DE PRATA
Murmurando, comsigo o frade recuou de repente, fingindo sobresalto:
— Que.temos?... perguntou o aventureiro. — Não vê, D. Alinhai, ali no matto uns vul-,
tos!... Faliam tanto de malfeitores agora ! — Quem vae lá ? gritou o destemido capitão.; Não respondendo ninguém, desembainhou a
espada e arremetteu á cutilladas pelo mato. As sombras eram duas estacas ali fincadas para coa-radouro, o que elle só conheceu chegando perto.
—Oh 1 uh! ohl... exclamou rindo! Vinde ver os vossos' malfeitores, Reverendo*
Mas o P.V Molina se tinha sumido. < «—E não logrou-me, o demônio*do frade !...
Melhor; poupou-me o trabalho de me descartar delle. • i
D. Annibal voltou á rua de S. José, mas qual não foi o seu pasmo descobrindo de longe o vulto do jesuita em pé defronte da porta de D. Diogo• de Mariz, esperando que acodissem ao seu bater. Deitou á correr para elle, quando lbe sahiu do;
vão junto da parede um sugeito : — Então^ asno, assim é que cumpres; as mi
nhas ordens? — Mas capitão, o frade disse que vinha por
AS MINAS DE PRATA 1 6 7
ordem do senhor Governador ,e que vós não ha-vieis tardar! Como sabistes ambos juntos 1
— E que tinha isso, grandíssima besta!... D. Annibal chegou a tempo; ouviam-se já as
passadas • da caseira de D. Diogo na escada. — Sem dúvida, Reverendo, vos enganastes de
porta ': a do vosso convento fica no Castello, onde este camarada vae levar-vos direitinho como um fuso. Vamos! um, dois?, três ; em frente, marcha.
O Visitador conheceu que a resistência, alem de improficua, podia ser funesta. Era claro que o Governador guardava a porta de D. Diogo, e por conseguinte elle não poderia naquella noite penetrar na casa. Entretanto si por um lado aquella medida o assustava, por outro lhe dava esperanças, pois era indicio de que o Provedor, fiel aos severos princípios de honra, recusara ao Governador a entrega do deposito.
Recolheu pois o Visitador ao collegio, ao passo que D. Annibal se atravessava na soleira da porta resolvido a ali passar a noite, e despachava a caseira acodida ao chamado do frade :
— Não é nada, rapariga, senão fui eu que me enganei de porta.
Entretanto D. Diogo de Mariz ignorava o que
1 Í 8 AS MINAS DE PRATA
passava á porta de sua casa. A nuvem que um instante toldara o seu pensamento se dissipará" * recobrara a calma e serenidade da consciência pura. Depois da ceia frugal, escreveu uma carta que en-commendou aos cuidados da caseira, e dormiu ao lado da virtuosa esposa o somnó d© justo.
à caseira do fidalgo era a mulher dos eSqOtfi cimentes ; tinha memória de galinha pedrez, de quem diz o vulgo que não se lembra onde poz o primeiro ovo. Quantas incumbências lhe davam, umas não fazia1, outras amanhava de tra-vez. Nessa n oite á vista das instantes recommen-dações do amo, teve ella uma feliz idéa; metteu a carta no cocô. Era o meio de nSo esquece-la; em casa no outro dia ao sabir para as compras.
Assirp. aconteceu de- facto. A's cíticó horas dá manhã, a velha1 de sambará no braço ganhou á rua, e com ella foi escondida no cabello a carttt da qual nem mais se lembrava. D. Annibal vib-a sahiii, e deixando a porta guardada foi-lhe no en>-ealçe». A poucos passos fe-Ia parar:
— Alto, minha'velha1. O' Sr. Governador teve denuncia de qüe trazieis comvosco certas bruxarias...
— Eu!... Bento Jesus!... Qüe Mso testemunho r... • '
AS MINAS DE PRATA 1 6 9
— Ê* o que vamos averiguar 1 Vou passar-vos uma revista completai...
— Podeis passar, na certeza que si algbmá encontrardes, são artes do Tinhoso !...
Sem respeito ao pudor, D. Annibal revistou ou apalpou a velha ; não lhe encontrando cousa suspeita, deixou^a seguir. Conto poderia pensar o capitão que os cabellos dessa velha seriam para elle como os cabellos das matronas romanas para o seu homonymp 1
A essa mesma hora o P.e Molina sahia do collegio em direeção á rua de S. José. Levara a noite inteira á meditar; e ia resolvido a ins-tallar-se em casa da beata, e d'ahi operar como o caso pedisse. Tinha dois.meios á empregar; um era o furo da parede; o outro o quintal, por onde suppunha poder penetrar na casa do fidalgo.
Succedeu que ao chegar o Visitador embaixo da ladeira, passou-lhe pela frente a caseira, que elle immediatamente reconheceu . A velha ia bem descançada de seu ; nem lembrança da carta; mas ao ver o frade Cahiu em si, e tirou do cocô o papel engoráüradó dé banha.
Vol. v. 18
1 7 0 AS MINAS DE PRATA
0 P.e Molina quebrou o sello e leu rápido; •
« Padre mestre.—Rogo^vos encarecidamente a' graça de achar-vos nesta vossa casa de S. José amanhã segunda feira que se cantam nove de fevereiro antes da hora de meio dia. A , De V. Paternidade
um irmão reverente, .m
D. Diogo de Mariz. »
— Para que me quer elle?... Ê porque ao meio dia antes do que á qualquer outra hora?.;.
' O frade tornou a ler a carta, e interregou a velha, da qual só colheu o que já sabia; que o Provedor recolhera tarde voltando de palácio.
— O Governador exigiu a entrega do roteiro; D. Diogo pediu tempo para reflectir; o Governador lhe concedeu, mas fe-lo guardar por cau-tella. O praso expira ao meio dia ; elle me convida pois para previnir-me da entrega que vae fazer do roteiro ao Governador. Não é outra cousa,
Caminhando sempre, proseguiu :
—- Também é possivel que elle pedisse praso, para poder livrar-se do deposito entregando-o. á mim. Mas não ! Si assim fosse não me diria — an?
AS MÍNAS DE PRATA 171
tes do meio dia, ésim —venha o mais cedo possivel!...
O frade encaminhou-se apressado para a casa d» Marianna, onde pretendia entrar sorrateiramente, para d'ahi sondar o terreno. Mas nesse tempo pouca gente transitava pelas ruas, de modo que apenas o frade . apontou longe, o capitão o lobrigou, e foi-se logo preparando para fazer-lhe frente. D. Annibal tinha mais medo da língua de um jesuita, do que da ponta de uma adaga afiada.
Com admiração sua, o frade em vez de se dirigir á porta de D. Diogo, bateu devagarinho na rotula : por infelicidade a beata estava para os fundos, e tardou uns dez minutos a abrir. Foi o tempo necessário para o aventureiro formular um pequeno raciocínio: em virtude do qual lhe pareceu suspeita a entrada na casa visinha pelo mesmo indivíduo que tamanha Instância fizera na véspera para entrar em casa de D. Diogo.
D. Annibal avançou pois:
— Bom dia, reverendo. Já tão cedo na rua ! Quer; me parecer que o Padre tem rasca por estas bandas.
172 A§ "WAS DE PBATA
O jesuita revestiu-se da sua dignidade, e não respondeu : este ar pesou sobre o aventureiro, que retorquiu em tom cortez e polido :
— Não se pôde saher o que vem o Reverendo fazer á esta casa?
-T- Venho exercer o mau sagrado ministesioi 1
—. Queira o Reverendo^ traduzir-me isso em
vulgar.
— Foi chamado 8 uma confissão aqui!...
— Mas o Reverendo não está suspenso de ordens?
— Minha, suspensão terminou no dia de honrem.
O capitão Fuerte Espada ficou estatelado; mas sem o sentir arrancou da cachola uma replica chistosa ;
—. Neste caso, Reverendo, a minha enferma de hontem está em primeiro lugar.
E receiando a lógica temível do jesuita, poise o aventureiro á cantarolar, acenando à um dos seus homens para guardar a rotula da Marianna. O P.e Molina, homem da palavra e soldado na milicia da intelligencia, teve de ceder ante o po*
AS MINAS DE PRATA 173
der da força bruta. Retirou-se, é verdade, mas como a vaga que se retrahe para de novo arremessar-se e com maior ímpeto.
•^srac
VII
No fim das contas calie o rato na ratoeira.
G * C 2
Seriam já sete horas: A presença de homens armados na rua de S. José começava a attrabir a attençào publica. Os passantes que iam á obrigação diária, retardavam o passo e voltavam o rosto para ver; os curiosos paravam á distancia e praticavam do caso. Diziam os bem informa-
176 AS MÍNAS DE PRATA
dos que se tratava de uma prisão importante de pessoa moradora naquella rua; mas quem ella fosse por ora estava em segredo. Os soldados do Governador para derrotar a curiosidade tinham feito correr este boato; e como elles estavam espalhados por quasi toda a rua, ninguém podia com certeza saber que porta guardavam.
Por este tempo um homem do povo coseu-se á rotula da Marianna, a qual já apercebida do que ia pela rua, estava a espreitar pelas frestas. D. Annibal não deu attenção alguma á este incidente. Não tinha ordem de guardar aquella porta ; nem o indivíduo lhe inspirava suspeitas como o frade.
— Venho do P.e Molina ! disse o sugeito baixo. A beata abriu logoü rotula, e recebeu o re
cado que o Visitador lhe mandava. Devia ella fingir um ataque, dando altos gemidos e despachar incontinente o mesmo emissário á chamar o jesuíta para confessa-la, pois o serviço da igreja assim o exigia. Isso foi tão depressa dito, como feítO.' W- ''!):'«' . '*<[•'' í O .
Marianna estendeu-se sobre o catre a estrebu-char e gemer; o homem abriu arrebatadamentoia rotula» e deitou á correr para o fim da rua onde
AS MINAS DE PRATA 177
o esperava Molina; acodiu o frade á toda a pressa, caminhando aAraz do guia, que no açodamento em que ia, encontroava os passantes:
— Entre, P.e Mestre ! Depressa, que está á decidir. -«' /•
Mas D. Annibal tinha bispado o habito preto de sua quejilia, e logo apoz reconhecido o frade apezar do bioco com qüe buscaVa se disfarçar.
— Alto lá, rapaz. Entre Você, mas cá o Reverendo é meu amigo velho ; temos que trocar duas palavras.
Chegando então ao ouvido do frade : — O Reverendo é teimoso; eu também sou;
e o senhor Governador que aqui me mandou , ainda mais. Portanto melhor é que se desengane, antes que alguma lhe succeda.
O P.e Molina fez um gesto de- desprezo:, depois erguendo a voz de modo á ser ouvido por dois sugeitos que passavam, interpellou o soldado:
— Mas, senhor soldado, veja bem o que faz> Não se deixa morrer assim impenitente uma mísera pecçadora, que pede confissão!
Qs passantes pararam para escutar. D. Annibal procurou em seu espirito embotado alguma
178 AS MINAS DE PRATA
cousa para responder, e não achou mais que uma jura mal cabida na occasiáo. O jesuita continuou:
— Aos mesmos condemnados nunca El-rei negou confissão, por mais feio e horrível que fosse o seu. crime ; e sobem a forca acompanhados de, um sacerdote que os exhorta na fé do Senhor!... A uma enferma, sem culpa, ha de negar-se o, consolo da religião, e por authoridade de quem ? De um soldado!...
— Soldado 1... Soldado I... murmurou D. Annibal em talas. f.
Aos dois passantes se haviam reunido outros, que á um e um já formavam grupo, e inque- \ riam-se mutuamente da causa da altercação, escutando ao mesmo tempo o jesuita. O homem;, do recado tivera o cuidado de soprar ao ouvido,, de cada um o caso do ataque ; de modo que os murmúrios descontentes e os gestos de ameaça começaram a despontar no ajuntamento. De seu lado Molina sentindo que tinha um fragmento de povo ao alcance de sua mão, dispoz-se á empunha-lo como uma alavanca. A palavra vibrante:
fluiu de seu lábio, crespo pela indignação, e es-' parziu sobre aquellas cabeças as scentelhas que deviam produzir a combustão. O tumulto popu-
AS MINAS DE PRATA 179
lar rugia já no peito do apóstolo, como a tor-menta antes que desabe ruge ao longe no seio da nuvem, ou como o leão ainda em repouso ruge no seio da selva.
— Fora o herege 1... — Si o cão é mouro!... Não lhe vêem o
focinho I — Qual mouro ! Judeu arrenegado, que é a
peior besta 1... — A fogueira com elle 1... , D. Annibal empallideceu; metade com medo
do povo que o podia espatifar ; metade com medo do Governador, que talvez o castigasse por ter excedido suas ordens, promovendo o tumulto. Foi pois como homem prudente encolhendo-se, depois de alinhavar algumas desculpas. O P.* Molina penetrou sem obstáculo em casa da Marianna ; e foi direito ao quintal para assegurar-se da possibilidade da passagem para a casa do fidalgo. Um instante depois appareçeu na rotula para serenar o povo e dispersar o ajuntamento.
— Podeis ir tranquillos, irmãos. A enferma vae melhor depois da confissão: do qne precisa é do maior socego! Curada a alma, pôde sarar o corpo.
1 8 0 AS MINAS DE PRATA
Fechada a rotula, Subiu á água furtada, e pro-seguiu com ardor na tarefo começada. Descoberto o buraco, appareceu o fundo do armário de cedro. Applicou o jesuita o ouvido, e pareceu-lhe que nin:
guem havia no gabinete: era então a hora do almoço, e o fidalgo naturalmente estava ámeza. Sem perda de tempo insinuou pela broca, da madeira â serra fina e estreita, e continuou á cortar o tampo começado. Apezar da cautela de untar constantemente o instrumento de oleO com o fim de amortecer o rangido, tinha elle o ouvido attento ao menor signal.
Dois terços do circulo estavam cortados, quando sentiu elle abrir a porta do gabinete. Ficou immovel. Era D. Diogo, que terminada a refeição matinal, voltava aos seus papeis, nos quaes trabalhava desde a madrugada. Preparado para sof-frer as conseqüências de sua lealdade e rigidez de caracter, escrevia o fidalgo suas Ultimas disposições, e consolava a esposa em uma carta que lhe dirigia.. Já ha sua casa se haviam apercebido da presença de gente armada na rua; mas só o fidalgo comprehendeu a verdadeira razão.
- í- Não me conhece f murmurara dentro de sua alma nobre.
AS MINAS DE PRATA 181
Agora sentando-se outra vez á poltrona, afastou docemente a mulher que o acompanhara até o gabinete:
— Ide á vossa lida, e ficae tranquilla. Quando vier o Padre, 'o que tem vindo estes dias passados, mandae á caseira que o guie aqui.
— Si vier! accrescentou mentalmente.
O fidalgo lembrara-se que estando a sua porta guardada, não poderia o jesuita acudir ao seu chamado.
— Ao meio dia também hão de vir a mandado do Governador. Que me avisem logo.
Molina, ouvindo da água furtada as ultimas palavras de D. Diogo, conheceu que tinha calculado bem á respeito da exigência do Governador.
— São oito horas apenas! pensou elle. Tenho tempo de ir saber o que pretende e voltar.
Desceu pois a íngreme escada; quando chegou abaixo, ouviu do lado da rotula uma al-tercação. Era D. Annibal que desconfiado com a demora do frade, insistia para entrar e ver a en. forma ; o acólito do jesuita oppunha-se ao seu intento com rasões de boca e de hombros. O
Vol. V. 16
1 8 2 AS MINAS DE PRATA ,
visitador acodiu e chegóti a tempo, porque já os soldados estavam senhores da entrada.
Postando-se deante, oppondo ás armas o peito inerme, e só couraçado com a lila preta, Molina \ conteve o primeiro impeto; depois atirando á rua uma daqüellas apostrophes valentes que elle manejava, formou em pouco um ajuntamento e o concitou em nome de Deus á defender a religião, J que ameaçavam profanar taes ímpios, perturbas- •': do a ultima confissão de uma moribunda.
O povo agitou-se e tomou o partido do Padre; a porta foi de novamente fechada e um muro de gente, ergueu-se deante delia. Os soldados, segunda vez batidos, recuaram.
Molina dirigiu-se ao quintal, e pela cerca passou á casa de D. Diogo, onde a caseira o viu apparecer cora grande pasmo.
— Foi vosso amo que assim ordenou. Levae-me já á sua presença.
A velha* obedeceu.
D. Diogo recebeu o frade com sua calma e habitual gravidade.
— Já não contava ver hoje V. Paternidade. Como chegou até equi*?
AS MINAS DE PRATA 1 8 3
— Sua mercê não ignora que para este habito não ha portas fechadas! respondeu o frade illudindo a pergunta.
* — E' certo. Na supposição porem de que nãO; lhe podesse foliar, tinha longamente escripto. Queira o P.' Mestre ler, em quanto de minha parte termino certos negócios da maior importância para mim..
O fidalgo passou ao frade a carta sellada. Era a exposição do que passara na véspera em palácio entre o Governador e elle. Molina teve tempo de a ler duas vezes e meditar sobre a intenção do Provedor, em quanto este escrevia rapidamente.
Afinal D. Diogo acabou o trabalho, e voltou-se para o jesuita :
— Estou ás ordens de V. Paternidade.
— A' vista do que me refere sua mercê nesta carta, só me resta saber qual é sua intenção.
— Minha intenção?
— En me explico! Pretende o Sr. Provedor ceder á authoridade do Governador?...
D- Diogo o esmagou com o olhar,
1 8 4 AS "MINAS DE PRATA
— V. Paternidade devia já conhecer-me bastante para ter a certeza de que não ha poder que me desvie do cumprimento de um dever de honra.
— Então está ainda disposto a entregar-me o roteiro ?
— No momento em que me for exigido por quem de direito.
— Mas sempre mediante quitação ?
— Agora, menos que nunca, posso delia prescindir.
Molina hesitou. Que lhe convinha mais, receber já o roteiro, deixando contra si uma prova da sua falsidade, ou apossar-se daquelle papel pelo meio violento do roubo?... Si o primeiro meio era perigoso, o segundo era incerto: elle preferiu o risco á duvida.
— Vou passar á sua mercê a quitação I
— Bem 1 disse o fidalgo cedendo-lhe o lugar
na banca. Seus papeis?
— Aqui estão ! Esta é a certidão de casamento de Roberio Dias com D. Clara Dias Corrêa; segue-se a de baptismo do filho único desse legi-
AS MlNAS DE PRATA 185
timo matrimônio, Estacio Dias Corrêa, menor de 20 annos: depois duas do óbito dos dois cônjuges ; em quarto lugar o auto do noviciado do
,moço escholar no collegioda Bahia, o que o constituo era tutella legal da Companhia : quinto finalmente o pleno poder do Provincial conferido a mim Gusmão de Molina para este fim:
O fidalgo leu e examinou minuciosamente os papeis, em quanto o jesuita rastreava nas suas feições o menor gesto de suspeita :
— Está tudo em regra.
O P.8 Molina correu a-pena sobre o papel, e o fidalgo caminhando para o fundo do aposento, ia abrir o armário. *
Ouviram-se no corredor passos rápidos de ca-valleiro, á julgar pela rijesa do som, que indicava o salto da bota, e pelo trillar das esporas.
O jesuita ergueu a cabeça de sobresalto. — O Governador?... murmurou. O fidalgo respondeu com um gesto. Não foi porem o Governador que assomou á
porta e sim o vulto nobre e gentil de Estacio, corsdo pela salsugem do oceano e pelos raios do sol.
1 8 6 AS MINAS DE PRATA
Donde chegava elle tão imprevistamente? '
No momento em que a tempestade o arrebatava nas azas, sobre o abysmo das ondas revoltas, a mancebo vendo a náu que ia sumindo-se no ho-risonte, pensou:
— Mais um que corre apoz a herança de meu pae I
Elle teve Ímpetos de seguir em direilura ao Rio de Janeiro para defender seus bens ; mas era um espartano esse joven; primeiro a pátria, depois o interesse.
— Si a justiça é por mim, Deus me ha de amparar. „
Com effoito a Providencia parecia guia-lo pela mão. Nessa mesma noite, no meio da horrível tempestade, o bergantim arrojou-se sobre a escuna, como uma águia sobre a presa , e metteu-a á pique. Olhando o casco em ehammas que fugia arrebatado pelo vento, disse o Antão :
— E' pena que não haja mais!... Será para outra vez. Agora á Bahia.
— Ao Rio de Janeiro ! disse Estacio que o escutava.
Naquelle mesmo dia ao romper d'alva tinham
AS MÍNAS' DÊ "PRATA 187
fundeado fora da barra para não causar suspeita. Deixando o bergantim guardado por Esteves e Pedro, embarcara com Antão na chalupô tripolada
•pelos oito indios. O contra-mestre conhecia a cidade de S. Sebastião , e sabia a casa de D. Diogo de Mariz, pois fora o portador da carta do fidalgo á mãe de Estacio ; elle guiou pois a chalupa para a praia deserta onde século depois assentou D. Luiz de Vasconcellos o Passeio Publico.
Ali saltaram em terra os dois , e se encaminharam á rua de S. José; chegaram justamente na occasião em que o P.e Molina vinha á rotula para impedir a entrada dos soldados.
Estacio perdido na multidão vira e reconhecera o frade. A presença desse homem na visinhança da casa de D. Diogo, o aspecto tumultuoso das ruas, a esquadra de soldados, a prohibição que softreu querendo entrar a porta do fidalgo ; todas estas circumstancias deram-lhe uma intuição rápida do que succedia.
— Antão, creio que teremos necessidade da gente.
— Assim estava, me parecendo ! respondeu o Contra-mestre que examinava D. Annibal, como entre-conhecendo.
188 AS MINAS DE PRATA
— Si quando voltardes, já eu não estiver aqui, esperae com o ouvido alerta, porque devo estar lá dentro.
— Na casa do Provedor ?
— Sim. Outra cousa ; vistes aquelle frate que ha pouco arengava ali da rotula?
— Vi ; e eu conheço aquelle frade!...
— Pois si acaso o vires sahir de uma das duas casas sem mim, segui-o, e apoderai-vos delle antes que falle com qualquer pessoa.
— Cm sacerdote !... disse Antão com escrúpulos.
— Um sacerdote que pretende apossar-se do bem alheio! Julgaes que mereça respeito?...
— Basta ; vou buscar a gente.
Antão deitou á correr para a praia do Boqueirão. Estacio foi direito á rotula e bateu de leve: appareceu pela fresca o rosto desconfiado do servente.
— Abri depressa 1 — Para que ? — Este papel que o Reverendo mandou bus
car, respondeu Estacio tirando do bolso a carta de D. Diogo a sua mãe.
AS MINAS DE PRATA 1 8 9
— Dae-m'o que lh'o entregarei!...
— Por fôrma alguma. A ordem que me deu é que lh'o trouxesse eu mesmo.
— Mas quando vos faltou elle ? perguntou o sugeito cada vez mais suspeitoso.
— Ha pouco em casa de D. Diogo, onde so acha. Qualquer demora pôde deitar a perder o negocio que sabeis; e sereis vós a causa.
Estacio assim dizendo ia empurrando a porta, que o homem indeciso só frouxamente já sosti-nha : apenas dentro ganhara elle o quintal, penetrara em casa do fidalgo ; e foi guiado ao seu gabinete pela velha caseira, que subia de espanto em espanto.
O mancebo circulou o aposento com um olhar rápido, que a final foi cravar-se na phisionomia do jesuita; este já havia dominado o seu primeiro pasmo, e impassível abaixava a vista para o papel onde continuava á escrever.
O fidalgo esperava um tanto sorpreso da inesperada visita.
— O senhor D. Diogo de Mariz?
— Aqui o tendes, senhor.
1 9 0 AS MINAS DE PRATA
— Sou o filho de Roberio Dias. venho receber o papel quo nesta carta sua mercê annun-ciava annos ha á minha fallecida mãe achar-se em seu poder.
O mancebo passou ao fidalgo a carta alludida.
— Ouvistes, Padre mestre ?
— Perfeitamente 1 Eu vos tinha prevenido na Tninha carta.
— Então suppondes?
— Tenho plena certeza 1
O fidalgo adiantou um passo:
— Vedes-me, senhor, em uma posição difficil. Não desejo por fôrma alguma offender vosso me-lindre ; mas não vos conheço ; é a primeira vez quo nos achamos em presença ; e portanto me permittireis uma observação,
—- Fallae, «enhor Provedor. — Dizeis que Sois filho de Roberio Diaê, mas
essa pessoa, se não me engano, deixou um filho único,
— E esse sou eu Estacio Dias Corrêa, que tem a honra de fali ar-vos.
— Entretanto aqui está o Rev. P.,* Molina, que
AS MINAS DE PRATA 1 9 1
se me apresentou como procurador de Estacio Dias Corrêa, noviço da companhia de Jesus no collegio da Bahia. Eis os documentos que justificam essa qualidade.
Estacio leü:
— A pessoa de quem tratam estes papeis sou eu próprio; apenas ha,um pequeno engano, e é que não sou, e nunca fui noviço da companhia ; porem apenas estudante nas aulas publicas que os Padres da Bahia em falta de escholas franqueam á todos.
Voltando-se para o P.e Molina, o mancebo o interrogou:
— E' isso ou não verdade, senhor P.* Molina ? — O único filho de Roberio Dias que eu co
nheço é o de que resam estes documentos; não sei de outro.
— Basta ! Vejo, senhor D. Diógo de Maria, que nada me resta a fazer aqui. Vim á vossa presença como um homem leal e verdadeiro se devia dirigir á um fidalgo do vosso nome e caracter, com verdade e fé; pareceu-me que vossa carta era sufficiente documento, e a minha palavra de cavalleiro prova maior de toda a excèpçSO. En-
1 9 2 AS MINAS DE PRATA
contro porem aqui o embuste e a mentira, trajando as vestes respeitáveis da religião; não estou munido de armas para combate-las, nem mesmo sei, como as fuinhas de cartório, pesquiza-las. Eu me retiro, senhor; e embora o papel cuja restituição me negaes, seja a reparação da memória de meu pae e toda minha esperança de futuro, dou-vos plena quitação desta divida de honra.
O mancebo dobrou a carta do fidalgo erasgan-do-a em cruz, jogou de si os fragmentos.
O fidalgo empallideceu : — Esta acção .é um insulto, senhor 1 — Igual ao que irrogastes duvidando de minha
palavra. Si pois o quoreis, appellemos para o juizo de Deus, e decida elle o pleito de honra e o pleito judiciário I...
— Seja! — Mas eu protesto contra qualquer resoluçÉÉ
vossa, senhor Provedor, que offenda o meu direito 1 Si por virtude de um desafio entregardes um deposito sagrado a outrem que não á seu dono, não ficareis desobrigado nem perante as leis da justiça, nem perante as leis da cavallaria.
O fidalgo tornou-se perplexo. O olhar de Estacio brilhou de repente:
AS MINAS DE PRATA 193
— Deus protege o direito, senhor I... Observae! Este homem se vos apresenta munido de provas para disputar-vos o que é meu; eu venho só acom
panhado .com a verdade e a justiça , sem outro documento alem de vossas lettras. Pois bem, na-quellas mesmas provas produzidas contra mim, está o meu reconhecimento!
— Explicae-vos melhor.
— Ahi está, dissestes, um auto com a minha assignatura, com a assignatura de Estacio Dias Corrêa. Ainda não o vi. Mas a assignatura é esta !. . .
O mancebo tomou a penna e escreveu o seu nome.
— E' verdade! exclamou o fidalgo.
— Que prova isto?... acodiu o frade. Quem munido de uma carta alheia se apresenta simulando aquella pessoa, naturalmente se prepara para de alguma fôrma provar sua falsa identidade. De mais eu tenho ainda um documento, que destroe toda a duvida e que não apresentei pornãosup-por necessário. Si o senhor Provedor me pro-melte esperar!...
— Ide; mas voltae breve. O frade desappareceu.
Vol. V 17
AS MINAS DE PRATA
. .JFicando sós, o.fidalgo interrogou Estacto á-respeito de sua família ; o mancebo contou-lhe da sua historia o que dizia respeito aos seus estudos no collegio da Bahia, e ao roteiro das minas de prata, inclusive sua temerária empreza contra os hollandezes e a viagem ao Rio de Janeiro.
Quando Estacio terminou, o fidalgo estendeu-lhe a mão com fervor.
— Desejo a vossa amisade, mancebo! Sois um digno e valente coração! Me recordais um amigo, que perdi ha cinco annos.
O fidalgo lembrou-se de Álvaro:
— Já não me resta a menor duvida ; nem quero outra prova alem da vossa palavra. E' passado o quarto de hora ; vou restituir-vos o que vos pertence.
D. Diogo abriu o armário e buscou o embrulho lacrado ; já ali não estava ; o tampo de madeira, cerrado em circulo e outra vez collocade no seu lugar, explicou logo o desapparecirwento do papel.
O fidalgo rugiu de indignação. — Eu comprehendo I... «xdamou Estacio. — Foi o maldito Padre!
AS MÍNAS DE PRATA 195
— Não ha tempo a perder. Nós nos veremos, D; Diogo, no céo ou na terra.
O mancebo ganhou a porta, e achou-se face á face com D. Francisco de Souza: o Governador tremeu, a encara-lo, de ira e espanto.
— Apoderai-vos deste mancebo I exclamou vol-tando-se para um official que o acompanhava.
— Senhor Governador, segunda vez peço venia para passar, disse Estacio inclinando-se.
Ergueu depois a fronte com audácia :
— Senhor D. Francisco de Souza, lembrai-vos de quem sou filho, e sabei que ha vinte dias brinco com a morte a cada instante.
Proferindo estas palavras, desembaiohou a espada : o Governador e o official recuaram para fazer outro tanto. Aproveitando-se dessa aberta, o ágil mancebo de um salto ganhou o corredor, fechou sobre elle a porta para não ser perseguido, e em um instante achou-se na casa da Marianna. Correndo o edifício de relance e cer-tificando-se que já ali não era o frade, ganhou a rua.
Já os soldados advertidos pelo Governador estavam em alvoroto ; mas não conhecendo o ho-
1 9 6 AS MINAS DE PRATA
mem que perseguiam, deitaram-se a correr rui
abaixo, quando ainda Estacio estava na casa d<
Mariana Iam longe quando o moço mettendo-si
entre o povo ganhou sem obstáculo a paria do 6o
queirão.
— Só me resta uma esperança ! Que Antão haji
executado o que ordenei.
Ao chegar á praia viu o mancebo a chalupa
algumas braças de terra, com os remos á pique
Molina estava sentado á popa. O mancebo m
esperou que lhe viessem ao encontro ; metteu-s
pela água.
— Chegaes á tempo, senhor Estacio I diss Gonçalo destapando os ouvidos. Este homem nà é gente, é uma tentação de meus peccados ) Apre que si a cousa dura mais um credo não respondi por mim.
E o contramestre bufava como se acabasse d safar elle só a anchora de uma náo.
Estacio saltando á bordo estendeu a mão ao je
zuita sem dizer palavra. Molina comprehendend
o gesto e a situação, tirou do peito do habito
embrulho que não tivera tempo de abrir e entre
gou-o resolutamente ao mancebo com estas palavra:
AS MINAS DE PRATA 1 9 7
— Fugi sem demora, que o Governador vos persegue.
Posto o frade em terra a chalupa resvallou sobre as ondas.
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VIII
Como brota o amor entre goivós.
C2*C2
O bergantim, a pique sobre a amarra, se balança docemente ao fraco ondular das ondas ali-sadas pela bonança.
Pouco tempo decorreu depois que Estacio partira na chalupa para a cidade de S. Sebastião. Reina á bordo o maior silencio. Os quatro ho-
2 0 0 AS MINAS DE PRATA
mens que ficaram de guarda ao navio estão cada um em seu posto. Esteves na escotilha de popa, velando sobre os prisioneiros; André de vigia no cexto de gavia para explorar os arredores; dois indios, um junto ao leme, outro á proa, com a ma-chadinha ao alcance, para cortar a amarra si fosse preciso.
Rachel ainda está no mesmo lugar, em que a deixara Estacio e de onde ella acompanhara com a vista a chalupa até encobrir-se nas saliências do costão de Santa Cruz. A linda judia parece me-lancholica e pensativa : entretanto nem sempre são tristes os pensamentos que revolve a mente, pois delles escapa alguma vez uma scentelha de júbilo, que illumina o formoso semblante e, ac-cende o sorriso nos lábios feiticeiros. Esse raio de alegria que atravessa as sombras de sua alma tem o quer que seja de celeste e immaterial; não o disfere o bem estar commum, que chamamos felicidade.
% Quem já soffreu um desses martyrios do coração, á que o condemna alguma paixão infeliz, conhece a situação extranha da alegria no seio da dôr. Quando o objecto de nossa affeição nos repelle e nega toda esperança, não podemos
AS MINAS DE PRATA 2 0 1
deixar de acompanha-lo com os nossos votos, ainda mesmo que já começássemos á odia-lo. Si o egoísmo vil se apodera de toda nossa per
sonalidade, lá fica um cantinho isento, onde se abriga a essência pura do sentimento nobre, do amor. li' ahi o foco de onde rutila a luz divina que sorri atravez das lagrimas.
Rachel amava Estacio. Já não podia duvidar dessa verdade que enchia toda sua pessoa. Parecia que a alma recentemente amalrotada por uma " primeira afleição , dorida ainda e tão susceptível da cruel decepção que soffrera, não devia tão cedo abrir-se para um novo amor. Mas foi justamente esse estado de exacerbação que rendeu o coração da donzella tão poderosamente, que-ella nem tempo teve de se aperceber da revolução.
Victima de uma illusão fatal, da qual pôde arrancar-se completamente, sem recordações que a fizessem corar, Rachel sentia a tristeza, que deixa o vácuo de uma afleição, e ao mesmo tempo o despeito de ter se enganado. Encontrando em seu caminho, poucos instantes depois da crise, o ideal verdadeiro, que pensara achar no indigno alferes, continuou n'elle o mesmo amor, sem aperceber-se desse acontecimento, senão por uma es-
2 0 2 AS MINAS DE PRATA
pecie de bem estar que se foi derramando por sua alma.
Os sonhos doces e os celestes enlevos do amor illudido, ainda estavam incandescentes, e pois naturalmente e sem esforço soldaram-se ás esperar?*1' ças do novo sentimento. Quando ella sentiu que amava Estacio, pareceu-lhe também que nunca, amara senão a elle. O outro fora apenas um desconhecido, que se apresentara um instante disfarçado, como em uma mascarada, e conseguira illudi-la, procurando imitar seu verdadeiro amante; mas conhecido o engano o despedira. Não era pois a este, mas ao seu ideal, a quem ella dera o affecto. Si viesse a conhecer Estacio mais tarde, quando a dôr tivesse esfriado no coração, talvez passasse elle sem deixar impressão na crosta gelada de sua alma.
Conhecendo seu estado, não se preoccupou Rachel um só instante com o futuro desse amor. Ama; esse presente é bastante para desvanecer todo o passado, e encher todo o futuro, até onde pôde o desejo alcançar. Mais tarde sem duvida viria o desejo natural de ser retribuída em seu affecto; porém a declaração imprevista que fez Estacio de seu amor por Inesita, crestou aquella
AS MINAS DE PRATA 2 0 3
paixão nascente. Ella conheceu que o mancebo talvez viesse a sentir por ella algum movimento de sympitbia ou compaixão quando soubesse do sentimento que lhe havia inspirado ; mas nunca a poderia amar, como ella quer e merece ser amada.
Entretanto podia Estacio não ser feliz no seu primeiro amor, e buscar também no segundo a realisação do ideal ? Sim ; elle podia ser desgraçado e trahido ; mas sua alma tinha-se já saturado completamente daquelle amor para que conseguisse arrancar isente e livre, como ella extirpara a sua das cinzas de um passado morto. Seu segundo amor era a floração de um coração virgem, que o primeiro ameaçara crestar em botão; o segundo amor de Estacio, si elle o tivesse, seria o murchar da rosa esmaiada de cores e aromas.
Assim, a altiva donzella não queria-ser amada, e preferia condemnar seu coração ardente á eterna viuvez.
Desfolhava ella estas scismas, e como os olhos, o pensamento ás vezes submergia-se no oceano para sondar a profundeza de suas magoas, outras en-golphava-se no azul diaphano do Armamento, talvez entrevendo ali os gosos angélicos de um amor infeliz na terra.
2 0 4 AS MINAS DE PRATA
Nisto, Esteves passando a cabeça pela escoti-lha, disse e repetiu em voz alta :
— Dona, seu pae a está chamando I Rachel, depois de um instante tomado para des
pedir-se de seus caros pensamentos e entrar na realidade, percorreu com os olhos a vasta superfície dos mares á ver si a chalupa já apparecia, e com passo lento desceu a escada.
Samuel e os dois hollandezes estavam encerrados no camarim de estado próximo á salla dermas. O velho rabino esperava a filha encostado á grade:
— Estamos fundeados, Rachel ? — Sim, pae. — Em que paragem ? A terra fica próxima ? — A terra nos está a pequena distancia pela
direita, e é da bahia de S. Sebastião, á entrada da qual nos achamos.
O velho voltou-se para os flamengos com um sorriso, ao qual Hugo respondeu :
— Bem vos dizia eu 1... Samuel tomou entre as suas uma das mãos
da judia, e acsnou-lhe para que se encostasse mais á grade:
— Rachel, filha minha, o Deus de Israel pw
AS MINAS DE PRATA 2 0 5
?m tuas mãos, como outr'ora nas mãos de Es-ther, a salvação de teu povo. Tu podes resti-tuir a vida a teu páè* e evitar a ruína de todos as teus irmãos da Bahia, bem como a morte destes dois infelizes que se sacrificaram para nosso bem commum.
— Que é preciso que faça tua filha, Samuel, para o conseguir?
— Basta quo tu nos passes um ferro dè què necessitamos.
— Qüe pretendes fazer com elle?... — Quebrar o cadeado das algemas de Hugo
e Dick; elles livres, arrombaremos a porta da sala d'armas, cahiremos sobre a gente descuidada e ficaremos senhores do navio.
— Vós unicamente?... Três pessoas!... — Três pessoas resolvidas a morrer ou resga
tar sua vida... Não sabes' 0 que valem. De mais, tu nos aüxiliarás, distrahindo alguns deites, emquanto de sorpresa e silenciosamente iremos acabando os outros.
— Suppohdo mesmo què sejaes bem succèdido e vos apodereis do navio, que tereis ganho, com isto ? Falta batei para vos trsnsportar á terra, onde alias sÓ achareis inimigos: a chalupa chegará, e
Vol. v ~ 18
206 AS MÍNAS DE PRATA
como resistireis á doze homens destemidos e va*
lentes como leões? . <•. j
— Far-nos-hemos de vela, de modo que a cha* ".> lupa já nos não encontrará 1 acodiu Hugo. .
— Para onde? Para a Europa ! Com uma tri-polação de dois bomens, um velho e uma donzella ? disse Rachel escarnecendo.
— Vede si tinha eu rasão ! disse Dick. Meu plano é melhor 1 Arrombamos a sala d'armas e tomamos conta do payol sem que nos percebam. Accendemps a mecha e esperamos que volte a chalupa ; quando estiverem todos a bordo,,um fica de sentinella com a mecha, e os outros sobem ao convez para intimar ao inimigo que se renda, ou se disponha a saltar pelos ares. Nãp ha quem resista a isto 1 Entregam-se a discríp-ção ; suffocaremos os chefes para exemplo, e nos , serviremos da maruja para navegar rumo de Rol-landa, tendo o cuidado de um de nós conservar sempre a mecha accesa e prompta para o que der
e vier.
Rachel abriu o lábio crespo de cholera o des-
preso :
— Pensaes que o mancebo que commanda este
navio e o tomou a mão armada se renderá com
AS MINAS DE ÍRATA 207
essa ameaça? Pois então sabei, que doas vezes já estivestes para voar, uma por sua própria mão, e outra por ordem delia ! Perdei a esperança, Sr. Djck; vosso plano é peior que o de vosso amigo, pois com elle caminhaes á uma morte certa e horrível.
— Rachel avisa bem. O melhor parecer estou que é o primeiro. Falta-nos, é certo, batei para ganhar a terra, mas estes irmãos sabem nadar, e por esse modo se poderão salvar e á vós também, filha. Quanto á mira, sacrifico-me de bom grado ; como Moysés, não entrarei na terra santa; porém meu espirito acompanhará o povo de Israel.
— Em caso algum, pae, eu te abandonarei. Nossa sorte ha de ser commum na adversidade, como foi na ventura.
— Também nenhum de nós consentiria em deixar-vos no poder do inimigo. Podemos salvar-vos a ambos juntamente.
— E que fareis em terra de inimigos?
— Esqueces que temos irmãos em S. Sebastião, Rachel, e que delles devemos esperar todo o auxilio. Podemos ahi aguardar occultos a oppor-tunidade de passar á Europa I...
208 AS MINAS DE PRATA
A judia não replicou ; com os olhos baixos e a fronte pensatiya conservou-se junto á grade. (**
— Não ha tempo a perder 1 disse Hugo; — Certo I Vae, Rachel, e traz-nos o ferro ne
cessário. — Como o posso eu trazer que o não per
cebam ? — Envolto nas roupas ; ninguém suspeita de
ti. Emquanto voltas, nós acabaremos de concertar o melhor modo de salvar nossa vida e liberdade.
Rachel ergueu a cabeça, e fitou no pae um olhar brilhante.
— Não, pae; tua filha Rachel não pôde ajudar-te nesse intento.
— Por que motivo, Rachel? perguntou o ju- : deu sorpreso.
— Porque trabiria aquelle a quem agradece a tua vida, pois a tendo em suas mãos, bem como a desses homens ingratos, generosamente a poupou.
— E queres tu, filha desnaturada, trahir aquelle que te deu o ser, sacrificar teus irmãos e renegar da religião de teus pães?
— A religião de meus pães, que do ti aprendi,, me ordena que respeite como cousa sagrada a fé
AS MINAS DE PRATA 2 0 9
do juramento. Jurei á Estacio que não praticaria acto algum que lhe pôdesse ser nocivo ; e cumprirei meu juramento.
— Não has de cumpri-lo, porque um juramento dado á um christão é falso e nüllo, de nada vale!... ,
— Quando 0 dei não me lembrei qual era a sua religião, e somente qae o dava á um rióbre e leal cavàlleiro, em troca da extrema delicadeza com que por elle fui tratada. Si etle depositou bastante confiança em mim para acreditar-me sob a fé e respeito de uma religião que não com-munga, não serei eu que lhè dê o exemplo de despreso ao Deus de Abraham, quebrando a palavra sellada com sua invocação. E quando não tivesse jurado... Qtiè idéà farias tu, pae, de uma donzella prisioneira que se aproveítirsSé da liberdade consentida por quem respeitou seu recato e fragilidade, para promover a morte e rUina do bemfoitor ?
O velho rabino estava absorto em seu espanto e indignação.
— Sinto não ter aqui Um ferro para te im-molar.
— Terás tempo para o sacrifício.
2 1 0 AS MINAS DE PRATA
— Retira-te de minha presença ! — Eu obedecerei, pae; mas quero levar a pro
messa de que abandonarás teu intento. — Mais que nunca insistirei nelle, - para vingar
em ti a religião de meus pães que trabiste, e em teu amante a minha honra que profanaste.
— Insultas tua filha ? Eu te perdôo, porque a cholera te cega ; senão havias de te lembrar que não podes tu, pae, me pedir contas de tua honra I
O velho vergou a fronte encanecida. Tal é o poder da virtude que aquella fronte respeitável, ornada de uma tríplice coroa, da paternidade, sacerdócio e velhice, ' se humilhava subjugada ao olhar límpido de uma virgem.
— Espero tua promessa, pae I — Deixa-me I — Si m'a recusas, serei obrigada a avisar de
teus intentes aquelle contra quem tramas! — Completa a tua obra! Denuncia teu pae,
fructo perverso de meu sangue!... — Te denunciarei, sim, pois que é esta a pa
lavra ; te denunciarei para ter o direito de aceitar a vida e liberdade tua que me foi por elle concedida.
AS MINAS DE PRATA 211
Acentuando estas palavras enérgicas, a donzella retira-se com dignidade, pondo termo á scena desagradável.
„ Chegada que foi á tolda avistou uma vela dobrando a ponta do costão; á medida que se ap-proximava, as conjecturas de que fosse a chalupa se tornavam mais fortes ; até que afinal não houve mais duvida. Estacio á popa, com o pé regia o leme, e tinha na mão as escotas das velas. os indios se deitavam sobre os remos com furor, excitados por Antão que também remava. O batei, carregado com o panno que o vento enfunava, trazia uma borda á raso da onda e a outra levantada até a quilba.
Apenas chegou à falia do bergantim, ouviu-se o grito do mancebo :
— Suspendei o ferro!... Esteves e os outros atiraram-se ao cabrestante;
como já a amarra estivesse a pique, em pouco a anchora soltou-se da vaza e pendeu aos flancos do navio. Atracou a chalupa, que foi n'um momento içada aos cachorros. Os indios espalharam-se pelas enxarxias ; as velas desfraldadas ao vento, como brancas azas, imprimiram ao navio o suave deslise de um cysne.
^ 2 As 'iujfft H>k Í R % A
Estacio eiplòròu de iióvo 0 hdrisorítè S ver si era perseguido, e oàda descobrindo de suspeito, retirou á um canto para guardar na cirità íe malhas ô papel lacrado, què lhè entregara o frade. •Berh desejos tiriha, elle de devorar ó manúscriplò, unicá fatal herança, uo tantas 'fadigas, perigos e 'dissabores lhe tinha já custado, equem sabe quantas "desgraças ainda reservava. Mas antes de tudo ã situação Critica e meliríoYòsa em què se achava exigia toda sua attençãò : elle contava com certeza que havia de ser perseguido, e admira va-se muito de tião ter já á vista os que lhe deviam dar "càçà.
Singrava o bergantim ligeiramente á bòlini, qa'ah'dó Rachel; qué assistira dè parte a toda a scena anterior, sem tirar os òlhós do mancebo, achegou-se delle, pensando que já sua presença não lhe causaria estorvo :
— Careço fallàr-vos, disse etla. — Estou sempre prompto á escütat-vos, senhora. — Devo avisar-vos dé qüe trámafo contra vós. — Quem?... A minha gente?... — Não : os flamengos. — Ah! — Seu plano é quebrar o cadeado dás alge-
ASVÍNAS DE PRATA 213
m3S, arrombarem a sala d'armes , e vos ameaçarem com a explosão do navio !
— Mas como podem levar essa empresa ao caho sgm auxilio de alguém? Para quebrar o cadeado das algemas era preciso que vosso pae os ajudasse! Entrava elle na conspiração?...
— Não sei: aprecatae-vos!... — Bem ! Menos vos agradeço, senhora, que me
lisongeio de ter formado tão justa idéa de vosso nobre caracter e animo grande. Não me quizes-tes ficar em divida de generosidade; em paga da liberdade que vos dei, me salvaes a vida e os graves interesses que me estão confiados!...
— Julgaes que somente esta rasão fosse bastante para dar-me a força de desobedecer a meu pae? perguntou Rachel com ardente vivacidade. Não; essa força, só vós me inspirastes I
Conhecendo pelo olhar iuterrogador de Estacio que se havia excedido, continuou mais calma :
— A gratidão pelos vossos benefícios me cap-tivou. Vos devo a salvação de meu pae, e uma cousa que uma donzella não esquece nunca , o respeito á sua virtude e recato.
— Isso não o fiz á vós senão á mim e aos meus próprios sentimentos.
214 AS MÍNAS DE PRATA
— Embora ! Estacio distrahe um instante a altenção para exa
minar um ponto branco que alveja ao longe pela popa do navio sobre a linha azulada dos mares. O receio logo se desvanece ; é a vela isolada de algum pescador, que segue rumo opposto. Aju*. dia acompanhara com anciedade os movimentos do mancebo, emquanto elle examinava a canoa.
— A mesma causa que me impoz o dever imperioso de prevenir-vos contra os meus, a gratidão, creio eu que dá também o direito de me interessar pela fortuna vossa. Não attribui pois a receio a pergunta que desejo fazer-vos.
— Tantas provas já destes de coragem, que não poderia nunca suppor esse motivo.
— Dizei-me: correis ainda algum perigo?... — E grande !... Vou ser perseguido por forças
superiores, si já não o sou ! — Mas não são elles vossos irmãos ? Não ten
des o mesmo Deus e o mesmo rei? Como se tornaram vossos inimigos?...
— Não vos posso contar a minha historia. Asseguro-vos porem que sigo o caminho direito, e defendo uma causa justa. Aos outros, o Senhor os julgará.
AS MINAS DE PRATA 2 1 5
As previsões de Estacio eram exactas. A'quella hora já elle era perseguido por forças muito superiores.
E' de lembrar que o P.° Molina ficara em pé na praia do Boqueirão, quando a chalupa se afastara. Longe de suecumbir, a queda era para o jesuita, como para Antheu, o recobro do vigor. Naquelle instante mesmo, em que seu plano combinado de ha tantos annos acabava de ser anni-quillado, elle formulava rapidamente outro tão.audaz e engenhoso como o primeiro.
Quando Estacio surgira de repente na casa de D. Diogo de Mariz, o Visitador que o deixara, alem de pobre e baldo de recursos, preso no Cas-tollo do mar, ficou atordoado com a súbita appa-rição. Como poderá elle tão depressa livrar-se da prisão e fazer a viagem de S. Sebastião naquella epocha longa e penosa ? Habituado a não deixar que facto algum passasse, sem lhe investigar a causa , estivera desde aquelle instante a cogitar sobre o accidente. Aquella vinda repentina, coincidindo com a chegada do Governador, só tinha uma explicação. D., Francisco de Sousa passara pela Bahia, e trouxera comsigo o herdeiro de Roberio Dias para facilitar a empresa.
216 AS MINAS DE PRATA
A fuga de Estacio' na chalupa com direcção á barra, acabava de derrocar a sua primeira suppo-sição. O mancebo não era instrumento do Governador, mas servia aos seus próprios interesses: } fora da barra estava naturalmente fundeado algum navio, qüe o esperava para fazer-se á veia, rlimo da Bahia.
Sem demorar-se desta vez em buscar a explicação dos extrarihós acontecimentos, comprehen-deu o P.e Molina que o essencial era salvar Estacio e por conseguinte o roteiro das garras de D. Francisco de Sousa : depois trataria de conquista-lo do inimigo mais fraco. O Visitador dirigiu-se pois apressado á rua dé S. José, onde o povo estava ainda em corhmóçãó por causa dò -| arrojo de Estacio. A gente da rua fallava da j evasão; os guardas á quem já o Governador j transmittira os signaes do mancebo, interrogavam j os vários grupos.
Molina volteou por entre estes como uma bespa; í em pouco não se ouvia senão este ruge-ruge: « Foi para as bandas do campo dos Ciganos: Vi* l rão-no montar a cavallo nos ranchos dà Matapòr-:* cos! Levava' uma bandeira de- vinte homens bem armados. »
AS MINAS DE PRATA 2 Í 7
O frade buscava assim derrotar a vigilância do Governador , fazendo-o perder o rastro á caça. Com effeito o rumor foi crescendo ; com pouco já
t ninguém duvidava que o fugitivo houvesse tomado o caminho de S. Vicente : e neste sentido foram dirigidas todas as pesquisas.
Então o Visitador recolheu ao Collegio, e deu suas ordens para que o galeão Scwto Ignacio*, da Companhia, se fizesse á vela immediatamente. Quando suspendiam o ferro, o sol marcava no quadrante do Castello meio dia em ponto. Molina devorando com os olhos os horisontes acanhados para a impaciência de seu audaz pensamento exclamava :
— Elle tem quatro horas de avanço sobre mim nesta viagem ; mas eu tenho sobre elle vinte an-nos de experiência na viagem da vida.
Passando o forte do Leme, descobriram de bordo do galeão quatro embarcações què viravam de amuras na altura da Rasa e se faziam no bordo do norte. Seria essa conserva mandada á caça de Estacio pelo Governador? Foi a primeira suspeita do frade; e bem fundada. Molina ignorava a circumstancia do encontro no mar de D. Francisco de Sousa com Estacio, a
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2 1 8 AS MINAS DE PRATA
qual fez abortar seu planq. Perdida a esperança de prender o mancebo na cidade, o Governador se lembrara do bergantim, e penscu que devia estar fundeado em algum lugar fora da bahia, á espera de seu arrojado commandante. Emquanto pois a guarda perseguia o fugitivo por terra, ordens promptas eram dadas para a partida da esquadra que já sulcava os mares sob as ordens do próprio D. Francisco. '
Compunha-se ella de um só vaso de alto bordo para o caso de combate ; os mais eram três galés de vinte e quatro ou desoito bancos. O Governador previdente, escolhera de preferencia os navios de remo, como mais próprios para a caça do velleiro bergantim. Quando a armada achou-se completamente alagada, só descobriu na extrema do horisonte o velame de um navio que sumia-se como um branco alcyone, adejando para os confins do mundo.
A' tarde porem eom as sombras aquelle ponto branco desvaneceu-se. Os navios, por ordem do Governador, se distanciaram uns dos outros, seguindo rumos parallelos : era uma precaução para o caso de que o bergantim por estratégia mudasSí a rota durante a noite, ou amarando-se ou de-
AS MÍNAS DE PRATA ^19
mandando a terra. Ao romper d'alva a vigia do cesto de gavia assignalou ainda a mesma vela sempre á proa direita : mas nenhum avanço tinha a esquadra ganho sobre a caça.
Três dias passaram sem maior alteração; a caça proseguia com igual affinco; mas o bergantim conservava sempre a mesma distancia -, a rapidez da singradura zombava dos esforços dfbs remos. Estacio já se considerava salvo, quando uma circumstancia lhe fez perder toda a esperança. Gonçalo desde pela manhã que tinha o nariz ao faro e a mão sobre os olhos, explorando a extrema dos horisontes e as nuvens que se erguiam do oceano : até que a final murchou e encolheu qual rã em tempo seco.
• *— O vento vae rondar!... disse elle a Estacio com uma voz triste.
O mancebo comprehendeu o alcance da observação ; mas desejou saber ao justo o qüe pensava o Antão.
— Que tem isto? — Tem que d'aqui a uma hora estaremos bor-
dejando, emquanto as malditas galés, que poucc se importam com o vento, virão sobre nós direitas como uma bala.
2 2 0 AS MINAS DE PRATA
— E quando pensaes que nos alcançarão ? — Hunn!... Pela noite adiante, ou no mais
tardar pela madrugada. Eram sete horas da manhã. Nesse instante Ra
chel subia a tolda, e approximou-se do mancebo para sauda-Io : ella conheceu logo em sua fronte carregada e na attitude do contramestre, que a situação peiorava, e inquiriu com empenho do que era passado.
— Não vos assusteis, senhora ! E' um pequeno accidente que já tinha previsto, respondeu Estacio com um sorriso.
Voltando-se então para mestre Gonçalo, fallou-Ihe com serena firmeza :
— A minha resolução está tomada, Antão. O combate com forças tão superiores fora uma loucura. Além do mais, toda esta perseguição nada tem comvosco e só comigo ; eu commetteria um crime sacrificando tantas vidas á meu interesse individual. Portanto desde este momento vos entrego o commando do navio com as seguintes determinações, que baveis de jurar-me cumprir á risca. Esta dama e seu pae são livres, e os confio de vossa honra. Os prisioneiros, entregareis á D. Diogo de Menezes, si vos deixarem ir em
AS MINAS DE PRATA 2 2 1
liberdade, senão ao próprio D.- Francisco de Sousa com esta declaração, que trate de guardar o Brasil contra os flamengos...
— Mas vós?... exclamou Rachel em anciã. — Sim, vós, Sr. Estacio, que contaes fazer?
perguntou Antão.
Fazendo-lhe um gesto de espera, o mancebo respondeu primeiro á interrogação da moça :
— Ficae tranquilla. Levo comigo o único documento que podia comprometter vosso pae.
— E' a segunda vez que me suppondes movida por um receio!... Que me importa tudo isso? exclamou a judia arrebatada pela paixão. E' de vós, do que pretendeis fazer, que me afflijo e inquieto. Oovides, senhor?
Estacio fitou a donzella surpreza ; pela primeira vez uma suspeita atravessou-lhe o espirito.
— Também eu, acodiu o contramestre ; preciso saber para meu governo quaes são vossas intenções.
— Não vos inquieteis ambos comigo. Meu destino vae cumprir-se.
Depois espraiando os olhos pela vastidão dos mares, disse a meia voz :
— O oceano é bastante vasto e profundo para
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esconder-me á cólera dos homens e dos reis, á quem elles servem !
Rachel pendeu ao seio a fronte abatida, como o cálice de uma flor que verga para verter o or-valho da noite; duas lagrimas brilharam nas pu-pillas negras, e perlaram as rosas desbotadas de suas faces.
Quanto a Antão, tinha elle empinado a cabeça como um lagarto, quando se aquenta ao sol e percebe rumor suspeito :
— Visto isto pretendeis lançar-vos ao mar?
— No momento em que vierem sobre nós. Não tenho outro recurso.
— Heis de estar lembrado do que nos disse João Fogaça, quando nos mandou que vos seguíssemos? Pois então ficae sabendo que d'ahi não nos afastamos eu e minha gente. Hemos de seguir-vos até o inferno.
— Tal não fareis, Antão. Antes disso mandou elle que me obedecesseis, e o contrario vos ordeno eu.
— Des que me entregastes o commando deste navio, ninguém mais senão eu dá ordens aqui Sois meu prisioneiro sob palavra, e é escusado
AS MINAS DE PRATA 223
vos atirardes pela borda fora, porque atraz irá quem vos traga.
Estacio levantou os horabros. 0 contra-mestre •bufando como um boto, ganhou a proa para dar as ordens: immediatamente um indio ganhou uma ponta da mezena, e outro approximou-se do cas-tello de popa, promptos a se lançarem á água atraz do mancebo. As velas começaram a arfar batendo os mastros : logo apoz o vento escasseou, e rondou porá lesnordeste : o receio do mestre se realisava.
Estacio ficara recostadoá amurada, olhando entre admirado e triste a linda judia que tinha ainda a fronte pendida e magoada.
— Porque separaes agora o vosso do nosso destino?... Mais arriscada emprezacommettestes do que a de tentar o sorte do combate com os que vos perseguem.
— Engano vosso I Suas embarcações são de remo; manobram com mais rapidez que não o podemos fazer.
— Em todo o caso, esse meio extremo, de que por duas vezes lançastes mão para deffender^vos... Porque o não empregaes agora ?
— De fazer voar o navio?.... Mas naquella
2 2 4 AS MINAS DE PRATA
occasião eu servia El-rei e a pátria; agora serviria apenas meu interesse ; e fora um crime infame sacrificar tantas vidas 1...
— A minha, não; porque eu a dera de bom grado para vosso bem I... •
— Obrigado, senhora ; conservae-a para a ventura que vos espera.
— Ventura I... á mim. - murmurou a donzella. — Demais, toda a esperança não é perdida!
disse o mancebo com um sorriso fallaz. — Julgaes poder escapar ao perigo?... ;
— Deus ainda não me abandonou I
— Oh ! salvae-vos... Em nome delia... de Ignez, eu vos supplico I
— Obiigado!... disçe o mancebo. Não ima-ginaes que bem me fizestes I... Neste momento supremo de minha vida representastes aos meus olhos a imagem delia. Parece-se comvosco na belleza e na bondade.
'Estacio travara da mão de Rachel, e ficaram ambos presos daquelle mutuo anhelo ; elle affa-gando a doce illusão que despertara em seu espirito ; ella contente de ser amada um rápido instante ainda mesmo sob a invocação de sua rival feliz.
AS MINAS DE PRATA 2 2 5
Por esse tempo debuxava-se na linha azul do oceano um relevo escuro. Logo um murmúrio confuso percorreu os bordos do bergantim.
t —Terra!... terra!... disserão vozes esparsas. — Onde ? perguntou Estacio voltando-se. — Pela proa ! — O Antão Gonçalo ? — Ei-Io rente ! acodiu o mestre. — Sabeis qual terra seja aquella ? — São os Abrolhos 1 Os olhos de Estacio brilharam, e volveram rá
pidos para as velas da frota do Governador, que avançava com velocidade.
A voz murmurou-lhe nos lábios: — Si...
^0Gs)<3^
IX
Avança o P,e Molina a sua reserva,
Ia em meio a noite. Estava sereno o céo, plácido o mar. A treva,
densa bastante, transudava á espaços umas tênues pbosphorecencias, que mais cegavam. Pareciam as ondulações da escuridade.
Navevava o galeão Santo Ignacio na altura dos Abrolhos,, mas um tanto amarado.
2 2 8 AS MINAS DE PRATA
A Companhia de Jesus sabia o valor ao tempo. Antes que os inglezes inventassem o conhecido anexim industrial, tinham os Padres descoberto e applicado a equação desse precioso capital, que uma vez consumido, não mais se reproduz.
Mas era isso pelo século XVII: então ainda estava recôndita no futuro a famosa doutrina tão apregoada agora sobre a indolência da raça latina. Não andavam esquecidas já as gloriosas conquis- | tas do povo, em numero, pequeno, que pelo esforço se fizera grande bastante para assim encher o maior império da terra. Ainda o reino portu- • guez se dilatava tão vasto pela superfície da terra, que não havia noite completa para elle; o sol illuminava sempre alguma de suas extremas.
Esta admirável epopéa do esforço humano, can- i tada por Camões, foi trabalhada pela raça latina, | como devia ser mais tarde a epopéa franceza da liberdade. Estava porém reservada ao século dezenove a triste missão de renegar sua styrpe. Não se lembra este século ingrato, quo elle veio como toda a civilização moderna, do latinisrno?
A companhia de Jesus foi no século XVII o foco das forças vivas dessa raça illustre: era natural que as dirigisse á despir o pensamento das
AS MINAS DE PRATA 2 2 9
duas grandes materialidades que o opprimem : o tempo e o espaço.
Tinham os jesuítas navios de superior construc-#ção e grande velocidade, como não os havia nas armadas reaes. Dispunha El-rei da autoridade, do erário, das recompensas, de grandes estaleiros e ma--tas seculares ; os frades possuíam, parte, e mais, que tudo isso, possuíam o gênio da sciencia.
O galeão Santo Ignacio era um primor de construcção naval; partido muitas horas depois da frota do Governador, ao cahir da tarde es* lava fronteiro com ella. Ao lado do capitão e junto a bitacula, observava o P.e Molina a posição das caravellas de El-rei.
— Mais ao largo 1 recommendou elle. A tenção do jesuita era burlar a caça de D.
Francisco de Souza attrahindo-o ao galeão. Emquanto isto, o bergantim de Estacio se poria
fora do alcance do Governador. Já ficou explicada essa idéa, que longe de ser
insensatez do jesuita, era filha de sua famosa experiência. Cora El-rei e o Governador a luta, sobre renhida, era de successo dúbio, senão contrario. Com Estacio o triumpho não inspirava receio. Graças á velocidade do galeão, talvez, depois
Vol. v 20
230 AS BINAS DE PRATA
de burlada a frota, podesse o P." Molina alcançar o bergantim; no peior caso chegaria sobre elle á cidade do Salvador, e nesse pleno domínio de Companhia, Estacio não lhe escaparia.
Para realisar seu plano carecia o P. Molina da sombra ; e a sombra abi vinha trazida pela noite. A's ultimas resteas do crepúsculo, viu o Visitador do mar largo a frota do Governador já fronteira, o bergantim algumas milhas por davante, e os Abrolhos, que destacavam no horisonte.
— Agora, disse para o capitão, podemos fazer-nos na volta de terra.
Emquanto se effectuou a manobra» subiu o jesuita ao castello de proa, e ali com os olhos dilatados pelos mares acompanhou a freta e o bergantim, até que a escuridão se interpOz Não podendo mais ver, o espirito impetuoso calculava; inquiria das estrellas o curso da noite ; da sin-gradura a velocidade da carreira; e sobre estas bases orçava o caminho feito e o que faltava para vencer a distancia.
Meada era a noite.
O P. Molina outra vez prescrutava a trcva na esperança de ver assomar o vulto escuro do bergantim á pequena distancia. Si não lhe illudira
ASM1NAS DE PRATA 2 3 1
o calculo mental, devia lhe estar a meia milha apenas, deixando pela popa á pouco menos a frota do Governador.
* Neste momento ribombou o canhão. Era a armada que intimava o inimigo para render-se. O galeão levava os fogos accesos e fora pressentido de lopge. Estava conseguido o intento do P.e Molina.
— Ao mar! ao mar!... ordenou elle* Immediatamente o canhão retroou avante. — Imbecil!... murmurou o frade. Foge e se
denuncia 1 Súbito abriu-se vasto e immenso clarão. O mar
nadou em luz. No seio da explendida irradiação desenhou-se o bergantim com as brancas voltas enfunadas pela viração. Mas foi no ápice de um instante. Apenas impellida essa grande espadana de cbamma , logo entrou no seio profundo da noite com horrível estampido.
Pela madrugada estava o galeão e flotilha junto ao theatro, da catastrophe nos Abrolhos. Os sobejos da chamma attestavam que o navio incendiado fora de facto o bergantim.
D. Francisco de .Souza tornou a S. Sebastião. O P." Molina seguiu a rota da Bahia.
2 3 2 AS MÍNAS DE PRATA
A morte de Estacio e o extermínio da tripolaçào eram cousa fora de toda a duvida. Mas o jesuita, que fazia da audácia e intelligencia do mancebo alto conceito, não admittiu a idéa de seu passamento senão depois de madura reflexão.
Inquiriu si apesar da catastrophe não seria possível que elle escapasse. Para admittir esse ponto era preciso suppor que a explosão fosse voluntária e não accidental. Nesse caso, como acreditar que tantas pessoas se sacrificassem pela salvação, de um papel?
A conclusão de toda a sua locubração foi a seguinte :
— Sem duvida, morto é ; mas partamos sempre da supposição de que ainda viva. 9
Abriu então o Visitador seu breviario , e começou de ler a ultima folha , occupação a que se dava constantemente desde a partida de S. Sebastião. Nessa folha, cumpre não esquecer, tinha elle copiado um trecho da memória do insigafí chronista da Companhia, o P.e Manoel Soares. $&
E' esta a occasião de referir a pouca noticia que nos chegou a respeito de tão importante escripto, infelizmente perdido com damno do real erário, das lettras pátrias, e da fama de seu author, que
AS MINAS DE PRATA 2 3 3
ficou obscuro, poden do tornar-se illustre com o lume de sua obra.
Do que disse o reverendo chronista na noite do capitulo, era sua memória dividida em duas partes ; em uma se tratava de saber qual destino tivera o roteiro de Roberio Dias; na outra se procurava determinar approximativamente o lugar das minas de prata.
Sobre a primeira parte, o P.e Molina estava muito mais adeantado do que o P.e Manoel Soares , pois a versão deste não chegava senão até Fernão Aynes; d'ahi em deante perdia completamente o rastro do roteiro. Mas porisso se occu-para o laborioso investigador a supprir essa lacuna, buscando traçar o itinerário que havia seguido o Moribeca na sua jornada de descoberta.
O Visitador, prevendo o caso possível de falhar o seu plano, e ver-se privado do roteiro, tinha, quando voltara furtivamente ao cartório , arrancado do ventre do alfarrábio a folha onde o P.* Manoel Soares resumira com muita clareza e concisão a linha de derrota que sem duvida seguira o descobridor das minas de prata, e o meio con-jecturado pelo qual se effectuara a descoberta.
Tinha de feito esse frade, encerrado em sua cel-
2 3 4 AS MINAS DE PRATA
lula, muitos annos depois do acontecimento, reconstruído a verdade, dissipada pela sombra dos tempos ? Ou seria quanto escrevera elle um tecido de fábulas para bordar essa mysteriosa invenção das minas de prata, com que a par de outras, se embalava a imaginação popular?
A obra do P.e Soares tinha o dunho da maior exactidão; elle a bebera na fonte da historia, onda sonora que deslisa mansamente atra vez das idades; na voz dos séculos, que vulgarmente cha«-mam tradicçâo oral; não impura e toldada, como muitas vezes apparece á tona da publicidade, mas límpida e pura, filtrada pela consciência religiosa, no confissionario.
O confissionario , foi como o púlpito , outro grande pedestal da influencia dos jesuítas; de um moviam ellesas massas do povo sob a invocação de Deus; do outro prescrutavanl a consciência, o sacrario da família e dirigiam as forças* vivas da sociedade. O povo, a robustez phisica, o braço possante ; a educação, o poder intellectual, a cabeça directora ; que mais lhes faltava para a theocra-cia, senão a consagração do nome?... ' '
Foi no confissionario què o P.e Soares durante annos de inquérito, apanhou os fragmentos espar-
AS MINAS DE PRATA 2 3 5
sos, com que chegou laboriosamente a construir o seu edifício. Quasi toda a gente contemporânea de Moribeca veio por sua vez dizer quanto sabia;
'e assim de elo em elo por essa cadeia de indivíduos, attingira elle ao ponto á que visava : descobrira um dos acostados que haviam acompanhado Roberio Dias na jornada de descoberta.
Era a declaração desse homem o trecho exarado na folha extrahida do alfarrábio pelo P.e Molina, e por elle' reduzida á cinzas, depois de a haver copiado era cifra na capa do seu breviario. Ahi a podemos nós lêr agora , acompanhando o indicador do jesuita, que vae designando as palavras á medida que as soletra e medita:
« Gonçalo Inhaúma, homem pardo, forro, morador em Petinga , onde vivia de caieiro, de idade sessenta annos. Ouvi-o de confissão aos
* 20 de outubro do anno da graça de Nosso Senhor Jesus Christo de 1603. Sobre o assurrtpto proposto, disse ser verdade ter acompanhado Ro* berio Dias, vulgo Moribeca, até atem do Rio dé Contas em uma serra bastaute extensa, que tem em cima uma grande chapada, duas jornadas das cabeceiras do rio, direito para o nascente. Ahi pousaram dias, á tiro de arcabuz de uma grota
2 3 6 AS MINAS DE PRATA
profundíssima, bem conhecida dos bandeíristas por cova do feiticeiro , que o gentio chama cova do pagé. Conta que viu Moribeca entrar uma tarde na cova, e pouco depois sahir com um indio de grande idade, pois ia arcado á um bordão ; e ambos sumiram-se no matto, onde ficaram até a outra noite em que foram de volta. E logo levantaram pouso, e tornaram á esta cidade do Salvador, onde tendo ouvido que o Moribeca desço-; brira muitas e ricas minas de prata, bateu-lhe a titella que fosse ensinada a paragem delia peloi dito indio, a qual petos seus cálculos deve ficar ali perto, rumo do poente, em terreno alagado,, porque o dito voltou molhado , não tendo chovido. »
A' margem da folha que essa declaração continha, lia-se em tinta vermelha uma nota :—Fal-leceu em fins de 1605.
Oito dias depois da explosão do bergantim dava fundo na Bahia do Salvador o galeão Santo Igna-cio; e antes de uma hora o Visitador achava-se restjtuido á sua cella na Casa Provincial do Brasil, acompanhado do P.e Domingos Rodrigues, á quem ao entrar fizera signal para o seguir. Fechando a porta mandou que chamassem ao collegio, da
AS MINAS DE PRATA 2 3 7
parte do Provincial, mestre Joaquim Braz, laber-neiro na travessa do Palácio.
O judengo vivia á um mez, desde a fatal noite da evasão dos flamengos em contínuos sobresaltos ; a cada instante julgava elle que lhe surgia pela frente alguma escolta incumbida de prende-lo ; e todas as manhãs admirava-se ingenuamente de achar-se deitado em seu catre, e não suspenso á corda entre três páos. Ao receber do recado que lhe trouxe o leigo do collegio, sentiu o taberneixo um bate-bate de coração, que não presagiava bem daquelle Chamado.
Entretanto praticavam juntos o Visitador e o P.* Rodrigues :
— Padre, cingi vossos cins, e ponde-vos á caminho para os Ilhéos; dissera o Visitador.
— Neste mesmo instante, si Vossa Reverencia o ordena
— Tomaeotempo necessário para os aprestos indispensáveis. Em lá. chegando levantae a tribu dos Aymorés, e vinde acampa-la nas immedia-ções da cidade, de onde apenas chegado me en-viareis aviso. <
Q P.e Rodrigues curvou a fronte descontente;
2 3 8 AS MINAS DE PRATA
— Acha V. Paternidade alguma difficuldade neste assumpto?
— Nenhuma, senão que meus esforços de tantos annos vão ser anniquilados. Levantar de seu aldeamento aquelle gentio feroz é atira-lo de novo ás brenhas!
— E' um mal sem duvida; mas é necessário, P.e Rodrigues. Cumpra com o que lhe ordeno, e nos favoreça o' Senhpr que lhe darei mil tribus como a dos Aymorés á cathequisar, sem receio de que ambiciosos colonos vão captivar os pobres neophitos, como agora succede. Não vale esse grande beneficio, e o maior poder da Companhia nesta e outras províncias, algum sacrifício?
— Sem duvida, P.e Visitador; nem eü hesitei um instante na obediência. Só não pude fechar-me á tristeza que me penetrou , pensando què minha obra ia ser destruída ; fraqueza minha, que V. Reverencia escusará.
— Sentimento louvável, que testemunha do vosso zelo no serviço da religião e da ternura de vosso coração. Qual o pae que se não entristeça com âV má sorte dos filhos, e não são vossos filhos espi* rituaes essas míseras, almas arrancadas á barbaria,'^
Arranharam á perta. O P / Rodrigues despe-
AS MINAS DE PRATA 2 3 9
diu-se do Visitador ; e sabido elle, entrou o leigo á dar conta do recado que levara á mestre Braz. Ficava o tiberneiro com o pé na soleira para obedecer ás: ordens do Reverendo P.e Provincial.
Aproveitou o jesuita esse instante vago para folhear, na lettra—B—o livro negro da irmandade da Companhia, Onde encontrou, conforme esperava, o assento concebido nestes termos:
«.Braz Joaquim, ilhéo, quarenta e oito annos, jurado aos 10 de setembro de 1593. Máu homem e perigoso: grandíssima astucia, nenhuma fé. Dizem ter parte com os mercadores judeos, á quem ajuda no contrabando. Pòz agora taberna na travessa de Palácio, e dá tavolagem nos fundos da casa. »
Chegou á final o cujo; e entrou desfàzcndb-se em mesuras e rapapés:
— Folgo muito de tornar a ver-vos, mestre Braz. Quando nos separamos em Lisboa nenhum de nós pensava encontrar-se mais neste valia de lagrimas; porem taesi voltas dá o mundo !
— Estou como conhecendo V. Paternidade; mas esta minha memorial... Os annos já não são poucos e a carga por demais pesada...
2 4 0 AS MINAS DE PRATA
— Então já vos não lembraes de mim? replicou o jesuita sorrindo.
— Tenho uma idéa longe... Mas em verdade!' — Ora vou avivar-vos a memória. Quanto sè
muda em três annosl... Pois tinheis excellente re-miniscencia. ir
O taberneiro ouviu o rir zombeteiro do fradej:\ e pareceu-lhe este som com o de uma serrilha que lhe passasse pelas longas orelhas.
— Já vos esqueceu o galeão Rozario? >— — Sim ; estou agora me lembrando !
— Ainda bem l E da ceiata que fizestes á bordo com certo capitão D. Annibal e mais um rapaz ppr nome Anselmo, sem fallar do mestre gageiro l
— Disso não, e penso que V. Paternidade está enganado; mas bem me lembro de ter visto o P.e Mestre a bordo e de havermos feito juntos um pedaço da jornada de Hespanha !
— Justamente ; e por signal que antes da partida fpstes aos paços de D. Francisco de Souza?
— Eu, Braz Joaquim, P.e Mestre! E' falso testemunho de quem o disse.
— E uma vez láé commettestes a imprudeneíiAií de referir ao fidalgo tudo quanto tinheis ouvido a
AS MINAS DE PRATA, 241
bordo ; e o que é ainda mais grave certas invenções á meu respeito!
— Pois eu era capaz de semelhante cousa, eu um irmão da Companhia ?
— Bom ; eis vossa memória. que se aviva ! Lembrais-vos que sois irmão da Companhia t Mas é justamente isto que torna mais grave a culpa ; pois occultastes de ura irmão tão importante segredo para ir vende-lo á um fidalgo por ouro.
— Mas tal não ha, P.e Mestre. Eu vos juro pela cruz benta em como sou innocente.
— Jurae !... disse o frade. Com gesto magestoso apresentou-lhe a cruz de
prata que trazia1 suspensa ao rosário, e cravou nelle os olhos fulminantes.
O taberneiro tremeu até as entranhas ; os cabellos erriçaram-se sobre a fronte ; -ficou birto e liviJo, como galvanisado pelo terror.
—• Não... Não posso !'... ••'—-• Ah ! Pensaste que tua alma corrompida tio
vicio havia de ficar impenetrável á luz do servo do Senhor?... Imbecil!... Vou confundir-te em tua aleivosia e maldade, repetindo palavra por palavra o que fizeste e disseste em casa do fidalgo.
O P." Molina referiu quanto elle havia tirado de Vol. v 21
242 AS MINAS DE PRATA
suas locubrações e dos factos que haviam chegado ao seu conhecimento. A exactidão da narração era tal, que o taberneiro cahiu de joelhos, com as mãos nos peitos:
— D. Francisco me trahiul... —- D. Francisco a ninguém revelou o que pas
sou comvosco. — E donde o sabeis vós então?... O P." Molina ergueu o index, como a haste da
cruz: — Do céo I... E realmente era do céo que lhe vinha aquelle
poderoso raio capaz de devassar o arcano da alheia consciência, e a poderosa faculdade que de centelhas esparsas tirava a luz explendida da verdade.
O mísero ficou fulminado. O frade acabando de o esmagar- com os olhos carregados de severidade, continuou :
— Eu vos tenho fechado em minha mão, e posso com um sopro des&zer-vos no ar, como esta poeiraj de que sois formado. Nenhum dos feios crimes de vossa vida me é desconhecido; traficaes por contrabando, daes tavolagem á noite calada, e cons-piraes com os judeus contra El-rei e seu Governador, ir ,
A& MINAS DE PRATA 2 4 3
— Compaixão, Padre; .niisericQfidia de um nu* sero peccador!...
— Misericórdia, queço te-la, em nomeidoDeus Clemente, si arrependido romperdes com o passado igoominioso.. Não mais contrabando, nem jogos , nem commercio com hereges ; reduzireis vosso trafegot ao ganho. licito e honesto. Para remir as culpas antigas deitareis no tronco dos pobres uma esmola de quinhentos cruzados novos. Quanto á traição que praticastes com a Companhia á respeito do segredo das minas de, prata, a punição q,ue vos dou é reparar o mal que fizestes.
0 Braz soltou um gemido doloroso, e balbuciou compungido :
— Gastigae-rae, Padre. Eu mereci por minha culpa e minha, npxuna euilipa. ;n i
— Aquelle á quem; pretendestes roubar o roteiro entrou na posse delle?
— O filho de Roberio Dias ? — 0 navio em que vinha de S, Sebastião voou
pelos ares com a pólvora na altura de S. Sebastião. m j . •.. „
— Então perdeu-se?,.. — O que está perdido pôde ser achado Tal
vez o corpo venha á costa e alguém encontre
2 4 4 A8 MlNAS DE PRATA
sobre elle o papel. Porque não sereis este alguém ?
— Mas para isso é mister gente e dinheiro. — Tendes uma e outra cousa ; os contratara
* distas, e o ouro judeu enterrado no canto de vossa adega em um anchorote !...
— Senhor Deus! Quem vo-Io disse, si eu a ninguém I...
O frade sorriu: — Nada me é occulto, espirito incrédulo ! Nada!
Quando ao Todo Poderoso apraz illuminar seu servo, elle vê atravez do tempo, como atravez da matéria!
Entretanto Molina não fizera mais do que uma supposição natural, que succedeu coincidir com a verdade. Enterrar o dinheiro era costume daquelle tempo; quanto á vasilha um taberneiro devia escolher uma das com que freqüentemente'lidava.
O Visitador ainda fez algumas recommendações ao Braz, e afinal o despediu com estas palavras:
— Ide- na certeza que á menor hesitação de vossa parte vos entregarei ao braço secular para castigar-vos a carne, porque a alma já não terá remédio neste, nem no outro mundo.
Apezar das contrariedades porque havia passado nos últimos dias, sendò-lhe arrebatado das mãos
AS MINAS DE PRATA 2 i o
o roteiro dfl que já se julgava senhor, e destruída posteriormente, com a explosão do bergantim, a esperança de",rehave-lo, o P.e Molina esteve essa manhã muito satisfeito. Alem da confiança que elle nutria de chegar á descoberta das minas guiado pelas pesquisas do P.e Manoel Soares, accrescia a satisfação de ter vingado seu amor próprio humilhado pela hypocrisia do Braz : por fim o intimo contentamento de haver podido fazer bem , castigando o vicio , e beneficiando os pobres.
Logo depois do segundo refeitório, o P.e Figueira achegou-se ao Visitador:
— Peço á V. Reverencia a mercê de me ouvir sobre objecto de summa gravidade.
— Neste instante, P.e Mestre!... Iam os dois afastando-se, quando no corredor
encontraram Vaz Caminha. O bom velho estava acabado. A dor da perda
de Estacio, què elle julgava certa, tinha assolado aquelle corpo já gasto pelos annos, e mais ainda pelos estos da intelligencia, cujo sopro é ardente como o simoum do deserto africano. Na fronte rugosa e no rosto encovado trazia elle o luto d'al-ma por seu filho único.
$&> AS MINAS DE PRATA
O P.e Molina sentiu o coração confranger-saf»i deante daquellas ruínas deixadas pelo fogo de uma grande paixão. Fazendo ao companheiro um gesto para que o esperasse, foi saudar com bondade com-passiva ao advogado, e o levou á bibliotheca, onde o agasalhou como á hospede bemvindo. Vaz Ca-!
minha, embora cortez sempre, não podia comtudo eximir-se á um certo dosgosto na presença desse homem, a quem um instincto secreto de sua alma culpava indirectamente pelo mal succedido á Estacio. Si o P.' Molina não surgisse na Bahia, dando indicio? de vir á busca das minas de prata, o mancebo não se apressaria em partir; e talvez a desgraça que o perdera fosse evitada.
Entretanto o advogado não tinha vindo ao convento, senão para: ver o P.e Molina, cuja chegada Jogo soubera, e ver se deite colhia alguma cousa á respeito de Estacio: aproveitou pois o ensejo que so apresentava tão favorável.
— Pena-me ver-vos neste estado, doutor, t8o succumbido. E' a saúde do corpo ou do espirito que soffre? v !
— Ambas, P." Mestre; mas a maior enfermidade é a do coração. Desde que perdeu a esperança de tornar a ver mais neste mundo seu filho,
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AS MINAS DE PRATA 2 4 7
minha alma vae se desprendendo para ir ve*-lo no céo, e pouco se demorará o instante.
— Foi uma grande catastrophe e uma grande jperda para vós!. . . , • .t-ímpt^'*
" — Que diz, Padre I... Mas então sabe... viu ?..
— De longe apenas, o grande clarão!...
— Clarão !... murmurou o advogado sorpreso. Mas de que falia V. Paternidade, que não o entendo?...
— Da explosão do navio que matou vosso afilhado I...
Violenta commoção abalou o corpo emmagre-cido do advogado, que ergueu-se hirto, para logo cahir inerte sobre a poltrona ; então aquella face devastada, que parecia secca e estéril para a ternura, como os areaes ardentes para a vegetação, orvalhou-se de lagrimas abundantes. Vaz Caminha julgava Estacio morto; mas não tinha a evidencia do facto; no fundo de seu coração dormia a scentelha de esperança que só tarde se apaga. As palavras do Visitador apagando de repente a scentelha o sepultaram na treva dolorosa.
— Ignorava o doutor ? — Nenhuma noticia tive delle depois da noite
2 4 8 AS MINAS DE PRATA
em que se foi desta cidade, respondeu p advogado com um soluço.
O jesuita compungido por aquella grande dor, exhauriu sua eloqüência para a consolar; mas não se quiz o velho consolar, porque o filho já não existia:—ei noluit consolare quia non sit.
->©3«y:
Milagre do gelo que se derrete em balsamo,
O sacerdote , perito medico d'alma , fez san
grar o golpe, para adoçar as dores, e cauterisar
a ferida. Contou ao advogado que Estacio esti-
vera em S. Sebastião, na casa de D. Diogo,
onde elle também era, e apezar de seus esfor
ços conseguira obter do fidalgo o roteiro. Passou
2 5 0 AS MINAS DE PRATA
a narrar a perseguição do Governador, até a ca-tastrophe, e rematou com louvores á intrepidez e alto engenho do infeliz mancebo, tão prematuramente roubado á pátria.
Houve nessa narrativa uma lacuna relativa ao rombo da parede e ao seqüestro delle P." Molina pelo Antão ; o narrador tinha suas rasões para não tocar por emquanto nesses pontos.
A narração deixou Vaz Caminha mergulhado em locubrações profundas; tão occupado estava em revolver no intimo as palavras do jesuita, que não se recordava mais da presença deste, nem se apercebia dos olhos com que elle investigava na sua phisionoraia as sombras das imagens interiores. De repente fez-se um lampejo naquelle espirito, que luziu fora :
— Então !... O jesuita coraprehendeu a necessidade de soprar
a chíspa : — Não vos resta esperança l — Mas uma voz secreta me diz que elle vive L<| Molina abanou a cabeça : * — Na eternidade ! — Neste mundo, Padre ! exclamou o advogado
inspirado. Pois não vedes que elle não usaria do
AS MINAS DE PRATA 231
meio supremo de immolar-se ao fogo com sua fortuna, emquanto lhe restasse um vislumbre de esperança!... Estacio é mancebo de grande força de animo, para não precipitasse estouvadamente. Com uma noite escura, tendo ainda duas horas de avanço, não havia de tentar escapar-se ao abrigo das trevas, antes de chegar ao desespero?
O P.* Molina palpitou; mas logo reprimindo essa intima pulsação, cobriu com um sorriso incrédulo a leve turbação dó rosto:
— Grande é o vosso amor por esse jovem, doutor, a julgar pela vossa fé?... Onde quereis que elle tenha escapado, sobre a immensidade dos mares?
O advogado,, tornara á si do primeiro anhelo, e logo conheceu a imprudência que comroettera :
— E' verdade 1 murmurou inclinando a fronte.
Quando esses dois homens se olharam de novo, ambos sentiram que já não eram os mesmos que a poucos instantes commungavam a hóstia da caridade; um soffrendo, outro consolando; um afflicto, outro ungido. O pae e o sacerdote haviam des-apparecido, deixando em seu lugar dois engenhos superiores,, de elevada esphera, dois gladiadores
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rivaes nas lutas da intelligencia, os máximos representantes da civilisação do século desoito •— o frade- e o advogado.
O P.e Molina derrubou a fronte, signal de que se armava cora o escudo de Pallas para entrar na liça :
— Foi um erro nosso, doutor Vaz Caminha, não termos ha quinze dias sido francos um com o outro; dois espíritos como os nossos não devera nem carecem de lutar á sombra e de, emboscada, mas em pleno dia e campo aberto. De quem proveio a culpa? De vós ou de mim, não sei; talvez de ambos,... si é que não foi minha só. Eu que vos vi primeiro na arena, antes que me enxérgasseis, devia ter mandado soar trom-betas, e reptar-vos cortezmente. Não o fiz, somos ambos punidos ; o segredo apoz o qual ambos corremos, jaz para sempre sepultado no fundo do mar.
— Devo dizer-vos, P.e Mestre, que vos enga-naes. Nem corri jamais apoz algum segredo, nem delle ouvi fallar, alem do que aeabastes de me referir, senão ás vozes do povo em outro tempo.
— Estacio não vos confiou a existência do roteiro de seu pae? perguntou o jesuita.
AS MINAS DE PRATA 2Í>3
— Dou-vos minha palavra que Estacio não me confiou semelhante cousa ; e quando tal succedesse, P.e Mestre, este homem que vos falia não havia de enxafurdar setenta annos de uma pobreza honrada, e laboriosa, na lama de uma riqueza sórdida, senão criminosamente adquirida !
— Longe de mim tal pensar, doutor ! Quando a vós me referi foi como tutor e pae espiritual de Estacio.
— Tutor não o sou, mas Álvaro de Carvalho; pae, sim, porem espiritual, que bem sabeis não herda do filho. A respeito pois de bens da fortuna, nunca tomaria á mim o encargo de os gerir.
O P.e Molina acreditou que Vaz Caminha se encerrara em uma negativa formal, á menos que realmente Estacio não tivesse calado delle o segredo. Tudo é possível ao egoísmo, desconfiado da perversidade humana 1
Ido o licenciado, foi a vez do P.e Figueira já cançado de esperar á parte. 0 negocio grave que o confessor de D. Luiza de Paiva tinha a cora-municar, não era outro senão a situação melindrosa a que chegara o negocio daquella deixa pia, em principio tão habilmente agenciada pelo padre.
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2 3 4 AS MINAS DE PRATA
As cousas tinham um aspecto desagradável. Tornemos á fatal alvorada. Elvira, depois da
brusca partida de Christovão, ficou pasma e gelada. Mas a final o sangue inflamou-se e incendiou-lhe o cérebro; ella ergueu-.se esvairada. Sua mãe entrava nessa occasíão , prevenida pelos fâmulos; vinha decomposta ainda do trajo e da phisionomia. Uma pavorosa ira demudara seu semblante em mascara de fúria. Ella precipitou-se no aposento com a íerocidade da loba que peneirasse no redil de uma ovelha.
Mas essa donzella frágil e submissa, que ella pensara ter escravisado á sua vontade, macerando-lhe a carne com o jejum e flagellando-lhe o espirito com o terror, ergueu-se em frente como já o fizera uma vez, na noite em que o punhal erguido, ameaçava o peito de seu amante. Cruzando com o olhar feroce da mãe seu olhar ardente , soltou n'uma golphada de riso sardonico estes palavras pungentes:
—« Agora 1... Pertenço a elle eternamente neste mundo e no. inferno 1... Eis vossa obra, mãe!
Pensava a.misera donzeHa em sua innôcencia, que só as virgens podiam ser esposas de Chi isto; na sua vehemente paixão se condemnara de bom
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grado ás penas eternas, comtanto que estas a encadeassem para todo 0 sempre áquelfe a quem amava ! Não sabia que sublime é o Deus do chris-
% tianismo, o Deus do perdão, para quem o arrependimento afina a boa tempera da virtude !
O golpe atordiu á viuva; por algum tempo ella não viu mais que o lado temporal da desgraça que a acometia, a deshonra de sua casa, á qual, não obstante seu beatismo. ella era sensível. Foi depois que as conseqüências do mal se desdobraram á seus olhos com aspecto assustador. Elvira cahiu com uma febre abrasadora ; essa enfermidade súbita, transtornando a viagem concertada, demorava a realisação de seus pro-jectos. De repente surgiu-lhe no espirito a idéa da maternidade. Si Elvira trouxesse no seio o fructo do louco amor, sua raça não se extinguiria ; o sangue judeu que lhe corria nas veias continuaria a reproduzir-se apezar do voto feito de extingui-lo na sua geração, consagrando-o á religião.
O que passou então no espirito dessa fanática mulher, ninguém o sabe. A verdade é que nas crises em que a filha peiorava, seu semblante tomava um aspecto de doce resignação, na qual se
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não apparecia contentamento, havia consolo ; quan*! do ao contrario a enfermidade declinava, seu rosto se annuviava, e os olhos tinham sinistros lampejos.
O estado de Elvira ainda era melindroso ; o jesuita, tremendo das conseqüências de um fanatismo que insuflara, julgou acertado descarregar^ desse peso a consciência, consultando voto mais aütorisado, e collocando-se á sombra do superior.
— Padre Figueira, disse o Visitador com se-' vero aspecto, penso que seu zelo excedeu-sei. 0 serviço qüe trabalhava em prol da Companhia, era sem duvida importante Carecemos dos avul-tados bens temporaes, porque também grande e a copia de privações que temos a supprir neste mundo. Mas não devia baratear assim a virtude' de uma donzella e talvez a salvação dessa alma transviada I
O jesuíta vergou a cabeça :
•—- Não foi minha a culpa, P.e Visitador. Queria que V. Reverencia visse meus esforços para conter a impaciência da mãe.
— Sim?.. . . Então a viuVa é a mais empenhada?
— Não sei até onde pôde chegar um dia o
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fervor de sua devoção. As vezes quando está sentada á cabeceira da filha enferma, e vejo os olhos que lhe tem cravado nas feições desbota
das, asseguro-vos, P.e Visitador, que essa mulher me faz tremer!....,
— Quero vê-la I... disse o P.' Molina erguen-do-se com autoridade.
Instantes depois os dois jesuítas seguiam caminho da casa da viuva, onde chegaram ás seis horas da tarde.
D Luiza veio á baixo recebe-los, muito honrada com a visita do P.e Mestre Molina, o in-signe pregador, que ella ouvira com tanta beati-tude na festa da Epiphania. A pedido do P." Figueira, levou-os ambos até á camera, onde jazia prostrada a mísera Elvira, tão desfeita de seu bello'e gentil parecer, que o mesmo Christovão talvez a não reconhecera.
O Visitador chegou á borda do leito, o de* bruçando-se sobre a enferma, tomou-lhe a mão transparente de magreza.
— Como vos sentis hoje, minha filha ? O semblante de Elvira, que ao avistar o ha
bito preto dos jesuítas se velara de ódio e terror, esclareceu-se de repente com um raio de
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esperança. Aquella voz cheia de uncçfio e doçura, e o sorriso paterual que a orvalhava, insinuaram-se no coração desolado da afílicta donzella. Ella sentiu que naquelle instante era realmente o ministro do Senhor que lhe foliava, e approximando dos lábios a mão Veneravel, hei* jou-a contricta.
D. Luiza que não comprehendera, trocou um sorriso de contentamento com o P.e Figueira.
— Esperae em Deus que não desampara a sua creatura, filha I...
— Só délle espero, Paire, o perdão ou o castigo de minha culpa !...
— O perdão!... murmurou o Visitador. Affastou-se então com a viuva e o companheiro
para o outro canto da espaçosa camera, onde tomaram assentos :
— Sei, irmã, pelo P.* Figueira, das vossas piás intenções e da escolha quo fizestes de nossa humilde casa para realisa-las; o que me excitou o desejo de ver-vos.
— Realisadas já estariam ellas se dependessem unicamente de mim : mas obstáculos sobrevie-ram, de que haveis de estar bem informado.
— Sem duvida ; e também é esse um dos mo-
A« MINAS DE PRATA 259
ti vos da minha vinda aqui. Vosso fervor pela religião é muito louvável, « vos será levado em conta; mas não vos parece que a força de vontade, rara em uma frágil donzella, e em vossa filha 'levada ao ponto de immolar a honra e talvez a vida, são avisos do céo e mostras de que Deus se oppõe ao sacrifício que lhe offereceis ?
— Mostras são, Padre, de que o cancro j<á creou duras e fundas raízes, e não poderá ser extirpado sem cruas dores. Mas sinto-me com animo bastante para o martyrioí...
O Visitador contemplou com severidade a exaltação fanática daquella mulher :
— Estou acreditando que não é o espirito de religião quem fatia pelos vossos lábios, senão o mau espirito, que para melhor tentar a creatura, se disfarça com ares de devoção. Cuidaes vós, insensata mulher, que o Deus dos Christãos, o Deus de clemência è misericórdia, exija o sacrifício (Je victimas humanas, como os ídolos pa-gãos?
— Exíje o sacrifício do fogo, pois para isso mandou instituir a inquisição.
Duas rugas profundas se abriram ao !ongo das faces pallidas do Visitador, como os surcos de
260 AS MÍNAS DE PRATA
duas lagrimas ausentes; ali sumiu elle asamarT)
gas idéas que lhe borbotaram aos lábios: ,4 — A inquisição foi instituída em um tempo era
que a palavra de Deus não germinava, ou porque a terra era safara, ou porque a semente es tivesse eivada : e foi, para castigar os que abando navam o grêmio da Igreja, não para punir na innocente geração a infelicidade dos pães. Si ape-zar das gotas de sangue judeu que vos corre nas veias, vos anima o verdadeiro amor de Christa, a Igreja vos abre o seu regaço, como á qualquer descendente de mouros ou deste gentio da America. t.4
Poz a. viuva os olhos sorpresos no P.e Figueira yj este de cabeça baixa, desde o principio, parecia querer sumir-se pelo habito á dentro. Não achando apoio no seu confessor, a fanática tirou da sua consciência a replica :
— Ah ! que mal conheceis este sangue judeu, Padre ! Nem o podeis, vós que não o sentis correr em vossas veias! Uma só gota delle é a faísca acesa, que ao menor sopro levanta a labareda, e requeima a vida. Tendes prova nesta carne rebelde, que apezar dos annos, da abstinência e do cilicio, se revoltara, si a não tivesse eu constante-
AS MINAS DE PRATA 261
mente, refreada pela contemplação de Deus. Também a tendes no recente exemplo daquella mísera, que nem meus severos preceitos, nem o natural recato impediram de se perder tão cedo !... Quem sabe onde a levará ainda a impetuosidade desse sangue damnado?
— Vossa filha foi e é uma virtuosa donzella, incapaz de semelhantes desregramentos 1
— Não sabeis então ! exclamou a viuva. — V. Reverencia a conhecia? perguntou o P.e
Figueira. — Sei tudo ! respondeu o Visitador. Não co
nhecia esta donzella a quem vejo pela vez primeira ; mas o que não for cego ha de ver, que é preciso o heroísmo da virtude e a candura da innocencia para fazer como ella, ao amante, o sacrifício de seu amor!...
A viuva quiz replicar, Molina a interrompeu : — Vossa criminosa insistência já custou a inno
cencia á vossa filha ; vae custar-lhe ainda a vida. Que seria de vós , infeliz mulher, mãe desnatu-rada, si aquella victima de vossa crueldade, confundindo vosso fanatismo com a verdadeira e santa religião, a renegasse cheia de horror na sua ultima hora, e expirasse descrente?... Quem res-
AS MINAS DE PRATA
ponderia ao Senhor por essa alma perdida,, sento vós?...
Esmagando a devota com a ameaça tremendin o Visitador deixou-a sob o peso de suas palavras, e outra vez approximon-se do leito. Elvira en-treabrindo os olhos languidos, e pondo-os naquulle semblante, como os poria no céo, achou em sua alma estanque de prazeres e alegrias, um sorriso para trazer aos lábios.
t— Restabelecei-vos depressa', para a ventura, minha filha. Sereis esposa daquelle á quem amaes; e eu mesmo abençoarei vossa feliz união.
Quem dissera que era esse o mesmo frade que na igreja do Collegio durante o sermão fulmináüd com sua iraprecação a infeliz mulher, que outro crime não tinha senão ama-lo?
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-CS3ES-
XI
O circulo vicioso da fortuna ad\crsa.
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E' tarde da moite. Vaz Caminha prolongou mais a costumada vi
gília : ainda, elle rabisca no seu telonio, á luz norliça da candeia. Sentia o bom velho que a 'ida. ae lhe esoa.pava rapidamente, esforçava ewninajr a coeiecção de sua obra para deixa-la
264 AS MINAS DÉ PRATA
concluída por sua morte, legando-a á algum,,rico patrono, que a fizesse imprimir, e a ampara$J com seu valimento. Outr'ora destinava elle essa herança para seu afilhado; mas Dens o tinha chamado primeiro, dando-lhe assim aviso de que se apressasse em reunir-se aos seus que já eram todos idos.. >j
No dia em que fora ao Collegio, três havia, o advogado ao ouvir a narração do P.e Molina tivera realmente um pressentimento de que Estacio ainda era vivo; e mais se fortalecera na esperança observando a tactica do jesuita para tirar delle pormenores á respeito do roteiro das minas de prata. 'Mas aos setenta annos a alma tem perdido o calor, e já não vicejam nella as rosas, senão as pallidas e rápidas anemones, que ao menor sopro se desfolham. Assim a esperança murchou no coração do velho com as primeiras sombras da noite.
Continuava o laborioso escriptor sua vigília, quando no principio da escura rua soaram passos ligeiros, acompanhados do tinir da espada ao longo do quadril. A pessoa que era, tinha elevada estatura, e vinha embuçada era manto' de amplas, dobras e cores escuras. Dirigiu-se^ direito
AS MINAS DE PRATA 2 6 5
á porta do advogado; mas vendo as resteas de luz que filtravam pelos interstícios da janella, bateu de leve nas grades. Vaz Caminha interrom-peu o trabalho um tanto sórpreso, mas não muito; pois não era a primeira, nem segunda vez que lhe batiam na porta a taes deshoras.
— Quem bate? perguntou de dentro da rotula.
— Uma pessoa que vem da parte de D. Fernando de Athayde sobre negocio urgente 1 respondeu voz desconhecida, que vibrou uma corda intima no coração do velho.
Elle correu á abrir. O desconhecido entrou rápido, fechou a porta sobre si, e enlaçou o advogado com os braços, apeirtando-o ao peito.
— Victoria, mestre I.., murmurou elle.
— Estacio I... Filho !... exclamou o velho tremulo de commoção.
E não pôde dizer mais. Abraçou o mancebo, e calcando a mão ao seio parecia querer ampara-lo contra a súbita e tamanha alegria que ameaçava despedaçar as arcas do peito.
Ao tempo que isto acontecia no corredor da casa do advogado, a rotula quasi fronteira se abria, e dois vultos sabiam ; um partiu de corrida rua aci-
Vol. V 23
2 6 6 AS MINAS DE PRATA
ma, o outro se agachou junto á porta do advo* gado e depois á janella para escutar. •*
E' occasião de remontar os acontecimentos alé o instante em que ficou Estacio desamparado no meio do oceano, exposto ás iras de D. Francii de Souza. '••*
As ilhas dos Abrolhos haviam surgido, e uma scentelha brilhara nos olhos de Estacio.
— Quando julgaes que, estaremos fronteirosjs ilhas ? perguntou o mancebo ao contra-mestre^
— Com este maldito vento que nos atrasa?.;; Lá pelo quarto da prima !
— Em quanto tempo pensaes que possa uma chalupa fazer a travessia das ilhas á terra firme?,
— Conforme a maré. — Com a preamar. — E' negocio para oito ou dez horas. — Então esperemos ainda. —r Rravo !. Destas folias gosto eu ! Rachel levou do rosto do mancebo ao céo'os
lindos olhos plenos de graça, e de lá os Irouil embebidos era effluvios para ungir á quetn amava em silencio.
Estacio affastara-se com o Antão para' lhe fatiar em segredo; . >; >«
AS MINAS DE PRATA 2 6 7
j — E' pena ! dísse o contramestre com um suspiro ; porque já queria bem á este diabo de navio !
Eram dez horas do dia. O tombadilho transformou-se em uma officina de carpinteiro,' onde toda a maruja trabalhava com ardor extraordinário. Entretanto as galés se approximavam rapidamente, impellidas pala força dos remos: a cada instante o vulto dos navios crescia sobre as águas como um fantasma. Ao cahir da noite já se descobria a olho nú o casco e o movimento compassado dos remos.
Apenas foi escuro bastante, arreou-se pelo flanco esquerdo do bergantim uma grande ,halsa ou jangada, em que os marujos haviam trabalhado todo o dia. Iramediatamente transportaram para ella viveres, armamento e munições, e todos quantos objectos de valor pôde ella conter. No centro estava collocada a gaiola de ferro de bordo, que reforçada convenientemente, serviu de prisão aos três judeus. Por prudência foram todos amordaçados. . — Quizera poupará vosso pae, disse Estacio á Rachel, essa medida violenta ; mas vós mesma me tirastes a confiança em sua palavra.
A donzella abaixou a cabeça, acabrunhada de tristeza.
288 AS MINAS BE PRATA
— Fazei o mesmo á mim, para que não me fique o remorso do que pratiquei!
— Remorso de que ? Si fostes vós que o salvastes?... O seu perverso intento fora a sua perdição, e mais tarde ha de elle bemdizer a coragem com que arrostastes sua ira. J
A's onze horas o bergantim estava fronteiro com os três rochedos dos Abrolhos. Foi ordenado o embarque da gente na balsa, que apartou-se do bergantim, presa porém com uma espia. A chalupa, ao portaló com o resto da maruja, esperava o commandante. Rachel durante todo esse dia não tinha sabido de perto do mancebo: no momento dó embarque lhe travou ella da mão:
— Eu vos supplico uma graça!... Vós m'a deveis em paga da sombra de felicidade,. que dissestes vos dei pouco ha.
— Que desejaes de mim?...
'—Si eu tive a fortuna de representar ao vosso pensamento, no instante solemne do perigo, a imagem daquella que adoraes, reclamo nesta qualidade o direito que lhe coubera si aqui estivesse, de acompanhar-vos em todos os transes desta noite aziaga.
Estacio achava tudo isto extranho ; mas a ins-
AS MINAS DE PRATA 2 6 9
lancia do momento não lhe deixava pausa para demorar o espirito neste incidente. A suavidade tdaquella voz maviosa, repassada por um hálito perfumado , e a tepida pressão da mão assetinada, influíram docemente em sua alma. Eram as primeiras caricias de amor que libava seu coração; e como para elle Inezita symbolisava o amor, fazia-se em seu espirito uma doce alluciriação, pensando que vinham da formosa donzella esses bafejes de ventura.
— Seja como quereis ! balbuciou o mancebo. Ficaram elles dois sós á bordo do bergantim.
Estacio desceu ao paiol. Rachel viu sem estremecer o mancebo entrar naqueile volcão de pólvora com uma mecha accesa. Suppoz que elle mudara sua primeira resolução de atirar-se ao mar, e preferira a explosão do navio, que lhe assegurava a vingança. Nem um músculo de seu rosto contrahiu-se ; não fez um gesto para conter a mão que ia vibrar o raio ; apenas se appro-ximou do mancebo para que a morte os unisse.
Mas Estacio não nutria esse projecto : collocou a mecha em cima de om barril de pólvora, como uma vela no tocheiro. Outra mecha de estopa fora applicada ao ouvido do rodisio.
2 7 0 AS MINAS DE PRATA
— Daqui á quatro horas!... disse elle. Sorriu á judia, e tomando-a pela mão, levou-a
para a chalupa , que afastou-se rapidamente do navio. Antão, a quem fora confiada a balsa,' cortou a espia e mandou remar para os rochedoía Continuou o bergantim, cujo leme fora amarrado para conservar-lhe o rumo, a singrar placidameolÉ no bordo do mar, impellido pelas rajadas da brisa.
A chalupa e a balsa breve se esconderam por detraz dos rochedos. Quando teve lugar a expio* são, já iam longe bastante para não serem alcançados pelo grande clarão, e descobertos.
No dia seguinte abicou a costa Estacio eom sua gente. Resolveu o prudente mancebo proseguir a jornada por terra durante alguns dias, dando tempo á se afastar a frota do Governador daquellas paragens. Antão com alguns indios ficaram para conduzir a chalupa e a balsa, afim de continuar a viagem costa a costa.
Na tarde daquelle dia chegara Estacio ao Recôncavo da Bahia, no lugar da Sapucaia, assim chamado de uma grande arvore dessa família que ensombrava o terreiro de. uma palhoça.
Tomou o bandq posse da choupana onde morava uma pobre gente, que se achou bem paga
AS MÍNAS DE PRATA 2 7 1
do agasalho com alguns trastes do bergantim. As ordens de Estacio eram positivas e terminan-tos. Ninguém dâ campanha devia communicar com a gente de terra, para se não divulgar quem eram c donde vinham os recemchegados.
Si acaso na ausência do mancebo viesse contra o bando gente armada em força maior, de modo á tornar a resistência impossível, nesse caso deviam metter-se pelo matto e evitar assim o reconhecimento e captura até que Estacio voltasse da cidade.
Em summa o estudante não queria que os prisioneiros hollandezes fossem entregues á gente de El-rei antes de entender-se elle com D. Diogo de Menezes. Era o meio de obter o perdão, de Samuel por elle promettido á linda judia.
Bem recommendado tudo ao zelo do Antão, partiu-se Estacio em canoa acompanhado unicamente de Esteves. Horas havia que chegara á Ribeira :
— •Esteves, adevinho quanto haveis de estar impaciente por abraçar vossa mãe ; é preciso porem que esta noite não vos veja pessoa.
—-Ninguém me verá , Estacio ; si fôr preciso passarei a noite em baixo d'agua.
2 7 2 AS MÍNA9 DE PRATA
— Basta que vos deitois no fundo da canoa, mas não aqui junto á praia. Amarrae aquella boia que ali vejo, e dormi tranquillo
Com pouco chegara á casa de Vaz Caminha. Entretanto o velho advogado passara com o es
tudante ao cartório, e ciabi á camera de dormir, aposento interior, servido apenas por uma porta.
— Aqui estaremos melhor para conversar ! disse o advogado á puridade. Mas fallae como si nos vissem e escutassem, ao meu ouvido e sem gesto.
— O roteiro está emfim em meu poder! — Ainda o trazeis sobre vós? — Tenho-o á cinta. — Grande imprudência, Estacio I E" expordes
alem do segredo, vossa existência. — Trouxe-o mesmo para confia-lo á vossa guarda. — Segredos ha , filho, que se não confiam
porque elles levam comsigo um verme que ataca o coração, a desconfiança.
— Desconfiar eu de vós? E' isso jamais possível ?
— Ninguém sabe que vozes soarão amanhã em sua consciência. Acredito que nunca viesseis á suspeitar de vosso mestre e padrinho, quaesquer que fossem as coincidências fataes; mas si esse
AS MINAS DE PRATA 2 7 3
objecto de tanto valor vos fosse roubado estando em minha mão, todo vosso amor e abnegação não bastariam para reprimir estb queixume que vossa alma havia de murmurar um dia: «Talvez não me succedesse, essa desgraça si eu mesmo zelasse sobre meu thesouro. » Eu não quero que entre vosso e meu coração se interponha nem essa tênue sombra. Accrescentae que em minha mão mais exposto que em parte alguma estaria o roteiro» Neste .momento sem duvida já vossa chegada, á cidade é sabida; amanhã talvez não haverá canto de minha casa ; que não tenha sido corrido,
— E' impossível, mestre ; acabo de desembarcar só com Esteves, e da ribeira até aqui não foi encontrado por viva alma.
— Deveis conhecer o tino e previdência dos jesuítas, Estacio; pois lutastes já com um dos mais perigosos 1
— O P.° Molina I.-- "Mas fombraes-me que é tempo de vos contar o muito que passei desde o recebimento de vossa carta até este instante!...
— 6àcrifico com magoa á vossa segurança o prazer immenso de ouvir-vos agora, e fartar-me,de vossa communicação, da qual tanto ha que estou privado. Antes de tudo, Estacio, cumpre pôr a
274 AS MINAS DE PRATA
bom recado o roteiro, de modo que possaes zombar da. astucia da vossos perseguidores.
— Esqueci-me dizer-vos que o roteiro já:o tenho de côr! Si o tirarem desta cinta, não o tirarão daqui, da memória. Quando o- decorava, as ondas rugiam, e eu lembrei-me de Demosthe-nes ensaiando nas praias de Athenas a sua coragem de orador contra as tempestades populares. Eu preparava o meu espirito contra as emoções da vida !...
— Tivestes uma feliz lembrança, Estacio. O P.e
Molina acha em vós contendor digno delle I — Oh l não, mestre. Não sou mais que no
viço nos trabalhos da existência em que sois professo.
Vaz Caminha reflectia : — Decorando o roteiro , Estacio, adquiristes
grande vantagem sobre vossos adversários; mas não estaes de todo seguro contra suas maquinações. Supponde que vos roubam elles o manus-cripto, e se desfazem de vós para legitimar a sua propriedade e evitar que os inquieteis?... De que vale o que trazeis na memória ? Supponde ainda que apossando-se do roteiro , destroem sobre o terreno certas indicações que assignalam o rumo.,.
AS MINAS DE PRATA 27í>
Não ficará inutilisado quanto sabeis? E' preciso defender vosso segredo, mais que nunca. E na maneira de o fazer não pedi conselho de ninguém...
* — Nem de vós, mestre ? — De ninguém, senão de vosso engenho, que
não vos ha de faltar, porque Deus justo o inspira. Sois portador de um germen , que pôde ser o da morte ou da grandeza. Mostrai-vos digno dessa situação em que a Providência vos col-locou.
— Cuidais então,. mestre, que meu primeiro cuidado seja pôr em segurança o roteiro?
— Quanto antes. Já devieis ter partido. '— Oh ! mestre,? lembree-vos que ha apenas
instantes que vos abracei depois de cerca de dois mezes de ausência ! ..
— E não me lembro, mais do que devera I Pois si ouvisse minha consciência, antes qüe meu coração, já não estarieis aqui I Cada átomo da-quella areia que vasa, é. talvez um anno de vossa felicidade á escoar-se I Quem sabe !
— Parto já; mas antes queria "faltar-vos de uma cousa, que bem sabeis.
— De vosso amor 1 — De meu amor, sim, mestre! Dessa espe*
2 7 6 AS MUNAS DE PRATA
rança qué aTimewtastes no principio, e que no momento de apagar-se para sempre resurgistes do desespero onde se afundava ! Dessa luz que me guiou todo esse tempo atravez dos mares revoltos e dos mil perigos que me cercavam ! Pela declaração que me enviastes de D. Fernando, Ine-zitâ é livre!...
-*- Ainda não é ; mas será no instante em que o exigirdes. Assim Combinamos para evitar novos compromissos.
— Então rogo-vos seja Vosso primeiro cuidado aplainar essa dificuldade ; como será o meu amanhã decidir do meu destino.
— Parece-me que tendes de Vos apresentarão Governador.
— Certamente ; devo dar-lhe donta do que obrei ém seu nome e no serviço d'EI-rei.
—-Não vos parece,que deva essa obrigação preceder ao que vos diz respeito individualmente?
— Assim devera ser; mas rasões fortes me obrigam a adiar para depois a obrigação. Ape-zar das cousas importantes que trabalhei em bem do Estado, não sei como pretende dispor de mim D. Diogo de Menezes. Si tenho de ser de novamente sepultado em uma masmorra, que ao
ÁS MINAS DE PRATA 2 7 ?
menos leve O desengano que me ha de matar de uma vez sem penar, ou a esperança viva que outra vez me resussité.
t Estacio travou das mãos do velho, e impo-las sobre o coração:
— De certo, mestre; este coração estua com a sede de felicidade que o devora. Como a desgraça, o amor foi nelle precoce; veio cota a infância. Ha tanto que ama longe das vistas delia, não tendo para alimento mais que um olhar de anno em anno. Viveu até agora da própria seiva, e sente-se exhaurido de tanto affecto dado, e nenhum recebido em volta. Si novas esperanças o não encherem, ha de estalar! Sim, pois me sinto como o viajante, extenuado pela longa e árdua jornada : quando lhe arrancam dos lábios o licor generoso que lhe deve restituir as forças, desmaia e succumbe!... Só ella pôde dar tempera á esta alma I
Estacio dizia a verdade ; elle sentia essa ardente sede de amor, e o que ainda mais a excitara foram as palavras e os gestos da linda judia. A belleza amante e seductora tinha despertado em sua alma o sabor das caricias, como o perfume da manga prure o paladar.
Vol. V 24
2 7 8 AS MINAS DE PRATA1
— Tendes direito á essa felicidade por que al-mejaes. Ide pois em busca delia, Estacio. Amar nhã espero que D. Fernando de Alhayde tenha desligado de sua palavra á D. Francisco: logo que isso succeda poeteis apresentar-vos em casa do fidalgo.
— Abreviae o mais possível. — Até lá oceultae-vos, que não saiba o Gover
nador de vossa chegada. Não torneis aqui, , . .u
— Onde vos verei ? — Procurae na rua de Santa Luzia uma casa
que ali ha de terraço e cercada de um bananal. E' a única. Entrae affoutamente e procurae D. Marina de Pena, de minha parte. Lá me espe-rareis! rj, , . .
— Até lá, mestre! — Deus vos acompanhe. Estacio encaminhou-se á porte; mas o advogado
o reteve um instante emquanto com o olhar sondavam a rua. Nada apparecia de suspeito ; o mancebo pois subiu a rua com passo seguro e ligeiro. Mal tinha elle andado uma toeza, descobriu um vulto que se movia deante na sombra; tirou a espada da bainha, sobraçoura por cima da capa, e continuou tranquillo seu caminho. Ao sahir no
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largo da Sé, ouviu assobios e logo depois o som de muitas pisadas : desviou á direita, pprêm re-ceiosa de que lhe escapasse, a quadrilha correu-lhe sus.
Voltoü-se então denodadamente para seus ag-gressores, e encostando-se á parede da igreja, poz-se em guarda. Os assaltantes em numero de dez foram se approximandõ : um individuo ficara de parte, simples espectador, e Estacio ouvira que fazia em voz baixa uma recommendação aos companheiros :
— Não o matem: firam, só quanto baste para segura-lo !
Esse cabo nocturno não era outro senão mestre Braz, avisado em tempo por seus espias da chegada de um vulto suspeito á casa do advogado. Fiel ás ordens do Visitador, o taberneiro enviara o Anselmo com a gente em busca do corpo de Estacio. Depois de inúteis pesquisas pela costa voltara a expedição á cidade. Não se fatigou a pertinácia do P.e Molina ; incumbiu ao Braz de vigiar dia e ncite a casa do advogado.
Como deante da bizarra e audaz attitude do mancebo, os assaltantes soffrendo o ascendente que a verdadeira coragem exerce sobre o atrevimento
AS MINAS DE PRATA
de mercenários ignóbeis, hesitassem no ataquei
Estacio disfarçando a voz lhes enviou esta inti*
mativa : — Vamos á isso! Estou com pressa!.,. — Avancem ! Que vergonha 1... soprou 0 Braz. Os bandidos avançaram, e ouviu-se o rangir
das espadas. Estacio sempre coberto, com um» parada vigilante e impenetrável, só abria-se quando tiuha o golpe infallivel. Então cahia um corpo. Comtudo o numero dos assaltantes acabaria por fatiga-lo.
Por esse tempo desembocou no largo da Sé um vulto, que logo reconhecia, quem uma vez o tivesse visto, pelo passo desgarrado e pelas guinadas do corpo. O tinir do ferro feriu-lhe ira-* imediatamente o ouvido ; lançou os olhos para o lugar do ruido, e percebeu o grupo de pessoal que se movia desordenadamente na sombra.
— Han 1 hanl . . . Briga-se por aqui!... João Fogaça sahia áquellas horas de casa de
Christovão, onde estava agas&lhadp. Depois da ceia os dois amigos tinham estendido a pratica pela noite adeante. Vários e interessantes foram os as-sumptos. Primeiramente conversaram de Estacio, sobre quem não cessavam de fazer conjecturas,
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Christovão )i tinha como Vaz Caminha chorado o perdido irmão d'alma ; o capitão dé matto conservava a fé inabalável de seus caboclos, e julgava-se obrigado a esperar até que apparecesse uma testemunha dé viste.
Esgotado este thema, Fogaça puxou a palestra para Elvira, de quem notava que seu amante evitava dô faltar-. A tristeza de Christovão , qno a recordação de Estacio augmentar3 , chegou á maior intensidade; seu rosto carregou-se de sombras sinistras. Depois de ter respondido vagamente, mudou por sua vez o assumpto, disfra-hindó a attenção do forasteiro1 com a lembrança da Mariquinhas dos Caixos, cuja historia exigiu lhe contasse, «fá nó tempo de sua convalescença, quando a viuva do Tendefro o velava á cabeceira com tanta solficinide, Christovão interrogando-a adivinhara a mutua afleição dessas duas almas, que sua própria timidez separava, e jurou que breve as havia de reunir.
hão Fogaça contou balbuciando é enrubecéndo, como um namorado de quinze annos, os seus affectos pela formosa Mariquinhas. E' tinha rasão de côrâr; porque neste corpo rompido aos trabalhos, neste organismo robusto e valido, quando
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todos os órgãos se tinham desenvolvido, o coração ficará paraiysado. Seu amor era nubil apenas. .Ao terminar, disse-lhe Christovão:
— Sois um cobarde, João ! O capitão de matto olhou-o pasmo. — Não percebo I — Pois vos morreis de amores por uma don
zella que vos retribuo com extremo igual; e quando ella corre a vós para que a arranqueis á uma união forçada, fugis abandonando-a ao marido, a quem a vendem ?
— Que dizeis, Christovão?... — A verdade. E ainda mais, a Providencia vos
envia de novo essa mesma mulher livre dos primeiros laços e sempre amante e boa, e vó«, que ainda lhe quereis como outrora, a deixaes consumir na tristeza e solidão os melhores annos da vida ?
— Porque não me disse ella que tal era seu gosto?...
— Si não tivestes a coragem de perguntar-lhe! . João Fogaça começou a assobiar entre dentes. Essa alma paxorrenta e preguiçosa tinha raras e surdas, mas terríveis tormentas; as paixões que acordavam nella eram tempestades impetuosas e
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medonhas como as que vem no fim do inverno, depois do frio. As palavras de Christovão e o tom severo com que as proferiu, foram condensando a procella. As chagas deixadas pelo casamento de Mariquinhas e agora magoadas , o remorso e a vergonha de ter causado a infelicidade da moça e a sua própria ; o ridículo desse silencio de quatro annos de um amor partilhado; tudo isto revolveu na vasa daquelle coração. Christovão o percebeu.
— Muito ha que estou para dizer-vos isto, João: chegou o momento. Bem vejo que vos afflijo ; mas cedei á rasão.
— Eu dera o resto de minha vida para que outro que não vós, Christovão, me tivesse dito o que proferistes.
O capitão de matto ergueu-se e ganhou a rua. Elle sentia a necessidade de brigar, ou pelo menos de andar dez léguas naquella noite : lamentava não achar-se no sertão em frente de alguma das mais ferozes tribus selvagens, Foi nestas disposições guerreiras que appareceu no largo da Sé. Apenas percebeu o que passava do outro lado, caminhou direito ao grupo e foi espadeirando de alto a baixo ao som deste singular estribilho :
á*fé AS MÍNAS D * PltATA
Eatari-tári-tafó
Tororu-1'ôrff-tôtú.
O compasso éra marcado pela espada na pelllr, dOS sicaríd?. Mestre Braz satisfeito Cdm a pran-chàtfa que lhe administrara o tengô braço do capitão dé matto, disparou a corrida e evapõrofj-seT atraz deite seguiu a gente do Ansefmd, qüe já conhecia d homem desde a noite de anno bom;"'
— Corja de poltrõesl... gritou João Fogaça vendo-os fugir.
Voltou-se então para Estacio que se embuçava cuidadosamente com receio de ser por elle reconhecido :
— Quereis vós brigar comigo, já que os pol-trões nos deixaram a ambos com água na boca ?
— Outra vez! Agora vou apressado! respondeu uma voz de entre1 as dobras do» manto que vendavam o rosto.
Bem desejos tinha Estacio de lançar-se aos braços do homem a' quem devia em grande parte os' successos de sua empresa, e agora por cima O serviço- de livra-lo* da matilha de salteadôref: mas a prudência exigia que moderasse os arden-'
AS MINAS DE PRATA 28&
tes impulsos de sua gratidão. Continuou pois sou caminho e desappareceu nas trevas.
Rompeu a alvorada. « O mancebo que três horas havia se separara no largo da Sé ,do capitão de matto, apresentou-se em casa de D. Marina de Pena. Prevenida pela creada, a dama se compoz para vir receber a matutina visita que lhe enviava seu advogado : dando com os olhos em Estacio, estremeceu de sorpresa e contentamento ; uma onda de purpura derramou-se pelo seu bello semblante, roseando até a nascença do collo, emquanto os olhos affogavam em uma languida meiguice.
— O doutor Vaz Caminha enviou-me á vossa casa, senhora, com recommendação de aqui espera-lo.
— Eu tinha pedido ao meu velho amigo que vos trouxesse á esta vossa casa, logo que fosseis de volta. Felizmente eis-vosi são e salvo, Vossa ausência já nos causava bem cruéis receios!,-..
— Também a vós, sephora? Pensava não vos
ser conhecido. — A primeira vez que deparou-me o acaso
ver-vos, as vossas feições lembraram-me, a pessoa á quem mais amei neste mundo... Um filho,
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que si fosse vivo, teria a vossa idade e vossa gentil presença. Depois sube pelo Dr. Vaz Caminha vosso nome e muitas particularidades de vossa vida; meu interesse augmentou, porque ao primeiro motivo juntou-se outro, o da gratidão,'
— Como é isso possível, si agora vos vejo pela primeira vez !
— Vosso pae Roberio Dias prestou ao meu relevantes serviços; e como sejam ambos falleci-dos, nós herdamos seus títulos, vós a minha gratidão, eu a vossa benevolência.
— Quaes serviços foram esses, si vos praz, senhora? E' justo que não ignore eu uma nobre acção de meu pae.
— Heis de sabe-lo mais tarde, vos prometto,; agora dispensae-me desse dever.
Estacio inclinou-se. r
— Sois orpbâo de pae e mãe; o doutor Vaz Caminha sei eu que pelo seu amor substituiu o primeiro ; mas vossa tia é bastante idosa, e seu pensamento já todo voltado para o céo, pouco tempo tem para dar-vos. Uma amisade verdadeira me liga hoje á vosso mestre; esse titulo junto aos outros de que vos foliei , não pensaes que me
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autorisem á pedir-vos a graça de substituir a mãe que perdestes?
— Oh I Senhora 1... — Não me julgaes digna desse encargo?...
' — A mim é que faltam títulos para merecer a vossa sollicítude!...
— Então acceitaes ?... E eu entro já no exercício de minhas doces attribaições. Sei, Estacio, que amaes uma donzella, de quem sois retribuído, mas de quem vos trazem affastado. Não posso eu fazer nada para vossa felicidade ?
— Podeis fazer muito com os vossos votos, que Deus não deixará de exalçar!
— Esses vos acompanharão sempre. Si vosso amor vos der algum desgosto ou magoa, pro-mettéi vir desabafar em meu seio. Dizem que o coração da mulher é insondavel; mas no meu, que tanto já soffreu e vos está aberto, apren-dereis a conhecer esse abysmo. Prometteis-me isso ?
— De bom grado, senhora ; doces devem ser as magoas tratadas por vossas mãos.
— Outra pergunta ainda tenho o direito de fazer-vos. Não vos escandaliseis com ella. A desgraça de vosso pae deixou-vos na miséria; ha-
2Í& AS 'UNAS'DÈ PRATA
veís dè carecer dé meios para manter-vos como deveis á vossa pessoa? >:'
Estacio empallideceu : sua resposta foi glacial, — De muito careço, senhora ; mas nada preciso. — Àttendei, áhtés de dar-Vos por offendido/
Meu pae deixou-me rica, immensamente rica ; rhas houve tempo em que estivemos na miséria, e quem delia salvou-nos foi Roberio. Porque não pagarei agora, que mudaram as sortes, essa divida sa-
— Não herdei nenhum credito ou escriptó de tal divida, senhora; e pois não me julgo com direito de cobra-la.
— Mas o titulo que me deixastes tomar dá-me a authoridade...
— Suppuz que o tomava uma pessoa como eu privada de bens da fortuna, e só a respeito da afleição. A' uma dama rica não o posso consentir I
— Pois serei pobre para vós, pobre como Job, ou vistes? exclamou Dulce inquiete. Prometto nunca mais foliar de semelhante cousa.
r. — Eu vos renderei graças. \ * — Mas si não posso repartir eomvosco do meu,
posso informar-rne de vossas esperanças de futuro.
, AS MINAS DE PRATA 2 8 9
Que contaes fazer?,.. O.segredo de vosso pae ficou realmente perdido ? Nunca tivestes noticia deite?
Estas perguntas despertaram a desconfiança no animo do mancebo e o tornaram reservado.
— Não sei á tal respeito mais do que diz o vulgo ; e peço-vos, senhora, desviemos a conversa deste triste assumpto, que me penalisa sempre pelas recordações amargas que desperta.
— Desculpae-me si magoei vossa alma, Estacio. E' preciso que a mãe saiba onde se doe o filho para dar-lhe allivio.
Chegou Vaz Caminha. Acompanhava-o Gil carregando uma pequena maça com roupa de gala para Estacio; no quintal estava um cavallo ajae-sado. O pagem atirou-se aos braços do seu ca-valleiro chorando de alegria ; e jurou que nunca mais se separaria delle.
O advogado pediu venia á dama pela liberdade de que usava em sua casa. Emquanto em uma camera próxima Estacio se trajava com apuro para a visita que tinha de fazer, o advogado ficara conversando com sua formosa cliente, e lhe dizia o acto importante que o mancebo ia praticar na-quella manhã. Dulce sentiu uma tênue sombra
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%% AS MINAS DE PRATA
de melancolia tóldár-ihè o espirito, e emttiüdéiÜu' petisauVá. ;•- '
O mancebo appareceu galhardo e gentil sob às Vestes pratas quê trazia no dia dé antib bota. Vaz Caminha Sàhiü fórà no quintal para fazer chegar <ò eavallõi Dulce aproveitando'esse momento àrre-donáMru os formoses braços em torno da cabéhi) do mancebo, è poUsOti-lhe um beijo na fronte. Ao olhar "sotpteso e interíógadot respondeu uta sorriso 'meigo''-
— Vossa mãè vos Mijaria neste instante. Ide, e sede feliz, Estacio, como vós eu desejo 1...
Elle beijou aS mãos da gentil-Sermc-rá-, é partiu a galope para Nazaréth. Levava pW cima das roupas a capa escora ecOni ella rebuçáv!a-se para não ser conhecido.
Minutos depois apeaVa á porta do fidalgo. Atravessando os corredores para chegar á saia onde o pagem o oondttzia, paSsou deante detíma porta lateral entreabèrta. Inesita sentada no ápbSeit) ao rumor dos passos ergueu os olhos, o encflto-trou os do mancebo fitos tiella. A álttia de arii-tos no primeiro movimento prècipitbti-se, urna para aoutrai com tal força de è/ttráòçÊfò magnética, e tão grande limpWò1 que abatíttonou ò ínVottíctfa,
AS MINAS DE PRATA 2ftt
deixando ps .corpos, immo.veis pomo :estacas de mármore em attitude de sorpresa. Foi depois que essas duas almas se abraçaram longa e estreitamente, que tornando, a animar o çprpp ermo, lhe imprimiram a accão da vontade.
Os dois amantes deram o primeiro e tirn.ido, passo um para outrq, retidos peto pudQf e pqr qm. vago receio : suas mãos estendidas iam reunir-se, quando a porta da sala abriu-se no fundo do cowedor, e D. Fernando de Athayde, appareceu no limiar acompanhado pelo castelhano.
D, Fernando acabava de renunciar á mão de Inesita, apresentando como justa e digna escusa, não ser amado pela dqnzella ; e ajiesar de todas as rasões produzidas pelo fidalgo, manteve-se, firme e inabalável era sua resolução. O terrível segredo de sua família bradava-lhe na consciência.
Os dois. rivaes cruzaram um olhar diverso : o do Estacio foi doce e de gratidão, o de Fernando amargo e de rancor,
Inesita ouvindo a voz de seu pae deixara-se çabir sobre, a poltrona,, e quentes lagrimas orvar liaram o pungente sorriso com que. se ella des^ pedia, do amante. EstacÍQ4espr§Bdendíh$e:dp seu extasie, caminhou 4 presença de P- Francisco,
292 AS MINAS DE PRATA
qUe ficara no limiar da porta, ouvindo o aviso do pagem:
— Que buscaes nesta easa ? — Precisando fallar-vos, senhor , pareceu-liÉ;;
que nella vos devia procurar'. '''" :
— Para qàe, si não tenho negócios comvosco. — .Tenho-os eu com o senhor D. Francisco!de
Aguilar. — Dir-me-heis quaes sejam ? — Ides saber, senhor D. Francisco. Uma fa
talidade pesou sobre rainha casa, que não só roubou a Vida de seu chefe, como os haveres abastados e as honras adquiridas por seus ascendentes. Uma sentença de El-rei manchou a memória1
de meu infeliz pae como traidor. Deus porem1* me inspirou a força de reparar a injustiça dos homens. A minha casa vae ser restaurada, e terá outro explendor maior do que nunca teve. Suas riquezas Serão incalculáveis; nenhuma fruirá no Brasil tão grandes honras como as que eu saberei conquistar. A memória de meu pae solem-nemente rehabilitada vestirá novo lustre. Isto ainda não está feito, senhor, mas breve se fará,-eu vos juro. Supponde pois que não é o miséro1
desherdado por uma injusta sentença quem agora
AS MINAS DE PRATA / 2 9 3
vos falia ; mas um cavalleiro rico de haveres e nobrezas. 's
' —Costumam embalar com esses contos de fada as crianças. Muito extranho pois que tenhaes vindo para tal fim á uma casa respeitável.
— Não duvidareis do. que vos digo, senhor, quando souberdes que o segredo das minas de prata, que tão fatal foi á meu pae, e que se julgava perdido, acha-se em meu poder!., .
— Ah 1 — Um miserável o tinha roubado , mas não
conseguiu lográ-lo. Depois de mil Vicissitudes foi-me restituido. Brevemente o depositarei nas mãos de El-rei, -e o prêmio desse serviço, junto á um nome honrado e á uma mão leal, peço-vos permissão, senhor, para depor aos pés de vossa filha a mui nobre senhora D. Ignez de Aguilar.
O fidalgo sorriu de compaixão : — Minha filha está promettida ! — Não acaba D. Fernando de Athayde de vos
desligar de vossa promessa ?
D. Francisco rugou o sobrolho: — Já o sabieis?... Ha porem engano de vossa
parte. D. Fernando de Athayde sollicitou de mim que o desligasse da sua palavra e eu consenti,
2 $ 4 AS jtflflAS DE PRATA
porque á minha filha não faltarão os melhores partidos. Ha tempo que foi sua mão pedida por ura fidalgo do mais illustre sangue, O commén-daddr D Lopo de Vellasco ; e como se pravisseo que tinha de acontecer obteve de mira uma pfo- , messa condicional, que acaba dè se tornar positiva.
— Mas D. Ignez ,não o ama, Senhor \ '
— Minha filha não carece de ura extranho para
intermediário de seus sentimentos entre mim e ella.
Estacio conheceu que pelo coração o fidalgo era inabalável.
— , E' possível, senhor, que a segunda promessa fique sem effeito como a primeira I Poderei eu esperar...
— Evitei até agora de responder-vos direeta-^ mente. A vossa insistência força-me a franqueza. E melhor é para ambos que nos entendamos de' unia vez; para vós porque desassombrado desta vertigem podereis caminhar direito e seguro na vida ; para mim porque appellando para a vossa lealdade talvez consiga restabelecer a tránquilli-dade de minha casa.
O fidalgo poz os olhos firmes no niancebo. 'W.
ÀS MINAS DE PAATA 2§&
— Sf. fistàcío Dias, digo-vos qútí efh tèmpó é caso alguto obtereis à mão de minha filha !
Estacio ficou um instante fulminado sob essa recusa formal e terminante ; mas logo recobrando a calma:
— Poderei saber a causa de uma tão dura con-demnação ?
íf., _ !
— Melhor fora callar; mas por ella julgareis de minha sinceridade, D. Ignez de Aguilar pertence á melhor nobreza das Hespanbas para se alliar com a descendência bastarda de um simples cavalleiro portuguez, em cujas veias corre uma mistura de sangue gentio. Quanto ás honras que possam vir em troca das minas, serão, caso se realisem, nobreza de mercador, e não verdadeira fidalguia de linhagem.
A altivez de Estacio revoltou-se :
— Essa mistura de sangue gentio que corre em minhas veias, Sr. D. Francisco, é o dos senhores primeiros desta terra, onde viestes enriquecer. Quem tanto despresa a nobreza dos mercadores, também devera desprezar o seu Ouro.
— È a prova de que o desprésó é que recuso vossa alliança apesar das immensas riquezas que
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vos esperam. De mais El-rei pôde restituir á vossa casa aquillo de que.a privou; mas não póde.a sua autoridade destruir o passado e a lembrançf do desprezo que algum tempo pesou sobre ella.
— Pois Sr. D. Francisco de Aguilar, disse Estacio lento e grave, si a infâmia de um crime de traição é tal, que ainda mesmo reconhecida a in-nocencia do accusado, uma nodoa pesa sObre a sua memória e o nome dé sua família, devo di-zer-vos que sou eu Estacio Dias Corrêa, inquina-do de bastardia e descendente de gentio, qoetn' derogo de minha nobreza offerecfindb-vos alliáffça á vós D. Francisco de Aguilar, neto de reis godos!
— Que loucas palavras são estas, mancebo?
— Lede este papel I
E apresentou ao fidalgo, à obrigação passadfcjpor D. José de Aguilar ao judeu Samuel., O orgulhoso castelhano nigiu de cholera sabendo da infâmia do filho : suas mãos robustas tremiarr^se-gurando o papel, que desapparecia ante a nevoa de seus olhos inflammados.
— Apresentado ao Governador^ este papel,, a condemnação de vosso filho não se fará esperar^ Vós, altivo fidalgo, não sereis pae do mancebo
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orphão e honrado, mas sereis pae do traidor que vendeu a pátria e seu rei ao estrangeiro.
O fidalgo ficou immovei na sua angustia. Estacio o contemplava sombranceiro.
— Julgaes ainda, senhor, que a minha alliança vos seja deshonrosa ?
A resposta do fidalgo foi romana e digna de Fafaricio:
— Não me deslumbrou ha pouco a vossa riqueza ; não me abala agora a vossa ameaça. Fazei desse papel o uso que vos approuver; eu saberei evitar a deshonra de uma condemnação, punindo eu próprio meu sangue degenerado. As nossas posições permanecem as mesmas.
— As mesmas, tendes rasão. Apesar do ódio, e despreso, sereis sempre para mim o pae da mulher a quem amo, e saberei respeitar vossa honra, como si minha fora.
O mancebo espedaçou o papel e lançou ao chão os fragmentos.
— Eis destruída a única prova do erro deplorável ; asseguro-vos sobre elle silencio eterno. Puni vosso filho, si o julgaes ^ecessarió, mas poupae-Ihe a vida.
2 9 8 AS MINAS DE PRATA
A voz de Estacio tremeu.
— Poupae-lhe» sim, a vida; senão, victjnw ambos de vosso inflexível rigor, nenhum restará para consolo e companhia de vossa velhice.
O fidalgo castelhano commovido até ao coração fez~ com a palavra e com o gesto pressuroso voltar da porta o mancebo que se retirava. Estacio approximou-se palpitando de esperança, e precipitou-se com effusão sobre a mão que lhe era estendida. Mas essa mão em vez de attrahi-lo ao peito, parecia ao contrario, pela tensão firme do braço, mante-lo em distancia.
— Acreditae-me, senhor I disse o castelhano commovido. Neste momento sinto no fundo d'alma não poder acceitar vossa alliança. Offereço-vos porém minha amisade.
— Eu a recuso, senhor. Não vos quero dever nada, já que me recusaes tudo. O que fiz e o que farei, ponho-o sob a santa invocação de meu amor; não o profanarei com extranho motivo.
Estacio retirou-se dessa casa, deixando a admiração no animo soberbo do inflexível fidalgo. Ao chegar á porta de S. Bento, cahiu em uma en>
AS MINAS DE PRATA 2 9 9
boscada que lhe estava ali armada. Uma esquadra de cavallaria ao mando do alferes D. José de Aguilar, o desarmou e conduziu preso. , Duas pessoas assistiram á prisão: Tiburcio e Gil.
TJÜLSO^-
XII
Esperança é flor que brota cm toda a parte.
Em mais lobrega e modonha masmorra què a primeira jazia Estacio.
O alferes ahi o encerrara por ordem do Governador, e delle se despedira com palavras duras e ásperas:
— Aqui ficareis até á hora de serdes fuzilado como espião. Preparae-vos para morrer I
yoi. y 26
302 AS MINAS DE PRATA
Estacio encarou-o com um sorriso de asco:
— Vireis assistir á este espectaculo, Sr. D. José de Aguilar?
— Sem duvida. — Estimo bem, replicou-lbe em voz surda que
só o ouvisse o alferes; porque na volta podereis dizer a D. Francisco de Aguilar que vos perdoe, pois foi em mim punido vosso crime infame.
D. José ficou livido, e sahiu do cárcere titubeando.
— E' possível, exclamou o prisioneiro com as faces incendidas de rubor, que este miserável seja irmão de minha Ignez!
Passado este assomo de indignação, veio a pre-occupação de sua posição:
— Antepuz um instante o coração á palria. Deus puniu-me. Si eu tivesse ido direito á D. Diogo de Mariz, estaria livre!
As palavras do alferes a principio pareceram'ao mancebo uma vã ameaça ; mas reflectindo agora que está só, reconhece que todas as apparencias lhe são contrarias. De feito sua fuga da prisão ao mesmo tempo que a dos prisioneiros flamengos; a ignorância absoluta em que se achava o Governedor do que passara aquella noite e pos-
AS MINAS DE PRATA 3 0 3
teriormente; sua ausência durante tanto tempo ; deviam gerar graves suspeitas á seu respeito. Felizmente elle tinha provas irrefragaveis não só de sua innocencia, como dos importantes serviços prestados ao Estado; e pois aguardou com serenidade de espirito o momento de ser interrogado.
A posição do infeliz mancebo era porém mais critica do que elle suppunha.
Os contrabandistas, que tinham ficado na praia sob a guarda de Japy e foram pela manhã recolhidos ao presidio de Santa Luzia, julgavam-se completamente perdidos; mas apenas levados á presença do Governador, que os interrogou como quem ignorava completamente o acontecido e lhes pediu a . explicação do extranho caso de serem achados estendidos sobre a areia, atados de pés e mãos; o instincto da conservação inspirou-lhes a defeza. Deram-se como innocentes pescadores chegados á noite que estavam a dormiir em um barco a pequena distancia da praia, esperando o dia para fazerem suas avenças, quando foram assaltados por uns vultos, que ospo-zeram naquelle estado, e se apoderaram da chalupa. Entre estes tinham elles reconhecido gente flamenga.
O conto era verosimil, e coincidia perfeitamente com a parte que chegava do castello de São
304 AS MÍNAS DE PRATA
Alberto. D. Diogo de Menezes não duvidou pois que Estacio, de concerto cora os hollandezes, ti-vesse perpetrado aquelle feio crime de traição. Mandou comtudo reter prisioneiros os pescadores até colher maior informação e tirar completamente a limpo a verdade do facto; Emquanto se procedia a indagações, D. José, que temia-se de ver descoberta sua infâmia , foi arrastado á mentira para desviar de si qualquer suspeita. Não duvidou assegurar ao Governador que o plano da evasão dos flamengos fora concertado pelo judeu Samuel, á rogo c instâncias da filha Rachel, para salvar Estacio a quem amava. O desapparecimento do, rabino dava á essa versão, já autorisada pela pessoa de quem vinha, cunho de verdade. 0depoimento do Braz, arrancado pelo alferes, encheu a prova, tornando-a plena.
Tanto bastava para naquelle tempo condemnar-se um homem ; sendo o crime como o imputado a Estacio , dos .chamados crimes de guerra e o mais infame delles, a espionagem complicada de traição ; as formulas já summarias do julgamento eram dispensadas, e o réo fuzilado sem fôrma de processo nem detença, não se lhe deixando mais que o tempo de confessar-se. ,
AS MINAS DE PRATA 3 0 5
D. Diogo de Menezes, investido na qualidade de Capitão General da autoridade suprema dos cabos de guerra em campanha, se preparava á exercer o triste e penoso dever que lhe impunha a eonfiança de El-rei e o bem do Estado. Ordenara que se deixasse ao condemnado vinte e quatro horas para preparar sua alma a comparecer perante o Creador; e recusando ver o mísero mancebo á quem de coração lamentava , desviou o espirito desse pungente assurapto para emprega-lo em outros tão árduos.
De nada serviriam pois as provas em que Estacio confiava, tanto mais quando elle não as podia produzir immediatamente.
A sua gente estava aquella hora arranchada no matto sob as ordens do Antão, com as recom-mendàções sabidas. Era portanto impossível faze-la vir á cidade testemunhar sua innocencia.
Por outro lado, quando escondera o roteiro das minas, occorrera á Estacio um receio ; que sendo preso antes de obter do Governador D. Diogo de Menezes o perdão do judeu, lhe apprehenderiam a carta dirigida á Usselinck, e nesse caso perdida seria a esperança de cumprir a palavra dada á Rachel de salvar seu pae.
3 0 6 AS MINAS DE PRATA
Para evitar a sorpreza possível, senão provava!^ resolveu o mancebo occultar com o roteiro a mis-, siva lacrada dos rabinos.
Por este encadeiaraento de circumstancias, as duas provas únicas, mas irrefragaveis de seu nobre proceder, estavam não só longe, como complicadas de modo, que só elle em pessoa as podia deslindar e traze-las á sua defeza. Revelar o lugar onde estava a missiva dos judeus, era entregar o roteiro das minas; enviar alguém ao acampamento do Antão, seria affasta-lo da Bahia pelo sertão a dentro.
Entretanto o mancebo dormia tranquillo á sombra da morte que já o bafejava.
Eram cinco horas da manhã: A chave do cárcere rangiu surdamente na fechadura. O carcereiro entrou de ponta de pé, e espreitou de longe o vulto adormecido do prisioneiro; refreando a respiração, achogou-se do canto onde elle jazia deitado, e com a mão subtil, começou de apalpar as roupas, sondando ao algibeiras, bem como o peito do gibão. Não achando o que procurava, insistia na busca, quando Estacio ergueu-se de cho-fre, e o pilhou em flagrante com a mão na ratoeira.
— Mestre carcereiro, é a segunda vez que me
AS MINAS DE PRATA 3 0 7
apalpaes as algibeiras, estando eu a dormir. Dizei o que buscaes, pois talvez vos forre ao trabalho e vergonha do mister a que vos entregastes.
— Não é a culpa, senhor cavalleiro, de quem obedece, senão de quem manda. Cumpro minha obrigação de revistar os presos, para entregar ao commandante quanto trazem comsigo.
— Pois deveis faze-lo ás claras, e não com ares de espião. Vamos, acabae com isso para que doutra feita não me perturbeis o somno !
O carcereiro arrancou um suspiro do peito ca-vernoso e esgravatou alguma cousa no canto do olho, que talvez fosse lagrima :
— Não tenhaes esse cuidado, senhor cavalleiro, não vos perturbarei eu mais o somno , porque acabastes de dormir o ultimo sobre a terra !...
O mancebo sentiu um ligeiro calafrio, como se a temperatnra houvesse baixado repentinamente , e á primavera da vida succedesse o inverno mortal. Foi tudo que essa rápida transicção da esperança ao luto produziu em sua alma , já embotada ao sopro mortífero.
r— Quando começarei então a dormir em baixo da terra?... perguntou Estacio á sorrir.
— A hora está próxima ; é para as nove. O
3 0 8 AS MÍNAS DE PRATA
official que vem intimar-vos a sentença não tarda ahi.
— Quem é elle?... — O mesmo que vos trouxe, creio eu. — D. José de Aguilar I... Melhor I Morrerei
em família ! E o mancebo erguendo-se em pé, agitou o corpo
para expellir os últimos torpores do somno: — Que horas são, mestre chaveiro ? — Cinco já passadas. — Bem, restam-me quatro I... Quatro horas são
duzentos e quarenta minutos, nos quaes podem ter lugar mais de mil acontecimentos!... Uma hora me bastou para sahir do castello de S. Alberto I... Era duas ao mais tardar, mestre cer-bero, eu vos convido á beber na taberna do Braz uma botelha á minha liberdade e boa saúde!,..
O carcereiro pensou que a fatal noticia tivesse transtornado o juizo ao mancebo :
— Pobre rapaz I.,. murmurou comsigo. — Ide-vos e deixai-me tranquillo. Vossa cara
afugenta-me as idéas 1 — Senhor cavalleiro, replicou o chaveiro ressa
biado, não cuidaes já em vos pôr bem com Deus? Olhae que pouco tempo vos restai... O padre confessor só espera que o chameis...
AS MINAS DE PRATA 3 0 9
— O ConfeSsor ?... E' justamente de que eu preciso. Trazei-o aqui.
O carcereiro foi á porta, que abriu, e logo entrou um religioso , coberto com o grande som-breiro carregado sobre a fronte, de modo á deixar o rosto na penumbra.
— Nada, P.e Mestre ; segredou o carcereiro, não tem embrulho algum sobre o corpo ; disto podeis estar certo.
— Bem ; deixae-nos sós ; e não esquecei o re-commendado.
' A porta do cárcere bateu pesadamente sobre os couces; o religioso avançou lentamente para o prisioneiro e abatendo o sombrero que rojou pelas lages, mostrou a fronte alta e intelligente do P.e Molina.
— Eis-me, filho 1... Estacio não pôde reter a exclamação de sua
sorpresa : - A h i . . . Que vinha fazer ali naquelle cárcere, revestido do
caracter sagrado de confessor, o incansável jesuita ?
Esta interrogação, que logo articulou-se no espirito de Estacio, se reflecte naturalmente no pensamento de quem acompanhou o mancebo atravez
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das vicissitudes de sua vida agitada, até aquelle momento supremo.
Molina soubera da chegada de Estacio á Bahia, na mesma noite, mas infelizmente meia hora depois do combate do largo da Sé , pelo Braz, que delle escapara-se á estirão das curtas pernas. 0 taberneiro julgara inútil prevenir antes o jesuita preferindo communicar-lhe logo o feliz successo com o qual contava. Desesperado com essa con trariedade, o Visitador despachou em todas as di rècções esculcas que aventassem o rumo do man cebo ;. mas não foi possivel acha-lo ;No trações tava perdido, e só mais tarde devia ser achado
— Elle hade reapparecer algures! pensou o frade Ao Braz assignou a casa do licenciado; ao
Anselmo a de D, Mencia ; e *á Tiburcino enviou em busca de Estacio. Elle próprio sahiu depois a sondar os ânimos; foi á casa de Vaz Caminha , porem não o encontrou ; D. Mencia nada sabia; Christovão igualmente. Na sua visita ao amante de Elvira, não esqueceu o P.6 Molina a promessa que fizera á mísera enferma, e lhe serviu de pretexto para apresentar-se em casa de Christovão. O mancebo fechou-se ás primeiras palavras do frade; mas sabendo da gravidade da moléstia que assaltara a
AS MINAS DE PRATA 311
mísera donzella , sahiu arrebatadamente e correu á casa de D. Luiza.
Recolhido ao eollegio, o Visitador foiá cella do feitor :
— Padre Mestre, em que pó está o negocio que lhe deixei incumbido, quando á um mez me fui a S. Sebastião ?
— O negocio da filha de D. Francisco de Aguilar?... não vae mal encaminhado, não, Pe Visitador.
— O que ha de feito, e de esperar?... — Logo depois que V. Reverencia partiu, con
segui eu por-me em communicação com D. Is-menia, o que não deixava de ser difficil, pela enfermidade que a retém era casa, como pelas pessoas que a cercam.
— Como chegastes á esse resultado?... — Pela escrava do quarto, que me mandava
os recados por um pagem. A dama trabalha com todo o affinco para desmanchar o casamento, ao qual é extremamente avessa a filha. O pae e o filho sustentam D. Fernando um pouco por si e muito pelo benedictino cónfessor de casa, um tal Fr. Carlos da Luz ; porem a fidalga tem esperança de vencer á final a causa em favor donosso protegido D. Lopo de Vellasco.
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— Bem; persevere na sua obra. Nisto arranharam á porta. Era o leigo que
acompanhava um pagem ; este trazia ao P.* Reitor da parte de D. Ismenia a noticia que acabava de desfazer-se o casamento de Inezita com D. Fernando de Athayde.
— Corra á quinta de D. Lopo, e obrigue-o sem detença á partir para casa de D. Francisco, á exigir a confirmação da promessa que lhe foz.
Acabava o Visitador de fazer essa recommenda-ção, quando soou no corredor o passo pesado de Tiburcino, que o buscava: o carniceiro farejou Joaninha ; esta copio mariposa esvoaçava em torno de Gil, que naquella mesma manhã levara á rua de Santa Luzia o cavallo para Estacio. Seguindo de longe a mulatinha que vira Gil muito contente, e estava curiosa de saber o motivo da subita-alegria, o magarefe chegou á tempo de ver passar a galope o cavalleiro em direcção a fora de portas.
Seguiu o rasto ; chegou a Nazareth, onde pouco depois assistiu à prisão.
— Foi preso em Nazareth!... disse alegre.; ,' — Preso 1 exclamou o frade. Outra vez preso!
A' ordem de quem? Náo sabeis?.., — Do senhor Governador.
AS MINAS DE PRATA 3 1 3
— Para onde o conduziram ? — Para o presidio de Santa Luzia. O Visitador não descançou emquanto não soube
o motivo da prisão, e a sorte que aguardava a Estacio. O capellão da fortaleza era um padre secular irmão dos jesuítas ; por seu intermédio , e com seu disfarce introduziu-se o padre na fortaleza onde teve uma longa pratica com o carcereiro. Foi era virtude delia, que o digno cerbero passou á apalpar os bolsos de Estacio, á busca do roteiro das minas de prata, e levou ao coraman-dante o supposto recado do prisioneiro, que pedia para seu confessor o P.c Molina.
Na mesma manhã Vaz Caminha chamado á pressa para negocio de sua profissão , foi levado á um lugar deserto e ahi revistado por vultos desconhecidos e mascarados ; ao mesmo tempo sua casa soffria igual devassa ; todas as gavetas foram abertas com chaves falsas, explorados os escaninbos, sondado o quintal e as paredes, emfim interrogada a velha Eucheria.
, — Sem duvida sumiu elle o papel, quando sahiu da casa do advogado epor conselho delle I... O tempo que o perdi de vista, elle o empregou bem. Ah! imbecil taberneiro!,.. Só teve en-
Vol. y 27
314 AS MÍNAS DE PRATA
genho uma vez por milagre e essa contra mim. Deita a fugir e nem se lembra, comd o cão, de seguir o faro da presa que 1he escapa !
O Visitador proferiu estas palavras medindo* á passos largos o soalho de sua cella :
— Mas* a campanha não está perdida, não. A vida, a liberdade e o amor, pugnam por mim naquelle coração de mancebo ! ',*
Mandara o jesuíta chamar João Fogaça , carta maior que guardara para a ultima vasa. O capitão de matto, alguma cousa sorpreso desse chamado, acodiu não obstante. Molina o recebeu com a cortesia devida á uma pessoa de tantos predicaa\iif|j
— Tomei a liberdade de incommodar-vos; senhor João Fogaça, para saber de vós si estaes disposto á prestar um esforço em prol da Companhia, de que sois irmão? ,
— Irmão... eu?-.. Estou que vos enganaes| | P.e Mestre!... : ' ; t *
— Como é possível, si aqui tenho á mão o assento que'vos diz respeito I... Jurado em 5 de abril de 1607. •• . -
— Ah! Já sei!. . . Um dia no sertão encontrei um bom padre, que costumava viajar por aquellèi desertos só com seu corpo, e Um bordão por com-
AS MINAS DE PRATA 3 1 5
panheiro e uma sacola por comitiva: assim atravessava pelas tribus do gentio que não lhe fazia mal algum, antes o festejava com muitas alegrias. Quando o encontrei, o santo homem levava nos braços, uma criancinha tapuia que achara abandonada, e tratava delia melhor que muitas mães sabem.
— Como se chamava? , — P." Ignacio do Louriçal. Então disse eu ao santo homem : Padre, heis de fazer-me duas graças. A primeira é vossa benção, que me ha de trazer felicidade ; a segunda é dizer-me em que convento ou lugar vos posso eu encontrar para quando precise da palavra de Deus. Ensinou-me elle esta casa onde o procurei algumas vezes; e de uma dellas não o achando, um de vossos companheiros engrolhou não sei que ladainha, e fez-me jurar sobre um livro.
— Foi a ceremonia de vossa profissão ; por ella ficastes nosso irmão.
-^ Mas em summa que quereis de mim?... — Nada que não seja em serviço da religião ;
estaes de animo a cumprir o vosso juramento ? — Sou bom christão, P.e Mestre; isto basta
para que vos não recuse meu esforço. 0 P.e Molina expoz então em segredo o objecto
316 AS MINAS DE PRATA
e João Fogaça retirou-se, tendo promettido toda a sua coadjuvação.
Estes incidentes, acontecidos entre a prisão de Estacio e a entrada do P.e Molina no cárcere, explicarão talvez o que ali ia buscar o jesuita:
— Sois vós o confessor que me enviam?... perguntou Estacio.
— Desagrada-vos a presença do mais humilde dos servos de Deus ?
— Oh ! não ; a escolha não podia ser melhor. Vindes então preparar-me para morrer?...
O frade fitou nelle olhos penetrantes: — Venho arrancar-vos ao supplicio, e trazer-vos
a vida, a liberdade, a ventura, mancebo.
Ao brilho daquelle olhar, e á entonação firme da voz magnética do jesuita, Estacio estremeceu; um raio de esperança filtrara e aquecera seu coração.
— Que dizeis?...
Mas logo apoz a duvida, que se derramou no seu espirito á lembrança do homem á quemfal-lava, afogou a esperança :
— Não acredito em vossas palavras, padre 1 disse com asco.
— Me reputaes capaz de vir escarnecer das ul-
AS MINAS DE PRATA 3 1 7
ti mas horas que vos restam de vida, desventurado mancebo ?
— Profanastes o habito sagrado que me habituei á respeitar desde a infância, cobrindo com elle um coração devorado pela cobiça infame; a mão que partiu a hóstia no altar, não vos pejastes de a estender para arrebatar o alheio com fraude e violência. Posso eu acreditar-vos ?
— Isto significa, filho, que roubei o bem que vos pertencia, apoderando-me do roteiro das minas de prata. Não é assim ?
— Evitei de dar o nome á vossa feia acção, pelo respeito ao caracter de que ainda estaes revestido ; mas vossa palavra o fez, vossa consciência que responda.
O jesuita desdobrou sobre o mancebo um olhar sereno e magestoso, que vinha do fundo d'alma.
— Imaginaes vós, filho, que este humilde sacerdote que não custa ao mundo mais que um pouco de sombra, alguns covados de lila e o magro jejum, precise de outra propriedade a não ser a de alguns palmos de terra, quantos bastem para reduzir a pó a argila de que é feito ? Oh ! como vos enganaesl... Toda a minha cobiça cabe neste habito. E' em nome de Deus e para seus po-
318' AS MINAS DE PRATA
bres que nós vamos mendigando e colhendo pela terra as sobras dos ricos e as esmolas dos desinteressados que serVem ao explendor da religião e ás obras dé caridade ! '
— Deu-vos a igreja, Padre, autoridade para extorquir á força as esmolas que não vos querem fazer de vontade?
— Ponhamos claramente a questão. Tinha eu autoridade e direito para me apoderar do roteiro que existia em poder de D. Diogo de Mariz, sem vosso consentimento ? Vou responder-vos perante a lei e perante a religião. Sim, filho, eu tinha essa autoridade.
— E' o que vos faltava, Padre; a apologia do crime.
— Ouvi antes de condemnar. Estacio Corrêa, sois noviço da Companhia de Jesus; quando en-trastes para as aulas do Collegío, poz vosso mestre e padrinho a condição de serdes admittido, como simples estudante, sem compromisso religioso ; simularam acceitar essa condição, e tanto vosso tutor, como vós, assignaram depois um assento julgando-o sem importância ; era o do vosso noviciado. Ora desde esse instante ficastes sob a tutela da Companhia, que linha direito de obrar em vosso
AS'MINAS DE PRATA * 3 Í 9 '
nome. Este ponto é incontestável; o doutor Vaz Caminha se aqui estiverâ me daria rasão.
— Mas desde que me despedi dô Collegio, <que ligação tinha eu mais com a Companhia?
— Oh ! Os laços que prendem uma vez alguém ao Instituto são difficeis de romper. Deixamos que sahisseis por uma condescendência ; mas podemos reclamar-vos no instante em que nos approuver.
— Desafio-vos a que o tenteis!... Mais fácil é aluir-se aquella casa sobre vós, do que entrar eu nella. v
— Tal não é nossa intenção : restituimos vossa liberdade, não vos privaremos delia. Mas tomei á peito provar-vos não só a justiça, como a generosidade com que procedi á respeito do roteiro, pois desejo á cima de tudo a volta de vossa estima e confiança.
O frade recolheu-se :
— Sois moço, Estacio, e não conheceis mais que um canto do mundo e uma nesga de tempo. Emballaes-vos em esperanças fallazes. O spgredo das minas de prata que trazeis comvosco não é a fonte de venturas que imaginaes, mas um veneno mortal, um raio, que de um instante para
3 2 0 » AS MINAS DE PRATA
outro vos ha de fulminar. Antes de chegardesa El-rei, encontrareis como vosso pae o roubo, talvez o homicídio; nos pés do throno achareis em vez do prêmio, decepções. Apenas no começo de vossa empreza, podeis já avaliar do que vos espera, quando fermentarem as paixões que ides semeando em vosso caminho. Apossando pois a Companhia desse precioso segredo, eu vos garantia os benefícios sem trabalho, ao passo que prestava á teligião importante serviço. A Companhia tomava sobre si a pesada tarefa da exploração das minas, mas vos assegurava um futuro grande,, enchendo-vos de riquezas immensas, de honras principaes; e completando a vossa ventura com a alliança que sonhaes 1
— Vós o sabeis, Padre?...
— Sei tudo: que amaès D. Ignez de Aguilar, que ella vos retribue com igual extremo; mas que entre vós ambos se levanta um obstáculo insuperável. D. Francisco de Aguilar jamais consentirá em vosso casamento !
Estacio abaixou a cabeça :
— Salvo, continuou o jesuita, si eu o quizer.
— O que é necessário para o quererdes?
AS MINAS DE PRATA 3 2 1
— Que me entregueis ô roteiro, e me deixeis trabalhar em vossa felicidade.
0 P.* Molina, soltando as asas á sua eloqüência, desenhou o quadro fascinador do futuro que esperava o mancebo; esboçou á traços largos e magistraes a carreira brilhante que elle tinha a percorrer; appreciou na devida altura os benefícios que prestava á religião, armando a Ordem de Jesus daquella arma poderosa, e habilitando-a a engrandecer a pátria, de que seria bemfeitor; ergueu o pedestal onde a posteridade reconhecida havia de collocar a sua estatua illustre.
Depois de fascinar a ambição do mancebo com estes fogos que se propagam em toda a imaginação .moça e ardente, como a chamma no algodão, o Visitador abriu aquelle coração immen-samente dilatado por um amor sedento, e vasou nelle quanto nectar e quanta delicia podem tran-sudar das ternas esperanças e das suaves reminis-cencias. A scena das justas e torneios foi de repente armada na memória de Estacio, qual elle a tinha visto na tarde de anno bom, como uma brilhante decoração á belleza explendida de Inezita. Elle viu, como si a tivesse presente, irradiar aos seus olhos a imagem encantadora da donzella a sorrir-lhe.
3 2 2 AS MINAS DE PRATA
Durante todo esse sonho o mancebo só tivera uma leve hesitação :
— E a honra de meu pae? perguntou elle. Si vos entrego o roteiro continuarão a crer que elle trahiu 'El-rei.
—' As grandezas que vos esperam apagarão esse triste passado.
— Sim! cobrirei a chaga com a purpura! exclamou o mancebo indignado. Serei illustre, mas deixarei deshonrado aquelle de quem descendo! :
— O que deshonra é o crime, não a pena. ; Tendes a certeza de qüe vosso pae não commet-teu traição; a sentença que o condemnou será revogada. Que mais pôde exigir a vossa nimia severidade ?
Então o mancebo entregou-se sem reserva ao embevecimento daquella palavra seductora. Seus-lábios já descerrados pelo sorriso moviam-se para revellar o lugar onde se achava o roteiro, quando 1 soou tora um grande rumor de armas, tambores e atabales.
Eram os pelotões, destinados á execução militar, qae começavam de formar-se no grande pateo do forte. Este som de morte cahindo de repente sobre o enxame de sonhos dourados que esvoaça-
AS MINAS DE PRATA 3 2 3 • ; *
vam na mente do mancebo, confrangeu-lhe o coração que passava assim de repente do almo calor ao gelo.
A desconfiança adormecida espertou : — O astuto frade, depois de arrancar-me o
segredo, mais depressa me deixaria morrer! Não ha de ser assim!... Não!"...
0 frade percebeu o que passava no espirito do -mancebp,j embora parecesse comptetecnante absorvido á escutar os rumores, de fora.
— Sabeis que movimente é este? perguntou ao mancebo.
— Preparam-se a fazer as honras que me pro-mettestes, Padre I... disse Estacio com um sorriso de escarneo.
— Só vos restam horas. Resolvei, filho ; accoi-taes a vida que vos trouxe, e com ella a liberdade e a ventura ?
— Não1 Não 1 Não!... O mancebo escandiu estes três monosyllabos com
uma lentidão calculada, para indicar o peso de vontade que carregava cada uma de suas negativas.
— Retirae-vos, para que eu morra em paz. Molina envolveu-se no habito, carregou o sombrei-
ro e chegando á porta bateu para chamar o carcereiro. FIM DO 5,° VOLUME.
Í N D I C E DO V O L U M E V,
I Em que o rato fura a casca do queijo, mas não chega ao miolo 5
II Como Estacio evadiu-se de uma prisão para cahir em outra 33
III Do céo ao fuodo do mar * 67 IV Que refere o suicídio de uma virtude . . . 97 V Do mais que succedera na Bahia . . . . . 123
VI Mais vai quem Deus ajuda do que quem cedo madruga 149
VII No fim das contas cahe o rato na ratoeira. . 178' VIII Como brota o amor entre goivos . . . .199
IX Avança o P. Molina a sua reserva . . . .227, X Milagre do gelo que se derrete em balsamo . 2491 XI O circulo vicioso da fortuna adversa . . . 263
XII Esperança é flor que brota em toda a parte . 301
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