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A DEMOCRATIZAÇÃO BRASILEIRA: UM BALANÇO DO PROCESSO POLÍTICO...

A presente conjuntura, marcada como tem sido porum suceder de crises políticas emaranhadas emoutras de natureza econômica e social, tem levado

oposto, de tonalidades vivas, do que tem sido conquistadoem nossa experiência democrática. Trata-se, sim, de dar adevida ênfase aos aspectos tanto negativos como positivos àluz dos constrangimentos antepostos ao processo de libera-lização política. Ou seja, procura-se valer do tão aludidoconceito de path dependence para salientar a noção de queas opções políticas postas em uma determinada conjunturaresultaram de decisões precedentes �, escolhas feitas pelosatores relevantes �, as quais influenciaram o curso do pro-cesso político, a ponto de limitar o leque de opções numaconjuntura futura, e portanto os cursos de ação possíveis. Sobtal enfoque, a discussão sobre o cenário democrático atualrequer, primeiramente, uma referência ao ponto de partidada democratização � isto é, o regime militar-autoritário quevigorou de 1964 a 1985 � bem como à dinâmica política queorientou a liberalização deste regime e sua transição para ademocracia. Fazer uma retrospectiva deste processo será oobjetivo deste artigo, que não tem qualquer pretensão de ofe-recer uma interpretação original sobre esta temática. A in-tenção é apenas de trazer ao presente um pouco de nossopassado recente, que tem sido negligenciado na maioria dasanálises que dão suporte ao debate político atual.

GOVERNO MILITAR-AUTORITÁRIO

Como já foi amplamente discutido na literatura, o casobrasileiro, comparado a outras experiências autoritárias

A DEMOCRATIZAÇÃO BRASILEIRAum balanço do processo político desde a transição

MARIA D�ALVA G. KINZO

Professora do Departamento de Ciência Política da USP

Resumo: O objetivo do artigo é discutir a presente experiência democrática através de uma análise do caminhopercorrido pelo processo de democratização brasileiro. A visão bastante crítica sobre tal experiência, presenteno debate político atual, tem negligenciado o impacto que constrangimentos de várias naturezas tiveram sobreo processo de democratização. Uma análise retrospectiva que recupere as marchas e contramarchas da longatransição democrática ajuda a compreender alguns dos dilemas da atual conjuntura.Palavras-chave: transição democrática; democratização brasileira; partidos políticos.

muitos à percepção de que, se não chegamos a andar paratrás, avançamos muito pouco na direção do aprimoramentodemocrático do sistema político brasileiro. A ineficácia dosgovernos em tratar de solucionar os problemas econômicose sociais que afetam a porção majoritária da população bra-sileira, a onda de denúncias de práticas de corrupção em ór-gãos públicos, envolvendo lideranças políticas importantes,e a sensação de insegurança resultante não apenas da violên-cia urbana, mas também de instabilidade econômica de vá-rias naturezas, são elementos que se combinam para formaro pessimismo geral que se tem alastrado, em relação aos fru-tos desses anos de democracia no país. Para uma populaçãoque, em sua maioria, tem mostrado pouco apego aos valoresdemocráticos � como várias pesquisas de opinião têm cons-tatado �, esses fatores aludidos acabam ocultando os avan-ços democráticos conquistados nos últimos 16 anos. Porexcesso de foco no presente, esquece-se do passado recente,ou trata-se de vê-lo desprovido de seus espinhos, e julga-seo presente sob a perspectiva de um modelo idealizado dosistema político. É em função desse desencanto frente aoquadro político atual que parece oportuno rememorar o ca-minho percorrido pela democratização brasileira para, a partirdaí, avaliar o presente regime democrático. Não se trata aquide contrastar o clima geral de pessimismo com um cenário

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vivenciadas na mesma época em outros países da Améri-ca Latina, assentou-se sob alicerces singulares que mere-cem referência quando tratamos de analisar a influênciade fatores de longo prazo no processo de democratiza-ção.1 Estas bases são de duas naturezas: uma tem a vercom as instituições políticas sob as quais o governo mili-tar operava; e a outra, no domínio econômico, refere-seao modelo de desenvolvimento seguido e suas conseqüên-cias. No âmbito da política, há que se lembrar a emergên-cia de uma situação bastante paradoxal. Por um lado, tra-tava-se de um regime tipicamente militar no sentido deque as Forças Armadas, enquanto instituição, passavam(após o golpe civil-militar que depôs João Goulart em1964) a dirigir o país. Tal situação necessariamente leva-ria a que a instituição militar passasse a ser também umaarena de disputa pelo poder político, o que teria conse-qüências não apenas na coesão interna da organização, mastambém em toda a dinâmica política. Conflitos entre ofi-ciais moderados e radicais permearam os 21 anos de go-verno militar gerando freqüente instabilidade política. Poroutro lado, tratava-se de uma situação que manteve emfuncionamento os mecanismos e os procedimentos de umademocracia representativa: o Congresso e o Judiciáriocontinuaram em funcionamento, a despeito de terem seuspoderes drasticamente reduzidos e de vários de seus mem-bros serem expurgados; manteve-se a alternância na pre-sidência da República; permaneceram as eleições perió-dicas, embora mantidas sob controles de várias naturezas;e os partidos políticos continuaram em funcionamento,apesar de a atividade partidária ser drasticamente limita-da. Em síntese, era um arranjo que combinava traços ca-racterísticos de um regime militar autoritário com outrostípicos de um regime democrático. Este arranjo peculiarfoi o responsável, em grande medida, por sucessivas cri-ses políticas que acompanharam o regime, fazendo-o secaracterizar por fases alternadas de repressão e liberali-zação permeadas por crises políticas resultantes de con-flitos dentro do exército e entre estes grupos e a oposiçãodemocrática (Kinzo, 1988). A instabilidade que acompa-nhou o governo dos militares no Brasil, indicativo da difi-culdade de institucionalização do regime, levou Linz (1973)a caracterizar o autoritarismo brasileiro como uma situaçãoem vez de um regime propriamente dito. Regime ou situa-ção, o fato é que o estabelecimento desse arranjo políticohíbrido teve grande impacto na maneira como se deu a tran-sição brasileira. Porém, antes de analisar o processo de tran-sição, outra característica no modelo brasileiro, desta vezno âmbito econômico, deve ser apontada.

Em contraste com o que aconteceu, por exemplo, noChile, onde o governo militar provocou uma mudança sig-nificativa no modelo econômico, no Brasil os militares nãoinovaram em matéria de política econômica. Com exce-ção dos três primeiros anos de governo militar, quandotodos os esforços concentraram-se no programa de esta-bilização para conter as altas taxas de inflação, a políticaeconômica, durante o período militar, seguiu basicamen-te o mesmo modelo vigente desde o governo Vargas. Ochamado �milagre brasileiro� do período 1967-73 tevecomo sustentáculo, por um lado, os resultados obtidos pelapolítica de estabilização de 1964-67 e, por outro, umapolítica de desenvolvimento que consolidou e intensifi-cou o modelo de substituição de importações que reser-vava ao Estado um papel empreendedor ainda mais im-portante. Por volta de 1974, a despeito dos sinais de queo milagre havia se desfeito � manifestos pelo impacto quea crise mundial do petróleo exerceu no Brasil �, o mesmocaminho continuou a ser trilhado. Uma ambiciosa políti-ca de substituição de importações de bens de capital ematérias-primas, sustentada por investimentos do setor pú-blico e por empréstimos estrangeiros, foi a estratégia se-guida (Cardoso, 1983). Certamente, esta estratégia teveêxito ao garantir altas taxas de investimento e ao fazer daexperiência brasileira de regime militar-autoritário um casode desempenho econômico bem-sucedido. Porém, foi tam-bém responsável por sérios desequilíbrios, e os proble-mas econômicos que haviam provocado a intervençãomilitar em 1964 � inflação alta e estagnação econômica �ressurgiram com ainda mais intensidade, permanecendocomo pano de fundo do processo de transição política.2

A LONGA TRANSIÇÃO

Não foi apenas o regime militar que, no Brasil, tevetraços peculiares. Também singular foi seu processo dedemocratização.3 Tratou-se do caso mais longo de transi-ção democrática: um processo lento e gradual de liberali-zação, em que se transcorreram 11 anos para que os civisretomassem o poder e outros cinco anos para que o presi-dente da República fosse eleito por voto popular. Parapropósito analítico, pode-se dividir este processo em trêsfases. A primeira, de 1974 a 1982, é o período em que adinâmica política da transição estava sob total controledos militares, mais parecendo uma tentativa de reformado regime do que os primeiros passos de uma transiçãodemocrática de fato. A segunda fase, de 1982 a 1985, étambém caracterizada pelo domínio militar, mas outros

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atores � civis � passam a ter um papel importante no pro-cesso político. Na terceira fase, de 1985 a 1989, os mili-tares deixam de deter o papel principal (apesar de mante-rem algum poder de veto), sendo substituídos pelospolíticos civis, havendo também a participação dos seto-res organizados da sociedade civil. Como estas fases pos-suem diferentes componentes e dinâmicas resultantes dojogo dos principais atores políticos, uma análise com al-gum detalhe faz-se necessária.

Primeira Fase: 1974 a 1982

A ascensão do general Geisel na presidência da Repú-blica, em 1974, e o anúncio de seu projeto de distensão�gradual e segura� marcaram o início de um novo perío-do do governo militar-autoritário, uma fase que passariaa ser o ponto de partida do processo de democratizaçãono Brasil. A revogação parcial da censura à imprensa e ossinais, por parte do governo, de valorização das eleiçõeslegislativas daquele ano (1974) indicavam que as decla-rações do novo presidente eram algo mais do que promes-sas de retorno à democracia tão freqüentemente aludidaspor seus antecessores na presidência.4 O modo como esteprojeto de liberalização foi conduzido e a dinâmica doprocesso político que acabou por levar à democracia fo-ram, no entanto, algo extremamente complicado. Esta faseda transição foi totalmente conduzida pelo governo militar,que definiu tanto seu ritmo como seu escopo. Entretanto,vários fatores influenciaram o curso deste processo.

O primeiro fator foram as eleições. Os sinais de libera-lização que permitiram a realização das eleições de 1974em condições mais livres resultaram num surpreendentedesempenho eleitoral do partido de oposição (MDB). Comisso, ficava evidente que, a despeito dos excelentes resul-tados econômicos conseguidos sob regime militar, estecarecia de apoio popular. Também ficava claro que o ino-fensivo MDB, criado para ser parceiro da Arena no bi-partidarismo de fachada instituído pelo regime, havia setornado um instrumento efetivo de oposição democráti-ca, a ser utilizado não apenas na arena eleitoral, mas tam-bém no processo político mais amplo, de modo que, se apolítica de liberalização deveria ser mantida sob controledo governo, esta tinha que neutralizar tanto as eleiçõescomo o MDB (Lamounier, 1988 e Kinzo, 1988).

O segundo fator era a instituição militar e seu conflitointerno. Na realidade, uma das principais razões que ex-plicam a iniciativa do governo de iniciar a liberalização éa necessidade de os militares se retirarem da vida política

a fim de preservar a própria instituição.5 Porém, a inicia-tiva de Geisel intensificaria o conflito dentro das ForçasArmadas, tornando mais agressiva a reação da chamadalinha-dura contra a abertura do regime. A intensificaçãona repressão policial, empreendida pela linha-dura nocomando militar de São Paulo em 1975-76, foi claramen-te uma reação à política de liberalização de Geisel. Trata-va-se, portanto, de neutralizar as pressões internas dosmilitares contra a distensão, de modo que eles não minas-sem o comando político de Geisel e tampouco interferis-sem, mais tarde, na questão crucial que seria a sucessãopresidencial.

Geisel foi bem-sucedido ao lidar com ambos os pro-blemas, jogando nas duas direções ao mesmo tempo: deum lado, puniu com a cassação do mandato alguns dosparlamentares de postura oposicionista mais aguerrida,alterou leis eleitorais e procedimentos legislativos paracontrolar a oposição, apaziguando assim os militares dalinha-dura, ao mesmo tempo em que reafirmava seu con-trole sobre a oposição democrática; de outro lado, reagiuà radicalização dos militares da linha dura, demitindo ocomandante das Forças Armadas de São Paulo após amorte por tortura de um jornalista e de um trabalhadormetalúrgico, nas dependências dos órgãos de repressão.Reafirmando assim seu comando absoluto sobre o processopolítico, Geisel conseguiu não apenas dar continuidade àpolítica de distensão, como também controlar o processosucessório.

Deste modo, ao final de 1978, reformas políticas decunho liberalizante foram implementadas de acordo como caráter gradual e seguro da política de distensão. Umnovo presidente, general João Figueiredo, encarregado dedar continuidade à transição política nos seis anos seguin-tes, havia sido eleito estritamente de acordo com a deter-minação de Geisel de impor o nome por ele escolhido.

Se Geisel foi extremamente habilidoso ao tratar com po-tenciais opositores a seus objetivos políticos, não teve amesma habilidade para lidar com um terceiro fator que in-fluenciou o processo de liberalização política: o problemaeconômico. Várias eram as evidências de que o �milagre eco-nômico� brasileiro estava se esgotando.6 O problema econô-mico era certamente um elemento crucial a ser levado emconta se os militares quisessem retornar aos quartéis comsegurança. Ao que parece, considerações de natureza políti-ca foram fundamentais no modo como Geisel decidiu lidarcom a primeira crise mundial de petróleo e suas conseqüên-cias recessivas. Em vez de optar pela contração econômica,como aconteceu na maioria dos países afetados pela crise, o

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governo Geisel implementou uma política de expansão eco-nômica através do aprofundamento do modelo de substitui-ção de importações, em detrimento dos conseqüentesdesequilíbrios internos e externos. Assim, um ambicioso pro-grama de substituição de importações nos setores de maté-ria-prima e bens de capital foi implantado, envolvendo in-vestimento estatal significativo nos setores de energia einfra-estrutura às custas de grandes empréstimos estrangei-ros. O curso desta política não foi revertida durante os pri-meiros anos da administração Figueiredo, o que significavaque, enquanto a economia expandia, as contas externas e ainflação continuavam a crescer. O agravamento dos proble-mas externos obrigou a equipe econômica de Figueiredo amudar radicalmente a política econômica. Uma tentativa dereajuste econômico foi pela primeira vez implementada, ge-rando uma queda brusca na atividade econômica e aumen-tando o desemprego. Outro choque externo em 1982 agra-vou ainda mais o cenário econômico extremamente vulnerávelàs mudanças no ambiente externo (Lamounier e Moura,1986). A partir daí a crise econômica acompanharia passo apasso a transição política e os governos democráticos quelhe seguiram.

Em suma, os três fatores apontados � o processo elei-toral, o conflito interno dentro das forças armadas e aemergência de sérios problemas econômicos � concorre-ram para fortalecer aquele padrão controlado e gradualque caracterizou a transição democrática no Brasil. Ini-ciada em 1974, a liberalização somente teve um avançosignificativo em 1978, quando finalmente foi revogado odraconiano Ato Institucional n.5. Em 1979, já na admi-nistração Figueiredo, o Congresso aprovou a anistia, que,embora limitada, permitiu a reintegração à vida públicade políticos exilados e de ativistas de esquerda punidospelo regime militar. Uma nova lei partidária pôs fim aobipartidarismo compulsório criado em 1966, levando àcriação de novos partidos.

A reforma partidária representou importante avanço noprocesso de liberalização, mas foi também uma estratégiado governo para dividir a oposição e assim manter a tran-sição sob controle. Entre os fatores a serem controladosestava a sucessão presidencial de 1985, que deveria pos-sibilitar o restabelecimento do governo civil. Tratava-sede garantir não apenas que o próximo presidente fosseeleito via Colégio Eleitoral (e não por sufrágio universal),mas também a maioria governista no Colégio Eleitoral.Assim, alteraram-se as regras eleitorais e mesmo a com-posição do Colégio Eleitoral, de forma a reduzir as chan-ces de a oposição obter a maioria.

Segunda Fase: 1982 a 1985

Apesar dos percalços, o processo de liberalização tevecontinuidade, iniciando uma nova fase com as eleições de1982. Novos partidos políticos haviam sido criados e par-ticipado das eleições. Políticos que nos anos 60 tinhamperdido seus direitos voltaram à vida pública e, pela pri-meira vez desde 1965, governadores estaduais foram elei-tos pelo voto popular. Naquelas eleições, o governo mili-tar teve importantes ganhos, assegurando sua maioria noColégio Eleitoral que elegeria o próximo presidente. Po-rém, também a oposição obteve avanços significativos, par-ticularmente o PMDB, que elegeu os governadores e se-nadores de nove Estados e conquistou 200 cadeiras naCâmara dos Deputados. Assim, apesar de os militarescontinuarem em sua posição inquestionável de jogadorprincipal, outros atores passariam, a partir de 1982, a in-fluenciar o jogo, atrapalhando os planos do governo demanter o controle total sobre o processo político.

O episódio mais importante foi a sucessão presiden-cial, a qual deve ser analisada como uma peça em doisatos. O primeiro seria a tentativa do PMDB, em 1984, demudar as regras das eleições presidenciais, propondo umaemenda constitucional que restabelecesse o voto direto.Com o objetivo de obter apoio popular para a aprovaçãoda emenda, os partidos de oposição partiram para a mobi-lização da população. O resultado da campanha das �Di-retas Já� foi uma impressionante mobilização popular commilhões de pessoas participando de comícios em todo opaís. Observando-se aquela mobilização, a impressão erade que a sociedade civil � que havia mostrado sua exis-tência nos movimentos sociais surgidos em 1978 � tinhadecididamente despertado e, finalmente, alteraria o cursoda liberalização. Essa foi, na verdade, a percepção de al-guns setores da oposição democrática, mas a emenda foiderrotada no Congresso, uma vez que a pressão popularnão foi eficaz o suficiente para fazer frente a todas asmanobras usadas pelo governo para evitar sua aprovação.

O desfecho deste episódio colocou mais uma vez em evi-dência que os militares estavam determinados a manter, aqualquer custo, o controle sobre o processo sucessório pre-sidencial. Ficou também evidente que, apesar do apoio damobilização popular, a oposição era numericamente muitofraca no Congresso para ser capaz de desafiar o regime sefosse para continuar jogando dentro das regras estabeleci-das. À oposição restava duas saídas: buscar simpatizantesdissidentes dentro do governo; ou romper as regras do jogoatravés da mobilização da sociedade civil. A decisão de qual

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direção seguir dependia da posição e força relativa de cadaum dos diferentes grupos da oposição, ou seja, o PMDB comsuas divisões internas, o PT, o PDT e o PTB. Do PTB seesperava pouco de oposicionismo, dado que havia votadocontra a emenda das diretas em troca de cargos no governo.O PDT, por sua vez, era imprevisível, uma vez que seu líder,Leonel Brizola, chegara a propor a prorrogação do mandatopresidencial de Figueiredo em troca de eleições diretas paraseu sucessor. Deste modo, restaram apenas dois atores prin-cipais: a favor da primeira alternativa estava o PMDB, maisespecificamente sua ala moderada, que era a mais numerosae liderava o partido; a favor da segunda estava o PT, seguidopor um pequeno grupo de parlamentares do PMDB que man-tinham relações mais próximas com os movimentos sociais.

A decisão do PMDB de optar pela primeira alternativa� isto é, tentar influenciar o processo sucessório jogandoconforme as regras estabelecidas � foi o segundo ato dasucessão presidencial. Sem dúvida era o produto da posi-ção moderada dos líderes do partido, para quem uma so-lução negociada evitaria a imprevisibilidade e os riscosde uma mobilização popular e, conseqüentemente, a rea-ção por parte dos militares da linha-dura contra qualquertentativa de mudança radical.7 De qualquer modo, os lí-deres do PMDB estavam dispostos a participar do pro-cesso sucessório mesmo que em condições limitadas. Defato, enquanto o PMDB trabalhava pela campanha pró-diretas, a ala moderada do partido já articulava uma es-tratégia alternativa caso a emenda não passasse no Con-gresso. A proposta era a candidatura Tancredo Neves paraconcorrer pela oposição na eleição pelo Colégio Eleito-ral, alternativa que ganhou força tão logo foi derrotada aEmenda das Diretas. Entretanto, viabilizar a candidaturade Tancredo Neves não era uma tarefa simples, uma vezque, para seu êxito, era necessário conseguir o apoio dooutro lado, ou seja, de parlamentares do partido do go-verno. A oportunidade surgiu quando alguns políticos doPDS recusaram-se a apoiar o candidato do governo no-meado na convenção do partido. Negociações entre oPMDB e dissidentes do partido do governo (que depoiscriariam o PFL) levaram à formação da Aliança Demo-crática, cujo objetivo era juntar forças para derrotar ocandidato do governo. Em troca do apoio dos dissidentesà candidatura Tancredo Neves, o senador José Sarney foiescolhido para ser candidato a vice-presidente na chapada oposição.

A estratégia adotada pela oposição moderada certa-mente logrou êxito, pois o governo militar foi impossi-bilitado de impor seu candidato, mas teve duas conse-

qüências importantes: possibilitou que os dissidentesdo regime autoritário desempenhassem um papel impor-tante no novo regime � na verdade passariam a ser par-ceiros de todos os governos que se seguiram; e abriuum amplo espaço para as críticas dos setores mais ra-dicais da oposição, mais especificamente o PT, contrá-rios à participação no processo indireto da eleição pre-sidencial. Sob o argumento de que o Colégio Eleitoralera ilegítimo e não representativo, os parlamentares doPT foram orientados a não participar da escolha do su-cessor de Figueiredo. Como o número de votos do PTno Colégio Eleitoral não era decisivo, certamente eramais lucrativo posicionar-se contra a transição nego-ciada, diferenciando-se assim da oposição moderada eafirmando sua própria identidade mais à esquerda nosistema político que emergia. O problema, entretanto,estava no fato de que, ao denunciar as limitações da�transição negociada�, esta estratégia contribuiu paraque a nova ordem instaurada em 1985 desse seus pri-meiros passos com sua legitimidade já questionada.

Terceira Fase: 1985 a 1990

A segunda fase da transição findou-se com a eleiçãode Tancredo Neves e José Sarney, em 15 de janeiro de1985. Porém, a inauguração de seu governo � que deuinício à terceira fase da transição � sofreria ainda o efeitodo acaso: a doença repentina de Tancredo, seguida de suamorte, levando à posse do vice, José Sarney, na presidên-cia da República. Como conseqüência, além de a NovaRepública � como passou a ser chamado o restabele-cimento do governo civil � ter resultado de um acordo entresetores moderados da oposição e dissidentes do governo,sem o respaldo do voto popular, com a morte de Tancredoum outro complicador iria se antepor à democratização.Significava que a Nova República nascia sob circunstân-cias bastante frágeis, especialmente para um presidenteque teria de enfrentar uma crise econômica e social quese avolumava. Assim, Sarney tomou posse sem um planode governo propriamente dito e com um sério déficit emlegitimidade: uma figura política marcada por anos de vín-culos com os militares, que assumia o poder sem o respal-do das urnas e que não era das fileiras do partido que es-perava desta vez governar � o PMDB.8 Estes fatoresdificultaram sua administração, que ficou vulnerável atodos os tipos de pressão � desde as forças políticas hete-rogêneas que compunham seu governo (cada uma tentan-do aumentar sua influência) até os partidos de oposição e

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os setores organizados da sociedade civil demandandopronta democratização em todos os sentidos do termo.

A despeito destes problemas, a democratização brasi-leira seguiu seu curso neste novo contexto político. Noque tange à questão social e econômica, o caminho per-corrido foi de pedras e espinhos no período que se seguiu:entre 1986 e 1994 o país mudou quatro vezes de moeda eteve seis experimentos em estabilização econômica, ape-nas o último � o Plano Real � tendo sido bem-sucedido. Asucessão de fracassos não apenas agravou a crise econô-mica e social, mas também comprometeu a capacidade doEstado de governar, tornando o problema da governabili-dade uma realidade permanente.

No que tange à esfera política, a fase inaugurada em1985 foi de intensificação da democratização. Os sinaismais importantes foram a instituição de condições livresde participação e contestação (com a revogação de todasas medidas que limitavam o direito de voto e de organiza-ção política) e, acima de tudo, a refundação da estruturaconstitucional brasileira com a promulgação de uma novaConstituição em 1988.

A elaboração da Constituição de 1988, vale lembrar,foi ilustrativa da complexidade que cercou o processo dedemocratização brasileiro. Do início ao fim, o processoenvolveu um embate entre os mais variados grupos, cadaum tentando aumentar ou restringir os limites do arranjosocial, econômico e político a ser estabelecido. Na verda-de, este clima de batalha verbal e de manobras nos basti-dores era, em grande medida, um efeito colateral do cur-so da transição. Uma refundação que se apoiava numacordo negociado seria pressionada em duas direções: deum lado, pelas forças políticas do ancién regime tentandoassegurar seu espaço neste novo cenário; e de outro, pe-los setores de esquerda que, embora minoritários, adqui-riram importante papel no processo constituinte. A pechade ser uma transição negociada acabou fazendo com queseus condutores � líderes políticos moderados mas demo-cratas � se tornassem mais vulneráveis às críticas quantoàs limitações do novo regime e, por conseguinte, mais sen-síveis às pressões das forças políticas que clamavam peloaprofundamento da democratização. Em função deste fa-tor, é provável que a estrutura constitucional tenha se tor-nado muito mais democrática do que se esperaria das cir-cunstâncias de um processo de transição tão gradual econtrolado como foi o brasileiro, pois, a despeito de aAssembléia Constituinte ter sido amplamente criticada naépoca por sua natureza congressual, foi certamente a ex-periência mais democrática na história constitucional bra-

sileira. No que se refere aos procedimentos que nortearamsua elaboração, vários pontos devem ser assinalados:- os trabalhos foram organizados sob uma estrutura bas-tante descentralizada, de modo que todos os constituintestivessem garantida sua participação nas diversas fases doprocesso;- ao invés de um trabalho a portas fechadas, houve amplaabertura para a sociedade, uma vez que foi um processonão só intensamente coberto, a cada passo, pela impren-sa, mas que também contou com a participação dos gru-pos sociais organizados, seja diretamente, através de de-mandas e sugestões na fase de trabalho das subcomissões,seja indiretamente, por meio de pressão para que suas pro-postas fossem aprovadas pelo plenário;- dado que as forças políticas encontravam-se fragmen-tadas e os partidos escassamente organizados, a Constituin-te se tornou bastante permeável às pressões dos interes-ses de grupo, sendo que a decisão da maioria era precedidade longas negociações a cerca de praticamente cada itemespecífico.9

No que se refere ao produto, a despeito de várias im-perfeições, a Constituição representou um avanço signifi-cativo. Todos os mecanismos de uma democracia repre-sentativa foram garantidos, mesmo aqueles associados àdemocracia direta, como o plebiscito, o referendo e o di-reito da população de proposição de projeto de lei. Alémdisso, desconcentrou-se o poder em conseqüência do for-talecimento do poder do Legislativo, do Judiciário e dosníveis subnacionais de governo, bem como da total liber-dade de organização partidária. Do âmbito social, a Cartade 1988 significou importantes avanços nos direitos tra-balhistas, bem como nos padrões de proteção social sobum modelo mais igualitário e universalista (Castro, 1993).A Constituição também foi inovadora em relação às mi-norias, com a introdução de penalidades rigorosas paradiscriminações contra mulheres e negros. No entanto, dadoo contexto social e político no qual se processou a recons-titucionalização do país, o novo estava fadado a convivercom o velho. Este foi o caso do secular problema agrário,que permaneceu quase intocado, e dos militares, que man-tiveram sua prerrogativa de poder intervir, caso solicita-do por um dos três poderes, na eventualidade de uma gra-ve crise política. O legado da era Vargas foi tambémreafirmado pela Constituição, na inclinação nacionalista eestatista de algumas de suas cláusulas econômicas e na pre-servação de muitos dos traços característicos da estruturacorporativa de representação de interesses.10

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A eleição de 1989 � quando 72 milhões de eleitoresforam às urnas para eleger o presidente da República �finalmente encerrou a terceira e última fase da transiçãobrasileira. A posse de Collor marcava, simbolicamente, ofinal de um longo e complicado processo de transição de-mocrática. Porém, os desdobramentos políticos que seseguiram demonstraram que a democracia emergente teveainda que passar por vários testes antes de chegar na pre-sente situação. Entre os fatos marcantes que tornaram operíodo uma sucessão de crises econômicas e políticas,alguns merecem destaque:- as drásticas medidas econômicas do Plano Collor decreta-das no dia seguinte à sua posse � políticas que, apesar de suaradicalidade em interferir arbitrariamente na poupança po-pular e investimentos financeiros e em promover ampla li-beralização comercial, logo se mostraram ineficazes paraconter a crise, levando à rápida erosão do apoio popular doprimeiro presidente eleito pelo voto direto;- impeachment do presidente Collor em 1992, resultantede sérias denúncias de corrupção, seguidas por uma ex-pressiva mobilização popular e da ação decisiva do Con-gresso Nacional em solucionar a crise política;- ascensão à presidência do vice, Itamar Franco, cuja li-derança vacilante contribuiu ainda mais para agravar aincerteza política e econômica no país;- realização de um plebiscito, em 1993, para definir se opaís continuava presidencialista ou adotava o parlamen-tarismo como sistema de governo;- tentativa de revisão constitucional em 1994, que se ar-rastou por meses e praticamente nada alterou, embora anecessidade de algumas mudanças constitucionais fossedemanda de muitos setores políticos;- a famosa CPI do Orçamento, que pôs a público adeslavada prática de corrupção de alguns membros daComissão de Orçamento do Congresso;- implementação, em 1993-94, do Plano Real � um arro-jado plano de estabilização econômica que finalmenteconseguiu driblar a inflação;- eleição presidencial de 1994, que acabou se transforman-do num plebiscito sobre a política econômica do gover-no, elegendo assim Fernando Henrique Cardoso � arqui-teto do Plano Real;- sucessão de crises econômicas no mundo afora � Méxicoem 1995, Ásia em 1997, Rússia em 1998 � cujo impacto noBrasil quase enterrou os esforços de estabilização do Pla-no Real e a popularidade de Fernando Henrique Cardoso;

- realização, em 1998, sob o impacto da crise russa, daterceira eleição presidencial, cujo desfecho foi a recon-dução de Fernando Henrique Cardoso para um segundomandato presidencial.

Todos estes fatos foram desafios enfrentados por umregime ainda em processo de consolidação. Ao longo des-ses anos, eleições dos mais diferentes tipos e para os maisvariados cargos continuaram a ocorrer com regularidadee com razoável grau de incerteza quanto aos resultados,indicando a vitalidade da democracia no que ela contémde controle popular sobre o exercício da representaçãopolítica. Por outro lado, montanhas de escândalos de cor-rupção têm recheado as páginas dos jornais; denúncias deviolência e atentado aos direitos da cidadania têm sidonoticiadas diariamente; erupções de protestos e mobiliza-ções de diferentes naturezas têm ocorrido em vários pon-tos do país. Eventos como estes tornaram-se parte do dia-a-dia da vida democrática brasileira, que, a despeito dessesproblemas, obteve conquistas significativas.

DEMOCRACIA ENTRE CONQUISTASE LIMITAÇÕES

O retrospecto do processo de democratização brasilei-ro aqui realizado tratou de percorrer o curso da transiçãoem cada um de seus momentos fundamentais, avaliandoesta experiência de forma a melhor entender os avanços eas limitações do presente sistema político. Como de restotem ocorrido em outros momentos de nossa história, ademocratização que se iniciou com a restauração do go-verno civil não foi o produto de uma ruptura com a antigaordem. Isto implica que a reconstrução do sistema políti-co deu-se através de acomodações e do entrelaçamentode práticas e estruturas novas e antigas, combinação estaque estruturou as opções e estratégias seguidas pelos prin-cipais atores do processo político. Salientar este ponto nãosignifica desconsiderar os avanços democráticos conquis-tados, os quais são, em grande medida, o produto da dinâ-mica política introduzida pelo próprio processo de demo-cratização.

Observando o sistema político no Brasil de hoje, nãohá como negar que se trata de um regime com claros con-tornos de uma democracia. Ao serem tomadas como refe-rência as duas dimensões da poliarquia caracterizadas porDahl (1971), o país ampliou significativamente as condi-ções de contestação pública e participação política. Po-rém, tampouco há como negar que existam problemas noque se refere tanto à �qualidade� da contestação pública e

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da participação do cidadão quanto ao funcionamento efe-tivo do processo decisório democrático.

Vale lembrar, em primeiro lugar, a questão social, istoé, o problema da pobreza e da desigualdade. Não resta amenor dúvida de que extremas desigualdades sociais sãoum fator que constrange a consolidação da democracia,especialmente no que se refere è efetiva participação po-lítica de todos os cidadãos. Os elevados índices de pobre-za e de concentração de renda no Brasil são um legado dopassado que os governos pós-regime militar não tornarammenos agudo,11 a despeito de avanços na área da educa-ção. Em segundo lugar, há problemas referentes à repre-sentação política e ao processo de decisão democrático.A estrutura institucional brasileira possui vários aspectosque dificultam o funcionamento do sistema democrático-representativo.12 Entre eles, vale destacar a tão debatidaquestão partidária, que se resume na existência de um sis-tema partidário que é, por um lado, altamente fragmenta-do e, por outro, pouco nítido no que tange às opções ofe-recidas ao eleitor no processo eleitoral.13 Trata-se de umcontexto político que dificulta enormemente a capacida-de do eleitor de fixar as legendas, distinguir quem é quemna competição e criar identidades partidárias.14 Quanto àquestão da representação política, este é um contexto quepossibilita a eleição de representantes pouco comprome-tidos com seu partido e com os eleitores que os elegeram,mesmo porque muitos se elegeram com os votos exceden-tes dos candidatos mais votados, os quais podem ser deum outro partido pertencente à coligação eleitoral.

Efeito também da alta fragmentação é a impossibilida-de de que um presidente saia das urnas com um apoiopartidário-parlamentar majoritário, o que o obriga a fazerum governo de coalizão de vários partidos. Isto significaque, a fim de manter uma base parlamentar de apoio a suaspolíticas, o chefe do governo terá de compor seu ministé-rio com diferentes forças partidárias, por vezes heterogê-neas, fator que certamente dificulta uma ação governamen-tal coordenada, especialmente em relação a políticaspúblicas cuja implementação depende da ação de váriosministérios. Além disso, na medida em que o Executivo temde contar com o apoio de vários partidos para ver seus pro-jetos aprovados no Congresso, o processo de negociação écomplexo e demorado, ou seja, envolve uma dinâmica difí-cil entre o presidente e os partidos da coalizão, muitas vezesbaseada na ameaça e na retaliação mútua.

A tese de que a fragmentação partidária tem impactonegativo no processo decisório é contestada por Figueiredoe Limongi (1994) com base em análise das votações na

Câmara dos Deputados. Para estes autores, a existênciade um sistema partidário fragmentado não teria conseqüên-cias, uma vez que a fragmentação partidária é mais nomi-nal do que real, dada a ocorrência de uma reaglutinaçãonas posições dos partidos. As evidências desse trabalho �baseado em análise acurada das votações de projetos tra-mitados na Câmara dos Deputados � demonstram que ospartidos de direita (grandes e pequenos) votam similar-mente e os de esquerda fazem o mesmo, sendo que o graude coesão é também alto. De fato, pelo que se observousobre os partidos na Constituinte e sobre o posicionamentodos deputados estaduais da legislatura 1987-91, não hádiferenças contrastantes entre os vários partidos de direi-ta ou entre os vários de esquerda, havendo sim umagradação de mais ou menos direita e mais ou menos es-querda (Kinzo, 1990 e 1993). No entanto, há que se fazerduas ressalvas. Em primeiro lugar, se é verdade que ospartidos de direita assumem posições similares, ou não sediferenciam em questões essenciais, e se o mesmo ocorrecom os de centro e os de esquerda, qual a relevância deexistirem tantos partidos que ocupam semelhantes posi-ções no espectro político-ideológico, mesmo porque tam-bém nas eleições eles se apresentam em aliança? A se-gunda ressalva tem a ver com as conseqüências dafragmentação sobre o processo decisório propriamentedito: a despeito de muitos dos partidos serem parecidos e,quando examinamos os resultados das votações, poder-mos ver menos partidos do que os nominais, o fato é que,na hora de negociar, eles o fazem como atores distintos,de modo que a situação continua sendo a de um jogo depoder fragmentado.

Em suma, o que predomina é uma situação em que oprocesso de decisão é dificultado pela existência de umsistema de múltiplos vetos, fazendo com que qualquernegociação envolva muitos atores e seja portanto árdua edemorada, situação muito mais propícia à manutenção dostatus quo do que à mudança de políticas.15 Em tal con-texto, qualquer que seja o perfil do presidente e de seupartido, a probabilidade de reforma efetiva em políticaspúblicas é limitada. Na presente experiência de governodemocrático pós-85, o chamado presidencialismo de coa-lizão (Abranches, 1988) tem funcionado às custas do re-curso, por parte do Executivo, seja de mecanismos dedecisão concentradores de poder, como é o caso das Me-didas Provisórias,16 seja de recursos clientelísticos paranegociar apoio parlamentar em bases às vezes até indivi-duais. A permanência desta situação, que reproduz àenésima potência o sistema de contrapesos do modelo

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madsoniano, pode ser entendida como fruto da acomoda-ção possível no contexto de um padrão de desenvolvimentopolítico como o descrito anteriormente. Isto não retira seucaráter problemático, especialmente num país em que aagenda política é carregada de problemas estruturais aserem equacionados.

NOTAS

E-mail da autora: [email protected]. Para uma revisão geral da experiência militar-autoritária no Brasilver Cardoso (1972), Stepan (1973, 1975 e 1988) e Skidmore (1988).2. É vasta a literatura sobre a economia brasileira durante o regimemilitar. Os comentários aqui são baseados nos trabalhos de Serra (1982),Fishlow (1973), Suzigan (1974) e Longo (1993).3. Sobre a transição brasileira, veja Martins (1986), Stepan (1989),Lamounier (1988 e 1989), Velasco e Cruz e Martins (1983) e Diniz(1985).4. Um balanço das diferentes abordagens explicativas da abertura po-lítica encontra-se em Figueiredo e Cheibub (1982) e Diniz (1985). Sobreo início da transição, ver também a excelente análise de Lamounier(1979).5. Como Rouquié (1982:3) observou �um sistema permanente de domí-nio militar é quase uma contradição em termos. A instituição militarnão pode governar de forma direta e duradoura sem deixar de sê-la�.6. Desaceleração do PIB, que caiu de 14% em 1973 para 9,8% em 1974e 5,6% no ano seguinte, aumento significativo do déficit em contacorrente (de US$ 1,7 bilhão em 1973 para US$ 7,1 bilhões em 1974) ecrescimento da dívida externa (de US$ 6,2 bilhões em 1973 paraUS$ 11,9 bilhões em 1974, alcançando US$ 56,3 bilhões em 1981)Serra (1982).7. É bem provável que o processo político teria caminhado em outradireção caso tivesse sido seguido o segundo curso de ação, defendidopelos setores mais radicais da oposição. De qualquer forma, a demo-cratização tanto poderia ter sido de outra natureza como poderia tersofrido uma reversão autoritária.8. Recorde-se que José Sarney filiou-se ao PMDB apenas para quepudesse concorrer à vice-presidência, dado que havia se desligado doPDS e o PFL ainda não havia sido fundado.9. Sobre a Constituição de 1988, ver Souza e Lamounier (1990).10. Como assinala Sallum Jr. (1999:27), �apesar de decadente, o mo-delo nacional-desenvolvimentista (certamente sob vestes mais demo-cráticas) foi juridicamente consolidado pela Constituição de 1988�.11. Sobre esta questão ver Barros et alii (2000).12. Sobre esta questão ver, especialmente, Lamounier (1992); Kinzo(1997) e Couto (2000).13. Antes de um simples produto do sistema de representação propor-cional, esta situação tem a ver com uma legislação partidária e eleito-ral que possibilita alianças partidárias até mesmo nas eleições propor-cionais, garantindo acesso ao horário eleitoral gratuito mesmo a parti-dos sem nenhuma expressão política, e com a desvinculação partidá-ria do mandato eleitoral, isto é, a ausência de qualquer impedimentopara troca de agremiação partidária de um detentor de mandato eletivo.14. Como vários estudos têm indicado, a volatilidade eleitoral no Bra-sil, embora decrescente, é ainda bastante acima da média encontradanas democracias consolidadas. Sobre a volatilidade eleitoral no Bra-sil, ver Nicolau (1998) e Peres (2000).15. De acordo com Tsebelis (1995), a probabilidade de mudança dostatus quo é uma função não apenas do número de veto players, ou

seja, atores institucionais e partidários com capacidade de vetar umaproposição, mas também da coesão de cada ator coletivo. No caso bra-sileiro, pode-se dizer que, dado que os partidos da presente coalizãogovernamental nem sempre se apresentam com alta coesão, no sentidode compartilhar posições ou princípios definidos e claros, são possi-velmente mais propensos à negociação embora a dificultem o mais quepuderem.16. O poder do Executivo não se limita às Medidas Provisórias, umavez que também detém a prerrogativa exclusiva de iniciativa legislati-va em várias matérias, entre elas as referentes ao orçamento federal.Além disso, o Executivo pode interferir na agenda legislativa, solici-tando ao colégio de líderes urgência na tramitação de uma matéria deseu interesse. Ver Figueiredo e Limongi (1994).

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GLOBALIZAÇÃO, REFORMA DO ESTADO E TEORIA DEMOCRÁTICA CONTEMPORÂNEA

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GLOBALIZAÇÃO, REFORMA DO ESTADOE TEORIA DEMOCRÁTICA

CONTEMPORÂNEA

o decorrer dos anos 90, o tema da reforma do Es-tado adquiriu centralidade na agenda pública bra-sileira. A partir da presidência de Fernando Collor,

ções externas associadas aos desdobramentos do proces-so de globalização e as dificuldades para formular e im-plementar uma nova estratégia de desenvolvimento parao país. Como conciliar inserção externa e crescimentoeconômico? Como garantir o grau necessário de autono-mia decisória nacional para definir e executar formas al-ternativas de integração ao sistema internacional? Comoreencontrar o caminho do desenvolvimento?

As reformas realizadas nos anos 90, notadamente aprivatização, a liberalização comercial e a abertura daeconomia, tiveram eficácia no desmonte dos alicerces daantiga ordem, de tal forma que qualquer perspectiva deretorno ao passado torna-se anacrônica. Entretanto, den-tro do atual modelo, cabem, certamente, diferentes estra-tégias de desenvolvimento, algumas frontalmente contrá-rias às políticas implementadas nos últimos dez anos. Eisporque as possibilidades de inovação passam pela políti-ca. Torna-se imperativo implantar novas formas de ges-tão pública, que permitam a consecução das metas coleti-vas e viabilizem formas alternativas de administrar ainserção na ordem globalizada.

GLOBALIZAÇÃO: A CENTRALIDADE DADIMENSÃO POLÍTICA

O fenômeno da globalização, que vem caracterizandoa economia internacional desde meados da década de 70,

desencadearam-se as primeiras medidas para reduzir o Es-tado e realizar a ruptura com o passado intervencionista,típico do modelo da industrialização substitutiva de im-portações e do desenvolvimentismo dos governos milita-res de 1964 a 1985. Esse esforço reformista foi aprofun-dado no primeiro governo do presidente Fernando HenriqueCardoso, que se propôs a tarefa de sepultar a Era Vargas esuperar os entraves representados pela sobrevivência daantiga ordem. Através da prioridade atribuída às reformasconstitucionais, iniciou-se um processo de desconstruçãolegal e institucional, que abriu o caminho para a reestrutu-ração da ordem econômica e, sobretudo, para a refunda-ção do Estado e da sociedade de acordo com os novos pa-râmetros consagrados internacionalmente. A instauraçãode um novo modelo econômico centrado no mercado foiacompanhado de um projeto ambicioso de dar início a umanova era. Entretanto, limitada por uma visão restritiva deteor administrativo, a reforma do Estado do governo Car-doso foi capturada pela meta do ajuste fiscal, revelando-se incapaz de realizar a ruptura anunciada.

Desta maneira e após uma década de experimentos ine-ficazes, eis que a reforma do Estado readquire relevânciano limiar do novo milênio, configurando-se como um dosprincipais desafios do momento presente, dadas as restri-

Resumo: O presente artigo retoma o debate sobre a reforma do Estado com o objetivo de inserir a discussãosobre este importante item da pauta das reformas dos anos 90 no âmbito da teoria democrática contemporâ-nea. Para tanto, enfatiza aspectos freqüentemente negligenciados pelas análises correntes, tais como o impac-to das diferentes seqüências históricas, as características do regime político, a inter-relação entre governabili-dade democrática, accountability e responsabilidade pública dos governantes, quer diante da instância parla-mentar, quer diante da sociedade.Palavras-chave: globalização; democracia; reforma do Estado.

ELI DINIZ

Professora do Instituto de Economia da UFRJ

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ou, como prefere François Chesnais (1996), a �mundiali-zação do capital�, tem sido interpretado de diferentesmaneiras. O termo adquiriu um sem-número de sentidos,que mais confundem do que esclarecem seu real signifi-cado. Entre os equívocos mais correntes, situa-se a visãoda globalização como um processo exclusivamente eco-nômico. Trata-se de uma simplificação, pois o processode globalização não se resume a uma dinâmica puramen-te econômica, senão que se trata de um fenômeno multi-dimensional, que obedece a decisões de natureza política.Em outros termos, a economia não se move mecanicamen-te, independente da complexa relação de forças políticasque se estruturam em âmbito internacional, através da qualse tecem os vínculos entre economia mundial e economi-as nacionais. Portanto, um dos efeitos da visão econo-micista é obscurecer o papel da política. A globalização ea pressão das agências internacionais exercem, sim, forteinfluência na determinação das agendas dos diferentespaíses, mas não o fazem de modo mecânico e determinis-ta. As opções das elites dirigentes nacionais � suas coali-zões de apoio político � tiveram e têm um papel impor-tante na escolha das formas de inserção no sistemainternacional e na definição das políticas a serem imple-mentadas.

A ênfase unilateral nos aspectos econômicos conduz aum segundo equívoco. Trata-se do pressuposto de umautomatismo cego do mercado globalizado. O processoestaria submetido a uma lógica férrea, à qual todos ospaíses deveriam ajustar-se, de modo inescapável e segun-do um receituário único. A abordagem de teor economicistaimplica, pois, uma visão determinista, já que a ordemmundial é percebida como submetida a uma dinâmica in-controlável, de efeitos inexoráveis, o que, no limite, des-cartaria a existência de alternativas viáveis. Efetivamen-te, se a globalização é apresentada como um processoinevitável, independente da intervenção humana, adaptar-se de forma imperativa torna-se a única saída possível.

É interessante ressaltar que tanto do lado da ótica libe-ral ortodoxa, representada pelo Consenso de Washington(Williamson, 1993), quanto numa visão crítica radical, talcomo formulada, para citar apenas um exemplo, porViviane Forrester, no livro O horror econômico (1996),esse traço determinista está presente, já que, em ambos oscasos, a globalização é apresentada como um fenômenomonolítico, submetido ao império das leis econômicas. Emconseqüência, os governos nacionais são tratados comoobjetos passivos de forças que não podem controlar, sen-do, portanto, reduzidos à impotência. Anula-se a ação po-

lítica como contrapartida da supervalorização dos meca-nismos econômicos e esvazia-se a responsabilidade dosgovernantes pelos erros e acertos das políticas executadas.

Em contraste, e tendo em vista a complexidade da novaordem mundial, cabe salientar que a globalização não estácomandada por forças inexoráveis e nem marcada exclu-sivamente por relações e processos de natureza econômi-ca. Está, sobretudo, sujeita a uma lógica política (Diniz,2000a, cap.1), que por sua vez, tem a ver com relaçõesassimétricas de poder, que se estabelecem entre as potên-cias em escala mundial, traduzindo-se pela formação deblocos e instâncias supranacionais de poder. Configuram-se, assim, as redes transnacionais de conexões, através dasquais articulam-se alianças estratégicas, envolvendo ato-res externos e internos, destacando-se, entre estes, as gran-des corporações multinacionais, a alta tecnocracia de teorcosmopolita, as organizações financeiras internacionais,burocratas de alto nível, entre outras elites estratégicas.Tais relações estão por trás das escolhas feitas pelos ato-res, escolhas estas que não são aleatórias, nem o reflexode critérios exclusivamente técnicos ou econômicos, se-não que se orientam também por um cálculo político.

Cada vez mais, os Estados nacionais tornam-se partede um sistema de poder de teor supranacional, tornandoartificial a rígida contraposição fatores externos-fatoresinternos. Eis porque administrar com maior ou menor au-tonomia a inserção do país no sistema internacional nãorequer apenas capacitação técnica de elites iluminadas, masdepende de opções políticas em prol da defesa da sobera-nia e do fortalecimento do poder de negociação dos go-vernos nacionais. Ademais, conquistar posições favorá-veis no jogo de poder internacional implica uma altacapacidade de gestão do Estado, ao contrário do que ad-vogam os defensores do Estado mínimo. Como ressaltaCelso Furtado, em seu livro, Brasil, a construção inter-rompida (1992:24), �A atrofia dos mecanismos de coman-do dos sistemas econômicos nacionais não é outra coisasenão a prevalência de estruturas de decisões transnacio-nais, voltadas para a planetarização dos circuitos de deci-sões�. Cabe acrescentar, por outro lado, que reverter umaposição subordinada ou rejeitar a predominância da lógi-ca das empresas transnacionais na estruturação das ativi-dades econômicas de um país é um ato de natureza políti-ca, requerendo uma ação deliberada capaz de definir eexecutar uma nova estratégia nacional.

Entre os equívocos induzidos pela visão economicista,deve-se mencionar ainda a ênfase unilateral nos custoseconômicos da globalização, perdendo-se de vista seus

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custos políticos, tão ou mais relevantes. Tais custos, nospaíses desenvolvidos, manifestam-se pela difusão das ideo-logias antidemocráticas, do tipo fascista, com forte com-ponente xenófobo, em reação ao aumento do desempre-go, da criminalidade, da incerteza e do sentimento deimpotência em face das crises internacionais. Nas novasdemocracias, por outro lado, esse custo político se traduz,entre outras coisas, e de acordo com alguns autores, pelageneralização de democracias minimalistas. Assim, porexemplo, Bresser Pereira, José Maravall e Adam Przeworski(1993) referem-se ao predomínio de um estilo políticoautocrático na administração das crises e das reformas eco-nômicas, a partir dos anos 80. Guillermo O�Donnell (1991)faz referência à difusão, nos países latino-americanos, daschamadas democracias delegativas, caracterizadas por altograu de voluntarismo no exercício da Presidência da Re-pública, interpretando-se a vitória nas urnas como dele-gação para decidir discricionariamente. James Malloy(1993) destaca o predomínio de regimes híbridos, combi-nando democracias eleitorais com um estilo autoritário-tecnocrático de gestão econômica. Aldo Vacs (1994) men-ciona a tendência à constituição de democracias restritivas,com baixo grau de participação política e processos deci-sórios fechados. Em todos esses autores, sobressai a preo-cupação com a debilidade institucional que dificultaria oaperfeiçoamento da democracia nestes países.

Finalmente, a globalização não tem apenas efeitos uní-vocos na direção da modernidade, trazendo também con-seqüências altamente desorganizadoras e desestruturado-ras. Há um movimento oposto à integração, que opera nosentido da fragmentação, da segmentação e da exclusão.Assim, a inserção na economia mundial não pode ser vis-ta, necessariamente, como um jogo de soma positiva, noqual todos tenderiam a ganhar. Ao contrário, longe de seter produzido uma ordem econômica mundial mais inte-grada e inclusiva, o que se observou foi a configuração deum sistema internacional, marcado por grandes contras-tes e polaridades, reproduzindo-se as desigualdades entreas grandes potências e os países periféricos, reeditando-se, de forma ainda mais dramática, a exclusão social. Taisclivagens separam não só países, como também continen-tes e, dentro de cada país, instauram um profundo fossoentre as camadas integradas e os setores excluídos, dis-tância que tende a se agravar, sob condições do livre jogodas forças de mercado.

A visão economicista leva ainda ao teor minimalistada agenda pública, pois a ênfase unilateral nos problemaseconômicos situaria estas questões no centro da agenda

governamental, eliminando qualquer meta concorrente,deslocando qualquer outro objetivo como fator supérfluo,causador de distúrbios e fonte de distorções. Assim, atémesmo a discussão em torno de uma escala alternativa deprioridades tende a ser apresentada como inoportuna, sen-do mesmo deslegitimada e estigmatizada, como expres-são de uma visão populista e contrária à modernidade.Alcançada a estabilização e realizadas as reformas, a viada modernização estaria assegurada com a retomada dodesenvolvimento.

Por outro lado, a percepção de que as dimensões polí-tica e institucional são também relevantes e não podemser ignoradas levou a que se considerasse a reforma doEstado uma prioridade dos anos 90. A ruptura com a no-ção fatalista da globalização, movida pelo automatismodo mercado, se fez acompanhar da descoberta da faláciado enfoque estritamente liberal da reforma do Estado, im-plicando fundamentalmente corte de gastos, redução dotamanho e das funções do Estado. Em conseqüência, ob-servou-se a revalorização da capacidade de ação estatalcomo um pré-requisito do êxito dos governos na adminis-tração de situações de crise e transição. A centralidade dareforma do Estado significaria, portanto, a afirmação deum novo enfoque de maior alcance e abrangência. A ên-fase desloca-se para a busca de alternativas e o reconhe-cimento de que o crescimento e a conquista de um novopatamar econômico não se produzem espontaneamente,senão que são o resultado de políticas deliberadas, de es-colhas feitas por elites dirigentes determinadas a rever-ter situações adversas e elevar o nível de bem-estar dasociedade.

REFORMA DO ESTADO, REGIME POLÍTICOE DEMOCRACIA: A RELEVÂNCIA DAPERSPECTIVA HISTÓRICA

Além das restrições externas decorrentes do aprofun-damento do processo de globalização, anteriormente re-feridas, cabe também levar em conta as especificidadesda evolução histórica de cada país, sobretudo quando seconsidera o impacto das diferentes seqüências históricasna construção da democracia, em cada caso concreto. Taisconsiderações remetem ao estudo clássico de Robert Dahl,Polyarchy: participation and opposition, publicado pelaprimeira vez em 1972, em que o autor apresenta as oitogarantias institucionais da poliarquia, quais sejam:- liberdade de formar e integrar-se a organizações;- liberdade de expressão;

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- direito de voto;- elegibilidade para cargos políticos;- direito de líderes políticos competirem através da votação;- fontes alternativas de informação;- eleições livres e idôneas;- existência de instituições que garantam que as políticasgovernamentais dependam de eleições e de outras mani-festações de preferência da população.

Desta forma, a arquitetura institucional da democraciacompreende certos traços elementares, que são encontra-dos em todos os exemplos de democracia política. Entre-tanto, a amplitude e o grau em que tais condições institu-cionais estão presentes, em cada caso considerado,divergem de maneira expressiva. Ademais, as formas pe-las quais o elenco de direitos, garantias e valores básicosconstitutivos das poliarquias emergem e se institucionali-zam variam amplamente. Tais variações têm relevância parao funcionamento das poliarquias, vale dizer, as singulari-dades da evolução histórica têm um impacto na qualidadeda democracia, em termos de suas duas dimensões bási-cas: os direitos de oposição e de participação política. Aconsolidação institucional ao longo destas duas dimensões� liberalização ou competição política, por um lado, in-clusão ou participação política, por outro � não se dá nummesmo ritmo e não obedece a uma única seqüência.

Algumas trajetórias são mais favoráveis do que outraspara assegurar com sucesso o trânsito para o regime po-liárquico. Dahl (1972: cap.3) aponta dois caminhos prin-cipais: a seqüência I, na qual a liberalização precede oalargamento da participação, percurso em que uma hege-monia fechada (baixa competição e baixa participação)aumenta as oportunidades de contestação pública, trans-formando-se numa oligarquia competitiva para, num mo-mento posterior, expandir os graus de participação políti-ca e transformar-se numa poliarquia; e a seqüência II, naqual a inclusividade precede a liberalização, percurso quevai de uma hegemonia fechada a uma hegemonia inclusi-va e daí à poliarquia, via institucionalização da competi-ção política. A primeira via, a mais segura, foi seguidapela Inglaterra e pela Suécia, enquanto a segunda corres-ponde ao caminho seguido pela Alemanha. Já a Françaenquadrar-se-ia numa terceira modalidade, caracterizadacomo um atalho, percurso em que uma hegemonia fecha-da é abruptamente transformada em poliarquia por umarepentina concessão de sufrágio universal e direitos decontestação pública. Trata-se da via revolucionária, queencerra alto risco de instabilidade política. Assim, a esta-

bilidade da poliarquia estaria associada à seqüência quese configurou historicamente na transição para a demo-cracia. Países que seguiram a seqüência I (liberalizaçãoantecedendo o alargamento da participação) seriam maisestáveis em relação àqueles que seguiram a II, na qual oaumento da participação precedeu a institucionalização dacompetição política.

Partindo do modelo de Dahl, Santos (1993: cap.1) in-troduz algumas qualificações de forma a desvendar a pe-culiaridade da evolução latino-americana em face dasexperiências européias e anglo-saxônicas. Em primeirolugar, como ressalta o autor, à semelhança dos exemplosalemão, francês e italiano, �o processo latino-americanocaracterizou-se pela incorporação das massas à dinâmicada competição política antes que se obtivesse estabilida-de na institucionalização das regras dessa mesma compe-tição�. Em segundo lugar, e este seria um traço da demo-cracia latino-americana, a política social foi utilizada comoinstrumento de engenharia para universalizar a participa-ção, em um contexto de fraca institucionalização da com-petição política (Santos, 1993:29-30). No caso do Brasil,verificou-se uma outra especificidade, já que os atoresestratégicos da ordem industrial em formação � aí incluí-dos o empresariado e os trabalhadores urbanos � adquiri-ram suas identidades coletivas não através dos partidospolíticos, mas sim pela via do Estado. Além disso, atra-vés da montagem da estrutura corporativa para realizar aarticulação Estado-sociedade, tal como destacado em es-tudos anteriores (Diniz, 1978 e 1992), este processo deincorporação política seria subordinado à tutela estatal.

Num outro veio analítico, O�Donnell (1993, 1998 e1999) viria também a enfatizar as peculiaridades da for-mação histórica das novas democracias, aí incluindo oBrasil, gerando uma fragilidade institucional que sobre-viveria às tentativas de mudança ao longo do tempo. En-tre tais debilidades, sobressaem a incompletude do pro-cesso de constituição da cidadania, resultando importanteslacunas quanto aos direitos civis e sociais, o estreitamen-to dos espaços públicos, além de sérias deficiências quantoà efetividade da lei. Esta se estende de forma pronuncia-damente irregular sobre o conjunto do território nacionale sobre as diferentes camadas da população, resultandoum amplo contingente que se situa fora da cobertura le-gal. Nas novas democracias, regiões inteiras permanecemà margem do sistema legal sancionado pelo Estado, nãoapenas nas áreas rurais, mas também nas periferias doscentros urbanos. Além disso, no caso de certos setoresdiscriminados, em todas as regiões, mesmo nas mais de-

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senvolvidas, a legalidade estatal é também pouco efetiva.Tal particularidade traduz-se na ampliação das chamadas�áreas marrons�, onde a capacidade de penetração doEstado é muito baixa ou quase nula (O�Donnell, 1993:129-130).

Nessa mesma linha de considerações, vale acrescentaruma nova particularidade referida ao caso brasileiro, qualseja, a coincidência entre momentos marcantes de refor-mas institucionais, com destaque para a reforma do Esta-do, e a implantação de regimes autoritários (Diniz, 2000a,cap.2). Com efeito, historicamente, as duas experiênciasrelevantes de reforma do aparelho de Estado no Brasil,antes da instauração da chamada Nova República, em1985, foram efetivadas sob regimes fortemente autoritá-rios. Esse foi o caso da primeira dessas reformas, realiza-da pelo presidente Getúlio Vargas (1930-1945), quandoassumiu o poder após a vitória da Revolução de 1930, àfrente de uma ampla coalizão comprometida com um pro-jeto modernizante, que culminou com a ditadura estadono-vista. A segunda experiência relevante foi levada a efeitopelo primeiro governo do ciclo militar (1964-1985), sen-do introduzida pelo Decreto-Lei no 200, de 25/02/1967.Em contraste, entre 1945 e 1964, os governos democráti-cos que se sucederam no poder não realizaram nenhumexperimento de vulto no tocante à reforma do Estado, pre-servando-se, em suas grandes linhas, o padrão anterior.

Nos dois casos considerados, além do contexto auto-ritário, o ponto convergente do esforço reformador estárelacionado à dimensão especificamente administrativada reforma do Estado, que envolveu questões relativasao grau de centralização da máquina burocrática, à hie-rarquia entre as várias unidades integrantes do aparelhoestatal, à articulação entre as diversas agências do poderExecutivo, à definição dos órgãos normativos e fiscali-zadores ou ainda à classificação de cargos e carreiras.Não se verificou uma preocupação com o aperfeiçoamen-to dos demais poderes e, sobretudo, com a questão fun-damental num regime constitucional, qual seja, a articu-lação e o equilíbrio entre os três poderes, atribuindo-seao Executivo e às agências administrativas um amploespectro de prerrogativas no que concerne à formulaçãoe implementação de políticas públicas. Aliás, a trajetó-ria do Estado no Brasil revela a precedência das buro-cracias militar e civil, que, historicamente, foram estru-turadas e definiram suas identidades coletivas antes dainstitucionalização, em âmbito nacional, do sistema derepresentação política. Durante a maior parte do perío-do Republicano, observou-se a tendência à centralidade

da burocracia governamental em face dos partidos e dopoder Legislativo.

A prática de implementação de reformas do Estado sobregimes autoritários teve conseqüências que não podem serignoradas. Em primeiro lugar, os longos períodos de fe-chamento do sistema político criaram condições propíciaspara a consolidação de uma modalidade de presidencialis-mo dotado de amplas prerrogativas, consagrando o dese-quilíbrio entre um Executivo sobredimensionado e umLegislativo crescentemente esvaziado em seus poderes.Exacerbaram-se certas características do sistema presiden-cialista, como a outorga constitucional de poderes legisla-tivos ao chefe do Executivo, o amplo poder de nomeaçãodo presidente, a autonomia e a centralidade dos governosestaduais para tecerem alianças e redes de lealdade políti-cas. Assim, o isolamento da instância presidencial, seufechamento ao escrutínio público, a falta de espaço insti-tucional para a interferência das forças políticas, a intole-rância em face da dissidência e do conflito, a inoperânciados mecanismos de controles mútuos, enfim, a falta de freiosinstitucionais ao arbítrio do Executivo criariam, em dife-rentes momentos, sérios obstáculos para a articulação en-tre os poderes e a comunicação com a sociedade.

Em segundo lugar, sobretudo durante os 21 anos deditadura militar, da qual saímos há pouco mais de umadécada, observou-se o fortalecimento de três outros tra-ços relativos às formas de ação estatal (Diniz, 1999). Umdeles foi a consolidação do estilo tecnocrático de gestãoda economia, fechado e excludente, que reforçou a con-cepção acerca da validade da supremacia da abordagemtécnica na formulação das políticas públicas, abrindo ca-minho para a ascensão dos economistas notáveis às ins-tâncias decisórias estratégicas para a definição dos rumosdo capitalismo nacional e sua inserção externa. A valori-zação do saber técnico e da racionalidade da ordem eco-nômica, aspectos considerados intrinsecamente superio-res à racionalidade da instância política, conduziriam auma visão asséptica da administração pública, percebidacomo campo de competência exclusiva de uma elite aci-ma do questionamento da sociedade ou da classe política.Paralelamente ao estreitamento do círculo de decisoresformado pela alta tecnocracia, porém, um amplo segmen-to da burocracia permaneceria integrado ao sistema depatronagem e clientelismo (o chamado spoil system), crian-do-se, na verdade, a coexistência entre as duas lógicas,marcadas por relações tensas ou complementares, ao sa-bor das circunstâncias políticas. Portanto, o insulamentoburocrático, longe de garantir maior eficácia à máquina

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estatal, conviveria de fato com um alto grau de politiza-ção da burocracia.

Um outro aspecto refere-se à primazia dos valoresvoluntaristas e personalistas, contribuindo para a forma-ção de uma cultura política deslegitimadora da ação dospartidos e do Congresso na promoção do desenvolvimen-to do país. Retomou-se a tendência, impulsionada pelopensamento autoritário dos anos 30, a idealizar o Execu-tivo enquanto agente das transformações necessárias paraa modernização da sociedade. Assim, a idéia de reformae de mudança seria associada ao modelo de Executivoforte, sendo o Legislativo, ao contrário, percebido comoforça aliada ao atraso e à defesa de interesses particula-ristas e tradicionais. A prevalência de orientações e práti-cas cesaristas contribuiria, por sua vez, para gerar resis-tências e dificultar a implantação e o funcionamento efetivodos mecanismos de cobrança e prestação de contas, nosentido tanto horizontal quanto vertical, dada a instabili-dade das instituições representativas. Assim, um impor-tante legado do processo de formação do Estado brasilei-ro seria o déficit de accountability que se configurouhistoricamente.

Finalmente, cabe mencionar o debilitamento da dimen-são legal do Estado pelo alto grau de instabilidade do marcojurídico, culminando com o reforço da chamada cultura docasuísmo. Como é sabido, o regime militar implantado em1964 preservou a arena parlamentar-partidária, durante amaior parte do tempo. Simultaneamente, notabilizou-se pelodesrespeito sistemático à ordem legal constituída, tornando-se recorrentes os atos arbitrários de mudança brusca das leis,sempre que esse recurso parecia conveniente aos interessesdas forças que detinham o controle do poder. Assim, porexemplo, no tocante à legislação eleitoral e partidária, o graude arbítrio do Executivo foi levado às últimas conseqüên-cias, através da edição de sucessivos pacotes eleitorais, alte-rando as regras do jogo para reduzir as chances de vitóriadas forças de oposição ao regime. Este foi o caso do chama-do Pacote de Abril, baixado pelo mesmo general ErnestoGeisel, que desencadeou o processo de abertura política eque teve por objetivo preservar o controle dos governadoresna esfera estadual e a maioria do Governo no Congresso. Cabeconsiderar, por outro lado, que a estabilidade das regras dojogo é um dos principais requisitos do processo de consoli-dação da democracia, já que a internalização das regras eseu acatamento pelos atores implicados, bem como a gra-dual instauração de um sistema de garantias mútuas, são as-pectos essenciais da arquitetura democrática implantada aolongo do tempo.

REFORMA DO ESTADO E TEORIADEMOCRÁTICA CONTEMPORÂNEA

A partir de meados dos anos 90, a reforma do Estadolevada a efeito pelo governo Fernando Henrique Cardosorevelou-se incapaz de realizar a ruptura preconizada porseus idealizadores, ficando muito aquém das metas esta-belecidas e mostrando-se inócua para atacar, em sua com-plexidade, os problemas anteriormente apontados, respon-sáveis pela crônica ineficácia da ação estatal. Na origemdestas dificuldades podem ser situadas não apenas falhasde implementação, mas também um erro básico de diag-nóstico, aspecto tratado amplamente em outros trabalhos(Diniz, 1997, 1998 e 2000a, especialmente cap.2), razãopela qual este artigo concentra-se apenas em alguns pon-tos considerados essenciais para o desenvolvimento do ar-gumento aqui proposto.

A hegemonia do pensamento neoliberal reforçou a pri-mazia do paradigma tecnocrático, segundo o qual, indepen-dentemente do regime político em vigor, eficiência governa-mental seria a resultante de um processo de concentração,centralização e fechamento do processo decisório, sendo aeficácia de gestão reduzida à noção de insulamento burocrá-tico. Desta forma, preservar a racionalidade burocrática im-plicaria a meta de neutralizar a política e reforçar a autono-mia decisória de elites enclausuradas na cúpula burocrática.Portanto, o que se observou não foi propriamente o enfra-quecimento do Estado, expressão, aliás, muito pouco eluci-dativa, mas sim o fortalecimento desproporcional do Execu-tivo, pela concentração de poder decisório nesta instância,cada vez mais controlada pela alta tecnocracia, enfraquecendoos suportes institucionais da democracia.

De acordo com essa tendência, impôs-se também umdado diagnóstico acerca da crise de governabilidade queciclicamente afetou diversos países latino-americanos, emdecorrência não só das oscilações do mercado internacio-nal, mas também do fracasso dos experimentos de estabi-lização econômica levados a efeito, a partir de meadosdos anos 80. A percepção da ineficácia dos governos notratamento de problemas críticos, como a inflação e oendividamento externo, gerou sentimentos de desconfiançae a perda de credibilidade das autoridades e instituiçõesgovernamentais.

No caso do Brasil, desde o fracasso do Plano Cruzado,no governo Sarney, esta crise de governabilidade foi per-cebida como efeito direto da sobrecarga da agenda públi-ca pelo excesso de pressões externas, advindas quer daesfera social, quer do mundo da política. Sob essa ótica,

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GLOBALIZAÇÃO, REFORMA DO ESTADO E TEORIA DEMOCRÁTICA CONTEMPORÂNEA

ingovernabilidade era expressão de paralisia decisória, istoé, o governo viu-se incapaz de tomar decisões, em virtu-de da pressão de demandas da sociedade. Portanto, o ca-minho para a reconquista de condições favoráveis de go-vernabilidade implicava o reforço do poder discricionárioda alta tecnocracia, protegendo-a do jogo político e rea-firmando a centralização e fechamento do processo deci-sório (Diniz, 1997).

Rompendo com esta visão, foi proposto, em trabalhosanteriores, um diagnóstico alternativo sobre a crise de go-vernabilidade típica do Brasil da Nova República (Diniz,2000a e b). Ao contrário de bloqueio da capacidade dedecisão, o que se verificou foi um agudo contraste entreuma hiperatividade decisória e uma fraca capacidade deimplementação das políticas. Se o Estado, por um lado,acumulou poderosos instrumentos de decisão, pelo usoindiscriminado das Medidas Provisórias, introduzidas pelaConstituição de 1988, por outro, viu-se, limitado por pre-cários meios de gestão. Utilizando as categorias de MichaelMann, pode-se caracterizar esta situação de ingovernabi-lidade como expressão de um desequilíbrio entre os po-deres despótico e infra-estrutural do Estado. O primeirosignifica a capacidade de o Estado decidir com indepen-dência, mais precisamente, �o espectro das ações que aelite estatal está capacitada a empreender sem a negocia-ção de rotina, institucionalizada, com os grupos da socie-dade civil� (Mann, 1986:113). O segundo refere-se à ca-pacidade de o Estado penetrar a sociedade civil eimplementar logisticamente suas decisões por todo o do-mínio sob sua jurisdição.

Um dos fatores responsáveis pelo fraco poder infra-estrutural foi a corrosão da capacidade de o Estado reali-zar suas funções básicas e intransferíveis, como a garan-tia da ordem e da segurança públicas, e ainda assegurarcondições mínimas de existência para amplas parcelas dapopulação, localizadas nas faixas mais pobres. Sob o im-pacto das crises fiscal e política, e como resultado da pri-meira onda de reformas liberais inspiradas no corte degastos e de pessoal, aprofundou-se de forma expressiva aincapacidade histórica de o Estado penetrar no conjuntodo território nacional e incluir, em seu raio de ação, osdiferentes segmentos da sociedade, garantindo de formauniversalista o acesso aos serviços públicos essenciais, nasáreas de saúde, educação e saneamento básico, bem comoa eficácia de seus ordenamentos legais.

Em contraste, o poder infra-estrutural adquire altacentralidade, num contexto internacional marcado peloaprofundamento do processo de globalização e exten-

são de seus efeitos em escala mundial. Como demons-trou Amartya Sen, em seu livro, Sobre ética e econo-mia (1999), o processo de desenvolvimento fundamen-ta-se cada vez mais na ampliação das liberdades sociais,políticas e econômicas. Num sentido pleno, desenvol-vimento não pode, pois, ser medido apenas pelo cres-cimento do Produto Nacional Bruto, ou da renda percapita, requerendo a inclusão de outras variáveis, comoo acesso a níveis satisfatórios de escolaridade e aosserviços de saúde pública, além da elevação da expec-tativa de vida da população. Esta noção inspirou a re-formulação do Índice de Desenvolvimento Humano(IDH), da Organização das Nações Unidas (ONU), se-gundo o qual o Brasil ocupa atualmente a 79a posiçãoem termos internacionais, situando-se no bloco dospaíses de médio desenvolvimento.

Uma ruptura com o enfoque tecnocrático-reducionistaimplica, portanto, pensar a reforma do Estado a partir doarcabouço teórico-conceitual fornecido pelas formulaçõesda teoria democrática contemporânea, segundo a qual aseleições são instrumentos necessários, mas não suficien-tes para garantir o controle dos governantes pelos gover-nados (Manin, Przeworski e Stokes, 1999). Em conseqüên-cia, a ênfase desloca-se para a necessidade de criar efortalecer novos arranjos institucionais que possibilitemo funcionamento da democracia nos intervalos entre aseleições.

Desse ponto de vista, adquirem prioridade os mecanis-mos e procedimentos garantidores da responsabilização dosgovernantes em relação aos governados, notadamente osaspectos ligados à dimensão de accountability, sobretudoem sua forma horizontal, à relação entre os poderes, redu-zindo os problemas de assimetria pelo uso exacerbado dasMedidas Provisórias, ao reforço do poder infra-estruturaldo Estado e à expansão dos direitos de cidadania, além dareestruturação dos mecanismos de articulação entre o Es-tado e a sociedade. Ainda que as lacunas apontadas tenhamraízes históricas, tais traços foram exacerbados ao longoda última década. O estilo tecnocrático de gestão e as am-plas prerrogativas do Executivo fortaleceram o poder deburocracias insuladas do escrutínio público, dificultando� senão inviabilizando � os mecanismos rotineiros de con-trole externo. Desta forma, a baixa efetividade dos instru-mentos de responsabilização pública dos governantes e oexcesso de discricionariedade da alta burocracia estatalreforçam-se mutuamente, gerando um vazio quanto àsmodalidades usuais de supervisão entre os poderes e decontrole social por parte do público em geral.

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Em contraste com os requisitos de uma visão abran-gente e multidimensional da reforma do Estado capaz deultrapassar os estreitos limites de uma concepção mini-malista de democracia, a proposta do Mare não alcançouo objetivo de eliminar os pontos de estrangulamento daadministração pública brasileira, bem como os vícios dopassado. A orientação básica do governo esteve voltadapara as questões relativas à crise fiscal e à preservação daausteridade orçamentária. Em conseqüência, a reformaadministrativa foi efetivamente contida pelas metas doajuste fiscal, conduzido de forma inflexível pelo Ministé-rio da Fazenda. Além disso, a questão da assimetria Exe-cutivo-Legislativo foi não só desconsiderada, como refor-çada, dada a estratégia de implementação adotada pelogoverno. Paralelamente à lenta tramitação da reforma noCongresso, o Executivo lançaria mão sistematicamente doinstituto das Medidas Provisórias para introduzir inúme-ras modificações na estrutura administrativa, alcançandoum total de 18 MPs, que seriam ademais continuamentereeditadas, de acordo com uma prática recorrente do go-verno.

Além da crise fiscal, o diagnóstico do governo acercada crise do Estado apontaria o anacronismo do modeloburocrático weberiano, defendendo, através da introdu-ção de um novo modelo � o da administração gerencial �uma ruptura com aquele tipo de organização burocrática.Em contraste, no Brasil nunca houve uma burocracia pro-priamente weberiana. A reforma implantada por GetúlioVargas, nos anos 30, não teve êxito no sentido de garantira vigência da burocracia racional � legal. Desde o início,teve-se um sistema híbrido, marcado pela coexistência dosprincípios universalistas e meritocráticos, com as práti-cas clientelistas, tradicionalmente presentes no padrão deexpansão da burocracia brasileira.

Os cargos de nomeação política sempre foram bastan-te numerosos, quando considerados os padrões internacio-nais. Assim, segundo Schneider, em comparação com amaioria dos chefes de Estado contemporâneos, o presi-dente do Brasil detinha, nos anos 80, um amplo poder denomeação, ultrapassando o montante de 50.000 funcio-nários, em contraste com o Japão, por exemplo, onde ospoderes de nomeação direta na burocracia limitar-se-iampraticamente aos ministros (Schneider, 1994:28). Em pes-quisa relativa ao período nacional-desenvolvimentista,Barbara Geddes (1990), analisando o governo Kubistchek,refere-se a 7.000 nomeações clientelistas feitas pelo pre-sidente Juscelino, apesar de publicamente manifestar-sea favor do sistema meritocrático e de ter implantado as

chamadas ilhas de excelência no interior da burocraciagovernamental, no setor responsável pela execução doPrograma de Metas do governo � os Grupos Executivosdas indústrias automobilística e naval, entre outras. Deacordo com dados do Mare � Ministério da Administra-ção e Reforma do Estado, na segunda metade dos anos90, haveria cerca de 17.200 cargos em comissão.

A ruptura com esse padrão, vale ressaltar, implicaria aênfase na melhoria da qualidade da burocracia, no refor-ço do sistema de mérito, na implantação de um sistema deincentivos para a ascensão na carreira, na valorização dofuncionalismo, na recuperação do prestígio do servidorpúblico, num padrão endógeno de recrutamento para oscargos de mais alto nível, o que esbarra nas restriçõesdecorrentes da prioridade atribuída ao ajuste fiscal. Porúltimo, quanto ao aspecto conceitual, cabe observar queburocracia racional-legal e padrão gerencial são catego-rias distintas, referidas a estatutos teóricos diversos: aprimeira expressando uma certa modalidade de relaçõesde dominação; e o segundo representando um estilo espe-cífico de gestão. A implantação de um padrão gerencial,com base em mudanças de técnicas e procedimentos, nãoelimina a possibilidade da persistência ou mesmo do re-forço do intercâmbio clientelista no relacionamento doExecutivo com a estrutura parlamentar-partidária.

Neste sentido, mais uma vez, verificou-se a sobrevi-vência de um sistema híbrido, desafiando a meta de umatransformação drástica do legado histórico. Em síntese, aalta discricionariedade da autoridade presidencial e oamplo poder de decreto de que dispõe constituem a outraface do controle e cooptação dos partidos e dos congres-sistas pelo chefe do poder Executivo, por intermédio dorecurso generalizado às práticas clientelistas para obterapoio aos seus projetos. O loteamento dos principais car-gos da administração pública, por sua vez, contribui paraa deterioração da capacidade de implementação das polí-ticas governamentais. A criação das chamadas ilhas deexcelência pelo fortalecimento do insulamento burocráti-co, buscando ampliar os graus de autonomia do Executi-vo, reproduz os elementos centrais desse sistema, numcírculo vicioso de efeitos perversos. Este representa umponto de continuidade que vem desafiando as experiên-cias de reforma do Estado até o momento empreendidas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Repensar a reforma do Estado requer uma ruptura como paradigma ainda dominante nos estudos desta área. Para

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GLOBALIZAÇÃO, REFORMA DO ESTADO E TEORIA DEMOCRÁTICA CONTEMPORÂNEA

tanto, impõe-se considerar os aportes da teoria democrá-tica contemporânea. Não basta mais e mais concentraçãodo poder técnico. É preciso levar em conta a dimensãopolítica da reforma do Estado e não apenas seus aspectostécnicos, administrativos, fiscais e financeiros. A ênfasena política, por sua vez, implica obter aquiescência às di-retrizes estatais, produzir o acatamento aos ordenamen-tos e prescrições tanto administrativas como legais. Re-quer, enfim, o fortalecimento das conexões do Estado coma sociedade e com as instituições representativas, expan-dindo também os mecanismos de accountability, vale di-zer, os procedimentos de cobrança e de prestação de con-tas, os meios de controle externo, a transparência e apublicização dos atos do governo.

Nesse sentido, podem ser ressaltadas as perspectivasque preconizam novos estilos de gestão pública, revertendoo isolamento e o confinamento burocrático. Esta novaperspectiva implica estreitar os vínculos com a política,reforçar os instrumentos de responsabilização da admi-nistração pública por controle parlamentar, dar mais for-ça à sociedade civil, sem enfraquecer o poder de coorde-nação do Estado, e diversificar os espaços de negociaçãoe as táticas de alianças envolvendo diferentes atores, as-sociando o aumento da participação com o reforço dasinstituições representativas. As duas formas de responsa-bilização pública, por controle parlamentar e pela partici-pação social, longe de serem incompatíveis, reforçam-semutuamente, como ressalta a teoria democrática contem-porânea (Anastásia, 2000).

À luz desta concepção ampla de reforma do Estado,governabilidade e governança devem ser usados comoconceitos complementares. Trata-se de aspectos distintos,porém interligados da ação estatal. Governabilidade refe-re-se às condições sistêmicas mais gerais sob as quais sedá o exercício do poder numa dada sociedade. Nesse sen-tido, as variações dos graus de governabilidade sofrem oimpacto das características gerais do sistema político,como a forma de governo (se parlamentarista ou presi-dencialista), as relações entre os poderes (maior ou me-nor assimetria entre Executivo e Legislativo), os sistemaspartidários (pluripartidarismo ou bipartidarismo), o siste-ma de intermediação de interesses (corporativista ou plu-ralista), entre outras características. Não há, porém, fór-mulas mágicas para assegurar níveis ótimos degovernabilidade. Governança, por outro lado, na acepçãoaqui utilizada, diz respeito à capacidade de ação estatalna implementação das políticas e na consecução das me-tas coletivas. Implica expandir e aperfeiçoar os meios de

interlocução e de administração dos conflitos de interes-ses, fortalecendo os mecanismos que garantam a respon-sabilização pública dos governantes. Governança refere-se, enfim, à capacidade de inserção do Estado na sociedade,rompendo com a tradição de governo fechado e enclausu-rado na alta burocracia governamental.

Neste contexto, várias experiências inovadoras degovernança urbana no Brasil, ao longo das duas últimasdécadas, revelaram um alto grau de eficiência na despri-vatização do poder público, na democratização do pro-cesso decisório ou ainda na reversão de práticas cliente-listas. No mundo inteiro, as cidades adquirem altacentralidade na vida política, econômica, social e culturalde seus respectivos países. Os governos locais, em facedas condições de escassez de recursos, do aumento dodesemprego e da queda da arrecadação, em conseqüênciadas políticas liberais, formularam novas estratégias e to-maram a iniciativa de atrair investimentos, gerar empre-gos e renovar a base produtiva das cidades. Em 1986,ocorreu, em Rotterdam, a Conferência das Cidades Euro-péias, que definiu as cidades como motores do desenvol-vimento econômico. Em 1989, em Barcelona, uma novaconferência reuniu as 50 maiores cidades da Europa numesforço de definir novos parâmetros de ação.

No Brasil, onde as carências acumularam-se ao longodo tempo e agravaram-se nas duas últimas décadas, a açãoinovadora de várias prefeituras tem contribuído para amelhoria de inúmeros indicadores. Entre as áreas priori-zadas, destacam-se os serviços de saúde, saneamento bá-sico e infra-estrutura urbana, como revelam as experiên-cias de Diadema, Betim e Santos, entre outras. Como ésabido, a simples melhoria dos serviços básicos (água,esgoto e eletrificação) reduz significativamente a preca-riedade das condições de vida das populações mais po-bres, ainda que não haja melhoria da renda. Cabe aindadestacar os programas de renda mínima e bolsa-escola,em Vitória, Belo Horizonte e Brasília, as políticas de de-senvolvimento econômico, como o Plano Estratégico daCidade de Vitória, e certamente as experiências de Orça-mento Participativo, de Porto Alegre e Belo Horizonte.

Qual o alcance e a viabilidade das experiências degovernança urbana? Não há dúvida de que a participaçãoespontânea da sociedade não garante por si só o sucessodeste estilo de gestão. Para evitar distorções, algumascondições devem ser cumpridas. Do ponto de vista dasociedade, é preciso considerar seu grau de organização,a disposição para participar (capital social), a densidadee a qualidade da representação, isto é, o grau de organiza-

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ção dos interesses representados e a legitimidade e a abran-gência da representação e, finalmente, o grau de horizon-talização das relações. Do ponto de vista do governo lo-cal, o grau de descentralização administrativa, a autonomiadas diversas esferas de poder, a articulação entre elas e acapacidade de comando e de coordenação do Estado sãoalguns dos fatores que favorecem a eficácia deste padrãode gestão pública (Valladares e Coelho, 1995; Spink eClemente, 1997; Melo, 1999).

NOTAS

E-mail da autora: [email protected] artigo baseia-se na aula inaugural proferida em 5 de abril de 2001,por ocasião da abertura das atividades do Programa de Pós-Graduaçãode Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.Agradeço aos coordenadores e professores do Programa o honroso con-vite.

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FEDERALISMO E DEMOCRACIA NO BRASIL: A VISÃO DA CIÊNCIA...

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FEDERALISMO E DEMOCRACIA NO BRASILa visão da ciência política norte-americana

Resumo: O artigo examina as interpretações da ciência política norte-americana sobre a natureza do federalis-mo brasileiro, tomando como base as orientações teórico-metodológicas da análise comparada sobre federa-lismo.Palavras-chave: política brasileira; federalismo; democracia.

MARTA ARRETCHE

Professora de Ciência Política da Unesp � Campus Araraquara.Autora, dentre outros, de Estado federativo e Políticas sociais.

uando o poder espanhol entrou em colapso noresto da América Latina, o mesmo aconteceucom o poder de Portugal, e o mesmo tipo degoverno de caudilhos desenvolveu-se como a

unir todas as províncias deste grande Império ao seu cen-tro natural e comum� (Faoro, 1975:12). Se é verdade queem 1834 as elites provinciais obtiveram alguma expres-são política pela supressão do Conselho de Estado e doPoder Moderador, também é verdade que já no episódioda maioridade de d. Pedro II a centralização monárquicase refez: o Poder Moderador e o Conselho de Estado fo-ram restabelecidos; o Senado era vitalício e nomeado peloImperador; os presidentes de província eram indicadospelo poder central assim como o juiz de paz, o chefe depolícia e os delegados e subdelegados locais.

Em suma, nada mais distante do federalismo, comodefinido por Riker, que a estrutura do Estado brasileirono Império. Com efeito, segundo ele, a distinção básicaentre Estado unitário, confederação e federação é que estaúltima supõe uma forma específica de Estado na qual ogoverno está verticalmente dividido entre governos regio-nais e governo central, de modo que cada um tem autori-dade exclusiva em sua área de atuação. Ambos governamo mesmo território e a mesma população, mas cada umtem autoridade para tomar decisões independentementedo outro. Essa autoridade, por sua vez, é derivada do votopopular direto e de recursos próprios para o exercício dopoder (Riker, 1964; 1975).

Como explicar, então, tamanha inadequação entre oconceito de federalismo de Riker e sua interpretação so-bre o caso brasileiro? Na origem, há um problema meto-

unidade central de poder. Esta estrutura recebeu reconheci-mento formal no Ato Adicional de 1834, o qual reconstituiuo Brasil imperial sob a forma federativa. Este federalismofoi elaborado em 1889 quando a república substituiu o im-pério. Tanto em seu início quanto em sua reconstituição, aameaça era Portugal e a realeza brasileira, a qual era umdesmembramento da realeza portuguesa. Portanto, o federa-lismo foi o instrumento de união dos caudilhos em face daameaça externa e, portanto, ambas as condições da barga-nha estavam presentes.� (Riker, 1975:119).

É isso mesmo! No Handbook of Political Science, pu-blicado em 1975, William Riker, um dos mais influentescientistas políticos norte-americanos e autor do capítulosobre federalismo daquele manual, escreveu que o fede-ralismo brasileiro teve origem com o Ato Adicional de1834!

Apenas para refrescar a memória histórica, lembro que,já no início dos trabalhos da Constituinte de 1823, os li-berais exaltados � defensores da unidade do Império combase no princípio da adesão das províncias � foram exila-dos da vida política nacional, acusados por José Bonifácio,um liberal moderado, de querer promover a desunião dasprovíncias e de que querer romper o �sagrado elo que deve

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dológico da pesquisa comparada sobre federalismo dosanos 60 e 70, que diz respeito à referência empírica paraa construção do conceito de federação. Para os autoresmais influentes (Riker, 1964; Wheare, 1964; Duchacek,1970), a versão moderna de Estado federativo foi umainvenção norte-americana e, portanto, qualquer interpre-tação da natureza dos Estados federativos deveria ser cons-truída por referência às instituições políticas inventadasna Convenção da Filadélfia.1

Em Riker, o método USA-centrado não se aplica apenasao conceito de federação, mas também à interpretação daorigem das federações. Seu argumento central é que a ori-gem de todas as federações estáveis criadas nos séculos XIXe XX foi a mesma da criação da federação norte-americana:um processo de barganha, cuja condição necessária � e sufi-ciente, no caso dos Estados Unidos � foi a ameaça ou opor-tunidade de expansão ou defesa militar ou diplomática. Go-vernos centrais com intenções expansionistas ou temerososda ameaça externa, mas incapazes de dominar os governoslocais pela força,2 cedem parte de sua autoridade aos gover-nos locais, porque estes detêm a lealdade dos cidadãos; porsua vez, governos locais � com história e identidade próprias�, por razões expansionistas ou por necessidade de defesa,fazem concessões a uma autoridade central, para aumentarsua capacidade militar ou diplomática.

Em sua �Interpretação Militar da Constituição dos Es-tados Unidos� (Riker, 1964:17), o autor sustenta que aprincipal motivação dos Federalist Papers era a guerra enão assuntos internos ou a expansão econômica, e nemmesmo a defesa da liberdade. A barganha racional entrepolíticos eqüipotentes, dotados de autonomia e com a in-tenção de obter vantagens por meio de uma associaçãoque supõe concessões mútuas seria, a exemplo dos Esta-dos Unidos, a história de todas as federações contempo-râneas bem-sucedidas (Riker, 1975:116).

A grande inovação da Constituição de 1787 foi a in-venção do federalismo centralizado, uma fórmulaassociativa que criou um governo central dotado de auto-nomia e independência em relação aos Estados-membros.São, portanto, instituições importantes aquelas que garan-tem a independência do governo central, em oposição àsua dependência dos estados-membros na fórmula préviada Confederação. A partir de 1787, a Presidência e o Le-gislativo centrais passaram a ser escolhidos diretamentepela população; o governo central passou a ter uma longalista de atividades exclusivas, assim como sua autoridadeprevaleceria nos casos de conflito entre os níveis de go-verno (Riker, 1975:109).

Mas, se o governo central concentra tantos poderes � eesta é, para Riker, a principal condição para que as fede-rações não se desintegrem �, o que mantém as federações,isto é, que mecanismos institucionais impedem que o go-verno central subordine os governos locais, transforman-do-se num Estado unitário? Seja nos EUA, seja nas de-mais federações, o grau de centralização da federação seriadiretamente dependente do grau de centralização do sis-tema partidário. Quanto maior a probabilidade de que ummesmo partido controle simultaneamente o governo cen-tral e os Estados-membros e, ainda, quanto maior a disci-plina partidária dos partidos nacionais, mais fortes seriamas tendências à centralização. Alternativamente, o multi-partidarismo, partidos disciplinados de base regional, apossibilidade efetiva de alternância no poder funcionariamcomo uma espécie de contrapeso às inevitáveis tendên-cias centralizadoras derivadas do desenho institucional dasmodernas federações.3 Portanto, para Riker, é a descen-tralização do sistema partidário, e não o Senado, comoinstituição representativa dos Estados-membros, que ga-rantiria a independência dos níveis de governo.4

Estes pressupostos teóricos tornam menos surpreenden-te o equívoco de Riker na interpretação do caso brasilei-ro. Na verdade, embora a independência entre os níveisde governo seja uma característica central das federações,sua ênfase está concentrada na dimensão centralizadora,nos mecanismos institucionais que garantem a indepen-dência e a autoridade dos governos centrais � caracterís-tica esta que, com certeza, o II Império preenchia.

É certo que uma pesquisa empírica melhor fundamen-tada lhe permitiria observar que as condições da barga-nha já na Constituinte de 1823 eram, no mínimo, muitodesiguais e que, no II Império, a �máquina compressorado Império� (Faoro, 1975:355) garantia a vitória eleito-ral do partido que estivesse no Gabinete indicado pelo Im-perador. Uma pesquisa histórica de maior profundidadelhe permitiria concluir que no II Império o Brasil nãopreenchia as condições essenciais de sua definição de fe-deração (a existência de um sistema partidário descentra-lizado), nem as condições de emergência de uma federa-ção (a barganha racional entre políticos eqüipotentes dediferentes níveis de governo).

Por outro lado, foi no processo de independência dePortugal que os �caudilhos� � as lideranças políticas lo-cais que contavam com a lealdade dos cidadãos � cede-ram parte de sua autonomia prévia para a criação de umgoverno central, em face da ameaça representada por Por-tugal. Em 1889, quando da criação da república federati-

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va, a ameaça portuguesa não estava mais presente. Loca-lizar, porém, a emergência do federalismo em 1889 inva-lidaria a tese da origem militar das federações ou, dito deoutro modo, o poder explicativo e de generalização de suainterpretação centrada na trajetória norte-americana.

O mesmo método de análise empregado por Riker con-duziu Wheare (1964:21) à conclusão oposta: O Brasil (de1891) não poderia ser considerado um exemplo de federação.

Para Wheare, a grande invenção de 1787 foi a criaçãode um governo central, cujas atribuições e instrumentosde decisão e governo não são redutíveis à vontade dosEstados-membros, sem que, por outro lado, os estados-membros tenham perdido a sua independência. Isto é, ogoverno central não pode estar subordinado aos governosregionais, nem estes subordinados ao governo central. UmEstado somente pode ser considerado federativo se as re-lações entre os níveis de governo forem simultaneamentede coordenação e mútua independência, princípios essesque devem estar presentes não apenas constitucionalmen-te, mas também no funcionamento efetivo das instituiçõespolíticas.

Assim, para Wheare, nem a União Soviética, nem aRepública de Weimar, nem os países latino-americanospoderiam ser considerados federações, pois, embora seauto-definissem constitucionalmente como federativos, ofuncionamento efetivo de suas instituições políticas per-mitia que as instituições centrais subordinassem os gover-nos regionais. No Brasil, a existência de corpos legislati-vos separados nos níveis central e regional, a clara divisãode atribuições entre as esferas de governo e o bicame-ralismo não seriam instituições políticas suficientes paragarantir a efetiva independência entre os níveis de gover-no. O poder do Congresso para emendar a Constituição,sem ratificação dos Estados, implicaria na prática a su-bordinação dos governos regionais às instituições centrais,o que seria uma característica dos Estados unitários5

(Wheare, 1964:21).Para Wheare, a garantia constitucional de que os Esta-

dos possam exercer seu poder de veto na aprovação dalegislação federal é uma instituição decisiva na caracteri-zação de uma federação. O raciocínio é claro: esta é umacaracterística da federação norte-americana, que garantea independência dos Estados assim como sua representa-ção política nas instituições centrais. Dado que a referên-cia empírica dos Estados Unidos é fundamental para dis-tinguir formas federativas de não-federativas, Estados quenão apresentarem as características essenciais do casonorte-americano não podem ser considerados federativos.

Portanto, segundo a definição de Wheare, o Brasil não seriauma federação até hoje.

Combinadas, as interpretações de Riker e Wheare so-bre o Brasil nos levariam à seguinte conclusão: o Brasiljá era uma federação em 1834, quando não se declaravacomo tal, e não é uma federação até hoje, quando declaraque é! Na base desse aparente paradoxo, um problemateórico-metodológico: a referência empírica para a cons-trução do conceito de federação e das condições de emer-gência e evolução dos Estados federativos.

A REAÇÃO A RIKER

Dois autores norte-americanos, pouco conhecidos noBrasil, apontaram os limites da metodologia �USA-cen-trada� da pesquisa comparada dos anos 60: Ivo Duchacek(1970) e Preston King (1982). Ambos consideram serimpossível afirmar que a ameaça externa ou o desejo deexpansão militar estejam na origem de todas as federa-ções. Tanto vantagens de ordem econômica, a serem ob-tidas pela associação de Estados, assim como o interesseem preservar a unidade nacional de um Estado (previa-mente) unitário, estiveram na origem das modernas fede-rações do século XX.

A barganha federativa que deu origem ao modelo fe-derativo de 1787 teve uma pré-condição histórica: trezeEstados, cuja identidade e interesse comum se desenvol-veram previamente à União e cujo propósito na Conven-ção da Filadélfia era preservar essa autonomia. No casodo Brasil, por exemplo, apenas algumas unidades adqui-riram razoável senso de identidade previamente à forma-ção da federação e mesmo elas tiveram que disputar seuespaço no plano federal, porque na formação da federa-ção brasileira �a União antecedeu suas partes� (Duchacek,1970:241). A derrota militar dos católicos pelos protes-tantes na União Suíça, em 1848, e a sobrevivência da pró-pria União Americana em 1864 pela derrota militar dosEstados do sul não confirmam a tese da emergência dasfederações como resultado de um acordo livre e racionalentre políticos eqüipotentes (King, 1982:35ss).

Mesmo o federalismo centralizado não teria sido ummodelo que se generalizou. Assim como a Constituiçãode 1787 foi desenhada para criar um governo central do-tado de mais poderes do que aqueles garantidos pelosArtigos da Confederação, a nova Constituição Federal naAlemanha de 1949 foi desenhada para criar um governocentral dotado de menos poderes do que aqueles de queHitler fez uso durante o III Reich (King, 1982:39).

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Nem mesmo a descentralização do sistema partidáriopoderia ser considerada uma condição necessária à ma-nutenção das federações. Na vida real das federações, suaestabilidade estaria associada a uma diversidade de com-binações que envolveriam o número de partidos efetiva-mente existentes, sua estrutura interna, sua ideologia, as-sim como o compromisso das lideranças partidárias como pluralismo. Poderia, por exemplo, a República Velhaser chamada de federação, quando na prática havia oli-garquias estaduais que não permitiam a competição parti-dária nas províncias, embora se revezassem no controledo governo central (Duchacek, 1970:333)?

Contudo, o grande limite dos autores que questiona-ram a capacidade de generalização da teoria de Riker foisua incapacidade de construir uma teoria alternativa.Embora o reconhecimento da variedade de trajetórias te-nha sido uma contribuição importante, a nova agenda daanálise comparada já não deveria discutir as característi-cas essenciais do Estados federativos em relação a outrasformas de Estado, pois essa contribuição já havia sido dadaanteriormente. A superação da distância entre o reconhe-cimento da diversidade de trajetórias e a construção deuma teoria alternativa baseada no conceito de distintos mo-delos de federalismo implicaria a seleção de variáveis quepermitissem identificar tipos específicos de Estados fe-derativos. Essas variáveis deveriam permitir agrupar Es-tados cujas características fossem simultaneamente dis-tintas externamente e semelhantes internamente. Umsegundo passo para superar a distância entre a descriçãodos casos e a construção de uma teoria alternativa deveriaassociar diferentes modelos de Estados federativos a traje-tórias particulares de emergência e desenvolvimento.

Penso que uma importante contribuição nessa direçãofoi apresentada recentemente por Stepan (1999). Para oautor, nenhum Estado-nação criado posteriormente à Re-volução Francesa com as mesmas características institu-cionais do federalismo norte-americano tornou-se umafederação democrática estável. A origem da federação nor-te-americana pela qual Estados previamente independen-tes �juntaram-se� para somar forças (modelo coming-together) não se repetiu em outras federações. Portanto,ao contrário do afirmado por Riker, o caso norte-ameri-cano seria a exceção e não a regra.

Muitas das federações democráticas contemporâneastiveram sua origem derivada da necessidade de holdtogether, isto é, países com múltiplas etnias em sua com-posição populacional e que decidiram tornar-se federa-ções porque os Estados unitários previamente existentes

estavam ameaçados de disrupção. Nestes, as unidadessubnacionais não eram Estados cuja soberania prévia lhesconferia um poder de barganha, que pudesse ser compa-rado à trajetória dos Estados norte-americanos, o que im-plicou que os governos regionais tivessem menos sobera-nia e menos poder de barganha em relação ao governocentral. Em um terceiro tipo de trajetória histórica (putting-together), ocorreu um pesado esforço coercitivo por par-te de um poder não-democrático centralizado, cujo obje-tivo era �juntar� um Estado baseado em diferentes etniase nacionalidades, das quais apenas algumas estavam or-ganizadas previamente em Estados independentes (casoda Rússia).

Assim, a origem das diferentes federações poderia sercompreendida em termos de um continuum. Em um ex-tremo, um modelo baseado em uma barganha fortementevoluntária, pelo qual unidades relativamente autônomascome together para aumentar sua soberania, retendo suasidentidades individuais (caso dos Estados Unidos, da Suíçae da Austrália). Em outro extremo, nos quais Estados uni-tários previamente existentes hold together, as condiçõesde barganha dos governos locais teriam sido fundamen-talmente distintas daquelas presentes no modelo coming-together (caso da Índia, Bélgica e Espanha).

Stepan (1999) está essencialmente preocupado com arelação entre a origem das federações no século XX e suasestruturas institucionais contemporâneas, mais particular-mente com as garantias institucionais de representação davontade dos componentes da federação. Assim, emboraanalise o caso brasileiro do ponto de vista da segundavariável, o autor não examina as origens do federalismono Brasil.

Embora, por exclusão, pareça atraente classificar o Bra-sil no modelo holding-together, uma rápida reconstituiçãodo golpe republicano de 1889 sugere cautela na adequaçãodesse conceito ao caso brasileiro. Não havia grupos étnicoscom identidade própria reivindicando autonomia, nem ameaçareal de disrupção do Estado unitário no final do século XIX.Os �cabanos� (1835), os �balaios� (1838-1840), os �sabinos�(1837) e os �farroupilhas� (1835-1845) já haviam sido vio-lentamente controlados pelo Exército Imperial muito antesda Proclamação da República.

Na verdade, salvo melhor juízo, a literatura indica quea principal razão do golpe republicano teria sido o pró-prio desgaste da monarquia, processo no qual a Coroaperdeu o apoio das forças mais dinâmicas (a cafeiculturado sul e as classes médias emergentes) e dos setores maisconservadores (ligados ao escravismo, descontentes com

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a abolição) (Schwartzman, 1982). Além disso, a grita ge-neralizada contra a centralização monárquica seriaexplicada pela crise fiscal do final do Império e a correlataincapacidade de atendimento das diferentes demandasregionais6 (Costa, 1994).

Finalmente, o Estado e as instituições políticas brasi-leiras passaram por diversas transformações desde a ori-gem até a versão contemporânea. Conjunturas críticascomo o Estado Novo, o regime militar e a Constituição de1988 legaram alterações importantes na natureza das re-lações federativas.7 Isso implica dizer que, para a inter-pretação dos Estados federativos contemporâneos, cujaorigem seja anterior ao final do século XX, é tambémnecessária uma teoria das condições de desenvolvimentodos distintos modelos.

FEDERALISMO E PROCESSO DECISÓRIO

Penso que, a partir de meados dos anos 80, produziu-se um deslocamento na agenda de pesquisas norte-ameri-cana sobre o federalismo: de um debate centrado nas es-pecificidades dos Estados federativos vis-à-vis os Estadosunitários e confederações, para um debate centrado noimpacto do federalismo sobre a autoridade dos governoscentrais, particularmente sua capacidade de mudar o statusquo, produzir inovações e implementar reformas de polí-ticas.

Teoricamente, há um grau de consenso razoável emtorno da seguinte proposição: Estados federativos tendema restringir as possibilidades de mudança do status quo,porque a autonomia dos governos locais opera no sentidode dispersar o exercício da autoridade política, aumen-tando o poder de veto das minorias (Lijphart, 1984); ou,ainda, porque a presença de um maior número de vetoplayers institucionalizados nas arenas decisórias aumen-ta o potencial de estabilidade das políticas existentes(Tsebelis, 1997). Sistemas federativos restringem o po-tencial de mudanças de políticas porque as garantias ins-titucionais dos Estados-membros no processo decisóriotendem a produzir decisões políticas com base no �míni-mo denominador comum�. (Pierson e Leibfried, 1995).

Na agenda de pesquisas, a análise do impacto das ins-tituições federativas no processo decisório tende a ser umaextensão da análise das relações entre Executivo eLegislativo: �A maior parte das lições que extraímos daanálise de sistemas presidenciais e parlamentares podemser igualmente aplicada a fatores de terceiro nível (third-tier), tais como o federalismo. Tal como os sistemas par-

lamentares, federalismo é uma designação genérica quemascara uma variedade de arranjos institucionais que criamriscos e oportunidades distintas para as capacidades degoverno. Governos provinciais e federais podem ter au-toridade para intervir em uma área de política sem per-missão do outro nível de governo. Isto tende a prover for-tes incentivos para a inovação em políticas públicas namedida em que cada nível de governo tenta controlar ajurisdição de uma política antes que o outro o faça. Entre-tanto, este tipo de federalismo também corre o risco deque os diferentes níveis de governo tenderão a impor con-flitos entre programas, elevação dos custos da implemen-tação e tornarão o problema da coordenação de objetivosainda mais difícil. Alternativamente, o federalismo podeser estruturado de modo a requerer a aprovação dos go-vernos subnacionais afetados e do governo federal paraqualquer desvio do status quo. Estes arranjos (...) acres-centam pontos de veto e inibem a implementação.�(Weaver e Rockman, 1993:459).

As interpretações correntes sobre o Brasil derivam dessaagenda de pesquisa. As instituições políticas brasileiras �cuja natureza essencial não variou nos distintos regimesdemocráticos � são uma espécie de �máquina de triturarpresidentes�, pois a combinação de presidencialismo, sis-tema multipartidário, indisciplina partidária e federalis-mo gera um excesso de pontos de veto no processo deci-sório, elevando exponencialmente os custos de aprovaçãode reformas no Congresso. Os impasses entre o Executi-vo e o Legislativo, derivados dessa engenharia institucio-nal, seriam a principal ameaça à estabilidade democráticano Brasil.

A �(...) implementação de reformas no Brasil é maisdifícil do que em muitos sistemas presidencialistas. Estesistema institucional frustrou diversos presidentes demo-cráticos. Um presidente (Vargas) cometeu suicídio; outro(Quadros) renunciou após apenas sete meses posteriormen-te a uma esmagadora vitória eleitoral; um outro (Goulart)adotou ações erráticas que contribuíram para o rompimentoda democracia em 1964. Entre 1985 e 1994, sucessivospresidentes falharam para empreender um bem sucedidoplano de estabilização, (...) a combinação de presidencia-lismo, sistema multipartidário fragmentado, partidosindisciplinados e robusto federalismo é freqüentementedifícil.� (Mainwaring, 1997:56)

�Os últimos 15 anos de política democrática no Brasil,combinados com a experiência pluralista de 1946-64, in-dicam que as instituições políticas nacionais criam umapermanente crise de governabilidade, devastando em tem-

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pos normais e debilitando até mesmo presidentes comoCardoso, que parece controlar todas as cartas.� (Ames,2001:18)

�As instituições [políticas brasileiras] produzem umexcesso de pontos de veto. Este excesso não é apenas umaquestão do número de partidos necessários para produzirmaiorias legislativas. Em termos mais amplos, o destrutivofederalismo brasileiro, que constrange a vontade da maio-ria, combinado com presidencialismo e com as regras elei-torais da nação, criam este excesso.� (Ames, 2001:267).

Além de gerar impasses no processo decisório, a des-centralização do sistema partidário e o federalismo influen-ciariam também o conteúdo das decisões políticas, poisos presidentes ficariam imobilizados nas áreas de políticaem que o Congresso e os governadores são veto playersdecisivos, como desindexação de salários e pensões, re-dução do emprego público, privatizações, política fiscal,gestão dos bancos estaduais, pagamento das dívidas esta-duais, etc. (Mainwaring, 1997:99-102). Ainda: o fato deque o Brasil tenha o sistema fiscal mais descentralizadoentre os sistemas presidencialistas e federativos da Amé-rica Latina é explicado pelo grau de descentralização deseu sistema partidário, o qual, por sua vez, está direta-mente relacionado ao poder dos políticos locais (gover-nadores e prefeitos) sobre a sobrevivência eleitoral doscongressistas (Willis, Garman e Haggard, 1999).

Em termos muito sucintos, o argumento é o seguinte:sistemas presidencialistas, por serem baseados na divisãode poderes, tendem a produzir dispersão da capacidadedecisória e coalizões parlamentares instáveis. No entan-to, o sucesso legislativo da presidência pode variar deacordo com a fragmentação e disciplina partidárias. Onúmero efetivo de partidos, a proximidade ideológica dospartidos de sustentação política da Presidência e o graude disciplina dos partidos poderiam produzir resultadosdiferentes. Um reduzido número de partidos efetivos �como nos EUA, Costa Rica e Venezuela � implica siste-mas presidencialistas que funcionam melhor (Mainwaringe Shugart, 1997:398), assim como partidos políticos dis-ciplinados e centralizados tornam mais estáveis e confiá-veis as relações entre o governo, os partidos e a(s)câmara(s) legislativa(s) � como no caso do México(Mainwaring, 1997).

Entretanto, em sistemas federativos �robustos� � parausar a expressão empregada por Mainwaring (1997) paradescrever o caso brasileiro �, governadores e/ou prefeitoscontrolam recursos que são vitais para a carreira políticados parlamentares. A descentralização dos partidos políti-

cos � nos quais o comportamento parlamentar é fracamen-te controlado pela lideranças partidárias nacionais � é re-sultado do fato de que os políticos locais controlam os re-cursos necessários ao sucesso eleitoral dos legisladoresfederais, dada a extensão e persistência do clientelismo eda troca de favores na política nacional (Hagopian, 1996;Ames, 2001). Juntamente com as regras partidárias eleito-rais (basicamente, a lista aberta e a representação propor-cional), o poder dos governadores e prefeitos seriam asvariáveis decisivas para explicar o grau de descentraliza-ção do sistema partidário e, por conseqüência, indisciplinano comportamento parlamentar dos congressistas.

Comparado com outras federações contemporâneas, ofederalismo brasileiro estaria, juntamente com os EUA,no extremo da escala de demos-constraining. O sistemade composição do Senado brasileiro, semelhante ao doamericano, com número equivalente de cadeiras para Es-tados excepcionalmente diferentes em termos populacio-nais, garante um excessivo grau de super-representaçãoaos Estados menores. Os poderes legislativos do Senadobrasileiro também seriam excessivos: além do poder paraaprovar todas as leis e emendar a Constituição, a CâmaraAlta dispõe de doze áreas de exclusividade legislativa. Emterceiro lugar, o poder residual dos Estados nos casos deomissão constitucional e o poder dos governadores, com-binados ao excessivo detalhamento da Constituição de1988 e à exigência de supermaiorias para as emendas cons-titucionais, impõem um extremo poder de restrição àrealização das preferências da maioria. Finalmente, o con-trole dos governos locais sobre as candidaturas, assimcomo as regras eleitorais que incentivam o comportamentoindividualista dos parlamentares, tornam os partidos bra-sileiros excessivamente voláteis, isto é, pouco disciplina-dos. Assim, a possibilidade de transformar as preferên-cias da maioria � expressa na escolha do Presidente � empolíticas encontraria obstáculos institucionais de grandemonta, pois o desenho institucional da federação alavan-caria os recursos de poder das minorias nas instânciasdecisórias federais, especialmente no Senado.

Não se tratará aqui de discutir a interpretação da natu-reza das relações entre Executivo e Legislativo no Bra-sil;8 muito simplesmente, se restringirá ao conceito de fe-deralismo dessa literatura e suas conseqüências para asinterpretações sobre o Brasil.9

A nova geração de estudos sobre o federalismo contra-ria algumas das principais proposições da geração ante-rior. Para Riker (1964; 1975), a sobrevivência das fede-rações dependia da descentralização dos partidos políticos.

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A descentralização dos partidos americanos preservarama federação, porque criaram contrapesos à vontade dogoverno central. No caso dos EUA, o localismo dos parti-dos, derivado do fato de que as organizações locais con-trolam as indicações para o Congresso e a Presidência,implicam �não que os estados controlem as decisões na-cionais, mas que a nação não pode controlar as decisõesestaduais� (1964:91). Dada a força e independência dogoverno central, a descentralização do sistema partidárioe a independência dos Estados funcionariam como um con-trapeso às tendências centralizadoras do governo federal,preservando o federalismo (Riker, 1964:104).

Nas interpretações mais recentes, um modelo de fede-ralismo no qual os Estados sejam independentes e tenhampoder de controle sobre seus representantes nas arenasdecisórias federais é um problema; no limite, uma amea-ça à democracia.

Mais que isso, o México, o país latino-americano cujacentralização do processo decisório garantiria autoridadee governabilidade ao Presidente na literatura contempo-rânea, não era sequer considerado democrático nos estu-dos dos anos 60 e 70 (Wheare, 1964; Riker, 1975:156).Na raiz das restrições ao México, estava a centralizaçãodo sistema partidário mexicano.

Na verdade, Riker (1975:143) rejeitava o argumento deque os Estados federativos pudessem produzir algum impactoparticular sobre a produção de políticas públicas. Qualquercomparação entre as respectivas políticas públicas permiti-ria concluir que, no campo administrativo, os Estados fede-rativos e unitários do século XX apresentariam mais seme-lhança entre si do que os Estados federativos do século XXcomparados consigo mesmos no século XIX. Além disso,no século XX, não haveria nenhuma característica decisivado processo decisório dos Estados federativos que não pu-desse ser encontrada nos países de Estado unitário, porque acaracterística central desse século foi a progressiva centrali-zação do processo decisório.

Assim, a única diferença importante entre Estados uni-tários e federativos diria respeito ao estilo de governo queo governo central está obrigado a cumprir. Em Estadosfederativos é freqüentemente necessário ao governo cen-tral atuar de modo a demonstrar que o governo federaltem autoridade legal para fazer o que quer fazer. Mas, semdúvida, caso o governo federal queira fazer algo, terá re-cursos para tal. Os �arranjos constitucionais e adminis-trativos do federalismo afetam profundamente o estilo dadecisão política, mas não afetam profundamente seus re-sultados� (Riker, 1975:145).

Não há dúvida de que na raiz das divergências estãoquestões de ordem normativa, relacionadas a preferênciasno tocante aos princípios de representação e governabili-dade. Penso, entretanto, que há pelo menos duas distin-ções importantes na atual agenda de pesquisas e que têminfluência nas interpretações sobre o Brasil.

Em primeiro lugar, operou-se uma restrição no escopoanalítico do objeto de pesquisa: nas interpretações atuais,a análise sobre o federalismo passou a ser uma dimensãoda análise das relações ente o Executivo e o Legislativono plano federal.

Nessa agenda de pesquisas, o federalismo é entendidobasicamente como a expressão do poder parlamentar degovernadores e prefeitos na arena legislativa federal. Oindicador de medida da �força� ou �fraqueza� do federa-lismo é a capacidade relativa de os executivos dos distin-tos níveis de governo influenciarem o comportamentoparlamentar dos legisladores federais.

O conceito clássico de Estado federativo, como foiconstruído pela geração de estudos dos anos 60 e 70, odefine como uma forma particular de governo divididoverticalmente (entre distintos níveis de governo), de modoque diferentes governos têm autoridade sobre a mesma po-pulação e território. Analiticamente, na literatura contem-porânea, é como se a totalidade da atividade de produçãode políticas públicas do executivo federal estivesse con-centrada em formular uma legislação e aprová-la nas are-nas decisórias federais, sejam elas o Congresso ou apenaso Senado.

Os manuais de políticas públicas nos ensinaram que ociclo de uma política é mais do que sua formulação. Maisque isso, a literatura sobre implementação de políticas temdestacado que as burocracias governamentais de fato �fa-zem� as políticas públicas por meio da implementação.Isso significa que, para além da atividade de formulação,os distintos níveis de governo têm espaço para tomar umasérie de iniciativas independentemente de autorizaçãolegislativa.

Além disso, os manuais de políticas públicas tambémnos ensinaram que a formulação de uma política é muitomais do que a obtenção de aprovação legislativa. Posterior-mente à aprovação legislativa, as burocracias governamen-tais têm autoridade para traduzir leis em políticas efetivas,simplesmente pela definição das regras de implementa-ção das políticas.

Isso significa que há um conjunto mais amplo de insti-tuições políticas nas quais se opera a barganha federati-va, o conflito de interesses entre executivo federal e exe-

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cutivos subnacionais. Adicionalmente, envolveriam, pelomenos, as relações com o Judiciário e as relações diretasentre os executivos dos distintos níveis de governo. Re-duzir a análise do funcionamento das instituições federa-tivas à arena legislativa federal implica necessariamenteuma visão parcial e limitada dos recursos de poder de quedispõem os distintos níveis de governo para fazer repre-sentar seus interesses.

Em segundo lugar, as interpretações contemporâneastêm enfatizado e selecionado para análise as políticas edecisões de política nas quais o governo federal teve umdesempenho desfavorável. Para demonstrar a progressi-va centralização das funções administrativas nos EstadosUnidos, Riker (1964:191ss) selecionou 19 áreas de com-petências concorrentes entre os níveis de governo, o quelhe permitiu ter uma visão abrangente da evolução dasrelações intergovernamentais.

A preferência pelos casos nos quais o governo federalencontrou resistência pode estar produzindo um bias pelavariável dependente nas interpretações sobre o federalis-mo brasileiro, uma vez que o processo decisório das polí-ticas nas quais o governo federal foi bem-sucedido naimplementação de sua agenda de reformas de naturezafederativa não é objeto da análise. Nessa situação, maisuma vez, o que é apenas uma dimensão das relações fede-rativas é tomado como a natureza do federalismo brasi-leiro.

COMENTÁRIO FINAL

Esta revisão crítica pretendeu demonstrar que, emboraa federação brasileira tenha sido objeto de pesquisa nasanálises da ciência política comparada norte-americana,ainda há muito a ser feito neste campo de investigação.

Estudos comparados são particularmente árduos, dadasas dificuldades de toda ordem, particularmente a obtençãode dados confiáveis e comparáveis entre si. Este artigo, con-tudo, pretendeu destacar avanços e dificuldades passadas epresentes no campo teórico-metodológico. É certo que, nopassado recente, indicações bastante sugestivas de análisetêm sido feitas, especialmente no sentido de superar a pers-pectiva USA-centrada que orientava a teoria comparada so-bre federalismo nos anos 60 e 70.

Penso, entretanto, que a análise comparada das fede-rações ainda necessita de uma teoria capaz de sugerir ca-minhos interpretativos sobre a origem dos diferentes mo-delos das federações contemporâneas, mas também doscondicionantes históricos de suas diferentes trajetórias.

Quanto às análises contemporâneas, pertinentes às re-lações entre federalismo, democracia e processo decisó-rio, o principal objetivo deste artigo foi destacar a neces-sidade de uma ampliação da agenda de pesquisas sobre anatureza das relações intergovernamentais no Brasil. Pensoque as interpretações atuais tendem a reduzir o escopo daanálise, concentrando-se excessivamente nos casos em queo governo federal teve um desempenho relativamente des-favorável vis-à-vis os governos estaduais, assim como emuma das arenas nas quais se processam as relaçõesintergovernamentais: a arena legislativa federal. Umaampliação dessa agenda de pesquisas deveria caminharbasicamente em duas direções: no exame de processosdecisórios nos quais o governo federal foi bem-sucedidoem implementar sua agenda de reformas, assim como naanálise do processo decisório de políticas que envolvamrelações diretas entre o Poder Executivo dos distintos ní-veis de governo e/ou nas quais o Poder Judiciário funcio-ne como árbitro dos conflitos intergovernamentais.

NOTAS

E-mail da autora: [email protected] artigo foi escrito com base em pesquisa realizada durante meuprograma de pós-doutoramento junto ao Department of PoliticalScience do Massachussets Institute of Technology, MIT, financiadocom bolsa concedida pela Fapesp. Agradeço a Celina Souza pelos va-liosos comentários à primeira versão (do texto).1. Modernos, neste caso, seriam os Estados federativos baseados noprincípio da �república �composta�� proposta por Madison, em oposi-ção ao modelo confederativo anterior (como nos Estados Unidos de1777 e nos modelos federativos originais da Suíça e Holanda), basea-dos na concepção federativa de Montesquieu.2. A decisão da barganha derivaria dos elevados custos de obtençãoda adesão pela força (Riker, 1964).3. �A essência do federalismo nesta definição são suas característicaspolíticas: (1) a barganha política que o cria e (2) a distribuição de po-der em partidos políticos que dão forma à estrutura federativa em suamaturidade. Todo o resto sobre o federalismo é acidental: a demarca-ção de áreas de competência entre governo central e governos consti-tuintes, a operação das relações intergovernamentais, a divisão de re-cursos fiscais etc.� (Riker, 1975:141).4. Riker (1975) considera que, na Convenção da Filadélfia, o Senadofoi concebido como a instituição destinada a representar os interessesdos Estados-membros no governo central. Na prática, contudo, a Câ-mara Alta nunca representou de fato esse papel, pois os Estados-mem-bros foram rapidamente desprovidos de mecanismos institucionais paracontrolar o comportamento parlamentar de seus representantes, umavez que não tinham poder para revogar seus mandatos.5. Nos Estados Unidos, emendas à Constituição, mesmo que não afe-tem a distribuição federal de poderes, exigem a ratificação de 3/4 dosEstados-membros e há mesmo tipos de emendas que não podem seraprovadas sem a ratificação de 49 dos 50 Estados (Duchacek,1970:231).Para um exemplo, ver Mansbridge (1986), que analisa as razões pelasquais o Equal Rights Movement � ERA � fracassou em aprovar a Emen-

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da Constitucional que garantiria direitos iguais a homens e mulheres.Embora tenha sido aprovado no Senado dos Estados Unidos com umavotação de 84 contra 9, e embora diversas pesquisas de opinião te-nham revelado forte apoio da opinião pública à Emenda Constitucio-nal, esta não foi aprovada porque as casas legislativas estaduais apro-varam a Emenda em apenas 35 Estados, quando seria necessário que38 Estados o tivessem feito.6. Esta tem um fundamento real: quando examinada a relação entre asreceitas geradas em cada província e as despesas ali efetuadas pelogoverno central, constata-se que todas as províncias � com exceção doRio Grande do Sul e Mato Grosso, por razões militares � transferiamrecursos para a Coroa (Costa, 1994:27).7. Para interpretações sobre a evolução do federalismo brasileiro, verSouza (1994) e Souza (forthcoming).8. Para uma interpretação alternativa sobre a natureza das relações entreExecutivo e Legislativo no Brasil nos governos democráticos recen-tes, ver Figueiredo e Limongi, 1999. Para uma reconstituição destedebate, ver Palermo, 2000.9. Para diferentes interpretações sobre a natureza do federalismo bra-sileiro, com base no conceito da força relativa do executivo federal edos executivos estaduais, ver Abrucio (1998) e Souza (forthcoming).

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O AVESSO DO AVESSOconjuntura e estrutura na recente

agenda política brasileira

governo Fernando Henrique Cardoso foi muitasvezes acusado de governar por medidas provi-sórias. Notabilizou-se, por outro lado, pela rea-

ESCOPO DO PODER E CONTROLES

A delegação de poder (e a conseqüente definição de seuescopo) passa, na tradição contratualista liberal, pelo es-tabelecimento de dois pactos: um entre os indivíduos fun-dadores do Estado, pelo qual este é criado e são definidosseus atributos � o pacto constitucional propriamente dito.Outro entre governantes e governados (posterior, portan-to, ao pacto originário), pelo qual os últimos definem asatribuições específicas daqueles a que delegam poder e atéque ponto esses podem (e devem) ir no exercício da dele-gação, cuja definição está subordinada às condições fixa-das pelo primeiro pacto. O primeiro é o pacto constituinteda pólis, ao passo que o segundo é o pacto que ocorre jáno âmbito da pólis constituída; noutras palavras, o primeiropacto institui um Estado (e, conseqüentemente, uma cole-tividade, a nação), enquanto o segundo institui um gover-no � confere mandatos a um indivíduo ou a um corpo deindivíduos que serão responsáveis pela produção de polí-ticas e pela administração do Estado.

Os governados transferem poder a agentes cujas deci-sões deverão acatar; o poder de mando dos governantesprovém, portanto, de uma delegação dos governados.Como controlar os mandatários, para que ajam dentro doslimites desejados? Solução óbvia das democracias é a cria-ção de mecanismos verticais de controle dos governadossobre os governantes, reduzindo a assimetria de poder

lização de profundas reformas no modelo econômico e noEstado brasileiro, quase todas implementadas por meio deemendas constitucionais.

Um e outro desses instrumentos decisórios de que lan-çou mão o governo contrastam pelos distintíssimos grausde exigência para sua aprovação. Enquanto as MPs reque-rem quase unicamente a ação do presidente, as emendasconstitucionais demandam a costura de amplo consensonas duas Casas do Congresso e entre elas. O que marcouafinal este governo? O decretismo desenfreado ou as ne-gociações extenuantes visando à construção de amplíssi-mas coalizões? De certa forma, talvez ambas as coisas,imbricadamente.

Qual o significado da utilização articulada desses me-canismos no processo de implementação de políticas go-vernamentais? No que essa utilização afeta o funciona-mento da democracia brasileira? Que condições políticasse fazem necessárias para viabilizar, simultaneamente, umaagenda de reformas constitucionais e outra implementadapor meio de medidas provisórias? São estes alguns dostemas discutidos aqui.

Após algumas considerações de ordem teórica, passa-rei à análise do uso desses dispositivos pelo governoFernando Henrique Cardoso.

Resumo: Fernando Henrique Cardoso implementou sua agenda governamental utilizando, simultânea e articu-ladamente, diversos mecanismos decisórios. Destacam-se as medidas provisórias e as emendas constitucio-nais. Converteram-se umas � concebidas para emergências conjunturais � em instrumentos legislativos corri-queiros, por isso mesmo estruturais; e outras � feitas para modificar a estrutura institucional perene de nossosistema político � em instrumentos de implementação das políticas particulares de um governo particular, porisso mesmo conjunturais.Palavras-chave: teoria constitucional; processo decisório; sistema de governo.

CLÁUDIO GONÇALVES COUTO

Professor do Departamento de Política da PUC-SP.Autor do livro O desafio de ser governo: o PT na Prefeitura de São Paulo

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O AVESSO DO AVESSO: CONJUNTURA E ESTRUTURA NA RECENTE AGENDA...

existente entre ambos (Held, 1991:146), evitando o abu-so por parte dos últimos � nos termos de Sartori (1994:289-90), reduzindo o risco decorrente da própria separaçãoentre governantes e governados.

Sartori aponta que todo processo decisório envolve (a)custos internos, de tomada das decisões para aqueles quedecidem e (b) riscos externos, para os destinatários dasdecisões. Diferentemente dos custos, mais facilmente de-termináveis ao menos ex post, riscos são indeterminaçõesex ante, �um tipo particular de incerteza, qual seja, umapotencialidade percebida em sua periculosidade. É deperder (não de ganhar) que se fala quando se trata de ris-co�. O desafio da democracia (ou de qualquer sistema dedecisões coletivizadas) é �aumentar a probabilidade de�resultados satisfatórios� e minimizar a probabilidade de�resultados danosos��. São dois os riscos da ação estatal:�principalmente riscos de opressão, mas também (...) ris-cos decorrentes da incompetência, estupidez ou interes-ses sinistros� (Sartori, 1994: 289-90).1

O mais notório mecanismo de redução do risco é a elei-ção. Sujeitos a eleições periódicas, os governantes se ve-riam obrigados a agir minimamente de acordo com a von-tade dos governados � seja ela uma vontade a priori,anterior à eleição, ou a posteriori, forjada no processo go-vernamental2 � e visando às eleições subseqüentes, bus-cando convencer os governados/eleitores da justeza dedecisões não previstas à época da eleição; por ela, gover-nados definem eficazmente seus governantes e, menos efi-cazmente, suas políticas.3

É importante também o acordo constitucional estabe-lecido, definindo não só a relação entre governados e de-terminados governantes (pela eleição), mas igualmenteestruturando a relação entre os cidadãos, destes com seusgovernantes (sejam quais forem eles e as preferências doeleitorado em qualquer conjuntura)4 e dos vários gover-nantes entre si. É a própria constituição � forma geral deorganização da vida política numa sociedade � que defi-nirá como os governados controlam eleitoralmente osgovernantes e como se controlam uns governantes pelosoutros. Em suma, o acordo constitucional estabelece ascondições do exercício do poder, define as obrigaçõesgovernamentais e os recursos para os governantes sedesincumbirem delas. Ao mesmo tempo, estipula o quelhes é vedado: por omissão, não incorporando ao seu rolde atribuições certos assuntos, ou por proibição, interdi-tando ao governo certas questões.

Para os Federalistas, ao definir o que caberia ao go-verno fazer, quais seus poderes, nada que não lhe tivesse

sido explicitamente atribuído poderia ser invocado comoprerrogativa. Dessa forma, as garantias individuais seriamasseguradas pelo fato de que o governo teria um poderlimitado no nascedouro; não teria como usurpar as liber-dades individuais, uma vez que o alcance de seu poderestaria limitado desde a estipulação. Para os Antife-deralistas, os governos tendem a utilizar todo o poderpossível, sendo necessário definir assim quais são os di-reitos e garantias individuais, fixando claramente os limi-tes além dos quais o governo não poderia avançar: tudoque não fosse vedado ao governante lhe seria permitido.Noutras palavras, no primeiro caso os limites são defini-dos positivamente � pelo alcance da delegação; no segun-do, eles são definidos negativamente � pela estipulaçãode restrições ao poder governamental.

Ambas as concepções foram previstas pela Constitui-ção dos Estados Unidos: a dos Federalistas no texto base,aprovado na Convenção de Filadélfia e a dos Antife-deralistas nas dez primeiras emendas, a Bill of Rights.Dificilmente um ordenamento constitucional democráti-co contemplará, exclusivamente, uma só concepção deestruturação do arcabouço estatal. Conflitos que natural-mente permeiam o jogo político da conformação institu-cional dos Estados nacionais são resolvidos por negocia-ção e acomodação dos interesses e dos entendimentosconcretamente existentes em cada caso histórico, de acordocom as regras de elaboração constitucional vigentes. As-sim, a introdução de princípios contrapostos pode ser re-sultado de compromissos que privilegiam a factibilidadepolítica, não a consistência teórica.

Além da relação vertical entre governantes e governa-dos e dos limites existentes entre ambos, na conformaçãode um governo limitado porém eficaz, devem-se estipularas relações horizontais entre diferentes atores governa-mentais. Define-se algo central no ordenamento constitu-cional: a forma pela qual o governo decide. Decorre daí ateoria da separação dos poderes: governo limitado não ésomente o que recebe uma delegação popular limitada,ostensivamente restringida, devendo prestar contas perio-dicamente ao povo; é também um governo cujas diferen-tes partes têm poderes restritos para o desempenho de fun-ções específicas, por si sós insuficientes à ação gover-namental em sua plenitude. Esta apenas se efetiva pelaconjugação das diferentes funções. Pela divisão pura esimples de tarefas entre os atores governamentais anula-se o poder de um ator num dado âmbito, delegando-se asatribuições desse âmbito a outro, se necessário medianteinterdições explícitas. A isso agrega-se um sistema de

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controles recíprocos (checks and balances) entre atoresgovernamentais, partilhando uns de poderes dos outros,requerendo acordos visando concretizar não apenas o pro-cesso governamental em sua plenitude, mas até mesmo aspróprias tarefas específicas de cada ramo de governo. Éprecisa a síntese de Pessanha (1998:246-7) a respeito: �...no caso da separação de poderes, trata-se de uma divisãoem três ramos distintos, cada qual limitado à sua esferaespecífica e sem interferências sobre a função dos demais.Cada ramo deve ser composto por membros diferentes,não sendo permitida a participação em mais de um ramoao mesmo tempo. No caso dos freios e contrapesos, cadaramo tem o poder de exercer um grau de controle diretosobre os outros poderes, pela permissão para exercer umapequena e limitada parte de suas funções�.

A questão do controle recíproco entre os Poderes searticula a outra: a hierarquia decisória. Certas decisões,dado seu peso no processo governamental, exigem maioracordo entre os atores políticos. Exemplo disso é a exi-gência de um trâmite que se dê não apenas no interior deuma ou outra das instâncias estatais, mas que passe porvárias delas; ou ainda, a exigência de quóruns qualifica-dos para a aprovação de determinadas matérias no Parla-mento, requerendo o acordo de grupos que doutra formanão teriam importância para o processo decisório. Quan-to maior a importância potencial de uma decisão e os efei-tos possíveis dela sobre os atores envolvidos, mais com-plexo seu trâmite, requerendo mais negociação e maisdiscussão � inclusive num maior número de instâncias �antes que se conclua a deliberação, gerando enfim umadecisão de governo.

PROCESSO DE GOVERNOE HIERARQUIA DECISÓRIA

Nem todas as decisões estatais têm o mesmo estatuto,seja por sua importância à própria operação do Estado,seja pela maior complexidade do processo formal de to-mada de decisões. O primeiro aspecto refere-se ao alcan-ce das decisões tomadas. Algumas delas acabam por con-dicionar as demais, tanto ao definir as regras segundo asquais outras decisões deverão ser tomadas (Buchanan eTullock, 1999), como ao estipular limites para o conteú-do das próximas decisões. Na medida em que definem quala estrutura do aparato estatal, isto é, como este se consti-tui, são o que poderíamos chamar de decisões constitucio-nais. Conformando as regras básicas de operação do apa-rato estatal, as decisões constitucionais dão forma à

organização política propriamente dita, à politéia � ou,para utilizar o termo inglês, de uso mais corrente, à polity.É a estrutura constitucional do Estado, a polity, que defi-ne as condições do jogo político propriamente dito (apolitics). A constituição compreende o conjunto das re-gras do jogo, mas não define em princípio os resultadosdo jogo, as decisões políticas tomadas (as policies). Estasdecorrem do desfecho de conflitos, negociações e acor-dos, travados entre os participantes dos diversos âmbitosdecisórios da polity.

Para Buchanan e Tullock (1999), são constitucionaisas regras de tomada de decisões. Segundo os autores, elasdefinem a forma pela qual se tomarão as decisões váli-das para uma coletividade. A escolha constitucional é aescolha dessas regras e decorre de um cálculo visando àcombinação de dois objetivos. O primeiro é a redução doscustos esperados das decisões coletivas, para o que re-quer-se o aumento do número dos que devem acatar asdecisões. Quanto maior esse número, maior o acordo ne-cessário e, por conseguinte, menores os custos esperadosde futuras decisões cujo conteúdo se ignora de antemão.Na medida em que o tamanho do grupo necessário à deci-são aumenta, cresce a probabilidade de que se torne cru-cial a concordância de cada indivíduo que possa ser atin-gido por ela. Essa lógica alcança seu limite sob a regra daunanimidade, já que nesse caso cada indivíduo pode ve-tar toda e qualquer decisão que lhe desagrade, reduzindoa zero o custo externo que a mesma possivelmente lheacarretaria. O segundo objetivo é a redução dos custos doprocesso decisório. Quanto maior o número necessário àaprovação de qualquer decisão, maiores os custos do pro-cesso, pois aumenta o poder de barganha de qualquer in-divíduo relativamente aos demais. Quanto menor essenúmero, menor o poder de barganha dos indivíduos con-siderados isoladamente: não havendo a concordância deum, pode-se obter a anuência de outro em seu lugar, tor-nando-se mais fácil (e menos custoso) decidir. À reduçãodo custo da tomada de decisão, todavia, corresponde umincremento do custo esperado da decisão propriamentedita. Como diria Sartori (1994), há um aumento dos ris-cos das virtuais decisões a serem tomadas.

Polity, politics e policies correspondem, portanto, adiferentes níveis da vida estatal. O primeiro, à sua estru-tura; o segundo, ao seu funcionamento; o terceiro, aos seusprodutos. A estrutura diz respeito às regras de relaciona-mento entre os atores e às organizações em que eles atuam� ou às instituições propriamente ditas. O funcionamentotem a ver com a atividade política, que se desenrolaria de

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O AVESSO DO AVESSO: CONJUNTURA E ESTRUTURA NA RECENTE AGENDA...

uma forma ou de outra, fossem quais fossem as institui-ções vigentes, muito embora as condições desse desenro-lar variassem consideravelmente, dependendo do tipo dearranjo constitucional em vigor. Os produtos são aquiloque o Estado gera, seja para se autogerir e manter-se, sejapara responder às demandas sociais existentes � filtradase interpretadas de acordo com as condições em que sedesenrola a politics. A princípio, temos aí uma gradaçãoem termos do que condiciona o quê: as regras institucio-nais condicionam o jogo político, que condiciona o con-teúdo das políticas.

A influência das policies sobre a politics é provávelnum sistema político marcado por elevados graus de com-petitividade e permeabilidade das elites políticas às de-mandas sociais, como o sistema poliárquico. A competi-ção é aberta, quaisquer decisões compatíveis com osprincípios constitucionais são válidas, todos os atorespolíticos podem legitimamente encaminhar as mais varia-das demandas e o que será ou não levado a cabo define-sena própria competição (Dahl, 1997). Improvável é a mo-dificação da polity pela policy. Mudanças nas regras cons-titucionais são, em princípio, decorrência da percepçãopor parte dos atores políticos da existência de condiçõesinstitucionais inadequadas para o desenrolar da politics,e não fruto do descontentamento com o conteúdo das po-licies. Se estas se mostram insatisfatórias para os jogado-res em decorrência de debilidades do arcabouço constitu-cional, isto se dá antes por ele não permitir um processodecisório adequado do que por influências diretas da politysobre as policies. Numa poliarquia, portanto, o arcabou-ço constitucional tende a ser muito mais estável do que ojogo político e do que a produção de políticas, uma vezque apenas define a forma como a politics ocorrerá; esta,por seu turno, é que definirá como se produzirão policies.Num sistema competitivo é mesmo desejável para os ato-res a estabilidade do arcabouço constitucional, pois re-gras estáveis reduzem o grau de incerteza em relação aodesenrolar do jogo, reduzindo assim a incerteza que cer-ca a produção de políticas. A estabilidade das regras écondição de segurança no jogo competitivo, pois permi-te saber que a própria competição será respeitada, não setransformando perdedores em ganhadores ou vice-versa,não privando subitamente de sentido estratégias estabele-cidas, etc.5

Para que a estabilidade das regras constitucionais setorne algo provável, porém, duas condições devem estarpresentes. Primeiro, a generalidade: regras constitucio-nais devem ser genéricas; caso contrário, mais do que

parametrizar processos elas passam a definir resultados.Segundo, a inércia: regras constitucionais devem ser dedifícil alteração; caso contrário, perdem seu caráter cons-titucional, tornando-se objeto de apreciação corriqueira.A obtenção da primeira condição é auto-evidente e se efe-tiva na própria confecção da regra: não se pode descer adetalhes, sob o risco de deixar-se de formular parâmetrosgerais de funcionamento do Estado para criar-se instru-mentos de administração de particularidades. Já a obten-ção da segunda condição apresenta requisitos externos àspróprias regras constitucionais (talvez possamos até mes-mo falar em regras metaconstitucionais neste caso): sãonecessárias exigências severas para que elas sejam modi-ficadas, já que regras difíceis de mudar tendem a ser está-veis, isto é, inertes.

Deve haver, portanto, correspondência entre o estatu-to da norma e a complexidade do trâmite necessário à suatransformação; isso é algo que diz respeito não só às nor-mas constitucionais, mas também a todo o corpo normati-vo do Estado. Quanto mais importante uma medida, maiora complexidade do processo de sua confecção e maior anecessidade de um consenso amplo entre os atores políti-cos participantes das instâncias decisórias para que essamedida seja expedida. Por isso, Buchanan e Tullock (1999)apontam que as decisões sobre regras constitucionais sãoaquelas às quais, mais do que a quaisquer outras, pode-seaplicar a regra da unanimidade.

Idealmente, a maior facilidade para a tomada de deci-sões nos diversos níveis infraconstitucionais se deve aofato de que aquilo que se decide e implementa aí corres-ponde não à polity, mas às policies. Enquanto a polity dizrespeito à estrutura da operação do aparato estatal, a policydiz respeito à sua operação de conjuntura. Podemos ain-da dizer que decisões relativas à polity são decisões decaráter soberano, ao passo de que decisões relativas apolicies são decisões de caráter governamental.

À luz desse pressuposto, quanto mais conjuntural umadecisão (mesmo em suas implicações), mais simples de-vem ser as condições para que seja tomada, de modo queao imediatismo dos problemas que a suscitam correspon-da a celeridade do processo. É bom que fique claro o sig-nificado dado a conjuntura nesta discussão: é definida porcontraposição à noção de estrutura. Não se trata apenasdo curto prazo, mas também do curto alcance: decisõesconjunturais são circunstanciais; sua implementação nãopermite alterar a estrutura do Estado e, quanto menos seaproximam dessa possibilidade, mais conjunturais são.Noutros termos, são mais decisões de governo e menos

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decisões soberanas; trata-se mais de decisões de caráterordinário e menos de caráter constitucional. O Quadro 1resume essas distinções.

QUADRO 1

Natureza das Dimensões Ideais do Processo Político-Democrático

Característica CaracterísticaDimensão Natureza DenominaçãoFormal Substantiva

NormatividadeRegras Gerais Pacto entre os

Constitucionaldo Jogo Político Polity diversos atores Generalidade

(Estrutura) políticos

Embates eRelacionamento

Conflito e/ouCoalizões Políticas

Jogo Político Politics dinâmico entre osCooperaçãoatores políticos

NormatividadeResultados do Vitória/Derrota de

GovernamentalJogo Político Policy diferentes atores Especificidade(Conjuntura) políticos

Decisões no âmbito de um pacto constitucional jamaisdevem ser impostas, mas sempre acordadas entre todosos atores � idealmente de forma unânime. No mundo reala unanimidade é quase sempre impossível, de modo queas constituições procuram obedecer a regras menos exi-gentes para sua formulação e modificação � freqüentemen-te maiorias qualificadas. É no campo das policies que sedá o perde-ganha típico da política democrática, obvia-mente circunscrito em seu alcance pelo que foi definidono pacto constitucional. Por conseguinte, nesse âmbito énatural ocorrerem imposições ao invés de pactos; o papelimpositivo cabe aos grupos ocasionalmente majoritários,dotados do poder de decidir à revelia da vontade das mi-norias. A normatividade constitucional é aqui a garantiade que esse procedimento não se converta em �tirania damaioria�, seja formalmente pela estipulação de regrasdecisórias, que garantam a grupos minoritários maior pesoem certas decisões sobre policies, seja substantivamentepela introdução no texto constitucional de limites paracertas policies, que ficariam assim (como no primeiro caso)resguardadas pelas regras decisórias mais exigentes doprocesso de emendar disposição constitucional.6

Quanto mais se aumentam essas garantias, mais se aguçao consociativismo do sistema, reforçando a necessidadede negociação e elevando a possibilidade do veto a certasiniciativas. Quanto mais se restringem essas garantias, for-mal ou substantivamente, mais se caminha no sentido in-

verso, incrementando-se o majoritarismo do sistema, re-forçando o potencial de decisão. Para Tsebelis (1997), aexcessiva �estabilidade das políticas� pode provocar a crisedo regime, se o conduzir a uma paralisia decisória: a esta-bilidade perigosa aqui é a das policies, não a da polity.Com efeito, a estabilidade da polity é mesmo uma condi-ção favorável à preservação do regime, como já foi apon-tado.

Como policies são decisões de caráter governamentalpropriamente dito, a noção de governabilidade � tantasvezes repudiada como autoritária � faz sentido se enten-dida como capacidade para a produção de policies e nãopara a mudança da polity. Assim, o campo por excelênciada eficácia é o da produção de policies e o campo do con-trole (dos limites) é o da estruturação da polity. É claroque para dizer o que é efetivamente policy ou polity, numadada realidade nacional, é preciso ter em vista a socieda-de de que se trata. Uma questão irrelevante do ponto devista constitucional num caso, pode assumir imensa im-portância noutro. Daí a pertinência da observação deLijphart (1989), de que sistemas consociativos adequam-se a países socialmente heterogêneos, quando o consociati-vismo encontra correspondência nessa heterogeneidade.7

Igualmente, mecanismos que exijam maior consociati-vismo � maior negociação � fazem sentido para decisõesmais próximas do plano constitucional. Maior eficáciadecisória � maior majoritarismo �, por sua vez, é tantomais normal quanto mais as decisões estejam no âmbitoda administração conjuntural dos negócios do governo.8

FIGURA 1

Representação Sintética da Relação entre Controle Democrático

e Hierarquia Decisória

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u d

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gra

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sóri

as

Menor

Maior

Menor

MaiorNORMAS CONSTITUCIONAIS “(POLITY)”

Estrutura Controle (limites)

Pacto Soberania

Normas Paraconstitucionais

(legislação complementar)

NORMAS GOVERNAMENTAIS “(POLICIES)”

Conjuntura Eficácia

Imposição Governo

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O AVESSO DO AVESSO: CONJUNTURA E ESTRUTURA NA RECENTE AGENDA...

Trata-se do tema no plano ideal. O que acaba por serefetivamente transformado em norma constitucional ou emnorma ordinária depende da vontade dos constituintes, edos conflitos que travam entre si. Trata-se de uma esco-lha política, feita nalgum momento histórico, afetando aestruturação do Estado, o desenrolar do jogo político e atomada de decisões de governo e/ou administrativas. Te-mas tipicamente constitucionais podem ser remetidos aoarbítrio dos burocratas ou à vontade oscilante de maio-rias parlamentares ocasionais; inversamente, temas tipi-camente conjunturais � cuja mudança espera-se que cor-respondam à alternância dos partidos e lideranças nogoverno � podem transformar-se em letra constitucional,ganhando perenidade muito maior do que sugeriria seualcance real, limitando a latitude decisória de futuros go-vernantes. No primeiro caso, a conseqüência provável é agrande instabilidade das regras do jogo político; no se-gundo, a maior dificuldade governativa dos eleitos.

FHC: GOVERNO CONSTITUINTE,GOVERNO POR DECRETO

O primeiro mandato de Fernando Henrique Cardosonotabilizou-se pela realização de reformas estruturais doEstado e do capitalismo brasileiro. FHC aprofundou o queiniciara Fernando Collor de Mello, deflagrador da aber-tura comercial e das privatizações, intensificadas porItamar Franco, também responsável pelo Plano Real, bem-sucedida política de estabilização monetária. Cardosoimplantou políticas que já se verificavam noutros países(Whitehead, 1993; Haggard e Kaufman, 1993), inclusiveda América Latina, onde as reformas vinham sendo im-plementadas há tempos e o Brasil não era senão um retar-datário (Almeida, 1996; Sallum e Kugelmas, 1993).

A agenda reformista de FHC contava, no entanto, comuma peculiaridade, comparada à de seus colegas latino-americanos: implementar muitos de seus pontos impor-tantes requeria reformar a Constituição (Couto, 1996;1997; 1998a e b). A Carta aprovada em 1988 constitucio-nalizou questões da ordem econômica, da administraçãopública e do funcionamento previdenciário contrariamenteaos planos do novo presidente e à tendência mundial he-gemônica nessas áreas de políticas. Abrir a economia acapitais forâneos, privatizar setores econômicos impor-tantes, reduzir gastos com funcionalismo público, sobre-tudo com inativos, e mudar o regime previdenciário geralrequeriam, mais do que uma agenda governamental, umaagenda constitucional.

Diante desse obstáculo decisório, Collor iniciou suasreformas liberalizantes cinco anos antes numa área cujasmedidas permitiam decisões por decreto do Executivo: aabertura comercial. As privatizações, impulsionadas emseu governo pela aprovação de uma lei ordinária (Progra-ma Nacional de Desestatização, Lei no 8.031/1990), re-queriam mudanças constitucionais para se aprofundar,devido a monopólios estatais definidos constitucionalmen-te. Isso se evidencia no conteúdo das emendas constitu-cionais apresentadas no Quadro 2, aprovadas no primeirogoverno FHC. Note-se que todas dizem respeito à desre-gulamentação de setores do serviço público, à desestati-zação de monopólios, à abertura do mercado nacional ainvestidores estrangeiros, enfim, temas relacionados a umacerta política econômica � policy, não polity.

Particular atenção merece a Emenda no 8, referente àstelecomunicações. Isso porque foi nesse setor que se ve-rificou o maior volume de recursos oriundos de privatiza-ções realizadas pelo governo federal. A tabela a seguirindica os montantes.

QUADRO 2

Emendas Constitucionais Aprovadas Referentes às Privatizações

Brasil – 1995-96

Emenda no Tema Aprovada/Promulgada em

5 Permite concessão dos serviços estaduais 15 de agosto de 1995

de distribuição de gás canalizado.

6 Elimina distinção entre empresas nacionais 15 de agosto de 1995

e estrangeiras; permite exploração do

subsolo por quaisquer empresas sediadas

no país; proíbe regulamentação por MP

de emendas constitucionais aprovadas

após 1995, que tenham modificado

a redação de artigos.

7 Permite a navegação de cabotagem 15 de agosto de 1995

por embarcações estrangeiras.

8 Permite a concessão a empresas privadas 15 de agosto de 1995

dos serviços de telecomunicações.

9 Fim do monopólio estatal do petróleo. 9 de novembro de 1995

13 Resseguros deixam de ser monopólio 21 de agosto de 1996

estatal, cabe ao Estado a regulação

do setor.

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TABELA 1

Privatizações – Resultados Acumulados

Brasil – 1991-2000

US$ milhões

Programa Receita de Dívidas ResultadoVenda Transferidas Geral

Total 78.497 18.076 96.573

Privatizações Federais 50.763 11.326 62.089

Telecomunicações 26.978 2.125 29.103

PND 23.785 9.201 32.986

Privatizações Estaduais 27.734 6.750 34.484

Fonte: BNDES, out. 2000.

As privatizações e concessões no setor de telecomuni-cações, necessárias à obtenção dessas receitas, apenas setornaram possíveis após a aprovação da Emenda Consti-tucional no 8 e da Lei no 9.472 (Lei Geral de Telecomuni-cações), em julho de 1997, cuja aprovação, por sua vez,não teria sido possível sem a mudança constitucional. Porisso, as privatizações no setor ocorreram apenas a partirde 1998. Importante nisso é que a aprovação de uma le-gislação infraconstitucional para regulamentar o proces-so de privatizações das telecomunicações dependia damodificação prévia de dispositivos constitucionais. Issoporque a policy nessa área foi elevada à condição de letraconstitucional. Vejamos o que dizia o texto constitucio-nal original, modificado pela emenda no 8:

�Art. 21. Compete à União:(...) XI � explorar, diretamente ou mediante concessão

a empresas sob controle acionário estatal, os serviçostelefônicos, telegráficos, de transmissão de dados e de-mais serviços públicos de telecomunicações, asseguradaa prestação de serviços de informações por entidades dedireito privado através da rede pública de telecomuni-cações explorada pela União;

XII � explorar, diretamente ou mediante autorização,concessão ou permissão:

a) os serviços de radiodifusão sonora, de sons e ima-gens e demais serviços de telecomunicações; (...)�

O texto passou a ter a seguinte redação:�Art. 21. Compete à União:(...) XI � explorar, diretamente ou mediante autoriza-

ção, concessão ou permissão, os serviços de telecomuni-cações, nos termos da lei, que disporá sobre a organiza-ção dos serviços, a criação de um órgão regulador e outrosaspectos institucionais;

XII � explorar, diretamente ou mediante autorização,concessão ou permissão:

a) os serviços de radiodifusão sonora e de sons e ima-gens; (...)�

Não apenas deixou de ser imperativo constitucional aexploração exclusivamente estatal dos serviços de tele-comunicações (particularmente de telefonia). Passou tam-bém ao nível infraconstitucional (�nos termos da lei�) aforma de organização dos serviços. Com isso, além deabrir-se caminho constitucional à exploração privada des-ses serviços, desconstitucionalizou-se parcialmente umitem de policy, pois, muito embora a Carta continue a tra-tar de telecomunicações, passou a fazê-lo de forma maisgenérica, de modo que futuros governos e maiorias con-gressuais possam alterar mais facilmente as políticas nosetor, não mais protegidas pelo quórum qualificado de trêsquintos.

O teor de política econômica das reformas constitucio-nais de FHC fica nítido se considerarmos o número deemendas sobre o assunto, aprovadas no período, em com-paração àquelas especificamente relacionadas a questõesinstitucionais � regras do jogo político competitivo � apro-vadas em qualquer tempo (Gráfico 1).

GRÁFICO 1

Emendas Constitucionais, segundo seu Teor

Brasil – 1992-2000

Fonte: Figueiredo e Limogi (1999).

Durante o primeiro mandato de FHC, apenas duas emen-das cujo conteúdo diz respeito à organização da polityforam aprovadas: as de números 15 e 16, referentes res-pectivamente à criação de novos municípios e ao institutoda reeleição para cargos executivos.9 Quase todas as de-mais diziam respeito a questões de ordem econômica (13emendas) e uma tratava de política social, a Emenda no

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14, de 1996, que criou o Fundo de Desenvolvimento daEducação Fundamental. De qualquer forma, todas diziamrespeito antes a policies que a polity. O Quadro 3 traz arelação de todas as emendas constitucionais aprovadas,dividindo-as em blocos segundo seu teor.

QUADRO 3

Blocos de Emendas Constitucionais e Respectivo Teor

Brasil – 1992-2000

Emendas Teor

5, 6, 7, 8, 9 e 13 desregulamentação e desestatização

da economia/efeitos fiscais indiretos

1, 3, 11, 18, 19 e 20 e 25 reforma do Estado/

efeitos fiscais estruturais

1-R, 10, 12, 17, 21 e 27 propósitos fiscais imediatos

2, 4, 2-R, 3-R, 4-R, 5-R, 6-R, 15, 16, caráter eminentemente político

22, 23, 24

14, 26 e 28 sociais/efeitos fiscais indiretos

maiores se comparadas a leis � três quintos dos votos dedeputados e senadores, em duas votações em ambas asCasas, sendo que qualquer modificação introduzida numadelas pelo que foi votado pela outra deve ser ratificadapela Casa que aprovou inicialmente o texto. A importân-cia que tiveram as deliberações constitucionais no Con-gresso brasileiro durante o primeiro mandato de FHC fi-cam evidentes se compararmos duas grandezas. A primeirarefere-se ao número de emendas aprovadas nesse períodocomparativamente ao período anterior (governos Collore Itamar Franco). Após a promulgação da nova Carta (ou-tubro de 1988), as primeiras emendas foram aprovadasem 1992, mas os projetos aprovados não foram de inicia-tiva do Executivo � uma dizia respeito à remuneração deparlamentares no plano subnacional e a outra regulamen-tava o plebiscito sobre sistema de governo, previsto naCarta para ocorrer em 1993. Nesse ano, duas novas emen-das foram aprovadas, uma que contemplava um pacote demodificações constitucionais e outra que definia prazospara a legislação eleitoral. Apenas o conteúdo da primei-ra delas contemplava preocupações do governo � previ-dência do funcionalismo, sistema tributário, IPMF.

As seis emendas aprovadas em 1994 são um caso àparte: todas elas tratam de emendas constitucionais derevisão. A própria Carta previa a realização de uma revi-são cinco anos após sua promulgação, em sessão unicame-ral do Congresso e aprovação das mudanças por maioriaabsoluta, não podendo o Executivo apresentar propostas,embora a emenda que criou o FSE fosse obviamente deseu interesse. As condições distintas de tramitação e o fatode tratar-se de uma revisão já prevista dão caráter muitopeculiar a essas emendas, que não podem ser classifica-das como as demais. Por isso, as seis emendas de 1994devem ser vistas como uma excepcionalidade.11

A segunda grandeza a considerar é o número de vota-ções nominais de caráter constitucional e não-constitucio-nal realizadas na Câmara de Deputados nos dois períodos.Segundo levantamento de Figueiredo e Limongi (1999),foram 166 votações constitucionais nesses quatro anoscontra apenas 11 durante os cinco anos precedentes, e 188votações não-constitucionais contra 101 no período ante-rior. Ou seja, houve mais votações nominais apenas de tipoconstitucional durante o primeiro governo FHC do quevotações nominais de qualquer tipo no período anterior.Embora mesmo o desempenho medido pela quantidade devotações não-constitucionais seja bastante superior no pe-ríodo FHC � 86% das votações a mais e média de 41,5votações nominais por ano, contra apenas 20,2 no período

Em seu primeiro ano de governo, o presidente centroufogo na mudança dos parâmetros da ordem econômica,pavimentando o caminho para as privatizações e a libera-lização econômica. Aprovou cinco das seis emendas in-dicadas no Quadro 2, restando apenas uma, a de no 13,aprovada no ano seguinte. O presidente contava então comcerto fôlego na área fiscal, graças à aprovação, no anoanterior, da Emenda Constitucional de Revisão no 1, quecriou o Fundo Social de Emergência (FSE). Este, ao des-vincular receitas de despesas e transferências definidasconstitucionalmente, deu ao Executivo maior margem demanobra na execução orçamentária. O FSE foi prorroga-do em 1996 por meio da emenda no 10, rebatizado comoFundo de Estabilização Fiscal (FEF). Além disso, o Exe-cutivo obteve nesse ano a aprovação de mais uma emendaconstitucional com propósitos fiscais imediatos, a de no 12,que criou a CPMF (Contribuição Provisória sobre Movi-mentação Financeira), nova denominação do IPMF (Im-posto Provisório sobre Movimentação Financeira), tam-bém criado por meio de emenda constitucional, a de no 3,de 1993.10

A média de emendas constitucionais durante os doisgovernos FHC, até 2000, é de quatro por ano; somente noprimeiro mandato foram aprovadas 16. É um desempe-nho notável, sobretudo considerando-se que as exigênciaspara a aprovação de emendas constitucionais são muito

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anterior �, é a apreciação de temas constitucionais que sedestaca de forma notável � votam-se 15 vezes mais itensde teor constitucional nesse período do que no preceden-te. O Gráfico 2 deixa essa diferença evidente.

de capacidade legislativa mediante a reedição de medi-das provisórias. Passando ao presidente a atribuição dedecidir de forma autônoma sobre parte da produção le-gal, o Congresso viu-se mais à vontade para encaminharos trabalhos referentes às deliberações de caráter consti-tucional. Assim, duas agendas operaram de forma articu-lada: uma, constituinte e ultraconsociativa � a das refor-mas constitucionais. Outra, delegativa e majoritária � adas medidas provisórias reeditadas. Observe-se que a de-legação propriamente dita aplica-se ao caso da reediçãode MPs, não às edições originárias. Editar MPs é prerro-gativa constitucional do Executivo, podendo ocorrer comou sem anuência do Congresso, ou seja, independentemen-te de haver delegação, ou de o Executivo contar com maio-ria parlamentar. Reeditar MPs depende da anuência par-lamentar, tácita ou explícita, pois apenas se reeditam MPsque não tenham sido apreciadas pelo Legislativo. Assim,caso não queira delegar poderes legislativos ao Executi-vo consentindo reedições, basta ao Parlamento apreciaras MPs editadas originariamente.

A delegação mostrou-se útil aos dois poderes não sópor conferir maior eficácia decisória à implementação daagenda de governo levada a cabo por meio das MPs edi-tadas e reeditadas, mas também por transbordar esse ga-nho de eficácia à agenda constitucional, que ganhou maisespaço na pauta de negociações entre os dois poderes. Setoda a legislação implementada e mantida por MPs tives-se de ser também apreciada pelo Congresso, tornar-se-iamais extensa essa pauta e, conseqüentemente, mais custo-sa e de encaminhamento mais vagaroso. Com a delega-ção, a manifestação do Congresso sobre as MPs somentese processaria caso alguma medida indesejada pelos par-lamentares fosse expedida. Nesse caso, um mecanismo de�alarme de incêndio� poderia mostrar-se suficiente paragarantir que a delegação não redundasse numa perda deagenciamento (Amorim e Tafner, 1999; Kiewiet eMcCubbins, 1991).

Havendo delegação, não há usurpação das prerrogati-vas parlamentares pelo Executivo. Trata-se de uma esco-lha feita por aqueles que detêm o controle do Congresso� as maiorias e as mesas diretoras, situacionistas durantetodo o governo de FHC. A mesma coalizão parlamentarque permitiu ao governo mudar a Constituição optou pordelegar-lhe poder legislativo mediante a reedição de MPs.Se, todavia, é razoável expedir novamente uma MP, 30dias após sua primeira edição, caso as razões �urgentes�que a motivaram permaneçam (como entendeu o STF nojulgamento dessa questão), que dizer das MPs sucessiva-

GRÁFICO 2

Votações Nominais Constitucionais e Não-Constitucionais

Brasil – 1990-1999

Fonte: Figueiredo e Limongi (1999).

Essa verdadeira agenda constituinte não deve, entre-tanto, ser vista isoladamente. Ela opera, na verdade, deforma articulada ao restante da produção normativa. Emprimeiro lugar, como já indiquei para as telecomunicações,pelo fato de que parte da produção normativa infraconsti-tucional dependia de mudanças de caráter constitucional.Além da privatização da telefonia, também as políticasfiscais no plano infraconstitucional beneficiaram-se dedecisões constituintes. A aprovação das medidas de efei-to fiscal imediato (FSE/FEF/DRU e IPMF/CPMF) pro-porcionaram ao Executivo maior liberdade no manejoorçamentário, pois ao desvincular receitas proporciona-ram folga orçamentária, permitindo limitar por decretogastos públicos, facilitando a persecução das metas fis-cais fixadas. Assim, a utilização na execução orçamentá-ria de um mecanismo normativo exclusivo do Executivo(o decreto) ganhou maior efetividade com a aprovação demedidas fiscais constitucionais � para as quais requer-senegociar mais, contar com mais apoio parlamentar e su-perar obstáculos institucionais maiores, pois há um maiornúmero de veto players a dificultar o processamento dasdecisões.

O segundo ponto importante para esta discussão é apon-tar que o encaminhamento da agenda constituinte no Con-gresso beneficiou-se da desobstrução da pauta de negocia-ções entre os dois poderes pela delegação ao Executivo

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mente reeditadas, algumas delas por vários anos? Perdesentido a noção de provisoriedade, pois uma medida pro-visória mantida por longo tempo equivale a uma lei vi-gente por esse mesmo período. Uma lei sui generis, apri-morável mediante pequenas alterações sempre queaprouver ao Executivo.

A prática acarreta prejuízos à democracia, por três ra-zões. Primeiro, por retirar da principal arena de debatessobre questões nacionais � o Congresso � a discussão so-bre decisões importantes para o país. Quando o Executi-vo decide sozinho, qualquer questionamento às decisõesé possível apenas após elas começarem a surtir efeitos,desvalorizando os debates que depois venham a ocorrer.Em segundo lugar, porque a persistência dessa prática aolongo de alguns anos pode perpetuá-la, conformando umsistema político com um debate parlamentar débil sobretemas não só relevantes como também urgentes. A tercei-ra razão é a questionável constitucionalidade de parte dasreedições, uma vez entendidas como decorrentes de umadelegação legislativa.

Na Constituição brasileira, apenas a lei delegada é ins-trumento de delegação legislativa. Trata-se de recursoinstitucional parcamente usado: desde janeiro de 1946,foram expedidas apenas 13 leis delegadas, 11 delas sob aConstituição de 1946, antes do regime militar (até 1962).Após 1988, promulgaram-se apenas duas, durante o go-verno Collor. Ironicamente, ambas foram modificadas ouregulamentadas por medidas provisórias. Há, porém, umasérie de limitações ao seu uso, pois não podem ser objetode delegação �os atos de competência exclusiva do Con-gresso Nacional, os de competência privativa da Câmarados Deputados ou do Senado Federal, a matéria reserva-da à lei complementar, nem a legislação sobre a organiza-ção do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carrei-ra e a garantia de seus membros; nacionalidade, cidadania,direitos individuais, políticos e eleitorais; planos pluria-nuais, diretrizes orçamentárias e orçamentos� (art. 68).

Como não há para as MPs limitações quanto ao tematratado, tem sido praxe sua edição e reedição para legis-lar sobre matéria orçamentária. Seu uso para modificar aLei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) é prática correntedesde o governo Itamar Franco. A MP no 1.287, de janei-ro de 1996, que modificava a LDO válida para aquele ano,foi reeditada por três vezes, sem modificações importan-tes até maio, quando finalmente o novo Orçamento foisancionado. Dois dias depois da sanção, a mesma MP, queacabou sendo parâmetro para a confecção do Orçamento(já que modificava a LDO), foi novamente reeditada, dessa

vez introduzindo modificações noutro artigo da lei. Note-se bem: a LDO, feita para �orientar a elaboração da leiorçamentária anual� (art. 165), passou a sofrer modifica-ções mediante medidas provisórias depois da votação esanção do próprio orçamento! A partir de setembro da-quele ano, outro artigo da lei foi modificado por MP e, apartir de outubro, as novas reedições (então MP no 1.525)passaram a incluir modificações da LDO para 1997 � vo-tada pelo Congresso e sancionada pelo presidente apenastrês meses antes �, além de alterações de outros artigosda LDO para 1996. Essa MP continuou a ser reeditada,tendo ultrapassado 60 reedições até ser transformada naLei no 10.210 de março de 2001.

Ora, se não pode o Congresso, por decisão explícita desua maioria, mediante a lei delegada, transferir podereslegislativos ao presidente em matéria orçamentária, po-deria fazê-lo de forma tácita, não apreciando medidas pro-visórias que serão fatalmente reeditadas pelo Executivo?Ainda que as decisões do STF não se reportem à idéia dedelegação legislativa efetivada por meio da reedição deMPs, não é isso o que ocorre? Creio haver uma incongruên-cia político-constitucional na reedição de MPs acerca depolítica orçamentária, mesmo que talvez não se verifiquedo ponto de vista jurídico-constitucional (formal), já queo próprio STF não reconhece na reedição de medidas pro-visórias uma forma de delegação. Se a intenção dos cons-tituintes era não permitir delegação em certos casos, e elade fato ocorre aqui, há claro desrespeito ao espírito daCarta. Segundo Ferreira Filho (1995:264, grifos meus):�Tal poder é condicionado pela ocorrência de relevânciae urgência. Não tem ele limitação explícita quanto à ma-téria. Entretanto, pela lógica, de seu campo hão de serexcluídas as matérias de competência exclusiva do Con-gresso Nacional, ou de suas casas, ou outras submetidas aleis complementares, ou aquelas em que é proibida a de-legação. Em todos esses casos, nitidamente, a Constitui-ção reserva às Câmaras a deliberação. Igualmente esca-pam ao alcance das medidas provisórias as matérias deiniciativa reservada dos tribunais�.

Os prejuízos à democracia brasileira serão mais gra-ves caso a reedição continuada de MPs se converta numpadrão. A Tabela 2 e o Gráfico 3 parecem indicar isso. Areedição de MPs aumenta contínua e avassaladoramente.Pode-se observar que praticamente não há mais medidasprovisórias rejeitadas pelo Congresso desde o governoItamar Franco e também se reduziu muito o volume deMPs convertidas em lei � ou seja, o Parlamento desobri-gou-se da sua tarefa de apreciar esses atos do Executivo.

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TABELA 2

Medidas Provisórias – Edição e Reedição, segundo Governo

Brasil – 1988-2001

Governo Sarney Collor Itamar FHC (I) FHC (II) Total

Originárias 125 87 141 160 79 592

Reeditadas 22 73 364 (1) 2.449 (2) 2.419 5.327

Convertidas 109 66 118 82 85 463

Revogadas 2 5 5 11 5 28

Sem Eficácia 5 5 15 3 1 29

Rejeitadas 9 11 – 1 1 22

Em Tramitação – – – 38 11 49

Editadas 147 160 505 2.609 2.498 5.919

Fonte: Presidência da República. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Atualizado em 18/06/2001.(1) Inclui 699 reedições de medidas originárias de governos anteriores.(2) Inclui 137 reedições de medidas originárias de governos anteriores.

O número de reedições cresce imensamente durante osgovernos FHC. Embora já tivesse superado o número deedições originárias durante o governo Itamar, passa entãoa superá-lo por larguíssima margem. Junto ao crescimentodo número de reedições, vem a redução das medidas apre-ciadas pelo Congresso, proporcionalmente às originárias.No período Sarney, as medidas apreciadas (convertidas ourejeitadas) correspondiam a 94,4% das editadas original-mente; no período Collor, há queda nessa proporção, maso número das apreciadas se mantém elevado (88,5%). Essavariação pode ser explicada parcialmente pelo aumento naproporção das MPs revogadas ou que perderam eficácianesse período (11,5% contra 5,6% no período Sarney �um percentual de aumento exatamente igual ao da dimi-nuição das apreciações). No período Itamar Franco, asapreciações reduzem-se um pouco mais em relação às edi-ções originais � caem para 83,7% � e as revogadas e semeficácia também têm pequena redução � caem para 9,9%.O que realmente aumentou nesse período foram as reedi-ções: saltam de uma relação de 0,176 reedição por ediçãono governo Sarney e de 0,839 no período Collor para 2,58reedições por edição no período Itamar.

Os índices explodem nos governos de FernandoHenrique. Em seu primeiro mandato, as apreciações caempara apenas 51,9%, as revogadas e sem eficácia caem para8,75% e a relação entre reedições e edições origináriassalta para 15,3 por 1, (10,9 por 1, considerando apenasreedições de medidas editadas durante o próprio governoFHC). No segundo mandato, até o momento em que es-crevo, a última relação saltou para 30,6 por 1 (27,03 por1, considerando apenas as MPs editadas pelo próprioFHC). O gráfico a seguir ilustra de forma mais visível osdados da tabela.

CONCLUSÃO

Como vimos, o encaminhamento de uma agenda cons-tituinte é característica importante do período FernandoHenrique Cardoso. Devido às peculiaridades do projetogovernamental desse presidente, essa agenda tornou-seimpositiva, já que a Carta de 1988 constitucionalizou di-versas matérias que podem ser caracterizadas antes comopolicies que como polity. A distinção pode ser feita clara-mente se considerarmos dois critérios: primeiro, polity dizrespeito a regras fundamentais do jogo político, à estrutu-ração do Estado, e não ao conteúdo de decisões que ogoverno gera corriqueiramente; segundo, são policies to-das as decisões cuja transformação é passível de mudan-ça, dependendo do grupo político que vier a tornar-semajoritário como fruto das disputas democráticas. Nou-tras palavras, é policy o que puder ser classificado comoplano de governo e cuja implementação não colocar emrisco a preservação da polity.

O presidente FHC foi bem-sucedido no encaminhamen-to dessa agenda. Aprovou todas as iniciativas relaciona-das à reforma da ordem econômica, abrindo caminho àprivatização; obteve do Congresso cinco emendas consti-tucionais que lhe permitiram alívio fiscal (fora a emendado FSE, herdada da revisão constitucional de 1994); ob-teve vitórias na reforma do Estado, aprovando cinco emen-das, duas delas particularmente importantes � reformas

GRÁFICO 3

Medidas Provisórias – Situação em Vários Governos

Brasil – 1998-2000

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Fonte: Presidência da República. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Atualizado em 18/06/2001.

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O AVESSO DO AVESSO: CONJUNTURA E ESTRUTURA NA RECENTE AGENDA...

administrativa e da previdência � apesar das queixas deque ficaram aquém do pretendido; isso sem falar na im-portantíssima emenda da reeleição, que garantiu aFernando Henrique um segundo mandato e, assim, maisfôlego e tempo para dar continuidade à sua agenda refor-mista e de estabilização.

As emendas referentes à ordem econômica tornaram otexto constitucional mais genérico, remetendo à legisla-ção � à normatividade infraconstitucional, portanto � muitodo que podemos classificar como policies. Basicamente,retiraram do texto itens que tornavam obrigatória umapolítica econômica nacionalista e estatista. Futuros gover-nos poderão atuar mais facilmente nessas áreas, desde queobtenham maiorias parlamentares que não mais precisa-rão ser de três quintos. As emendas geradoras de ganhosfiscais de curto prazo são todas provisórias, alterando porpouco tempo (ainda que o tenham feito reiteradamente nosúltimos anos) a distribuição de recursos públicos. Porquebrarem vinculações constitucionais de receitas a trans-ferências para governos subnacionais e gastos na áreasocial, exigiam a modificação da Carta.

As emendas da reforma do Estado modificaram poli-cies contidas na Carta, mas de uma forma distinta das quetrataram da ordem econômica. Mais que remeter regula-mentações ao plano infraconstitucional, mantiveram-sedetalhistas. A emenda da reforma administrativa, porexemplo, chega a especificar o cálculo da indenização defuncionários demitidos. Dessa forma, para atuar nessasáreas, e implementar policies que contrariem o texto cons-titucional reformado, futuros governos terão de reunirnovamente quórum qualificado no Congresso. O fato detransformações referentes à previdência e à administra-ção pública terem sido menores que as pretendidas peloExecutivo significa, na verdade, que se manteve muito doque os constituintes de 1987-1988 haviam criado. Assim,mais do que o governo FHC e sua base parlamentar, sãoaqueles constituintes que estão ainda a limitar o raio deação de futuros governos e, portanto, de futuras maioriassaídas das urnas.

Limitar os governos é uma das funções de textos cons-titucionais. Criam-se restrições e comprometimentos paraevitar que maiorias eventuais ou governantes audazes res-trinjam liberdades cidadãs, espezinhem direitos, oprimamminorias. Mas cabe questionar, diante do caso brasileiro,se essas restrições prévias devem valer indistintamente parapolicies e polity. Restringir estruturalmente vontades ma-joritárias ocasionais, conjunturais, é limitar a capacidadede efetivação da vontade do demos. Que a limitação se dê

tendo em vista a preservação da polity poliárquica é umacondição da continuidade do próprio jogo em que o de-mos influi nas decisões de governo, viabilizando uma exi-gência democrática: a de que minorias possam tornar-semaiorias, ciclicamente. Mas se decisões de governo, poli-cies, são elas próprias congeladas por eventuais maiorias(mesmo que dilatadas), estaríamos novamente restringin-do liberdade, tornando estrutural o que, por natureza, de-veria ser conjuntural numa democracia. É decisão demo-crática atar futuros governos a uma agenda constituinte?

A mesma maioria que permitiu ao governo FernandoHenrique mudar o texto constitucional delegou-lhe pode-res legislativos mediante a anuência à reedição de MPs.Por isso mesmo, o padrão delegativo aqui descrito, maisque um momento da politics, é política de governo, policy,e a responsabilidade por ela cabe aos governantes de plan-tão � sejam membros do Legislativo ou do Executivo. Aopção por essa política gera grande incerteza jurídica, poisboa parte das leis em vigor são, na verdade, medidas pro-visórias, revogáveis e modificáveis a qualquer tempo, re-querendo renovação mensal. Torna-se difícil prever comrazoável acerto o modo como o país será governado nocurto e médio prazos, prejudicando não só a democracia,mas também o desenvolvimento econômico, por gerar algoque o mercado repudia: incerteza quanto às regras do jogo.Algo que deveria ser estrutural � o arcabouço legal � os-cila ao sabor das conjunturas.12

NOTAS

E-mail do autor: [email protected]. Em sua discussão, Sartori lança mão de uma versão modificada dodebate acerca dos custos da tomada de decisão e dos custos externosda decisão feita por Buchanan e Tullock (1999 [1962]).2. Para discussão sobre este ponto, ver a introdução e os capítulos daprimeira parte do livro organizado por Przeworski, Stokes e Manin(1999).3. Como aponta Schumpeter (1984:355), os eleitores escolhem aque-les que irão governá-los, não as políticas que irão implementar: �De-mocracia significa apenas que o povo tem a oportunidade de aceitarou recusar as pessoas designadas para governá-lo�. Embora seja pos-sível ao eleitor estipular inequivocamente quem agirá em seu nome, épossível que o escolhido não aja da maneira prevista, podendo ser �traí-da� a delegação eleitoral (perda de agenciamento).4. Afinal, é possível que as preferências eleitorais majoritárias numdado momento contrariem princípios constitucionais. Estes, então,funcionam como salvaguardas de caráter permanente, não importandoquais vontades prevaleçam ocasionalmente.5. Isto talvez ajude a compreender a importância que podem ter re-gras de transição em processos de modificação constitucional ou denormas paraconstitucionais. O caráter paulatino de certas mudançasda polity pode ser coerente com a própria idéia de polity. Assim, nãoapenas não se modifica a polity fácil e freqüentemente, mas também,

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quando esta é modificada, os atores políticos devem ter tempo para sepreparar para a modificação.6. Certas garantias fundamentais, como o direito de propriedade, po-dem ser incluídas neste caso. Apesar de esse direito poder ser enqua-drado na condição de uma política substantiva, mais do que uma regrado jogo, sua importância numa sociedade capitalista é de tal montaque se torna imperativo protegê-lo � impondo limites a decisões go-vernamentais que venham a afetá-lo �, caso não se queira pôr em riscoa própria continuidade do jogo democrático. O que se nota aqui é aimportância do alcance das decisões numa democracia, fator notadopor Schumpeter (1984:363-4) como condição para a própria sobrevi-vência do regime democrático.7. A exigência de quóruns parlamentares qualificados para a aprova-ção de normas que digam respeito a questões lingüísticas por exem-plo, pode ser despropositada num país uniforme sob esse aspecto, masfará sentido num país multilingüístico e no qual essa dimensão da vidasocial seja politicamente relevante.8. A distinção entre lei e norma constitucional insere-se neste quadro.A segunda é superior à primeira, tanto que o ramo do poder responsá-vel pela formulação legislativa não se deveria incumbir também danormatização constitucional, já que esta parametriza o próprio legis-lar. São, contudo, normalmente previstas condições para a modifica-ção dessa normatividade pelo legislador, contudo em caráter excepcio-nal, sendo os trâmites muito mais exigentes que os do processolegislativo ordinário. Ackerman (1988:163), com base nos Federalistas,estabelece uma distinção entre política normal e política constitucio-nal. Nesta segunda se daria de forma efetiva a relação de representa-ção entre o cidadão e aquele que toma as decisões. Diz ele: �Embora apolítica constitucional seja o gênero mais elevado de política, ela ape-nas deve dominar a vida da nação durante raros períodos de elevadaconsciência política. Durante os longos períodos que entremeiam es-tes momentos constitucionais, uma segunda forma de atividade � quechamarei de política normal � prevalece. Aqui, as facções tentam ma-nipular as formas constitucionais da vida política para perseguir ape-nas os seus próprios e estreitos interesses. A política normal precisaser tolerada em nome da liberdade individual; ela é, contudo, demo-craticamente inferior à intermitente e irregular política da virtude pú-blica, associada aos momentos de criação constitucional�.9. É importante chamar a atenção para o fato de que mesmo a emendareferente à criação de municípios tinha implicações econômicas, nocaso, fiscais, já que a multiplicação de municipalidades tinha comoconseqüência uma distribuição menos eficiente dos recursos do Fun-do de Participação dos Municípios.10. Esta é uma emenda constitucional de difícil classificação, pois setratava de um pacote de mudanças constitucionais de diversos tipos.Como preponderavam questões relacionadas a mudanças do desenhodo Estado em termos de sua organização administrativa, optei porclassificá-la no Quadro 3 e no Gráfico 1, dentro do bloco de emendasrelacionadas à reforma do Estado.11. Para uma excelente discussão acerca do processo de revisão cons-titucional, ver o trabalho de Melo (1996).12. No momento em que concluo a redação deste artigo, a Câmara deDeputados acaba de aprovar um projeto de emenda constitucional quelimita a possibilidade de reedição de MPs, além de restringir tambémo leque de temas passíveis de normatização por esse instrumento. Oprojeto ainda deverá seguir para o Senado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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presente trabalho trata da separação de poderes nadinâmica política brasileira, sob a ConstituiçãoFederal de 1988. Atendo-se fundamentalmente à

gurada em 1988 coroa uma tradição de quase dois séculoscom a separação de poderes do Estado como princípio cons-titucional. Acrescente-se, porém, que no último processoconstituinte atribuiu-se ao princípio a condição de �cláusu-la pétrea�, isto é, não passível de ser abolido através deemenda à Constituição, como forma de configurar seu ca-ráter de imprescindibilidade para a efetivação do EstadoDemocrático de Direito (Moraes Filho, 2000).

De fato, desde a Constituição de 1824, que normatizoua separação de poderes sob a influência da teoria de Constant(1989), adotando um modelo quatripartido � Poderes Mo-derador, Legislativo (respectivamente Real e Representa-tivo, na terminologia de Constant), Executivo e Judiciário �, oprincípio da separação de poderes tem sido uma daspilastras do Constitucionalismo nacional. Mas se as Cons-tituições brasileiras, inclusive as de 1967 e 1969 (para nãolembrar a Carta de 1937) entronizaram o princípio, renden-do assim, no geral, seu tributo ao sistematizador da lei maisabrangente do poder � quem o detém tende a dele abusar(Montesquieu, 1979) �, a desordem constitucional pós-64o desfigurou, proclamando-o muito mais como uma espé-cie de homenagem do vício à virtude do que como pedraangular do edifício constitucional, tal a concentração depoderes armazenados no Executivo e o amesquinhamentodo Legislativo e do Judiciário.

Assim, a reafirmação do princípio da separação de po-deres pela Constituição de 1988 possui também o sentido

configuração do Executivo e do Legislativo e ao processopolítico que se desenrola no País, estrutura-se através dosseguintes itens: separação de poderes � princípio constitu-cional e práxis política; presidencialismo ou parlamenta-rismo?; o presidencialismo e o conflito Executivo versusLegislativo; presidencialismo de coalizão; processo deci-sório e relações Executivo x Legislativo; medidas provisó-rias e Poderes Executivo e Legislativo; considerações fi-nais.

SEPARAÇÃO DE PODERES: PRINCÍPIOCONSTITUCIONAL E PRÁXIS POLÍTICA

O reafirmar da separação de poderes como princípio es-truturante da ordem político-constitucional brasileira inau-

Resumo: O artigo descreve o estatuto dos poderes Executivo e Legislativo na Constituição do Brasil de 1988e, considerando o processo político no País, analisa a dinâmica dos dois poderes.Palavras-chave: separação de poderes; Executivo-Legislativo; democracia.

FILOMENO MORAES

Professor de Mestrado em Direito Constitucional da Universidade de Fortaleza e de Mestrado em Políticas Públicase Sociedade da Universidade Estadual do Ceará

O presidencialismo, o princípio da proporcionalidadee a Federação são instituições típicas da vida política brasileira

contemporânea. Ademais, são traços constitutivos doideário e da prática democrática saudável pelo mundo afora;

no Brasil e no resto do mundo, são igualmente passíveisde aperfeiçoamento; de permanente aperfeiçoamento.

Olavo Brasil de Lima Jr.

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de operação restauradora, para afastar a desfiguração le-vada a efeito pelo processo autoritário mais recente. Cum-pre lembrar, porém, que a idéia de que nem a constituiçãonem a lei são capazes de, por si sós, modificar a naturezadas coisas ou das instituições não é incompatível com afilosofia subjacente ao Do Espírito das Leis. O mesmo jáhavia sido intuído pelo teórico pioneiro do Estado mo-derno, quando, n�O Príncipe, observou que �(...) há ta-manha distinção entre como se vive e como se deveriaviver, que aquele que trocar o que se faz por aquilo que sedeveria fazer aprende antes sua ruína do que sua preser-vação� (Maquiavel, 1996:73).

Por conseguinte, a compreensão do princípio da sepa-ração de poderes não pode limitar-se à sua configuraçãonormativo-constitucional, fazendo-se necessária a integra-ção dessa configuração com o processo político efetivo.

PRESIDENCIALISMO OU PARLAMENTARISMO?

O conflito entre o Executivo e o Legislativo tem sidohistoricamente crítico para a estabilidade democrática noBrasil, constituindo traço do processo político em boamedida considerado tanto pelos que preferem o presiden-cialismo quanto pelos que são favoráveis ao parlamenta-rismo.

Didaticamente, pode-se dizer que, a rigor, duas caracte-rísticas se destacam nos sistemas presidencialistas: o presi-dente reclama total legitimidade democrática; o presidenteé eleito para um período de tempo, que, sob circunstânciasnormais, não pode ser modificado, encurtado ou (em virtu-de de dispositivos constitucionais vigentes nos países queproíbem a reeleição) prolongado. Por sua vez, pode-se afir-mar que, no parlamentarismo, o governo deriva sua autori-dade da confiança do Parlamento, seja das maiorias parla-mentares seja da tolerância parlamentar em relação aosgovernos minoritários. A diferença básica em relação aopresidencialismo dá-se pelo fato de que, no último sistema,o povo elege de modo direto e por período determinado ochefe do Executivo, a quem são outorgados, pela Consti-tuição, poderes para decidir a composição do ministério epara exercer o controle da administração. O Chefe do Exe-cutivo é o chefe simbólico do Estado; dentro do períodopara que foi eleito, só pode ser afastado pelo remédioexcepcionalíssimo do impeachment.

A consciência da problemática do sistema de governotem dirigido o esforço para a busca de alternativas para essetraço do dilema institucional. Assim, setores das elitespolíticas pretendem, com a adoção do parlamentarismo, di-

minuir os riscos da ingovernabilidade e da instabilidadeinstitucional. Na sua avaliação, o parlamentarismo fariadefinhar os elementos de ineficiência e incerteza do siste-ma político, extirpando características imperiais vislum-bradas no presidencialismo.

No debate, tanto durante o Congresso Constituinte(1987-1988), quanto durante a campanha que antecedeu oplebiscito, previsto no Ato das Disposições Constitucio-nais Transitórias, realizado em 21 de abril de 1993, vis-lumbrou-se, em linhas gerais, a seguinte taxinomia dos par-lamentaristas brasileiros: os parlamentaristas purospreferiam um sistema no qual o Chefe de Estado fosse eleitoindiretamente, talvez segundo o modelo da Alemanha Oci-dental; os parlamentaristas mitigados aceitavam a figurade um ministro-coordenador ou um gabinete com forte in-fluência presidencial (o modelo finlandês), mas não umprimeiro-ministro que dependesse verdadeiramente da con-fiança parlamentar; finalmente, havia os adeptos do parla-mentarismo dual, a saber, aqueles que aceitavam um siste-ma semelhante ao francês, contanto que o mecanismo deescolha do primeiro-ministro e sua atuação fossem maisclaramente parlamentaristas do que o previsto na Consti-tuição da França (Lamounier, 1991; Moraes Filho, 1993).

É razoável afirmar que no Brasil, de modo geral, acen-tuou-se a tendência à aceitação do modelo de influênciapredominantemente francesa, ou seja, um sistema de gover-no intermediário entre o presidencialismo e o parlamen-tarismo, o qual tem recebido uma série de denominações:sistema semipresidencialista, sistema semiparlamentaris-ta, sistema de Executivo bipolar ou de Executivo dividi-do, república presidencialista-parlamentarista, repúblicaquase-presidencialista ou república quase-parlamentaris-ta. Variações de um sistema que tem funcionado de ma-neiras diversas, se caracterizam fundamentalmente por terum presidente, indireta ou diretamente eleito, e tambémum primeiro-ministro, que depende da confiança do Par-lamento. Nele o presidente tem, potencial ou realmente,poder para interferir nas políticas públicas e no processodecisório.

Por oportuno, em relação ao �modelo francês�, lembre-mos a condenação radical proferida por Bonavides (1992)e a advertência de Linz (1991-1995), a saber: �O sistemade Executivo bipolar pode funcionar realmente bem, e já ofez (ainda como diz Suleiman, com consideráveis tensões edisfunções), quando a maioria eleitoral que apóia o presi-dente também elege a maioria para o Parlamento, e quandoo presidente tem uma considerável autoridade dentro do seupartido e este partido é forte no legislativo�, mas �a incom-

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patibilidade entre um presidente com poderes considerá-veis e a maioria parlamentar pode levar a um sério impas-se, gerando uma crise no sistema político�.

O PRESIDENCIALISMO E O CONFLITOEXECUTIVO VERSUS LEGISLATIVO

No presidencialismo, dois procedimentos distintos res-pondem pela composição do Executivo e do Legislativo.Enquanto o Executivo é constituído, pela própria naturezadas coisas, com base no voto de toda a nação, o Legislativoé formado por representantes de parcialidades. Na litera-tura brasileira, há inclusive uma interpretação prestigiosaque vislumbrou, como causa do conflito político que le-vou a República Populista à crise, a origem distinta dasbases de legitimidade do Poder Executivo e do PoderLegislativo, a saber: o voto urbano e o voto de caracterís-ticas predominantemente rurais (Furtado, 1967).

A rigor, nos Estados contemporâneos, e essa não é ca-racterística isolada do Brasil, pode-se dizer que o Executi-vo conseguiu mais representatividade do que o Legislativo.Aqui mais ainda, por conta do presidencialismo, pois, quan-do é o eleitorado que escolhe diretamente o governante,neste fundem-se as expectativas e as esperanças popula-res, num grau que jamais a eleição de um deputado poderáigualar (Ferreira Filho, 1995).

Mas, conforme diagnosticam Lamounier e Nohlen(1993:50-51), à hipertrofia do Executivo corresponde, emcontrapartida, uma fragilidade. Veja-se: �(...) chegamos,nesse período de sessenta anos, desde a Revolução de 1930,ao que chamaria de equilíbrio de duas fragilidades. Deum lado, o Poder Executivo, cujo titular sofre erosão ver-tiginosa em seu capital político e freqüentemente não dis-põe de meios legítimos para refazê-lo, uma vez erodida abase eleitoral originária; do outro lado, o Congresso, cujacomposição reflete o alto grau de fragmentação e o caráterconsociativo do sistema político na sua vertente eleitoral,partidária e federativa. Ou seja, um sistema político quetenderá, com altíssima probabilidade, a produzir governos,em acentuada minoria, contrapontos a essa fragmentaçãodo Poder Legislativo�.

As duas fragilidades seriam agravadas em decorrênciada seguinte situação: em primeiro lugar, porque os formu-ladores de políticas do Executivo � portadores do viés tec-nocrático � não conhecem, normalmente, as instituições eos processos que caracterizam a política; em segundo, por-que os membros do Legislativo não se sentem responsá-veis pela formulação da política nacional e dedicam-se pri-

mordialmente à representação de interesses regionais,corporativos ou clientelísticos.

Embora parte da literatura mais recente argumente nadireção contrária (v. g., Abrucio, 1998) ao que foi acentu-ado por Lamounier e Nohlen, para alguns, no Brasil de hoje,o fantasma do presidencialismo imperial está cada vez maispresente. Uma observadora da cena política nacional aduz:�Nunca vi na história brasileira, em períodos que não sãoconsiderados ditaduras, uma tal concentração de poderes.O presidente concentra poderes do Legislativo, do Execu-tivo e do Judiciário. Quando pressiona o Judiciário, quan-do impede ações diretas de inconstitucionalidade. Ele exer-cita o poder por meio de milhares de medidas provisórias.Isso caracteriza o presidencialismo imperial. (...)�(Benevides, 1998:12).

Evidentemente, mesmo que se torne relativa a tese dopresidencialismo imperial, não se pode deixar de observaros reforços que a introdução do mecanismo da reeleiçãoocasiona no que concerne às características do presidencia-lismo brasileiro. Não se pode desprezar que a reeleição,com os incentivos que acarreta para a personalização dopoder, pode tornar mais problemática a consolidação dademocracia política no País, sobretudo por conta dos me-canismos de enfraquecimento partidário que acarreta(Mainwaring, 1995; Moraes Filho, 1998 e 1999).

Ora, se o Legislativo tem poderes para vetar medidaspropostas pelo Executivo, e o Executivo nada pode contrao Legislativo, tende-se a desenhar situação geradora deconfrontos, com probabilidades de impasses e, por conse-qüência, ingovernabilidade. A crise da República Populis-ta, com o desenlace manu militari em 1964, foi em boamedida uma crise de paralisia decisória (Santos, 1982),oriunda da incapacidade do Executivo � frente a umLegislativo hostil � de tomar decisões políticas adequadasem relação à crescente crise do Estado. No momento, to-davia, como se discutirá a seguir, o processo político na-cional não toma a direção da paralisação decisória nem daingovernabilidade.

PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO

O Congresso Constituinte rejeitou o parlamentarismo,mantendo a tradição republicana presidencialista, interrom-pida apenas no período 1961-1963. Por sua vez, o plebis-cito, que trouxe ao debate público brasileiro um extenso evariado leque de temas político-institucionais (Sadek,1995), também resultou na manutenção do presidencialis-mo, reforçado, através da Emenda Constitucional no 16, de

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1997, com a inserção no sistema político da possibilidadede reeleição do presidente da República.

Na verdade, sob a nova ordem constitucional, desenvol-veu-se um padrão de governança que a literatura denomi-na �presidencialismo de coalizão� (Abranches, 1988 e 2001;Figueiredo e Limongi, 1999; Santos, 2001), cujo principaleixo de impacto está na relação entre os Poderes Executi-vo e Legislativo. E, como afirma Abranches (2001): �Porser presidencialismo, esse regime de governança reserva àpresidência um papel crítico e central, no equilíbrio, ges-tão e estabilização da coalizão. O presidente precisa culti-var o apoio popular � o que requer a eficácia de suas polí-ticas, sobretudo as econômicas � para usar a popularidadecomo pressão sobre sua coalizão; ter uma agenda perma-nentemente cheia, para mobilizar atenção da maioria par-lamentar e evitar sua dispersão; ter uma atitude proativana coordenação política dessa maioria, para dar-lhe dire-ção e comando�.

A Constituição Federal dotou o Presidente da Repúbli-ca de possibilidades muito grandes de influência na legis-lação, de muitos mecanismos de intervenção no processolegislativo. Na verdade, os poderes de agenda do Presidenteda República vão desde a capacidade para editar medidasprovisórias com força de lei, o que permite ao presidenteimplementar sua agenda, sobretudo de natureza econômi-ca e administrativa, superando possíveis obstáculoscongressuais. Por outro lado, a constante utilização dasmedidas e a necessidade de reeditá-las periodicamente paramanter sua continuidade normativa acabam por congestio-nar a pauta dos trabalhos legislativos, contraindo o tempodestinado ao exame de outras matérias, possivelmente deorigem no próprio Legislativo (Santos, 2000).

Ademais, o presidente da República tem a seu disporampla iniciativa das leis complementares e ordinárias. Epossui a iniciativa privativa da legislação, entre outras ma-térias, sobre o plano plurianual, as diretrizes orçamentáriase os orçamentos anuais, além da iniciativa das leis que fi-xem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas, dispo-nham sobre a criação de cargos, funções ou empregos ouaumento de sua remuneração, dos servidores públicos daUnião, criação, estruturação e atribuições dos Ministérios eórgãos da administração pública. Também não se admite aosparlamentares o aumento de despesas nos projetos de inicia-ção exclusiva do Presidente da República.

Esse amplo monopólio permite ao agente que iniciamanipular estrategicamente a distribuição de preferênciasdo agente que aprecia, pois, se o agenda setter conhece aspreferências do Legislativo, simbolizado pela figura do le-

gislador mediano, é possível àquele calibrar o envio da pro-posta de forma a maximizar a própria utilidade, bastandopara isso que o projeto se encontre no interior da curva depreferência da maioria congressual (Santos, 1997).

Por sua vez, o Presidente da República tem a prerroga-tiva de solicitar urgência nos projetos de lei de sua inicia-tiva, o que permite abreviar os prazos de tramitação de suaagenda e retira dos órgãos diretivos e comissões legislativasa possibilidade de engavetamento de proposições que con-trariem os interesses do primeiro.

Em que pesem essas prerrogativas do Poder Executi-vo, é evidente que, em contrapartida, mesmo executivosdotados de fortes poderes legislativos não podem gover-nar contra a vontade da maioria parlamentar, pois propo-sições legislativas só são aprovadas se obtiverem apoiodas maiorias.

PROCESSO DECISÓRIO E RELAÇÕESEXECUTIVO X LEGISLATIVO

A análise sistemática da dinâmica institucional brasi-leira, sob a Constituição de 1988, e tendo por foco o pro-cesso decisório no Congresso Nacional, encontrou na for-mulação das políticas públicas fonte alternativa deexplicação a respeito da interação Executivo-Legislativo.E, contra as manifestações resenhadas anteriormente, emrelação à hipertrofia cum fragilidade do presidencialismobrasileiro, encontram-se evidências teóricas, empíricas eanalíticas que, detalhando a operação dos mecanismos ins-titucionais, denotam razoável grau de apoio obtido peloPresidente da República, sob a ordem constitucional inau-gurada em 1988, de modo a afastar o fantasma da paralisiadecisória e da ingovernabilidade.

Na verdade, o estado da arte da Ciência Política brasi-leira permite hoje maior conhecimento do sistema político.Antes, a ausência de pesquisas sistemáticas, mormente so-bre os Poderes Executivo e Legislativo, e o seu relaciona-mento, ocasionou a proliferação de juízos negativos e pre-dições catastróficas sobre o comportamento parlamentar epartidário e o papel do Congresso no sistema decisório na-cional, juízos e predições diretamente deduzidos danormatividade referente ao sistema de governo, eleitoral epartidário vigente (Figueiredo e Limongi, 1999).

Mas as novas pesquisas � principalmente as que, reti-rando do sistema de governo e da legislação eleitoral e par-tidária o foco de análise sobre as relações Executivo-Legislativo, o redirecionam para a estrutura do próprioprocesso decisório e do seu impacto no comportamento

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parlamentar e no desempenho governamental � chegam aresultados que questionam muito do que se afirma sobreo sistema político nacional. Sobretudo põem por terrajuízos que, sem a devida base empírica, orientam partedas elites políticas a sustentar um conjunto de propostasde reforma institucional capaz de promover verdadeirasubversão pelo alto (Santos, 1994; Tavares, 1998).

A observação das regras de organização interna doCongresso Nacional e a extensão dos poderes legislati-vos do Presidente da República permitem, por conse-guinte, que se tirem conclusões mais pertinentes sobreo funcionamento do sistema político brasileiro e que sedê uma explicação abrangente para o sucesso do Exe-cutivo na aprovação de sua agenda legislativa, o com-portamento disciplinado dos parlamentares e o apoiopartidário obtido pelos diferentes governos brasileirossob a vigência da Constituição de 1988.

A análise da recente experiência presidencialista noBrasil revela que o Congresso não é uma instância de vetoà agenda do Executivo. Aliás, conforme já chamaram aatenção Shugart e Carey (1992), não é verdade que, sobpresidencialismos (considere-se a relevância das variaçõesinstitucionais do sistema presidencial de governo) todo equalquer parlamentar utiliza apenas a estratégia de agirirresponsavelmente e não cooperar com o Executivo. Este� dependendo do arranjo político-constitucional � podedispor de recursos que induzam os parlamentares a coope-rar com o governo e a sustentá-lo. O controle exercido peloExecutivo sobre a iniciativa legislativa cria incentivos paraque os parlamentares se juntem ao governo apoiando suaagenda.

No Brasil pós-88, observa-se que a disciplina partidá-ria germina no seio do próprio Congresso. Mesmo admi-tindo que a legislação eleitoral leve os parlamentares acultivar uma atitude individualista, deve-se ressaltar queas políticas de cunho distributivista garantidoras desse tipode conexão eleitoral dependem do acesso à arena decisó-ria. Assim, o controle centralizado sobre a agenda legisla-tiva impede que as estratégias do �voto pessoal� sejamdominantes. O controle da agenda exercido pelos líderespartidários e pelo Executivo reduz a chance de sucesso dasiniciativas individuais dos deputados, dado que os líderessão capazes de reduzir suas oportunidades.

Decerto, as normas que regulam a distribuição dos re-cursos parlamentares dão origem a um padrão altamentecentralizado de organização do Congresso, que se harmo-niza com o papel preponderante do Executivo, tendo os par-tidos políticos a estruturar esse padrão centralizado, por

força regimental. E esse estado de coisas acarreta proble-mas que a ordem democrática tem de superar.

Há, todavia, elementos empíricos suficientes para ne-gar o diagnóstico, dominante na literatura, segundo o qualo Brasil atravessa, ou vive na iminência de atravessar, umacrise de governabilidade decorrente do conflito entre umExecutivo institucionalmente frágil e um Legislativo for-talecido pela Constituição de 1988, mas incapaz de agirem virtude da ausência da necessária estrutura partidária.O estudo sistemático do comportamento dos partidos polí-ticos no Congresso robustece o argumento de que os mes-mos desempenham importante papel no Legislativo.

A disciplina partidária verificada nas votações nominais(Figueiredo e Limongi, 1999) do Congresso Nacional refu-ta a tese segundo a qual a forma de governo e as leis eleito-rais e partidárias são os únicos determinantes do comporta-mento parlamentar. Observe-se que o Executivo � de ondese origina a maioria das leis promulgadas no País � rara-mente tem suas proposições legislativas rejeitadas peloCongresso, evidenciando que não existem dificuldades nemrestrições intransponíveis à capacidade do Executivo parater suas proposições transformadas em lei.

O Executivo brasileiro organiza o apoio à sua agendalegislativa em bases partidárias, em moldes muito simila-res àqueles encontrados em regimes parlamentaristas. OPresidente da República distribui as pastas ministeriais como objetivo de obter o apoio da maioria dos legisladores;partidos que recebem pastas são membros do governo edevem comportar-se como tal no Congresso, votando a favordas iniciativas patrocinadas pelo Executivo.

A literatura tende a descartar a possibilidade de quecoalizões partidárias em apoio ao Executivo se formem efuncionem a contento sob o presidencialismo. No Brasilpós-Constituinte, os presidentes organizam ministérios embases partidárias, e as coalizões assim construídas tendema funcionar no Congresso (Meneguello, 1998; Figueiredoe Limongi, 1999).

MEDIDAS PROVISÓRIAS E PODERESEXECUTIVO E LEGISLATIVO

Certamente, o mais poderoso instrumento de que dis-põe o Poder Executivo para afirmar sua agenda política estáestabelecido pelo art. 62 da Constituição Federal de 1988,que lhe garante a faculdade de editar, em casos de relevân-cia e urgência, medidas provisórias com força de lei, portrinta dias, a partir do ato de sua edição. Os constituintesde 87/88 puseram à disposição do Presidente da República

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um mecanismo que lhe assegura poderes muito alentadose, até hoje, senadores e deputados federais não propicia-ram a regulamentação necessária para evitar o abuso na suautilização, nem o Supremo Tribunal Federal balizou o usodo mecanismo.

Na verdade, lembre-se de que só no governo Sarney,através de medidas provisórias, todas posteriormente ad-mitidas e transformadas em lei pelo Congresso Nacional,o presidente da República determinou condições de regis-tro provisório para estrangeiro no país, estabeleceu o efe-tivo da polícia no Estado de Roraima, estipulou regras paraa loteria federal, inscreveu os nomes Tiradentes e Deodoroda Fonseca no Livro dos Heróis da Pátria (Arantes, 1997).A observação das medidas provisórias editadas aponta queo instrumento tem sido utilizado também em incursõesdesestabilizadoras da garantia constitucional do devidoprocesso legal, com as modificações abruptas da legisla-ção processual civil.

Extrapolando os requisitos constitucionais da �urgên-cia� e da �relevância�, o uso indiscriminado do recursoàs medidas provisórias constitui, de fato, delegação in-discriminada de competências, a desatar a dissolução daordenação democrática das funções constitucionalmenteestabelecida em 1988. E pode, se não controlado institu-cionalmente, acarretar a ruptura do núcleo essencial doslimites de competência constitucionalmente fixado, parapedir de empréstimo a expressão de Canotilho (1992).

A visão dominante sobre os efeitos da utilização dasmedidas provisórias tende a pressupor que a separação depoderes no sistema presidencialista implica a existência deinteresses divergentes no Executivo e no Legislativo. Poressa razão, essas medidas são geralmente vistas como ins-trumentos eficazes com que o Executivo conta para supe-rar resistências e impor sua vontade ao Congresso. Assim,governos minoritários recorreriam mais freqüentemente àedição de medidas provisórias. Mas, como ressaltamFigueiredo e Limongi (1999:14), �as medidas provisóriaspodem ser instrumentos ainda mais poderosos nas mãosde um Executivo que conte com maioria no Congresso,especialmente em governos de coalizão. Nesses casos, po-dem funcionar como um eficaz mecanismo de preservaçãode acordos e de proteção da coalizão governamental nasdecisões contra medidas impopulares�.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerado apenas o processo político brasileiro maisrecente, é notório que se tem vivido um longuíssimo pro-

cesso de transição, o qual tem os seus primórdios por vol-ta de 1974, quando o autoritarismo burocrático � inaugu-rado dez anos antes � começava a sua inflexão. Aquiloque tem sido denominado a primeira transição, ou seja, olapso entre as primeiras medidas liberalizantes e a passa-gem de governos autoritários para governos democrati-zantes, no Brasil obedeceu a um calendário extremamen-te lento e gradual, findando-se somente em 1985, com avitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral.

A segunda transição, aquela que assiste à consecuçãode um regime democrático, tem sido, por seu turno, pro-blemática, a ponto de ser crucial a interrogação sobre o graude consolidação da democracia política entre nós. Impor-tantes analistas denominam a situação político-institucio-nal brasileira como �democracia vazia�, �democracia po-bre� ou �democracia delegativa�, para expressar afragilidade da mesma, sobretudo sua incapacidade para li-dar com a crise econômica e com a crise social.

A análise política sistemática também tem destaca-do que, nas democracias novas, como a brasileira, es-tão presentes, combinados, pelo menos dois componen-tes perversos, a saber: uma grande distância entre asnormas formais e o funcionamento da maioria das ins-tituições políticas; o particularismo como uma institui-ção política dominante. O segundo componente � o par-ticularismo � refere-se aos vários tipos de relações nãouniversalistas, desde as relações particularistas hierár-quicas, como a patronagem e o nepotismo, os favores ejeitinhos, até as ações que, do ponto de vista das nor-mas jurídicas vigentes, seriam consideradas corruptas.O particularismo é antagônico a um dos principais as-pectos do complexo institucional de qualquer democra-cia política mais enraizada, qual seja a distinção com-portamental e legal entre a esfera pública e a esferaprivada (O�Donnell, 1996).

Por isso, sem desprezar o patente progresso relativo àconvivência democrática no Brasil nos anos recentes, éinquestionável o caráter atrofiado, truncado, de muitas dasinstituições políticas. Por conta disso, em grande medida,a organização política brasileira tem problemas no que dizrespeito ao processamento da diversidade do País e à ex-pressão da pluralidade de interesses e valores socialmentesubjacentes. Esse caráter delegativo (e pouco representa-tivo, por conseqüência) tem raízes mais antigas, oriundasde uma formação histórica de forte ênfase no Poder Exe-cutivo, da vocação eminentemente anti-representativaenquistada na cultura política brasileira e da recorrênciaao autoritarismo, o qual, desgraçadamente, tem imprimido

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EXECUTIVO E LEGISLATIVO NO BRASIL PÓS-CONSTITUINTE

no desenvolvimento político nacional uma lógica de ci-clos de contração e ciclos de abertura política.

Temeu-se que, na Nova República, a instabilidade dascoalizões governamentais pudesse atingir diretamente aPresidência da República e que, no Congresso, a polariza-ção tendesse a transformar coalizões secundárias e facçõespartidárias em coalizões de veto, elevando perigosamentea probabilidade de paralisia decisória e a conseqüente rup-tura da ordem política. Antecipou-se, no limite, um cenáriopossível em que o presidente se tornasse cativo da vontadedo seu partido, delegando a própria autoridade � situaçãode equilíbrio precaríssimo e de alto risco para a própria es-tabilidade da ordem democrática, ou cenário alternativo emque o presidente resolvesse enfrentar o partido, confrontaro Parlamento e afirmar a sua autoridade numa atitudebonapartista ou cesariana altamente prejudicial à normali-dade democrática (Abranches, 1988).

Isso, todavia, não aconteceu. Pelo contrário, observa-seque os riscos de crises institucionais cíclicas diminuem, eas praxes políticas parecem estar dando soluções sem ne-cessidade de maiores inovações formais. Sobretudo, e estaé a maior conclusão que se tira deste estudo, o processopolítico brasileiro, embora enfrente problemas e dilemas,tem caminhado para evitar o conflito disruptivo entre oExecutivo e o Legislativo, que foi um dos traços marcan-tes e perversos de sua evolução político-constitucionalanterior a 1988.

NOTAS

E-mail do autor: [email protected] primeira versão deste artigo foi apresentada no XXIV Symposiumon Portuguese Traditions, promovido pela Universidade da Califórnia,Los Angeles � UCLA nos dias 21 e 22/04/2001.

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O SENADO NO BRASIL RECENTE: POLÍTICA E AJUSTE FISCAL

O

O SENADO NO BRASIL RECENTEpolítica e ajuste fiscal

Resumo: Examina-se aqui a lógica da ação do Senado no controle do endividamento público, procurandoresponder à seguinte pergunta: Será que os ditames da política se impõem sobre as necessidades de controledo déficit e da dívida pública? O marco de referência é a Constituição de 1988 e, mais particularmente, operíodo de implementação do Plano Real, quando o ajuste fiscal torna-se um dos pontos centrais da agendagovernamental.Palavras-chave: endividamento público; restrições legais; ação política.

MARIA RITA LOUREIRO

Professora da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo e da Faculdade de Economia da USP.Autora, entre outros, do livro Os economistas no governo: gestão econômica e democracia

momento atual torna a análise do tema ao mesmotempo difícil e instigante. Difícil, em primeiro lu-gar, em função da crise institucional vivida pelo

e 1997); Amorim (1994 e 2000); Abranches, (1988);Pessanha, (1997) e Nicolau, (2000).

O presente artigo pretende ajudar a preencher a lacu-na, olhando o Senado sob um prisma muito específico: ode sua atuação no processo de controle do endividamentopúblico. O marco de referência é a Constituição de 1988e, mais particularmente, o período da implementação doPlano Real, quando a questão fiscal torna-se central naagenda do governo.

Cabe esclarecer que a escolha do tema não significa acei-tar que se deva realizar o ajuste fiscal a qualquer preço. Aocontrário, mesmo considerando as conseqüências perversasdo déficit,1 é preciso lembrar, por outro lado, que os gover-nos contemporâneos têm déficits e, por isso se endividam,porque precisam continuar governando. Em outras palavras,os governos tomam empréstimos porque precisam oferecerinfra-estrutura e serviços públicos crescentemente reclama-dos pela população e que, em termos de justiça social, nãopodem mais ser adiados. Se não responderem a essas deman-das, terão sua legitimidade questionada.

Além disso, os efeitos do déficit sobre a economia sãoobjeto de muita controvérsia entre especialistas; e a posi-ção dos políticos ante o problema também varia muito emfunção da ideologia partidária e da cultura política predo-minante em cada país. Os responsáveis pelo desenho dasinstituições econômicas na comunidade européia, porexemplo, não tentaram equilibrar a qualquer custo seus

Senado, envolvendo casos de corrupção e de comportamen-to incompatíveis com o decoro parlamentar; em segundo,porque o ajuste fiscal ficou bastante vulnerável com a criseenergética. Esta revelou, na gravidade de suas prováveisconseqüências, a forma extremada e míope da prioridade dadaao ajuste nos últimos anos no País. Não é preciso apontar osenormes danos políticos à imagem do governo, produzidospelo racionamento e eventual corte de energia: a propósito,vários especialistas dizem que os efeitos do não-investimen-to no setor energético, a forma como foi conduzido o pro-cesso de privatização na área e a falta de planejamento es-tratégico acabarão, provavelmente, solapando a própriaagenda governamental. Até surgirem esses problemas, a agen-da parecia cumprida, ao menos nos seus pontos centrais deestabilização monetária, de equilíbrio das contas públicas ede retomada do desenvolvimento.

Por outro lado, a própria crise do Senado estimula es-tudos sobre essa casa legislativa, que praticamenteinexistem na Ciência Política brasileira. Essa lacuna con-trasta muito com o número, relativamente grande, de tra-balhos produzidos desde a redemocratização, sobre oCongresso, a Câmara dos Deputados e as relações entreExecutivo e Legislativo. Dentre eles, destacam-se os deFigueiredo e Limongi (1995 e 1999); Mainwaring (1993

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orçamentos, mesmo sabendo que o déficit crescente é umproblema a considerar (Benavie, 1998). Diferentementedos políticos conservadores americanos, que reiteradamen-te pretendem zerar o déficit público, os europeus consi-deram o investimento (necessário ao desenvolvimento e àexpansão do nível de emprego) razão amplamente legíti-ma para o governo se endividar. Aliás, segundo cálculospara os Estados Unidos, cada ponto percentual de desem-prego agrega um adicional de cerca de 50 bilhões ao seudéficit público (Ross, 1999). Do ponto de vista normati-vo, portanto, o que se espera dos governos hoje é a capa-cidade de manter déficits moderados, evitando tanto oscustos elevados do serviço da dívida, quanto os controlesextremados do orçamento, que geram recessão e desem-prego e, com eles, mais déficit (Evans, 1997:12).

Do ponto de vista teórico, o exame do papel do Sena-do no estabelecimento de normas de controle do endivi-damento público remete à discussão dos efeitos das insti-tuições sobre os resultados da ação governamental e sobrea estratégia dos atores políticos; e remete ainda às condi-ções políticas que permitem, ou não, o efetivo cumprimentodas regras institucionais, no contexto de conflitos federa-tivos e de constrangimentos macroeconômicos.

Sabe-se bem que o ajuste fiscal é política de difícil im-plementação em qualquer país democrático, na medida emque implica custos elevados e imediatos e seus benefíciossão de longo prazo e mesmo incertos (Schick, 1993; Weavere Rockman, 1993). Em sistemas federativos, as relações ine-rentemente complexas e tensas entre poderes autônomos e,ao mesmo tempo, interdependentes, tornam ainda mais difí-ceis o aumento de impostos, os cortes orçamentários e asmedidas restritivas ao endividamento público.

No Brasil, o federalismo tem se pautado por relaçõescompetitivas bastante perversas entre os governos, nãofavorecendo a consolidação de instituições com capaci-dade de coordenar as relações intergovernamentais e ge-rar maior cooperação entre eles (Abrucio e Costa, 1998).Além disso, até muito recentemente, predominavam, naárea fiscal, práticas predatórias por parte dos estados emunicípios que se endividavam sem condições de paga-mento, sabendo que a União iria, no final das contas,socorrê-los, transferindo para toda a sociedade o ônusdessas ações (Werneck, 1998).

É dentro desse quadro que a análise do Senado, comocâmara de representação federativa, ganha relevância.Assim, procurar-se-á responder aqui às seguintes questões:qual a lógica que orienta sua ação no controle do endivi-damento público? Será que os ditames da política, das

demandas eleitorais e da defesa dos interesses estaduaisse impõem sobre as necessidades de controle do déficit eda dívida pública?2

O enfoque específico sobre o Senado no controle doendividamento público justifica-se na medida em que, porregra constitucional, ele tem poder privativo para legislarsobre a matéria. O artigo 52 da Constituição de 1988 lhedá a prerrogativa exclusiva de autorizar operações de na-tureza financeira para a União, os Estados, os Municípiose as empresas estatais; de estabelecer as condições de fi-nanciamento interno e externo e de fixar os limites de en-dividamento de todos esses entes federativos. Ou seja, nãosó a União, mas todos os governos subnacionais preci-sam, para emitir títulos públicos e contratar outras dívi-das, do consentimento do respectivo poder legislativo etambém de autorização do Senado Federal.3 Assim, dife-rentemente de outros países federativos, os Estados Uni-dos por exemplo � onde as restrições legais são produzi-das de forma descentralizada pelas constituições estaduaise o mercado acaba exercendo o papel mais efetivo(Briffault, 1996; Peterson, 1995; Cligermayer e Dan Wood,1995) �, no Brasil o controle do endividamento públicoem qualquer nível de governo é realizado de forma cen-tralizada pelo Senado Federal.4

Por essa razão, a mais importante atividade legislativaexclusiva do Senado refere-se ao endividamento público.Cerca de 80% de suas resoluções, no período de 1989 a 1999,envolviam autorização para endividamento ou para rene-gociação de dívidas dos diferentes entes da federação.

O processo de autorização funciona da seguinte for-ma: os governos interessados em emitir títulos ou estabe-lecer contratos de créditos encaminham seus pleitos aoBanco Central que analisa cada caso e em seguida enviaao Senado parecer conclusivo, recomendando ou não aautorização. Uma vez no Senado, o parecer é recebido ediscutido pela Comissão de Assuntos Econômicos (CAE),composta por 27 senadores, que aprova ou rejeita o pedi-do, enviando-o para a decisão final do plenário. Comotodos os pareceres emitidos pela Comissão são sempreaprovados no plenário, a CAE acaba sendo o locus deci-sório central do processo de controle do endividamentopúblico no Brasil.

CRISE FISCAL E NOVAS REGRAS PARA OENDIVIDAMENTO PÚBLICO

As causas da crise fiscal dos anos 80 no Brasil remon-tam a fatores econômicos estruturais, ligados ao esgota-

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O SENADO NO BRASIL RECENTE: POLÍTICA E AJUSTE FISCAL

mento do modelo de financiamento externo, e ainda aopadrão de relações federativas existentes no País (SallumJr. e Kugelmas, 1993; Affonso, 1995; Abrucio e Costa,1998). É bem conhecido, contudo, que o agravamento dascontas públicas, especialmente nos governos subnacionais,decorreu em grande parte da elevação da taxa de juros,imposta pela implementação do Plano Real. Entre 1990 e1995, por exemplo, os estados viram sua dívida crescer150% e acumularam até o final de 1997 um débito de 97bilhões de dólares. Antes das negociações com a União,que desembocaram na federalização de suas dívidas, 22estados deviam mais do que um ano de arrecadação.5 Emconjunto, a dívida pública no Brasil (incluindo União,estados, municípios e empresas estatais) passou de 35%do PIB, no início de 1998, para mais de 50% em abril desteano. Também os juros pagos pelo setor público passaramde 4% do PIB, no mesmo período, para mais de 10% noprimeiro trimestre do ano em curso.6 Dessa forma, o ajus-te fiscal tornou-se mais premente ainda com a estabiliza-ção da moeda.

Por outro lado, o equilíbrio das contas públicas impõe-se sobretudo pela necessidade de integração do País aosmercados financeiros internacionais. Na era da economiaglobalizada, é preciso oferecer, a despeito dos enormescustos sociais e do comprometimento do próprio desen-volvimento econômico, credibilidade e baixo risco paraatrair capitais externos. Como se sabe, o peso da dívidapública em relação ao PIB é o índice que os investidoresestrangeiros mais levam em conta para avaliar a �confia-bilidade� no país.

Segue-se, assim, que o ajuste fiscal e a geração desuperávits primários tornam-se o objetivo central da agen-da do governo.7 A propósito, com a crise energética, queexige mais investimentos no setor (a ser suprido sobretu-do por capitais externos, dada a escassez de poupançainterna), e com as incertezas políticas, advindas da proxi-midade das eleições, os investidores e especuladores es-trangeiros têm intensificado, ainda mais, as pressões paraa geração de maiores superávits primários e, portanto,menores riscos para seus capitais.8

É exatamente por isso que importa analisar a partici-pação do Senado nesse processo, ou seja, como ele de-sempenha seu papel constitucional de órgão de controledo endividamento público no País, em vista dos constran-gimentos econômicos e fiscais. Será que essa casa legis-lativa apóia o Executivo na realização de sua agenda ou,ao contrário, é um obstáculo, como costumam afirmarvários analistas?

Antes, porém, de examinar o papel do Senado, é ne-cessário retomar, ainda que brevemente, alguns traços quetêm marcado as relações federativas no Brasil. De um lado,a Constituição de 1988 deu aos governadores e prefeitosautonomia para fixar alíquotas de impostos, definir estru-turas administrativas, fixar salário, aplicar livremente osrecursos próprios e as transferências que recebem daUnião. De outro lado, os estados e municípios caracteri-zaram-se, até muito recentemente, por comportamento fis-cal irresponsável, endividando-se sem condições de pa-gamento. Sabiam que, no final, transfeririam suas dívidaspara a União, através de negociações para �rolar� os dé-bitos (Werneck, 1998).

Nessa moldura político-institucional, que emergiu coma democratização do País e deu grande força política aosgovernos estaduais, os problemas de financiamento des-ses governos puderam ser contornados, por mais de umadécada, através de dois mecanismos: receitas extraordi-nárias geradas pelo chamado �imposto inflacionário�(oriundo tanto de reajustes da folha de pessoal em níveisinferiores à taxa de inflação, quanto do prolongamento dosprazos de pagamento de credores); o uso dos bancos esta-duais como fonte (não legal) de �quase-emissão� de moe-da. Ou seja, através de práticas reiteradas de empréstimosnão saldados junto a essas agências financeiras, cujos di-rigentes eram nomeados pelos próprios governadores, osgovernos estaduais conseguiam criar uma fonte alternati-va de recursos.

Em 1994, todavia, abre-se nova etapa nas relações in-tergovernamentais no Brasil (Abrucio e Costa, 1998). Coma estabilização monetária, o fortalecimento do governofederal e da autoridade do Banco Central (Sola; Garmane Marques, 1997), os governos estaduais perderam aque-las duas fontes alternativas de receitas: não só o �impostoinflacionário� desapareceu, mas igualmente os bancosestaduais foram, em maioria, liquidados ou privatizados.Cabe observar que o uso irregular dos bancos estaduaispor parte dos governadores contou durante muito tempocom a complacência do Banco Central. Afinal, como jáse indicou, o governo federal precisava, para aprovaçãode sua agenda política no Congresso, do apoio dos gover-nadores que controlavam a bancada parlamentar de seuestado.9

Nesse quadro de tensões federativas e de constrangi-mentos fiscais, observa-se, ao longo dos anos 90, a ten-dência de o Congresso brasileiro (e o Senado Federal, emparticular) legislar em favor da redução das possibilida-des de endividamento público. Assim, já em 1993, foi

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promulgada a Emenda Constitucional no 3 que, por seisanos, só permitiria a emissão de títulos públicos por partede estados e municípios para o refinanciamento de dívi-das anteriores; e estabelecia, como única exceção, o fi-nanciamento para pagar precatórios judiciais, isto é, dívi-das de particulares contra o poder público decididas emjuízo. Como emitir títulos públicos para pagar precatóriossignificava, na prática, criar uma dívida nova, essa foi aúnica brecha deixada pela legislação para o financiamen-to dos estados e municípios. Ela foi usada, ao máximo,pelos governos subnacionais como fonte �adicional� definanciamento público. E permitiu, inclusive, muita irre-gularidade, objeto de farta cobertura da imprensa, o quelevou à instalação, em novembro de 1996, de ComissãoParlamentar de Inquérito (CPI).

Se é verdade que os escândalos acerca da emissão irre-gular de títulos precatórios mostraram a profunda crisefinanceira em que se encontravam muitos governos sub-nacionais, estes puderam agir assim porque sabiam que aelevada inflação dificultava sua percepção e fiscalização.Sabiam também, sobretudo, que contavam com a conivên-cia e �flexibilidade� das autoridades encarregadas do con-trole do endividamento. O próprio relatório da CPI indi-cou que os Tribunais de Contas dos Estados, o BancoCentral e o Senado não estavam exigindo, como condiçãoprévia para autorizar emissão de um novo título, a com-provação do valor das parcelas efetivamente pagas de tí-tulos precatórios, nem tampouco controlavam o índice decorreção monetária aplicado aos mesmos.10

Se, até o momento, a CPI não resultou na puniçãodos envolvidos na emissão irregular de títulos precató-rios, teve, contudo, um efeito importante: gerou a pro-dução de regras cada vez mais restritivas para o con-trole do endividamento público no País. Assim, emsetembro de 1997, foi sancionada a Lei no 9.496/97 queestabeleceu critérios rígidos para que a União refinan-ciasse a dívida pública mobiliária dos estados e do Dis-trito Federal. Em julho de 1998, o Senado baixou aResolução 78/98, ainda mais rigorosa, que se tornou ummarco de referência na consolidação das condições ins-titucionais para o controle do endividamento públicono País. Dentre as modificações mais importantes tra-zidas por essa resolução, cabe destacar:- o Banco Central não mais encaminhará ao Senado Fe-deral pedido de autorização para a contratação de qual-quer operação de crédito (aí incluindo a emissão de títu-los da dívida pública) de governo que possua resultadoprimário negativo;

- os estados que desejarem contratação de operações decrédito, dependentes da aprovação do Senado, não pode-rão conceder qualquer tipo de isenção fiscal sobre o ICMS,imposto que é sabidamente a maior fonte de arrecadaçãoestadual;- governadores e prefeitos ficam impedidos de se endivi-dar por meio de operações ARO (Antecipação de ReceitaOrçamentária) no último ano de mandato;- prorroga até o ano de 2010 a proibição de emissão detítulos públicos, salvo para o refinanciamento do princi-pal (devidamente atualizado) e proíbe os governos sub-nacionais que tiverem sua dívida mobiliária refinanciadapela União de emitir, sob qualquer pretexto, novos títulospúblicos;- dentre outras medidas visando a maior transparência nasoperações de crédito, estabelece que os governos têm defazer leilões eletrônicos na contratação de ARO e que oBanco Central deve dar ampla divulgação dos leilões paracolocação dos títulos estaduais no mercado.

Na medida em que o Senado, através da resolução de1998, já vinha chamando os governadores e prefeitos àresponsabilidade fiscal e tentava pôr fim à guerra fiscal, éinteressante confrontá-la com a Lei de ResponsabilidadeFiscal (LRF), sancionada em maio de 2000. Esta lei esta-belece um conjunto mais amplo de regras que não só dis-ciplinam condições e limites de endividamento, como tam-bém induzem novos comportamentos nessa área, como oplanejamento orçamentário, a transparência das contaspúblicas e a responsabilidade fiscal. Ela faz isso ao vin-cular gastos às receitas, ao estabelecer tetos de despesascom pessoal (discriminadas por esfera de poder) e ao proi-bir o socorro da União aos governos subnacionais.11 Sãoregras que consolidam princípios de gestão fiscal que ga-nharam consenso nos meios governamentais e na mídia,ao longo da última década. As resoluções do Senado, emparticular a 78/98, constituíram um ponto de inflexão im-portante nesse processo. Além de submeter-se aos limitesao endividamento estabelecidos pelo Senado, algumascláusulas da LRF já estavam contidas na resolução de 1998,como a que proíbe operações ARO no último ano de man-dato do chefe do poder executivo e as medidas para maiortransparência das contas públicas, aí incluídas as opera-ções de crédito.

Assim, observa-se que o Senado produziu ao longo dosúltimos anos um conjunto de normas cada vez mais restri-tivas para o endividamento dos governos.12 A proibiçãode emissão de títulos públicos por mais de dez anos serve

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de exemplo de seu caráter drástico. Segundo alguns estu-diosos, a expansão do mercado primário de títulos esta-duais e municipais, como existe nos Estados Unidos,poderia ser uma fonte alternativa importante para finan-ciamento do setor público no país, pois não elevaria a jámuito onerosa carga tributária (Ferreira, 1998; Toneto Jr.e Gremaud, 2000).

A LÓGICA DA AÇÃO DO SENADO:POLÍTICA E AJUSTE FISCAL

Todavia, apesar das restrições crescentes, as novas re-gras não geraram os efeitos desejados, ao menos à pri-meira vista. Argüindo estar diante de situações excepcio-nais, os senadores continuaram aprovando quase todos ospedidos de autorização de endividamento que lhes foramapresentados. Dados levantados no Senado, sistematiza-dos na Tabela 1, mostram que as autorizações para endi-vidamento oscilaram nos últimos anos, em decorrência devários fatores, não necessariamente derivados das restri-ções legais. Ou seja, as resoluções mais restritivas não ti-veram influência significativa nesse movimento. Por exem-plo, mesmo no contexto da já mencionada Lei no 9.496 de1997, o número total de autorizações naquele ano cres-ceu quase 20%. No âmbito estadual, a proporção foi ain-da maior (mais de 40%), passando de 52 para 75 auto-rizações concedidas. Em 1998, o número total de auto-rizações para os estados e municípios declinou, mas con-tinuou a crescer para a União e, de forma mais significa-tiva ainda, para as empresas públicas. Em suma, as restri-ções legais não foram cumpridas.

Como explicar essa ação? O Senado não estaria, de fato,comprometido com o ajuste fiscal? Ou trata-se de um com-portamento simplesmente incoerente e irracional dos se-nadores?

Parece-me mais apropriado caracterizar o comporta-mento do Senado como ambivalente mais do que irracio-nal. Se, de um lado, o Senado não cumpre as regras queele mesmo estabeleceu, de outro, há evidências de que eleestá comprometido com o ajuste fiscal.

Na condição de representante de seu estado na arenapolítica nacional e percorrendo uma carreira que passa namaioria das vezes por cargos executivos, o senador brasi-leiro sofre pressões dos governadores, que muitas vezesforam seus colegas no Senado, ao mesmo tempo em queestá bastante envolvido com compromissos de governo.Assim, o endividamento, como uma das fontes importan-tes de geração de recursos para atender a demandas so-

ciais inadiáveis, torna-se caminho praticamente irrecusávelpara um político, mesmo fazendo parte do Senado, órgãoque tem como função constitucional garantir o equilíbriofinanceiro dos entes federativos.13

Mesmo atendendo às demandas políticas, não se podenegar o comprometimento do Senado com o ajuste fiscal.Ele se revela de forma clara na delegação de poder para oBanco Central. Conhecendo a �fraqueza da vontade� a queestão sujeitos os senadores para resistir a pressões vindasdos governadores e de outros parlamentares, o Senadocomo que amarra as próprias mãos (Elster, 1979). E trans-fere para o Banco Central porção considerável de seu poderdecisório em matéria de endividamento.14 Através dasnovas regras que dão ao Banco Central capacidade deemitir parecer conclusivo e de rejeitar, não encaminhan-do para a CAE, os pedidos que não preencham as condi-ções legais, os senadores acabaram criando um mecanis-mo permanente para evitar pressões �irrecusáveis�, aomesmo tempo que acolhem as necessidades de controledo endividamento.15

Além disso, ao estabelecer limites claros para o endi-vidamento, o Senado põe fim a um processo altamentepolitizado, resolvido caso a caso, e cujos custos tornavam-se cada vez mais elevados, especialmente com o cresci-mento do consenso em torno da necessidade do equilíbriofiscal. Em outras palavras, a despolitização dos pleitos decrédito e sua transformação em matéria técnica, de alçadada burocracia do Banco Central, mostra como a raciona-lidade política se acomoda com os ditames do ajuste fis-cal no interior do Senado.

TABELA 1

Evolução do Número de Autorizações de Endividamento

pelo Senado Federal (1)

Brasil – 1989-98

Anos União Estados Municípios Estatais Total

1989 18 34 14 12 78

1990 9 38 15 2 64

1991 9 34 13 4 60

1992 12 30 25 1 68

1993 10 29 68 6 113

1994 19 43 16 2 80

1995 6 31 9 2 48

1996 11 52 20 8 91

1997 16 75 16 2 109

1998 17 57 9 10 93

Fonte: Senado Federal.(1) Referem-se a autorizações para endividamento em bancos estrangeiros, em agências in-ternacionais e no mercado interno de títulos públicos.

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O exame mais detalhado das autorizações para endivi-damento, posteriores ao ano de 1997, mostra que um nú-mero significativo delas ocorreu, na realidade, como par-te do Programa de Apoio à Reestruturação e ao AjusteFiscal dos Estados e no bojo do processo de negociaçãodas dívidas entre União e estados. Dentro desse progra-ma, o Senado colaborou com o executivo federal, autori-zando a renegociação das dívidas antigas dos estados, con-dicionada à privatização dos bancos estaduais e dasempresas estatais. Como já se indicou, a privatização dosbancos estaduais tem sido vista como prioritária na agen-da de ajuste fiscal do governo federal, na medida em queaqueles bancos foram usados durante muito tempo comoalternativa de financiamento dos governos estaduais. Su-primir essa fonte significava, portanto, preencher uma con-dição para o ajuste das contas públicas.

Segundo números colhidos na Base de Dados da Le-gislação Brasileira, o Senado aprovou 18 autorizações, em1996, dentro do programa mencionado; em 1997, foram24, representando mais de 30% do total de autorizaçõesconcedidas para os governos estaduais. Em 1998, houve16 autorizações, correspondendo a 28%. Portanto, se elasforem descontadas do total, uma considerável reduçãoaparecerá: ao invés das 75 (Tabela 1), o número de 1997cai para 51, e o de 1998, para 41. Em outras palavras, asrestrições legais acabaram sendo cumpridas, sob condi-ções políticas específicas: a barganha entre governos fe-deral e estados que levou à federalização das dívidas e àimposição de determinadas condições aos governos esta-duais.

Outros indicadores servem ainda para reforço da argu-mentação: as restrições e limites impostos pela Resolu-ção 78 sobre as operações ARO fizeram com que o núme-ro delas caísse drasticamente. Conforme dados do BancoCentral, foram autorizadas no ano de 1996 e de 1997, res-pectivamente de 1.330 e 1.682 operações ARO para esta-dos e municípios. Só no primeiro semestre de 1998, antesda Resolução 78, o número chegou a 1.227. A partir dosegundo semestre de 1998, sob a vigência da nova regra,tais operações despencaram para 46 e em todo o ano de1999 elas não passaram de 128.

Esses dados são significativos pois permitem analisaro comportamento do Senado em perspectiva ampliada.Mesmo sensível a pressões vindas dos governos estaduais(politicamente inevitáveis), ele tem se mostrado compro-metido com o ajuste fiscal. Isso se mostra não só na parti-lha de nova �cultura da responsabilidade fiscal�, que visi-velmente vira consenso nos meios políticos e na opinião

pública, mas sobretudo na colaboração com a agenda go-vernamental em matéria fiscal, através de suas resoluçõesrestritivas ao endividamento público. A aprovação con-junta � Senado e Câmara � da Lei de ResponsabilidadeFiscal, em 2000, com rapidez e sem mudanças substanti-vas no projeto original do Executivo, também reforça aargumentação que se vem fazendo acerca do apoio doSenado à agenda de governo. E ainda valida a afirmaçãode que o Legislativo no Brasil, diferentemente do que secostumava pregar, não tem sido de fato um �obstáculo àgovernabilidade� (Palermo, 2000).

Como já se indicou, a despeito da ausência de discipli-na partidária e da necessidade de negociar continuamenteseus projetos, o governo atual, mais ainda do que os ante-riores, tem tido sucesso na aprovação de sua agenda noLegislativo, e obtido apoio dos partidos no Congresso(Figueiredo e Limongi, 1999; Couto e Abrucio, 1999). Essacapacidade se manifesta ainda mais acentuadamente noSenado, onde os principais partidos que compõem a basede sustentação do governo (PSDB, PFL, PMDB) detêmquase 70% das cadeiras.16

Em apoio ao governo, a bandeira do equilíbrio das con-tas públicas e da responsabilidade fiscal entre os entesfederativos tornou-se tema reiterado do discurso de partesignificativa dos senadores. E isso não só entre os líderesda bancada governista. Vale transcrever aqui alguns tre-chos de debates ocorridos no Senado desde 1995, queculminaram na aprovação da Resolução 78, em julho de1998. Eles revelam bem a tensão entre a lógica política ea necessidade de impor restrições aos governos sub-nacionais: �Nem eu nem nenhum dos senadores têm inte-resse em inviabilizar a administração pública de nenhumestado. Agora, precisamos (...) pensar um pouco no paíssob o seguinte aspecto: quando vamos parar com essa his-tória de o prefeito passar a conta para o governador, ogovernador passar para o presidente e este para o povo?Quando vamos criar mecanismos de austeridade adminis-trativa nos estados?� (Senador Wilson Kleinübing, Ata da28a Reunião da CAE/Senado Federal, 13/09/1995).

�A bandeira do ajuste fiscal é bandeira sempre atual etodo político deve lutar por ela. Eu aqui no Senado, naCAE, tenho sido inflexível na concessão de empréstimopara estados e municípios� (Senador Carlos Bezerra, doPMDB de Mato Grosso).

�Gostaria de deixar consignado nas notas taquigráficasdesta reunião da CAE (...) que estamos votando um dosprojetos mais importantes que já passaram por esta casa.Sem dúvida alguma, com o projeto de autoria do senador

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Espiridião Amin, bem como de vários outros senadorescujos projetos foram apensados, sob a brilhante relatoriado senador Wilson Kleinübing, que discutiu e levou a caboum dos projetos mais sérios e competentes, hoje, no Se-nado Federal, de moralização de financiamentos para es-tados e municípios� (Senador Gilberto Miranda).17

�(...) Chegou a hora da verdade. Não vamos mais em-purrar problemas com a barriga e nem mandar a conta paraa viúva. Ontem nesta sala, quando um senador, meu cole-ga, fazia um discurso e dizia que a União tem que resol-ver os problemas dos estados, eu perguntei: �Quem vairesolver os problemas da União?�. Sou representante doEstado do Amazonas, mas sou senador da República. Nãoposso adotar a posição irresponsável de dizer: mande paraa União e o resto que se dane� (Senador Jefferson Peres,Ata da 14a Reunião da CAE/Senado Federal, 16 /06/1998).

Em suma, mesmo que a lógica política (aí incluída apressão clientelista) muitas vezes se sobreponha à auste-ridade, é importante levar em conta que a orientaçãofiscalista, não só entre burocratas, mas igualmente entreparlamentares, vem se afirmando no País e já produziu �para o bem ou para o mal � efeitos políticos considerá-veis. As resoluções do Senado e agora a Lei de Responsa-bilidade Fiscal são prova disso.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O institucionalismo tem se tornado hegemônico nasciências sociais contemporâneas, dando ênfase ao papelque as regras formais e informais desempenham na estra-tégia dos atores políticos e nos resultados da ação gover-namental. Sem negar seus achados, este texto procuroumostrar que as regras legais, especialmente em matériafiscal, não bastam para garantir sua efetividade e, daí,cumprir seu papel nas políticas públicas. Elas pressupõemcertas condições políticas. No caso em estudo, as normasestabelecidas pelo Senado só começaram a ser implemen-tadas em um contexto político bem determinado: quandose consolida o consenso em torno da responsabilidade fis-cal e sobretudo quando o governo federal ganha mais for-ça nas relações federativas.

Foram igualmente deixadas de lado concepções queinsistem em ver os políticos como atores incapazes desatisfazer qualquer racionalidade, que não a de seus inte-resses eleitorais (vistos com desprezo). A análise derrubaainda o vezo de opor a ação política � considerada sem-pre irracional, ineficiente e mesmo perversa � à ação téc-nica, esta sim vista como racional e eficiente.

Ao contrário, o Senado é tomado como um espaço po-lítico no qual há possibilidades de ação coletiva fundadana combinação de racionalidade política e racionalidadetécnica. Em outras palavras, ele não age sempre no senti-do oposto ao da racionalidade que prega o equilíbrio dascontas públicas e a responsabilidade fiscal. Em váriosmomentos, o Senado tem atuado nessa direção, podendoexprimir o processamento institucional entre os constran-gimentos fiscais necessários à saúde orçamentária e ad-ministrativa e as demandas políticas. Estas são não só ine-vitáveis, mas legítimas em uma ordem democrática. Apropósito, é pertinente relembrar a sempre atual adver-tência de Max Weber de que fora da política não há sal-vação para a vocação inerentemente autoritária do Esta-do (e, acrescente-se, dos dirigentes que tendem a imporseus pontos de vista como verdade inquestionável).

NOTAS

E-mail da autora: [email protected] dados que serviram de base para este texto fazem parte de pesquisamais ampla sobre o controle do endividamento público nos EstadosUnidos e no Brasil, financiada pelo Núcleo de Estudos e Publicações(NPP) da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, ao qual, nesta opor-tunidade reitero meus agradecimentos.1. Em termos de inflação, de elevação da taxa de juros e ainda o pesoque o pagamento do serviço da dívida possa representar nos gastospúblicos.2. Cabe esclarecer que o âmbito deste trabalho, que examina a lógicade ação do Senado, não se atém às diferenças entre o Senado e a Câ-mara dos Deputados em termos de suas atribuições e poder respectivodentro do sistema político, como é comum nos estudos comparativossobre as câmaras altas (Oleszek, 1996; Lijphart, 1989).3. No conceito de endividamento público estão incluídas as dívidasmobiliárias, isto é, aquelas originárias da venda de títulos públicos nomercado e a dívida contratual, constituída de créditos obtidos no paísou no exterior para financiamento de projetos específicos (Ver, a res-peito, o artigo 52 da Constituição Federal de 1998 e as atas das reu-niões da CAE, indicadas nas referências bibliográficas).4. Cabe lembrar que durante o regime militar o controle do endivida-mento público estava circunscrito ao raio de influência do Executi-vo, mais especialmente ao Ministério da Fazenda. A Lei Complemen-tar no 12 de 1971, promulgada no período em que Delfim Netto este-ve à frente daquele ministério, transferiu para o Banco Central e oConselho Monetário Nacional o poder de autorizar a emissão de tí-tulos públicos.5. Os gastos com pessoal (ativos e inativos) têm sido outra fonte im-portante das dificuldades financeiras dos governos subnacionais. Mes-mo com a redução do número de servidores, a folha de pagamento cresceconstantemente em decorrência de benefícios legais automáticos(Beltrão, Abrucio e Loureiro, 1998).6. Relatórios do Banco Central e Informações Fipe, no 248, maio de2001.7. Entende-se por superávit primário o resultado positivo entre receitae despesa, excluindo-se o pagamento de juros. Os superávits primá-rios são vistos como necessários para a redução do peso da dívida pú-blica frente ao PIB. Como resultado de vários anos de contenção dos

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gastos e de elevação da carga tributária bruta (que passou de cerca de22% do PIB em 1994 para mais de 30% do PIB hoje), o setor públicovem apresentando superávits primários nos últimos anos: no primeirotrimestre de 2001, por exemplo, a União e os governos subnacionaisgeraram superávits primários respectivamente de 9,5 bilhões de reais(3,8% do PIB) e 5,4 bilhões (1,8% do PIB) (Informações Fipe, no 248,maio de 2001).8. Como apontou recentemente um jornalista econômico, �quanto maiorfor o superávit primário, mais o governo poderá pagar de juros e evitarque cresça a dívida líquida total, que é o número-chave para traduzir orisco de uma moratória futura� (Pinto, 2001:A2).9. Pode-se citar, como exemplo, a ajuda do governo federal, em 1994,aos bancos estaduais para obter apoio no Congresso e facilitar a arti-culação da candidatura de Fernando Henrique Cardoso à presidênciada República. Nessa época, a União comprou títulos dos bancos esta-duais, considerados �podres� pelo mercado no valor de 5 bilhões dedólares, ou seja, mais do que o dobro do que foi injetado em todas asinstituições financeiras nos seis anos anteriores (conforme dados pu-blicados em O Estado de S. Paulo apud Abrucio e Costa, 1998:47).10. Segundo o texto: �O Banco Central e o Senado estavam aceitandotudo o que lhes era apresentado, não questionando o valor ou a exis-tência dos precatórios listados, nem levantando a possibilidade de quetais débitos já poderiam ter sido pagos.(...) Quanto mais se percebiaque o Banco Central e o Senado não estavam sendo suficientementevigilantes, mais se exagerava na correção monetária dos precatóriosdevidos� (Senado Federal, 1997:44, grifo meu).11. Isso é crucial para impor responsabilidade fiscal em uma federa-ção. Nos Estados Unidos, por exemplo, o fato de credores e estadossaberem que a União não socorrerá os governos devedores desestimulapráticas predatórias e o chamado moral hazard (Loureiro, 1999).12. É importante ressaltar que as resoluções de nos 2.443 e 2.444 de1997 do Conselho Monetário Nacional (CMN) também exerceram papelfundamental neste processo, atuando do lado da limitação da oferta decrédito ao setor público pelo sistema financeiro nacional.13. Eis o que diz a respeito um dos senadores entrevistados: �Quan-do a solicitação do Estado ou município está no limite do previstonas resoluções, na 65 e agora na 78, ainda assim há pressão dos go-vernadores, dos secretários e parlamentares. Há exemplos semanais(dessa pressão). (...) O senador Suruagy havia estado no Senado por8 anos, quando foi eleito governador. (Como tinha muita) interaçãocom os senadores, foi conversando com eles para que dessem aten-ção às suas solicitações. E depois não se imaginava que ele iria fazero que fez�.14. O artigo VII da Resolução 78/98 assim estabelece: �O Banco Cen-tral do Brasil não encaminhará ao Senado Federal pedido de autoriza-ção para a contratação de qualquer operação de crédito de tomadorque apresente resultado primário negativo no período de apuração daReceita Líquida Real ou que esteja inadimplente junto a instituiçõesintegrantes do Sistema Financeiro Nacional� (grifo meu).15. São expressivas estas palavras: �Se as matérias sobre endividamentonão são remetidas para o Senado, se são triadas dentro do Bacen, ha-verá menos pressões políticas junto aos senadores. É uma atitude deautodefesa, porque se chega ao Senado um pedido de autorização deendividamento, é muito difícil resistir politicamente às pressões� (Fun-cionário da CAE).16. Na 50a legislatura, correspondente ao primeiro mandato do gover-no Fernando Henrique Cardoso (1995-1999), as bancadas do PSDB,PFL e PMDB no Senado detinham respectivamente 14,8%, 25,9% e28,3% de senadores.17. Ata da 14a Reunião da CAE/Senado Federal, realizada no dia 16de junho de 1998, na qual se aprovou a Resolução 78/98. É interes-sante lembrar aqui que o senador Gilberto Miranda foi justamente umdos que haviam exercido pressão junto a CAE para aprovar pedidos deautorização para emissão de títulos precatórios para a Prefeitura deSão Paulo, durante a administração de Paulo Maluf, de quem o sena-dor Gilberto Miranda era aliado político.

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DEMOCRACIA E ESCÂNDALOS POLÍTICOS

Resumo: Por meio de análise de alguns escândalos surgidos recentemente no cenário político brasileiro comoos casos da violação do painel de votação do Senado Federal e das denúncias de corrupção no Banpará, Sudame TDAs, busca-se compreender as determinantes dos escândalos repercutidos pela mídia, e analisar as conse-qüências desses fenômenos para a política brasileira.Palavras-chave: democracia; Estado brasileiro; Legislativo.

VERA CHAIA

Professora do Departamento de Política e do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP,Pesquisadora do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política

MARCO ANTONIO TEIXEIRA

Pesquisador do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política da PUC-SP

ma série de escândalos marca o atual cenáriopolítico brasileiro, envolvendo senadores, secre-tários de governos e políticos de modo geral. A

ESTUDOS DA CORRUPÇÃO

Alguns estudos estão mais preocupados em destacar oscustos da corrupção para a sociedade, para as instituiçõese são prioritariamente casos e países que desenvolveramsaídas políticas e souberam controlar o Poder Executivo,minimizando o aparecimento de corrupção. O próprioBanco Mundial, como agência financiadora internacional,avalia a necessidade de combater a corrupção, pois paí-ses com altos índices desses casos não são viáveis para sefazer investimentos. Portanto, os estudos de corrupçãopossuem um objetivo principalmente instrumental e mo-ral e não propriamente científico, porque as causas e oselementos desencadeadores de casos de corrupção não sãoavaliados e tampouco destacados.

A Fundação Konrad-Adenauer lançou recentemente umcaderno especial com o objetivo de analisar �Os custosda corrupção�. Wilhelm Hofmeister, na apresentação,caracteriza a corrupção como �o maior obstáculo para odesenvolvimento. Ela aprofunda o fosso entre ricos e po-bres, enquanto elites vorazes saqueiam o orçamento pú-blico. Causa distorções na concorrência, ao obrigar em-presas a desviar importâncias cada vez maiores para obternovos contratos. Solapa a democracia, a confiança noEstado, a legitimidade dos governos, a moral pública. Aexperiência demonstra: a corrupção pode debilitar todauma sociedade� (Fundação Konrad-Adenauer, 2000:7).

política nacional está vivendo uma crise peculiar com es-ses escândalos presentes em várias esferas da administra-ção pública. Todos os envolvidos culpam a mídia porbuscar casos escabrosos e denúncias contra personalida-des públicas. O próprio Senado aparece como um podercomprometido com escândalos e sua credibilidade se en-contra em xeque. Quais os elementos desencadeadores dosescândalos políticos? E que conseqüências esse fenôme-no traz para a vida política brasileira?

Para abordar alguns casos de escândalos políticos queapareceram e ganharam destaque na mídia brasileira, seráadotado um enfoque que privilegia a teoria social dos es-cândalos analisada pelo sociólogo inglês John B. Thompson,em seu recente livro sobre �Political scandal � power andvisibility in the media age� (Thompson, 2000), no qualestuda escândalos políticos que envolvem corrupção, que-bra de decoro parlamentar e escândalos sexuais.

Antes de examinar os escândalos políticos se faz neces-sário esclarecer o significado conceitual desse fenômeno, poismuitas vezes escândalo é confundido com corrupção, porémnem todo caso de corrupção se transforma em escândalo po-lítico. Nesse sentido, precisa-se diferenciar a análise do es-cândalo, dos estudos sobre a corrupção, uma vez que exis-tem algumas especificidades que os diferenciam.

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DEMOCRACIA E ESCÂNDALOS POLÍTICOS

Já o artigo de Bruno Wilheim Speck (2000), presenteno caderno especial da Konrad-Adenauer, denominado�Mensurando a corrupção: uma revisão de dados prove-nientes de pesquisas empíricas�, busca analisar as pesqui-sas que tiveram o objetivo de compreender e mensurar acorrupção.

O autor avalia o desenvolvimento dessas pesquisas eas sistematiza a partir dos seguintes elementos:- pesquisas que privilegiam os �escândalos de corrupção�divulgados pelos meios de comunicação � os limites des-te tipo de pesquisa esbarram na questão da liberdade deimprensa existente nos países e em possíveis mudançasnas editorias dos jornais, que poderão ou não privilegiarrelatos sensacionalistas sobre casos de corrupção;- indicador de corrupção construído a partir das conde-nações penais, com dados coletados na polícia, no Minis-tério Público e na Justiça � o mero registro não significanecessariamente a punição, e o significado de crime decorrupção também pode variar, pois os códigos penais nãopossuem o mesmo conteúdo de país para país;- indicador de corrupção obtido através de pesquisas deopinião que auscultam �os cidadãos sobre o grau e a exten-são da corrupção na sociedade� � envolve necessariamenteavaliações subjetivas, porém foram muito utilizadas.

O tema da corrupção, portanto, entra na agenda políti-ca e a partir dos anos 90 se associa umbilicalmente àsnecessidades das reformas políticas e institucionais. Osrelatórios do Banco Mundial, principalmente a partir doano de 1996, são enfáticos em relação ao tema da corrup-ção e incentivam pesquisas que busquem detectar áreas einstituições �contaminadas� pela corrupção e que sejamalvo privilegiado de reformas estruturais e institucionais.

Flávia Schilling (1999), em um artigo intitulado �O Esta-do do mal-estar: corrupção e violência�, argumenta que nosdias atuais o que prevalece nos noticiários são crimes envol-vendo corrupção, tema presente na agenda política interna-cional e no Brasil a partir dos anos 80 e 90.

A autora afirma que a corrupção deve ser consideradacrime e está associada à violência, com uma característi-ca central: o exercício de influência concebido como �umarelação de forças entre as partes envolvidas a se equili-brar� (Shilling, 1999:48). Nesse sentido, a corrupção en-volve também a coerção das relações de poder.

Um outro autor que estuda a corrupção na política bra-sileira é Marcos Otávio Bezerra, em seu livro Corrupção� um estudo sobre poder público e relações pessoais noBrasil, com o objetivo de analisar as �relações sociais que

ordenam as práticas designadas como corruptas e corrup-toras� (Bezerra, 1995:17). Para tanto, Marcos examina três�casos� � Valência, Capemi e Coroa-Brastel �, discutin-do a lógica e os princípios sociais que fundamentam ascondutas envolvidas nestes �casos�.

Renato Janine Ribeiro (2000), no capítulo �da políticada corrupção�, do livro A sociedade contra o social � oalto custo da vida pública no Brasil, destaca como nosvários sistemas de governo, o tema corrupção teve signi-ficados diferenciados. Na tirania e na monarquia não ha-via a separação entre bem público e bem privado, portan-to a corrupção estava associada a algum modo de traiçãoà pátria, como nos desvios de conduta (basicamente se-xuais) ou na acusação de mulheres, consideradas corrup-tas ao tentarem assumir papéis fora daquilo que a socie-dade lhes passava como expectativa de boa conduta.

A corrupção, da maneira como nós a conhecemos, éum fenômeno da moderna República. Segundo o autor, oregime democrático, inevitavelmente, conviverá com al-gum grau de corrupção por diversas razões:

A primeira razão decorre do fato de a democracia pau-tar-se pelo sentimento de tolerância à diversidade, nãohavendo nenhum grau de afeto superior que padronize ocomportamento das pessoas, como ocorria em épocas pas-sadas quando se transformava em corrupção tudo aquiloque fugia dos padrões definidos pelo próprio grupo.

O segundo fator que explica a corrupção decorre da su-premacia da sobrevivência individual (busca do dinheiro) emrelação ao espaço coletivo (mundo do afeto). Nas estruturas(Estado) em que deveriam ser realizadas as produções de benspúblicas, o interesse privado tem prevalecido.

Mas, o que vem se verificando é que, paralelamente aopleno exercício da liberdade e do direito de fiscalizar e deescolher governantes, a corrupção também está presente nasdemocracias modernas, colocando em risco esse regime po-lítico. Ribeiro (2000:175-76) auxilia a melhor compreenderesta situação paradoxal quando coloca que: �Talvez o me-lhor indício da situação claudicaste em que vive a Repúblicamoderna, do ponto de vista da ética, apresente-se numa mu-dança quase despercebida, que afetou a palavra corrupção.Para os antigos, ela definia a degradação da coisa públicapor meio da usura dos costumes. Hoje, ela se reduziu a coisatão limitada como o mau trato do dinheiro público. Eviden-temente, há uma ligação entre um sentido e outro. Para quefuncionários ou magistrados exijam � ou aceitem � suborno,é preciso estarem desgastados os costumes; e é isso o quereduz a força do regime político que mais exige o respeitoao bem público: a democracia�.

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Um outro enfoque da corrupção pode ser encontradoem Marcos Fernandes Gonçalves da Silva, (1995) no tex-to A economia política da corrupção: o escândalo doorçamento. O autor trabalha com as dimensões etimológicae normativa. No sentido etimológico, a palavra corrupçãodenota decomposição, putrefação, depravação, desmora-lização, sedução e suborno. Já do ponto de vista normati-vo, o autor afirma que a corrupção envolve sempre umato ilegal e que precisa de no mínimo dois agentes � umcorrupto e um corruptor. Segundo Silva (1995:8), a cor-rupção no senso comum seria identificada: �como um fe-nômeno associado ao poder, aos políticos e às elites eco-nômicas. Mas igualmente considera a corrupção algofreqüente entre servidores públicos (como policiais e fis-cais, por exemplo) que usam o �pequeno poder� que pos-suem para extorquir renda daqueles que teoricamente cor-romperam a lei�.

ESTUDO DE ESCÂNDALOS POLÍTICOS

Freqüentemente escândalos e corrupção são confundi-dos, porém são fenômenos distintos e a relação entre osdois é variável. Sherman, citado por Marco Otávio Be-zerra (1995:196), comenta que o escândalo envolve �es-tágios de desenvolvimento: revelação, publicação, defe-sa, dramatização, execução (julgamento) e rotulação�.

Em sua obra, John B. Thompson (2000:13) tem comoobjetivo compreender o desenvolvimento dos escândalospolíticos em diferentes culturas e países. Para tanto, o autorrealiza uma análise sistemática do fenômeno do escânda-lo político, como produto da sociedade moderna, comotambém se preocupa em compreender as implicações queeste fenômeno traz para a natureza e a qualidade da vidapública. Para Thompson, ��scandal� referes to actions orevents envolving certain kinds of transgressions whichbecome known to others, and sufficienthy serious to elicita public response�.

A emergência de um escândalo depende do conheci-mento de outros, envolvendo um grau de conhecimentopúblico sobre as ações e acontecimentos e a transforma-ção desse conhecimento em �making public� e �makingvisible�, através dos quais estas ações se tornam conheci-das dos outros. Nesse sentido, é crucial o papel da comu-nicação midiática na divulgação e publicização de váriosescândalos.

Uma das características da comunicação midiática é apossibilidade de divulgar e de circular informações refe-rentes a um determinado escândalo numa esfera que trans-

cende o tempo e o espaço da sua ocorrência. O escândalopode se espalhar rapidamente e de maneira incontrolável,sendo difícil reverter o processo, tanto que uma das con-seqüências imediatas do escândalo político é o prejuízoque traz à reputação dos indivíduos envolvidos, portantoesse é um risco que sempre está presente quando um es-cândalo irrompe. Thompson considera que a reputaçãopossui um �symbolic power�, pois é um recurso que osindivíduos podem acumular, cultivar e proteger.

Os indivíduos envolvidos em escândalos podem se de-fender de várias maneiras das acusações: entrar com umaação na justiça e resolver os problemas numa corte legal;rejeitar as acusações, negar as transgressões ou negar queestejam envolvidos. Outra estratégia utilizada é a confissãopública, visando angariar simpatias dos outros com esse ato.

Corrupção pode se transformar em um escândalo. Quaisas condições adicionais para que atividades corruptas seconstituam em escândalos? A corrupção precisa ser des-coberta para se tornar escandalosa, pois se as atividadesde corrupção permanecerem escondidas dos outros esta-rão protegidas de uma futura investigação pública.

Corrupção envolve infração, violação de regras, con-venções ou leis, que somente serão denunciadas se osoutros (não-participantes) considerarem tais violaçõessuficientemente sérias e importantes para serem revela-das e expressarem uma vigorosa desaprovação daquelesatos. Portanto, a articulação pública do discurso denun-ciatório é a condição final para que uma corrupção se trans-forme em um escândalo.

O escândalo não é um fenômeno novo, pois casos es-candalosos, de vários tipos, existiram em muitos perío-dos da nossa história, mas com o desenvolvimento dassociedades modernas a natureza, a escala e as conseqüên-cias dos escândalos sofrem alterações. Agora emergem os�escândalos midiáticos�, que na avaliação de Thompsonse caracterizam não só pelo fato de serem tratados pelamídia, mas por envolverem outra dimensão espacial-tem-poral e de extensão. Não são mais fenômenos localiza-dos, pois podem adquirir também uma dimensão nacionale até global, exatamente pela expansão e desenvolvimen-to das comunicações.

Associados a esse desenvolvimento, Thompson destacaa profissionalização dos jornalistas e o surgimento do jorna-lismo investigativo. Agora, alguns jornalistas se consideram�guardiões do interesse público� e atuam no sentido de reve-lar os segredos dos poderes. Também não se pode deixar deconsiderar que existe um interesse comercial na divulgaçãodos escândalos, já que esse fenômeno �vende�.

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DEMOCRACIA E ESCÂNDALOS POLÍTICOS

Todos os cidadãos, em princípio, são iguais perante alei, mas nem todos possuem visibilidade, porque não ocu-pam posições públicas importantes numa determinadasociedade. Existem indivíduos que são mais vulneráveisque outros, porque seu comportamento público, e tambémprivado, está mais sujeito à exposição e ao controle e, por-tanto, mais sujeito a cobranças.

Um outro aspecto a ser considerado é que o surgimen-to do escândalo midiático está relacionado com transfor-mações sociais do mundo moderno, redefinindo as rela-ções entre a vida pública e a vida privada, uma vez queagora novas formas de visibilidade e publicização se fa-zem presentes, provocando novas relações entre escânda-lo e mídia e entre ações e interações sociais.

Autoridades públicas, a partir desse momento, adqui-rem um tipo de publicização que prescinde da presençafísica. Os governantes fazem uso da comunicação nãosomente como veículo para divulgação de decretos ofi-ciais, mas também como meio de produzir a sua própriaimagem. Portanto, a visibilidade presente nos dias atuaisé benéfica para que as lideranças políticas sejam conheci-das, mas também deve ser avaliada com desconfiança, poisagora a mídia torna visíveis todas as atividades que esta-vam �escondidas� do público em geral e cria um campocomplexo entre imagens e informações, fazendo que a vi-sibilidade midiática se torne difícil de ser controlada epossa se transformar numa armadilha para as lideranças.

O desenvolvimento temporal do escândalo midiáticotambém depende de outras instituições como justiça, ins-tituições políticas e até policiais. Tal escândalo possui umcomeço e um fim, e se desenrola como um enredo de no-vela, envolvendo os espectadores e leitores que acompa-nham todas as etapas da �história�. O término do escân-dalo pode implicar uma confissão, resignação, um inquéritooficial e um julgamento. Também existe a possibilidadedesse escândalo desaparecer gradualmente da mídia, umavez que já que não desperta interesse público.

Além dos indivíduos envolvidos diretamente no escân-dalo midiático, Thompson também ressalta que muitos ediferentes agentes e instituições podem estar envolvidosna criação e no desenvolvimento dos escândalos. Citacomo exemplo a polícia e outros agentes da lei que fre-qüentemente possuem um papel crucial, pois realizam in-vestigações das atividades que se tornaram �foco� do es-cândalo e contribuem com novos elementos, reforçando anecessidade de se investigarem esses escândalos.

Thompson pergunta: o que torna um escândalo um es-cândalo político? Um dos elementos que distingue o mero

escândalo do político é que a arena de discussão é outra,implica lideranças políticas que estão envolvidas com opoder político num �campo político� (definição utilizadapor Pierre Bourdieu). Os escândalos podem aparecer emdiferentes regimes políticos, desde os autoritários até aque-les em que predomina a democracia liberal. Porém, o re-gime que favorece a maior ocorrência dos escândalospolíticos é a democracia liberal, porque possui algumascaracterísticas que o diferenciam dos outros:- a política é um campo de forças em competição, orga-nizado e/ou mobilizado em torno de idéias, partidos e gru-pos de interesse;- a reputação dos políticos é importante porque prevale-ce uma institucionalização do processo eleitoral e, parase ascender ao poder e obter sucesso eleitoral, um doselementos-chave é gozar de boa reputação;- a relativa autonomia da imprensa;- as condições do poder político que favorecem a desco-berta de transgressões por rivais e opositores, visto queprevalece o princípio da lei.

Ocorrem, portanto, escândalos políticos que envolvemquestões sexuais, questões financeiras/corrupção e escân-dalos de poder, mostrando o mau uso ou abuso do poder.

ESCÂNDALOS POLÍTICOS QUE ECLODIRAMNO GOVERNO DE FHC

Será dentro desta ótica, deste enfoque, que serão estuda-dos dois casos exemplares de escândalos políticos divulga-dos na última gestão do governo de Fernando Henrique Car-doso: a violação do painel do Senado e o caso Sudam(Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia),Banpará (Banco do Estado do Pará) e TDAs (Títulos da Dí-vida Agrária), envolvendo o senador Jader Barbalho.

Para analisar os escândalos políticos optou-se por uti-lizar as revistas semanais ISTOÉ, da Editora Três, e a Veja,da Editora Abril. As duas revistas veicularam esses es-cândalos em várias edições e disputaram arduamente asmanchetes de maior impacto, divulgando documentos einformações inéditas sobre os dois políticos envolvidosnos casos: ACM e Jader Barbalho. Enquanto a Vejacentrava suas denúncias na figura de Jader Barbalho, aISTOÉ, centrava-as em ACM.

Como compreender o atual momento político brasileirono qual eclodem denúncias de escândalos envolvendo cor-rupção, quebra de decoro parlamentar, e outras tantas? Vá-rias explicações podem ser dadas e dentre elas selecionamos

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as falas recentes de três atores políticos: o presidente FernandoHenrique Cardoso, o ex-governador do Ceará, Ciro Gomes,e o historiador José Murilo de Carvalho.

Numa entrevista dada ao jornal O Estado de S.Paulo(18/07/01:A4) o presidente Fernando Henrique Cardosoafirma que: �O novo que vivemos é que talvez pela pri-meira vez na nossa história a sociedade está passando alimpo, e o governo está deixando passar a limpo. Em vezde pensar que aumentou a taxa de corrupção, o que há éum reconhecimento (...) A sociedade está cobrando mais(...) O que está acontecendo é que o que chama a atençãoé aquilo que aqui se chama de �escândalos�(...) a mídia noBrasil tem a capacidade de antecipar processos e, assim,participa da criação de situações�.

Uma matéria veiculada pelo jornal Folha de S.Paulo(20/07/01:A7) relata que Ciro Gomes está sendo proces-sado pela Advocacia Geral da União, por ordem deFernando Henrique Cardoso, por ter dito que o presiden-te �levou a corrupção ao centro do poder no Brasil�, e oex-governador, ao ser questionado de ter feito esta denún-cia, diz, numa carta enviada à Executiva Nacional doPSDB, que reafirmará em juízo �sua doída convicção deque a corrupção exorbitou no Brasil nos últimos anos poromissão deste governo�.

José Murilo de Carvalho por ocasião do lançamento deseu livro, Cidadania no Brasil � o longo caminho, foi entre-vistado pelo jornal O Estado de S.Paulo (15/07/01:D4), fa-zendo a seguinte avaliação: �Quanto à corrupção, não creioque haja mais dela hoje do que antes. Violência e corrupçãosão endêmicas no País há 500 anos, são o nosso feijão-com-arroz social. A novidade é que está havendo mais denúnciase investigações dos grandes ladrões � políticos, juízes, em-presários �, em parte graças à melhoria na atuação do Minis-tério Público. É humilhante para o brasileiro, mas é um pas-so à frente para o cidadão�.

Quais as verdades expressas por esses três atores polí-ticos? É a sociedade que mudou? A mídia que cria fatos?O governo FHC que foi omisso tendo em vista manter asua base governista? Ou a ação contra a corrupção foiproduto da atuação mais contundente do Ministério Pú-blico? Todas essas ponderações devem ser levadas emconta para tentar explicar os escândalos políticos que ire-mos analisar no Senado Federal, em dois momentos deum mesmo processo: a violação do painel de votação doSenado envolvendo os senadores Antonio Carlos Maga-lhães (PFL) e José Roberto Arruda (PSDB) e o caso doBanpará, Sudam e TDAs, comprometendo o senador JaderBarbalho (PMDB).

Pode-se afirmar que a sociedade brasileira começou amudar, não tolerando mais casos de corrupção e desmandospor parte das autoridades públicas no período pós-rede-mocratização e, principalmente, na gestão do presidenteFernando Collor de Mello (PRN), eleito diretamente pe-los cidadãos brasileiros e derrubado através de um pro-cesso de impeachment, pelas mãos do Congresso Nacio-nal e pelo povo brasileiro. As razões do processo queculminou no impeachment são várias, conforme literatu-ra especializada, mas deve-se dizer que uma razão moti-vou a ação: indícios fortíssimos de corrupção em seu go-verno. Seu impeachment foi movido tendo por base aimprobidade administrativa.

Também é desse período a Constituição Brasileira de1988. Dentre as várias mudanças, uma se destaca: as alte-rações nas atribuições do Ministério Público, pois a par-tir desse momento ele ganha importância vital. �Confor-me o capítulo IV, seção I do capítulo III �Do PoderJudiciário� da Constituição da República Federativa doBrasil, promulgada em 1988, que rege sobre as funções eatribuições do Ministério Público, este poder é indepen-dente, separado dos poderes Executivo e Judiciário. Cabeao Ministério, dentre outras funções, �promover o inqué-rito civil e a ação civil pública, para a proteção do patri-mônio público e social� (Constituição, p.92). Agindo nessesentido, os procuradores ganharam destaque e transfor-maram-se, aos olhos da população, em paladinos da jus-tiça e benfeitores dos cidadãos� (Chaia e Teixeira, 2000:34-35).

A mídia também adquire importância nesse momentopois, além de contar com maior liberdade para se expres-sar, o jornalismo assume uma postura de jornalismoinvestigativo, sempre atento, denunciando, criando efeti-vamente fatos, e atuando em muitos casos como colabo-rador do Ministério Público e da Polícia.

O GOVERNO FHC E O LEGISLATIVO

Quando Fernando Henrique Cardoso assumiu a presi-dência da República em 1994, através de uma aliança elei-toral entre o PSDB e o PFL, articuladores políticos de seugoverno se aproximaram do PMDB oferecendo ministé-rios e importantes postos no governo federal, visando ga-rantir maioria parlamentar no Congresso Nacional e via-bilizar a implementação das reformas estruturais queestavam sendo propostas pelo novo governo.

Com o sucesso do Plano Real e a alta popularidade deFHC, não foi difícil para os tucanos ampliarem a base

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governista com a adesão do PPB. Além de o presidenteFernando Henrique Cardoso ter conseguido uma ampla maio-ria no Legislativo, o que lhe garantiu a aprovação de medi-das importantes para o seu governo, ele também aglutinoualgumas grandes agremiações partidárias em torno de seunome, conseguindo se reeleger para mais um mandato (1999-2002) à frente da presidência da República.

Ao formar uma base de sustentação parlamentar ideo-logicamente heterogênea, e com fortes contendas regio-nais, o governo federal também foi o fiador de uma com-posição política na qual o PSDB, PFL e PMDB passarama se revezar no comando do Senado e da Câmara dos De-putados desde o primeiro mandato de FHC. Os presiden-tes da Câmara Federal no período 1995-2002 foram: LuísEduardo Magalhães do PFL (1995-1996); Michel Temerdo PMDB (1997-1998 e 1999-2000); e, atualmente, a casaé comandada por Aécio Neves do PSDB, até o final de2002.

No Senado a presidência foi ocupada por grandes ex-poentes da política nacional: José Sarney do PMDB (1995-1996); Antonio Carlos Magalhães do PFL (1997-1998 e1999-2000); e Jader Barbalho do PMDB, que assumiu ocomando em fevereiro de 2001, ficando no cargo até ou-tubro de 2001.

A busca de harmonia nas relações entre os poderesExecutivo e Legislativo no Brasil guarda certa semelhan-ça em todos os níveis de governo. A formação dos minis-térios e secretariados e a distribuição do controle de cargosestratégicos na máquina pública refletem-se automatica-mente na constituição das bases de sustentação governis-ta no parlamento.

No âmbito federal, os estudos desenvolvidos por JoséEisenberg (1998) e Otávio Amorin Neto (1998) demons-tram que os governos que conseguiram maior estabilida-de nas relações com o parlamento foram aqueles que mon-taram seus ministérios a partir da formação de coalisõescom os partidos numericamente representativos no PoderLegislativo. A lógica adotada foi a de distribuir os cargosministeriais de acordo com o tamanho proporcional dasbancadas de partidos aliados.

Verifica-se, com isso, que o presidente FHC tem con-seguido, ao longo desses sete anos de governo, manter ocomando do Congresso Nacional entre os seus partidá-rios, o que também significa que o Executivo vem in-fluenciando na elaboração da agenda de trabalhos do Le-gislativo.

Porém, como os recursos existentes nem sempre sãosuficientes para contentar os diferentes interesses regio-

nais, algumas disputas em torno do controle de bens pú-blicos e do comando de órgãos estratégicos no Legislati-vo foram inevitáveis e colocaram a base governista emrisco. Na briga por fatias de poder, a base de sustentaçãodo governo FHC entrou em processo de erosão e líderespolíticos de alto calibre começaram a se atacar, revelan-do ao país alguns fatos até então circunscritos aos corre-dores da arena política.

Desse modo, o Senado passou a viver sua maior crisepolítica em 176 anos de existência. Entre junho de 2000 emaio de 2001, um senador foi cassado por suspeitas dedesvios de dinheiro público e outros dois renunciaram aosseus mandatos por quebra de decoro parlamentar. Alémdisso, o atual presidente da casa foi constrangido por co-legas a se licenciar do cargo em meio a uma série de de-núncias que também o envolve em desvios de dinheiropúblico.

Neste trabalho, o ponto de partida será a hipótese deque as disputas por recursos do Plano Plurianual (PPA),também conhecido como Projeto Avança Brasil, e os de-sacordos dos partidos governistas em relação à sucessãodas mesas diretoras nas duas casas legislativas, precipita-ram a eclosão da crise no Senado e trouxeram a públicouma série de informações até então restritas aos bastido-res da política e que passaram a ter a dimensão de um es-cândalo político.

A seguir, será discutido o enredo desse escândalo, dan-do destaque aos fatores que o provocaram, bem como aoscomponentes políticos advindos de todo o processo queenvolveu a renúncia de dois senadores e as suspeitas decorrupção que recaem sobre o atual presidente da casa.

OS PERSONAGENS E O ENREDO DACRISE NO SENADO

Antonio Carlos Magalhães (ACM), Jader Barbalho eJosé Roberto Arruda foram os principais personagens dacrise política que tomou conta do Senado Federal. Sena-dores experientes, com longas passagens pelo Executivo,e que possuem um traço comum: foram articuladores po-líticos do governo FHC em momentos decisivos para osinteresses de sua gestão.

Diferentemente do que se pensa, os problemas no Se-nado não tiveram origem na disputa pelo comando damesa diretora da casa durante o ano 2000. Os conflitosentre Jader e ACM se iniciaram em 1999, quando dis-putavam o controle da relatoria do Plano Plurianual(PPA) para o quadriênio 2000-2003, um conjunto de

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políticas sociais do governo que foi batizado de Pro-grama Avança Brasil.1

Com um volume de recursos em torno de R$1,1 trilhão,a disputa pela relatoria do PPA provocou uma verdadeiraguerra entre os dois parlamentares com a anuência dogoverno federal. De acordo com a revista ISTOÉ, �irrita-do com os pitos públicos que tem recebido de ACM,Fernando Henrique simplesmente estimulou Jader a me-dir forças com �Toninho Malvadeza��.

No decorrer dessa disputa, ambos já haviam protago-nizado uma série de trocas de acusações no melhor estilo�lavagem de roupa suja em público�. Jader acusou ACMde ser sócio do ex-banqueiro Ângelo Calmon de Sá, anti-go proprietário do falido Banco Econômico, numa empresasituada no paraíso fiscal das Ilhas Cayman. As ilações feitaspor ACM ao seu adversário também não eram novas; osenador baiano denunciou que Barbalho havia provocadoum desfalque no Banpará, no período em que governouaquele Estado (ISTOÉ, 29/09/99, no 1.565).

Derrotado por Barbalho, ACM iniciou um processo deisolamento político que fez aumentar ainda mais seu dis-tanciamento do Palácio do Planalto, apesar de continuarmantendo o controle de dois importantes ministérios: odas Minas e Energia, comandado por Rodolpho Tourinho,e o da Previdência Social, que tinha à frente o atual sena-dor Waldeck Ornelas. O governo federal, por sua vez, davasinais de maior aproximação com o PMDB em detrimen-to do PFL.

Paralelamente a essa conturbada disputa entre os doisgrandes personagens da política brasileira, seguiam asinvestigações sobre o escândalo da construção da sededo TRT de São Paulo, que envolvia o senador Luiz Este-vão do PMDB-DF com denúncias de participação numesquema de superfaturamento da obra do TRT (TribunalRegional do Trabalho) paulista e de desvio de recursos.Estevão, que havia sido sub-relator do PPA, estava sendoinvestigado pelo próprio Senado.

Em junho de 2000, após um ano e dois meses de pro-cesso, Luiz Estevão passou para a história política do paísnão só como o primeiro senador cassado, mas também pelofato de que o episódio da violação do painel com os vo-tos dos senadores ocorreu na sessão em que se votou aperda do seu mandato. O posicionamento de cada sena-dor, que deveria ter ficado em segredo, começava a serveiculado nos bastidores do poder pela voz da principalautoridade da Casa: o senador Antonio Carlos Magalhães.

No Senado, todos sabiam que ACM havia conseguido,de forma ilegal, obter a lista com o posicionamento dos se-

nadores naquela votação, mas ninguém questionava sua con-duta oficialmente. Por que isso? Estava caracterizada a sus-peita de quebra de decoro parlamentar envolvendo o sena-dor Antonio Carlos Magalhães, por que não investigá-lo?

As respostas para essas questões talvez estejam asso-ciadas à conjuntura política daquele momento, ainda ex-tremamente favorável ao senador baiano. Além de presi-dente do Senado, ele era tido como um dos homens maisfortes da política nacional por comandar o PFL, um dosprincipais pilares de sustentação parlamentar do governofederal. ACM usava de chantagens contra colegas e osdesqualificava, sempre transgredindo o Código de Éticae Decoro Parlamentar da casa e sem nunca sofrer qual-quer tipo de sanção por seus atos.

A imprensa que poderia trazer a público essas ques-tões estava mais interessada no emaranhado político en-volvendo a eleição das mesas do Senado e da CâmaraFederal, em que Jader e o próprio senador Antonio Carlosjá se agrediam mutuamente pelo controle da sucessão.

A violação do painel do Senado ainda não haviaganhado o status de escândalo político porque o enredode sua história ainda não era de domínio público. Numacasa legislativa onde sua principal autoridade mandava oscolegas �calarem a boca�, essas questões não tinham adimensão de uma transgressão. A posição de ACM eratão confortável a ponto de ele usar estrategicamente a su-posta lista para constranger os senadores que de algumaforma o contrariassem.

A SUCESSÃO NO CONGRESSO NACIONAL

A crise no Senado Federal acabou ganhando dimensãopública com a disputa pela sucessão da mesa diretora,protagonizada por Antonio Carlos Magalhães e JaderBarbalho. Após quatro anos à frente do comando da casa,ACM rejeitava a idéia de passar a presidência para o par-lamentar peemedebista, principalmente após ter sido der-rotado politicamente por Jader durante a escolha darelatoria do PPA.

Nessa briga ACM não estava sozinho, o PFL tambémhavia sido preterido pelo governo federal na sucessão daCâmara dos Deputados. Um acordo entre o PSDB e oPMDB acabou garantindo a presidência do Senado paraos peemedebistas e a presidência da Câmara dos Deputa-dos para os tucanos. Por isso, ACM começou a mover todosos esforços na busca de um nome alternativo ao de Jadere também no sentido de desqualificar moralmente o sena-dor paraense a fim de tornar sua candidatura inviável.

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A briga entre os dois estava se transformando num es-petáculo para a imprensa. Durante uma sessão do Sena-do, ambos acabaram levando suas divergências para a tri-buna e protagonizando um dos piores momentos da casa.ACM se referiu a Jader Barbalho como �Corrupto, ladrão,bajulador, truculento, mentiroso e indigno�. O senadorpeemedebista não deixou por menos e enfrentou o presi-dente da casa chamando-o de �Corrupto, ladrão, truculento,farsante e mentiroso�. Essa troca de farpas fez com que aimprensa nacional passasse a dar ampla cobertura ao pro-cesso sucessório no Senado.

Os principais telejornais noturnos levaram ao ar as ima-gens com a troca de insultos. As emissoras de rádio, comoa CBN e a Rádio Eldorado, trouxeram em suas programa-ções jornalísticas os discursos de ambos no momento emque se agrediram verbalmente. Os grandes jornais de cir-culação nacional deram destaque para o conflito, reprodu-zindo nas matérias os trechos em que trocaram acusações.

Apesar de haver punição prevista para a troca de insul-tos dessa natureza, nenhum dos dois senadores foi, efeti-vamente, alvo de qualquer processo interno.2 Esse era ape-nas o início de capítulos mais apimentados envolvendo asucessão, e a partir daí surgiu uma verdadeira guerra dedossiês que culminou no lançamento de livros em que cadaum procurava desqualificar moralmente o seu adversário.

Seguindo a trajetória de revelar as supostas mazelasda vida pessoal dos principais personagens do Senado, arevista Veja (25/10/2000, no 1.672) partiu para o ataquecontra o senador paraense. Em sua reportagem de capa,que trouxe a fotografia de um Jader Barbalho sisudo, acom-panhado da manchete �O senador de 30 milhões de reais�,destacou também que �nos últimos 34 anos, Jader Barbalhosó não ocupou cargos públicos durante 11 meses. Mas,apesar da labuta na política, conseguiu erguer uma fortu-na surpreendente�.

A revista demonstrou que o patrimônio do senadorpeemedebista saltou de R$ 61.200,00 (corrigidos em va-lores atuais) em 1974, para cerca de R$ 30.000.000,00 noano 2000. Obviamente, o peemedebista atribuiu ao sena-dor Antonio Carlos Magalhães a autoria do conteúdo queestava sendo veiculado na citada reportagem.

Apesar do impacto negativo sobre a sua imagem naopinião pública, Jader Barbalho continuou favorito nacorrida para a presidência do Senado. A repercussão dareportagem não trouxe qualquer estrago para a aliança deseu partido com o PSDB.

O tempo corria contra o senador baiano e não haviamais possibilidades de inviabilizar a articulação política

que se formou em torno do político paraense. Restou aoPFL lançar candidatos para marcar posição, pois sua der-rota era tida como inevitável. Para a Câmara dos Deputa-dos foi lançado o nome de Inocêncio de Oliveira do PFLe para o senado, Arlindo Porto do PTB.

A derrota do PFL se concretizou. Na Câmara, a vitóriafoi de Aécio Neves do PSDB que se elegeu com 55% dos512 votos, ficando o pefelista Inocêncio de Oliveira com23%. No Senado, Jader Barbalho obteve 51% dos 81 vo-tos apurados e venceu o candidato apoiado pelo PFL queficou com 35%.

Quem imaginava que as brigas entre ACM e Jader iriamparar por aí, se enganou. Desgostoso com mais essa der-rota, o senador Antonio Carlos Magalhães passou a ata-car o governo FHC e numa jogada política arriscada trou-xe de volta a público, mesmo que involuntariamente, ocaso da violação do painel do Senado.

Foi desse modo que a crise do Senado começou a ga-nhar o status de escândalo político, conquistando espaçona mídia e chamando a atenção da população justamentepelo fato de os senadores estarem protagonizando cenasque não combinavam com a função pública para a qualforam eleitos.

O PAINEL DO SENADO E ASRENÚNCIAS DE ACM E ARRUDA

Em 19 de fevereiro de 2001, o então senador AntonioCarlos Magalhães conversou reservadamente com os pro-curadores da República Luiz Francisco de Souza, Guilher-me Schelb e Eliana Torelly. Tinha como objetivo fazeruma série de denúncias contra o governo FHC e JaderBarbalho, requentar velhos assuntos como o caso Eduar-do Jorge, os desvios de recursos no Ministério dos Trans-portes e as suspeitas de corrupção sobre o seu principaldesafeto político.

O procurador Luiz Francisco de Souza gravou �secre-tamente� a conversa com ACM e logo em seguida reve-lou seu conteúdo para a revista semanal ISTOÉ. Na suaedição 1.639 (22/02/2001), a revista trouxe a público oconteúdo da conversa, dando início ao calvário políticodo senador baiano, outrora todo poderoso da República.A publicização dos �segredos� revelados por AntonioCarlos Magalhães fez com que o mundo se voltasse con-tra ele próprio.

Apesar de ter revelado muitas questões que já haviadito em outros locais públicos, como os corredores doSenado, a diferença foi que desta vez havia uma fita gra-

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vada. Nela, o próprio ACM afirmava ter conhecimento daexistência de uma lista com os votos dos senadores nasessão que cassou o senador Luiz Estevão em junho de2000 e revelava a suposta posição da senadora HeloísaHelena do PT contra a cassação de Estevão.

O procurador que revelou a conversa para a imprensapassou a ser tratado com reservas pelos seus próprios co-legas que chegaram a ameaçá-lo de não mais trabalhar comele. A própria imprensa nacional começou a tratar LuizFrancisco com descaso, colocando em dúvida a sua capa-cidade para o exercício da profissão. Alguns políticos otripudiaram chegando a propor o seu afastamento do car-go. Sem entrar no mérito da atitude de Luiz Francisco, foiinegável sua contribuição para o redirecionamento dosrumos políticos do país ao revelar publicamente a condu-ta de um dos homens mais poderosos da era FHC.

A ação do procurador Luiz Francisco trouxe à tona umaquestão muito cara para a vida contemporânea: os basti-dores da política possuem uma dinâmica própria e rara-mente os cidadãos são informados do que está sendo �tra-mado� pelos políticos, ou, em muitas ocasiões, nãoconseguem acompanhar nem mesmo as atividades rotinei-ras com dimensão mais pública.3

O Ministério Público ganha visibilidade e mais auto-nomia a partir de 1988, conforme apontado anteriormen-te. Rogério Bastos Arantes, em sua pesquisa sobre o Mi-nistério Público e política no Brasil (Arantes, 2000:55),afirma que �(...) a garantia de independência no exercíciode suas funções tem permitido que promotores e procura-dores de justiça atuem com extrema desenvoltura e auto-nomia � particularmente nos conflitos de dimensão sociale política � contra as pressões externas, e até mesmo in-ternas, advindas dos estratos superiores da instituição�.

Existe, portanto, um problema de desconexão entre a ati-vidade política e toda a sociedade. É exatamente nesse vazioque a imprensa e o Ministério Público vêm ocupando o es-paço por trazerem para a população aquilo que é restrito,que é segredo e que é negociado nos bastidores da política.

A revelação dos fatos pela revista ISTOÉ trouxe con-seqüências imediatas: estava caracterizada a possibilida-de de quebra de decoro parlamentar por parte do ex-pre-sidente do Senado.4 Além disso, o presidente FernandoHenrique Cardoso demitiu os dois ministros indicados porACM e em seguida também afastou todas as pessoas desua confiança que ainda ocupavam cargos em algum ór-gão do governo federal.

Presidido por Jader Barbalho, o Senado contratou umgrupo de peritos vinculados à Unicamp para avaliar a pos-

sibilidade do painel ter sido violado. Paralelamente, An-tonio Carlos Magalhães adotou como estratégia negar todoo noticiário veiculado pela imprensa e colocar em dúvidaa veracidade das fitas. Por outro lado, a própria revistaISTOÉ se encarregou de contratar um perito para avaliara possibilidade de as gravações não serem verdadeiras.

A situação do senador baiano se complicou ainda mais,em 3 de março de 2001. A revista ISTOÉ, em sua ediçãono 1.640, publicou a transcrição de vários trechos da con-versa de ACM com os procuradores da República e di-vulgou o laudo elaborado pelo perito Ricardo Molina con-firmando a autenticidade das fitas.

Todo o material coletado pela revista, mais o fato deos peritos contratados pelo Senado também terem confir-mado a possibilidade de violação do painel de votação,acabou se constituindo em provas contra a versão dadapor Antonio Carlos Magalhães. A abertura de uma Co-missão de Ética tornou-se inevitável, pois a mentira foiconsiderada uma falta grave e isso reforçou ainda mais anecessidade de verificar a possível quebra de decoro par-lamentar.

Instalada em 13 de março, os primeiros depoentes naComissão de Ética foram os jornalistas da ISTOÉ, AndreiMeireles, Mino Pedrosa e Mário Simas Filho, que confir-maram o teor das fitas. Na mesma sessão foram tomadosos depoimentos dos procuradores Guilherme Schelb eEliana Torelly, que não responderam às perguntas elabo-radas pelos senadores.

A partir daí, uma série de contradições marcou os de-poimentos de funcionários do senado e do Senador Anto-nio Carlos Magalhães. A ex-diretora de informática doSenado, Regina Borges, em seu primeiro depoimento ne-gou que houvesse violado o painel e também rejeitou ahipótese de que algum senador tivesse lhe pedido que rea-lizasse tal serviço.

Constrangida pelo fato de outros funcionários do se-nado não terem confirmado a sua versão, Regina Borgesvoltou atrás em relação ao depoimento anterior e revelouque havia copiado a lista de votação a pedido do senadorJosé Roberto Arruda do PSDB, então líder do governo, eque ele havia feito a solicitação em nome do presidenteda casa, o senador Antonio Carlos. Sua declaração caiucomo uma bomba em Brasília e a partir daquele momentoACM não seria mais o único réu.

O caso passou a ganhar a conotação de um evento degrande interesse público para a imprensa. Duas emissorasde canal fechado transmitiram os depoimentos dos sena-dores e da ex-diretora de informática ao vivo: a Globonews

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e a TV Senado. As principais redes de televisão tambémabriram espaços na sua programação para o escândalo: aTV Cultura e a Rede Bandeirantes entraram ao vivo nomomento dos principais depoimentos e as redes Globo,Record, RedeTV e SBT passaram flashes do Senado emvários momentos de suas programações. As emissoras derádio também reproduziam os depoimentos diretamentedo local em que se reunia a Comissão de Ética.

O fato de a imprensa ter dado holofotes ao caso rom-peu com o hiato entre a população e os fatos que estavamacontecendo no Senado. Foi essa cobertura mais explíci-ta que impediu a possibilidade de se �costurar� qualqueracordo político para salvar os dois senadores. As investi-gações em curso ganharam visibilidade e todas as decla-rações sobre o caso eram calculadas para que não hou-vesse prejuízo na opinião pública.

Desse modo, todos os envolvidos com o escândaloestavam dialogando não apenas com os seus colegas noSenado, mas também com um vasto contingente popula-cional que passou a acompanhar as sessões da Comissãode Ética como se fosse um filme, de cuja história já sesabia o começo e o desenrolar, restando apenas descobrirqual seria o seu final.

No plenário do Senado, no dia de 17 de abril, AntonioCarlos Magalhães afirmou aos colegas que: �não recebilista nenhuma nem me foi entregue por ninguém lista al-guma� (Veja, 02/05/2001, no 1.698).

Também indignado com o envolvimento de seu nomepor Regina Borges, José Roberto Arruda subiu à tribunado Senado em 18 de abril para afirmar que: �Nunca vinenhuma lista. Nunca a pedi nem a recebi. Nunca fui in-formado sobre ela. O senador Antonio Carlos Magalhãesnunca fez nenhuma consideração a esse respeito comigo�.Ao perceberem que o depoimento da ex-diretora de in-formática havia ganhado confiança da opinião pública,senadores resolveram mudar suas versões sobre os fatos,numa tentativa desesperada de conquistar a opinião pú-blica com o reconhecimento do erro que cometeram.

O primeiro a assumir publicamente que mentiu foi o se-nador José Roberto Arruda. Emocionalmente abalado, o jáex-líder do governo e também ex-tucano subiu à tribuna doSenado para confessar ter encontrado a ex-diretora do setorde informática, de quem recebeu a lista de votação, e tê-laentregue a Antonio Carlos Magalhães. Encerrou o seu dis-curso afirmando que �é inútil resistir à verdade� (Folha deS.Paulo, 24/04/2001, Caderno Brasil).

Ao pedir desculpas aos colegas e à população pelamentira, José Roberto Arruda estava tentando conquistar

a compaixão da opinião pública e a partir disso evitar suacassação. O próprio presidente Fernando Henrique Car-doso chegou a qualificar o discurso de seu ex-líder noSenado como �corajoso�, mas diante da repercussão ne-gativa acabou não comentando mais tal caso.

Alguns dias depois, foi a vez de ACM mudar a suaversão anterior e confessar ter recebido a lista do senadorJosé Roberto Arruda, verificado voto por voto e depoisdisso afirmou que a destruiu. Para tentar amenizar suaculpa disse não ter solicitado a relação com os votos dossenadores �nem direta nem indiretamente�. Apesar disso,ACM não conseguiu explicar porque mentiu para os cole-gas quando usou a tribuna do Senado para negar a exis-tência da lista, e também não foi convincente ao justificarnão ter tomado providências para investigar a violação dopainel por �razões de Estado�. ACM, em seu depoimen-to, afirmou temer que a descoberta da violação do painelpudesse tornar nula a sessão que cassou Luiz Estevão.

Esse desmentido foi intensamente veiculado pelosmeios de comunicação, e muitos deles compararam osdepoimentos dados pelos senadores em diferentes momen-tos para mostrar os pontos de contradição existentes emcada um. Para a população a sensação que ficava era a desucessivas mentiras, a cassação dos senadores era inevi-tável e não haveria articulação política que fosse suficientepara barrá-la.

Na seção de Cartas da revista Veja, os leitores pude-ram se manifestar: �Os senadores Antonio Carlos Maga-lhães, José Roberto Arruda e Jader Barbalho pensam queos eleitores brasileiros são cidadãos de quinta categoria,eles fazem o que querem e o povo não entende nem acei-ta. Quero dizer para esses senhores que temos memória,sim, que não queremos mais a corrupção que assola o país.Eles que não venham se mostrar como mocinhos in-justiçados. Perto deles o juiz Lalau é mocinho de reca-dos� (Otavio Oliveira, Belém, PA � 02/05/01, no 1.698).

Assim, a Comissão de Ética, presidida pelo senadorRamez Tebet, do PMDB de Mato Grasso do Sul, concluiupela cassação dos dois senadores. Com o relatório elabo-rado por Saturnino Braga, do PSB, aprovado por 13 vo-tos a dois em 23/05/01, não restou outra alternativa aosenvolvidos senão renunciar ao mandato, caso contrárioteriam seus direitos políticos suspensos por oito anos.Assim, Arruda renunciou em 24 de maio e no dia 30 demaio de 2001 foi a vez de Antonio Carlos Magalhães.

A revista ISTOÉ, em sua edição no 1.652, comemorouafirmando que a �derrocada de ACM começou com a re-portagem de ISTOÉ que revelou as conversas do senador

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com procuradores da República�. Isso nos remete à se-guinte dúvida: por que a questão da violação do painelnão veio à tona logo após a cassação de Luiz Estevão, jáque ACM falava pelos quatro cantos do Senado que co-nhecia a tal lista? Talvez a revista tenha razão em arvorarpara si todo o mérito desse processo, pois foi ela quemconseguiu provas por meio �da voz do delator� e legiti-mada pelo Ministério Público, uma instituição que vemganhando credibilidade pública justamente por estar agin-do contra as mazelas do mundo político.

O CASO JADER BARBALHO

Todas as denúncias contra Jader Barbalho acabaramsumindo da agenda política da imprensa no período emque os casos dos senadores Antonio Carlos Magalhães eJosé Roberto ganharam maior visibilidade. Porém, issonão significou que as suspeitas de desvios de dinheiropúblico envolvendo o político paraense houvessem caídono esquecimento. Novamente, a revista Veja agiu comoum veículo de jornalismo investigativo, retomando o as-sunto.

Convém relembrar que foi a mesma revista que trouxe,em outubro de 2000, uma longa reportagem sobre a evo-lução do patrimônio de Barbalho, além de relembrar di-versos episódios que o envolveram com suspeitas de cor-rupção. Como o político paraense estava disputando apresidência do Senado, essas questões acabaram sendovistas como parte da estratégia de ACM em desgastá-lo.Com isso, nem os tucanos, que mantiveram o apoio à can-didatura Jader Barbalho, e muito menos a opinião públi-ca, informada sobre as tramas que envolvem os bastido-res da política, levaram a sério o que se falava sobre ele.

Por isso, o próprio Jader, além de desmentir publica-mente a reportagem da Veja na tribuna do Senado, vincu-lou-a a uma iniciativa de Antonio Carlos Magalhães. Essaestratégia deu certo enquanto ele disputava a presidênciado Senado e lhe trouxe mais alívio com a deflagração dacrise do painel eletrônico.

Porém, sua situação começou a se agravar no momen-to em que as fontes oficiais que investigavam os desviosde recursos no Banpará e na Sudam concluíram pelo en-volvimento do senador. Mesmo assim ele insistia em des-mentir qualquer envolvimento do seu nome com os cita-dos casos.

Sobre a incompatibilidade de seu patrimônio com a suarenda, denunciada pela Veja (02/05/2001, no 1.698), Jadertentou por meio de uma auditoria da empresa Boucinhas

& Campos rechaçar as acusações de enriquecimento ilíci-to. Mas a própria revista se encarregou de desmentir aversão do senador ao verificar as contradições existentesnas informações que foram analisadas pela auditoria comas da declaração de patrimônio feita pelo próprio senadorno TRE (Tribunal Regional Eleitoral) paraense. Configu-rava-se, assim, uma primeira contradição em relação aodiscurso proferido por ele na tribuna do Senado na tenta-tiva de se defender das acusações da revista Veja.

Com relação à acusação de desvios de recursos daSudam, Jader negava-os e também qualquer tipo de liga-ção com os superintendentes que haviam sido demitidospor corrupção. Recaía sobre o senador a suspeita da co-brança de um �pedágio� de 20% para que os projetos en-viados à Sudam fossem aprovados.

As investigações acabaram levando a um grandefraudador da Sudam, o empresário José Osmar Borges,que havia se beneficiado de seis projetos aprovados noórgão e estava sendo acusado de desviar R$133 milhõesda instituição. Um documento levantado pela revista Veja(18/04/2001, no 1.696) na Junta Comercial do Pará colo-cou Jader Barbalho como sócio do possível fraudador.Mais uma vez, as versões do senador eram desmentidaspelo veículo de comunicação, corroborando ainda maisum pedido de quebra de decoro parlamentar por mentirem público.

Corre ainda contra o senador paraense outras duas de-núncias: a venda fraudulenta de TDAs no período em queele era ministro; e de ter participado de um esquema queprovocou um rombo de R$ 10 milhões no Banpará.

Quanto aos TDAs, eles se referiam à desapropriaçãode uma fazenda no Estado do Pará que só existia no pa-pel. Apesar de negar sua participação na operação frau-dulenta, o senador teve sua versão contestada por outraspessoas que participaram do �negócio�.

Com relação ao caso Banpará, a mesma revista Veja(02/05/2001, no 1.698) trouxe documentos mostrando a exis-tência de recursos que foram desviados para as contas cor-rentes de Jader Barbalho e de seus familiares. Ao tentar sedefender, o senador alegou que o relatório do Banco Centralnão o incriminou. No mesmo dia, Gustavo Loyola, ex-presi-dente do Banco, afirmou que o nome de Jader só não consta-va da folha de rosto do relatório, pois nas páginas seguinteso senador era citado pelo menos 17 vezes.

O caso Jader acabou tendo um desfecho semelhante aosde ACM e Arruda no que se refere ao seu encaminhamen-to no Senado. O procurador-geral da República já solici-tou a quebra do sigilo bancário do senador, retroativa aos

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anos 80, para investigar a venda irregular de TDAs. Se opedido for aceito pelo Supremo Tribunal Federal (STF),o órgão também deverá solicitar a abertura de processojudicial (Veja, 01/08/2001, no 1.711).

Foi essa série de desmentidos das versões dadas porJader Barbalho que se transformou no principal motivopara a convocação de uma Comissão de Ética para ava-liar a existência, ou não, da quebra de Decoro Parlamen-tar por parte do político paraense.

Com isso, se iniciou um rápido processo de debilita-ção política de Jader. Em menos de seis meses, Barbalhoviu sua condição de presidente do Senado ser substituídapela de senador-licenciado, e logo em seguida, com o en-cerramento dos trabalhos da Comissão de Ética que con-clui pela existência da quebra de Decoro Parlamentar, seviu forçado a renunciar para preservar seus direitos polí-ticos e tentar um retorno à vida pública disputando as elei-ções de 2002 como candidato ao governo do Pará ou atémesmo concorrendo a uma vaga no Senado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A crise política no Senado teve com um de seus focosde origem as disputas entre Jader Barbalho e AntonioCarlos Magalhães pelo controle dos recursos do progra-ma Avança Brasil. Se, por um lado, o governo federalconseguiu formar uma sólida maioria parlamentar aoaglutinar em torno de si forças políticas tão heterogêneas,por meio do oferecimento do controle de cargos públi-cos, por outro, o próprio Executivo se tornou refém dessaestratégia ao ver seus aliados praticamente paralisarem asatividades do Legislativo em função dos conflitos por in-teresses específicos por eles protagonizados. Fica claroque a estratégia de se construir uma maioria parlamentargovernista por intermédio da troca de cargos na máquinapública, ao mesmo tempo que pode trazer segurança natramitação dos projetos do Executivo, pode também sig-nificar o início do seu calvário. Os órgãos controladospelos parlamentares, se não sofrerem controle social, po-derão estar sujeitos a uso indevido ou até mesmo de se-rem alvos da ação de corruptos.

No caso da violação do painel do Senado, ficou evi-dente que sua visibilidade pela imprensa deu a ele o statusde escândalo político. Enquanto o assunto esteve confi-nado aos corredores do Senado, parecia ser mais umadas �compreensíveis� atitudes de um presidente da casaque já estava habituado a dirigi-la como se fosse um ór-gão de sua propriedade. Até que o caso chegasse a pú-

blico, os próprios senadores não o consideravam uma fal-ta grave.

Também é importante lembrar, foi na tentativa de ACMrevelar alguns �segredos� comprometedores da reputaçãode personalidades públicas, por ter se sentido preteridopelo governo federal na distribuição de recursos públicose no controle do comando do Senado, que essas questõesganharam toda a repercussão. Aqui ganha força a tese deque os conflitos podem levar à revelação de �segredospúblicos� e torná-los visíveis aos olhos de todos. Não fosseessa contenda malresolvida entre ACM, Jader e o gover-no federal, talvez a população não soubesse de tudo o quehoje tem sido revelado publicamente.

Destaca-se também, que em ambos os casos estudados,a imprensa e o Ministério Público tiveram um papel fun-damental na mobilização da opinião pública. Coube aosmeios de comunicação e ao Ministério Público ocupar umespaço vazio entre a arena política e a sociedade. Com arepercussão dos fatos trazidos a público, tanto a imprensacomo o Ministério Público acabaram se transformando,aos olhos da população, em entidades fiscalizadoras dosinteresses da sociedade.

Como os cidadãos pouco sabem sobre o que realmenteocorre nos centros decisórios do poder e cada vez maisdesconfiam das boas intenções da classe política, a im-prensa e o Ministério Público acabaram se tornando refe-rências positivas justamente por andarem em tensão como mundo político e revelarem não só as mazelas de sena-dores, como também as tramas que muitas vezes percor-rem as entranhas do poder.

O aparecimento de �escândalos midiáticos� é resulta-do de um jornalismo investigativo e possui pontos positi-vos e negativos. Por um lado, a divulgação desses escân-dalos provoca um aumento da fiscalização das atividadespolíticas, forçando que sejam criados instrumentos paraseu controle, e por outro, a cobertura desses escândalospode levar a uma generalização dos �maus exemplos� depolíticos, provocando descrença nas instituições, consi-deradas como inoperantes e custosas.

Essa descrença pode ser apreendida na última pes-quisa feita pelo Ibope, quando foram entrevistadas 5.300pessoas em nove capitais e interior de São Paulo. Aoserem perguntados se os políticos se preocupam com obem-estar da população, o eleitorado de algumas capi-tais demonstrou que acredita muito pouco no políticobrasileiro: Brasília 2,98%; Porto Alegre, 3,21%; Reci-fe, 4,53%; Rio de Janeiro, 5,42%; São Paulo, 5,48%;Curitiba, 6,06; Belo Horizonte, 6,39%; Fortaleza,

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6,79%; Salvador, 7,33%; São Paulo (interior), 8,87%(Veja, 25/07/01, no 1.710).

Portanto, existe uma complementaridade dos campospolítico e midiático. A alimentação dos escândalos políti-cos também se deve à concorrência política. No caso es-pecífico deste estudo, pode-se afirmar que a guerra dedossiês obedeceu a um objetivo político de isolar ACMdo poder. O caso Jader Barbalho é rescaldo desse proces-so e sua retirada de cena também é necessária.

O caso Jader Barbalho vincula-se a um dos principaisproblemas decorrentes da construção de uma maioria par-lamentar por meio da troca de postos na máquina pública.Essa estratégia de formação da base governista fragilizao controle do Legislativo sobre a administração pública,pois o parlamentar que deveria atuar como um fiscal dobom uso dos recursos públicos acaba se tornando parteintegrante do Poder Executivo.

Se o governo dessa forma consegue aprovar seus pro-jetos no Legislativo, ele deixa, no entanto, os bens públi-cos sob o controle de políticos que na maioria das vezesagem orientados por seus interesses pessoais e eleitorais.Com isso, as fronteiras entre os interesses público e pri-vado não ficam bem-definidas.

O ex-senador Antonio Carlos Magalhães, que comoautoridade política com poder era ouvido constantementepela mídia e considerado fonte privilegiada, recolheu-seestrategicamente na Bahia (�a Bahia está comigo�), desa-pareceu dos noticiários e somente foi relembrado por oca-sião do episódio Jader Barbalho, aparecendo para reafir-mar suas denúncias contra este político.

Os escândalos políticos ganham destaque na democra-cia exatamente por ser um regime político em que os con-flitos e atritos políticos se tornam mais presentes e visí-veis. A concorrência política e a busca de cargos tambémacelera as contendas políticas. No caso dos escândalos es-tudados, os confrontos ficaram claros e a necessidade dese derrotar o inimigo são explicitadas a todo o momento.As denúncias que envolveram Jader Barbalho já erampúblicas e a lista com os votos dos senadores por parte deACM já era conhecida. Mesmo assim, os senadores con-tinuaram atuando politicamente como se não estivessemenvolvidos nesses escândalos políticos, porque acredita-vam na impunidade tão presente na vida pública brasilei-ra e se resguardavam por trás da imunidade parlamentar.A reputação desses três senadores está comprometida se-riamente, pois as transgressões foram descobertas e divul-gadas publicamente pela mídia. Resta perguntar qual será ofuturo político desses personagens da nossa história.

NOTAS

E-mail dos autores: [email protected] e [email protected]. O Plano Plurianual é o principal instrumento de planejamento demédio prazo das ações do governo brasileiro. Sua aprovação precisapassar pelo Congresso.2. No inciso II do capítulo V do código de Ética e Decoro Parlamentardo Senado, está prevista a aplicação de censura escrita para quem pra-ticar ofensas físicas ou morais a qualquer pessoa, no edifício do Sena-do, ou desacatar, por atos ou palavras, outro parlamentar, a Mesa ouComissão, ou os respectivos presidentes.3. O procurador Luiz Francisco de Souza está sendo processado peloMinistério Público Federal por ter divulgado a gravação com ACM.Segundo a denúncia, houve a quebra de sigilo da atividade investigativa(Folha de S.Paulo, 03/08/2001).4. No inciso III do artigo 6o das medidas disciplinares do Código deÉtica e Decoro Parlamentar do Senado, é considerada falta grave pas-sível de punição: revelar conteúdo de debates ou deliberações que oSenado ou Comissão haja resolvido que devam ficar secretos.

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PODER MILITARentre o autoritarismo e a democracia

a Europa Oriental comunista, o controle sobreos militares era civil mas não democrático, umavez que os militares estavam submetidos ao con-

definição, o comandante-em-chefe das Forças Armadas.3

Refiro-me à militarização da política, mormente na segu-rança pública, durante os dois mandatos de governo deFHC. Obviamente, o fenômeno não está circunscrito aopresidente, pois contempla, inclusive, políticos dos maisdiferentes matizes ideológicos.4 Aqui, no entanto, nosconcentraremos nas decisões tomadas por FHC e nos cons-trangimentos que isso acarreta ao processo de consolida-ção da democracia brasileira.

OS FATOS

No último dia de março de 1997, o Jornal Nacional daTV Globo mostrou imagens que chocaram o Brasil. Ne-las, aparece um grupo de soldados da PMSP fazendo umaoperação de bloqueio na Favela Naval, em Diadema. OsPMs deram socos, pontapés, usaram o cassetete em pro-fusão e danificaram veículos dos que tiveram o azar deser parados. Para completar, fizeram uma vítima: MárioJosé Josino. Ele já havia sido liberado da revista, mas umPM, provavelmente para assustar ainda mais os passagei-ros do veículo liberado, resolveu atirar assim que o veí-culo partia. O tiro foi certeiro e tudo foi filmado.

Logo a seguir, um cinegrafista amador entregou à mes-ma emissora uma fita gravada, ironicamente, na Cidadede Deus, Rio de Janeiro. Nela, doze pessoas, inclusivemulheres, foram postas num paredão com as mãos para o

trole do Partido Comunista. O desafio das transições doautoritarismo para a democracia, portanto, foi despoliti-zar os militares (Barany, 1997). Na América Latina, comexceção do México,1 não havia controle civil nem demo-crático sobre os militares. Desse modo, as transições lati-no-americanas procuram desmilitarizar a política, tentan-do levar os militares a se concentrar em sua atividadeprofissional extroversa, ou seja, defesa das fronteiras doEstado. Entenda-se por militarização o processo de ado-ção e uso de modelos militares, conceitos, doutrinas, pro-cedimentos e pessoal em atividades de natureza civil, den-tre elas a segurança pública (Cerqueira, 1998).

Neste artigo, vamos analisar uma faceta do comporta-mento do presidente Fernando Henrique Cardoso que, namaioria das vezes, não levou em consideração sua baseparlamentar para tomar decisões.2 Suas iniciativas sãoprimordialmente de inspiração do Executivo que é, por

Resumo: A transição do autoritarismo para a democracia no Brasil deve procurar minimizar o poder militar. Oque se observa, contudo, é que os militares vão ocupando novos espaços na segurança pública. O artigo procu-ra mostrar de que modo isso vem ocorrendo ao longo dos dois mandatos do presidente Fernando HenriqueCardoso.Palavras-chave: democracia; militares; segurança pública.

JORGE ZAVERUCHA

Professor do Departamento de Ciências Sociais da UFPE, Pesquisador do CNPq

Querem o quê? Acham que a democracia resistirá até onde?Até onde querem levar o povo a descrer das instituições?

A luz amarela está se acendendo. Se a eleição ocorrer nesteclima, quem vai segurar o país?

Quem segura o mercado?

Presidente Fernando Henrique Cardoso.O Globo, 23/05/01

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PODER MILITAR: ENTRE O AUTORITARISMO E A DEMOCRACIA

alto e as pernas afastadas, em típica posição de revista.Como em Diadema, sem qualquer justificativa, os PMsespancaram suas vítimas por quase uma hora. Os policiaistorturavam com uma naturalidade de espantar: riam, con-versavam e se vangloriavam da violência.

FHC indicou o então secretário nacional de DireitosHumanos, José Gregori, para presidir o Grupo de Traba-lho sobre Reestruturação das Polícias, composto por no-mes importantes da sociedade civil. Dentre as justificati-vas para a criação do grupo de trabalho, a Portaria no 369,de 13 de maio de 1997, mencionou �que o atual modeloinstitucional de segurança pública foi estruturado, em suamaior parte, num período anterior à promulgação da Cons-tituição Federal de 1988, marco inicial do estado demo-crático de direito�.5 Conseqüentemente, faz-se necessá-rio adaptar o sistema de segurança pública à nova Carta,que se diz democrática.

A composição dos integrantes do grupo, contudo, difi-cultou no nascedouro a disposição da portaria de rever oatual modelo institucional de segurança pública. Dentreaqueles com experiência concreta no comando de ques-tões policiais, havia um representante da Polícia Civil, umda Polícia Federal, um advogado ex-secretário de Segu-rança Pública do Rio Grande do Sul e um coronel da re-serva da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Em compensa-ção, havia um oficial da ativa do Exército da InspetoriaGeral da Polícia Militar (IGPM) e mais quatro oficiais,entre coronéis e generais, da reserva do Exército, que ocu-pam ou ocuparam cargos governamentais na área de se-gurança pública. Dos secretários de Segurança Pública ematividade no país, o único escolhido foi o general NiltonCerqueira.

Essa foi mais uma promoção política concedida aogeneral Cerqueira, dessa vez pelo governo federal. A PMdo Rio de Janeiro sob Cerqueira matou com uma intensi-dade jamais vista no período pós-regime autoritário. En-tre janeiro e maio de 1995, a média de mortes da PM erade 3,2 pessoas por mês. Após o general assumir a Secre-taria de Segurança Pública, de junho de 1995 a fevereirode 1996, o número de mortes passou para 20,55 por mês.6

Esses números chegaram a alarmar uma comissão espe-cial de investigação da Organização dos Estados Ameri-canos. Essa comissão também verificou que o número demortos é três vezes maior que o número de feridos emcombate com a PM.7 Afora isso, Cerqueira sustentou umaversão mentirosa sobre a morte de Lamarca. Ele teriamorrido numa troca de tiros com o então major NiltonCerqueira. Com a descoberta do laudo necrológico de

Lamarca e exames dos ossos do mesmo, peritos compro-varam que Lamarca foi baleado de cima para baixo (posi-ção de quem está rendido), além de ter levado três tirospelas costas. De posse desse currículo, Cerqueira foi con-vidado e trocou as hostes malufistas pelo PSDB, partidodo presidente da República.

Ao escolher essa composição de nomes, o governo fe-deral deu mais poderes ao Exército do que às própriaspolícias para decidirem sobre o futuro... das polícias. Anomeação de Íris Rezende para o Ministério da Justiça ea eclosão das greves das polícias militares a partir de ju-nho de 1997 ofuscaram o trabalho da comissão. Íris ter-minou propondo uma emenda constitucional que contem-plou muito pouco do sugerido pela referida comissão.

FHC extinguiu a Secretaria de Planejamento de AçõesNacionais de Segurança Pública e, em seu lugar, criou aSecretaria Nacional de Segurança Pública (SNSP), diri-gida pelo general Gilberto Serra,8 com poderes amplia-dos. O Decreto no 2.315, de 4 de setembro de 1997, man-teve a tarefa da Secretaria de assistir o ministro da Justiçanos assuntos referentes à segurança, entorpecentes e trân-sito e adicionou-lhe a tarefa de assessorar o ministro deEstado em temas relacionados a órgãos de segurança pú-blica da União, exceto o Departamento de Polícia Fede-ral, bem como órgãos de segurança pública do DistritoFederal. Afora isso, cabe à SNSP, dentre outros deveres,apoiar a modernização do aparelho policial do país; am-pliar o sistema nacional de informações de justiça e segu-rança pública; efetivar o intercâmbio de experiências téc-nicas e operacionais entre os serviços policiais federais eestaduais e estimular a capacitação dos profissionais daárea de segurança pública. O Departamento de Assuntosde Segurança Pública, dirigido pelo general da reservaDyonélio Morosini, foi mantido. Os dois mais importan-tes órgãos de assessoramento federal na área de seguran-ça pública, portanto, encontravam-se nas mãos de milita-res federais.

O ministro da Justiça Renan Calheiros tentou conter aingerência do general Alberto Cardoso, então Chefe daCasa Militar da Presidência da República, na seara daPolícia Federal no âmbito do combate ao tráfico de dro-gas. O general patrocinou a nomeação do delegado JoãoBatista Campelo para diretor da Polícia Federal. Campeloera ligado aos serviços de informação e às atividades derepressão durante o regime militar (Freitas, 1999). Antesde tomar posse, por três dias Campelo foi acusado de tor-tura pelo ex-padre José Antônio Monteiro, pendurado numpau-de-arara por ordem do delegado em 1970.

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Pressionado, FHC demitiu Campelo, mas não o generalCardoso. Através de um bilhete redigido de próprio pu-nho, o general Cardoso enviou um fax ao governador deRoraima, Neudo Campos, com o seguinte teor: �Prezadogovernador, cumprimento-o pela decisão de convidar no-vamente o delegado Campelo para o cargo de secretáriode Segurança. Respeitosamente, Alberto Cardoso�.9 Umministro de Estado elogiando um torturador. Torturar éproibido em Brasília, mas em Roraima é digno de encômios.

Calheiros caiu e o novo ministro da Justiça, José CarlosDias, tratou de desmilitarizar a SNSP. Substituiu o gene-ral Serra pelo delegado da Polícia Civil Oswaldo Vieira,que chefiava o gabinete da Secretaria de AdministraçãoPenitenciária do governo Mário Covas. O general Serranão ficou ao relento e foi convidado pelo general AlbertoCardoso para ser o subsecretário da Secretaria NacionalAntidrogas (Senad). O secretário era o próprio generalCardoso.

Dias não ficou apenas nessa decisão. Entrou em atritocom o general Cardoso por almejar diminuir a influênciacastrense no âmbito da Polícia Federal (PF). A disputa sedava novamente em torno da tentativa da Senad de milita-rizar a Polícia Federal, ganhando primazia no combate aonarcotráfico.10 A liça chegou a ponto de o ministro Diasdenunciar que uma operação sigilosa da PF na fronteiracom a Bolívia teria vazado à imprensa, pondo em risco avida dos policiais. Dias suspeitou que isso fora obra dosubordinado do general Cardoso, Walter Maierovitch.

O ministro Dias também tentou reformular o CódigoPenal Militar (CPM) e o Código de Processo Penal Mili-tar (CPPM) editados, em 1969, pela Junta Militar quegovernava o país. Pela primeira vez desde o tempo doImpério, esses códigos seriam discutidos publicamente esubmetidos à votação no Congresso Nacional. O ministronomeou uma comissão revisora mas, ante pressões doSuperior Tribunal Militar, resolveu adiar os trabalhos paradepois de uma viagem oficial de três semanas que fariaao exterior (Leali, 2000). Foi nesse intervalo que termi-nou saindo do governo.

Com a saída de Dias, o assunto foi devidamente enga-vetado pelo novo ministro da Justiça, José Gregori. Des-se modo, o Brasil continua com uma das mais amplas ju-risdições militares sobre civis em tempos de paz, similarà de Franco na Espanha e à de Marcos nas Filipinas(Zaverucha, 1999). Com Gregori, a Secretaria Nacionalde Segurança Pública (SNSP) voltou às mãos de um mili-tar. Dessa vez da Aeronáutica: coronel da reserva PedroAlberto da Silva Alvarenga, indicado pelo general Car-

doso. A volta foi triunfal pois a SNSP ganhou status deMinistério do Interior. Ela foi reestruturada para coman-dar o Plano Nacional de Segurança Pública (PNSP) a partirde junho de 2000, com um orçamento de mais de R$ 1bilhão.

A Ação 121 do PNSP estipula que será estabelecido�no Conselho de Governo um Comitê de Acompanhamentoe Integração de Programas Sociais, no âmbito da Câmarade Relações Exteriores e Defesa Nacional, a fim de inte-grar as políticas sociais do Governo Federal e desenvol-ver estratégias para incrementá-las, por intermédio deações conjuntas�. O presidente do mencionado comitê éoutro militar. Trata-se do Secretário de Acompanhamen-to e Estudos Institucionais do Gabinete de Segurança Ins-titucional da Presidência da República (antiga Casa Mili-tar), o comandante-de-mar-e-guerrra José Alberto CunhaCouto. Desde 1985, nunca um general acumulou tantospoderes como os de Alberto Cardoso.

A ascendência militar pode ser sentida em outro episó-dio, o da Operação Mandacaru realizada no Estado dePernambuco, numa área conhecida como �Polígono daMaconha�.11 Iniciada no final de novembro de 1999 ecomandada pelo general Gilberto Serra, a operação cus-tou a bagatela de R$ 7,5 milhões, pois helicópteros voa-ram de Taubaté (São Paulo) e aeronaves da Aeronáuticachegaram de Santa Maria (Rio Grande do Sul). Um anoantes, o Ministério da Justiça rejeitara um projeto da Su-perintendência da Polícia Federal para combater o tráficono valor de R$ 695 mil (Francisco, 1999). Estranhamente,embora o sigilo seja uma variável fundamental nesse tipode operação, a presença de tropas federais foi anunciadacom antecedência, permitindo que os narcotraficantes maispoderosos tivessem tempo para fugir.

Uma verdadeira operação de guerra. Apesar de toda aparafernália, o tráfico continuou a imperar na região; tan-to que o general Serra voltou lá no dia 20 de março de2001 para acompanhar de perto as investigações sobre asligações telefônicas feitas da Secretaria de Saúde da cida-de de Salgueiro (PE). De lá partiram ligações para cidadessituadas na rota do tráfico internacional de cocaína.12

Chefiada pelo general Cardoso, a Casa Militar ganhoutantas atribuições que foi preciso, pela primeira vez nahistória republicana, a indicação de um general-de-briga-da para ajudar o general-de-divisão Cardoso. Afinal, alémde fazer a segurança presidencial, o general Cardoso che-fia o Senad e a Subsecretaria de Inteligência, embrião dafutura Agência Brasileira de Inteligência (Abin), é o se-cretário-executivo do Conselho de Defesa Nacional (CDN)

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e da Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional,além de ter acompanhado, em nome do governo, a grevedas polícias militares estaduais, em 1997, tarefa de com-petência do Ministério da Justiça.

Com a criação do Ministério da Defesa, o general Car-doso perdeu seu status de ministro de Estado. Por poucotempo, o tempo suficiente de chegar à mídia detalhes so-bre o �escândalo do grampo� envolvendo o presidente doBNDES, o ministro das Comunicações e o presidente daRepública, durante o período que antecedeu a privatiza-ção da Telebrás.

Embora fosse de competência policial, ao que tudo in-dica, o dossiê das fitas ficou nas mãos do general AlbertoCardoso por mais de um mês.13 Tudo em absoluto sigilo,até que a imprensa começou a publicar trechos das grava-ções e dos documentos. A oposição pressionou pela aber-tura de Comissão Parlamentar de Inquérito com o intuitode garantir a independência da investigação. Só então, 11de novembro de 1998, é que o governo decidiu transferira investigação para a Polícia Federal e o Ministério Pú-blico, em substituição ao comportamento policialesco dogeneral Cardoso.

Ante o desgaste do general Cardoso e o silêncio de FHC,o Exército resolveu manifestar-se oficialmente. Ou seja,deixar claro que o general Cardoso era muito mais um re-presentante do Exército no governo do que o contrário.Através do boletim oficial Informex, o Exército �reiterasua plena confiança na conduta ilibada do general Cardo-so e repele, com veemência, as insinuações dirigidas con-tra a pessoa desse honrado chefe militar�. Lembra, tam-bém, que além de chefe militar o general Cardoso ocupaum cargo de confiança do presidente. O que ele faz, por-tanto, é de conhecimento de seu superior (Nogueira, 1999).

Uma semana depois, FHC tratou de devolver ao Chefeda Casa Militar o status de ministro de Estado.14 Foi umamanobra política para evitar que o general Cardoso parti-cipasse de uma acareação com o coronel João Guilhermedos Santos, chefe da Abin no Rio de Janeiro, que contra-disse a versão do general sobre o grampo. Como o Exér-cito não toleraria que um delegado da Polícia Federal fi-zesse uma acareação, ainda mais entre um coronel e umgeneral, a solução foi reintroduzir o mencionado generalno ministério presidencial.

Por ser ministro de Estado, o general Cardoso tem foroprivilegiado. Isso significa que a decisão sobre qualquerinvestigação a seu respeito só pode ser tomada pela Pro-curadoria Geral da República, não cabendo recurso. Nodia 10 de abril de 2000, o procurador-geral da República,

Geraldo Brindeiro, determinou o arquivamento do pedi-do para que se investigasse a possibilidade de que o grampotelefônico no BNDES fosse do conhecimento ou tivessesido orientado pelo general Alberto Cardoso (Grillo,2000).15

Em julho de 1999, ocorreu uma greve de caminhonei-ros em protesto contra os preços dos pedágios e os custosdos fretes. O governo foi pego de surpresa pela magnitu-de do movimento que ameaçava o abastecimento de gran-des cidades do Sudeste. FHC ameaçou convocar o Exér-cito para desobstruir as estradas, sem antes esgotar o usode forças policiais, como pressupõe a Lei Complementarno 69. O governador Mário Covas, por sua vez, opôs-seao envio de tropas federais e usou a tropa de choque daPM paulista.

Como o governo foi pego de surpresa pela greve decaminhoneiros, a Casa Militar ganhou mais uma atribui-ção. O Decreto Presidencial no 3.131, de 9 de agosto de1999, estipulou:

I) que o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento paraSegurança das Comunicações (Cepesc) passasse a inte-grar a Subsecretaria de Inteligência da Casa Militar;

II) que as atribuições relativas aos estudos estratégi-cos do Centro de Estudos Estratégicos (CEE) da Presi-dência da República fossem transferidas para a Casa Mi-litar da Presidência da República. Com isso, a Casa Militar,oficialmente passou a ter também como tarefa gerenciaras crises que envolvem assuntos de segurança pública.

Logo em seguida, a Casa Militar seria extinta dandolugar ao Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Pre-sidência da República.16 Os titulares das quatro pastas daCasa Militar permaneceram no cargo: o subchefe militar,general Jorge Alves, o secretário nacional Antidrogas,Walter Maierovitch, o secretário de Acompanhamento eEstudos Institucionais, comandante-de-mar-e-guerra JoséAlberto da Cunha Couto, e o secretário de Inteligência,coronel Ariel Rocha de Cunto. Três militares em quatroposições, mesmo sendo o ministério de investidura civil.Para isso, o general Cardoso passou a ser considerado agre-gado. Ou seja, continuava na carreira militar mas requisi-tado pela Presidência pelo máximo de dois anos. Casoqueira continuar no cargo, o general Cardoso terá que irpara a reserva.

A preponderância de militares e o nome de Gabinetede Segurança Institucional são uma confissão acerca dograu de insegurança das instituições brasileiras.17 De fato,o artigo 6o, dentre outros, diz caber ao GSI �prevenir aocorrência e articular o gerenciamento de crises, em caso

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de grave e iminente ameaça à estabilidade institucional�.O GSI ganhou ainda o poder de �coordenar as atividadesde inteligência federal�.

A lei que aprovou a criação da Agência Brasileira deInteligência (Abin) determinou que ela ficaria diretamen-te subordinada ao presidente da República. Logo a seguir,FHC, via Medida Provisória no 1.994-4, de 13 de janeirode 2000, fez com que a Abin ficasse diretamente subordi-nada ao Gabinete de Segurança Institucional. Uma MP,portanto, mudou uma lei para dar mais poderes ao gene-ral Alberto Cardoso.

Além disso, há uma ausência de definição sobre os li-mites de atuação e capacidade de operação da Abin.18 Ogeneral Cardoso disse que em nenhuma circunstância oserviço de inteligência poderia ter uma função policial fa-zendo investigações �ainda que tacitamente, informalmen-te� (Antunes, 2000:179). No entanto, o general Cardosopatrocina uma lei que permite aos agentes da Abin anda-rem armados.

E mais. Afora o �escândalo do grampo do BNDES�,quando houve denúncias de que o ex-ministro da Defesa,Elcio Álvares, teria envolvimento com o crime organiza-do, quem passou a investigar as denúncias foi a Abin e,posteriormente, a Polícia Federal.19 Algum tempo depoissurgiriam denúncias de que a Abin investigara a vida deum ex-presidente da República, de um procurador do Mi-nistério Público, de jornalistas e até mesmo do filho deFHC. 20 Mais recentemente, o procurador-geral de Justiçado Mato Grosso pediu à Abin o relatório que acusa umbicheiro de ter ligações com o crime organizado (RibeiroJr. e Pinto, 2001).

Além de o Brasil ser a única democracia a ter um ge-neral da ativa no comando da principal agência de inteli-gência civil, temos um retrocesso de 30 anos. O SNI teveo mérito de separar competências: quem informava nãoera quem decidia. Hoje, as duas competências estão em-baralhadas, pois ambas as instâncias estão a cargo doGabinete de Segurança Institucional, ou seja, do generalAlberto Cardoso.

FHC apressou a criação do Gabinete de Segurança Ins-titucional após a greve dos caminhoneiros. Usou idênticocomportamento após os incidentes em Porto Seguro, du-rante as comemorações dos 500 anos do Brasil. A coor-denação geral da segurança coube ao comandante da 6a

Região Militar na Bahia. A Marinha ficou responsável peloapoio e pela inspeção de embarcações que participaramdas comemorações. À Aeronáutica coube o controle dotráfego aéreo, a segurança dos aeroportos e a guarda das

aeronaves militares, além do transporte da comitiva pre-sidencial. Já o Exército comandou a segurança da comiti-va que acompanhava FHC. As forças policiais entraramcomo apêndice do aparato castrense.21

Fustigado por hostis manifestações populares, FHC res-pondeu com o Decreto no 3.448, de 5 de maio de 2000.Através dele, criou o Subsistema de Inteligência de Segu-rança Pública, no âmbito do Sistema Brasileiro de Inteli-gência, com a finalidade de coordenar e integrar as ativi-dades de inteligência e segurança pública em todo o País,bem como de suprir os governos federal, estadual e muni-cipal de informações que subsidiem a tomada de decisõesnesse campo.

Embora seja um subsistema de segurança pública, fa-zem parte do mesmo, além dos Ministérios da Justiça eIntegração Nacional, nada menos que o Ministério da De-fesa, o Gabinete de Segurança Institucional e, como ór-gão central, a Abin. Poderão integrar o subsistema os ór-gãos de inteligência de Segurança Pública dos Estados,Distrito Federal e Municípios.

Foi instituído o Conselho Especial do Subsistema deInteligência de Segurança Pública vinculado ao Gabinetede Segurança Institucional e, também, presidido pelo di-retor-geral da Abin. No momento de sua criação, dos onzemembros permanentes desse Conselho, pelo menos setesão militares. Embora seja uma arena de Segurança Pú-blica, o Ministério da Defesa é o que possui o maior nú-mero de assentos no referido Conselho: cinco. Sendo pelomenos um de cada órgão de inteligência das Forças Ar-madas. O Ministério da Justiça, por sua vez, tem apenasdois representantes.

Todas as informações cedidas pelas Secretarias de Se-gurança Pública Estadual, portanto, cairão no colo dosmilitares federais. Mormente, numa época de enfrentamen-to de movimentos sociais. É a velha ótica do inimigo in-terno em pleno vigor. FHC pode ter criado um novo �mons-tro�. Toda a área federal de inteligência civil e militar,mais os serviços reservados das Polícias Militares (P-2)estão integrados em comando único. Esse arranjo institu-cional favorece que grupos autônomos venham a produ-zir informações, se já não o fazem, independentemente davontade do Presidente da República, Ministro, Governa-dor de Estado ou Prefeitos.

Em novembro de 2000, o Movimento dos Sem-Terra(MST) voltou a protestar defronte da fazenda Córrego daPonte localizada no município de Buritis (Minas Gerais),e de propriedade dos filhos do Presidente da República.A última tentativa de invasão fora realizada em novem-

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bro de 1999, quando 400 militantes do MST chegaram amontar acampamento na entrada da fazenda e saquearamum caminhão carregado que deixava a propriedade. De-pois disso, FHC passou a escritura da fazenda para seusfilhos.

Desconheço a existência de democracia que atribua àsForças Armadas, mais especificamente ao Batalhão daGuarda da Presidência (1.500 homens) e ao Regimentode Cavalaria da Guarda (1.300 homens), a função de fa-zer a segurança pessoal do presidente e vice-presidenteda República, e respectivos familiares. Para tomar contada fazenda da família Cardoso, o Exército torna disponí-veis 2.000 homens, tanques blindados, carros de combatee helicópteros de transporte. Esse contingente está em aler-ta permanente (Júnior, 1996). Ressalte-se que até o gene-ral Pinochet entregou sua proteção, bem como a do Palá-cio La Moneda, a uma força policial: os Carabineros. Ogeneral Hugo Banzer, eleito presidente da Bolívia em1997, por sua vez, afastou a polícia e colocou uma forçacastrense para fazer a segurança presidencial.

Alegando ser a fazenda um símbolo nacional, o gene-ral Alberto Cardoso, e não o ministro da Defesa, enviou250 militares federais para proteger a fazenda dos paren-tes do Presidente. Como símbolos nacionais são bandei-ra, moeda e hino, e a fazenda nem pertencia mais ao pre-sidente, a explicação foi de que o objetivo era preservar aautoridade de um dos poderes da República. Curiosamente,antes desse imbróglio, Antonio Carlos Magalhães haviaproposto que o Exército fosse usado nas atividades desegurança pública. FHC não aceitou a sugestão alegandoque o Exército era treinado para matar. Mas para defen-der a propriedade de sua família... Do mesmo modo, oExército se nega a combater o narcotráfico, sob a alega-ção de que seu papel não é o de polícia; no entanto, aceitaser usado como polícia contra o MST.

Caso esse raciocínio vingue, vamos supor que o próxi-mo presidente da República tenha um irmão que seja donodo Shopping Iguatemi (São Paulo), e o MST ameace in-vadir esse centro de compras. Deverá então o Exército serconvocado, sem que o governador de São Paulo seja con-sultado ou que a PMSP seja acionada primeiro?

Admita-se que seja correto o argumento do uso de tro-pas federais nessas situações. No ano de 2001, contudo, afazenda do ex-presidente do Congresso Nacional, JaderBarbalho, foi invadida por integrantes do MST. Nem mi-litares federais nem estaduais foram em seu socorro.Barbalho era o terceiro na linha sucessória, depois do vice-presidente e do presidente da Câmara. Sua fazenda, por-

tanto, tal qual a da família Cardoso, deveria ser conside-rada símbolo de poder (Rossi, 2001). O que houve, pois,em Buritis foi o uso do Exército como guarda pretorianado Presidente da República.

No dia 23 de setembro de 1997, FHC sancionou a Leino 9.503, que instituiu o novo Código de Trânsito Brasi-leiro. Antes do advento do regime militar de 1964, o poli-ciamento de trânsito era feito pela Polícia Civil. Instaura-do o regime de exceção, essas atividades foram transferidaspara a Polícia Militar. O novo Código, em vez de procu-rar restabelecer o status quo ante, manteve a decisão to-mada pelo regime autoritário. Estabeleceu que as PolíciasMilitares dos estados e do Distrito Federal passassem afazer parte do Sistema Nacional de Trânsito (Art. 7o, VI).

Afora isso, determinou que um representante do entãoMinistério do Exército fosse um dos membros do Conse-lho Nacional de Trânsito (Contran), órgão máximo nor-mativo, consultivo e coordenador do SNT. Tal como noCódigo Nacional de Trânsito de 1966, com a diferença deque o representante castrense teve sua posição fortaleci-da. Antes ele era um dos 21 membros do Contran; depoispassou a ser um dos sete (Art. 10). E mais. FHC nomeoudiretor-geral da Polícia Rodoviária Federal, o general Ál-varo Moraes. Um outro general, Zamir Méis, ligado aogeneral Alberto Cardoso, tornou-se superintendente daAgência Nacional de Petróleo (Sandrini, 2001). Sua mis-são: �combater� a adulteração de gasolina.

Várias outras situações poderiam ser citadas, mas gos-taria de finalizar com um exemplo recente que retrata comoo militarismo é um fenômeno amplo, regularizado e so-cialmente aceito. FHC foi convidado para a festa de 50anos do jornal carioca O Dia. Diante de sua baixa popu-laridade, o Presidente, como condição para assegurar suapresença, exigiu que os festejos fossem feitos em uma de-pendência militar. O lugar escolhido foi o salão da EscolaNaval.22 Fato sem precedente desde a época em que ErnestoGeisel era Presidente da República (Freitas, 2001).

Vimos na epígrafe que, segundo FHC, a luz amarelado fim da democracia está se acendendo.23 A fragilidadeda democracia brasileira também foi motivo de conside-rações do ministro da Saúde, José Serra. Ele declarou quea situação de hoje no Brasil lembra o Chile pré-golpemilitar de 1973 (Paiva, 2001). Como vimos, os militaresforam colocados em posições estratégicas no aparelho doEstado. Dotados de informações e capacidade de organi-zação, os militares saberão o que fazer caso a luz amarelaou de qualquer outra tonalidade venha a ser realmenteacesa.

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NOTAS

E-mail do autor: [email protected]. Até a recente vitória de Vicente Fox, as Forças Armadas mexicanasvinham sendo controladas pelo partido hegemônico, o PRI. A CostaRica não possui Forças Armadas.2. Muitas das retrógradas decisões políticas de FHC têm sido por elejustificadas como o preço a ser pago para a formação de maioria par-lamentar no Congresso. Por exemplo, recém-empossado, o presidentesancionou a anistia a Humberto Lucena, cujos direitos políticos ha-viam sido cassados pelo TSE.3. Como as Polícias Militares (PMs) são força auxiliar do Exército,prática inexistente no mundo democrático, as PMs também têm noPresidente da República o seu comandante-mor.4. Para mais detalhes, ver Zaverucha (2000b).5. Sobre a permanência de enclaves autoritários na Constituição de1988, ver Zaverucha (1998).6. �Gratificação aumenta assassinatos no Rio�. Folha de S.Paulo,08/04/97.7. �Média de mortos pela PM alarma comissão�. O Globo, 08/12/97.8. Serra acabara de sair da direção da Secretaria de Segurança Públicado governo de Cristóvam Buarque no Distrito Federal. Chegou a SNSPpelas mãos do então ministro da Justiça Nelson Jobim.9. �Bilhete revela proximidade entre general e delegado�. O Estado deS.Paulo, 25/06/99; �Campelo ganha apoio da Abin�, Jornal do Bra-sil, 24/06/99.10. Ao criar a Senad, FHC comprometeu-se internacionalmente nocombate às drogas. Tanto é que, em 24 de agosto de 1999, o generalCardoso e o diretor do Escritório Nacional para a Política de Controlede Drogas dos EUA, general Barry McCaffrey, assinaram acordo peloqual a Senad passou a coordenar todo o trabalho no Brasil das agên-cias norte-americanas de combate às drogas (Lana, 1999). Ou seja, FHCcriou um poder paralelo à Polícia Federal.11. O �polígono� é formado pelas cidades de Floresta, Carnaubeira daPenha, Belém do S. Francisco, Cabrobó, Orocó, Salgueiro, Santa Ma-ria da Boa Vista, Tacaratu, Petrolândia, Itacuruba, Caraibeiras e La-goa Grande.12. �General vai ao Sertão para acompanhar investigações�. Jornal doCommercio, 17/03/01.13. O general declarou que as fitas foram encontradas debaixo de umviaduto em Brasília. Muito tempo depois, diante de novas evidências,negou o que havia dito.14. �Chefe da Casa Militar recupera o status�. Correio Braziliense,12/06/99.15. Proposta elaborada por juristas a pedido do Ministério da Justiçaimpede esse tipo de engavetamento. No novo texto do Código de Pro-cesso Penal, caso aprovado, o procurador-geral da República perde aautonomia para arquivar as denúncias. Para promover o arquivamen-to, o chefe do Ministério Público Federal terá de obter a aprovação doConselho Superior do Ministério Público da União, órgão colegiadocomposto pelos subprocuradores da República.16. Medida Provisória no 1.911-10 de 24 de setembro de 1999.17. O caso mais recente foi o pedido do governador de Tocantins, emmaio de 2001, ao GSI do envio de tropas militares federais para debe-lar a greve da Polícia Militar. Mais uma vez FHC enviou o generalCardoso, em vez do ministro da Justiça, para representar o governofederal durante a crise. Pela primeira vez na história republicana, oExército atuou como agente político durante uma greve de PM. Quemnegociou o fim da greve foi o comandante militar do Planalto em vezdo governador Siqueira Campos. Ele abdicou de sua competência abrin-do o precedente.18. O general Cardoso destacou a adaptação do modelo canadense(Canadian Security Intelligence Service � CSIS) para a construção

da Abin. Mas, diferentemente do que foi proposto para a agência bra-sileira, a legislação canadense cuidou de definir com precisão os man-datos e os princípios segundo os quais é possível conduzir suas ope-rações e avaliar sua eficácia. As áreas de inteligência para a ativida-de de inteligência canadense podem ser resumidas a sabotagem e es-pionagem, atividades influenciadas do estrangeiro; violência e ter-rorismo político e subversão, sendo esta última cuidadosamente cir-cunscrita para estabelecer a diferença entre o dissenso legítimo e asações secretas e ilícitas que buscam minar o regime legalmente esta-belecido.19. O ministro da Justiça, José Carlos Dias, nem soube da investiga-ção da Abin. Entrevista com o autor, 30 de outubro de 2000.20. �O documento secreto da espionagem�. Veja, 22/11/00.21. Segundo Oltramari (2000), o governo federal gastou R$ 1,7 mi-lhão com as ações da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. Gastosmaiores do que todo o orçamento do Programa de Assistência a Víti-mas e Testemunhas Ameaçadas (R$ 1,1 milhão) do Ministério da Jus-tiça, previsto para o ano de 2000. A cifra equivale a 77% do total queo governo pretendeu gastar com o Programa de Saúde da Criança eAleitamento Materno (R$ 2,2 milhões) do Ministério da Saúde, atédezembro de 2000.22. Recentemente, FHC autorizara a compra do porta-aviões francês Foch.Assim sendo, enquanto a França diminuiu para um, o Brasil passou ater dois porta-aviões.23. Simultaneamente, o almirante Mario Cesar Flores, ex-ministro daMarinha no governo Collor, publicou artigo alertando sobre o fato de ademocracia brasileira estar sitiada (Flores, 2001). Flores e o coronel JarbasPassarinho foram nomeados por FHC, em 17 de dezembro de 1998, novosmembros do Conselho da República.

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O

CONSTRUÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DEINSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS

papel do orçamento participativo

s movimentos de redemocratização que ocorre-ram na América Latina e no Leste Europeu nosanos 80 tomaram caminhos diferenciados, geran-

cado por alto grau de desigualdade social, econômica e re-gional (Arretche, 2000; Souza, 1997, por exemplo). Há tra-balhos que chamam a atenção para os riscos de os gover-nos locais promoverem políticas de exclusão social nacompetição por investimentos (Melo, 1996). Outra abor-dagem mostra que, em certas circunstâncias, a centraliza-ção pode ser essencial para a implementação de programasgovernamentais; os sociais principalmente (Tendler, 1997).

No que se refere à participação da comunidade, muitosgovernos locais no Brasil estão envolvidos no desenvolvi-mento desses mecanismos, que vão desde a criação de con-selhos comunitários até o chamado orçamento participativo(OP). O OP tem sido visto, tanto na literatura nacional quantona estrangeira, como um exemplo de instrumento de pro-moção do �bom governo� ou da boa governança urbana.

O entusiasmo e os relatos de sucesso sobre o OP tra-zem alguns paradoxos. Por que certos governos locais ado-taram a política de ceder poder decisório aos mais pobres,em um país rotulado como clientelista e/ou elitista e queregistra déficits históricos de engajamento cívico? Por queos governos locais optaram por adotar políticas que bus-cam a participação no processo decisório, quando os mes-mos têm uma agenda congestionada de problemas locaisnão resolvidos em áreas como habitação, educação, saú-de, transporte, etc.? Por que, em um tempo em que o indi-vidualismo é visto como sinônimo de liberdade, foramadotadas políticas que estimulam a cooperação e o acesso

do resultados e experiências diversos. Apesar de essespaíses partilharem agendas comuns, existem experiênciase problemas que os distinguem em termos de prática de-mocrática. Sua agenda comum no que se refere à demo-cracia dá prioridade à construção ou reconstrução de ins-tituições democráticas. Essa agenda busca principalmenteenfrentar a corrupção, aumentar a participação da socie-dade no processo decisório sobre políticas públicas que asafetam diretamente e promover a transparência e a respon-sabilidade dos governos e dos gestores públicos. Em mui-tos países, essa agenda esteve associada à descentraliza-ção política e financeira para os governos subnacionais, oque significa que a tarefa de construção de instituições de-mocráticas não se restringe às instituições nacionais.

O Brasil é um exemplo em que a redemocratização e adescentralização caminharam juntas. No que se refere àdescentralização, já existe vasta literatura avaliando seusresultados, sobretudo na esfera local. Alguns desses traba-lhos fazem uma leitura otimista da descentralização, ven-do-a como capaz de �reinventar o governo� e aproximá-loda comunidade pela conciliação de demandas coletivas eindividuais, além de aumentar a governança (�bom gover-no�) local. Outros mostram certo ceticismo quanto às pos-sibilidades virtuosas da descentralização em um país mar-

Resumo: Na maioria das democracias recentes, governos e segmentos da sociedade vêm buscando mecanis-mos para fortalecer as instituições democráticas. Com esse objetivo, várias experiências têm sido desenvolvi-das para aumentar a participação dos cidadãos no processo decisório de políticas públicas, em especial as deabrangência local. Uma dessas experiências é a do orçamento participativo. Este artigo analisa a literaturasobre o tema, particularmente a relativa às experiências de Porto Alegre e de Belo Horizonte.Palavras-chave: democracia; governo local; orçamento participativo.

CELINA SOUZA

Professora da Universidade Federal da Bahia, Pesquisadora visitante da USP

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CONSTRUÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DE INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS...

a bens coletivos para grupos historicamente excluídos doprocesso decisório? Por que, em um tempo marcado pelodesencantamento com os sistemas políticos e com os polí-ticos, a comunidade responde positivamente ao chamadodos dirigentes para participar? Por que, em um tempo ondea opção da �saída� (exit) é mais valorizada que a da �voz�(voice) � na feliz síntese de Hirschman (1970) � as expe-riências participativas têm crescido? Por último, em umtempo em que a literatura dominante nas ciências sociaisargumenta que os indivíduos (políticos, burocratas e elei-tores) são movidos pelo auto-interesse, por que atores co-letivos e individuais encontram incentivos à cooperação?

Este artigo analisa parte da literatura produzida sobre oOP, principalmente aquela sobre as experiências de PortoAlegre e de Belo Horizonte, debatendo as principais tesese argumentos encontrados nessa literatura sobre seu papele objetivos. O artigo argumenta que, embora algumas te-ses e resultados sobre o OP de Porto Alegre e o de BeloHorizonte requeiram pesquisas mais aprofundadas, a ex-periência tem permitido que os segmentos de menor ren-da, que moram em áreas periféricas das cidades, possamdecidir sobre as prioridades de investimentos em suas co-munidades. Apesar de os recursos destinados ao OP aindaserem reduzidos, vis-à-vis outros itens do orçamento, aexperiência tem mostrado que em um país como o Brasil,onde o acesso ao processo decisório é altamente desigual,o OP é uma das poucas alternativas capazes de transfor-mar os investimentos públicos de favores em direitos ediminuir o desequilíbrio do poder decisório. Por outro lado,existem ainda lacunas na literatura que analisa o OP, emespecial investigações mais aprofundadas sobre os tradeoffsde políticas que visam, no longo-prazo, a formas deautogoverno, bem como melhor conhecimento sobre asrazões que explicam o sucesso do OP em algumas cidadesbrasileiras. Isso porque mudanças nas relações de poderrequerem complexa engenharia política e a combinação decondições políticas, sociais e econômicas que ainda nãoestão, a meu ver, suficientemente claras.1

O artigo primeiro descreve algumas experiências departicipação comunitária anteriores aos OPs de Porto Ale-gre e de Belo Horizonte, assim como alguns fatores e po-líticas que facilitaram a introdução do OP. A seção se-guinte faz uma revisão da literatura que analisa as duasexperiências, apontando os pontos de consenso e dediscenso no que se refere a objetivos e resultados. A últi-ma seção avalia o OP, tentando chegar a algumas conclu-sões sobre seus principais resultados, debatendo as tesese os argumentos encontrados na literatura analisada.

ANTECEDENTES DOORÇAMENTO PARTICIPATIVO

Alguns fatores e políticas antecederam e facilitaram aadoção de políticas como o OP. O primeiro é a existênciade algumas experiências semelhantes, anteriores à rede-mocratização. O segundo é o aumento dos recursos muni-cipais como resultado da redemocratização, combinadocom a decisão de vários governos locais de promover ajus-tes nas respectivas finanças públicas. O terceiro fator é oaumento da presença de partidos considerados de esquer-da nos governos locais, em especial nas grandes cidades.

Experiências ParticipativasDurante o Regime Militar

Ainda durante o regime militar, um pequeno númerode municípios governado pelo então MDB adotou políti-cas participativas. Uma dessas experiências, analisada porCastro (1988), ocorreu em Piracicaba (SP), no período1977-1982.2 Castro sugere que a motivação do prefeitoem propor a participação direta da comunidade no pro-cesso decisório destinava-se a: a) mostrar aos governosfederal e estadual que os recursos destinados a Piracicabae vinculados a determinados projetos não atendiam àsprioridades da comunidade; b) pressionar a Câmara de Ve-readores para aprovar leis controvertidas. A avaliação deCastro foi a de que o processo participativo em Piracicabateve caráter mais consultivo que deliberativo, apesar dacriação de inúmeros conselhos, inclusive para o orçamento.Como em várias outras experiências similares, com a elei-ção do novo prefeito essa política desapareceu.

No mesmo período, em Lages (SC), outra experiênciaganhou visibilidade nacional. Como em Piracicaba, o pre-feito de Lages, Dirceu Carneiro, também pertencia aoMDB, mas a principal marca dessa gestão não foi estimu-lar a participação no processo orçamentário e sim na pro-moção de pequenas iniciativas de intervenção urbana,implementadas cooperativamente entre o governo e a co-munidade. Mudou-se também o foco do planejamentourbano, que deixava de ser abrangente para concentrar-senos problemas do cotidiano da população (Ferreira, 1991).Apesar de o objetivo ter sido governar com a participa-ção popular, não havia organização da comunidade e ogoverno local interveio para promover a mobilização eestimular a criação de associações comunitárias. Por cau-sa da falta de organização da comunidade, a experiênciade Lages, embora vista como paradigmática, não pode ser

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considerada como tendo atingido seu objetivo. Isso por-que, ainda de acordo com Ferreira (1991), a participaçãoteve de ser construída lentamente e seus instrumentos nãoforam suficientes para influenciar decisivamente as prio-ridades definidas pelo governo local. O programa maisbem-sucedido acabou sendo o sistema de mutirão para aconstrução de moradias para a população pobre. Os muti-rões foram popularizados e posteriormente adotados emvárias cidades brasileiras, independentemente de orienta-ções partidárias ou ideológicas. Na avaliação de Ferreira(1991), superestimou-se o poder da aliança com os po-bres e subestimou-se o poder de seus opositores. Ademais,a administração não foi capaz de mudar as relações de po-der na cidade. Seu mérito esteve na criação de formas al-ternativas para lidar com os problemas de sobrevivênciados mais pobres, por meio de iniciativas rápidas e bara-tas, sustentadas na organização popular.

Mecanismos de participação popular em três cidadesde Minas Gerais, administradas pelo MDB entre 1983 e1988, foram analisados por Costa (1997). O autor mos-trou ceticismo em relação a essas experiências, argu-mentando que elas tendiam a transformar líderes popularese suas associações em intermediários de interesses políticosque se distanciavam das necessidades do povo. O autor con-clui que a cultura política que emerge após regimes autori-tários e uma sociedade civil ativa são difíceis de conci-liar e que a esfera administrativa não é a melhor situaçãopara a construção de formas de vida democrática.

Além dos casos acima descritos, outras avaliações desseperíodo foram feitas por instituições como o InstitutoPólis.3 Um desses trabalhos analisa a experiência de For-taleza, primeiro governo local eleito pelo PT, em 1986. Aexperiência foi considerada um fracasso em termos departicipação popular em virtude do isolamento do gover-no e de suas controvérsias com o partido. Um dos pontospositivos, no entanto, foi ter deixado marcada para a po-pulação a separação entre a prefeitura e o governo esta-dual (Pinto, 1992). Isso porque Fortaleza, assim comovárias cidades brasileiras naquele momento, em especialno Nordeste, eram administradas como um segmento dogoverno do estado por causa da enorme escassez de re-cursos e da influência do governador do estado na nomea-ção dos prefeitos das capitais.

Aumento das Receitas Municipais

O segundo fator que contribuiu para a expansão das po-líticas participativas foi o aumento das receitas municipais

logo após a abertura política e, posteriormente, com a Cons-tituição de 1988. Mas não só o aumento das receitas muni-cipais trazidas pela redemocratização tiveram impacto po-sitivo sobre essas políticas. Tão ou mais importante foi adecisão de alguns governos locais de proceder ao ajustefiscal. Esse dado é em geral pouco mencionado na litera-tura, mas é de crucial importância porque a reforma tribu-tária promovida pela Constituição de 1988 foi uma refor-ma em fases, só tendo se completado em 1993, após,portanto, a institucionalização do OP em Porto Alegre.

Ademais, não apenas cidades como Porto Alegre ououtras governadas por partidos mais à esquerda, mas vá-rios municípios brasileiros adotaram a política de ajustefiscal, aumentando também os recursos próprios. JaymeJr. e Marquetti (1998) mostram que apesar do esforço dePorto Alegre no sentido de aumentar sua arrecadação tersido grande � entre 1989 e 1994 a cidade passou da 10a

para a 5a posição no ranking da arrecadação per capitaentre as capitais �, ela não foi a única grande cidade aexperimentar esse crescimento. A maior mudança relati-va se deu em Belo Horizonte, que passou da 22a para a 4a

posição, no mesmo período. Os autores citados mostramtambém que, no que se refere à receita própria, Belo Ho-rizonte registrou maior incremento do que Porto Alegre �23,99% e 11,3%, respectivamente. A literatura que anali-sa os OPs de Porto Alegre e de Belo Horizonte raramentedestaca esse ponto ou, em geral, menciona apenas os in-crementos de Porto Alegre.4

Um aspecto no caso de Belo Horizonte merece desta-que: os aumentos registrados mostram o quanto os contri-buintes locais estavam sendo subtaxados. Revelam tam-bém que muitos prefeitos eleitos, diferentemente dosnomeados, optaram pelo aumento de receitas próprias paratentar cumprir seus compromissos com os eleitores, emlugar de apoiar-se exclusivamente no aumento das trans-ferências federais e estaduais estabelecido pela Constitui-ção de 1988. Essa política contradiz a hipótese da litera-tura sobre federalismo fiscal, a qual pressupõe que osgovernos subnacionais, ao ampliar sua participação nastransferências intergovernamentais, tendem a fazer pou-cos esforços no sentido de aumentar as receitas próprias.Por outro lado, deve ser registrado também que PortoAlegre e Belo Horizonte são cidades com melhores indi-cadores econômicos e sociais que a média das cidades bra-sileiras. Isso dá a seus governantes mais oportunidadespara aumentar as receitas próprias, garantindo-lhes maisrecursos livres para implementar programas redistributi-vos como o OP.

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Crescimento dos Governos LocaisGovernados pela Esquerda

O terceiro fator que contribuiu para a difusão de pro-gramas participativos está associado ao crescimento dospartidos de esquerda nos governos locais, especialmenteo PT. Em 1988, 32 prefeitos pertenciam ao PT; em 1992,53; em 1996, 115 e em 2000, 187. Como uma das bandei-ras do PT é a participação, passou a haver incremento deexperiências como o OP. Essas experiências são constan-temente analisadas e disseminadas por militantes partidá-rios, acadêmicos, órgãos de pesquisa e ONGs. A conquistade maior fatia nos governos locais tem dado ao PT a opor-tunidade de debater e de pôr em prática seus compromis-sos eleitorais, onde o OP é um dos de maior visibilidade.Além do mais, o sucesso inicial e a divulgação de grandenúmero de experiências participativas como o OP têmfuncionado como marca positiva para o partido.

Essa seção mostrou que as origens de políticas partici-pativas remonta a experiências anteriores aos OPs de PortoAlegre e de Belo Horizonte e que essas experiências nãose restringem aos governos administrados pelo PT. Naverdade, o OP de Belo Horizonte surgiu muito depois dode Recife e Fortaleza. Seja porque estas cidades não eramadministradas pelo PT quando essas experiências ocorre-ram ou porque seus resultados são de fato mais modestosque os de Porto Alegre e de Belo Horizonte, elas são me-nos conhecidas e estudadas.5 Os OPs de Porto Alegre ede Belo Horizonte, analisados a seguir, certamente extraí-ram lições das experiências anteriormente mencionadas.Existem, no entanto, importantes diferenças entre essasexperiências para além da questão temporal e da mudan-ça de regime político. A primeira é que o OP, em PortoAlegre e em Belo Horizonte, vem sobrevivendo a dife-rentes mandatos de governo. A segunda é que essas cida-des concentraram os esforços da experiência participati-va no processo orçamentário, isto é, na decisão sobre comoalocar recursos escassos, trazendo para o centro do deba-te questões sensíveis como desigualdade, pobreza, dese-quilíbrio de poder nas cidades brasileiras e rearranjos naintermediação de interesses locais.

ORÇAMENTO PARTICIPATIVO EMPORTO ALEGRE E EM BELO HORIZONTE

A participação dos cidadãos nas políticas públicas nãoé nenhuma panacéia nem muito menos uma tarefa fácil,como mostram as experiências de Porto Alegre e de Belo

Horizonte.6 Além do mais, o conceito de participação nãoé claro nem consensual, mesmo dentro do partido maisassociado ao conceito � o PT. Problemas ainda mais com-plexos surgem quando a participação resulta, como no casodo OP, de um programa liderado e induzido pelo gover-no, ou seja, é uma política que vem �de cima�.

Nylen (2000a:132) argumenta que, depois de muitodebate, parece emergir um consenso nos governos locaisde esquerda sobre os principais objetivos de uma admi-nistração �democrática e popular�: inverter prioridadese promover a participação do povo. O primeiro objetivorefere-se à formulação de uma política capaz de favore-cer os pobres pela taxação daqueles que tenham capaci-dade de pagar. O segundo objetivo remete ao conceitode empowerment (�empoderamento�), ou seja, a umaforma de consciência política que faz a crítica das desi-gualdades e injustiças existentes mas, ao mesmo tempo,é capaz de ver na ação coletiva a forma de alcançar re-formas progressivas (Nylen, 2000a). À avaliação deNylen (2000a) pode-se acrescentar a da busca doautogoverno local para determinados segmentos sociaise para algumas políticas públicas.7

As experiências de OP em Porto Alegre e em BeloHorizonte tiveram início com a vitória do PT na eleiçãopara prefeito. Em Porto Alegre, ela se iniciou em 1989,um ano após a posse; em Belo Horizonte, em 1993, nomesmo ano da posse. Ambas as experiências ainda conti-nuam sendo as principais marcas das gestões municipaisnessas cidades e já foram objeto de várias sínteses e aná-lises. Dentre os que analisaram a experiência de Porto Ale-gre, estão Abers (1998, 2000), Dias (2000) Jacobi eTeixeira (1996), Fedozzi (1997), Laranjeira (1996),Matthaeus (1995), Navarro (1997), Santos (1998) eWampler (2000). O OP de Belo Horizonte foi analisado,entre outros, por Azevedo (1997), Azevedo e Avritzer(1994), Boschi (1999a), Nylen (2000a; 2000b), Pereira(1996; 1999) e Somarriba e Dulci (1997). Essa extensaprodução traz informações e análises sobre o funciona-mento do OP, principalmente quanto a prioridades de in-vestimentos; recursos financeiros; forma de escolha dosdelegados e seu perfil socioeconômico; organização ad-ministrativa das prefeituras e as mudanças nela promovi-das por força do OP; papel da burocracia; papel dos dele-gados do OP ante o dos vereadores; relação da Câmara deVereadores com as prefeituras; pesquisas de opinião so-bre o OP; efeitos do OP sobre questões como transparên-cia e accountability dos governos locais e dos gestorespúblicos; outras formas de participação envolvendo seto-

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res da comunidade que não participam do OP. Ademais,ambas as prefeituras mantêm nos seus sites informaçõesdetalhadas sobre o OP.

Essa abrangente e extensa produção dispensa que se-jam aqui exibidos dados, procedimentos e o funcionamentodo OP. Pode-se, então, avançar diretamente para os obje-tivos deste artigo: debater as principais teses e argumen-tos relacionados com o OP e seu papel na construção deinstituições democráticas, da cidadania e do auto-gover-no local.

COMO A LITERATURA INTERPRETAO ORÇAMENTO PARTICIPATIVO?

No final dos anos 80, muitos governos locais introduzi-ram mecanismos de incentivo à participação das comuni-dades no processo decisório das políticas públicas locais.Parece haver um consenso de que políticas participativassão um objetivo virtuoso para os países do chamado Ter-ceiro Mundo, especialmente os recém-democratizados.Esse consenso é tão forte que reúne os extremos do espec-tro político: dos conservadores à esquerda; das organiza-ções multilaterais de financiamento mais comprometidascom a distribuição de renda até as que premiam as bestpractices. Assim, participação transformou-se na palavramágica de todo projeto de governo local e no �abre-tesésamo� dos financiamentos internacionais.

Como já foi mencionado, existe vasta literatura queanalisa experiências participativas nas políticas públicaslocais. Essa literatura transcende os cortes das disciplinase áreas acadêmicas porque relaciona temas como descen-tralização, democracia, capital social, accountability, de-senvolvimento, governança (�bom governo�), �empo-deramento� de grupos sociais excluídos, educação cívica,justiça social, desenvolvimento sustentável e gestão ur-bana. No Brasil, essa literatura tem sido produzida porcentros acadêmicos, ONGs, organizações multilaterais evários organismos nacionais que financiam pesquisas.8

Existe um consenso na literatura analisada de que, ape-sar dos problemas, tensões e resultados não previstos quedecorrem do OP, a experiência tem-se constituído em for-ma de acesso do cidadão ao processo decisório local. Esseacesso, no entanto, é induzido e coordenado pelos go-vernos. Quais as bases para a avaliação desse sucesso?A visão de sucesso contraria, em parte, a literatura teó-rica e empírica sobre participação, em geral cética quantoao papel do Estado na construção de instituições demo-cráticas e possibilidades da participação popular. Segun-

do mapeamento de Abers (2000), a literatura aponta três�problemas� da participação. O primeiro é o �problemade implementação�, isto é, mesmo quando os governosbuscam implementar mecanismos participativos voltadospara integrar grupos menos poderosos no processo deci-sório, os mais poderosos têm força para impedir essaparticipação. O segundo é o �problema da desigualda-de�: mesmo quando espaços são criados para que todosparticipem, as desigualdades socioeconômicas tendem acriar obstáculos à participação de certos grupos sociais.O terceiro é o �problema da cooptação�: mesmo que osespaços de participação sejam genuinamente represen-tativos, o desequilíbrio entre o governo e os participan-tes, no que se refere ao controle da informação e dosrecursos, faz com que a participação seja manipuladapelos membros do governo.

Apesar dessas visões, a literatura que analisa o OP dePorto Alegre e de Belo Horizonte avalia-os como bem-sucedidos, ao menos no que se refere a seus objetivos. Noentanto, as razões desse sucesso variam tanto quanto orótulo que cada autor dá ao OP. Isso porque a participa-ção significa coisas diferentes para pessoas ou grupos di-ferentes. Para alguns autores, a participação é uma formade aumentar a eficiência dos governos; para outros, elaimplica o aumento da justiça social, ou seja, o acesso depessoas e grupos historicamente excluídos do processo de-cisório. Outros advogam que a participação é mera retó-rica de políticos e governantes. Conforme a síntese deAbers (2000), para alguns, os benefícios da participaçãolimitam-se a fatores instrumentais, isto é, aumento da efe-tividade da política pública, promoção de consenso sobreas ações governamentais e acesso a informações detalha-das sobre as necessidades reais dos cidadãos comuns. Paraos que elegeram o OP como política prioritária, no entan-to, o principal objetivo da participação é a delegação depoder aos grupos sociais que foram ignorados pelas polí-ticas anteriores de desenvolvimento local. O significadoda participação, portanto, é o primeiro grande divisor deáguas tanto na literatura analisada como no próprio con-ceito de participação.

Participação Como Vozou Como �Empoderamento�?

Para a maioria dos organismos multilaterais, partici-pação significa voz no processo decisório e não autono-mia para tomar decisões. Para esses organismos, �a vozdos cidadãos locais, particularmente a dos pobres, pode

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ser aumentada por reformas na esfera nacional que per-mitam a esses segmentos maior liberdade para aderir aorganizações não-governamentais, sindicatos ou outrasinstituições, a fim de melhor entender e influenciar deci-sões que os afetam� (World Bank, 1994:42 � tradução daautora). Assim, para grande parte das organizações mul-tilaterais, a participação é uma forma de transformar osdesorganizados em membros de uma sociedade civil quepodem influenciar (mas não decidir) questões que os afe-tem diretamente. Essa visão dá ênfase a resultados de curtoprazo e propostas de enfrentamento de problemas especí-ficos, em lugar de transformações de longo prazo e de na-tureza estrutural. Por outro lado, essa visão demonstracautela em relação aos limites da participação popular nocontexto da democracia representativa.

A visão instrumental e cautelosa da participação não éa que orienta o OP de Porto Alegre e de Belo Horizonte.Como já foi dito, para o PT, a participação significa darpoder aos pobres para que eles: a) tomem consciência dasiniquidades e injustiças (crescimento da consciência po-lítica); e b) reformem os sistemas político e social pelavia da ação coletiva.

Como resultado dessas visões �rivais� sobre o papelda participação, surge uma questão: é possível adotar oOP em todas as cidades brasileiras? Mesmo na visão me-nos ambiciosa dos organismos multilaterais, a resposta nãoé fácil. Existem constrangimentos empíricos e teóricos quepodem dificultar a adoção indiscriminada do OP. Essesconstrangimentos podem ser assim sintetizados:- por que representantes eleitos iriam querer dividir opoder, mesmo que de forma apenas consultiva?- por que indivíduos racionais iriam querer participar,dado o desencantamento com a política e os políticos queas pesquisas de opinião vêm sistematicamente mostrandoem todo o Brasil?- como esses programas podem evitar a questão do �ca-rona� (free-riding)?- os municípios brasileiros no seu conjunto têm recursossuficientes para cumprir o que for decidido pela popula-ção?9

- como evitar manipulação, corrupção e clientelismo emcidades onde a população tem baixa escolaridade, não estáacostumada a ter papel ativo na fiscalização dos governose onde a maioria é tão pobre que todo seu esforço e tempotem que ser canalizado para a própria sobrevivência?- como governos que buscam a participação podem con-vencer as pessoas a se dedicar a problemas coletivos em

vez de lutar por suas necessidades imediatas, inclusiveporque muitos desses programas são abolidos quando umnovo grupo político assume o governo?10

- como conciliar a prática de políticas participativas volta-das para o autogoverno com as instituições formais da demo-cracia representativa, em especial com o legislativo local?

O grande número de conselhos comunitários hoje exis-tentes no Brasil não parece responder a essas questões.Estimulados por programas nacionais ou por financia-mentos internacionais que condicionam a liberação de re-cursos à criação desses conselhos, todos os municípiosbrasileiros tiveram que instituir inúmeros conselhos co-munitários para o desempenho de suas funções básicas.Muitos deles parecem apenas reproduzir o que as regrasexigem, eliminando, portanto, as premissas básicas daparticipação: credibilidade, confiança, transparência,accountability, �empoderamento�, etc. Apesar de incipien-tes as pesquisas sobre esses conselhos, existem acusaçõesde controle dos prefeitos sobre seus membros, aliado asuspeitas de corrupção no uso dos recursos, em especialnos municípios mais pobres e nos setores de educação esaúde, os que demandam recursos mais vultosos.

Se a proposta mais modesta da participação encontraos obstáculos mencionados, o que dizer da possibilidadede se ampliar o OP nos termos da proposta do PT, ou seja,a de �empoderamento� dos pobres, dando-lhes autorida-de para decidir e não apenas serem ouvidos? Alguns au-tores analisados enfrentaram essa questão. Uns argumen-tam que o OP só é possível em Porto Alegre (Abers, 2000)pela combinação de três fatores. Primeiro, o OP se trans-formou em estratégia política para que o PT adquirissecapacidade de governar, transformando-se na marca re-gistrada do governo local. O OP também foi usado paradesmontar as velhas bases do populismo em Porto Ale-gre, lideradas pelo PDT. Segundo, o governo local foicapaz de mudar o custo-benefício da ação coletiva emrelação aos pobres e menos organizados, ao diminuir oscustos da adesão dos pobres ao OP por meio do papel dosorganizadores da comunidade. Terceiro, o governo foicapaz de aumentar as expectativas em relação aos benefí-cios por dar prioridade à dotação de infra-estrutura paraas comunidades pobres. Essa tese, todavia, não explica ocaso de Belo Horizonte, embora algumas das razões parao sucesso do OP em Porto Alegre também possam serencontradas na capital mineira.

A tese de que o OP produziu a delegação de poder aosgrupos pobres e desorganizados é contestada pelos dadosde Nylen (2000b) e pelo nível de renda dos participantes.

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Uma pesquisa conduzida por Nylen (2000b) mostrou quetanto antes do OP como no momento da pesquisa, os de-legados do OP de Belo Horizonte já participavam ante-riormente de associações de bairro (52,2% antes do OP e64,5% depois do OP) e de grupos religiosos (40% antesdo OP e 40,1% depois do OP). O número daqueles quenunca haviam participado de movimentos organizados erade 19,7% antes do OP e 12,2% no momento da pesquisa.Dados semelhantes foram encontrados por Nylen (2000b)em Betim, outra cidade mineira que adotava o OP. No quese refere à renda, uma pesquisa de Abers (1998) em doisdistritos de Porto Alegre que participavam do OP mos-trou que 40% dos entrevistados tinha renda familiar men-sal de cerca de R$ 400,00 e que 18% ganhavam entreR$ 400,00 e R$ 700,00 por mês. Esses dados confirmamos de uma pesquisa mais abrangente, cobrindo todos osdistritos. Pesquisa de Somarriba e Dulci (1997:401) paraBelo Horizonte, traçando o perfil dos participantes do OP,não traz informação sobre renda, mas afirma, consideran-do o grau de instrução e a atividade profissional dos par-ticipantes, que os mesmos provêm de vários estratos so-ciais, com significativa presença de setores médios. Naspalavras dos autores, �isso parece indicar que o OP nãose restringe aos grupos sociais mais pobres, sensibilizan-do também outras camadas da população do município�.

A resposta de Matthaeus (1995) sobre as possibilida-des de implantação do OP em outras cidades brasileiras éa de que ela só é viável se o partido que estiver no poderfor de esquerda. Santos (1998) parece concordar com atese de Abers, mas por razões diversas. Para ele, o OPfunciona em Porto Alegre porque é uma cidade de amplatradição democrática e com uma sociedade civil altamen-te organizada. Dados trabalhados por Setzler (2000) mos-tram que, de fato, Porto Alegre registra os mais altos ín-dices de associativismo, consciência política e confiançacomunitária dentre as capitais brasileiras. A experiênciado OP em Belo Horizonte, no entanto, embora combinan-do, de acordo com os analistas, estratégias diferentes dade Porto Alegre, na medida em que tenta conciliar a par-ticipação com formas de clientelismo, tem também sidoavaliada como bem-sucedida, apesar de Belo Horizonteregistrar níveis mais baixos de associativismo do que PortoAlegre.11

Navarro (1997) também enfrenta a questão sobre se oOP pode ser reproduzido em outras cidades e sob dife-rentes condições. Embora o autor relacione váriasprecondições para o OP (vontade política para ceder po-der às associações, postura política contra o clientelismo,

controle financeiro e recursos a investir), ele conclui queo OP pode ser generalizado nas administrações locais.

O grande divisor de águas aqui discutido coloca aindaoutra questão: será que a participação no sentido do�empoderamento� só é possível em experiências simila-res às do OP? Alguns argumentam que políticas de finan-ciamento direto aos pobres, sem a intermediação do go-verno, são mais importantes para se alcançar uma �gestãourbana pelos cidadãos�, enquanto que o OP é uma �ges-tão urbana com os cidadãos (Matthaeus, 1995). Essa al-ternativa é negada por Abers (1998). Seja qual for a vi-são, existe consenso na literatura analisada de que, no casode Porto Alegre, o �empoderamento� (ao menos daquelesque participam diretamente do OP) foi possível graças àscondições mapeadas por Abers (1998) e Santos (1998).Em Belo Horizonte, no entanto, Boschi (1999b) sinalizaque o sucesso do OP deve ser creditado às experiênciasprévias de descentralização.

Orçamento Participativo comoForma de Inverter Prioridades

Sobre se o OP tem de fato refletido as prioridades dospobres, a maioria dos autores analisados acredita que sim(Santos, 1998; Somarriba e Dulci, 1997; Pereira, 1996;Abers, 1998; Nylen, 2000a). Os delegados que participa-ram das pesquisas em Porto Alegre e em Belo Horizonteconcordam. Não é tão claro, no entanto, se o OP tem re-fletido as necessidades daqueles que não participam, emparticular dos muito pobres. Essa é uma questão impor-tante porque, apesar de o apoio ao OP em ambas as cida-des ser alto, a maioria dos cidadãos pobres não participado processo. Os resultados de pesquisa feita em 1991 em150 municípios do Brasil mostram que os eleitores maispobres e com menor escolaridade dão prioridade a ques-tões ligadas à sobrevivência (custo de vida, baixos salá-rios e oportunidades de emprego) e não à infra-estruturados lugares onde vivem. Na medida em que a renda ultra-passa o salário mínimo, a preferência dos eleitores mudapara a provisão de bens e serviços públicos (Desposato,2000). Apesar de a pesquisa ter sido realizada há 10 anos,pode-se inferir que suas conclusões continuam válidas. Casoessa hipótese esteja correta, pode-se também concluir queo OP não atinge as demandas dos muito pobres, mas simas de uma parte da população que, embora não totalmentepobre, acredita que o OP vem suprindo a negligência dasadministrações locais anteriores em relação às péssimascondições de infra-estrutura das áreas de baixa renda.

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Outras questões também surgem como resultado do quefoi discutido até aqui. Existem evidências que apóiam atese de que o OP: a) aumenta a capacidade dos grupossociais excluídos de influenciar a alocação dos recursospúblicos; e b) amplia o acesso dos pobres aos serviçosurbanos básicos. A literatura analisada permite afirmar queo OP expande a capacidade desses grupos de influenciardecisões e que aumenta seu acesso a serviços urbanosbásicos, principalmente de infra-estrutura. Como foi sin-tetizado por Navarro (1997:5), �mesmo que muitas mu-danças não sejam visíveis � por exemplo, o sentido da�democratização do poder local� ou as mudanças nas vá-rias formas de relação entre o governo local e a popula-ção �, é inegável, no entanto, que outras mudanças e re-sultados concretos podem ser encontrados em muitoslugares de Porto Alegre. Esses resultados se refletem naoperação dos serviços públicos, que melhorou substan-cialmente nos últimos nove anos, após o OP. Maior ra-cionalidade administrativa e eficiência fazem parte des-ses resultados, mas também mais justiça social na alocaçãodos recursos públicos� (tradução da autora).

po, porém, obscurece o papel de importante instituiçãodo sistema representativo formal � o legislativo local.

O Que É, Afinal, o Orçamento Participativo?

Outro grande divisor de argumentos e teses está na for-ma como a literatura interpreta o OP. As visões são tãodiversas que tornam difícil uma síntese. Como tentativade agregar todas as respostas � e mesmo visões diversasdadas pelo mesmo autor � elas foram divididas em quatroblocos: gestão, educação, política e mudança social.

No terreno da gestão, existe a visão de que o OP é: a)gestão urbana com os pobres (Matthaeus, 1995); b) me-canismo de gestão conjunta dos recursos públicos atravésde decisões compartilhadas sobre a alocação dos recur-sos orçamentários (Santos, 1998); c) modelo de gestãourbana mais do que uma política pública (Boschi, 1999ae b); e d) processo de gestão fiscal social (Navarro, 1997).

No terreno da educação, a maior parte da literaturaconsidera o OP um processo educativo que envolve todosos atores locais importantes � prefeito, burocratas, verea-dores, movimentos sociais e o PT � , assim como as insti-tuições nas quais esses atores operam. Essa visão é tribu-tária do pensamento de Stuart Mill sobre o papel educativodo governo local.

No terreno político, as visões são bastante diversas. OOP é: a) uma política pública em que os que têm poder ocedem para os grupos em desvantagem (Abers, 2000); b)uma forma de radicalizar a democracia e o resultado deuma grande vontade política, capaz de permitir a constru-ção de uma cultura política, que aumente a conscientiza-ção sobre a cidadania, e de melhorar as condições de vidada população (Villas Boas, 1994); c) uma das formas cor-rentes de globalização contra-hegemônica (Santos, 1998);d) uma forma de combinar democracia representativa comparticipação (Jacobi e Teixeira, 1996); e e) um instrumentopara superar os limites da democracia representativa atra-vés de mecanismos que ampliem a mobilização da socie-dade civil para além do corporativismo e da simples con-sulta (Laranjeira, 1996). Contrariando as visões correntessobre o OP, Dias (2000) argumenta que a experiência temsido uma forma de o Executivo municipal sobrepor-se aoLegislativo.

Ainda no território do papel político do OP, aparecena literatura a visão de que o programa aumenta a trans-parência, accountability e a credibilidade dos governos eseus participantes. O OP também é constantemente men-cionado como forma de eliminar (ou diminuir) o cliente-

O reconhecimento de que, com o OP, grupos excluí-dos ganharam influência sobre as políticas públicas emelhor acesso aos serviços urbanos básicos pode ser tam-bém inferido pelas respostas do eleitorado às coalizõesque introduziram o OP: os eleitores reelegeram as coliga-ções partidárias que implantaram o OP quatro vezes emPorto Alegre e três vezes em Belo Horizonte. Associaresses resultados eleitorais ao OP não é irrealista, dado queo OP é a política mais conhecida dessas coalizões.

Essa comprovação implica que o OP é também um ins-trumento capaz de contribuir para aumentar a democra-cia? Abers (2000) acredita que sim para o caso de PortoAlegre e Somarriba e Dulci (1997) para o caso de BeloHorizonte. Navarro (1997) qualifica o OP em Porto Ale-gre como uma espécie de �democracia afirmativa�, gra-ças às conquistas em assegurar efeitos redistributivos emum país onde existe tradicionalmente assimetria de po-der. Visão menos otimista sobre esse potencial do OP édada por Nylen (2000a), mas as razões apontadas baseiam-se em indicadores nacionais por demais abrangentes. Dias(2000) debate os dilemas introduzidos pelo OP na ques-tão da democracia representativa. Hipótese mais realistatalvez seja a de que o OP tem efeito no aumento da demo-cracia local, dado que agrega representantes de segmen-tos de baixa renda que raramente têm a oportunidade dechegar à arena decisória governamental; ao mesmo tem-

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No que se refere à burocracia, a maior parte da literatu-ra atesta sua resistência inicial ao OP, mas afirma que exis-tem formas de superá-la. Santos (1998), por exemplo, ar-gumenta que os burocratas também estão sendo submetidosa um processo de aprendizagem quanto à comunicação eao diálogo com os cidadãos, que são leigos em matériaorçamentária. Santos admite, todavia, que o caminho datecnoburocracia para a �tecnodemocracia� é acidentado.Como lembra Navarro (1997), no entanto, o conhecimen-to técnico é uma exigência essencial do OP. Quanto à re-lação entre os participantes do OP e o executivo local, existeconsenso de que o governo local desempenha papel deci-sivo no OP, mesmo quando os participantes o contestam.

Na expressão de Santos (1998), todavia, o �contratopolítico�, entre o executivo e as comunidades ainda nãose estendeu ao legislativo. Embora Somarriba e Dulci(1997) não vejam problemas nessa relação, eles parecemexistir e a fórmula pragmática encontrada em Belo Hori-zonte para acomodar as demandas dos vereadores no sen-tido de continuar a apresentar emendas ao orçamento quefavoreçam seus eleitores mostra que a adesão do legisla-tivo ao OP está longe de ser assegurada.12 Quanto a PortoAlegre, Dias (2000) identifica o papel dos vereadores comooscilando entre o que denomina de �constrangimento� antea participação popular, �renúncia� a parcela de seu poderdecisório e �reação� contra o Executivo, com a prevalên-cia da renúncia. Segundo a mesma fonte, no entanto, osvereadores de Porto Alegre focalizam suas críticas e es-

lismo, o autoritarismo e o patrimonialismo. Assim, em-bora com opiniões altamente divergentes, a literatura chegaquase sempre à mesma conclusão: o OP está mudando avida política de Porto Alegre e de Belo Horizonte.

Por fim, no terreno da mudança social, os autores con-cluem que o OP permite: a) a distribuição mais justa derecursos escassos em uma sociedade altamente desigual(Santos, 1998); b) um instrumento inovador para a recons-trução da vida pública (Somarriba e Dulci, 1997); c) novaforma de relacionamento entre o poder público local, asorganizações populares e o resto da sociedade, a fim deatender às demandas dos segmentos mais pobres da po-pulação (Pereira, 1996); d) o fortalecimento do associa-tivismo urbano e do relacionamento entre as associaçõescomunitárias e os moradores dos distritos (Pereira, 1999);e) uma forma justa de decidir sobre a alocação de recur-sos (Jacobi e Teixeira, 1996).

A Questão da Representação Política

A questão mais sensível relacionada com o OP talvez sejaa ameaça de que a participação comunitária possa substituiro papel dos burocratas, do executivo local e dos vereado-res. A questão é particularmente sensível entre os delega-dos do OP e os vereadores. Como se sabe, a aprovação finaldo orçamento é uma competência constitucional do Legis-lativo. A fronteira entre essas duas formas de representaçãode interesses está longe de ser definida com clareza.

QUADRO 1

Síntese das Principais Vantagens e Problemas do OP, de Acordo com a Literatura SelecionadaPorto Alegre e Belo Horizonte

Vantagens Problemas

• Torna a democracia representativa aberta à participação mais ativa de segmen-

tos da sociedade civil

• Reduz clientelismo, populismo, patrimonialismo e autoritarismo, mudando a

cultura política e aumentando a transparência

• Estimula o associativismo

• Facilita o processo de aprendizado sobre melhor e mais ativa cidadania

• Desloca prioridades dos segmentos privilegiados para beneficiar a maioria da

população (os pobres); paralelamente, tenta abrir canais de participação a ou-

tras classes sociais

• Permite equilibrar bandeiras ideológicas voltadas para a delegação de poder

aos cidadãos com respostas pragmáticas que atendam a suas demandas

• Estabelece uma organização que pode sobreviver a mudanças de governo

• Estimula os participantes a trocar visões individualistas por solidárias e a ver os

problemas da cidade de forma coletiva

• A interação com o governo coloca em risco a independência dos movimentos

comunitários

• Formas de clientelismo ainda sobrevivem

• A sociedade civil ainda está em formação

• Limitações financeiras e de recursos para o OP, reduzindo a abrangência dos

programas. As comunidades tendem a parar de participar quando suas deman-

das são atendidas

• Persistem dificuldades para aumentar a participação: os jovens, as classes

médias e os pobres são sub-representados

• Lentidão na execução dos programas, frustrando os participantes

• Clivagens entre o PT e o executivo

• Risco de reificação do movimento popular, tornando difícil a separação clara

entre seu papel e o do governo

• Decisões fragmentadas e demandas de curto prazo podem prejudicar o plane-

jamento urbano e projetos de longo prazo

• Supremacia dos movimentos sociais e do executivo sobre o legislativo na ques-

tão da alocação de recursos

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tratégias de reação não diretamente contra o OP, mas con-tra o executivo municipal.13

Essas constatações levantam dúvidas sobre o futuro doOP caso as coalizões partidárias que o implementaram nãosejam reeleitas. Por outro lado, se o OP funciona da for-ma como a literatura o descreve e analisa, então pode-seesperar que um de seus resultados seja fortalecer os mo-vimentos sociais e a aceitação do programa pela socieda-de, convencendo coalizões diversas a mantê-lo nas cida-des onde a experiência é considerada bem-sucedida.

Embora arriscando excessiva simplificação das ques-tões debatidas nesta seção, o Quadro 1 apresenta um su-mário dos principais resultados do OP em Porto Alegre eem Belo Horizonte.

DEBATENDO ARGUMENTOS E TESES

A literatura produzida pela ciência política e pela ad-ministração pública ainda não apresenta respostas clarase precisas sobre por que algumas experiências político-institucionais são adotadas e quais as razões para seu su-cesso ou fracasso. A falta de moldura analítica teorica-mente coerente, capaz de guiar avaliações das práticaspolítico-administrativas, induz a critérios e conclusõesextremamente divergentes sobre os resultados das políti-cas públicas, em especial as de formato participativo. Alémdo mais, em países caracterizados por enormes desequilí-brios sociais, econômicos e regionais, deve-se ter cuida-do ao desenhar conclusões gerais com base nos resulta-dos de um pequeno número de programas participativos.Avaliações e generalizações sobre as experiências brasi-leiras com o OP, por exemplo, podem muito facilmenteresvalar na armadilha de se acreditar que o OP é possívelsomente no �moderno� e �desenvolvido� Sul e Sudestedo país, e impossível no Nordeste, rotulado, em geral, de�atrasado� e �clientelista�. Ademais, na análise dos prin-cipais resultados do OP, é importante relembrar a adver-tência de Santos (1993): a busca de lógica única no terre-no da ação coletiva é inútil, em razão da multiplicidadede fatores que se articulam para chegar a determinado re-sultado de política pública. O reconhecimento dessas li-mitações deve orientar o pesquisador na tarefa de debatere avaliar as teses e os argumentos sobre o OP.

Assim, a falta da moldura analítica mencionada abreespaço para que o OP seja avaliado de acordo com a ideo-logia, os interesses ou as agendas específicas dos ava-liadores e/ou de suas instituições. Fora da literatura aquianalisada, muitas das visões sobre o OP não escondem

esse escasso rigor analítico. Alguns críticos do OP o vêemcomo uma oportunidade de os partidos de esquerda deexercerem o mesmo �velho clientelismo� das adminis-trações conservadoras, embora sem a intermediação dosvereadores. Há críticos que afirmam que o OP é um tipode altruísmo ingênuo. Outros ainda argumentam, cinica-mente, que o OP faz com que os pobres decidam paraque eles culpem a si mesmos, e não ao governo, quandonão conseguirem recursos suficientes para suas deman-das. A dificuldade dessas visões, além de essencialmen-te normativas, é que nenhuma delas fornece critérios pelosquais a experiência possa ser avaliada. O mesmo acon-tece com aqueles que advogam a existência do OP ape-nas porque apóiam os governos e/ou os partidos com elecomprometidos.

O OP é uma experiência induzida e coordenada pelogoverno e tem sido considerada um sucesso nas cidadesaqui analisadas. Essa aprovação é provavelmente a razãoda reeleição das coalizões partidárias que o estão imple-mentando. As constantes mudanças nas regras, procedimen-tos e no funcionamento do OP mostram que a experiênciafaz parte de um aprendizado para os envolvidos. Os casosaqui revisitados também demonstram que os problemas doOP não fizeram seus defensores desistir da experiência.Isso indica que talvez o OP esteja enfrentando uma daspráticas mais comuns das políticas públicas brasileiras: seucaráter errático e inconstante.14 Apesar de mudanças nasfacções político-partidárias em Porto Alegre e em BeloHorizonte ao longo da experiência do OP, o programa vemsendo mantido e fortalecido. A aceitação popular, que vemse manifestando através do apoio dos movimentos sociaise do resultado das pesquisas de opinião, também deve es-tar contribuindo para a sobrevivência do OP.

As seções anteriores mostraram que algumas teses/argu-mentos relacionadas com os objetivos e os resultados do OPse confirmam, dado que ocorrem em ambos os casos estu-dados. Outras teses/argumentos, todavia, merecem maioratenção e debate, e são objeto das subseções seguintes.

�Empoderamento� dos Pobres

Os números e as análises mostram que, com o OP, gru-pos de baixa renda, mas não os muito pobres, passaram ater influência sobre o processo decisório de alocação deuma porcentagem dos recursos públicos locais. Apesar daporcentagem ser relativamente pequena � no caso de Por-to Alegre, por exemplo, a média foi de 13,1% entre 1990e 1996 � o OP é uma política importante no sentido de

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prover alguma infra-estrutura em comunidades carentes.A questão da limitação dos recursos financeiros é, no en-tanto, mais crucial do que aparenta à primeira vista. Issoporque, apesar de alguns governos municipais estaremcomprometidos com a reversão de prioridades e com trans-formar investimentos nas áreas mais pobres da cidade defavores em direitos, esses governos podem realizar ape-nas uma fração muito reduzida das necessidades das co-munidades de baixa renda. Nesse sentido, o mérito do OPparece não estar necessariamente nos ganhos materiais parasegmentos de baixa renda, mas sim na ampliação da par-ticipação e do poder de decisão para grupos anteriormen-te excluídos do processo decisório.

Além das limitações financeiras, outra questão impor-tante em relação à alocação de recursos permanece. O queas experiências aqui analisadas sugerem é que em socie-dades altamente desiguais como a brasileira, segmentosde baixa renda estão despendendo considerável energia etempo no debate sobre a alocação de recursos públicos.Como sugeri anteriormente, isto é, de fato, �empode-ramento� ou autogoverno sobre determinadas políticaspúblicas. Mas é preciso lembrar que as classes média erica têm acesso, sem nenhum dispêndio de energia ou tem-po, à infra-estrutura pela qual os segmentos de baixa ren-da lutam.

A tese de �empoderamento� dos pobres pode ser tam-bém questionada pela renda dos participantes. Apesar deo OP não estar atingindo os muito pobres, a experiênciaestá alcançando outro importante objetivo: redirecionan-do recursos para áreas que historicamente sempre estive-ram excluídas das ações governamentais. Evidências mos-tram que, até então, a única forma de essas áreas recebereminvestimentos era pela vinculação das respectivas comu-nidades a vereadores e candidatos a prefeitos durante osperíodos eleitorais. Esses investimentos passavam a ge-rar dependência e eram, em geral, associados a favores enão a direitos. Essas áreas, que compõem grande parte dascidades brasileiras, são deixadas ao próprio destino oucontroladas por gangues de todo tipo, como vem mostrandoa mídia, principalmente na periferia do Rio de Janeiro ede São Paulo. Ao estimular a auto-organização dessascomunidades, o OP abre a oportunidade para que os mo-radores de baixa renda vejam a si mesmos como cidadãos,não mais condenados a sobreviver à margem do Estadoou sob a proteção de uma gangue. Assim, a tese do�empoderamento� dos pobres poderia ser substituída poraquela que vê o OP como uma forma de compensar áreasde baixa renda pela negligência histórica de administra-

ções locais anteriores e pela possibilidade que abre paraque o governo se faça presente em áreas até então fora desua intervenção.

Redução do Clientelismo

A literatura analisada defende que uma das razões dosucesso do OP está no cumprimento dos valores constitu-tivos da participação: credibilidade, confiança, transpa-rência, accountability, �empoderamento� de cidadãoscomuns, solidariedade, etc. A maior parte da literaturaacrescenta a essa lista a redução do clientelismo e dopatrimonialismo. Discutir esses dois fenômenos e suasrazões está fora dos objetivos deste trabalho. É importan-te, no entanto, mencionar que no caso do clientelismo aliteratura também parece reconhecer que a prática conti-nua viva em algumas cidades que adotaram o OP. Separaruma parte dos recursos do orçamento para que os verea-dores façam sua distribuição foi a fórmula encontrada emBelo Horizonte para reduzir a resistência dos vereadoresao OP. Por outro lado, esforços para melhorar as regrasdo OP na medida em que a experiência foi amadurecendopodem indicar a possibilidade de, no longo prazo, poder-se isolar o OP do clientelismo. Conclui-se que, apesar dePorto Alegre ter sido a primeira cidade em que o OP setransformou em uma política pública contínua, outras ci-dades, como Belo Horizonte, o estão adaptando às suascircunstâncias locais, o que pode ser interpretado comoum sinal de amadurecimento e pragmatismo. Por outrolado, argumenta-se também que a tese de que o OP é umaforma de mudar �velhas práticas clientelistas� pode nãose sustentar em todas as cidades que o implantaram.

�Empoderamento� dos Desorganizados

A tese de que o OP abriu o poder para os desorganiza-dos também exige debate e análise mais aprofundados.Como foi mencionado a partir dos dados de Nylen (2000b),um número significativo de participantes do OP eram en-gajados em ações comunitárias antes do OP. Dessa for-ma, não se pode afirmar que o OP motivou os desorgani-zados a participar do processo decisório e da política pelaprimeira vez. A tese poderia ser refeita para interpretar oOP como um mecanismo capaz de assegurar um ativismopolítico não elitista, na expressão de Nylen. Mudar o focoda tese não implica reduzir a importância das conquistaspolíticas do OP, especialmente em um país onde a assi-metria de poder é imensa.

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Vontade Política

A tese de que o OP é o resultado de forte vontade polí-tica característica de partidos de esquerda também requerdebate. Explicações baseadas em visões voluntaristas são,em geral, problemáticas. Primeiro, essas visões pressupõemque é possível mudar a realidade pela ação de poucos gru-pos, em especial grupos não hegemônicos no cenário de-cisório local ou nacional. Segundo, essas visões desconsi-deram a rede de circunstâncias e tradições que existem emqualquer tipo de ação política. Terceiro, elas não expli-cam por que alguns governos do PT deram prioridade aoutras políticas para integrar grupos excluídos, como abolsa-escola em Brasília. Não explicam também por que oOP não foi bem-sucedido em Brasília, São Paulo e Santos,apesar das tentativas de seus governantes. A tese da von-tade política poderia então ser refeita para argüir que al-guns governos locais escolheram o OP como sua marcaregistrada porque o programa lhes dá a oportunidade deaumentar a coalizão de governo. A recompensa dessa op-ção tem sido as sucessivas vitórias eleitorais que os gover-nos locais que privilegiaram o OP têm conseguido.

Aumento das Receitas Locais

Outra tese que merece discussão é a que associa o su-cesso do OP à reforma fiscal implantada por administra-ções petistas. Isso porque não foi apenas o PT que assu-miu o compromisso de aumentar os recursos próprios ede ajustar as finanças locais. Essas políticas foram adota-das por várias cidades brasileiras, independentemente defiliação partidária.

Outro problema com essa tese relaciona-se com o pa-drão de investimento e gasto público nas cidades brasilei-ras. Apesar de o Brasil ser uma república federativa, a com-petência para legislar sobre inúmeras matérias éexclusivamente federal. Os governos subnacionais têm pou-co espaço para adotar legislação e política próprias em vá-rias matérias, especialmente se comparado com outrospaíses federativos. Apesar dessa uniformidade, no entan-to, o padrão de investimento das cidades brasileiras variaconsideravelmente, especialmente no gasto social. Esseponto é importante porque, apesar de a Constituição esta-belecer que os municípios são os principais provedores daeducação fundamental, outros níveis de governo tambémpodem provê-la. Por essa razão, muitos estados eram, atéa criação do Fundef, os principais provedores da educa-ção fundamental. Como a despesa com educação é alta,

ocupando, em geral, entre o primeiro e o terceiro lugaresno total da despesa dos estados e municípios, se um muni-cípio não era o principal responsável pela sua provisão,haveria mais recursos disponíveis para investir em políti-cas como o OP.

Dados das contas públicas subnacionais entre 1986 e1990, por exemplo, mostram que, no caso de Porto Ale-gre, a administração municipal despendia em educaçãovalores inferiores à média das demais capitais da região.Somente após 1991 a despesa de Porto Alegre atingiu amesma média das demais capitais da Região Sul. No mes-mo período, a despesa de Belo Horizonte com o EnsinoFundamental era semelhante à de Porto Alegre.

No que se refere ao número de matrículas no EnsinoFundamental, os governos locais no Brasil eram respon-sáveis, nos anos 80, por cerca de 30% delas. As diferen-ças entre as regiões era considerável: as matrículas sobresponsabilidade dos governos locais no Nordeste e noNorte eram mais altas do que a média nacional (45% e39%, respectivamente), enquanto no Sul e no Sudeste astaxas eram de 18% e 30%, respectivamente (Souza, 1997).Esses números podem indicar que uma das razões paraum bem-sucedido OP seria, paradoxalmente, um papelreduzido do governo local na provisão do Ensino Funda-mental, o que deixava mais recursos orçamentários livrespara investimento em infra-estrutura, principal item dadespesa do OP em Porto Alegre e em Belo Horizonte.

No entanto, após 1998, com a instituição, por iniciati-va do governo federal, do Fundef, criou-se um sistema quepune financeiramente os municípios que não aumentaremas matrículas no Ensino Fundamental. Dessa forma, e con-siderando que os recursos alocados em educação aumen-taram no final dos anos 90, talvez seja possível argumen-tar que o OP possa ter atingido o limite máximo de recursosdisponíveis, não apenas por causa da política de controlefiscal, mas também pelo papel ampliado que os municí-pios passaram a ter na educação fundamental. A mudançapromove mais impacto nos municípios mais populosos,especialmente naqueles que tradicionalmente investiammenos em educação fundamental em virtude da presençamais ativa do estado, como era o caso de Porto Alegre ede Belo Horizonte.

Aumento da Representação Política

Uma última questão merece ser debatida: a relação en-tre o OP e o Legislativo local. Essa questão está no centrodo debate corrente sobre o funcionamento do sistema re-

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presentativo em países democráticos, heterogêneos e queperseguem políticas participativas. Com políticas como oOP, os vereadores são instados a partilhar sua prerrogativade decidir sobre o que muitos vêm como seu principal pa-pel, isto é, a alocação de recursos públicos, não só com oexecutivo mas também com os movimentos sociais organi-zados em torno do OP. Além do mais, com o OP; os vere-adores e a elite local que eles representam perdem o mono-pólio da representação dos interesses locais e seu papel deum dos principais atores na sensível e conflituosa decisãosobre alocação de recursos públicos escassos. Ademais, ecomo foi analisado por Dias (2000), a instituição de umapolítica como o OP gera problemas teóricos e práticos queafetam o funcionamento do sistema formal de representa-ção de interesses, base das democracias ocidentais.

A questão da representação não afeta apenas os verea-dores. A literatura analisada faz referências, embora es-porádicas, a problemas de accountability e transparênciaentre os delegados do OP e aqueles que eles representam.Apesar de eventualmente mencionar essa questão, a lite-ratura não lhe dedica maior reflexão. Permanece obscurose os mecanismos de participação têm reproduzido os mes-mos problemas encontrados nos sistemas formais de re-presentação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo sintetizou e debateu as principais possibili-dades e limites do orçamento participativo em duas cida-des brasileiras, buscando correlacionar a experiência do OPcom a construção de instituições democráticas e da cidada-nia e com a perspectiva do autogoverno local. Sejam quaisforem os méritos e os problemas dessa experiência, é im-portante realçar que não existe um modelo de OP, mas simvárias experiências que adquiriram contornos diversifica-dos. O maior risco do OP talvez esteja na busca de copiá-lo, tendo em vista sua alta aceitação e visibilidade em cida-des que fizeram dele sua marca registrada. A força do OPem Porto Alegre e em Belo Horizonte parece estar na suacapacidade de inserir pessoas e comunidades historicamentemarginalizadas no processo político-decisório formal. Aofazer com que esses cidadãos passem a ter o direito de de-cidir � e não apenas de ser ouvidos � é possível que se es-teja gerando um impacto de mais longo prazo na extrema-mente assimétrica correlação de forças no Brasil. Maspode-se estar também abalando o frágil equilíbrio entre oexecutivo e o legislativo locais, com conseqüências para osistema representativo formal.

NOTAS

E-mail da autora: [email protected] artigo é uma síntese de um trabalho que integra a pesquisa �Go-vernança Urbana, Pobreza e Parceria�, coordenada pelo InternationalDevelopment Department da School of Public Policy da Universidadede Birmingham (GB). Agradeço a Marta Arretche, Richard Batley, NickDevas, Marcus Melo, David Satterthwaite e Mark Setzler pelos inú-meros comentários e sugestões.1. A literatura sobre desenvolvimento, comunitarismo e capital socialvem buscando enfrentar essa questão. Para tentar desvendar a combina-ção dessas condições em duas cidades brasileiras, a partir do conceitode governança, ver Boschi (1999a).2. A experiência de Piracicaba, embora não tenha sido única, era raraporque os prefeitos eleitos pelo MDB tendiam a deixar o partido e filiar-se à Arena logo após a eleição, como forma de receber recursos federaise estaduais em uma época em que os recursos públicos estavam forte-mente concentrados na esfera federal. Castro (1988) registra, por exem-plo, que nas eleições locais de 1976, dos 101 prefeitos eleitos pelo MDB78 se transferiram para a Arena logo após as eleições.3. Outros governos locais analisados pelo Instituto Pólis foram Santos(Ferreira et alii, 1994), Ronda Alta e São João do Triunfo (Ferreira eRicci, 1992). Programas setoriais de cultura, urbanização de favelas ecrianças em situação de risco também foram analisados pela mesmainstituição. Mais recentemente, outras ONGs, como o Ibase, passarama desempenhar papel importante na disseminação e no treinamento depolíticas participativas.4. Abers (1998), por exemplo, registra que, com a introdução dos no-vos índices, o IPTU em Porto Alegre teve um aumento de 142%. San-tos (1998) menciona que em 1990 o IPTU de Porto Alegre representa-va 5,8% dos recursos municipais; em 1992, 13,8% e, mais recente-mente, varia entre 17% e 18%. Esses números, é claro, impressionam,mas outras capitais, como Belo Horizonte e Vitória, registraram incre-mentos ainda mais expressivos.5. A experiência do Recife foi recentemente analisada por Melo et alii(2000).6. Sobre os dilemas da participação na esfera local, ver Jacobi (1990).7. A defesa do autogoverno local e da participação comunitária não é,obviamente, uma bandeira apenas dos partidos ou movimentos de es-querda. Alguns teóricos da escolha pública, por exemplo, defendem asubstituição da democracia representativa pela democracia direta noterritório local como forma de enfrentar problemas como o rent-seekinge a maximização do orçamento. Ver, por exemplo, Santerre (1986).8. Essa literatura encontra-se disseminada em centenas de teses, disserta-ções, artigos e trabalhos apresentados em seminários. A seleção feita nes-te trabalho privilegiou teses de doutorado, artigos em periódicos especia-lizados e trabalhos de ONGs que focalizam o tema da participação.9. Vários trabalhos mostram que a maioria das cidades brasileiras, es-pecialmente onde vivem os mais pobres, têm poucos recursos disponí-veis e pouco espaço para aumentar a arrecadação de recursos próprios,dada a falta de atividade econômica e o tamanho da população pobre.10. O exemplo mais conhecido ocorreu em Brasília, com o programabolsa-escola instituído pelo então governador Cristovam Buarque, doPT, e abolido pelo seu sucessor, Joaquim Roriz.11. Os cálculos de Setzler (2000) mostram que 38,4% das pessoas emPorto Alegre e 27,7% em Belo Horizonte participam de algum tipo deassociação. Como indicador de confiança comunitária, 40,7% em PortoAlegre e 37,3% em Belo Horizonte acreditam que as associações de-fendem seus interesses. A desconfiança dos moradores de ambas ascidades, no entanto, é maior do que a confiança: 45,7% em Porto Ale-gre e 53,3% em Belo Horizonte não acreditam que as associações ouos políticos defendam seus interesses.12. Práticas clientelistas ainda vigentes na Câmara de Vereadores deBelo Horizonte em relação ao orçamento foram relatadas por Azevedoe Avritzer (1994), Pereira (1996) e Setzler (2000).

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13. Até onde tenho conhecimento, o trabalho de Dias (2000) é pionei-ro na análise sobre os efeitos da participação direta da população nadistribuição orçamentária em relação à Câmara de Vereadores. Alémdo pioneirismo, o trabalho introduz importante discussão teórica eempírica sobre os dilemas entre representação e participação.14. Essa tem sido uma característica recorrente no Brasil, inclusive du-rante o regime militar, como mostrado por Batley (1991). No entanto, aliteratura recente sobre melhores práticas vem argumentando que progra-mas reconhecidos como bem-sucedidos estão sendo mantidos pelos go-vernos seguintes, independentemente de diferenças ideológico-partidárias.

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A

CULTURA POLÍTICA PARTICIPATIVA EDESCONSOLIDAÇÃO DEMOCRÁTICA

reflexões sobre o Brasil contemporâneo

Resumo: Exame de alguns dos fatores histórico-estruturais, cuja influência tem se mostrado significativa naestruturação de padrões de atitudes e comportamentos de desconfiança e desencanto da sociedade brasileiraem relação às suas instituições políticas e, principalmente, aos políticos. Os resultados do estudo indicam quea existência de fatores dessa natureza acabam por descaracterizar a democracia no país e permitem o surgi-mento de formas antidemocráticas de governar.Palavras-chave: cultura política; instituições políticas; democracia.

s dificuldades que o Brasil enfrenta presente-mente de solidificação de seus partidos políti-cos como mediadores entre Estado e socieda-

discutida está centrada na idéia de que, na verdade, hou-ve uma modificação nas atitudes e no comportamento dosbrasileiros em relação à política, fruto de um conjunto defatores (o mercado, a globalização, a informática, entreoutros), porém, na essência, os brasileiros continuam adesacreditar nas instituições que constituem o pilar dademocracia representativa. Observa-se uma adaptação dasinstituições democráticas a uma prática de uso de proce-dimentos antidemocráticos que pervertem a representaçãopolítica, gerando dúvidas e incertezas sobre o futuro dademocracia. Isso se verifica não no sentido de favorecerretrocessos institucionais ou rupturas profundas, mas nainstitucionalização de atitudes de indiferença, apatia edistanciamento da arena política, e na crença de que nãohá nada que se possa fazer para mudar o atual estado decoisas. Tais atitudes podem ser muito mais deletérias aoprocesso de construção democrática a longo prazo. Vê-se, por exemplo, que apesar de vários mandatários latino-americanos terem sido depostos por mobilizações popu-lares (Collor no Brasil, Fujimori no Peru, Bucaram eMahuad, no Equador, e Peres, na Venezuela), essas mo-bilizações não conseguiram se transformar em eixos per-manentes de maior participação da sociedade civil. A não-resolução dos problemas mais imediatos (nas áreas deemprego, saúde e educação), que levaram à deposiçãodesses executivos, parece ter operado para gerar um sen-timento de impotência, acirrado pela forma de funciona-

de; a não-consolidação de uma economia que estabele-ça parâmetros mínimos de redistribuição de riqueza; ea onda generalizada de corrupção institucional e o agra-vamento da situação social no país, propiciam algumasreflexões sobre o impacto desses fatores na estrutura-ção da cultura política do país, bem como uma avalia-ção do próprio processo de construção democrática. Demaneira geral, nos últimos anos, as pesquisas de opi-nião pública têm revelado um declínio acentuado daconfiança que os brasileiros depositam nas instituiçõespolíticas e particularmente na classe política. Nota-seclaramente, também, uma fragilização dos laços sociaise a institucionalização do individualismo, com o inte-resse privado ou individual se sobrepondo ao interessecoletivo. Poder-se-ia argumentar que essa situação nãoconstitui uma novidade, pois sempre foi assim, e, ain-da mais, a presença desses fatores na sociedade brasi-leira não poderia ofuscar os avanços obtidos no campoda democratização ao longo das duas últimas décadas.

O argumento que este trabalho se propõe a desenvol-ver tem o objetivo de avaliar se, de fato, os avanços nocampo formal da política têm sido suficientes para geraruma base na qual esteja se desenvolvendo uma culturapolítica democrática e participativa. A problemática a ser

MARCELLO BAQUERO

Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

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mento das leis, dando a idéia de que a justiça se faz ape-nas para os mais abastados.

Para respaldar esta análise, busca-se, num primeiromomento, resgatar alguns fatores de caráter histórico-es-trutural que possibilitem uma compreensão contextualizadade como foram condicionadas as crenças e os valores emrelação à política. Não se trata de estabelecer umdeterminismo histórico, mas de tentar compreender a in-fluência que essas matrizes tiveram na estruturação de umamentalidade coletiva que privilegia o distanciamento, odesencanto e a desconfiança generalizada. Num segundomomento, avaliam-se, de maneira ampla, resultados depesquisas de opinião, que mostram haver a institucionali-zação de uma cultura política fragmentada e de descon-fiança. Finalmente, sugere-se, pela importância, o desen-volvimento de associações informais, as quais deveriamfuncionar concomitantemente com as organizações tradi-cionais formais, com vistas a uma cidadania mais críticae participativa e com mais capital social.

RETROSPECTO HISTÓRICO

Fica claro, hoje, que o Estado brasileiro, ao contráriodas nações européias, nunca foi capaz de expressar suaprópria história e que tem sido, antes de mais nada, umreceptor aberto da história do Ocidente desenvolvido. Comefeito, a compreensão da especificidade histórica do paísé condição indispensável para reconceituar o sentido dapolítica e a natureza das relações sociais aí existentes.

Freqüentemente se constata, na bibliografia sobre a evo-lução do Estado no Brasil, e com certa razão, a influênciade um passado de instabilidade política e econômica, bemcomo de um legado autoritário que tem obstaculizado aconstrução de uma cultura política verdadeiramente de-mocrática no País.

Uma perspectiva teórica que dominou o pensamentopolítico brasileiro por muito tempo dizia respeito ao im-pacto dos fatores étnico-culturais na formação da socie-dade brasileira. Essa abordagem, denominada culturalista,trabalhando no plano simbólico-ideológico, examinou deque forma se institucionalizou o poder político no Brasil.Dessa perspectiva procurava encontrar as raízes do cará-ter nacional da nação.

Entre os autores mais significativos associados a esta li-nha de pensamento encontram-se Joaquim Nabuco, AlbertoTorres, Oliveira Viana, Azevedo Amaral, Gilberto Freire,Guerreiro Ramos e Francisco Campos. O ponto de conver-gência entre eles está na tentativa de resgatar as matrizes

estruturais da sociabilidade brasileira. O fator preponderan-te desta linha de análise é a influência do clientelismo, opersonalismo e a incapacidade do povo na suposta incapaci-dade da sociedade em se mobilizar autonomamente para fis-calizar e modificar o processo político. A forma de evoluçãodo Estado teria propiciado a socialização de valores de dis-tanciamento e apatia tornando sua influência na política im-provável. Essa tendência não participativa era conseqüênciade governos e de uma estrutura social que favoreciam muitomais a desmobilização e a inércia do que a participação ci-dadã. Estabeleceu-se um consenso generalizado de que o paísnão tinha capacidade de reformar efetivamente as estruturastradicionais do Estado, gerando um descompasso entre umacelerado desenvolvimento econômico e uma estagnação dodesenvolvimento político, materializado na ausência de umacidadania organizada e eficaz na defesa de seus interesses, oque somou uma deficiente mediação entre Estado-socieda-de e partidos.

Tais elementos deram suporte ao surgimento da tecno-cracia, que serviria de eixo catalisador do �desenvolvi-mento� do País a partir dos anos 50, colocando a partici-pação popular como algo secundário.

A tecnocracia surge, portanto, como o principal atorda industrialização no Brasil. Assim, enquanto o núcleodas decisões estatais ficou a cargo dos técnicos insuladosnas agências estatais, deixou-se o espólio do sistema parao uso da política de clientela e do corporativismo; práti-cas que seriam realizadas, aí sim, pela classe política si-tuada no parlamento. Como o parlamento passa a de-sempenhar um papel historicamente secundário na esferadas grandes decisões estatais no Brasil, decorrente dessadinâmica, a hipertrofia do poder Executivo passa a ser umacaracterística prevalecente no Brasil.

Uma das conseqüências desse tipo de pensamentoculturalista, por exemplo, foi a sugestão de Oliveira Vianae de seus seguidores de que somente um sistema autoritá-rio e centralizador poderia construir o verdadeiro Estadonacional.

Nesse sentido, o Estado, dominado pela tecnocraciae por procedimentos clientelísticos, personalistas ecorporativistas, propicia a institucionalização do cha-mado Estado Patrimonialista (Uricoechea, 1978).

Quanto ao patrimonialismo, encontra-se na obra deRaymundo Faoro (1989) um dos principais trabalhos acer-ca desse tema. Para o autor, o atraso político brasileiro,do ponto de vista da incorporação da sociedade civil, tema ver com a forma de estruturação da burocracia no país.Fruto do avanço sistemático do poder político no contro-

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le da economia e da diferenciação social, o patrimonia-lismo ou o mercantilismo estatal destruiu a institucionali-zação dos direitos individuais. Os burocratas da cortepassaram a ter status maior do que os da fidalguia, queperdem seu poder econômico durante o processo de ex-pansão comercial.

Esse conjunto de fatores da sociabilidade brasileirapropiciou, segundo Buarque de Holanda (1992), o esta-belecimento de quatro elementos que caracterizaram aorganização social brasileira: ausência da tendência deautogoverno, a qual significava a ausência de solidarie-dade comunitária e de maneiras espontâneas de auto-or-ganização política; virtudes inativas, ou seja, o ser socialnão reflete ativamente para transformar a realidade, masprocura uma razão externa a sua existência; e razão refle-xiva, a qual provoca um pensamento que impede rompi-mentos, sustenta uma consciência conservadora e um do-mínio dos interesses pelas paixões.

De acordo com essa concepção, a sociabilidade brasi-leira nasceu influenciada pela pirâmide familiar, tendocomo fundamento a organização patriarcal, a fragmenta-ção social, as lutas entre as famílias, as virtudes inativas ea Ética da aventura. Originalmente o caudilhismo e, pos-teriormente, o coronelismo, que implicava a existência delideranças carismáticas, substituíam a racionalidade dosinteresses individuais e estabeleciam a matriz sobre a quala organização social e as fundações da política e do Esta-do foram delineadas.

Com efeito, na medida em que as relações afetivas ou fa-miliares precederam a constituição do espaço público, o po-der público incorporou uma dimensão personalista em que ocarisma-onipotente e a dependência do homem comum ge-raram uma atitude instrumental em relação à política.

Nos anos 80, a abordagem culturalista solidifica-se coma obra de Roberto DaMata (1993) em sua análise dos fe-nômenos sociais e da linguagem, examinando as causasda desigualdade e das formas de hierarquia existentes noBrasil. Já no exame das representações sociais e das con-cepções de cidadania, verifica-se o confronto da autori-dade social, baseada, de um lado, no personalismo e naidentidade vertical, e, de outro, na lei positiva. Nesse con-texto, segundo DaMata, enquanto o conhecido medalhãodetermina as iniciativas da ação coletiva, o personalismo,como modelo típico desse tipo de relações sociais,institucionaliza-se.

A conclusão do autor é a de que a sociedade brasileirapode ser caracterizada como sendo híbrida, pois combinauma identidade horizontal, tipicamente ocidental e baseada

no direito natural, com uma identidade vertical, caracte-rística das sociedades não-ocidentais, nas quais predomi-nam as tradições e a continuidade cultural.

Perspectiva diferente, na dimensão institucional, apre-senta Raymundo Faoro na obra Os donos do poder (1989),em que caracterizava o Estado no Brasil como uma ex-tensão do patrimonialismo ibérico, um poder imposto auma sociedade dominada pela política de manutenção dopoder vigente.

Nesse sentido, pode-se dizer que a experiência políti-ca brasileira tem se caracterizado pela predominância deformas autoritárias de governo, gerando, como conseqüên-cia, uma restrição às possibilidades de uma participaçãopolítica mais efetiva. O impacto do autoritarismo, ao lon-go das últimas décadas, não permitiu que se desenvolves-se um cenário no qual a ingerência da sociedade civil noEstado fosse significativa. Após 1974, com o processo deabertura política, o país atravessaria fases com amplasmanifestações de massa, dentre elas a marcha pelas dire-tas, em 1984; as manifestações pelo impeachment do pre-sidente Collor; a CPI dos anões, e as várias CPIs que têmse instalado ao longo do tempo. Esses acontecimentos, en-tretanto, que em outras circunstâncias poderiam consti-tuir matrizes capazes de catalisar modalidades de partici-pação mais duradouras e objetivas, acabam sendorelegados a um segundo plano em relação às crises eco-nômica e social que vêm abalando o país, apesar da exis-tência de indicadores estatísticos que mostram uma ex-pansão industrial e uma recuperação da economia.

Outrossim, historicamente, os instrumentos necessáriospara uma construção democrática caracterizada pela par-ticipação política estavam ausentes ou funcionavam demaneira precária ou com predisposições ideológicas de-terminadas. Um dos instrumentos de grande impacto, nessesentido, são os meios de comunicação. Ao lado disso, o(s)sistema(s) partidário(s) frágil(eis) e com pouca credibili-dade não têm constituído um instrumento de canalização,de mobilização e de participação política. Nesse contex-to, os pleitos eleitorais têm se caracterizado, ao longo dotempo, por apelos subjetivos, emocionais, personalistas eclientelistas.

Diante desse cenário, caberia indagar que tipo de cons-trução democrática está em andamento no Brasil?

DEMOCRACIA E CULTURA POLÍTICA

Um conceito que surgiu nos últimos anos, para avaliara saúde democrática do país, é a desconsolidação demo-

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crática. Típico desse processo seria o uso privado das ins-tituições públicas, que a versão da democracia contem-porânea tem possibilitado, em que os poderes e os inte-resses econômicos utilizam os poderes políticos e asinstituições democráticas para continuar a exercer, comlegitimidade e eficácia, sua dominação e seu regime deenriquecimento.

Para grande parcela da comunidade acadêmica, pareceque a versão duracionista da democracia é mais impor-tante do que os resultados sociais que ela gera. Pensa-seque uma democracia se consolida meramente pela sua ca-pacidade de sobreviver a atentados contra sua institucio-nalidade. O que constatamos no Brasil contemporâneo éque a democracia está se sustentando, mas suas institui-ções, longe de se consolidarem, estão cada vez mais sub-metidas aos interesses privados dos setores econômicos.Schmitter (1994), em uma avaliação das democracias la-tino-americanas, porém aplicável ao caso brasileiro, su-gere que, apesar das instituições funcionarem anti-democraticamente com governos que não governam,parlamentos com mais representatividade privada do quepolítica, eleições que elegem candidatos mas não os legi-timam, instituições políticas que servem para o linchamen-to político e vinganças privadas, dão lugar a uma desor-dem democrática capaz de desordenar qualquer ordem eordenamento social, mas que, paradoxalmente, são natu-ralizadas por toda a sociedade. Conseqüência dessa desor-dem é a idéia de que uma alternativa aos déficits de repre-sentação política seria a maior participação política e,ignora-se, no entanto, que a participação requer uma melho-ria da própria representação, o que em realidade não ocorre.

Em conseqüência disso, tem-se tornado corriqueiro exa-minar as conseqüências dos déficits de representação po-lítica, deixando-se de examinar suas causas reais; demaneira geral, o Congresso e os partidos políticos apare-cem como os principais responsáveis pelas falhas na re-presentação política. Sem eximir sua parte nesse proces-so, seria pertinente resgatar a influência dos condicionanteshistórico-sociais no processo de representação política ede sua crise. Esse problema se agrava na atualidade emvirtude do aprofundamento da heterogeneidade estrutu-ral, que torna quase inviável a representação efetiva dosdiferentes interesses sociais.

O papel dos partidos políticos se vê hoje comprometi-do na sua função de agregação de interesses, pela insufi-ciência da consolidação democrática. Por um lado, o mo-delo político vigente tem permitido maior concentraçãode renda, legitimada pelo dogma neoliberal; por outro,

constata-se, simultaneamente, um crescimento da exclu-são social e o aumento da pobreza, transformando a so-ciedade brasileira não numa sociedade de interesses, masnuma nação de necessidades. Entretanto, diferentementedos interesses que podem ser objetivamente representa-dos, as necessidades passam pelo crivo imaginário dosrepresentantes eleitos e, portanto, de um modo geral, nãosão representadas politicamente.

Nos últimos anos, assistimos a uma reconversão darepresentação política que tem se orientado na defesa dosinteresses privados. Dessa forma, ao mesmo tempo quese legitima democraticamente uma dominação mais efi-caz sobre a sociedade e uma maior concentração de ri-quezas, as instituições políticas democráticas são desle-gitimadas.

A conseqüência da grave crise de representação políti-ca que o país vive tem redundado numa situação parado-xal em que, por um lado, busca-se o fortalecimento dasinstituições via reformas políticas, enquanto, por outro,buscam-se ou resgatam-se lideranças políticas cujo carismaé sempre proporcional à sua capacidade de se impor àsinstituições, o que acaba deslegitimando-as ainda mais.O resultado é a vigência de um ciclo vicioso, pois quantomaior a deslegitimação institucional, maior também a exi-gência de líderes carismáticos, os quais contribuem paraneutralizar e desacreditar essas mesmas instituições.

A chamada durabilidade da democracia nesse contex-to se dá às custas da perversão da legitimidade e da eficá-cia democráticas. Se a deslegitimação é grande, a ineficá-cia é maior, tendo em vista que os problemas do país cadavez mais são resolvidos por meios não democráticos (me-didas provisórias; loteamento de cargos; negociações es-púrias). Atualmente, por exemplo, fala-se muito na exis-tência de um clientelismo de coalisão no governo federal(Avritzer, 2001).

O enriquecimento de uma pequena parcela da popula-ção brasileira, enquanto a maioria enfrenta as incertezasde uma economia de mercado e o não-atendimento de suasnecessidades básicas, tem se tornado possível num con-texto democrático, precisamente porque as instituiçõesdemocráticas, em vez de desempenharem seus papéis es-pecíficos, de funcionarem democraticamente, têm, ao con-trário, servido de apoio a setores que, com maior eficáciae legitimidade, reproduzem sua dominação e seu enrique-cimento.

O neoliberalismo consegue, portanto, algo inédito, qualseja, sem destruir as instituições democráticas, submetê-las aos seus interesses e utilizá-las como instrumentos de

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dominação e enriquecimento ilícito. Nesse sentido, a de-mocracia, na sua versão brasileira, tanto opera na gestãoe administração de conflitos políticos, como permite amaior concentração de renda já observada na história dopaís. O paradoxo da democracia brasileira parece ser o deque, quanto mais ela dura, mais é pervertida, graças aoprocesso de globalização que tem possibilitado aos órgãosinternacionais repetirem reiteradamente que sem legitimi-dade democrática não há apoio para o desenvolvimento,colocando o país numa situação de dependência neoco-lonialista (Casanova, 1995).

Talvez a institucionalização dos procedimentos, comosendo suficientes na construção democrática do país, te-nha levado a negligenciar o fato de a democracia brasilei-ra estar em processo de deterioração e degradação. A du-rabilidade do modelo democrático parece se sobrepor aoscustos sociais de sua precariedade, visto serem elesinternalizados e pagos com o aumento da pobreza e daexclusão social, ao passo que os lucros são externalizados,beneficiando os defensores da globalização. Por efeitodessas características, que operam contra as instituiçõesdemocráticas, a democracia funciona cada vez maisantidemocraticamente e antiinstitucionalmente. Não énovidade, portanto, encontrar nas pesquisas de opiniãopública o pouco apego e confiabilidade que os cidadãosbrasileiros depositam nas suas instituições políticas. Emmédia, nos últimos 15 anos, os partidos são avaliados ne-gativamente por mais de 60% da população brasileira(Baquero, 2000). O resultado é o distanciamento e a crisepermanente das instituições políticas, levando ao fortale-cimento do personalismo como instrumento de governa-bilidade. Na verdade, vivemos numa democracia perma-nentemente instável.

Assim, repensar o processo histórico que deu origem àformação de valores, normas e atitudes que norteiam o com-portamento político na sociedade brasileira é, sem dúvida,uma tarefa bastante complexa, porque se de um lado nosdeparamos com uma ampla bibliografia enfocando aspectossocioculturais, políticos e econômicos, de outro encontramospoucos estudos que nos permitam entender como se forjou aconsciência política desta sociedade e de que modo ela temse expressado em sua cultura política.

Se cultura política é vista ao mesmo tempo como cau-sa e conseqüência do funcionamento do sistema político(Lamounier e Souza, 1991:311), pode-se afirmar que a cul-tura política de uma sociedade é resultado de um padrãode orientações cognitivas, emocionais e valorativas que,além de estáveis, tornam-se vivas e atuantes ao longo do

tempo, pois �a menos que grandes rupturas históricas for-cem os grupos sociais a redefinir esses padrões, a culturapolítica continuará a reproduzir-se de acordo com as ma-trizes originais�.

Nesse sentido, o que importa destacar é que a culturapolítica ocupa um lugar central no cotidiano dos indiví-duos, podendo servir tanto para regular a transmissão devalores políticos, quanto para legitimar o funcionamentodas instituições políticas. A forma como se constrói e sedifunde essa cultura está diretamente relacionada a comose reproduzem os comportamentos, as normas e os valo-res políticos de determinada comunidade.

Desse ponto de vista, a análise da cultura política deuma sociedade pressupõe a necessidade de caracterizaros diferentes contextos histórico-culturais que irão con-tribuir para a sua configuração. Assim sendo, a compreen-são da sociedade brasileira deve ser vista como resultadode um processo interativo e cumulativo de experiênciasvividas, cujas matrizes políticas podem ser identificadaspela determinação de seu processo de formação histórica.

Dessa perspectiva, interessa destacar neste trabalho oimpacto do modelo político vigente no país nas relaçõessociais e políticas. Até que ponto, por exemplo, o neoli-beralismo não tem conseguido eliminar traços tradicionaisda política brasileira. Em primeiro lugar, é importanteconstatar que a bibliografia sobre democracia, de modogeral, aponta para a necessidade de instituições mediado-ras eficazes, democráticas e com legitimidade, como fa-tor fundamental para o desenvolvimento democrático.Numa retrospectiva histórica daqueles países considera-dos avançados, verifica-se que conseguiram estabeleceruma democracia duradoura, atravessando etapas históri-cas que se iniciaram com relações primárias � a famíliaera o núcleo em torno do qual os cidadãos transitavam. Aidentidade social era grupal ou familiar.

Com o advento da urbanização e da modernização, queimpactaram a noção de família, surgem as chamadas rela-ções sociais secundárias em que as instituições políticas,especificamente os partidos políticos, catalisam identida-des coletivas. É a fase da consolidação da democracia re-presentativa, na qual os partidos são os mediadores dasdemandas da sociedade civil. É a solidificação das relaçõessecundárias que fortalecem o sistema democrático. No en-tanto, observa-se no Brasil o surgimento e prevalência dasrelações sociais terciárias, em virtude da precariedade dospartidos políticos. Por relações sociais terciárias entende-se o estabelecimento de uma relação direta entre Estado eindivíduo, em detrimento dos partidos políticos.

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Relações sociais dessa natureza têm-se fortalecido nosúltimos governos neoliberais, cuja estratégia, no campopolítico, orienta-se para fragilizar o sistema de represen-tação política. Um dos exemplos disso seria o enfraqueci-mento da estrutura sindical. A própria instalação de umaeconomia de mercado, ao catalisar o desemprego estrutu-ral e o surgimento de uma economia informal, vulnerabilizaos setores mais frágeis da sociedade. Os partidos, por suavez, historicamente frágeis, tornam-se mais deficientescomo instituições de identidades coletivas em economiasde mercado.

Não é surpreendente, portanto, o surgimento do cha-mado neopopulismo, definido como surgimento de líde-res personalistas que contam com o apoio da populaçãoem virtude de suas características pessoais e defendem oreceituário neoliberal, o qual age contra essa mesma po-pulação para instalar a austeridade econômica e os ajus-tes estruturais que agravam a situação social do povo. OBrasil, junto com outros países da América Latina, comoPeru e Argentina, é o exemplo mais emblemático desseneopopulismo contemporâneo.

Ao mesmo tempo, um componente que tem se tornadoevidente no Brasil é a aceitação, por parte significativada sociedade, de um discurso que contrapõe a continuida-de ao caos, para viabilizar a manutenção no poder e a re-eleição de líderes que defendem esse modelo. A vulnera-bilidade objetiva da população, nesse contexto, possibilitaque as pessoas internalizem a crença de que, a menos quese dê continuidade aos governos para terminar as refor-mas, o caos se instalará comprometendo a estabilidade de-mocrática.

Aqui surge um outro ponto da cultura política brasilei-ra a ser considerado. Estabeleceu-se uma relação causalentre estabilidade econômica e estabilidade social e de-mocrática, desmentida pela realidade. A maior parte dospaíses do mundo em desenvolvimento, onde se alcançoua estabilidade econômica, está longe de ser modelo deestabilidade social, se por estabilidade social se entendea crença dos cidadãos na democracia e nas instituiçõesem virtude de elas serem capazes de solucionar os pro-blemas sociais básicos (transporte, educação, emprego esaúde). O que as pesquisas de opinião pública, feitas nosúltimos anos no país, mostram é que há um declínio signi-ficativo de apoio dos cidadãos ao atual sistema político.

Uma das conseqüências mais marcantes do neolibera-lismo também tem sido o de possibilitar o surgimento deorganizações paraestatais, organizações que funcionam àmargem da lei e que contam com o apoio significativo das

populações mais carentes. Destaca-se aqui, especificamen-te, o narcotráfico. Essas organizações estão propiciandoo aumento da criminalidade e da marginalização, levandoos grupos tradicionalmente excluídos dos benefícios so-ciais a legitimar ações deletérias em nome de uma novacidadania. Pesquisas realizadas na área antropológicamostram adolescentes que matam por um par de tênis por-que consideram ser esse um ato de manifestação de cida-dania.

Esses dados indicam que o país vive, no presente, umasituação em que prevalece o princípio de exclusão social.Paradoxalmente, os governantes tendem a considerar essasituação como inevitável e a desigualdade social, um fatonatural.

Dessa maneira, constata-se uma crise dominante dalegitimidade do Estado no país. As pessoas parecem nãomais acreditar na autoridade constituída. Roberto DaMata(1993) ilustra bem esse ponto ao observar que as pessoas,quando se sentem ameaçadas, aumentam a altura das gra-des das suas residências, em vez de pressionar o Estadona busca de soluções para o problema da violência. Naárea da educação pública, que conta com recursos mate-riais, quando insatisfeitos com a qualidade do ensino, nãolutam por melhores escolas mas transferem seus filhos paraescolas particulares.

Todos esses elementos sugerem que, longe de se estarconstruindo uma cultura política participativa e democrá-tica, materializa-se uma cultura política fragmentada eindividualista, com pouco capital social. Trata-se, portanto,de considerar importante que hoje o desenvolvimento deredes baseadas na confiança interpessoal poderia consti-tuir o mecanismo de resgate da sociedade civil, para umcomportamento mais crítico e fiscalizador da coisa públi-ca. O que se observa, entretanto, é um sentimento gene-ralizado de desconfiança entre as pessoas e em relação aoEstado e suas instituições.

Como decorrência dessa cultura, constata-se o surgi-mento de um eleitor individualista e pragmático, cujo com-portamento político se guia por princípios de eficácia ad-ministrativa e capacidade gerencial e não por princípiosideológicos.

CONCLUSÃO

Examinou-se o processo de formação de crenças e atitu-des da sociedade brasileira no momento atual, a partir dereflexões de caráter histórico, tendo como parâmetro os di-ferentes momentos em que foram estabelecidas as bases de

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um comportamento mais orientado a relações sociais de ca-ráter paternalista, personalista e clientelista. Não surpreen-de, por exemplo, a pouca participação dos brasileiros napolítica num sentido mais amplo, que vá além do simples atode votar. Vivemos presentemente uma situação de elevadosdéficits de capital social, que permite a permanência de umacultura política desafeta à participação.

A maneira como a democracia funciona hoje possibilita ainstitucionalização de formas antidemocráticas de governar.O questionamento crescente de parte da sociedade civil àsações governamentais está ocasionando uma situação de ero-são dos princípios democráticos, sem que isto signifique umapotencial ruptura institucional. O modelo neoliberal vigenteparece ter conseguido estabelecer padrões de comportamentoem que os cidadãos e as autoridades públicas se tornam indi-ferentes à continuidade de um conjunto de procedimentosque, claramente, compromete-se a construção democráticaefetiva no país. Um dos pontos a enfatizar é o acúmulo deexperiências que ocorre no país e, como forma antide-mocrática de resolução de problemas, uma vez internalizadospelas pessoas, constitui a base de uma memória coletiva di-fícil de ser alterada. Nessa dimensão, a ausência de capitalsocial, fruto da falta de confiança interpessoal e da falta deconfiança nas instituições, pode levar à manutenção de umsistema democrático permanentemente instável.

NOTA

E-mail do autor: [email protected]

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A AÇÃO POLÍTICA DO MST

Resumo: Estudo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) como ator político. A partir deuma ampla pesquisa em material jornalístico, verificou-se que o MST conquistou um espaço político impor-tante no quadro público atual, contrariando toda uma suposta tradição de passividade e anomia do povo bra-sileiro, ao conseguir se organizar, ter força política e desafiar os poderes constituídos.Palavras-chave: reforma agrária; MST; ator político.

BRUNO KONDER COMPARATO

Cientista Político, Doutorando na FFLCH-USP

m reação à ocupação da sua fazenda pelo Movi-mento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra(MST), em abril de 2001, o embaixador do Brasil

ma diferente de reivindicação social, ou, se preferirmos,de uma nova forma de atuação política.

A partir de uma ampla pesquisa em material jornalístico,verifica-se que o MST conquistou um espaço político im-portante no quadro público atual, e, contrariando toda umasuposta tradição de passividade e anomia do povo brasilei-ro, consegue se organizar, ter força política e desafiar ospoderes constituídos. Uma análise detalhada do relaciona-mento entre o MST e o governo, o Congresso, a imprensa,a Igreja e a opinião pública, revelou que o movimento cres-ceu e se expandiu durante a presidência de FernandoHenrique Cardoso, e não pode mais ser ignorado.

O MST E A LUTA PELA TERRA

O MST surgiu da reunião de vários movimentos popu-lares de luta pela terra, os quais promoveram ocupaçõesde terra nos Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina,Paraná, São Paulo e Mato Grosso do Sul, na primeira me-tade da década de 80. Oficialmente, o MST foi fundadoem janeiro de 1984, na cidade de Cascavel, no Estado doParaná, por ocasião do Primeiro Encontro Nacional doMovimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, com 80representantes de 13 Estados. Atualmente, o movimentoestá presente em 23 dos 26 Estados da federação, e é ca-paz de organizar manifestações em duas dezenas de capi-tais simultaneamente. Pelas últimas estimativas, os efeti-

na Itália, Paulo Tarso Flecha de Lima, comentou que oobjetivo da invasão era político e sem justificativafundiária e social. De maneira semelhante, o ministro doDesenvolvimento Agrário, Raul Jungmann, acusou o MSTde agir politicamente e se recusou a receber o movimento(O Estado de S.Paulo, 03/04/2001; Folha de S.Paulo, 05/04/2001). Essas reações são significativas porque mos-tram que o governo brasileiro considera o MST um grupoque atua de forma política. Mas elas ilustram também atática do governo de desqualificar constantemente esse mo-vimento e dificultar as negociações.

Em um país de dimensões continentais como o Brasil,no qual a maioria dos partidos políticos é tradicionalmen-te fraca e regionalizada, os outros atores políticos não po-dem ser negligenciados. Principalmente quando estão pre-sentes em escala nacional, caso do MST. Deve-se prestarespecial atenção aos grupos que estabelecem uma novi-dade no cenário político nacional. Pode-se dizer que oMST constitui um ator político novo, mesmo que nenhu-ma de suas ações ou características organizativas seja ori-ginal. A novidade está na articulação, feita a partir de tá-ticas e elementos já conhecidos, e na habilidade políticaque o movimento tem demonstrado, ao fazer aliados emvários segmentos da sociedade civil. Trata-se de uma for-

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vos do MST se elevam a 350 mil famílias assentadas e 70mil famílias em acampamentos, o que representa cerca de1,5 milhão de pessoas.

Naturalmente, o MST não é o primeiro movimento deluta pela terra. Na história do Brasil há vários relatos derevoltas camponesas. Todos os movimentos anteriores,contudo, permaneceram limitados à região em que sur-giram. A ação das Ligas Camponesas, nos anos 60 con-centrou-se no Estado de Pernambuco e adjacências. O mes-mo aconteceu com Canudos, no final do século XIX, ecom o Contestado, no começo do século XX, que ficaramrestritos ao nordeste da Bahia e ao oeste catarinense. Alémdisso, tanto em Canudos quanto no Contestado, osrevoltosos eram animados por aspectos messiânicos emísticos, e ansiavam mais por um retorno ao passado doque por uma transformação do presente (Candido, 1998;Cunha, 1979; Martins, 1995; Monteiro, 1974; Queiroz,1965 e 1977). Outra característica importante destaca oMST de todos os movimentos anteriores de luta pela ter-ra: trata-se do primeiro movimento que identifica comoseu principal adversário o governo federal, e não os gran-des proprietários de terras.

Faz-se necessário lembrar, também, que o MST não éo único movimento de luta pela reforma agrária. Existematualmente dezenas de outros movimentos, inspirados noMST ou dissidências dele, como os próprios nomes suge-rem, por exemplo, o MAST (Movimento dos Agriculto-res Sem Terra), ligado à Social Democracia Sindical, oMLST (Movimento de Libertação dos Sem Terra), ligadoa segmentos da esquerda, e o MUST (Movimento Unidodos Sem Terra), ligado à Força Sindical. Os dados reuni-dos por Bernardo Mançano Fernandes (1999) mostram queo MST é responsável por apenas um terço das ocupaçõesde terras realizadas no Brasil desde 1996, e representaaproximadamente dois terços das famílias acampadasrecenseadas desde aquele ano. Esses outros movimentosde luta pela terra disputam, portanto, o mesmo espaçopolítico que o MST. A leitura cotidiana do noticiário po-lítico revela, contudo, que o maior adversário do governonesse campo é o MST.

O MST E O GOVERNO

Para se ter uma idéia da força política conquistada peloMST durante o governo de Fernando Henrique Cardoso,basta verificar a evolução da atenção que o governo fede-ral tem dispensado ao movimento. Em 1994, ainda no go-verno de Itamar Franco, a Folha de S.Paulo informava

que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrá-ria (Incra) não sabia quantas invasões tinham sido efeti-vadas nos anos anteriores (Folha de S.Paulo, 05/04/94).Cinco anos mais tarde, as informações sobre o MST pas-saram a ser sistematicamente compiladas por um �gabi-nete de crises�, ligado ao Gabinete de Segurança Institu-cional (GSI) da Presidência da República, e instalado noquarto andar do Palácio do Planalto. Num grande mapasão periodicamente registradas as áreas ocupadas, os acam-pamentos, as escolas de formação de militantes e até asdissidências do MST (Valor, 09/06/2000). Faz-se neces-sário ressaltar que, entre essas duas datas, dois aconteci-mentos importantes obrigaram o governo a dedicar maioratenção ao MST: o massacre de Eldorado dos Carajás,ocorrido em 17 de abril de 1996, e a Marcha a Brasília,realizada de fevereiro a abril de 1997. Com efeito, apesarde ter incluído a reforma agrária no plano de governo anun-ciado durante a campanha eleitoral (O Globo, 06/07/97),de ter afirmado que �a base da política fundiária do meugoverno é a reforma agrária� (Folha de S.Paulo, 24/03/95),e de ter anunciado a intenção de dialogar com o MST emaudiência, em 27 de julho de 1995, o Presidente da Repú-blica não percebeu imediatamente a gravidade do massa-cre de Eldorado dos Carajás, em que 19 militantes do MSTforam mortos pela polícia militar do Pará.

Exatamente uma semana antes, ao comentar para a redede notícias americana CNN a ocupação simultânea de lo-cais de grande movimento em 18 capitais do País, por dezmil agricultores coordenados pelo MST, no dia 10 de abrilde 1996, Fernando Henrique Cardoso demonstrava a poucaimportância que seu governo atribuía ao MST até então.Em artigo publicado na revista Istoé (17/04/96), lê-se: �Adireção nacional do MST também quer audiência com opresidente FHC. Toda a movimentação obteve repercus-são internacional, ao ser mostrada pela rede CNN. Ques-tionado por um correspondente da emissora no País, FHCdisse que seu governo está preocupado, mas não pelo ta-manho da marcha de quarta-feira. �O Brasil é um país ur-bano e temos mais de 75% da população nas cidades. Es-ses são problemas localizados�, reagiu.�. No dia seguinteao massacre de Eldorado dos Carajás, o presidente pro-curou minimizar o problema: �os sem-terra e a polícia mi-litar são representantes do Brasil arcaico�. Alertado porassessores, e atento à repercussão internacional, o presi-dente foi obrigado a mudar o tom. Novamente na revistaIstoÉ (24/04/96), lê-se: �No dia seguinte à chacina, o pre-sidente (...) classificou de �representantes do Brasil arcai-co� os sem-terra e a polícia. (...) Na tarde de quinta-feira,

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18, de olho na repercussão internacional atingida pelamatança, o presidente resolveu ele próprio conceder umaentrevista coletiva no Palácio do Planalto. (...) Em 1996,o governo ainda não assentou nenhuma família.�. No dia18 de abril, um dia depois do massacre de Eldorado dosCarajás, o ministro da Agricultura José Eduardo AndradeVieira, proprietário de grandes extensões de terras, foidestituído. Logo em seguida, o Ministério da Agriculturafoi desmembrado, com a recriação do Ministério da Re-forma Agrária, que tinha sido extinguido ao final do go-verno Sarney, com Raul Jungmann como titular da pasta.

A postura do governo diante do MST mudou após omassacre de Eldorado dos Carajás. Fernando HenriqueCardoso percebeu a necessidade de coordenar melhor asações para poder enfrentar o movimento. Essa mudançafoi percebida pelos meios de comunicação: �O governoresolveu adotar uma linha mais dura para enfrentar o MST.O objetivo é impedir não apenas as invasões de sedes doIncra, como o MST vem fazendo nas grandes cidades, mastambém a ocupação de fazendas, ação preferencial dossem-terra. A proposta aprovada na reunião foi coordenara repressão ao MST no Gabinete Militar da Presidência,em vez de deixar a tarefa para os governadores de Esta-do, como aconteceu até a semana passada. Toda vez quese verificar que as polícias militares não estão dando con-ta dos conflitos, tropas do Exército serão chamadas.� (Veja,26/06/96). De fato, o general Alberto Mendes Cardoso,chefe da Casa Militar do Palácio do Planalto, passou asupervisionar diariamente as atividades do MST, comoinforma outro artigo da revista Veja (23/04/97). Foi noexercício dessa nova função que ele visitou Eldorado dosCarajás, assim como sete acampamentos em áreas de con-flito. A revista informa ainda que o general controlava 900homens, em 12 agências regionais de inteligência, e pro-duzia um relatório que, durante os dois meses de duraçãoda marcha do MST a Brasília, em 1997, era enviado dia-riamente ao presidente. Mesmo com toda essa organiza-ção, o governo subestimou a capacidade do MST de rea-lizar uma marcha de dois meses até Brasília. Esse mesmoartigo sustenta que o ministro da Reforma Agrária, RaulJungmann, convenceu Fernando Henrique Cardoso a acei-tar receber as lideranças do MST com o argumento de quea Marcha a Brasília fracassaria e o encontro não seria rea-lizado. �Até a chegada da marcha, o Planalto achava quea questão da terra tinha sido artificialmente inflada pelomassacre de Eldorado dos Carajás e pela novela O Rei doGado. (...) Depois de um clamoroso erro de cálculo e deeducação política, de desprezar o poder de mobilização

dos sem-terra, de falar de �primitivismo� e de �utopia regres-siva� mesmo quando as pesquisas de opinião informavam que80% da população queria a reforma agrária, o governo sen-tou-se à mesa para conversar.� (Veja, 23/04/97).

Seja como for, o despreparo do governo para lidar coma questão agrária é claro. A seguinte frase, que segundo arevista Veja teria sido pronunciada pelo ministro RaulJungmann, por exemplo, não é exatamente o que se espe-raria de um ministro da Reforma Agrária: �O MST é ummovimento numericamente pequeno. Está trazendo 1.500pessoas para Brasília. O Rotary e o Lions têm muito maisgente.� (Veja, 23/04/97). Essa reação somente pode sercompreendida quando se leva em conta que uma das es-tratégias do governo ao lidar com o MST é desqualificá-lo e buscar constantemente diminuir a importância e o al-cance de suas ações.

Outra linha de conduta adotada pelo governo, para en-frentar a pressão exercida pelo MST, é tentar descarac-terizá-lo como movimento social, para enquadrá-lo comoum movimento criminoso, que realiza um conjunto deações fora da lei. A partir desse ponto de vista, torna-sepossível compreender como um ministro da Justiça, nocaso, Iris Rezende, pôde afirmar, numa reunião com se-cretários de segurança de vários Estados, que: �Polícia efazendeiros têm de andar de mãos dadas para cumprirmandados judiciais.� (Veja, 24/09/97). Nessa mesma oca-sião, de acordo com a revista Veja, o ministro da Justiçadisse estar arrependido de não ter apoiado a polícia doPará no episódio de Eldorado dos Carajás.

Como mostram esses exemplos, as principais estraté-gias do governo para combater o MST não enfrentam di-retamente o movimento, mas buscam atingir a sua ima-gem e popularidade junto à opinião pública. De modoanálogo, as análises dos discursos oficiais, das falas doPresidente da República e de seus representantes, fazemperceber que o governo evita referir-se diretamente aoMST.

Ao iniciar o seu primeiro governo, Fernando HenriqueCardoso acreditava que esvaziaria o MST fazendo algunsassentamentos. O raciocínio era o seguinte: a média his-tórica de desapropriações de terra que deram origem a as-sentamentos para a reforma agrária no Brasil sempre foimuito pequena. De acordo com os dados do governo, erade 12 mil famílias assentadas por ano. Os analistas do go-verno estimaram ser possível assentar 40 mil famílias em1995, 60 mil em 1996, 80 mil em 1997 e 100 mil em 1998,totalizando, assim, 280 mil famílias assentadas em quatroanos. Caso esse plano fosse executado com sucesso, de

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um lado, os movimentos de trabalhadores sem terra seesvaziariam por falta de militantes, e, de outro, a perda delegitimidade que essa questão levantaria na opinião pú-blica, à medida que as reivindicações fossem sendo aten-didas.

A análise dos pronunciamentos do Presidente da Re-pública que abordam a reforma agrária indica que, se numprimeiro momento o governo se mostrava favorável à re-forma agrária, evitando, contudo, referir-se diretamenteao MST, Fernando Henrique Cardoso foi progressivamentese dirigindo de forma cada vez mais explícita ao MST,que passou a ser tratado como adversário. Até que, a par-tir de maio de 2000, quando o movimento promoveu ma-nifestações e ocupações de prédios públicos em quasetodos os Estados, o governo adota um tom mais duro parase referir ao MST, deixando claro que, no seu ponto devista, o movimento tem exagerado.

Os encontros entre o Presidente da República e repre-sentantes do MST também são importantes, pois é a par-tir deles que tanto o governo quanto o movimento se re-conhecem mutuamente como interlocutores políticos. Apartir do momento em que estabelecem um diálogo, pormais truncado que seja, eles se reconhecem como adver-sários, mesmo em campos opostos, e não como inimigos.Com efeito, para ambos seria um erro estratégico preten-der eliminar o outro, pois o MST precisa do governo, damesma forma que o governo não pode ignorar o MST. Osdirigentes do movimento têm plena consciência de queprecisam da mediação do governo para atingir os seusobjetivos. Apenas o governo pode desapropriar terras,conceder indenizações, garantir crédito aos assentados,estabelecer uma política agrária e executá-la. Em outraspalavras, o governo é o único ator que pode conciliar osinteresses em jogo e impedir que o conflito entre os pro-prietários de terra e os sem-terra se radicalize. Por outrolado, sem a presença do MST, o número de mortes nocampo seria, provavelmente, muito maior. A morte de ummilitante do MST é muito mais constrangedora para ogoverno do que o assassinato de um trabalhador rural nãopertencente ao movimento. Qualquer ação na qual estejaenvolvido o MST adquire mais visibilidade do que ou-tras, nem que seja pelo fato de ser automaticamente con-siderada um ato de desafio ao governo. Por essa razão éque podemos afirmar que o governo não pode ignorar oMST, e deve sempre levar em conta a resposta do movi-mento quando estabelece sua política agrária.

De 1995 até o final de 2000, foram realizados cincoencontros importantes entre Fernando Henrique Cardoso

e o MST. De maneira geral, o movimento está sempre dis-posto a dialogar com o Presidente da República. Nota-se,contudo, que na maioria dos casos as audiências podemser relacionadas com acontecimentos importantes, comoa primeira delas, que ocorreu em 27 de julho de 1995, porocasião do 3o Congresso Nacional do MST, ou com situa-ções em que o movimento desafia o governo e o obriga anegociar. Os encontros realizados em 2 de maio de 1996e 18 de abril de 1997, por exemplo, estão relacionadoscom o massacre de Eldorado dos Carajás e a Marcha aBrasília. Houve, em seguida, uma reunião em 8 de julhode 1999 e outra em 3 de julho de 2000, diante da ameaçade ocupação da fazenda da família de Fernando HenriqueCardoso, em Minas Gerais.

As reivindicações apresentadas pelo MST durante es-ses encontros são muitas. Todas elas poderiam, contudo,ser resumidas em apenas dois itens: o assentamento dasfamílias acampadas e a concessão de créditos para possi-bilitar a produção das famílias assentadas. Os valores en-volvidos nessa discussão são consideráveis, da ordem deum ou dois milhões de reais anuais.

Uma parte desses recursos é efetivamente aplicadana reforma agrária. Mesmo que o MST discorde dos nú-meros apresentados pelo governo e diga que são artifi-cialmente inflacionados, não se pode negar que o nú-mero de famílias assentadas aumentou significa-tivamente a partir de 1995. O MST consegue, dessa for-ma, alguns resultados positivos, e a sua principal arma,até agora, tem sido a pressão exercida por meio das ocu-pações. Apesar das ameaças do governo de que terrasinvadidas não serão desapropriadas, os estudos deFernandes (1999) mostram ser possível estabelecer umacorrelação positiva entre o número de ocupações e osassentamentos realizados.

Uma análise dos enfrentamentos entre o MST e o go-verno mostra que a luta pela reforma agrária dá origem aduas formas de pressão sobre o governo. A primeira for-ma é aquela exercida por sem-terra acampados e só sedesfaz quando o assentamento é conquistado. Surge en-tão o segundo tipo de pressão, aquele exercido pelos as-sentados para ter acesso aos créditos de reforma agrária,e viabilizar a produção até que o assentamento adquiraautonomia suficiente para ser emancipado.

A tarefa do governo, portanto, não é nada fácil: é pre-ciso romper o ciclo de pressão que se forma na ocupação,ou no assentamento. O sucesso do MST e a razão princi-pal do seu crescimento podem ser explicados justamentepela sua habilidade em construir esses dois ciclos e mantê-

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los sempre ligados à organização do movimento, de modoque eles se reforcem mutuamente.

Agora é possível entender com maior clareza o motivodas ações do governo que se destinam a romper esses doisciclos de pressão: cadastramento de famílias sem-terra in-teressadas em receber um lote em um assentamento de re-forma agrária; proibição de desapropriações em terras ocu-padas durante os dois anos subseqüentes à desapropriação;emancipação precoce dos assentamentos ou não-conces-são de créditos aos mesmos, o que tem praticamente omesmo resultado; tentativa de cooptação de lideranças compromessa de vantagens pessoais; repressão; criminalizaçãodo movimento; descentralização da reforma agrária, paraevitar que a luta seja caracterizada como um enfrentamentoentre o governo federal e o MST; e, por fim, o incentivo àdivisão e ao surgimento de movimentos rivais. Em todasessas ações, o governo conta com um aliado fundamental,os meios de comunicação, que passamos a analisar a se-guir.

O MST E A IMPRENSA

Não é preciso ser um observador muito atento para cons-tatar que, quando o assunto é sem-terra, há consenso dosmeios de comunicação a favor do governo. Sem quererdiminuir a importância da televisão e do rádio, acredita-mos ser possível limitar a nossa investigação à imprensaescrita, e, mais particularmente, aos jornais. O motivo paraprivilegiar os jornais, em relação às revistas, é que, a par-tir da análise dos editoriais, pode-se ter uma boa idéia doposicionamento de cada jornal diante das questões maisrelevantes para o país. Consideramos importante, sobre-tudo, o fato de a pauta diária do noticiário dos órgãos derádio e televisão ser sempre influenciada pelas matériasveiculadas na imprensa.

Ao comparar os editoriais que abordam temas relati-vos à reforma agrária e ao MST, nos quatro maiores jor-nais do país (Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo,Jornal do Brasil, O Globo), constata-se que, no que dizrespeito à questão agrária, não faz sentido a distinção en-tre jornais mais ou menos governistas. A presença do MSTnos editoriais dos jornais mais importantes do país já cons-titui uma prova bastante conclusiva da sua relevância comoator político na cena nacional. Ao mesmo tempo queespelham os acontecimentos políticos de maior destaque,os editoriais fazem alertas ao governo e aos leitores, ecomunicam a opinião oficial de cada jornal. Como, porexemplo, o editorial intitulado �O novo ator político�,

publicado no primeiro ano do governo de FernandoHenrique Cardoso, no jornal O Estado de S.Paulo (03/11/95):�(...) O Movimento dos Sem-Terra é hoje um ator de pri-meira grandeza na cena política quer pelo assentamentolegal dos invasores, quer pela permanência deles nas ter-ras ocupadas, quer pelo convencimento das autoridadespúblicas de que não se deve impor o respeito à lei, masaceitar as invasões e negociar. Pelas razões acima expos-tas e outras mais, o fato é que a organização nacional domovimento conseguiu êxitos políticos inegáveis na suapolítica de invasão. As autoridades federais e estaduais,especialmente as primeiras, não se deram conta do danoque a acomodação diante das violações da lei poderia cau-sar para todo o ordenamento jurídico do País, que assen-ta, gostemos ou não, sobre uma certa idéia de hierarquia eordem.(...)�.

Numa tentativa de quantificar a presença do MST emeditoriais, pode-se contar o número dos dedicados ao mo-vimento, e acompanhar a evolução dos resultados duran-te todo o governo Fernando Henrique Cardoso. Considera-se que um editorial fala do MST quando cita explicitamentea sigla MST, ou se refere por extenso ao Movimento dosTrabalhadores Rurais Sem Terra, ou ainda, quando faz alu-são a um líder do movimento, como José Rainha Júnior,ou a um acontecimento diretamente relacionado ao MST,como a Marcha a Brasília. Alguns editoriais tratam dareforma agrária ou da situação de agricultores sem-ter-ra, mas não se referem diretamente ao MST. Nesse casoeles foram contabilizados como editoriais sobre a re-forma agrária.

Como parâmetro de comparação, são considerados tam-bém os editoriais que aludem à Contag (ConfederaçãoNacional dos Trabalhadores na Agricultura) e à CUT (Cen-tral Única dos Trabalhadores). A primeira foi escolhidaporque é a maior organização de empregados rurais doBrasil, reunindo 25 federações estaduais e 3.630 sindica-tos, incorporando 15 milhões de trabalhadores,1 enquan-to a segunda é geralmente considerada, junto com o PT(Partido dos Trabalhadores), adversária constante do go-verno. Uma segunda razão para essa comparação é que,para o governo, seria bastante confortável que o MST setransformasse num sindicato nos moldes da Contag ou daCUT, com regras claras de atuação devidamente institu-cionalizadas. Os resultados foram agrupados na Tabela 1e podem ser melhor analisados no Gráfico 1.2

A interpretação desses resultados mostra que o MSTvai progressivamente tomando o lugar da CUT como temamais freqüente. Se nos anos de 1995, com a greve dos pe-

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troleiros, e 1996, com a reforma da previdência social, aCUT teve presença assegurada nos editoriais desses jor-nais, nos anos seguintes a sua presença foi se tornandocada vez mais rara. Uma explicação pode ser a estratégiabem sucedida do governo de desmoralizar os movimen-tos sindicais ao reprimir duramente a greve dos petrolei-ros, de um lado, e de anular as pressões dos sindicatos noCongresso, com a aprovação da reforma da previdência,de outro.

Quanto ao MST, observa-se um pico no ano de 1997,que corresponde à Marcha a Brasília. Nos anos subseqüen-tes há uma diminuição progressiva do número de edito-riais sobre o movimento. Mantém-se, contudo, um pata-mar significativo, principalmente quando comparado comos números correspondentes à Contag.

Outro dado interessante é que o tema reforma agráriaapresenta um pico no ano de 1996, quando aconteceu omassacre de Eldorado dos Carajás e foi aprovada a novalei sobre o ITR (Imposto Territorial Rural). Os proble-mas agrários eram comentados, mas não eram automati-camente relacionados com o MST que, nos anos seguin-tes, foi tomando conta do assunto.

Em suma, a identificação como adversário principal dogoverno, que antes era uma característica da CUT, passaa ser atribuída ao MST. Essa é, aliás, precisamente a aná-lise feita por Luís Inácio Lula da Silva em novembro de1995, quando afirmou que o MST exerce hoje o mesmo

peso político para a esquerda brasileira que o movimentodos operários do ABC paulista teve no fim do regimemilitar. Lula admitiu, na ocasião, que a organização doMST na disputa pela terra forçou a direção dos partidosde esquerda a assumir a bandeira da reforma agrária (OEstado de S.Paulo, 03/11/95).

Uma análise mais detalhada mostra que, nos anos maisrecentes, a CUT aparece, cada vez mais, associada ao MSTnos editoriais. Em O Estado de S.Paulo, por exemplo, noqual antes se lia �Estas manifestações têm em comum serpreparadas, conduzidas e feitas por pessoas ligadas ao PT, àCUT e ao PC do B, que se utilizam, como linha auxiliar, demovimentos sociais controlados ou infiltrados� (O Estadode S.Paulo, 18/05/97), lê-se agora �A reação de nativismoequivocado é compreensível quando vem de Lula e do baixoclero do PT, da CUT e do MST.� (O Estado de S.Paulo,02/08/98). Uma evolução parecida acontece com a Contag.

Faz-se necessário assinalar, ainda, que a aproximaçãoda CUT e da Contag com o MST não acontece apenas noplano dos editoriais, a partir da identificação de maioresadversários do governo. Essa aproximação é real, e a CUT,que surgiu no meio bem urbano da indústria metalúrgicade São Bernardo do Campo, em 1983, se interessa cadavez mais pelos problemas rurais.3 A filiação da Contag àCUT, em abril de 1995, é um bom indício dessa nova ten-dência. O fato mereceu um editorial em O Estado deS.Paulo (01/05/95), no dia do trabalho, que confirma aimportância do acontecimento: �A adesão da Confedera-ção Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag)à Central Única dos Trabalhadores (CUT) é tida e havidanos currais da CUT como o mais relevante fato do movi-mento sindical brasileiro em 30 anos. (...) Conquistar aContag era um sonho alimentado pela CUT há anos.�

A CUT também promove ações de solidariedade aoMST e realiza manifestações conjuntas com o movimen-to dos sem-terra. O fato mais significativo, no entanto, é a

TABELA 1

Evolução do Número Total de Editoriais sobre o MST, a Reforma Agrária, aContag e a CUT nos Principais Jornais do País

Brasil � 1995-2000

Editoriais 1995 1996 1997 1998 1999 2000

MST 47 94 147 108 62 77

Reforma Agrária 24 58 38 30 17 6

Contag 4 6 5 1 4 3

CUT 98 93 46 35 19 17

Fonte: Folha de S.Paulo; O Estado de S.Paulo; Jornal do Brasil; O Globo.

GRÁFICO 1

Evolução do Número Total de Editoriais sobre o MST, a Reforma Agrária, aContag e a CUT nos Principais Jornais do País

Brasil � 1995-2000

Fonte: Folha de S.Paulo; O Estado de S.Paulo; Jornal do Brasil; O Globo.

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A AÇÃO POLÍTICA DO MST

realização de ocupações de terra incentivadas pela CUT.Durante o mês de junho de 2000, o Departamento dos Tra-balhadores Rurais da CUT promoveu 13 invasões em fa-zendas do Mato Grosso do Sul.

A Contag, por sua vez, também resolveu adotar umalinha de ação mais agressiva, e vem promovendo a ocu-pação de propriedades rurais, a exemplo do MST. Trata-se de uma mudança significativa, para uma organizaçãoque, até este momento, preferia a negociação com base nasua grande representação sindical.

Nem é preciso falar que o governo acompanha com preo-cupação o fato de Contag e CUT passarem a defender a re-forma agrária e a incluir ocupações de terra nas suas es-tratégias de ação. O Jornal do Brasil (24/04/99) cita oministro-chefe da Casa Militar, general Alberto Cardoso:�Desde que a Contag se filiou à CUT, ela entrou na estraté-gia da violência, no sentido de praticar a invasão de terras.Esta competição entre as duas organizações é maléfica por-que acirra os ânimos, fugindo de uma linha racional de dis-cussão�. O que o general esconde, e o jornal não menciona,contudo, é que o próprio governo incentiva a rivalidade en-tre as organizações que lutam pela reforma agrária, com oobjetivo de diminuir a força do MST.

Faz-se necessário notar que, ao se considerar o núme-ro de filiados a essas organizações, a Contag e a CUT sãobem maiores do que o MST. Por outro lado, o número deocupações de terras é comparável com o número de gre-ves, como pode ser comprovado pelas Tabelas 2 e 3.

Ao confrontar esses dados e a freqüência com que taisorganizações aparecem nos editoriais de jornal, pode-sefazer duas afirmações. Em primeiro lugar, a visibilidadede uma organização não depende do seu tamanho. Em se-gundo lugar, ocupações de terras têm chamado muito maisa atenção do que greves. Esse resultado já era esperado,pois as ocupações de terra e a defesa da reforma agráriavão de encontro ao sistema de propriedade privada, en-quanto greves para a melhoria das condições de trabalho,o aumento dos salários ou a manutenção do emprego afe-tam apenas indiretamente o conjunto da população brasi-leira. Pode-se argumentar, também, que, por um lado, coma democratização, as greves deixaram de ser considera-das subversivas e, por outro, com a crise de emprego, opotencial de mobilização das greves diminuiu bastante.Dessa forma, acredita-se que o MST assumiu um lugar dedestaque no imaginário das classes proprietárias e empre-sariais como o adversário que oferece perigo, ou seja, podeobrigar a uma mudança na organização da sociedade. Oque acontece é que a luta pela reforma agrária assusta muitomais do que a luta sindical. Uma ocupação de terra é mui-to mais visível do que uma greve ou a ocupação de umafábrica. E isso acontece porque o governo e as classes pro-prietárias já aprenderam a lidar com a luta sindical e acontorná-la, mas ainda não sabem muito bem o que fazerpara enfrentar a luta pela reforma agrária.

Outra consideração, contudo, precisa ser feita. O sen-so de oportunidade do MST, ou seja, a habilidade que seuslíderes têm em prever quais manifestações mobilizam maisa imprensa nacional, é um fator importante para a visibi-lidade do movimento nos meios de comunicação. O MSTsempre organiza manifestações de massa, sejam elas mar-chas, acampamentos ou ocupações, pois, como afirmamseus líderes, essas são a melhor maneira de evitar a re-pressão aos manifestantes. O mais importante, contudo, éque cada passo sempre leva em conta o apelo jornalístico,pois os estrategistas do MST sabem muito bem que umacampamento à beira de uma rodovia tem muito mais vi-sibilidade do que no interior das terras, do mesmo modoque montar um acampamento provisório em frente ao pa-lácio do governo, ou diante de órgãos do governo ou agên-cias bancárias, garante presença no noticiário da televi-são e nos jornais. A ocupação de prédios públicos ou a

TABELA 2

Comparação entre o Número de Ocupações de Terras eo Número de Greves

Brasil � 1996-99

Anos Número de Número

Ocupações de Terras de Greves

1996 389 -

1997 462 (1) 563

1998 446 580

1999 495 -

Fonte: Incra; Dieese.(1) De março a dezembro.

TABELA 3

Características Organizacionais do MST, Contag e CUTBrasil � 2000

Entidades Número de Filiados Sindicatos

MST 420 mil famílias (1) 2.000

Contag 15 milhões 3.630

CUT 21 milhões 3.088

Fonte: MST; Contag; CUT.(1) São 500 acampamentos + 1.500 assentamentos.

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concentração de militantes em frente à fazenda da fa-mília do Presidente da República, por sua vez, garanteum lugar de destaque na imprensa, enquanto durar a mo-bilização.

O que incomoda mais o governo é a dificuldade emcombater a habilidade que o MST demonstra em aparecerna mídia. Com efeito, seria muito mais confortável, parao governo, que o MST adotasse uma forma institucionali-zada de oposição política. Já vimos, contudo, que, não so-mente os sindicatos não são uma alternativa atraente parao MST, como também eles começam a adotar as estraté-gias de ação próprias do movimento. Outra alternativa,bastante explorada pela oposição, é o caminho parlamen-tar e a organização em partidos políticos. Aliás, muitos seperguntam se esse não é o futuro do MST.

Interessa, portanto, verificar qual é a relação entre oMST e o Congresso.

O MST E O CONGRESSO

Uma prova incontestável da força política do movimen-to dos sem-terra é que ele não precisa, ou não quer, pas-sar pela intermediação de um deputado para fazer com quesuas reivindicações cheguem ao Executivo. De fato, os di-rigentes do MST são recebidos diretamente pelo Presi-dente da República ou por seus ministros. Os parlamentarespodem até facilitar o encontro, mas não são indispensá-veis, o que vai contra a teoria da representação, de acordocom a qual os representantes do povo são os responsáveispor fazer chegar as reivindicações da população ao co-nhecimento do governo.

A situação mais comum é aquela em que alguns parla-mentares, geralmente de oposição, oferecem-se para so-lucionar uma situação de impasse, entre o governo e oMST. Dessa forma, quando nenhum dos dois lados estádisposto a fazer concessões, é freqüente ver parlamenta-res interessados num acordo se desdobrarem para marcarum encontro entre as duas partes. A atuação do Congres-so nessa questão, no entanto, poderia ser muito maior. Comefeito, no que diz respeito às questões agrárias, o Con-gresso deixa as iniciativas para o Executivo. As leis queforam apreciadas desde 1995, como a que estabelece orito sumário para fins de reforma agrária, ou a que intro-duziu mudanças no cálculo do Imposto Territorial Rural,foram propostas pelo presidente. A relativa facilidade comque essas leis foram aprovadas pelo Congresso fez o pre-sidente afirmar que, �hoje, os latifundiários não passamde tigres de papel.�

Não é uma tarefa fácil, contudo, determinar com pre-cisão quem são os deputados e senadores que apóiam oMST, de um lado, e quem são aqueles que se opõem aesse movimento, de outro lado. Uma estimativa razoávelconsiste em identificar o apoio ao MST com os partidosde esquerda, e o seu repúdio com a direita. Se considerar-mos como partidos de direita o PFL, o PPB, o PTB, o blocoPL-PSL, e o PSC, os adversários do MST no Congressorepresentariam, seguramente, mais de um terço dos parla-mentares. Se considerarmos como partidos de esquerda oPT, o PDT, o PSB, o PC do B, o PPS e o PV, os deputa-dos favoráveis ao MST representariam aproximadamenteum quinto dos parlamentares, ou seja, a metade da direi-ta. Dentro da oposição, o partido que oferece o apoio maisconstante ao MST é o PT. Certamente, os deputados esenadores petistas se apresentam várias vezes como in-terlocutores entre o MST e o governo. Quanto aos parla-mentares de partidos de centro, que podem ser identifica-dos como sendo o PSDB e o bloco PMDB-PST-PTN, cujabancada é um pouco maior do que a da direita, sua posi-ção em relação ao MST é indefinida.

Outra linha de ação consiste em investigar quem sãoos parlamentares mais preocupados com as questões rela-tivas à terra e à produção agrícola. Nesse grupo, há os quedefendem os interesses dos grandes proprietários de terrae os que estão mais próximos da agricultura familiar. Oprimeiro grupo é freqüentemente rotulado como a �ban-cada ruralista�. Sua origem remonta ao lobby exercido pelaUnião Democrática Ruralista (UDR), durante a Assem-bléia Nacional Constituinte (1987/88), para impedir quea nova constituição facilitasse a realização de uma refor-ma agrária.4 Como mostrou o episódio da votação do ritosumário e do novo ITR, nas legislaturas mais recentes abancada ruralista tem sido bastante enfraquecida. Ao res-ponder a um jornalista do Jornal do Brasil, que indagavapor que a bancada ruralista, com seus 150 parlamentares,se movimenta para combater a reforma agrária e negociaras dívidas dos agricultores, mas não aponta nem formulasoluções para os problemas da agricultura, um grande fa-zendeiro e membro da Sociedade Rural Brasileira expli-cou que �o problema é que a bancada só é acionada paraquestões agudas, como dívida ou reforma agrária. Não pararesolver problemas, mas para contorná-los.� (Jornal doBrasil, 22/04/96).

Deve-se observar, contudo, que não é fácil estimar otamanho da bancada contrária à reforma agrária. Um es-tudo recente identifica como membros da bancada ruralista,na atual legislatura, 83 deputados dos partidos PFL,

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A AÇÃO POLÍTICA DO MST

PMDB, PSDB, PPB, PTB, PDT, PL, PSD, PMN, ou seja,16,5% dos 513 deputados federais (Oliveira, 2000). Paraa legislatura passada, outro estudo do mesmo autor citava121 deputados como ruralistas (Oliveira, 1995). O pró-prio autor, contudo, ressalta a dificuldade em identificarum deputado como ruralista. No caso desses estudos, ocritério utilizado foi a declaração do deputado sobre suasfontes de renda. O deputado foi considerado como com-ponente potencial da bancada ruralista se entre as fontesde renda declaradas houvesse alguma forma de renda agrí-cola. Analisar os resultados das votações de interesse dabancada ruralista pode parecer uma boa idéia. O resulta-do, no entanto, seria falseado pois os interesses dosruralistas são próximos aos dos representantes dos peque-nos agricultores.

Faz-se necessário ressaltar, ainda, que o fato de um de-putado pertencer à bancada ruralista não significa que eleseja contra a reforma agrária. Com efeito, Edélcio Vignade Oliveira relata que, no início da legislatura de 1995, oInstituto de Estudos Sócio Econômicos (INESC) aplicouum questionário a todos os parlamentares sobre os temasmais polêmicos da agenda política nacional. Entre as per-guntas elaboradas foi incluída uma questão sobre os con-flitos de terra e a reforma agrária: �O que é necessáriopara inibir os conflitos agrários?�. O questionário foi res-pondido por 165 parlamentares. Mesmo sabendo que onúmero de entrevistados representa apenas um terço dototal de congressistas, vale a pena observar os resultados:quase a metade dos que responderam apontou a reformaagrária como a melhor solução.

Como diz Oliveira (1995), �mais importante que a aná-lise do quadro, é o resultado que aponta a reforma agráriacomo solução para o caso dos conflitos fundiários no país.Esse resultado indica que na Câmara dos Deputados, ape-sar da demonstração de força da bancada ruralista, há umatendência que considera viável a implementação da refor-ma agrária como política pública. Essa colocação é ne-cessária para que não se entenda o forte lobby dos ruralistascomo um fato consumado contra as aspirações daquelesque propugnam pela democratização da terra.� Natural-mente, os conflitos de terras podem ser mais prejudiciaispara os fazendeiros do que a reforma agrária. Nas pala-vras de um grande fazendeiro do Paraná: �O problemachegou a este ponto, porque, em vez de negociar, quemcuida da reforma agrária no governo fez uma aposta noconfronto. Veja o que aconteceu no Pontal do Parana-panema. Com a crise de hoje, com os preços das fazendasdespencando por causa das invasões, seria muito fácil

comprar aquelas terras e fazer os assentamentos. Por queo governo não propõe acordos? Porque há interesse noconfronto. A incompetência e a demora do governo desa-ponta fazendeiros e os sem-terra. As soluções são prome-tidas, mas não ocorrem. O resultado é o radicalismo. Osfazendeiros vão buscar seus direitos na Justiça. Mas nãotemos interesse em agravar este problema. O MST é quetem interesse no problema. Nós temos interesse na solu-ção dos conflitos fundiários, que nos trazem muita dor-de-cabeça e desvalorizam as terras.� (Jornal do Brasil,22/04/96).

Por fim, da mesma forma que se pode falar numa ban-cada ruralista, é possível considerar a existência de umabancada da reforma agrária, no Congresso. A edição de OGlobo (23/04/2000) informa que Adão Pretto (PT-RS),eleito graças aos votos de militantes do MST e de peque-nos agricultores, foi o deputado federal que realizou a cam-panha mais barata, tendo recebido apenas R$ 500 em doa-ções. Deve-se lembrar, ainda, a existência do núcleoagrário do PT, constituído por 16 deputados eleitos comuma base rural e favoráveis ao MST.

A despeito do potencial eleitoral demonstrado por al-guns dos seus integrantes, o MST não acredita que a con-quista de cadeiras no Congresso seja o melhor caminhopara a luta pela reforma agrária. �O eixo da luta pela re-forma agrária se deslocou do Parlamento para outros se-tores. (...) O tempo de lutar pela reforma agrária no Parla-mento foi o da Constituinte,� (Jornal do Brasil, 22/10/90) dizia João Pedro Stédile, em 1990. �Nunca despreza-mos o caminho eleitoral. Vários de nossos militantes sãodeputados, prefeitos. Agora, as mudanças nesse país nãovão se dar pelo Parlamento. O Parlamento é apenas res-sonância da correlação de forças na sociedade e a corre-lação de forças na sociedade só vai mudar se os pobresforem para as ruas, se organizarem e lutarem contra ogoverno. Mas não devemos imaginar que o MST vá virarpartido. O dia que virar, acabou com o movimento. Essailusão nunca tivemos nem queremos,� (Jornal do Brasil,21/05/2000) continua ele a dizer, hoje em dia. Na opiniãodele, a organização e o fortalecimento do movimento sãoprioritários: �O senhor será candidato a deputado nas pró-ximas eleições? Stédile: De jeito nenhum. A minha fun-ção é continuar a ajudar a construir o movimento dos sem-terra e lutar pela reforma agrária. Mas não desmereço otrabalho parlamentar e institucional. Ele é necessário, maso fundamental é a organização de massas. Em toda a his-tória da humanidade só o povo organizado em mobiliza-ção de massas fez mudanças profundas.� (Veja, 06/08/97).

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Podemos afirmar, portanto, que o MST não desprezanem desmerece o trabalho parlamentar, embora ele nãoseja visto como prioritário. Os congressistas podem serimportantes intermediários quando é preciso resolver umimpasse entre o movimento e o governo. Ademais, todoapoio é considerado bem-vindo, principalmente se fazparte de uma instituição reconhecida como interlocutorconfiável na cena política. Esse parece ser, igualmente, ocaso da Igreja, que passamos a analisar em seguida.

O MST E A IGREJA

A importância da Igreja como ator político, no Brasil,foi evidenciada durante o processo de redemocratização.Com efeito, no final dos anos 70 e começo dos 80, todosos que lutavam contra o regime militar encontravam apoioem setores importantes da Igreja (Cava, 1988; Martins,1994). O fato de a Igreja, tradicionalmente alinhada comas posições mais conservadoras das elites ao longo de todaa história do Brasil, ter-se empenhado na defesa da causados camponeses, a partir da década de 60, pode parecerparadoxal. É preciso considerar, contudo, que naquelemomento a Igreja se opunha ao comunismo. Tornava-sepreferível, portanto, aproximar-se dos camponeses a vê-los transformados em revolucionários. Esse ponto é im-portante, pois a partir daquele momento, e mesmo que aparte mais progressista da Igreja fosse depois duramentecombatida pelo governo militar, estavam lançadas as ba-ses para que a Igreja viesse a ser considerada, hoje, uminterlocutor confiável entre o governo e os trabalhadoresrurais. Para o governo, sobretudo, trata-se de uminterlocutor muito mais confiável do que os partidos deesquerda.

A Igreja apresenta uma vantagem decisiva, em relaçãoaos partidos e aos sindicatos, quando se trata de organi-zar os trabalhadores do campo, pois, de acordo com Joséde Souza Martins (1986), a Igreja �tem um êxito muitogrande na mobilização de populações camponesas, na cria-ção de comunidades de base, etc. Acho que ela fala umalíngua que é entendida pelas populações trabalhadoras, eé isso que a torna um elo essencial nas lutas populares nocampo�. De acordo com uma reportagem publicada narevista Veja (28/10/98), é justamente essa proximidadeentre os padres e os trabalhadores rurais que explica aimportância da Igreja na formação do MST: �O berço domovimento sem terra e o de boa parte dos padres é o mes-mo: as cidades mais pobres do interior dos Estados do Sul.Segundo uma pesquisa feita neste ano pelo Centro de Es-

tatística Religiosa e Investigações Sociais � Ceris, quasea metade do clero brasileiro veio da Região Sul do país.Dois terços pertencem a famílias de classe baixa ou mé-dia-baixa. Enquanto 78% da população brasileira vive noscentros urbanos, 64% do clero tem origem na zona rural.Três em cada quatro padres nasceram em cidades commenos de 20 mil habitantes�.

Outros dois aspectos marcaram decisivamente a in-fluência da Igreja sobre o MST. O primeiro deles é o ca-ráter ecumênico da Comissão Pastoral da Terra (CPT), queevitou que a luta pela terra se fracionasse em várias orga-nizações.5 O segundo, também a característica mais im-portante da CPT, é a capilaridade dessa entidade nas ca-madas populares, principalmente no campo e sobretudonas áreas de fronteira, onde ocorre a maioria dos confli-tos de terras. Daí sua posição privilegiada quando se tratade quantificar com precisão o número de assassinatos nocampo, os conflitos agrários ou as ocupações de terras(Martins, 1985).

O apoio da Igreja à reforma agrária não se limita, con-tudo, à sistematização e denúncia de dados sobre confli-tos no campo. O apoio logístico também é muito impor-tante, como por exemplo o que foi oferecido ao MSTdurante a Marcha a Brasília, em 1997, quando a IgrejaCatólica permitiu a hospedagem em igrejas e casas paro-quiais durante todo o trajeto, além de auxiliar na arreca-dação de alimentos para os manifestantes. Outro apoiomaterial importante, conseguido por meio das conexõesque a Igreja tem no exterior, é a ajuda financeira ofereci-da por organizações cristãs internacionais. Estima-se quecerca de 15% dos recursos do MST sejam provenientesdessa rede de solidariedade internacional (O Estado deS.Paulo, 01/06/98).

Feitas essas considerações, pode-se dizer que é possí-vel distinguir dois grupos distintos entre os eclesiásticosbrasileiros: os progressistas e os conservadores. Os pri-meiros, em grande parte adeptos da Teologia da Liberta-ção, costumam posicionar-se a favor da reforma agrária edas lutas operárias, enquanto os segundos condenam es-tas atitudes e permanecem fiéis às determinações doVaticano (Moura, 1981; Gusmão, 1981).

Naturalmente, o governo brasileiro tem consideradocom preocupação o envolvimento dos bispos progressis-tas com as causas populares e, em especial, com a lutapela reforma agrária. A reação mais freqüente tem sido atentativa de obter do papa João Paulo II, conhecido porsua posição conservadora quando o assunto são os movi-mentos sociais, alguma manifestação a favor da ordem e

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A AÇÃO POLÍTICA DO MST

contra o envolvimento político de padres e militantes ca-tólicos.

Em 1985, José Sarney esteve com o papa João PauloII, no Vaticano. O ex-governador paulista Abreu Sodré,alarmado com o surgimento do MST, alertara o então Pre-sidente da República para o perigo potencial de um le-vante no campo. Sarney pediu então ao Itamaraty que or-ganizasse uma viagem a Roma cujo objetivo principal erapedir ao papa que desautorizasse os setores da Igreja com-prometidos com a reforma agrária. A missão, no entanto,resultou num retumbante fracasso. De acordo com o de-poimento de Rubens Ricupero,6 que na qualidade de as-sessor especial da Presidência acompanhou Sarney nessaviagem, não somente o papa se recusou a se manifestarpublicamente contra os padres que militavam junto comtrabalhadores rurais, mas também, durante a missa em ho-menagem ao povo brasileiro, os textos escolhidos trata-ram da função social da terra, além de outros que tinhamsido escritos por D. Hélder Câmara para a Campanha daFraternidade. Na saída da celebração, um jornalista queacompanhava a delegação brasileira, numa atitude inteira-mente não-protocolar, interpelou o sumo pontífice indagan-do se ele tinha uma última mensagem para os brasileiros.�Sim�, respondeu o papa, voltando-se para o jornalista e fa-lando em português, �desejo que se dê mais atenção aos po-bres do Brasil e que se faça a reforma agrária�.

A posição do papa no que diz respeito à questão agrá-ria no Brasil é a de que é preciso fazer a reforma agrária,mas sem desrespeitar o direito de propriedade. O Vaticanoentende como justas as reivindicações do MST, apesar denão apoiar os seus métodos de ocupar propriedades parti-culares e agências bancárias para forçar o governo a libe-rar créditos. A Igreja prefere uma reforma preventiva, como objetivo de evitar que a luta pela terra se transforme emmovimento revolucionário, a uma reforma confiscatóriae radical, mais afinada com os princípios socialistas. Daíos apelos do papa para que a reforma agrária seja feita deacordo com a lei.

Esse ponto de vista não impediu, contudo, que, umasemana após o massacre de Eldorado dos Carajás, o papaenviasse à CNBB uma carta na qual condena o massacrede sem-terra no Pará e pede uma reforma agrária �corajo-sa e de longo alcance� (Folha de S.Paulo, 25/04/96). Aresposta do governo foi insistir na tradicional posição detentar conseguir um posicionamento mais firme, por par-te do Vaticano, contra os movimentos sociais e os bisposprogressistas, de modo a reforçar a identidade entre o cleroconservador e o papa. O que se deve evitar a todo custo,

para o governo brasileiro, é que a luta pela terra resultena união das duas tendências da Igreja, forçando o gover-no a se envolver de maneira mais séria com a questão agrá-ria. Como parte desses esforços, deve-se considerar a vi-sita oficial de Fernando Henrique Cardoso ao Vaticano,em 14 de fevereiro de 1997, além das cinco viagens a Romaempreendidas pelo ministro da Reforma Agrária, RaulJungmann, para prestar contas pessoalmente ao papa so-bre o andamento da reforma agrária no país. Essas via-gens revelam, também, uma questão fundamental: a im-portância que o governo atribui à opinião pública,principalmente internacional, quando o assunto é o MST.

O MST E A OPINIÃO PÚBLICA

No caso específico do MST, a opinião pública tem serevelado um elemento importante para as decisões do go-verno e também para tomadas de posição de representan-tes no Legislativo. Podemos distinguir duas realidades se-paradas: de um lado, temos a opinião pública nacional,do outro, a opinião pública internacional. No segundo caso,talvez seja mais correto falar em imagem do governo bra-sileiro no exterior.

No que diz respeito à opinião pública nacional, é pre-ciso considerar que, numa sociedade majoritariamente ur-bana como a sociedade brasileira contemporânea, as lu-tas do campo só conseguem se projetar nacionalmente setiverem o respaldo e o reconhecimento da população dascidades. Com efeito, os moradores de áreas rurais repre-sentam apenas um quinto da população brasileira. Dessamaneira, os 80% restantes que moram em áreas urbanassão decisivos para o futuro de qualquer movimento agrá-rio. Da mesma forma que o MST tem consciência que ape-nas com os votos de áreas rurais não é possível mudar acorrelação de forças na Câmara dos Deputados ou no Se-nado, seus dirigentes sabem perfeitamente que o apoio dapopulação urbana é fundamental para sua luta. Daí a im-portância de atos e manifestações nas cidades. Realizam-se marchas pelas estradas e grandes avenidas das capi-tais, organizam-se manifestações e acampamentos emfrente às sedes do poder público (Incra, Palácio do Go-verno) ou diante de agências bancárias que estejam su-postamente retendo os créditos destinados à reforma agrá-ria. Os locais são estrategicamente escolhidos de forma agarantir a maior visibilidade possível, porém sem atrapa-lhar o cotidiano da cidade. Do ponto de vista dos dirigen-tes do MST, trata-se de conscientizar, e não de atrapa-lhar. De fato, raramente vêem-se militantes do MST

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bloqueando uma avenida ou impedindo funcionários pú-blicos de entrar no seu local de trabalho. Quando se dizque o MST invadiu prédios públicos, na maioria das ve-zes os manifestantes estão ocupando a entrada ou o sa-guão principal do prédio para forçar uma audiência comas autoridades responsáveis.

O objetivo principal das manifestações nas cidades éfazer conhecer as suas reivindicações e conseguir o apoiodas populações urbanas à causa da reforma agrária. O apoiodo MST às lutas urbanas, como manifestações pelo au-mento do salário mínimo, passeatas de professores ou ser-vidores da saúde pela melhoria das condições de traba-lho, greves organizadas pelas centrais sindicais, ou atémesmo passeatas de policiais por melhores salários, éconsiderado uma forma de solidariedade entre trabalha-dores. Daí as manifestações públicas de incentivo aosmovimentos populares urbanos da parte de alguns diri-gentes do MST, e que são interpretadas pela imprensacomo a prova de que o movimento não está interessadoapenas na reforma agrária, mas também na revolução e naagitação política.

Pesquisas de opinião pública realizadas ao longo dosúltimos anos mostram que o MST conta com o apoio damaioria da população brasileira. O apoio à reforma agrá-ria varia entre 80% e 94%, enquanto aproximadamentedois terços da população considera o MST um movimen-to legítimo. Durante a marcha do MST a Brasília, em 1997,a popularidade do movimento esteve no seu auge, che-gando a 77% de apoio.

Uma ressalva faz-se necessária, contudo, pois apesarde grande parte da população brasileira ser favorável àreforma agrária, ela não está disposta a tomar iniciativasque a viabilizem, seja porque não a considera uma priori-dade absoluta, seja porque não tem uma idéia clara do queé uma reforma agrária. No primeiro caso, de acordo como qual a reforma agrária não é considerada prioridade, éimportante lembrar que a questão da escravidão só foiresolvida no Brasil quando passou a bloquear o desenvol-vimento de uma indústria nacional. No segundo caso, épreciso considerar que há vários projetos de reforma agrá-ria, e que todos os que se dizem favoráveis a ela não con-cordam necessariamente com a reforma agrária pretendi-da pelo MST. Esse é, precisamente, o entendimento deMartins (1997): �Não basta a opinião pública dizer-sefavorável à reforma agrária. Você faz pesquisa de opiniãoe descobre que 70% das pessoas são favoráveis à reformaagrária. Só que elas não sabem o que é reforma agrária.Tanto que, na hora de votar, votam em partidos e pessoas

que, por razões de classe social e de opção ideológica,são contrárias a essa reforma. Esses partidários da refor-ma não condicionam seu voto à adoção da reforma agrá-ria como plataforma política daqueles que elegem�.

É necessário ressaltar que várias cartas de leitores eartigos assinados, publicados em jornais e revistas, suge-rem que uma grande parte da população tem uma idéiaromântica do que seja uma reforma agrária. De acordo comessa visão, o homem do campo ainda é considerado umpersonagem simples, modesto, apático e preguiçoso, queprecisa ser protegido, à imagem do personagem Jeca Tatu,de Monteiro Lobato (Lobato, 1998). Assim, não são pou-cas as manifestações que consideram os sem-terra o res-quício de um Brasil arcaico, ou que identificam na atua-ção política do MST um desvirtuamento do movimento.A questão fundamental que se coloca para o MST é, por-tanto, saber como o movimento vai fazer para enfrentar odesafio de transformar a simpatia que angaria da popula-ção em apoio permanente. O futuro do movimento depen-de da sua capacidade de conseguir convencer a opiniãopública nacional de que a sua atuação política é, não so-mente legítima, mas também a própria essência do movi-mento. De nada adianta, dessa perspectiva, apoiar huma-namente e caridosamente a reforma agrária se a atuaçãopolítica dos sem-terra for condenada. Uma parcela impor-tante da população brasileira ainda parece concordar coma opinião da burguesia francesa do começo do século XIXa respeito do homem do campo, como foi retratada porBalzac (1961): �se, politicamente, as suas agressões de-vem ser impiedosamente reprimidas, humanamente e re-ligiosamente, ele é sagrado�.

Resta ainda tratar da repercussão internacional do MST.O movimento foi objeto de diversas reportagens em gran-des jornais estrangeiros, periódicos e emissoras de televi-são, sobretudo depois do massacre de Eldorado dos Carajás,noticiado em 61 idiomas (IstoÉ, 24/04/97). Uma conseqüên-cia imediata à condenação internacional de Eldorado dosCarajás foi o cancelamento de uma viagem do presidente aWashington, por temer protestos e manifestações por partede defensores dos direitos humanos (O Globo, 27/04/96).A marcha dos sem-terra a Brasília teve como resultado au-mentar ainda mais o interesse no assunto, como testemu-nha o ministro da Saúde, José Serra: �A marcha a Brasíliacomandada pelo MST elevou ao máximo a simpatia inter-nacional pelos pobres brasileiros. Acrescentou, nos paísesdesenvolvidos, um quarto ponto na agenda de suas preocu-pações com o Brasil, até há pouco centralizada em trêsquestões: índios, direitos humanos e meio ambiente� (Fo-

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A AÇÃO POLÍTICA DO MST

lha de S.Paulo, 21/04/97). O MST tem consciência da im-portância desse apoio externo e da sua influência no trata-mento dispensado ao movimento pelo governo. Por isso,dedica um cuidado particular aos contatos com organiza-ções não-governamentais internacionais e envia vários deseus militantes ao exterior.

Como se pode verificar, o MST não ocupa apenas ter-ras e prédios públicos, mas ocupa também reuniões deministros, discursos do presidente, relatórios dos servi-ços de inteligência, editoriais de jornais, manchetes nosnoticiários, pronunciamentos de parlamentares, conversasentre o presidente e o papa, pesquisas de opinião públicae até protestos nas visitas do presidente ao exterior. Foipossível provar que o MST cresceu e se expandiu durantea presidência de Fernando Henrique Cardoso, mas o go-verno só percebeu a força do movimento em 1997, a par-tir da Marcha a Brasília. De fato, naquele ano o MST es-teve no auge, e podemos dizer que foi a partir daí que omovimento se tornou definitivamente um ator político: nosseus discursos o presidente passou a se referir explicita-mente ao movimento, os editoriais de jornais passaram atratar periodicamente do MST e a reforma agrária conta-va com o apoio de 94% da população.

Quatro anos depois, no entanto, o MST enfrenta gran-des dificuldades, desde que o governo resolveu cortar oscréditos aos assentados. Mesmo que um cenário pessimistavenha a se confirmar e o movimento venha a ser comple-tamente desmantelado, contudo, a experiência das suaslutas e das conquistas provocará conseqüências. Não po-demos esquecer que são 400 mil famílias, aproximada-mente um milhão e meio de pessoas. Nas palavras de umjovem militante, �a maior revolução é dentro da nossacabeça�.

NOTAS

E-mail do autor: [email protected] artigo é uma versão resumida da dissertação de mestrado do au-tor (Comparato, 2001), sob orientação da Professora Doutora MariaTeresa Sadek.1. A Contag foi criada em 22 de dezembro de 1963, no Rio de Janeiro,reunindo 14 federações e 475 sindicatos de trabalhadores rurais. Oreconhecimento oficial da Contag ocorreu no dia 31 de janeiro de 1964,por meio do Decreto Presidencial no 53.517. O golpe militar de 1964resultou na intervenção da entidade e na prisão e exílio de vários diri-gentes. O MSTR retomou a entidade em 1968, derrotando o interventor.A Contag realizou sete congressos nacionais de trabalhadores e traba-lhadoras rurais, sendo o último em 1998, no qual foi eleita a atual di-retoria da entidade. A Contag representa os interesses dos trabalhado-res e trabalhadoras rurais assalariados, permanentes ou temporários;dos agricultores familiares, proprietários ou não, dos sem-terra e, ain-da, daqueles que trabalham em atividades extrativistas. Essas e outras

informações sobre a Contag podem ser obtidas na página que a Contagmantém na internet, no endereço: http://www.contag.org.br2. Os resultados foram agrupados para resumir a exposição. A evolu-ção da quantidade de editoriais sobre os temas considerados é muitosemelhante para os quatro jornais. Em média, aproximadamente umavez por semana é publicado um editorial sobre um desses temas emcada um dos jornais. Para ter acesso aos dados completos, para cadajornal, consultar Comparato, 2001.3. Em �O �novo sindicalismo� na transição brasileira�, Keck (1988)mostra que a CUT teve um papel importante no processo de transiçãopara a democracia, no Brasil. Os sindicatos rurais e a Contag não ocu-pam um lugar de destaque nas análises sobre aquele momento políti-co, que privilegiam os movimentos urbanos e a fundação do PT. É in-teressante notar, contudo, que foi justamente nessa época que surgiu oMST.4. Desmobilizada após a aprovação da Constituição de 1988 e a derro-ta de Ronaldo Caiado nas eleições presidenciais de 1989, a UDR res-surgiu em 1996 para enfrentar os avanços do MST na região do Pontaldo Paranapanema, em São Paulo. Na mesma época também reapare-ceu o obscuro Movimento Direita Volver (MDV), integrado por anti-gos militantes do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) e quemantém ligações com a Tradição Família e Propriedade (TFP), Jornaldo Brasil (22/09/96).5. Segundo as informações fornecidas pela página que essa entidademantém na internet, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) foi criada em1975 com o objetivo de assessorar sindicatos, associações de peque-nos produtores, movimentos sociais e outras iniciativas populares, pres-tando-lhes assessoria pastoral, teológica, metodológica, jurídica, polí-tica e sociológica. A CPT colabora diretamente com a Igreja Católicae a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, atuando emconjunto com muitas dioceses, paróquias e comunidades eclesiais.6. Depoimento dado ao autor em novembro de 2000.

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POLÍTICAS DE COMBATE À FOME NO BRASIL

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POLÍTICAS DE COMBATE ÀFOME NO BRASIL

Resumo: Até os anos 30, os problemas de abastecimento estavam associados à questão da oferta de alimentospara a população. Desse período até o final dos anos 80, a fome passou a ser encarada como um problema deintermediação e as políticas se voltaram para a regulação de preços e controle da oferta. A partir dos anos 90,os problemas de abastecimento passaram a ser combatidos, supostamente, através da desregulamentação domercado na esperança de que o crescimento econômico pudesse proporcionar renda, emancipando as famíliaspobres e alcançando a cidadania.Palavras-chave: pobreza e fome; política de abastecimento; política agrícola.

WALTER BELIK

Professor do Instituto de Economia da Unicamp, Consultor da Fundação SeadeJOSÉ GRAZIANO DA SILVA

Professor do Instituto de Economia da Unicamp, Bolsista do CNPq, Consultor da Fundação SeadeMAYA TAKAGI

Engenheira Agrônoma, Analista da Fundação Seade

dificuldade de medir, de forma direta, a quanti-dade de pessoas que passam fome é um proble-ma generalizado em todos os países, pois exige

também quantificou a pobreza nos municípios brasileiroscom mais de 100 mil habitantes. O Instituto Cidadania,por sua vez, estimou em 9,3 milhões de famílias e 44 mi-lhões de pessoas muito pobres, com renda familiar percapita abaixo de um dólar diário, em 1999.

Os estudos são unânimes no diagnóstico de que o pro-blema da fome no País, atualmente, é a falta de renda paraalimentar-se adequadamente, e de que essa falta de renda,traduzida por pobreza, é o reflexo da desigualdade de rendaexistente no País (Henriques, 2000), agravada pelos altosníveis de desemprego, e das taxas de crescimento econô-mico insuficientes para incorporar as pessoas que a cadaano querem ingressar no mercado de trabalho, além da faltade políticas públicas no campo da segurança alimentar.

O diagnóstico e as políticas receitadas para o combateà fome no Brasil passaram por três fases. Até os anos 30,os problemas de abastecimento estavam associados à ques-tão da oferta de alimentos para a população que crescen-temente se dirigia às metrópoles. Desse período até o fi-nal dos anos 80, a fome passou a ser encarada como umproblema de intermediação e as políticas se voltaram paraa regulação de preços e controle da oferta. Finalmente,com o início dos anos 90, os problemas de abastecimentopassaram a ser combatidos, supostamente, através da des-regulamentação do mercado na esperança de que o cres-cimento econômico pudesse proporcionar renda, emanci-pando as famílias pobres e alcançando a cidadania.

pesquisas extensas e dispendiosas (FAO, 1996). A pes-quisa que mais se aproximou desse objetivo, no Brasil,foi o Endef (Estudo Nacional da Despesa Familiar), de1974-75, que mensurou o consumo de alimentos e a ren-da das famílias. Ante a ausência de pesquisas diretas, inú-meros pesquisadores � entre os quais destacam-se técni-cos do Ipea, da Cepal, do IBGE e de várias universidades� desenvolveram metodologias diversas para seu dimen-sionamento. Em geral são metodologias baseadas na men-suração indireta da �fome� a partir da insuficiência de ren-da monetária para alimentar-se adequadamente, que iremoschamar aqui de �vulnerabilidade à fome�. Takagi, Grazianoda Silva e Del Grossi (2001) levantaram os estudos maisrecentes para a mensuração da indigência e da pobreza noBrasil.1 Eles verificaram disparidade muito grande nosresultados, variando de 8,7% de indigentes (Rocha, 2000)a 29,0% (Camargo e Ferreira, 2001), a partir dos dadosda PNAD de 1999. Recente trabalho da FGV-RJ, lançadoem julho de 2001, denominado Mapa do Fim da Fome (verwww.fgv.br), utilizando metodologia similar à adotada emFerreira, Lanjouw e Néri (2000), chegou ao valor de 49,8milhões de indigentes ou 29,3% da população, em 1999,considerando uma linha de indigência de R$ 80,00, refe-rente à Região Metropolitana de São Paulo. O trabalho

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Embora tenha havido mudança no diagnóstico e naspolíticas prescritas, o problema da vulnerabilidade à fomepermanece no início deste século tão ou mais grave quan-to antes. As últimas estatísticas têm mostrado não a dimi-nuição contínua dos níveis da pobreza e da indigência, masa manutenção dos níveis a partir de 1995 e até mesmo seuligeiro aumento em 1999 (Rocha, 2000; Hoffmann, 2001e Takagi, Graziano da Silva e Del Grossi, 2001), espe-cialmente nas áreas metropolitanas,2 como reflexo do cres-cente desemprego, da precariedade dos mercados de tra-balho e dos baixos salários vigentes.

INTERVENÇÕES NA ÁREA DOABASTECIMENTO

Apesar de o Brasil colonial estabelecer-se como áreade exploração e produção agrícolas, a preocupação comas culturas alimentares surge já no século XVI em funçãoda monocultura, que não deixava espaço para a produçãode �mantimentos�. Ao longo do período de escravidão,desenvolveu-se o dilema entre utilizar essa mão-de-obrapara produzir e comercializar alimentos em condições nãoremuneradoras e a alternativa de produzir para a exporta-ção. Por esse motivo, a produção de alimentos esteve li-gada muito mais ao auto-abastecimento das propriedadesque às demandas colocadas pelo mercado. Essa situaçãoabria espaço para alguns colonos na região de Minas Ge-rais ou foreiros e escravos que trabalhavam nas fazendasde cana-de-açúcar paulistas.

Segundo Burnier (2000:45), outros dois flagelos daadministração colonial eram o dízimo e o recrutamento.�O recrutamento era feito de forma aleatória e desorde-nada, tendo chegado na Bahia a provocar a carestia dealimentos: para fugir dele, muitos lavradores optavam porabandonar suas plantações�. Com a introdução do café ea cessação do tráfico negreiro, o problema da oferta dealimentos se agravou. Faltavam braços para cultivar a terrae havia mais bocas para alimentar nas cidades. A situaçãoera ainda pior em períodos de alta no preço do café, quandoa mão-de-obra disponível era totalmente aproveitada parao desenvolvimento dessa cultura de exportação.

A escassez de alimentos e o atraso nas estruturas decomercialização levaram à elevação no preço dos alimen-tos e à ação de especuladores. O ano de 1917 representaum marco nos problemas de alimentação, com o proble-ma da carestia apresentando-se como o estopim para adeflagração de manifestações e da primeira greve geraloperária de nossa história, que teve lugar na cidade de São

Paulo. Na realidade, a escassez estava sendo gerada pe-los crescentes embarques de alimentos brasileiros para oabastecimento das nações européias em guerra (Fritsch,1990:45). O mercado não queria café, cujos preços esta-vam em baixa, e sim alimentos. Isso levava a um enormeesforço das fazendas em situação financeira debilitada paradesviar o produto agrícola que atendia a uma populaçãourbana já na casa de milhões.

A crise dos anos 30 inaugura um período de interven-ções públicas federais no abastecimento. O governo Vargasimplantou um largo aparato de intervenção no qual cadaautarquia (açúcar e álcool, mate, sal, café, trigo, etc.) de-veria zelar pelo equilíbrio dos mercados interno e exter-no e pelos preços remuneradores aos produtores. É justa-mente nesse período que se agrava o problema da oferta,tendo em vista a desestruturação da agricultura cafeeira.Esta, por um lado, contribuía para a oferta de gêneros deprimeira necessidade e, por outro, segurava um grandecontingente populacional no campo.

A Comissão de Abastecimento, criada no período daditadura, compatível com o esforço de guerra (Decreto-Lei no 1.507 de 16 de setembro de 1939), tinha como ob-jetivo regular tanto a produção como o comércio de ali-mentos, drogas, material de construção e combustíveis, afim de segurar a alta de preços. A Comissão funcionavacomo um ministério extraordinário com superpoderes,podendo comprar ou requisitar e vender esses produtospara a população. Ela poderia também exigir a colabora-ção de órgãos ou funcionários estaduais e municipais.

Em termos práticos, a Comissão deixou algumas inicia-tivas importantes como os restaurantes populares � vin-culados ao Ministério do Trabalho e ao órgão de Previ-dência Social � e também alguns instrumentos de incentivoe apoio à produção agrícola. Os preços da alimentação,todavia, continuam a elevar-se durante o período da guer-ra e mesmo nos anos seguintes. A causa principal para essemovimento estava na desvalorização da moeda nacionalque tornava mais caras as importações e escassos os pro-dutos de origem nacional.

Nas décadas seguintes, a questão da fome e da carestiacomeça a receber uma atenção especial dos governantespor causa dos aspectos concernentes às questões de pro-dução, consumo e distribuição ou em virtude de questõessubjetivas ligadas a um país que queria libertar-se do atrasoe do subdesenvolvimento e entrar na modernidade. Comopano-de-fundo desses temas estavam os compromissosassumidos internacionalmente pelo Brasil em 1943, naConferência de Hot Springs (EUA), que lançou as bases

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para a criação da FAO � Food and Agriculture Organization,das Nações Unidas, e na própria criação da FAO em 1945.Nesse período, o brasileiro Josué de Castro tornava-seconhecido mundialmente com a publicação do seu livroGeografia da fome, em 1946.

Nos anos 50, com a modernização da agricultura e aabertura de novas vias de acesso e novas áreas de produ-ção, o discurso político e a ação governamental voltam-se para a área da distribuição. Embora a Reforma Agráriapassasse a ser apresentada como importante política deapoio à oferta de alimentos, e viesse no sentido mais ge-ral das reformas necessárias para o desenvolvimento dopaís, a ênfase da política do período vai se dar na área doabastecimento. Pela primeira vez, são tomadas medidasde intervenção direta no abastecimento em tempos de paz.

Nesse sentido, vale mencionar a criação da Cofap �Comissão Federal de Abastecimento e Preços em 1951,que mais tarde abriu espaço para uma área de fiscalização(Sunab), armazenamento (Cibrazém), distribuição (Cobal)e administração de estoques reguladores (CFP). Todosesses órgãos foram lançados dez anos depois, através dasleis delegadas, numa tentativa do governo Goulart de re-cuperar o atraso existente entre as estruturas de produçãoe comercialização e deter a especulação. Nesse períodotambém é criado o Entreposto Terminal de São Paulo, quefoi o embrião do Ceagesp e das Centrais de Abastecimen-to que se seguiram.

O surgimento do entreposto em São Paulo e a criaçãoda Cobal marcam uma mudança radical no rumo das polí-ticas de abastecimento. Até então, o poder público tinhacomo objetivo apenas fiscalizar e controlar os canais decomercialização. A partir da década de 60, o poder públi-co chama para si a tarefa de distribuir e fazer chegar até oconsumidor os alimentos necessários. Em outras palavras:deixam-se de lado os aspectos normativos e a atuação passaa ser direta na gestão do sistema de abastecimento. A preo-cupação principal não era combater diretamente o proble-ma da fome, mas sim dar uma resposta à sociedade queexigia preços mais baixos.

A partir da proposta inicial do Gemab � Grupo Execu-tivo de Modernização do Abastecimento, em 1968, e daCobal, institui-se extensa rede de centrais de abastecimento(47 entrepostos) e mais de uma centena de instalaçõesvarejistas (Rede Somar). Adicionem-se a isso outras cen-tenas de varejões e sacolões administrados pelos Estadose municípios que irão surgir ao longo dos anos 70 e 80.Essa postura é bastante distinta da anterior, que mantinhasob a administração pública apenas o esquema de conces-

sões em mercados municipais. Desta feita, o Estado pre-tende administrar, direcionar e punir os varejistas. Acre-ditava-se que reunindo em um só local oferta e demandade produtos agrícolas seria possível nivelar preços, com-parar padrões e reduzir margens.

MUDANÇAS NA CONJUNTURA NOSANOS 70 E 80: PRIORIDADE PARA APRODUÇÃO AGROPECUÁRIA

O esforço de modernização da agricultura brasileiraafastou a preocupação com a disponibilidade de alimen-tos. Desde a década de 50, a produção agrícola passou acrescer em ritmo superior ao aumento da população. Nofinal dos anos 60, a agricultura e a pecuária cresceram ace-leradamente (5,1% e 2,3% ao ano, respectivamente, parao período 1967-1970) e, no período seguinte, 1971-1976/1977, atingem seus maiores níveis de crescimento na his-tória: 5,5% e 6,3% para agricultura e pecuária.

O principal fator impulsionador da agricultura no pe-ríodo foi a política de crédito rural subsidiado. O resulta-do foi rápida expansão da fronteira agrícola, o que de-mandou, evidentemente, uma rede de estradas e corredoresque permitisse escoar a produção agrícola para o merca-do. Assim, embora a produção agrícola fosse suficientepara atender às necessidades nutricionais � mesmo consi-derando a crescente exportação de produtos agrícolas � eparte importante da distribuição estivesse sob controle dopoder público, os preços dos alimentos continuavam ele-vados e a questão da fome já se destacava na realidadebrasileira associada à questão da carestia dos alimentos eà inflação. Entre 1971 e 1980, o IPA � Índice de Preçosno Atacado de produtos agrícolas (IPA-DI) apresentou taxamédia anual de 30,4% contra um IPA-DI para todos osprodutos da ordem de 27,6%. Na década seguinte, no pe-ríodo 1981-1990, esse índice subiu para 208,5% (médiaanual) contra 203,9% do IPA-DI (média anual) para to-dos os produtos.3

Muitos fatores poderiam ser arrolados para explicaressas diferenças de indicadores, como a influência do câm-bio valorizado nos custos dos insumos agrícolas, meno-res ganhos de produtividade no campo, desvios de produ-ção para o mercado externo, etc. No entanto, dois aspectospodem ser considerados fundamentais para compreendera reversão de políticas que se processa nos anos 90.

Primeiro, a ineficiência das estruturas de comerciali-zação. Apesar de todo o aparato montado ao longo dos 30anos anteriores, o poder público foi ineficiente em con-

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trolar preços e margens e em modernizar a comercializa-ção. No sistema de atacado, as Ceasas jamais funciona-ram como espaços de aproximação de produtores e con-sumidores. Ao contrário: tão logo elas se estabeleceram,o sistema passou a ser controlado por atacadistas priva-dos que se consolidaram como um novo elo na cadeia dedistribuição. Durante todo esse período, pouca coisa sealterou também no sistema de escoamento da produção,embalagens e mecanismos de formação de preços. Na prá-tica, os agentes e os mercados tradicionais passaram a atuarnos novos espaços patrocinados pelo poder público semmudanças e maiores efeitos na oferta.

Segundo, a importância cada vez maior do peso dosprodutos industrializados na cesta de consumo da popu-lação. Essa particularidade chamou a atenção de Baer(1995:370), em sua análise da estrutura de consumo pes-soal do Brasil, calculada a partir das Contas Nacionais.Observa-se que a proporção do consumo de produtos agrí-colas in natura nos gastos totais com consumo reduziu-sede 17,4% para 5,4% e depois para 3,3% entre 1959, 1970e 1975. Por sua vez, o consumo de alimentos industriali-zados cresceu de 15,1% para 25,3% e depois se reduziupara 21,12% no período analisado.

De fato, com a urbanização e a mudança dos hábitosalimentares da população, cresceu o consumo de produ-tos industrializados ou semipreparados. Assim, uma par-te cada vez mais importante da produção agrícola acaba-va por seguir outros circuitos, passando de um bem finalde consumo a um insumo para a indústria de alimentos e,daí, para os supermercados e mercearias.4

Acrescente-se a isso também as mudanças ocorridas naestrutura familiar e no mercado de trabalho, que levarama um crescente consumo de alimentos fora dos domicí-lios. Dados observados por Maluf (2000:9) chamam a aten-ção para o fato de, mesmo nas classes de renda mais bai-xa (até 2 SM), o gasto com alimentação fora de casa saltarde quase nada no total gasto com alimentação para maisde 12% em 1999. Esses fatores têm enorme influência nãosó nos circuitos de distribuição dos alimentos industriali-zados mas também dos in natura. Estamos considerando,portanto, que uma importante parcela da produção nãorecebe qualquer influência ou regulação do poder públi-co e circula de forma independente, passando a criar aspróprias rotinas de compras.

Esses elementos nos permitem mostrar que a ação doEstado na regulação da distribuição e no combate aos pro-blemas da fome mudou nos seus fundamentos. Nos anos90, assistimos ao desmonte das estruturas antigas e o res-

surgimento de políticas de assistência direta à populaçãocarente.

Em comparação com o enorme apoio recebido pelaprodução agrícola, foram poucas as ações do Estado emdireção a uma política de abastecimento e combate à fome.Nos anos 70, consolidou-se o sistema de Centrais de Abas-tecimento concebido nos anos 80 e a distribuição varejis-ta ficou sob responsabilidade dos Estados e municípios,que incrementaram e ampliaram a rede de varejões esacolões. A única iniciativa federal efetiva, visando aten-der consumidores de baixa renda, foi a criação da RedeSomar que, conforme já comentado, chegou a adminis-trar mais de uma centena de estabelecimentos.

Merece ser lembrado apenas, nesse período, o Pro-grama Nacional do Leite para Crianças Carentes(PNLCC), criado em 1986 no governo Sarney, para aten-der família com renda mensal total até 2 Salários Míni-mos e crianças de até 7 anos de idade. Como destacaCohn (1995), o programa foi muito malsucedido em suaabrangência e gestão. Entretanto, foi a primeira expe-riência em grande escala de distribuição de cupons dealimentos no Brasil.

O PNLCC estava vinculado diretamente à Presidênciada República, e controlava a oferta (produção e importa-ção de leite) e o sistema de distribuição. Os cupons, co-nhecidos como �tíquetes do Sarney� eram distribuídos àsfamílias carentes previamente cadastradas em entidadesde base, na proporção de um litro de leite por criança. Nãohavia contrapartida por parte dessas famílias, nem con-troles que pudessem conferir se os cupons estavam mes-mo sendo trocados por leite.

Embora não haja informações sobre o custo desse pro-grama e sobre os resultados das metas estabelecidas � aten-der mais de 10 milhões de crianças (Secretaria de Agri-cultura e Abastecimento, 1986:17) � observou-se aumentosignificativo na produção de leite no país (20,1% entre1986 e 1990) e crescimento no consumo per capita de 94litros/ano para 109 litros/ano nesse período. Vale lembrar,também, que essa foi a primeira experiência na implemen-tação de políticas, cujas metas foram traçadas de baixopara cima. Foi também a primeira experiência de comprapública de gêneros alimentícios feita diretamente na redecomercial constituída. Não se estabeleceram novos canaisde comercialização nem se distribuiu alimento em espé-cie, e sim o meio de compra para a aquisição de alimen-tos.

As mudanças nas diretrizes da política macroeconômi-ca nos anos 90 levaram à redução gradativa dos gastos

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com agricultura e alimentação. Tomando-se apenas asdespesas orçamentárias do governo federal, verifica-se queos recursos alocados na �função agricultura�, reduzem-sede 5,75% no início dos anos 80, para apenas 2,11% namédia do período 1995-1999 (Gasques, 2001). Emboratenha havido crescimento dos gastos ao longo desse pe-ríodo, esse foi muito inferior ao crescimento dos gastosdo governo. Enquanto a taxa anual de crescimento dosgastos com a agricultura cresceu 4,22%, as despesas ge-rais tiveram um crescimento médio de 12,21% ao ano. Valeressaltar ainda que �mais de 50% do gasto público estãopulverizados em ações sobre as quais o governo não temo menor acompanhamento ou controle� (Gasques, 2001:11e 29).

Com o esvaziamento das despesas de governo com aagricultura (leia-se: crédito agrícola, preços mínimos eestoques reguladores), restou ao Estado promover políti-cas compensatórias. Nesse particular, inserem-se políti-cas pontuais e regionais visando atender às demandas degrupos organizados. Não seria exagero afirmar que, coma importante exceção dos recursos destinados à Previdên-cia Rural (estabelecidos pela Constituição de 1998), hou-ve uma redução generalizada dos gastos em programas eações na área social. Na agricultura, assim como em ou-tros setores, houve um redirecionamento das fontes pú-blicas para as de origem privada.

A mudança de enfoque não abalou tanto o crescimentoda agricultura empresarial, especialmente dos segmentosvoltados à exportação, que continuaram a apresentar re-sultados crescentes em termos de quantidades produzidas.Parcela cada vez maior de pequenos agricultores, toda-via, passou a conviver com a situação de insolvência, dei-xando de lado a atividade agrícola. Dias et alii (2000)estimam, com dados do IBGE de 1996, que aproximada-mente 20,4% dos produtores agrícolas tinham rendas ne-gativas e 59,5% abaixo da renda mediana, o que quer di-zer que se tratava de agricultores eminentemente pobres.

A RETOMADA DA QUESTÃO DAFOME NOS ANOS 90

Embora nunca tenha saído da pauta de problemas na-cionais, nem de reivindicações dos movimentos sociais,houve um arrefecimento da discussão sobre o problemada fome e da miséria no País desde a mobilização promo-vida pela Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria epela Vida e da extinção do Consea (Conselho Nacionalde Segurança Alimentar), em 1993.

Sua retomada, no início dos anos 2000, está relaciona-da com vários fatores: primeiro, o agravamento da situa-ção de pobreza e da vulnerabilidade das famílias no País,especialmente nas grandes cidades, aprofundada pela cri-se econômica e pelo aumento do desemprego no final dadécada de 90. Segundo, as iniciativas dos organismos in-ternacionais, como a FAO, a ONU e o Banco Mundial,sobre o tema da fome e da pobreza.5 Essas preocupaçõese ações refletem o fato de que a manutenção da pobreza ede níveis agudos de fome (e até mesmo seu aumento emalguns países) é o calcanhar-de-aquiles para o �sucesso�do �modelo de desenvolvimento equilibrado� dessas eco-nomias.

A Cúpula Mundial da Alimentação em Roma, 1996,que reuniu 186 países, definiu como meta reduzir pelametade o número de desnutridos até o ano 2015, o que fezcom que a FAO adotasse uma metodologia para acompa-nhamento da quantificação da fome no mundo. Similar-mente, o Banco Mundial acompanha os dados de pobrezano mundo desde 1993, sendo que seu último relatório so-bre desenvolvimento mundial (2000/2001) denomina-se�Luta contra a Pobreza�. O Programa das Nações Unidaspara o Desenvolvimento � PNUD, na mesma linha, ado-tou o compromisso de reduzir pela metade a extrema po-breza no mundo, e também publica anualmente avaliaçõessobre o estado de desenvolvimento humano mundial,acompanhando indicadores sociais.

Ao contrário de outros países (desenvolvidos ou não)que têm adotado políticas claras para aumentar o acessoda população à alimentação, o Brasil ainda se ressente dafalta de um projeto integrado e com recursos para atendera esse objetivo. A seguir, apresenta-se um rápido resumosobre as marchas e contramarchas das políticas de com-bate à fome no Brasil nos anos 90.

No início da década de 90, o governo Collor de Meloreestruturou os órgãos e instrumentos de políticas ligadosà saúde e nutrição, extinguindo políticas como os progra-mas de suplementação alimentar dirigidos a crianças meno-res de 7 anos, e enfraquecendo outras, como o ProgramaNacional de Alimentação Escolar, o Programa de Alimen-tação do Trabalhador e o Inan (Instituto Nacional de Ali-mentação e Nutrição) (Valente, 2001). Segundo Valente,a única novidade positiva no período foi a iniciativa deutilização de estoques públicos de alimentos para Progra-mas de Alimentação, uma reivindicação antiga de técni-cos para reduzir as perdas dos estoques, originando o pro-grama de distribuição de cestas básicas para a populaçãoatingida pela seca do Nordeste, em 1990.

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O período seguinte (1992/1994) é marcado pela realiza-ção de ampla mobilização da sociedade civil em torno dotema da fome e da miséria, impulsionada pela mobilizaçãopela ética na política, resultando na tentativa de implanta-ção, pela primeira vez, de uma política de combate à fomeno País. As iniciativas de partidos políticos da oposição, comoo Partido dos Trabalhadores, ao elaborar uma Política Na-cional de Segurança Alimentar e apresentá-la ao governofederal, e a mobilização da sociedade em torno da campa-nha da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pelaVida, coordenada pelo sociólogo Betinho, tiveram forte im-pacto. Como resultado dessa mobilização, foi criado, em maiode 1993, na gestão Itamar Franco, o Consea, vinculado dire-tamente à Presidência da República e com a participação deorganizações não-governamentais. Segundo Valente (2001),o Consea era integrado por 8 ministros e 21 representantesda sociedade civil, em grande parte indicados pelo Movi-mento pela Ética na Política, para coordenar a elaboração eimplantação do Plano Nacional de Combate à Fome e à Mi-séria dentro dos princípios da solidariedade, parceria e des-centralização.

O Consea chegou a funcionar por apenas dois anos. Ape-sar de representar uma novidade institucional, ao envolvervários ministérios e também segmentos organizados da so-ciedade civil, ficou sujeito às restrições da área econômica,cuja prioridade de estabilização monetária deixava à mar-gem as políticas sociais. Alguns dos poucos resultados quepodem ser atribuídos à atuação do Consea foram a descen-tralização do Programa Nacional de Alimentação Escolar (amerenda escolar) em direção aos municípios e às própriasescolas (autonomização da gestão); a continuidade do Prodea,com a utilização de estoques públicos de alimentos; e a prio-ridade ao programa de distribuição de leite (Programa �Aten-dimento ao Desnutrido e à Gestante em Risco Nutricional �Leite é Saúde�), como estratégia de combate à desnutriçãomaterna e infantil.

O governo Fernando Henrique Cardoso extinguiu oConsea e, no lugar dele, criou o Conselho Comunidade Soli-dária, um órgão mais de consulta que executivo. A partir daí,observa-se uma nova fragmentação das políticas públicas decombate à fome, que resultou, por exemplo, na extinção doInan, em 1997, e na manutenção do programa de distribui-ção de cestas básicas de forma instável e sujeito ao calendá-rio eleitoral. Em 1998, ano eleitoral, o governo distribuiu orecorde de 30 milhões de cestas básicas (conforme editorialdo jornal Folha de S.Paulo em 28/11/00).

Em 1999, foi criado o Programa Comunidade Ativa(PCA), coordenado pela Secretaria Executiva do Co-

munidade Solidária. O PCA é voltado para as localida-des, sendo os municípios escolhidos por terem menorIDH (Índice de Desenvolvimento Humano). A propos-ta do programa é a realização de agendas de desenvol-vimento a partir de diagnósticos participativos paraidentificação dos problemas locais. A partir dessas agen-das, o governo federal dá prioridade a essas localida-des em programas como Redução da Mortalidade In-fantil, Agentes Comunitários de Saúde, Saúde daFamília e programas de microcrédito (Terra, 2000). Se-gundo Valente (2001), no início de 2001, apenas 157municípios haviam sido contemplados na primeira fasedo programa, contra a previsão inicial de atingir 1.000até o final de 2000. A mesma proposta do PCA foi,posteriormente, incorporada em novo programa do go-verno federal, o Projeto Alvorada, que é uma junçãode diversos outros programas em andamento e implan-tados em cada ministério.

Com relação às políticas na área de saúde, desde a ex-tinção do Inan, o principal programa federal para comba-te às carências nutricionais à população de risco tem sidoo fornecimento de leite e óleo de soja. Isso vem sendofeito através do programa de Incentivo ao Combate àsCarências Nutricionais � ICCN, vinculado à Política Na-cional de Alimentação e Nutrição � PNAN, do Ministérioda Saúde, juntamente com o fornecimento da multimisturapara crianças desnutridas, através da Pastoral da Criança.O governo federal planeja substituir progressivamente oICCN por um programa de renda mínima, o Bolsa-Saúde,a partir de 2001. A proposta é de uma complementaçãomonetária de R$ 20,00 por nutriz, gestante ou criança atéseis anos, com no máximo três beneficiários por família,com um valor total previsto de cerca de R$ 570 milhões.

No final de 2000, o governo federal cortou, do Orça-mento de 2001, a verba para o Prodea, acabando com adistribuição de cestas básicas. A justificativa oficial foi ocaráter assistencial do programa, que não contribui, se-gundo o governo, para o combate à pobreza no país. Alémdisso, argumentou-se que a distribuição de cestas vindasde fora não ajuda a economia local do município, porquediminui as compras nos pequenos comércios. A propostado governo federal, desativando o Prodea, era transferirgradativamente as famílias atualmente beneficiadas paraoutros programas sociais vinculados ou não ao ProjetoAlvorada, com especial ênfase no Bolsa-Alimentação, re-cém-criado, e no Bolsa-Escola, a partir de 2001.

O Bolsa-Escola federal, criado em fevereiro de 2001 eimplantado pelo Ministério de Educação, visa fornecer a

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quantia de R$ 15,00 por mês para cada criança matricula-da na escola, com no máximo R$ 45,00 por família, atra-vés de recursos previstos de R$ 1,7 bilhão, provenientesdo Fundo de Combate à Pobreza.6 A meta do governo éatingir 10,7 milhões de crianças e 5,9 milhões de famíliasem 2001. O valor da bolsa é menor que o valor de merca-do da cesta básica distribuída pelo Prodea � esta, segun-do cálculos de Lavinas et alii (2000), variava de R$ 18,90em Curitiba a R$ 21,66 em Belo Horizonte � e bem me-nor do que o das políticas que deram origem ao ProgramaBolsa-Escola, como na Prefeitura de Campinas (gestãoMagalhães Teixeira, 1997/2000, cujo valor, hoje, variade R$ 125,00 a R$ 370,00 por família), no Distrito Fede-ral (gestão de Cristovam Buarque, 1995/1998 de R$ 130,00por família � o salário mínimo da época), e nas Prefeitu-ras de Porto Alegre, de R$ 150,00 por família, e de Reci-fe, no valor de R$ 75,00 por aluno matriculado (Azevedoet alii, 2001).

Em resumo, é possível identificar duas tendências atuaisnas políticas de combate à fome do governo federal: primei-ra, um esvaziamento das políticas universais e sua substitui-ção por políticas compensatórias localizadas, de caráter fo-calizado e geridas pelos próprios municípios, voltadas paraa área social em geral (Lobato, 2001). Dá-se prioridade aosmunicípios mais pobres e procura-se implantar, gradualmente,agendas locais, apostando na mobilização, formação e trei-namento de agentes locais de desenvolvimento. O alcancedessa política tem se revelado bastante limitado, como se podeverificar pelos baixos resultados alcançados até o momentona redução dos desequilíbrios sociais. Isso porque a fome noBrasil tem, cada vez mais, determinantes globais � como acrise econômica, que resulta em desemprego e baixos salá-rios, além da extrema desigualdade social no País � e menosdeterminantes locais.7

A segunda tendência é a substituição de programasbaseados na distribuição de bens em espécie (como ces-tas básicas e leite) por um valor mensal em dinheiro, varian-do entre R$ 15,00 e R$ 20,00 por mês. O agravante é queessas novas políticas direcionadas para a população maisvulnerável à fome não prevêem formas de emancipaçãodo dependente do benefício nem de acompanhamento, paraverificar se as famílias realmente solucionam a carênciaalimentar.8

PROPOSTAS PARA O COMBATE À FOME

Na nossa opinião, o problema da fome no Brasil nesteinício do século XXI está relacionado com uma insuficiên-

cia de demanda efetiva, que inibe a maior produção dealimentos por parte da agricultura comercial e daagroindústria do País. As razões que determinam essa in-suficiência da demanda efetiva � concentração excessivada renda, baixos salários, elevados níveis de desempregoe baixos índices de crescimento, especialmente daquelessetores que poderiam expandir o emprego � não sãoconjunturais. Ao contrário, são estruturais, ou seja,endógenas ao atual padrão de crescimento e, portanto,resultados inseparáveis do modelo econômico vigente.Forma-se, assim, verdadeiro ciclo vicioso e acumulativo,causador em última instância do aumento da fome no País,qual seja, desemprego, queda do poder aquisitivo, redu-ção da oferta de alimentos, mais desemprego, maior que-da do poder aquisitivo, maior redução na oferta de ali-mentos.

Para romper esse ciclo perverso, é preciso a interven-ção do Estado com um autêntico programa keynesiano,de modo a incorporar ao mercado de consumo de alimen-tos aqueles que estão excluídos do mercado de trabalhoe/ou que têm renda insuficiente para garantir uma alimen-tação digna a suas famílias.

Trata-se, em suma, de criar mecanismos � algunsemergenciais, outros permanentes � no sentido de: bara-tear o acesso à alimentação para a população de mais bai-xa renda, em situação de vulnerabilidade à fome; incenti-var o crescimento da oferta de alimentos baratos, mesmoque seja através do autoconsumo e/ou da produção de sub-sistência; e, finalmente, incluir as famílias através do au-mento da renda, da universalização dos direitos sociais edo fornecimento de direitos de compra de alimentos, dadoque o acesso à alimentação básica é direito inalienável dequalquer ser humano, para não falar do direito de cida-dão, que deveria ser garantido a todos os brasileiros.

Para o equacionamento definitivo do problema da fo-me, é necessário, conforme foi dito, um novo modelo eco-nômico que privilegie o crescimento do mercado internoe que diminua a extrema desigualdade de renda existenteno País. Enquanto isso é buscado, pode-se implementaruma série de políticas que promovam melhorias na rendadas famílias, barateamento da alimentação, aumento daoferta de alimentos básicos e, simultaneamente, forneçamde forma emergencial alimentos à população vulnerável àfome.

A Figura 2 apresenta, esquematicamente, os principaiseixos de atuação e as principais políticas para combater afome no País. As propostas apresentadas tratam, basica-mente, de uma compilação de iniciativas já implementa-

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das ou em implementação no Brasil ou em outros paísesque, se implementadas de forma conjunta, podem reduzirefetivamente a fome. O fundamental, a nosso ver, não épropor �novas� políticas, mas integrá-las, articulando osdiversos níveis de governo (federal, estadual e municipal)com os segmentos da sociedade civil para garantir suaimplementação.

Esquema de uma Política Integrada de Combate à Fome:Melhoria da Renda � As iniciativas de fornecimento de ren-da para as famílias carentes (através de programas de rendamínima, bolsa-escola e previdência social universal) sãoimportantes para a melhoria da renda familiar, mas sozinhasnão conseguem solucionar o problema alimentar de segmentosimportantes da população carente. Associam-se, também, aeste grupo, programas de geração de emprego e renda, a re-forma agrária, com o papel fundamental de fornecer �casa,comida e trabalho� às famílias rurais mais pobres, e políti-cas de estímulo à produção de alimentos para o autoconsumo,como fornecimento de mudas, sementes, insumos, matrizesde pequenos animais, etc.

Barateamento da Alimentação � As iniciativas dos res-taurantes populares, que fornecem refeições prontas a pre-ço baixo (R$ 1,00 a R$ 2,00) à população trabalhadoraque mora nas periferias das grandes cidades, têm tido su-cesso no barateamento da alimentação que é realizada forade casa. Outra iniciativa importante é a dos canais alter-nativos de comercialização, como varejões, feiras livres,sacolões, feira do produtor, compras comunitárias quefornecem alimentos de qualidade e de baixo custo, pelaredução da intermediação. A formação de centrais de com-pras nas periferias em parcerias com o poder público, agre-gando pequenos supermercados para racionalizar a lo-gística e diminuir seus custos, visando à redução dos preçosfinais, é alternativa a ser incentivada. Parcerias com asredes de varejo de vizinhança são possíveis em progra-mas como os cupons-alimentação, como será apresenta-do nas ações emergenciais. Por fim, é preciso ampliar oPrograma de Alimentação do Trabalhador � PAT, de modoa atender também os empregados das micro e pequenasempresas.

FIGURA 1

Círculo Vicioso da FomeBrasil

Fonte: Instituto Cidadania.

CONSUMO DEALIMENTOS CAI

FOME DIMINUI OFERTADE ALIMENTOS

FALTA DE POLÍTICAS DE GERAÇÃODE EMPREGO E RENDA

Salários Baixos

Concentração de Renda

Desemprego Crescente

CRISE AGRÍCOLA

Juros AltosQueda dosPreços Agrícolas

Falta de Políticas Agrícolas

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Ações Específicas � Paralelamente às ações já aponta-das, é necessário atender, de forma emergencial, as famí-lias que já sofrem o efeito da fome e/ou que sejamvulneráveis a ela, por não ter renda para se alimentar ade-quadamente. Esses programas específicos devem atendertodas as famílias com renda insuficiente para alcançar asegurança alimentar. A exemplo do programa americanoFood Stamp, que fornece às famílias pobres selos (ou va-les) para compra de alimentos no comércio local, propõe-se que sejam fornecidos cupons de alimentação para asfamílias completarem sua renda até o valor correspondenteao da Linha de Pobreza de cada região do País. Esses cu-pons poderão ser trocados por alimentos em estabeleci-mentos cadastrados, e podem ser geridos conjuntamentepelo governo federal e por governos estaduais e munici-pais. Além de fornecer meios para as famílias se alimen-

tarem, o programa visa incentivar o comércio local (atra-vés de parcerias com os estabelecimentos cadastrados) eo consumo de produtos naturais (através de centrais decompras em parceria com associações de produtores agrí-colas), permitindo, ao mesmo tempo, que cada famíliaconstrua o próprio cardápio. O programa de cestas bási-cas deve ser mantido, mas assumindo caráter exclusiva-mente emergencial, para aqueles segmentos da populaçãoatingidos por calamidades naturais (secas e enchentes) epara os novos assentados de reforma agrária, até que sedesenvolva o comércio local e as famílias possam ser aten-didas pelo programa do cupom-alimentação. O forneci-mento das cestas básicas emergenciais poderá ser garan-tido pela instituição de estoques públicos de segurançaalimentar, conforme defendido por organismos internacio-nais como a FAO, desvinculados dos estoques agrícolas

FIGURA 2

Esquema de uma Política Integrada de Combate à FomeBrasil

Fonte: Instituto Cidadania.

Novo Modelo Econômico

FOME

Crescimento do Mercado Interno

Cre

scim

ento

do

Empr

ego

e Sa

lári

os Melhor D

istribuição de Renda

Melhoria na Renda� bolsa-escola e renda mínima� expansão previdenciária� reforma agrária� microcrédito

Barateamento da Alimentação� restaurante popular� convênio supermercado/sacolão� canais alternativos de comercialização� equipamentos públicos� PAT� legislação anti-concentração� cooperativas de consumo

Ações Específicas� cupom de alimentos� cesta básica emergencial� merenda escolar� programas especiais� banco de alimentos� estoques de segurança� combate à desnutrição materno-infantil� educação alimentar

Aumento de Ofertas deAlimentos Básicos

� apoio à agricultura familiar� incentivo à produção para autoconsumo� política agrícola

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destinados a evitar oscilações de preços. Além desses,devem-se manter programas nas áreas de saúde, com oacompanhamento da situação nutricional de crianças eadultos e o fortalecimento da ação do Sisvan (Sistemasde Vigilância Nutricional) nos municípios, de forma amonitorar a situação de carência alimentar das famíliasde baixa renda.Combate ao Desperdício � Especialmente nas grandescidades, verifica-se a existência de uma rede de produçãoe desperdício de alimentos prontos ou não que, mesmoem boas condições, são jogados fora. A criação dos Ban-cos de Alimentos é uma forma de aproveitamento dessassobras, atuando no recolhimento e distribuição a associa-ções beneficentes ou diretamente a famílias carentes. Ini-ciativas como essa funcionam em São Paulo (ProgramaMesa São Paulo, do Sesc, e na Prefeitura de Santo André,por exemplo) e em várias outras capitais.Aumento da Oferta de Alimentos Básicos � A implan-tação conjunta dos programas de melhoria na renda, ba-rateamento da alimentação e das ações emergenciais irá,certamente, aumentar muito a demanda por alimentos noPaís. Nesse caso, serão necessários programas de estímu-lo aos agricultores familiares, através do redirecionamentode créditos agrícolas, do incentivo à agricultura urbanacom programas de zoneamento que permitam aproveitarterrenos para implantação de hortas. Através da criaçãode canais de venda dos produtos, compras institucionais(merenda, hospitais, presídios e programas do cupom-ali-mentação) e parceiras com supermercados (estímulo acompras de produtores locais), pode-se incentivar o aces-so dos agricultores familiares aos mercados locais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mostramos, neste texto, que o problema da fome per-manece grave no País e está hoje fortemente relacionadocom a falta de renda para uma alimentação adequada, emfunção dos baixos salários e do desemprego crescente nasregiões metropolitanas, sem deixar de lado a falta de ca-nais de abastecimento locais (como nas regiões da secado Nordeste).

Analisando em retrospecto as políticas alimentares noBrasil, foi possível observar como elas mudaram de cará-ter ao longo das décadas. De forma bastante simplificada,as políticas alimentares foram analisadas a partir dos se-guintes períodos: no início do século passado, predomi-naram políticas de intervenção para resolver o problema

dos preços altos e da falta de alimentos. A partir dos anos30, predominou a visão de atuar nas estruturas de distri-buição. Ampla estrutura de estocagem e distribuição dealimentos foi criada nacionalmente, sobretudo a partir dadécada de 60. Em seguida, nos anos 70, ampliou-se a in-tervenção pública e o Estado passou a atuar no incentivoà produção agropecuária, gestão direta das estruturas decomercialização e na regulação do mercado. Finalmente,no final dos anos 80, observou-se o desmonte das políti-cas agrícolas � em particular a do crédito rural subsidiado� que deram sustentação à agricultura intensiva, embora aprodutividade e a produção continuassem a elevar-se nasdécadas seguintes, e das políticas de abastecimento.

Os anos 90 foram marcados por dois períodos muito dis-tintos: na primeira metade da década, houve grande mobili-zação da sociedade em torno do tema do combate à fome e àmiséria, resultando na formação, pela primeira vez, de umainstitucionalidade integrada, de caráter nacional, para o com-bate à fome. Essa estrutura dinamizadora, o Consea, teve, noentanto, vida curta. A segunda metade da década foi marca-da pelo desmonte das estruturas anteriores e sua substituiçãopor políticas focalizadas, de articulação com as comunida-des, e pelo fornecimento de programas de renda mínima dotipo bolsa-escola, bolsa-saúde, etc.

Considerando-se as oscilações recentes da economia bra-sileira e o fato de que essas propostas ainda estão em fase deimplantação, pouco há para se avaliar. No entanto, o textotambém mostrou uma série de iniciativas, algumas já em an-damento, outras novas que, se implantadas de forma integra-da, serão capazes de reduzir enormemente o problema dafome no País, envolvendo toda a sociedade.

NOTAS

E-mail dos autores: [email protected], [email protected] [email protected] texto faz parte do Projeto Fome Zero que está sendo elaboradopelo Instituto Cidadania (www.icidadania.org.br).1. Os indigentes são calculados através da quantificação de pessoasou famílias com renda abaixo do necessário para adquirir uma cestade alimentos com quantidades energéticas mínimas ou recomendadas.A linha de pobreza é superior à de indigência pois inclui, além do va-lor dos alimentos, outras despesas não alimentares, como vestuário,moradia, transportes, etc.2. Del Grossi, Graziano da Silva e Takagi (2001) calcularam o cresci-mento das pessoas pobres entre 1995 e 1999, chegando à taxa de 1,2%ao ano, bastante próxima da taxa vegetativa de crescimento da popu-lação brasileira. No entanto, nas regiões metropolitanas, a taxa de cres-cimento foi de 5,0% a.a., enquanto nas áreas urbanas não metropolita-nas e nas áreas rurais foram de, respectivamente, 0,9% e -0,4% a.a.3. É importante mencionar que, na década de 90, com a liberalizaçãodos mercados, os preços alimentares no atacado continuaram a suplantar

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o IPA-DI total. O IPA-DI de gêneros alimentícios subiu 230,2% aoano, contra 205,7% do IPA-DI geral. Durante todo o período, no en-tanto, verifica-se que os preços recebidos pelos produtores agrícolassão decrescentes.4. No Brasil, assim como em outros países, o crescimento da comer-cialização de alimentos em supermercados está diretamente ligado aoseu processamento. A venda em supermercados exige embalagens ho-mogêneas e pesos e dimensões previamente estabelecidos. Só recente-mente é que a tecnologia proporcionada pela informática permitiu queas grandes instalações de varejo pudessem comercializar vantajosa-mente produtos a granel.5. Percebe-se a partir do fim da década passada uma ação mais coor-denada em torno de programas de �Combate à Pobreza� (Banco Mun-dial, 2000 e PNUD, 2000) ou �Segurança Alimentar� (FAO, 2000).6. Conforme dados presentes em www.mec.gov.br (julho 2000).7. A respeito dos resultados e do diagnóstico das causas da fome, ver aversão preliminar para discussão do Projeto Fome Zero(www.icidadania.org.br).8. Nos EUA, as avaliações dos programas de combate à fome mostramque o mais eficiente é o food stamps, que garante o acesso à comprade alimentos através de selos (cupons): para cada dólar recebido, asfamílias aumentam seus gastos com alimentos de 17% a 47%, comuma média de 30%. Outros programas que, ao invés de cupons, distri-buem dinheiro (tipo renda mínima ou bolsa-escola, por exemplo) têmimpacto bem menor: de cada dólar recebido em dinheiro, as famíliaspobres aumentam o consumo de alimentos entre 5% e 11% no máxi-mo, �desviando� a maior parte dos recursos para o pagamento de ou-tras despesas. Ver, a respeito, Rossi (1998).

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ESTATUTO DA CIDADEaspectos políticos e técnicos do plano diretor

Resumo: São discutidos o sentido e a articulação entre os aspectos políticos e técnicos de políticas públicas,tendo por pressuposto que o alcance social de qualquer intervenção pública é definido por seus próprios obje-tivos. O contexto para essa discussão é a política de desenvolvimento urbano e o plano diretor, visto como seuinstrumento, nos termos propostos pela Constituição Federal de 1988 e recentemente regulamentados pela LeiFederal no 10.257/01.Palavras-chave: Estatuto da Cidade; política de desenvolvimento urbano; planejamento urbano; plano diretor.

SONIA NAHAS DE CARVALHO

Socióloga, Analista da Fundação Seade

objetivo deste texto foi identificar aspectos, denatureza política e técnica, que consideram-sebásicos para a discussão sobre planos diretores

tuição de canais de participação social � uma das ques-tões centrais que tem preocupado analistas e técnicos �não é passível de fórmulas a priori estabelecidas. O papeldo técnico em planejamento é garantir que os canais ins-tituídos permaneçam abertos e contribuir para a institui-ção de novos. Jamais o planejador poderá substituir sejaa vontade política, seja a pressão social.

INSTRUMENTOS LEGAIS NORTEADORES

O ressurgimento do plano diretor e, em associação, doplanejamento urbano, nas agendas de debate público e go-vernamental, é o resultado da imposição de sua obrigato-riedade aos municípios com mais de 20 mil habitantes pelaConstituição Federal de 1988.1

A Constituição Federal, ao incorporar pela primeira vezum capítulo específico sobre política urbana (capítulo II,título VII), estabeleceu como competência do poder públi-co municipal a responsabilidade pela execução da políticade desenvolvimento urbano, podendo contar, para tanto,com a cooperação das associações representativas no de-senvolvimento de ações de promoção do planejamentomunicipal (artigo 29, inciso X) e, ao mesmo tempo, articu-lando-se às ações promovidas pelo governo federal.

À instância federal de governo cabe estabelecer as dire-trizes e fixar as normas necessárias para a utilização dosdispositivos constitucionais que permitirão ao poder pú-

dentro do contexto atual em que foi proposta a sua exi-gência. Para tal identificação, o parâmetro definido é queo alcance social de uma proposta de intervenção pública� no caso, o plano diretor � dependerá dos objetivos ediretrizes que venham a ser estabelecidos para ela. Asua operacionalização � isto é, a definição de fases, pro-cedimentos e instrumentos � deverá se ajustar às neces-sidades impostas pelas diretrizes e objetivos a serem se-guidos.

Portanto, mais do que os setores tradicionalmente tra-tados como tal (educação, saúde, habitação, assistênciasocial, etc.), social refere-se a intervenções que busquemreduzir desigualdades, segregações e exclusões sociais,contribuindo, em última instância, para a expansão da ci-dadania. É este o sentido que se buscou neste trabalho. Enessa interpretação, o planejamento urbano, e o plano di-retor visto como seu instrumento central, adquire o statusde política pública.

Não se tem, porém, a pretensão de esgotar os possíveisângulos relativos ao tema. Nem se pretende, por suposto, aproposição de normas ou manuais de procedimentos, pois,dessa forma, haveria o risco da adoção de uma postura tec-nocrática. Não é esse o objetivo. O envolvimento de seg-mentos organizados da sociedade no processo ou a insti-

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ESTATUTO DA CIDADE: ASPECTOS POLÍTICOS E TÉCNICOS DO PLANO DIRETOR

blico municipal intervir no espaço urbano, conforme o in-ciso XX, do artigo 21. Após tramitação, ocorrida ao longodos anos 90, o Congresso Nacional aprovou e a Presidên-cia da República sancionou a Lei federal no 10.257, de 10de julho de 2001, que, sob o título de Estatuto da Cidade,regulamentou os principais institutos jurídicos e políticosde intervenção urbana.

Ao longo dos anos 90, várias foram as prefeituras queiniciaram o processo da política de desenvolvimento urba-no e de elaboração do plano diretor, valendo-se dos pre-ceitos constitucionais de 1988 e com o resgate do planeja-mento urbano em novas bases. Dentre as experiências,aponta-se a do município de Santos, onde o poder públicomunicipal propôs e buscou implementar instrumentos re-guladores da produção do espaço urbano na perspectiva daampliação do direito à cidade, dentro de um processo de-mocrático de discussão e participação sociais (Carvalho,1999).2

O Estatuto da Cidade reafirma os princípios básicosestabelecidos pela Constituição da União, preservando ocaráter municipalista, a centralidade do plano diretor comoinstrumento básico da política urbana e a ênfase na gestãodemocrática. Nessa perspectiva, o Estatuto da Cidade, aoregulamentar preceitos constitucionais estabelecidos nocontexto das discussões acerca do papel do Estado nos anos80, retoma a centralidade da função do poder público naregulação das relações sociais em matéria urbana. Os ins-titutos jurídicos e urbanísticos regulamentados são as con-dições institucionais necessárias � sem que sejam obriga-toriamente suficientes � oferecidas ao poder públicomunicipal para a produção de bens públicos e o cumpri-mento de funções sociais.

O Estatuto da Cidade mantém a divisão de competên-cias entre os três níveis de governo, concentrando na esfe-ra municipal as atribuições de legislar em matéria urbana.A permanência desse quadro significa, em outras palavras,circunscrever o tratamento e a proposição de soluções àsquestões urbanas nos limites do território municipal, poiscompete ao poderes executivo e legislativo municipaisequacioná-las. O reverso dessa orientação expressa-se naausência de instâncias decisórias legalmente instituídas parao tratamento de muitos dos problemas urbanos que extrapolamos limites de municípios, configurando as áreas metropolita-nas e as aglomerações urbanas.

Sem perder o caráter municipalista, o Estatuto da Ci-dade amplia a obrigatoriedade do plano diretor, estabe-lecida genericamente na Constituição de 1988, aos mu-nicípios com população superior a 20 mil habitantes.

Assim, o plano diretor é também obrigatório aos muni-cípios integrantes de regiões metropolitanas e aglome-rações urbanas, às áreas de especial interesse turístico eàs áreas de influência de empreendimentos ou ativida-des com significativo impacto ambiental de âmbito re-gional ou nacional, além das situações em que o poderpúblico municipal pretende utilizar os instrumentos pre-vistos no parágrafo 4o do artigo 182 da Constituição,qual seja, exigir, mediante lei específica incluída noplano diretor, do proprietário do solo urbano não-edificado, subutilizado ou não-utilizado, que promovaseu adequado aproveitamento.

Sem romper a inviolabilidade do direito de proprie-dade privada, reconhecido em sentido individual, o Es-tatuto da Cidade, tal como contido na Constituição de1988, estabelece que �a propriedade urbana cumpre suafunção social quando atende às exigências fundamentaisde ordenação da cidade expressas no plano diretor, as-segurando o atendimento das necessidades quanto à qua-lidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento dasatividades econômicas� (artigo 39). O direito de uma dadapropriedade urbana passa, assim, a ser reconhecido apartir de regras legais municipais definidoras de suas po-tencialidades de uso, e o seu conteúdo econômico é atri-buído pelo Estado mediante a consideração dos interes-ses sociais envolvidos durante o processo do planodiretor. Em conseqüência, a abrangência atribuída aoplano diretor é que determinará a concepção de proprie-dade social que será adotada. Em vez de um direito comconteúdo predeterminado, o direito de propriedade po-derá transformar-se no direito à propriedade. Com essaperspectiva, da propriedade é revista o sentido indivi-dual, e passar a ser definido por uma função socialmen-te orientada (Fernandes, 1995).

Somente através do plano diretor é que se define, as-sim, a função social da propriedade e da cidade, e em seuâmbito ou em instrumento legal específico baseado no planodiretor é que podem ser instituídos os instrumentos regu-ladores de parcelamento, edificação ou utilização compul-sórios, IPTU progressivo no tempo, incluindo-se a desa-propriação com pagamento em títulos da dívida pública,direito de preempção, outorga generosa do direito de cons-truir, acima do coeficiente de aproveitamento adotado me-diante contrapartida,3 operações urbanas consorciadas etransferência do direito de construir.4 Portanto, com o Es-tatuto da Cidade, apesar de a inviolabilidade da proprieda-de privada não ser ferida, oferecem-se instrumentos que,caso instituídos, possibilitam atribuir-lhe função social.

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A centralidade no plano diretor como instrumento bá-sico da política de desenvolvimento e expansão urbana ede gestão da cidade permanece reforçada com o Estatutoda Cidade, que a ele articula uma série de outros instru-mentos, ampliando suas possibilidades de êxito. De umlado, situam-se as peças orçamentárias, especialmenteaquelas introduzidas pela Constituição, quais sejam, oplano plurianual de investimentos, a lei de diretrizes or-çamentárias e o orçamento anual, para que o perfeito ajustepossa permitir a viabilidade financeira do plano diretor.Assim, o parágrafo 1o, artigo 40, estabelece que o planoplurianual, as diretrizes orçamentárias e o orçamento anualdevem incorporar as diretrizes e prioridades contidas noplano diretor.

De outro, busca-se articular diferentes instrumentos deplanejamento para viabilizar uma política urbana, vistasegundo uma perspectiva compreensiva e abrangente. Dessemodo, a política urbana deverá se valer de instrumentosque se estabelecem no âmbito dos planos nacionais, regio-nais e estaduais e do planejamento metropolitano, aglome-rações urbanas e microrregiões. E, no âmbito municipal,além do plano diretor e das peças orçamentárias, os instru-mentos que podem ser utilizados para a política urbana in-cluem aqueles de natureza ambiental, de parcelamento, usoe ocupação do solo, setoriais e de desenvolvimento sociale econômico.

Por fim, o Estatuto da Cidade mantém, reforçando-a, anatureza democrática da política, ao estabelecer que ospoderes legislativo e executivo deverão garantir, no pro-cesso de elaboração do plano diretor e na fiscalização desua implementação, os seguintes institutos: promoção deaudiências públicas e debates com a participação da popu-lação e de associações representativas dos vários segmen-tos da comunidade; publicidade dos documentos e infor-mações produzidos; e o acesso de qualquer interessado aosdocumentos e informações produzidos.

Portanto, o Estatuto da Cidade, instrumento de regula-mentação dos artigos 182 e 183 da Constituição Federal,contém as referências e institutos jurídicos e políticos bá-sicos para a intervenção urbana. Mas, ao seu lado, a leifederal aprovada contém um conjunto de enunciados � or-denação, desenvolvimento, expansão, função social da ci-dade, bem-estar dos cidadãos, função social da proprieda-de, adequado aproveitamento, direito de propriedade... �que são, em realidade, proposições genéricas e abstratas,as quais somente poderão expressar realidades históricas,definidas temporal e espacialmente, quando do exercíciodo processo de planejamento.

Em termos práticos, a tendência seria pela implemen-tação simultânea da política e do plano diretor, configu-rando o que se deve entender por processo de planeja-mento urbano, no qual o plano diretor afigura-se comoum momento específico que procurará conter, instrumen-talizando-as, as diretrizes da política de desenvolvimentoe expansão urbana.

O procedimento geral que se propõe seja adotado, por-tanto, consiste na reunião articulada e integrada da políti-ca, do planejamento e do plano diretor, uma vez que é pelaação pública planejada que se buscará estabelecer as di-retrizes e os objetivos da política, a qual se materializará,no momento presente, na forma do plano diretor.

DIMENSÕES DO PLANEJAMENTO URBANO

A proposta metodológico-conceitual que orienta o pro-cesso de planejamento urbano é aquela que coloca a simul-taneidade das dimensões política e técnica como elemen-tos constitutivos deste processo. Tal qual as faces de umamesma moeda, a dimensão política é a que pretende expli-citar o objeto da intervenção pública, enquanto a dimen-são técnica procurará responder pela operacionalização deuma proposta que foi politicamente definida. De maneiraesquemática, essas dimensões expressam o que e o comoserá proposta e executada a política de planejamento.

O debate atual tem procurado discutir novas propostasmetodológicas, ao mesmo tempo que tem buscado formu-lar uma resposta alternativa ao modelo de planejamentourbano que vigorou nos anos 60 e 70, do século XX, noBrasil. Nesse período, o planejamento incorporou caracte-rísticas tecnocráticas, colocando como relação dicotômicaa relação política e técnica. Dessa forma, a tendência quepredominou era a de fazer valer o elemento técnico comodeterminante e não como subsidiário das decisões.

Na medida em que se foi avançando no processo deconstrução democrática, analistas e técnicos têm procura-do rever esse modelo de política, em proposta que dê con-ta das variáveis políticas em jogo. Assim, à proposta quequalificava o planejamento como atividade �neutra�, umavez que é uma técnica e, portanto, situada à margem dojogo de interesses, se superpõem novas proposições, asquais emergem na agenda do debate público e, mesmo, nasagendas de alguns governos locais. Essas propostas pro-curam situar a dimensão política no âmago do processo,em discussões que buscam compreender o plano diretorcomo decisões resultantes de negociações políticas e alter-nativas técnicas e como produto do compromisso de for-

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ESTATUTO DA CIDADE: ASPECTOS POLÍTICOS E TÉCNICOS DO PLANO DIRETOR

ças políticas atuantes em determinado momento do pro-cesso da política.

Dimensão Política

Observado sob o ângulo da dimensão política, o plane-jamento urbano é o objeto de uma proposta social que visatransformar a sociedade, garantir o bem-estar dos cidadãosou, naquilo que interessa, garantir o acesso ao uso da cida-de, qual seja o direito à cidade.

Tratar politicamente o planejamento urbano é atribuir-lhe a responsabilidade pela administração de situaçõesde conflito social, dado que a dinâmica social é a disputaentre os vários segmentos sociais em torno de interesses enecessidades. Assim, o planejamento, ao administrar si-tuações de conflito, procederá a escolhas para que deter-minados interesses e necessidades � e não outros � sejamatendidos e satisfeitos.

O cotidiano urbano, quando observado, revela compor-tamentos e fenômenos que constituem evidências das si-tuações de conflito. Algumas dessas situações são maisperceptíveis, enquanto outras exigem instrumental maisrefinado para sua identificação. Dentre outras situações deconflito, pode-se apontar que:- o direito à terra urbana tem sido função de várias moda-lidades de renda, as quais são apropriadas diferen-ciadamente pelos agentes sociais;- o processo capitalista de produção imobiliária, aliado àoferta de serviços e equipamentos públicos, ocasiona va-lorizações diferenciadas de áreas urbanas, contribuindopara o agravamento dos processos de segregação e exclu-são urbanas;- os procedimentos adotados na contratação de obras pú-blicas atendem, em geral, aos interesses de empreiteiras, enão às necessidades da população;- os procedimentos adotados na concessão de serviçospúblicos têm, em geral, anteposto interesses de renta-bilização do capital das concessionárias aos interesses dapopulação usuária desses serviços;- a apropriação do espaço urbano é diferenciada: para ossegmentos consumidores da cidade, representa o quadromaterial da vida individual e coletiva; e para os segmentosprodutores, o espaço urbano representa um bem sobre oqual se auferem lucros e rendas (Ribeiro e Cardoso, 1989).

Portanto, e de maneira geral, o espaço urbano tem com-preendido conflitos entre interesses diferenciados que bus-cam se apropriar dos benefícios produzidos na cidade. De

forma simplificada, esses interesses reúnem, de um lado,os cidadãos ou grupos que, por deterem parcelas da ri-queza social, têm algo a ser preservado ou acrescentado.De outro lado, os setores sociais que desde sua origemsão desiguais, dada a forma como estão inseridos nos pro-cessos de produção e apropriação da riqueza social, osquais se identificam às camadas populares da sociedade,cujas estratégias de sobrevivência constituem as evidên-cias urbanas das situações de conflito. Trata-se de parce-las da população que, uma vez expulsas ou segregadas,habitam em favelas ou cortiços em periferias urbanas comlimitações de acesso a serviços e equipamentos coletivose, muitas vezes, em situações irregulares de posse e pro-priedade da terra (Ribeiro e Cardoso, 1989).

O planejamento urbano deverá, portanto, dar conta da ad-ministração de situações de conflito como as apontadas e ou-tras com as quais se defronte. Como administrá-las?

Na essência do plano diretor, essa administração con-siste em propostas de ordenação do território. Ao orde-nar o território, administrando situações de conflito, pode-se regular conflitos; acomodar conflitos, distribuindobenefícios que atendam a demandas específicas ou pon-tuais, inclusive as de natureza clientelista; e agudizar con-flitos, através de ações de redistribuição de recursos, coma clara determinação de diminuir distâncias sociais.

Dentre outros instrumentos, a implementação do planodiretor deverá conter os instrumentos legais de:- apropriação do solo, referente à ocupações de terra,usucapião, desapropriação de áreas que garantam a apropria-ção do solo para moradia de classes de renda mais baixa;- parcelamento do solo, referente à integração na malhaurbana, previsão de diretrizes viárias, reserva de áreas parauso público e garantia de preservação e do meio ambienteda identidade cultural e histórica da cidade;- zoneamento, referente às normas e padrões de ocupa-ção e utilização do solo urbano, em conformidade comatividades desenvolvidas, e previstas, controlando usosnocivos ou efeitos prejudiciais ao bem-estar da popula-ção (Lamparelli e Zan, 1989).

Dimensão Técnica

Considerada a dimensão política do plano diretor, épossível ensaiar alguns passos que possam vir no auxíliodaqueles que se dispõem ao envolvimento técnico na ela-boração de planos diretores. Para tanto, algumas condiçõesgerais se impõem.

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Em primeiro lugar, é fundamental identificar uma unida-de de coordenação, cujo formato administrativo será ade-quado às condições de cada prefeitura (comissão, departa-mento, secretaria ou equipe de coordenação, dentre outrasfiguras possíveis) e de uma unidade de consulta e/ou deli-beração, ajustada às condições de cada sociedade local (con-selhos centralizados ou descentralizados para a participa-ção e representação das forças sociais organizadas). Essacondição envolve também a criação de um sistema de pla-nejamento, cuja abrangência pressupõe a integração dosvários instrumentos de gestão municipal, incluindo-se aquelesde natureza executiva. Além disso, a elaboração de planosdiretores é uma atividade que exige o concurso de profis-sionais de diferentes áreas do conhecimento atuando emprocesso de trabalho interdisciplinar. Por fim, são de extre-ma relevância a disponibilidade de informações e a predis-posição para realizar pesquisas, uma vez que consistem emrecursos estratégicos para o conhecimento de problemas.

Guardadas essas condições, a elaboração do plano dire-tor, como etapa do processo de planejamento urbano, pres-supõe definições, escolha de instrumentos e estabelecimen-to de fases. É preciso, portanto, atentar para o significadodo plano diretor como instrumento de intervenção pública.Num esforço para sua decodificação, pode-se entender porplano a definição de objetivos a serem alcançados e de pra-zos a serem cumpridos, a indicação de atividades, progra-mas ou projetos correspondentes ou necessários à realiza-ção dos objetivos definidos, bem como a identificação dosrecursos financeiros, técnicos, administrativos e políticosnecessários; e por diretor, as diretrizes estabelecidas em con-formidade com a proposta social que se pretende alcançar,que constituem uma referência para as ações do poder pú-blico municipal e dos agentes privados.

Os instrumentos poderão ser de três naturezas: técnico-científica, político-institucional e econômico-financeira. Osinstrumentos de natureza técnico-científica consistem nos re-ferenciais metodológicos de coleta, tratamento e interpreta-ção de dados. Os instrumentos de natureza político-institu-cional consistem nos referenciais institucionais que suportamas relações entre as forças políticas constituídas, seja namáquina pública, seja na sociedade, seja na articulação en-tre essas instâncias. Os instrumentos de natureza econômi-co-financeira compreendem os recursos orçamentários e ex-tra-orçamentários disponíveis, bem como novos recursos quepossam vir a ser gerados e drenados para o processo.

O estabelecimento de fases a serem cumpridas poderá terdenominações diversas. Podem-se genericamente considerartrês grandes fases � diagnóstico, proposição e execução. Ou

como os antigos planos diretores de desenvolvimento inte-grados estabeleciam, podem ser mais detalhadas, compreen-dendo estudo preliminar, diagnóstico, plano de diretrizes,instrumentação do plano, plano de ação do prefeito, etc. Dequalquer forma, e independentemente do detalhamento e dasdenominações dadas às fases, para se operacionalizar a ela-boração do plano diretor é relevante determinar a seqüênciade passos a serem seguidos, propondo-se:- definição, social e politicamente referenciada, do obje-to, estabelecendo-se os problemas municipais a serem en-frentados e as hipóteses orientadoras do processo de de-senvolvimento municipal;- diagnóstico dos problemas, quanto aos aspectos quan-titativos, qualitativos e de localização social e espacial, equanto aos fatores causadores e tendências futuras. Cabetambém diagnosticar a atuação do poder público, em suacapacidade de solucionar problemas;- estabelecimento de prioridades de intervenção e esco-lha de alternativas;- dimensionamento e alocação dos recursos para imple-mentação das alternativas escolhidas.

Tomando-se os dois primeiros passos � definição doobjeto e diagnóstico de problemas � como referência, pode-se, a título de ensaio ao desenvolvimento da elaboração doplano diretor, desenvolver um exercício rápido. Assim, emum processo coletivo de discussão coordenado pela unida-de pública responsável pelo processo de planejamento, coma participação, institucionalizada ou não, de segmentossociais organizados, e apoiado no conhecimento empíricoda realidade local, elegem-se o(s) problema(s) local(is) paraestudo e posterior intervenção. Os instrumentos prioritá-rios nesta fase seriam aqueles de natureza político-institu-cional dos atores, que coletivamente dariam conta da iden-tificação dos problemas, e os de natureza técnico-científica,responsáveis pela sistematização mínima das informaçõesobtidas pelo conhecimento empírico do município. Para odesdobramento de tal fase e continuidade do processo, essemomento deveria conter minimamente o estabelecimentodas fases subseqüentes com a atribuição das responsabili-dades por sua execução.

Por hipótese, o problema central identificado assim seexpressaria: o município caracteriza-se por crescimentourbano desordenado, com ocupação periférica irregular epredomínio de moradias precárias. O passo seguinte seriacomprovar a veracidade e a extensão dessa afirmação, e oprocedimento a ser adotado, portanto, seria diagnosticar,quantificando e qualificando o problema, por meio de aná-

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ESTATUTO DA CIDADE: ASPECTOS POLÍTICOS E TÉCNICOS DO PLANO DIRETOR

lises apoiadas predominantemente em instrumentos de na-tureza técnico-científica.

A decomposição do enunciado do problema oferece asindicações das análises necessárias. Por tratar-se da políticaurbana e da elaboração do plano diretor, como seu instru-mento, a referência analítica prioritária é a análise da orga-nização territorial do município, que visa explicar o cresci-mento urbano desordenado, aspecto central do problemaidentificado. De forma específica, compreende as análisesrelativas ao processo de estruturação do território urbano,ao uso e ocupação do solo e às redes públicas implantadas,entendidas como expressão física da ação dos agentes públi-cos e privados na produção do espaço. Esse é, em suma, oeixo básico do problema a ser diagnosticado e, a partir dele,devem-se organizar as demais dimensões de análise.

Assim, ao se considerar o acelerado crescimento urbanoe a ocupação periférica, tem-se a pista inicial para a análisedemográfica, que deve reunir indicadores que descrevem eexplicam o crescimento populacional, seus componentes esua composição, bem como a distribuição espacial da popu-lação no território municipal. A caracterização periférica porsubabitação fornece os elementos para o desenvolvimentoda análise das condições sociais. Além das condições de mo-radia, tal análise compreende as condições de saúde, educa-cionais, culturais e de lazer, bem como a disponibilidade e oacesso aos serviços e equipamentos sociais. A ocupação ir-regular e a moradia precária são os elementos que possibili-tam desenvolver a análise econômica do município. Se, deum lado, esses fenômenos relacionam-se ao perfil de distri-buição de renda das famílias residentes, de outro, é precisoreconhecer que o espaço econômico não corresponde ao es-paço do território municipal, e a análise requerida é a da eco-nomia local na escala da região, considerando-se inclusiveas decisões econômicas nacionais e, mesmo, as de ordem in-ternacional, dado o modelo atual de desenvolvimento. Alémda identificação das atividades econômicas e dos ramos pre-dominantes de produção, é preciso investigar as potencialida-des existentes e as tendências de crescimento local e regional.

Por fim, menos usual, uma vez que, em geral, não évista como passível de tratamento técnico, inclui-se a aná-lise político-institucional dentre as análises de diagnósti-co do problema. Tendo por objeto central a resposta pú-blica referida aos aspectos diagnosticados pelas análisesanteriores, a análise político-institucional representa, emcerta medida, a síntese das demais. Trata-se, em suma, deidentificar o significado dos mecanismos implementadosde controle de uso do solo, de indução do desenvolvimentoe expansão das atividades produtivas e de atendimento dasnecessidades sociais básicas da população.

Se, para a definição dos problemas a serem equacionadospelo plano diretor, é preciso o concurso das forças sociais,para diagnosticá-lo é fundamental recorrer a instrumentos denatureza técnico-científica, valendo-se de referenciais teóri-cos e metodológicos para o levantamento e interpretação dedados caracterizadores dos fenômenos. Porém, para o esta-belecimento de prioridades de intervenção, escolha de alter-nativas, bem como dimensionamento e alocação de recursos� passos seguintes no processo de elaboração do plano dire-tor �, instrumentos de natureza político-institucional e eco-nômico-financeira tornam-se estratégicos. Cumprir essespassos é percorrer um longo caminho e o resultado da políti-ca, corporificado em uma proposta de plano diretor, será oresultado de um processo político dependente de estratégias,apoios e resistências dos atores sociais, cujos interesses fo-ram direta ou indiretamente afetados.

NOTAS

1. A Constituição do Estado de São Paulo e as Leis Orgânicas Munici-pais retomaram o tema em termos semelhantes aos colocados pela Cons-tituição da União.2. A recente publicação Estatuto da cidade: guia para implementaçãopelos municípios e cidadãos (Instituto Polis et alii, 2001), além de conterum exame detalhado da lei federal aprovada, recupera experiências de im-plementação de institutos jurídicos e políticos por governos municipais.3. A outorga generosa do direito de construir corresponde, efetivamente,ao instituto do solo criado.4. Além desses instrumentos, estabelecidos no âmbito do plano diretor, oEstatuto da Cidade regulamentou os seguintes: usucapião de imóvel ur-bano de uso residencial individual e coletivo; direito de utilização do solo,subsolo e espaço aéreo; e estudo de impacto de vizinhança que, tendo porreferência os estudos de impacto ambiental, visa contemplar os efeitospositivos e negativos de empreendimentos ou atividades na qualidade devida da população residente na área e suas proximidades.

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A CRISE DO PARADIGMA NEOLIBERALE O ENIGMA DE 2002

elemento decisivo que organiza a conjuntura bra-sileira atual é a crise do paradigma neoliberal derefundação do Estado brasileiro. É verdade que

O centro do programa neoliberal no Brasil foi muito maisdo que uma reforma do Estado brasileiro, em suas dimen-sões de gestão administrativa e racionalização. Ao incidirsobre o vazio político de um país recém-constitucionalizado� em um contexto em que faltava implantar as diretrizesda Constituição de 1988 e regulamentar parte importantede seu texto � e tornar exponencial o uso das medidas pro-visórias, promovendo seguidas reformas constitucionais,o governo FHC impulsionou verdadeira refundação neoli-beral do Estado brasileiro (Couto, 1998). Isso significou arevisão decisiva de vários de seus contratos básicos e fun-damentais em uma direção liberal, com intensidade inédi-ta na história republicana do século XX.

Em primeiro lugar, alterou-se o padrão das relaçõesentre o Estado brasileiro e o mercado capitalista mundial,com a promoção de avanço substancial dos direitos dogrande capital financeiro em detrimento da soberania na-cional. Com repactuação em bases desfavoráveis e dura-douras da dívida externa, profunda abertura comercial,desnacionalização de setores produtivos e financeiros-chave, desregulamentação do controle de fluxos de capi-tais e atrelamento dos gastos públicos a metas negociadascom o FMI, o país recém-democratizado perdeu para osmercados financeiros parte substantiva das deliberaçõessobre seu destino econômico.

Em segundo lugar, alterou-se o padrão dos direitos edeveres entre os cidadãos brasileiros. Se a Constituição

se trata de um fenômeno internacional, cujas origens re-montam às derrotas históricas de Reagan e Thatcher, quepassa pela sucessão de crises financeiras internacionais ealcança a dimensão de verdadeiras tragédias coletivas nospaíses, antes chamados de �emergentes�, que aplicaram oreceituário neoliberal.

Essas últimas crises dramáticas foram muito visíveisna América Latina nos anos 90. O Brasil, porém, viveu oimpacto neoliberal de modo retardatário, incerto com ogoverno Collor e de forma avassaladora com os governosFHC.

O tempo próprio do neoliberalismo no Brasil fez comque o país vivesse, quase desde o início da implantaçãodo programa, as turbulências causadas pela exposição àespeculação financeira internacional, com repercussõesdrásticas sobre as possibilidades de um período de cres-cimento acelerado, mesmo que em forma de surto nãosustentado em uma dinâmica de bases sólidas.

O caráter retardatário da aplicação do programa neoli-beral no Brasil tem raiz política: a crise do regime militare a ofensiva democrática e popular nos anos 80 fecharamo espaço para o domínio neoliberal. Assim, apenas em1994 é que se criaram as condições políticas para um pro-grama de refundação liberal do Estado brasileiro.

Resumo: O ensaio procura pensar a conjuntura brasileira � a partir da crise da coalizão política que se formouem 1994 � tendo em vista as próximas eleições presidenciais. O argumento central focaliza a crise do projetode refundação neoliberal do Estado brasileiro que predominou durante os anos 90. A dinâmica da conjunturaatual é pensada como expressão dessa crise em seus complexos desdobramentos.Palavras-chave: conjuntura; neoliberalismo; crise.

JUAREZ GUIMARÃES

Professor no Departamento de Ciência Política da UFMG. Autor de Democracia e marxismo: crítica à razão liberal

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A CRISE DO PARADIGMA NEOLIBERAL E O ENIGMA DE 2002

de 1988 indicou um caminho de universalização de direi-tos sociais, o plano neoliberal de refundação do Estadobrasileiro incorporou um ataque generalizado à lógica dosdireitos dos trabalhadores. Rompeu-se a dinâmica de in-clusão crescente no mercado formal de trabalho que vi-nha, em ritmos diferenciados, desde a Era Vargas. De po-tencial universalizante, as políticas sociais passaram a tercomo meta o padrão focal, isto é, o objetivo de reduzir aomínimo o projetado Estado do Bem-Estar Social no Bra-sil, deslocando o restante para o mercado e para políticasassistenciais dirigidas focalmente a grupos de extrema pe-núria (Vianna, 1998). Os impostos indiretos e a carga fis-cal aumentaram muito para os assalariados, mas os ga-nhos do capital foram consistentemente protegidos datributação. Uma nova onda de subsídios bilionários favo-receu grandes capitalistas, inclusive multinacionais ou se-tores que recentemente haviam se tornado donos de em-presas estatais.

Em terceiro lugar, houve um deslocamento patrimonialdo Estado � estimado em torno de 30% do PIB � para gru-pos privados. Setores estratégicos da economia brasilei-ra, fundamentais para qualquer plano de soberania eco-nômica nacional, foram vendidos em condições poucotransparentes.

Em quarto lugar, alteraram-se as relações do pacto fe-derativo e implementou-se uma relação que subordinounitidamente o Congresso Nacional a uma dinâmica em queo Executivo detinha a iniciativa legislativa fundamental.

Uma refundação neoliberal do Estado brasileiro dessamagnitude, pela sua abrangência e profundidade, neces-sitaria ser apoiada em forte coalizão política. A síntesedessa coalizão política foi elaborada e ganhou realidadeplena com a vitória de FHC em 1994.

Ela apoiou-se, em primeiro lugar, no forte deslocamentoda cultura política: da agenda democrática dos anos 80passou-se à agenda neoliberal dos anos 90. A crítica his-tórica da chamada tradição populista, capitaneada pelosetor que se tornou hegemônico na USP e no Cebrap, fun-diu-se nesse contexto com as tradições liberal conserva-dora e privatista dos partidos e grande empresariado bra-sileiro. Leu-se a crise brasileira como a crise final doEstado desenvolvimentista: o remédio estava nos merca-dos. Essa grande vitória político-cultural só pôde ser ob-tida no contexto da crise das tradições socialistas, social-democratas e desenvolvimentistas aprofundadas nos anos80 no plano internacional.

O Plano Real, ao controlar a inflação, desenvolveu abase de popularidade para a grande coalizão das classes

dominantes que já haviam massificado, através da mídia,a opinião de que o problema do Brasil tinha origem noexcesso de Estado.

Em torno dessa vitória político-cultural, formou-se vastacoalizão, cobrindo o espectro do centro à direita, isolan-do as forças de esquerda, quebrando seu protagonismo,abrindo linhas de pressão sobre os movimentos popula-res, impondo, enfim, o controle coordenado sobre as con-dições necessárias para a refundação neoliberal do Esta-do brasileiro.

A conjuntura atual é marcada pela crise desse projeto.É o caráter estratégico dessa crise que abre novo períododa conjuntura. Ele é marcado pela luta, em primeiro lu-gar, entre as iniciativas que visam renovar suas condiçõesde continuidade e as que fazem oposição a esse projeto;e, ao mesmo tempo, pelas especulações sobre a alternati-va que poderá sucedê-lo.

O caráter econômico da crise é evidente pelo fracassodo projeto em propiciar um novo período de crescimentosustentado do capitalismo brasileiro. Esse fracasso estáexposto no crescimento médio da economia brasileira:1,8% nos anos 90, cerca de um terço da taxa verificadaentre 1945 e 1980. Mais grave ainda, o plano neoliberalampliou desequilíbrios de forma brutal � o endividamen-to público, o déficit externo, a desestruturação do setorprodutivo estatal �, que impedem a retomada sustentadado crescimento. A recém-deflagrada, mas há muito anun-ciada, crise energética é a expressão clara da perda de ummínimo equilíbrio sistêmico da economia nacional.

O caráter social da crise, em parte decorrente do fra-casso econômico estratégico, é impulsionado pela gravedeterioração do mercado de trabalho no país. O desem-prego aberto saltou de 4,5 milhões para mais de 7,64 mi-lhões em 1999, segundo o IBGE. A informalidade, segundoa mesma fonte, elevou-se de 51% em 1989 para 59% em1999. O gasto nas áreas sociais recuou de 18,5% do PIBem 1995 para 14,5% em 2000. Nesse contexto, o Brasilassistiu à explosão da violência urbana na década de 90.

No plano político, a crise do governo FHC é global.Incide sobre sua popularidade, que sofreu forte depressãono início de 1999 e cuja recuperação foi interrompida pe-las crises sucessivas no primeiro semestre de 2001. Reve-lou-se de forma incisiva nas eleições municipais de 2000,com o avanço das forças de oposição, em particular do PT.Ganha agora novos contornos com a perda do controle sobresua sucessão, tornando um segundo turno em 2002 muitoprovável e de resultados imprevisíveis. A disputa sucessóriaantecipada, por sua vez, levou a uma dinâmica de choques

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da antigamente coesa base governista, erodindo o contro-le do governo sobre o Congresso Nacional.

Por fim, a crise do projeto de refundação neoliberal doEstado brasileiro exibe sua face ética. A ideologiaprivatista, a desregulamentação dos controles financeiros,o caráter fisiológico da base governista e o insulamentoburocrático das grandes agências econômicas do Estado,em contexto de massivos deslocamentos patrimoniais,geraram condições propícias à corrupção.

É nesse contexto que se delineia a construção de can-didaturas para as eleições de 2002. Elas tendem a con-centrar e absorver toda a dinâmica política da atual con-juntura. Este ensaio pretende, a partir desses parâmetrosgerais, investigar as tendências mais visíveis da dinâmicapolítica do país no próximo período.

ECONOMIA E POLÍTICA

O primeiro grande desafio é pensar qual o impacto daevolução da conjuntura econômica brasileira na cena políti-ca. Menos do que acrescentar mais uma aposta na banca deprevisões, trata-se de sugerir parâmetros de interpretação.

O primeiro parâmetro poderia ser assim enunciado: ainfluência da economia sobre os rumos da política é me-diada pelo modo como os atores lêem a realidade econô-mica e dela se apropriam, a partir de suas visões de mun-do, valores e interesses.

Ora, se a concepção liberal de mundo predominou noBrasil nos anos 90, foi exatamente em sua versão maisnitidamente economicista e neoliberal que ela se fez pre-sente. A impregnação da cultura política do país e do sen-so comum por esse economicismo explica o aparente pa-radoxo de FHC ter-se beneficiado politicamente naprimeira eleição da explosão de consumo inicialmenteproduzida pelo Plano Real e, na reeleição, da problemáti-ca iminência de uma crise cambial.

Um segundo parâmetro interpretativo: na complexainteração entre economia e política, são os vetores destaúltima que indicam os caminhos de evolução da conjun-tura. Isso quer dizer que a luta política é centralmente con-dicionada (mas não determinada) pela evolução da eco-nomia, e decide-se pelas opções e práticas dos atorescoletivos presentes na cena. A política não é um reflexoda economia nem há mera configuração mútua e indeter-minada de instâncias autônomas da realidade social.

Isso é decisivo para a avaliação da conjuntura brasilei-ra atual. A imprevisibilidade das eleições de 2002 signi-fica imprevisibilidade do aparato de regras, prioridades e

arranjos que condicionam centralmente as taxas de lucroe os ganhos esperados pelos agentes mercantis no Brasil.O grau dessa imprevisibilidade expõe, na linguagem dosmercados, o grau de risco Brasil, repercutindo fortemen-te nos fundamentos macroeconômicos já em estado dedesequilíbrio da economia. Essa é uma das razões da ner-vosa elevação do dólar em relação ao real, diante das evi-dências de instabilidade da coalizão governamental e deseus planos. É função dessa imprevisibilidade tornar prio-ritário na agenda do governo o que vem sendo chamadode blindagem institucional, isto é, a votação que prevê umaautonomia relativa do Banco Central e de suas políticasem relação ao futuro presidente eleito.

Um terceiro parâmetro incorpora a análise estruturalda evolução brasileira na última década: ao optar por umalógica mercantil inteiramente subordinada às flutuaçõesinternacionais, ao invés e em desfavor de uma lógica sis-têmica nacional, a coalizão governante modificou estru-turalmente as relações entre as variáveis sob seu contro-le e a força do imprevisível na evolução da conjunturabrasileira.

O êxito do projeto estratégico de FHC fundou-se des-de o início na expectativa de que as conjunturas interna-cionais seriam favoráveis. Desde 1997, pelo menos, nãoo são e os circuitos financeiros internacionais acomodam-se nervosamente de crise em crise (Sallum Jr., 2000). Dasvariáveis levadas em conta pelos analistas econômicos parafazer previsões (taxa de crescimento da economia norte-americana e taxa dos juros fixados pelo FED; evoluçãodos preços do petróleo; risco Argentina e de outros mer-cados emergentes em crise; evolução dos fluxos dos in-vestimentos externos), quais são hoje de fato controladaspelo governo FHC?

Um último parâmetro, enfim, advém igualmente daanálise estrutural do projeto FHC: este não gerou um pa-tamar de crescimento econômico contínuo e sustentado,que alterasse qualitativamente o contexto de impasse dosanos 80, criando incorporação social e espaço históriconuma dinâmica hegemônica do projeto hoje dominante.

Devemos a Francisco de Oliveira (1998) a reflexão in-teligente sobre o que havia de domínio ideológico orques-trado no predomínio do neoliberalismo no Brasil dos anos90 e a ausência de uma dinâmica hegemônica socialmen-te consistente. O domínio institucional do governo � hi-perconcentração de poderes no Executivo, controle rela-tivamente estável de maioria parlamentar, cumplicidadegovernativa na alta cúpula do Judiciário � não se compôscom legitimidade social ao longo do tempo.

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A CRISE DO PARADIGMA NEOLIBERAL E O ENIGMA DE 2002

O crescimento da economia em 2000 operou apenasalteração na margem do desemprego acumulado e convi-veu com perda do rendimento médio dos assalariados. Éevidente que a continuidade do crescimento, mesmo con-tido e instável, cria potencialmente melhor posicionamentodas forças continuístas na disputa sucessória. Mas o quese anuncia para 2001, após as evidências da crise energé-tica, é um crescimento bem aquém dos 4,5% antes espe-rados, na hipótese mais otimista trabalhada pelo governo.Para 2002, o quadro é ainda mais incerto.

BRASIL E ARGENTINA

As semelhanças e diferenças com a vizinha crise argen-tina ajudam a compreender a evolução da crise brasileira.

Em �Argentina em transe� o cientista político GuilhermoO�Donnell (2001) traça de longe o mais acurado diagnós-tico do impasse dramático e estrutural do país vizinho. Odomínio do capital financeiro, segundo O�Donnell, amea-ça corroer as bases mínimas do funcionamento da demo-cracia argentina. Anti-social e antinacional, o capital fi-nanceiro internacional impôs uma política macroeconômicacujo �interesse racional é equilibrar, por um lado, a capa-cidade de o país continuar pagando e, por outro, maximi-zar os juros que cobra�. Criou-se, assim, �um grau de de-pendência como não sonharam os textos mais pessimistassobre dependência escritos há algumas décadas�. A pró-pria política perde substância e as alianças não mais pro-jetam estratégias políticas, mas �contratos de compra evenda de pouca duração e baixa densidade�.

Um raciocínio impressionista poderia levar a examinaro contexto brasileiro a partir da dinâmica límpida vividapela Argentina. Mas há, apesar das linhas fortes de seme-lhança, diferenças estruturais decisivas: o grau de desestru-turação produtiva, de crise fiscal e desorganização do setorpúblico e de exposição à especulação financeira é sig-nificativamente maior lá do que aqui. Em contraste, no Bra-sil, a crise social é hiperdimensionada em relação à Ar-gentina em função do maior grau de concentração da renda.

Mais importante ainda do que tudo isso, no entanto, éa desmoralização política que na Argentina se expressouna viragem neoliberal do que restava da tradição peronistae a ausência de uma força de esquerda, com raiz social edensidade eleitoral. No Brasil, as forças políticas e inte-lectuais que podem alimentar um novo republicanismo,democrático e social, são muito mais expressivas.

Feitas essas ressalvas decisivas, que nos protegem dovício da analogia, a contribuição de O�Donnell pode aju-

dar a iluminar as raízes sociais profundas da atual crisepolítica brasileira. No Brasil de FHC, a dinâmica finan-ceira descrita por O�Donnell, a racionalidade de gerar ca-pacidade estatal de pagar dívidas para pagar juros cadavez mais altos também orienta a política macroeconômi-ca do país. Durante todos esses anos, o Brasil esteve nalinha de frente dos governos que sustentaram os juros maisaltos do mundo.

De 1995 a 1999, o Tesouro Nacional pagou, segundoRibamar Oliveira (Valor, 16/04/2001), 109 bilhões de reaisem juros de suas dívidas externa e interna. Acumulou, so-mente nesse período, juros devidos no montante de 222,9bilhões de reais. A contrapartida é a necessidade crescen-te de vender ativos e gerar superávits primários (receitasmenos despesas correntes, excetuando juros). O mesmoarticulista analisa as metas fiscais previstas no projeto daLei de Diretrizes Orçamentárias, encaminhado pelo go-verno ao Congresso no início de abril: um superávit pri-mário de 3% do PIB de 2002 a 2004. Em linguagem maisclara, seriam seis anos acumulados de excessivo arrochonos gastos do Estado, em particular nas políticas sociais.A medida é justificada oficialmente como modo de daraos credores internacionais confiança no pagamento desua dívida, custe o que custar.

A CENA POLÍTICA

O grande efeito das eleições municipais de 2000 foidescongelar o passado e reabrir as promessas do futuro. Ésó a partir da referência ao ciclo político aberto em 1994e às incertezas da sucessão presidencial de 2002 que oserráticos e nervosos movimentos da conjuntura atual po-dem ser coerentemente interpretados.

O principal fundamento da atual coalizão governante,mais ampla e programaticamente definida que aquela for-mada em torno de Tancredo Neves, era a certeza da própriacontinuidade. Inaugurou-se com o selo propagandístico,tornado quase senso comum, que iniciava uma era de vinteanos no poder. A reeleição tornou-se o epicentro das priori-dades e ritmos das políticas do governo federal no primeiromandato de FHC. As eleições presidenciais de 1998 reali-zaram-se, em meio à iminência de uma grave crise cambial,em um quadro de evidente chantagem frente ao eleitorado:ou continuidade ou o caos. O próprio presidente do Supe-rior Tribunal Eleitoral afirmou à época que a definição daseleições no primeiro turno seria propícia e necessária ao país.

Agora, não. Um segundo turno é muito provável e égrande a margem de imprevisibilidade dos resultados. A

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pesada âncora política, que mantinha incólume a nau go-vernamental, veio à tona. O controle de maioria no Con-gresso mostra suas brechas. O consenso programático nasbases do poder, antes pretensiosamente auto-referido,ameaça tornar-se público dissenso. Lideranças políticas eintelectuais ligadas ao PSDB têm vindo reiteradamente apúblico colocar em questão temas que eram quase umdogma programático � as privatizações do setor hidroelé-trico, a ausência de uma política industrial ativa, a estra-tégia de abertura comercial e de integração à Alca, etc.

Mas 2002 não está para 2000 assim como 1989 estevepara 1988. Neste ano, também as esquerdas protagoniza-ram espetaculares sucessos eleitorais municipais, indican-do potencial inédito de crescimento nas eleições presiden-ciais de 1989.

Agora, é o dobro o tempo para processar os resultadoseleitorais municipais. O governo FHC goza de uma capa-cidade de iniciativas bastante superior à do governoSarney, que viveu seu último período absolutamente re-fém de forças centrífugas. Tem, portanto, mais capacida-de para ser ator na própria sucessão. Inserida no tempo dasucessão presidencial, a conjuntura política de 2001 move-se nervosamente entre passado e futuro.

O cientista político Wanderley Guilherme dos Santos(2000), em entrevista ao Jornal do Brasil, lembrou que,com todo o avanço da esquerda, os partidos da base go-vernista conquistaram ainda 60% dos votos. DavidFleischer (2001), da UNB, comentou em artigo que na cú-pula do PSDB os resultados foram assim decompostos:�1) nas 5.200 cidades com menos de 62 mil habitantes, oPMDB recebeu mais de 50% dos votos; 2) na faixa inter-mediária de 193 cidades entre 60 mil e 300 mil habitan-tes, o PSDB levou a melhor com 27% dos votos; 3) nas166 cidades com mais de 300 mil habitantes, o PT ficouem primeiro lugar, também com 27% dos votos�.

Em eleições casadas, as ramificações municipais con-tam muito. Conta mais, porém, o dinamismo instalado emeleições presidenciais: as incertezas de 2002 quebramqualquer projeção linear de futuro. E as pesquisas de hojetêm certamente um valor bastante provisório.

A soma dos votos dos partidos pró-FHC em 2000(PSDB, PFL, PMDB, PPB e PTB) foi de 52.364.673, bemmais alta que os 35.936.918 votos recebidos por FHCreeleito em 1998. Uma parte minoritária, mas não inex-pressiva, do PMDB fez campanha oposicionista a FHCnas eleições de 2000. Os votos do PPS em 2000 foramseis vezes mais numerosos que em 1996, mas menos dametade dos 7.426.235 votos obtidos por Ciro Gomes em

1998. O voto no PT em 2000 cresceu 51, 2% em relaçãoàs eleições municipais de 1996 mas, mesmo assim, foiapenas um pouco mais da metade dos 21.475.346 votosde Lula em 1998. Itamar, hoje refiliado ao PMDB, se tor-nada viável sua candidatura à presidência, deslocará umamassa de votos certamente não desprezível.

Há, assim, uma espécie de pirâmide invertida no quese refere à relação entre as candidaturas mais visíveis erespectivas bases partidárias. Os três nomes da oposiçãoque aparecem mais votados nas pesquisas estimuladas �Lula, Ciro, Itamar � projetam massas de votos para alémdas respectivas bases partidárias. Os candidatos potenciaisda base do governo, refletindo a concentração egótica naimagem de FHC, estão ainda bem aquém do seu potencialde voto. Essa ausência de correspondência, em um eleito-rado de 108 milhões de indivíduos, dos quais apenas cer-ca de 40% revelam alguma preferência partidária, é, porassim dizer, uma fotografia da instabilidade que caracte-riza o momento. O fato de os principais nomes que ocu-pam o cenário das eleições de 2002 � FHC e seu suces-sor, Itamar (ex-presidente no Plano Real), Ciro Gomes(ex-ministro da Fazenda no Plano Real) e Lula (ou umcandidato por ele apoiado) � terem sido também persona-gens centrais em 1994 evidencia que a disputa do futuroimplicará certamente um acerto de contas com o passadorecente.

A incerteza do futuro coloca para a direção da coali-zão governista, em particular para o PSDB, um problemade identidade, de estratégia e de cálculo. Identidade: aseleições de 1998 mostraram que nem sempre são conver-gentes e podem ocorrer tensões importantes entre os inte-resses do PSDB e do governo FHC. Este, para garantir avitória no primeiro turno, vista como necessária para en-frentar a crise cambial, optou por diminuir as chances devitória nas eleições para os governos de São Paulo, Mi-nas e Rio, aliando-se também com candidaturas regional-mente adversárias do PSDB. A construção interrompidade alternativa para a sucessão presidencial por Covas, acandidatura Aécio Neves à presidência da Câmara, a dis-sidência pública de Mendonça de Barros às políticas dogoverno (agora, em formato editorial na revista Repúbli-ca), a tendência a nova ênfase de alianças no interior dacoalizão governamental em favor do PMDB e em detri-mento do PFL revelam a busca de nova identidade públi-ca para o partido. Ora, a maior autonomia do PSDB rela-ção ao centro do poder implica necessariamente disputasde focos de poder regional já que a tradição do PSDB éfortemente federativa.

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A CRISE DO PARADIGMA NEOLIBERAL E O ENIGMA DE 2002

Estratégia: entre um continuísmo retemperado e umacontinuidade que recomeça, absorvendo e neutralizandobandeiras da oposição, a distância, aparentemente sutil,pode ser decisiva e implica estratégias diversas de nomes,marketing e alianças.

Cálculo: as eleições de 1998 para FHC já dependeramcentralmente da estratégia de coalizões (Roma, 1999). Asde 2002 dependerão mais ainda, no contexto de populari-dade em baixa. Qual seria a parceria principal: PFL ouPMDB? Ou, ainda, quais setores privilegiar nesses parti-dos fisiologicamente fragmentados? Entre as dúvidas deidentidade, estratégia e cálculo, há ainda o personagem aser ungido pela coalizão governativa, a fogueira das vai-dades e dos círculos de poder.

A CRISE PARLAMENTAR

Desde o primeiro semestre de 1999, havia uma assi-metria entre a perda de popularidade de FHC e seu con-trole incontestável de maioria no Congresso.

Os primeiros meses de 2001 registraram intenso abalosísmico no território até então inexpugnável da coalizão go-vernista. As disputas pelas presidências na Câmara Federale no Senado, projetando diferentes alianças para 2002, a dis-sidência ACM, o escândalo agora tornado explosivo da vio-lação da votação (ou votações) no Senado, envolvendo o lí-der do governo filiado ao PSDB, as denúncias de corrupçãopraticadas pelo presidente recém-eleito do Senado, o apoioa uma CPI mista investigando o próprio núcleo do governosão indícios mais que suficientes da crise. O Congresso Na-cional, de trincheira da governabilidade, passou a epicentrode uma instabilidade cujos limites são imprevisíveis.

São três as razões dessa mudança fundamental. Em pri-meiro lugar, a aproximação do fim de um governo quenão tem mais a capacidade segura de eleger seu sucessor.

Além disso, a crise de popularidade de FHC torna maissensível a base governista ou, pelo menos, alguns setoresdela à pressão da opinião pública em véspera de renova-ção de mandatos. O custo de apoiar o governo incondi-cionalmente ficou mais alto.

Em terceiro lugar, com a sinalização dada pela direçãodo PSDB de uma aliança preferencial em 2002 com oPMDB, em detrimento do PFL, foi posta em questão aprópria estabilidade da coalizão parlamentar do governo.

O livro Executivo e Legislativo na nova ordem consti-tucional, de Argelina Figueiredo e Fernando Limongi(1999), ajuda-nos a compreender a ordem parlamentar vi-gente nos anos 90, agora em crise.

Segundo os autores, a Constituição de 1988 propiciouum novo tipo de relação Executivo/Parlamento em rela-ção ao período 1946-1964. As atenções dos analistas, emgeral, têm-se concentrado no instituto das medidas provi-sórias, que revela certa continuidade dos decretos-lei daépoca do regime militar, embora tornado relativo por cer-tos procedimentos antes inexistentes. Prevalece no meiojurídico a convicção de que o governo tem abusado in-constitucionalmente do poder desse instituto.

A tese dos autores, no entanto, vai muito além do exa-me das medidas provisórias. O que se teria firmado nadécada de 90 seria um presidencialismo de coalizão, comeixo nos partidos, impondo um padrão de fato aproxima-do de certas dinâmicas típicas de sistemas de governo par-lamentaristas. O presidencialismo de coalizão implicariauma dinâmica bastante diversa do padrão presidencialis-ta norte-americano, que prevê grande importância para otrabalho das comissões parlamentares e para a atuação in-dividual de senadores e deputados.

No Brasil dos anos 90 � em particular no período maisestável do governo FHC �, o presidente compõe seus mi-nistérios fazendo negociações com partidos. Obtém, atra-vés dessas participações, a lealdade de suas cúpulas. Ofuncionamento da Câmara e do Senado apoia-se em dinâ-mica centrada nos líderes partidários de bancada. Nessetipo de funcionamento, o espaço para a atuação pessoaldo parlamentar e o custo da dissidência em relação ao go-verno são mais altos. Diminui também o espaço para aatuação das oposições. Por essa dinâmica, o governo, queem geral detém a iniciativa legislativa, consegue altíssi-mos índices de aprovação para seus projetos de lei.

Os dados, pesquisados pelos autores, são realmentemuito expressivos. Entre 1989 e 1998, o Executivo trans-formou em lei 1.606 dos 2.074 dos projetos enviados.Apenas 24 foram rejeitados e 10 vetados totalmente. Orestante ou foi retirado ou está em tramitação. De iniciati-va dos parlamentares, foram apresentados 16.217 proje-tos de lei; apenas 262 foram aprovados. A agenda do Exe-cutivo é predominantemente econômica e administrativa,enquanto a do Legislativo é social.

Os votos de bancada, quando há votação nominal, se-guem em geral os votos das lideranças. A disciplina mé-dia plenário foi de 89,9%. Em mais de nove entre dez vo-tações, a coalizão presidencial contou com o apoio de todosos líderes partidários que receberam pastas ministeriais.Em média, 86,7% dos deputados filiados aos partidos quedão sustentação ao governo votam em apoio à agenda dopresidente.

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Ora, a aliança PSDB-PFL estruturava o cerne da baseparlamentar governista. O PFL era o mais disciplinado dospartidos de direita. O PMDB, menos disciplinado, embo-ra siga a tendência geral. O conflito com ACM pôs, as-sim, em turbulência o núcleo duro da base governamentalem todos esses anos.

SIGNIFICADO DA CRISE ÉTICA

Após a experiência traumática do governo Collor, naqual crime e improbidade administrativa eram como queirmãos siameses, a intelectualidade e a opinião públicabrasileira viam no governo FHC uma possível saída paraa situação crônica da corrupção. Várias setas pareciamindicar essa direção: o passado tido como honrado e ho-nesto de um intelectual respeitável, a imagem do PSDBnascido na crítica às práticas fisiológicas do PMDB, acrítica do estatismo que, na leitura liberal da tradição po-lítica brasileira, figura como a origem dos males da cor-rupção no Brasil. Havia, é certo, uma sombra: a aliançacom o PFL. Mas, este não foi ungido, no entusiasmo inte-lectual da hora da vitória, à condição de moderno?

A história recente dos dois mandatos de FHC desmen-tiu a previsão. Há, no mínimo, quatro razões que expli-cam a explosão da corrupção no Brasil contemporâneo.

A primeira delas é exatamente o enfraquecimento dasfronteiras entre o público e o privado, ou melhor, a maiscompleta subordinação do primeiro ao segundo, comoresultado do núcleo da opção programática da coalizãoliderada por FHC. Isso quer dizer que seu sentido nuclear-mente anti-republicano, a exaltação do privado e o avilta-mento do que é público, convenientemente confundido como que é estatal, ampliou o espaço para a corrupção.

Em segundo lugar, o plano de governo de FHC pressupu-nha a solda de uma base parlamentar amplíssima, necessáriaà aprovação das reformas da Constituição. Ora, esta base eloteamento de ministérios combinam-se na tradição presi-dencialista brasileira. O fisiologismo, assim, foi desde o iní-cio incorporado ao núcleo da estratégia de governo.

Em terceiro lugar, a autarquização dos centros decisó-rios e o chamado insulamento burocrático compõem cen-tralmente a dinâmica típica de governos de agendas neo-liberais (Diniz, 1997). São estritamente necessários parao enlace das grandes agências estatais � BNDES, BancoCentral, Banco do Brasil, Fundos de Pensão, etc. � comgrandes grupos econômicos.

A consciência do brasileiro já captou a importânciadecisiva da ética na política para seus interesses desde os

tempos da transição. Já no início da década de 90, JoséÁlvaro Moisés evidenciava, através de pesquisas, o apa-rente paradoxo de que a crescente adesão dos brasileirosaos valores da democracia ia de par com a persistente in-satisfação com o funcionamento do sistema político e coma desconfiança em relação aos �políticos� (Moisés, 1993).A pesquisa de opinião pública �Cultura política e cidada-nia�, feita pela NOP � Fundação Perseu Abramo, em de-zembro de 1997, apontava que 43% dos brasileiros esco-lhiam seu candidato a partir do �seu caráter moral�; apenas14% votavam a partir �das proposições de governo do can-didato�. Não se trata, de forma alguma, de uma despoliti-zação do eleitor: de que valem programas se não está es-tabelecida a veracidade da mensagem?

O fenômeno da ética na política não recebeu ainda tra-tamento adequado por parte da alta cultura política brasi-leira, em particular por parte daquelas forças mais interes-sadas na transformação e aprofundamento da democracia.A opinião pública ainda não encontrou uma resposta éti-co-política suficientemente expressiva para suas intuiçõesde que a democracia não prospera onde a ética degenera.

Há na cultura política, grosso modo, três modos de seestabelecer a relação entre a democracia e a ética. A pri-meira, com origem na obra de Max Weber, é de que amodernidade é marcada pela cisão da ética, pela plurali-dade de valores, não sendo mais possível fundamentardemocraticamente uma ética de cunho universal. A demo-cracia, então, é definida pelos procedimentos ou por umatécnica jurídico-política de formar governos legitimados.A relação entre a ética e a política não seria da ordem dopúblico, mas tratada no plano da subjetividade do políti-co, que deve equilibrar a ética das convicções (agir se-gundo seus valores) e a ética das responsabilidades (agirsegundo as conseqüências previstas de seus atos). Essatese tem hoje incidência muito forte na alta cultura, emum liberalismo conservador e elitista. Através dela, o diag-nóstico do problema político brasileiro passaria pela poucasedimentação dos procedimentos legais da democracia,cabendo então apenas processualmente afinar seu uso,eficácia e respeito a eles.

Um segundo modo de conceber o problema da ética napolítica seria o de um liberalismo ético que busca a ver-dade na representação política. Coube a Olavo Brasil deLima Junior (1993), em seu brilhante livro Democracia einstituições políticas no Brasil dos anos 80, demonstrarcomo as preferências eleitorais dos brasileiros, manifes-tadas nas primeiras eleições realizadas após a transiçãodo regime militar, eram distorcidas pela representação

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A CRISE DO PARADIGMA NEOLIBERAL E O ENIGMA DE 2002

partidário-parlamentar com a criação de novas siglas emudanças em massa de partido por parte de políticos elei-tos. Segundo ele, �a desvinculação entre os sistemas par-tidário-parlamentar e eleitoral é síndrome, e simultanea-mente parte, do distanciamento mais geral entre sociedadee política no país�. Carlos Ranulfo, professor de CiênciaPolítica da UFMG, evidenciou que o fenômeno da mu-dança de partido por parte de parlamentares no Congres-so Nacional ganhou proporções avassaladoras nos anos90 (Melo, 2000). A partir desse diagnóstico, o problemabásico da relação entre ética e política � o da fraude narepresentação � só pode ser resolvido por uma reformapolítica da legislação eleitoral e partidária, que estabele-ça novos critérios de fidelidade partidária, que aproximea representação de um critério conforme à proporcionali-dade estrita entre número de eleitores e quota de eleitos,que introduza o financiamento público dos partidos e re-gule o financiamento privado das campanhas, entre ou-tras medidas.

Há, porém, uma terceira ótica para se analisar a criseética do sistema político brasileiro: a ótica republicana, quediagnostica o problema no prevalecimento dos interesses

vas do governo decaiu na mesma medida em que cresce-ram a força e a audiência das oposições.

Agora, o que desperta atenção é o que poderíamos cha-mar de efeito antecipação: a disseminação da expectativade que o governo FHC chegue às eleições de 2002 em meioà crise e altíssimos índices de impopularidade faz com queos atores migrem para alternativas de oposição, gerandoum efeito circular de alimentação da crise do governo. Essejá é o caso do PTB, de parte do PFL e talvez do PMDB. Asituação deste último é decisiva: se em sua próxima con-venção nacional vencerem as forças que querem afastá-lodo governo e de seus planos de sucessão, então será mui-to difícil para um PSDB em crise definir o campo da pró-pria sucessão.

Os efeitos políticos da maior crise energética da histó-ria do país apenas começaram a ser sentidos. Segundovários especialistas, na melhor das hipóteses, o raciona-mento durará até o final de 2002, não sendo, aliás, des-cartados os apagões, mesmo com o aumento punitivo dastarifas. A situação do Nordeste é particularmente aflitiva.Para o BNDES, mesmo com o investimento de 45 bilhõesde reais, a escassez de energia deve durar até 2003. Aprópria capacidade do governo de gerir uma crise tão com-plexa é posta seriamente em questão pela maioria da po-pulação ouvida.

São três os efeitos imediatos da crise energética. Emprimeiro lugar, promove forte aumento da impopularida-de de FHC. Em segundo lugar, enraiza-se solidamente naopinião do brasileiro o posicionamento contra o paradig-ma neoliberal, em particular as privatizações. Antes dacrise energética, pesquisas já apontavam para o desgastedo paradigma neoliberal. A crise deve consolidar essesentimento.

Em terceiro lugar, torna-se dramática a já dificílimasituação macroeconômica do Brasil. A crise energéticacorta as expectativas de crescimento para o país (estima-do agora por várias instituições em pouco mais de 2%contra 4,4% no início do ano) e torna muito mais vulnerá-vel o balanço de pagamentos (maior déficit comercial,menos investimentos externos). Até o fim do mês de maio,o dólar acumulou uma alta de 20% no ano de 2001, comefeitos acumulados sobre a dívida pública.

ENTRE O PASSADO E O FUTURO

Sob o título �Eleitor pobre quer nacionalista no poder.Sondagens colocam em desvantagem os candidatos querepresentam a continuidade�, o jornal Valor Econômico

privados sobre os públicos, pensados a partir de uma lógi-ca democrática da soberania popular. Por essa visão, exis-tem de fato problemas-chave de procedimento democráti-co e de funcionamento do sistema de representação. Maisdo que isso, porém, a raiz da crise ética do sistema políti-co brasileiro seria a distância substantiva entre sua preten-são de ser universal e sua reiteração como sistema cujalógica funciona para manter privilégios. A democracia bra-sileira não foi capaz ainda, como demonstrou o recentecenso do IBGE, de alterar os padrões de concentração derenda erigidos no período do regime militar.

A DINÂMICA DA CRISE

Imediatamente após reeleição e diante da grave crisecambial que levou o governo aos braços do FMI, FernandoHenrique Cardoso proclamou que seu segundo governonão seria refém da administração da crise. O programa derefundação liberal do Estado brasileiro continuaria, con-solidando o domínio da coalizão formada em 1994 e am-pliada em 1998.

No primeiro semestre de 2001, porém, houve uma pre-cipitação de acontecimentos que se somaram na direçãode retirar poder político do governo. A penosa gestão dosfundamentos da própria governabilidade passou a consu-mir mais e mais suas energias. A capacidade de iniciati-

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realidade não registrar o peso crescente das forças damudança que podem, em uma conjuntura crítica, repor ospadrões republicanos. Tudo indica que nas eleições de2002, realizadas sob a crise do paradigma neoliberal, asforças democráticas terão a oportunidade rara de equa-cionar um melhor futuro novo para o País.

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(02/04/2001) traz informações interessantíssimas capta-das por agências de opinião.

A pesquisa aponta que 10% dos ouvidos eram total-mente favoráveis à privatização mas 37% eram totalmen-te contrários. Maior a renda, maior a simpatia pela priva-tização. Um número considerável opinou que empresasestatais não deveriam ter o direito de comprar estataisbrasileiras. A resposta a perguntas sobre as funções que oEstado deveria exercer, afirma o artigo assinado por Ma-ria Inês Nassif, ainda aponta para um sentimento profun-damente estatista.

A opinião pública, sabemos, forma-se elaborando asinformações recebidas e as experiências vividas empiri-camente a partir de modelos argumentativos lógicos e devalores. O que a pesquisa revela é a alteração que está emcurso na opinião do brasileiro. Um modelo interpretativoestá em crise e outro ainda não foi construído.

Uma mudança de cultura política como essa nunca éunivocamente determinada. Não é simples reflexo da vidamaterial, embora esteja fortemente relacionada a ela. �Odiscurso neoliberal foi eficiente enquanto teve forte ele-mento economicista�, analisa o cientista político AntônioPrado, no artigo citado. A outra parte, essencial, é que amudança em curso do senso comum revela uma vitóriadecisiva das batalhas político-culturais dos que resistiramao paradigma neoliberal de refundação do Estado brasi-leiro, seja no plano da alta cultura, nacional e internacio-nal, na mídia, seja no plano da luta político-partidária ouda mobilização popular. Socialistas, liberais éticos,comunitaristas cristãos e desenvolvimentistas, as lideran-ças que organizam a consciência democrática do povobrasileiro, tão duramente construída nas últimas décadas,participaram da grande frente de resistência a um pensa-mento que se queria único.

Afirma-se com freqüência e com razão que a tradiçãopolítica brasileira resiste a mudanças profundas, atualizapermanentemente o passado e impregna o futuro do mo-vimento circular da mesmice. Mas seria fechar os olhos à