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Nomesem

Título original: Lilac GirlsAutora: Martha Hall Kelly

Nota: Mulheres sem Nome é uma obra de ficção. Com exceção de algumas figuras e factos históricos bem conhecidos, todos os acontecimentos, diálogos e personagens são produto da imaginação da autora e não deverão ser considerados reais. Onde surjam figuras históricas verdadeiras, as situações, acontecimentos e diálogos que lhes estejam associados são inteiramente ficcionais e não pretendem descrever eventos reais ou alterar a natureza inteiramente ficcional do trabalho. Em todos os outros aspetos, quaisquer semelhanças com pessoas ainda vivas ou já falecidas é mera coincidência.

© 2016 by Martha Hall Kelly

Tradução: Marta Neves da CruzRevisão: Isabel NevesPaginação: João Jegundo

Capa: Ideias com PesoFotografias da capa: Lee Avison e Elisabeth Ansley

Biblioteca Nacional de Portugal – Catalogação na Publicação

KELLY, Martha Hall

Mulheres sem nomeISBN 978-989-8866-00-4

CDU 821.111(73)-31”20”

Depósito Legal n.º 427649/17

Impressão e acabamento: Pentaedro, Lda.paraMinotauroemjunho de 2017

Direitos reservados para Portugal porMINOTAURO, uma chancela de Edições Almedina, S.A.Avenida Engenheiro Arantes e Oliveira, 11 – 3º C - 1900-221 Lisboa / Portugal

Esta obra está protegida pela lei. Não pode ser reproduzida,no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado,

incluindo fotocópia e xerocópia, sem prévia autorização do Editor.Qualquer transgressão à lei dos Direitos de Autor será passível

de procedimento judicial.

MARTHA HALL KELLY

Nomesem

Ao meu marido, Michael,que ainda me faz sentir o clique.

Parte Um

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Capítulo 1

CAROLINE

SETEMBRO 1939

Se soubesse que estava prestes a conhecer o homem que me iria despe-daçar como se fosse uma peça de terracota, teria ficado a dormir até

tarde. Em vez disso, obriguei o nosso florista, o Sr. Sitwell, a levantar-se da cama para fazer uma boutonnière. A minha primeira gala do Consulado não era ocasião para poupar esforços.

Juntei-me à corrente que percorria a 5.ª Avenida. Furava por entre os homens de chapéus Fedora de feltro cinzento, com pastas onde os jornais da manhã ostentavam os últimos títulos benignos da década. Não havia sinal de tempestade a leste, nem presságios de algo mau. O único indício ameaçador do curso da Europa era o cheiro das águas paradas emanadas do rio East.

À medida que me aproximava do nosso edifício, na esquina da 5.ª Avenida com a Rua 49, apercebi-me de que Roger observava, da janela em cima. Seria capaz de despedir pessoas por bem menos do que um simples atraso de vinte minutos, mas a única altura do ano em que a elite de Nova Iorque abria os cordões à bolsa e fingia importar-se com França não era ocasião para ser sovina em matéria de boutonnières.

Virei na esquina, com o sol matinal refletido nas letras douradas cin-zeladas no pilar: la maison française. O Edifício Francês, que albergava

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o respetivo Consulado, ficava ao lado do British Empire Building, virado para a 5.ª Avenida, parte do Rockefeller Center, o novo complexo de granito e calcário de Rockfeller Junior. Nessa altura, muitos consulados mantinham os seus serviços nessa zona, daí resultando uma grande cal-deirada de diplomacia internacional.

– Para trás e para a frente – disse Cuddy, o nosso empregado do elevador.

O Sr. Rockefeller escolhia os rapazes do elevador com base nos seus modos e bom aspeto. Cuddy tinha um excelente ar, ainda que o cabelo começasse a ficar grisalho e o seu corpo parecesse ter pressa em envelhecer.

O rapaz fixou o olhar nos números iluminados por cima das portas. – Hoje tem aí uma multidão, Menina Ferriday. A Pia disse que che-

garam dois novos navios.– Maravilhoso – respondi.– Mais uma noitada? – Cuddy sacudiu qualquer coisa da manga do

casaco do uniforme azul-marinho. Para elevador mais rápido do mundo, o nosso levava imenso tempo. – Saio às cinco. Esta noite há gala.Adorava o meu trabalho. A avó Woolsey começara a tradição de

trabalhar na nossa família, socorrendo soldados no campo de batalha de Gettysburg. Porém, o meu cargo como responsável de assistência familiar voluntária no Consulado Francês não era propriamente um tra-balho. Para mim, tratava-se de genética adorar tudo o que era francês. O meu pai podia ter sido meio irlandês, mas o seu coração pertencia a França. Além disso, a minha mãe herdara um apartamento em Paris, onde passávamos sempre o mês de agosto e me sentia em casa.

O elevador parou. Mesmo com as portas fechadas, podíamos ouvir o barulho terrífico de vozes altas. Fui percorrida por um arrepio.

– Terceiro andar – anunciou Cuddy. – Consulado Francês. Cuidado com...Assim que as portas se abriram, o barulho sobrepôs-se a qualquer

conversa educada. A entrada no exterior da nossa zona da receção estava de tal maneira apinhada de gente que mal se podia passar. Tanto o Nor-mandie como o Ile de France, dois dos primeiros transatlânticos france-ses, tinham chegado nessa manhã ao porto de Nova Iorque, atulhados de passageiros abastados que fugiam da insegurança que se vivia em França.

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Assim que a buzina deu o sinal e foi possível desembarcar, a elite que viajara nos navios correu para o Consulado para resolver questões de vistos e outros assuntos delicados.

Espremi-me até à enfumarada área da receção, passando por senhoras com os vestidos parisienses mais recentes, que coscuvilhavam no meio de uma agradável nuvem de Arpège, com a humidade do mar ainda nos cabelos. As pessoas deste género estavam habituadas a serem seguidas por um mordomo com um cinzeiro de cristal e uma taça de champanhe. Paquetes de casaco púrpura do Normandie surgiam ao lado dos seus con-géneres do Ile de France, de casaco preto. Abri caminho pela multidão, em direção à secretária situada ao fundo da sala, mas a minha echarpe de chiffon ficou presa no fecho de um maravilhoso colar de pérolas. Enquanto tentava soltá-la, o intercomunicador zumbiu, sem resposta.

Roger.Tentei avançar, mas senti uma pancadinha nas costas e virei-me, para

ver um aspirante a marinheiro de sorriso rasgado.– Gardons nos mains pour nous-mêmes – disse-lhe. Guardemos as

mãos para nós mesmos.O rapaz levantou o braço por cima da multidão e agitou a chave de

um camarote do Normandie. Pelo menos não era um daqueles indivíduos com mais de sessenta anos que eu costumava atrair.

Consegui chegar ao lugar onde a nossa secretária estava sentada, de cabeça baixa, a datilografar.

– Bonjour, Pia.O primo de Roger, um rapaz de dezoito anos de olhos amendoados,

estava sentado sobre a secretária de Pia, com as pernas cruzadas. Segu-rava o cigarro no ar, enquanto escolhia bombons – o pequeno-almoço favorito dela – de uma caixa. Em cima da secretária, a minha caixa de correspondência estava atulhada de processos.

– Vraiment? E o que há de bom? – questionou ela, sem levantar a cabeça.

Pia era muito mais do que uma secretária. Todos tínhamos múltiplas funções, mas as dela incluíam registar novos clientes e criar um processo para cada um, datilografar o considerável volume de correspondência de Roger e decifrar o fluxo massivo de mensagens diárias em código Morse, a força vital do nosso escritório.

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– Porque está tanto calor aqui? – perguntei. – O telefone está a tocar, Pia.

– Não para – retorquiu, tirando um chocolate da caixa.Pia atraía paixões como se emitisse uma frequência só possível de

detetar por homens. Era atraente de uma maneira selvagem, mas suspeito que a sua popularidade se devesse, em parte, às suas blusas justas.

– Pode tratar de alguns dos meus processos hoje, Pia?– O Roger diz que não posso sair desta cadeira – abriu o bombom

com a unha pintada, para chegar ao recheio de morango. – Aliás, ele disse que a queria ver imediatamente, mas acho que a mulher que está no sofá dormiu na entrada a noite passada. – Pia acenou-me com uma metade de uma nota de cem dólares. – E o gordinho com os cães disse que lhe daria a outra metade se a Caroline o atendesse primeiro. – Fez um sinal com a cabeça na direção de um casal mais velho e bem alimentado, junto à porta do meu gabinete, cada um deles segurando um par de teckels cinzentos.

Tal como acontecia com Pia, a descrição das minhas funções era bas-tante extensa. Incluía assistir às necessidades de cidadãos franceses aqui em Nova Iorque – muitas vezes, famílias que estavam a passar por momentos difíceis – e controlar o meu Fundo para as Famílias Francesas, um esforço de caridade que me permitia enviar caixas de presentes para órfãos france-ses do outro lado do oceano. Acabara de me reformar de uma temporada de quase duas décadas na Broadway e, em comparação, isto parecia-me mais fácil. Pelo menos não implicava ter tantas malas para desfazer.

Roger Fortier, o meu patrão, apareceu à porta do seu gabinete.– Caroline, preciso de si agora. O Bonnet cancelou.– Não pode estar a falar a sério, Roger. – A notícia atingiu-me como

um soco. Há meses que estava confirmado que o ministro dos negócios estrangeiros francês faria o discurso na gala.

– Nos dias que correm, ser o ministro dos negócios estrangeiros francês não é fácil – disse, por cima do ombro, enquanto voltava a entrar.

Entrei no meu gabinete e procurei no porta-cartões rotativo sobre a secretária. Estaria Ajahn Chah, o monge budista amigo da minha mãe, livre nessa noite?

– Caroline – chamou Roger. Agarrei no porta-cartões e corri para o seu gabinete, evitando o casal dos teckel, que tentava fazer a sua expres-são mais trágica.

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– Porque chegou atrasada? – inquiriu Roger. – A Pia já cá está há duas horas.

Como cônsul-geral, Roger Fortier governava a partir do gabinete do canto, com vista para a Rockfeller Plaza e para o Promenade Café. Geralmente, o famoso rinque de patinagem ocupava o espaço em baixo, mas estava fechado durante o verão e por isso agora encontrava-se repleto de mesas de café e de empregados de fraque, que se apressavam de um lado para o outro, com aventais que lhes chegavam aos tornozelos. Por trás, o Prometeu dourado maciço de Paul Manship descia à Terra, segu-rando o fogo roubado. Atrás dele ficava o RCA Building*, com setenta andares em direção ao céu safira. Roger tinha bastante em comum com a imponente figura masculina da Sabedoria, sobre a entrada do edifício. A testa franzida. A barba. Os olhos zangados.

– Parei para tratar da flor para a lapela do Bonnet...– Oh, isso já justifica deixar metade da França à espera. – Roger deu

uma dentada num donut, deixando a barba cheia de açúcar em pó. Ape-sar de se poder dizer, simpaticamente, que se assemelhava a um husky, nunca lhe faltava companhia feminina.

A sua secretária estava repleta de folhetos, documentos de segu-rança e dossiês sobre cidadãos franceses desaparecidos. De acordo com o Manual do Consulado Francês, o seu trabalho era «assistir os nacionais franceses em Nova Iorque, em caso de roubo, doença grave ou prisão e com questões relacionadas com certidões de nascimento, adoção e documentos perdidos ou roubados; planear as visitas de funcionários e diplomatas franceses; e prestar assistência em caso de dificuldades políticas e desastres naturais». Os problemas na Europa garantiam-nos imenso trabalho em todas estas categorias, se considerássemos Hitler um desastre natural.

– Tenho assuntos para resolver, Roger...Fez deslizar uma pasta através da polida mesa de reuniões.

* O número 30 da Rockefeller Plaza é um arranha-céus Art Deco que forma o núcleo central do Rockefeller Center, em Midtown Manhattan, Nova Iorque. Foi inicialmente chamado RCA Building, entre 1933 e 1988, e mais tarde GE Building, até 2015, data em que passou a designar-se Comcast Building, na sequência da sua passagem para um novo proprietário, a Comcast. (N. da. T.)

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– Não é só o facto de não termos orador. Passei metade da noite a reescrever o discurso de Bonnet. Tive de me esquivar à questão de Roosevelt ter permitido que a França comprasse aviões americanos.

– A França deveria poder comprar os aviões que quisesse.– Estamos a angariar fundos, Caroline. Não é altura para aborrecer

os isolacionistas. Especialmente os ricos.– De qualquer forma, não apoiam a França.– Não precisamos de mais imprensa negativa. Os Estados Unidos não

estarão a ser demasiado amigáveis com a França? Será que isso não vai aproximar mais a Alemanha e a Rússia? Mal consigo acabar o terceiro prato sem ser interrompido por um repórter. E não podemos mencionar os Rockfellers... Não quero que o Junior me volte a telefonar. Mas creio que isso acontecerá de qualquer maneira, agora que Bonnet cancelou.

– É um desastre, Roger.– Podemos ter de cancelar tudo. – Roger passou os dedos longos pelo

cabelo, escavando trincheiras através da brilhantina.– Reembolsar quarenta mil dólares? Então e o Fundo das Famílias

Francesas? Já estou a ficar sem recursos. Além disso, já pagámos cinco quilos de salada Waldorf ...

– Chamam a isso salada? – Roger percorreu os seus cartões de con-tactos, metade dos quais ilegíveis e riscados. – É pathétique... é só cortar maçãs e aipo. E aquelas nozes empapadas...

Vasculhei o meu arquivo rotativo Wheeldex, em busca de candidatos famosos. A mãe e eu conhecíamos a famosa atriz Julia Marlowe, mas ela andava em tour pela Europa.

– Então e o Peter Patout? Umas pessoas conhecidas da Mãe já têm recorrido a ele.

– O arquiteto?– Da Feira Mundial. Têm aquele robô de dois metros.– Chato – respondeu ele, batendo com o abridor de cartas em prata

na palma da mão.Cheguei aos «L». – E que tal o Capitão Lehude?– Do Normandie? Está a falar a sério? Pagam-lhe para ser aborrecido.– Não pode descartar assim qualquer sugestão, Roger. E se for o Paul

Rodierre? A Betty diz que todos falam dele.

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Roger apertou os lábios, o que era sempre um bom sinal. – O ator? Vi o espetáculo dele. É bom. Alto e atraente, se gostas desse

género. Tem um metabolismo rápido, evidentemente.– Pelo menos, temos certeza de que sabe memorizar um guião.– Ele é um bocado imprevisível. E também é casado, por isso não

fique com ideias.– Estou farta de homens, Roger – respondi. – Aos trinta e sete anos,

já me resignei a ficar solteira.– Não sei se Rodierre estará disposto a fazê-lo. Veja quem conse-

gue arranjar, mas certifique-se de que não se afasta do guião. Nada de Roosevelt...

– Nem de Rockefellers – concluí.Entre vários processos, fiz uns telefonemas para umas possibilida-

des de última hora, acabando por ficar com uma opção: Paul Rodierre. Estava em Nova Iorque, num espetáculo musical americano, no Teatro Broadhurst, The Streets of Paris, a ciclónica estreia de Carmen Miranda na Broadway.

Telefonei para a agência William Morris e disseram-me que iriam verificar e que me ligariam de volta. Dez minutos mais tarde, o agente do Sr. Rodierre informou-me que nessa noite não havia espetáculo e que, apesar de o seu cliente não possuir roupa de cerimónia, se sentia profun-damente honrado com o nosso pedido para ser o anfitrião da gala nessa noite. Encontrar-se-ia comigo no Waldorf para discutir os pormenores. O nosso apartamento na Rua 50 Este ficava a um passo de lá, por isso fui até casa mudar para o vestido Chanel preto da mãe.

Encontrei o Sr. Rodierre sentado à mesa do café, no bar da Peacock Alley do Waldorf, adjacente ao lobby, quando o relógio de bronze de duas toneladas tocava a meia hora com o som maravilhoso da Catedral de Westminster. Os convidados da gala, com as suas roupas elegantes, dirigiam-se ao grande salão de baile, no andar de cima.

– Monsieur Rodierre? – perguntei.Roger tinha razão quanto ao aspeto atraente. Após o deslumbramento

inicial provocado pela sua beleza física, a primeira coisa em que se repa-rava em Paul Rodierre era no seu extraordinário sorriso.

– Como poderei agradecer-lhe aceitar este convite tão em cima da hora, Monsieur?

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Ele levantou-se da cadeira, revelando uma constituição mais ade-quada a uma equipa de remo no rio Charles do que a uma peça na Broadway. Ia beijar-me na face, mas eu estendi-lhe a mão e ele apertou--ma. Era agradável conhecer um homem da minha altura.

– Encantado – cumprimentou-me.O problema era a roupa: calças verdes, um casaco desportivo de

veludo cor de beringela, uns sapatos de camurça castanhos e, pior do que tudo, uma camisa preta. Só os padres e os fascistas usavam camisas dessa cor. E os gangsters, evidentemente.

– Vai querer mudar de roupa? – Resisti ao impulso de lhe arranjar o cabelo, suficientemente comprido para pentear para trás e prender com um elástico. – Fazer a barba? – Segundo o seu agente, o Sr. Rodierre estava hospedado no hotel e, portanto, a sua lâmina estaria a poucos andares de distância.

– Esta é a roupa que uso – explicou, encolhendo os ombros. Um ator típico. Porque não tive mais cuidado? A procissão de convidados que se dirigia ao salão de baile ia aumentando, com as mulheres deslumbrantes na sua elegância e os homens de casaca e sapatos de verniz ou sapatos em pele de bezerro muito bem engraxados.

– É a minha primeira gala – disse eu. – A noite para o Consulado angariar dinheiro. É de cerimónia. – O velho smoking do Pai servir-lhe--ia? O tamanho devia ser o mesmo, mas talvez lhe ficasse muito apertado nos ombros.

– Tem sempre assim tanta... energia, Menina Ferriday? – Bem, aqui em Nova Iorque a individualidade nem sempre é apre-

ciada. – Entreguei-lhe as folhas agrafadas. – Imagino que esteja ansioso por ler o guião.

– Não, merci – retorquiu, devolvendo-mo.– Mas foi o próprio cônsul-geral que o escreveu. – Empurrei-o nova-

mente para as suas mãos.– Pode explicar-me o que se pretende com isto?– É para auxiliar cidadãos franceses deslocados ao longo deste ano e

o meu Fundo para as Famílias Francesas. Ajudamos órfãos em França, que perderam os pais por variadas razões. Com toda a incerteza que se vive no estrangeiro, somos a única fonte de confiança em matéria de rou-pas e alimentos. Além disso, os Rockefellers também estarão presentes.

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– Mais valia passarem logo um cheque e evitarem tudo isto – comen-tou, folheando o discurso.

– Estão entre os nossos benfeitores mais generosos, mas por favor não lhes faça qualquer referência. Nem ao Presidente Roosevelt. Nem aos aviões que os E.U.A. venderam a França. Claro que alguns dos nossos convidados esta noite amam a França, mas por agora preferem manter--se distantes de uma guerra. O Roger quer evitar qualquer controvérsia.

– Contornar as questões nunca dá um ar autêntico. A audiência sente isso.

– Por favor, pode ater-se ao discurso, Monsieur?– Tanta preocupação pode provocar problemas cardíacos, Menina

Ferriday.– Ora aqui está – disse, pegando no alfinete com o lírio-do-vale.

– Uma boutonnière para o convidado de honra.– Un muguet? – surpreendeu-se o Sr. Rodierre. – Como é que o

encontrou, nesta altura do ano?– Em Nova Iorque arranja-se tudo. O nosso florista é capaz de os

fazer nascer em canos.Pousei a palma da mão sobre a sua lapela e prendi bem o alfinete

no veludo francês. Aquele perfume encantador era dele ou das flores? Porque é que os homens americanos não cheiravam assim, a tuberosas e a almíscar e madeiras e...

– Sabe que o lírio-do-vale é venenoso, não sabe? – perguntou o Sr. Rodierre.

– Então não o coma. Pelo menos, enquanto não tiver acabado de falar ou a multidão não se tiver virado contra si.

Ele riu-se, fazendo-me dar um passo atrás. Era um riso tão genuíno, algo que raramente se encontrava num ambiente refinado, em especial quando se tratava de uma das minhas piadas.

Levei-o até aos bastidores e fiquei impressionada com a sua dimen-são, com o dobro do tamanho de qualquer outro onde tivesse estado, na Broadway. Olhámos para o salão de baile, com o seu mar de mesas ilumi-nadas por velas, como barcos floridos na escuridão. Apesar de terem luzes suaves, o lustre de cristal Waterford e os seus seis satélites brilhavam.

– Este palco é enorme – comentei. – Consegue dar conta dele?– Isto é a minha vida, Menina Ferriday – afirmou, olhando para mim.

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Receando antagonizá-lo mais, deixei-o com o guião nos bastidores, tentando ignorar a minha fixação pelos sapatos castanhos de camurça. Apressei-me a seguir até ao salão de baile, para verificar se Pia pusera em prática o meu mapa com os lugares, mais pormenorizado e perigoso do que o plano de voo da Luftwaffe*. Vi que ela se limitara a pousar vários cartões nas seis mesas Rockefeller e por isso distribuí-os e tomei o meu lugar perto do palco, entre a cozinha e a mesa principal. Em volta da ampla sala, sobre três mesas de jantar, erguiam-se vários níveis de caixas sobrepostas, embrulhadas em papel vermelho. Todos os mil e setecentos lugares estariam ocupados, o que significaria muitas pessoas infelizes, se as coisas não corressem bem.

Os convidados juntaram-se e tomaram os seus lugares, um oceano de laços brancos, diamantes e vestidos da Rue du Faubourg Saint-Honoré, em número suficiente para deixar vazia a maior parte das melhores lojas de Paris. Só as cintas já seriam suficientes para assegurar que a Bergdorf and Goodman conseguiriam atingir os seus objetivos de vendas do ter-ceiro trimestre.

Ao meu lado encontrava-se uma série de jornalistas, prontos a pega-rem nos seus lápis, presos atrás das orelhas. O chefe de mesa estava pre-parado, junto a mim, aguardando a ocasião certa para iniciar o serviço. Elsa Maxwell – coscuvilheira, anfitriã de festas e autopromotora de ne plus ultra** – entrou no salão. Iria ela retirar as luvas para escrever coisas terríveis sobre esta noite na sua coluna, ou limitar-se-ia a memorizar o horror de tudo aquilo?

Quando a Sra. Cornelius Vanderbilt, a quem Roger chamava «Sua Graça», chegou com um colar de diamantes de quatro voltas a resplande-cer no peito, as mesas já estavam quase cheias. Assim que o seu traseiro entrou em contacto com a almofada do assento e a sua estola de raposa completa, com patas e cabeça, pousou nas costas da cadeira, fiz sinal para que se iniciasse o serviço. As luzes foram reduzidas e Roger encaminhou--se para o pódio iluminado, no meio de aplausos sinceros. Quando fora eu a estar naquele lugar, nunca me sentira tão nervosa como agora.

* Durante a Alemanha Nazi, a Luftwaffe era o ramo aéreo das Forças Armadas. (N. da T.)** Expressão original latina – non plus ultra –, que neste contexto significa «o melhor

exemplo de alguma coisa». (N. da T.)

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– Mesdames et Messieurs, o Ministro Bonnet dos Negócios Estran-geiros envia o seu sincero pedido de desculpas, mas não poderá estar presente esta noite. – A multidão sussurrou, sem saber bem como reagir a semelhante desilusão. Seria possível pedir a devolução do dinheiro por correio? Ligar para Washington?

Roger levantou uma mão. – No entanto, convencemos outro francês para falar esta noite. Ainda

que não faça parte do governo, é um homem que exerce um dos mais importantes papéis da Broadway.

Os convidados sussurravam de novo entre si. Não há nada como uma surpresa, desde que seja boa.

– Permitam-me que vos apresente o Sr. Paul Rodierre.O Sr. Rodierre passou pelo pódio e dirigiu-se ao centro do palco.

Que estava ele a fazer? O projetor varreu o palco durante uns instantes, tentando localizá-lo. Roger tomou o seu lugar na mesa principal, junto à senhora Vanderbilt. Fiquei por perto, mas suficientemente distante para não ser estrangulada.

– É um enorme prazer estar aqui esta noite – começou o Sr. Rodierre, mal o foco o encontrou. – Lamento imenso que o Sr. Bonnet não tenha podido vir.

Mesmo sem microfone, a sua voz enchia a sala. Praticamente bri-lhava, sob a luz do holofote.

– Sou um humilde substituto de um convidado tão distinto. Espero que não tenha sido algum problema com o avião. Estou certo de que o Presidente Roosevelt lhe enviaria outro, se fosse esse o problema.

Pela sala, ouviram-se uns risinhos nervosos. Não precisava de olhar para os jornalistas para perceber que estavam a garatujar. Roger, especia-lista na arte do tête-à-tête, conseguia estar a falar com a Sra. Vanderbilt e lançar punhais na minha direção.

– É verdade, não posso falar sobre política convosco – prosseguiu o Sr. Rodierre.

– Graças a Deus! – gritou alguém de uma mesa ao fundo da sala. A multidão voltou a rir, desta vez mais sonoramente.

– Mas posso falar-vos da América que conheço, um lugar que me surpreende todos os dias. Um lugar onde pessoas de espírito aberto aco-lhem não apenas o teatro, a literatura, o cinema e a moda franceses, mas também os próprios franceses, apesar de todas as nossas falhas.

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– Merda – exclamou o repórter ao meu lado, quando partiu o lápis. Estendi-lhe o meu.

– Todos os dias vejo pessoas a ajudarem outras. Americanos, inspi-rados pela Sra. Roosevelt, que estende a mão através do Atlântico para ajudar crianças francesas. Americanos como a Menina Caroline Ferriday, que todos os dias trabalha para ajudar famílias francesas aqui nos Estados Unidos e que providencia roupas para os órfãos franceses.

Roger e a Sra. Vanderbilt olharam na minha direção. O foco encon-trou-me, junto à parede, e a luz cegou-me. Sua Graça bateu palmas e a multidão imitou-a. Acenei, até que a luz, misericordiosamente rápida, regressou ao palco, deixando-me numa fria escuridão. Não sentia pro-priamente falta dos palcos da Broadway, mas era agradável voltar a ter o calor daquele foco sobre a minha pele.

– Esta é uma América que não tem medo de vender aviões a quem ficou junto de si nas trincheiras da Grande Guerra. Uma América sem medo de manter Hitler afastado das ruas de Paris. Uma América que não tem medo de ficar ao nosso lado se os tempos terríveis regressarem...

Continuei a ouvir, desviando apenas os olhos para dar uma espreita-dela ao público. A multidão estava atenta e certamente nem se preocupava com os sapatos do orador. A meia hora passou num instante e sustive a respiração quando o Sr. Rodierre se curvou para agradecer. Os aplausos começaram discretos, mas foram crescendo em ondas, como uma tre-menda chuva torrencial a abater-se sobre o telhado. Uma Elsa Maxwell de olhos marejados usou um guardanapo do hotel para secar os olhos e, quando a audiência se levantou e começou a cantar La Marseillaise, fiquei contente por Bonnet não ter de aparecer a seguir àquela apresen-tação. Até o pessoal de serviço cantava, com uma mão sobre o coração.

Quando as luzes voltaram a aumentar, Roger parecia aliviado e sau-dou a multidão de benfeitores que se aglomerou junto da mesa princi-pal. No final da noite, dirigiu-se ao Rainbow Room com um grupo dos maiores benfeitores e algumas Rockettes, as únicas mulheres de Nova Iorque que me faziam parecer baixa.

O Sr. Rodierre tocou-me no ombro, enquanto deixávamos a sala. – Conheço um sítio, sobre o Hudson, que tem um vinho excelente.– Preciso de ir para casa – respondi, muito embora não tivesse comido

nada. Veio-me à cabeça a imagem de pão quente e escargots em manteiga,

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mas nunca era muito conveniente ser vista sozinha em público com um homem casado. – Esta noite não, Monsieur, mas agradeço-lhe de qualquer forma. – Em poucos minutos estaria em casa, num apartamento frio e a comer os restos de uma salada Waldorf.

– Vai deixar-me a comer sozinho depois do nosso triunfo? – insistiu o Sr. Rodierre.

Porque não haveria de ir? O meu grupo comia apenas em certos restaurantes, que se podiam contar pelos dedos de uma mão, todos eles situados num raio de quatro quarteirões em relação ao Waldorf, nunca próximo do rio Hudson. Que mal poderia fazer um jantar?

Apanhámos um táxi até ao Le Grenier, um bistro encantador no West Side. Os transatlânticos franceses navegavam pelo rio Hudson e atracavam junto à Rua 51 e por isso alguns dos sítios mais encantadores de Nova Iorque despontavam por aí, como cogumelos após uma boa chuvada. O Le Grenier vivia à sombra do SS Normandie, no sótão do edifício da antiga capitania do porto. Quando saímos do táxi, o enorme navio erguia-se bem acima de nós, com o convés brilhante com a luz dos projetores e quatro andares com escotilhas iluminadas. Na proa, um soldador fazia saltar faíscas laranja para o céu noturno, enquanto no convés alguns homens desciam um projetor por uma das laterais, até junto de uns pintores equilibrados sobre um andaime. Ali sentia--me pequena, perante aquela proa enorme e negra, com as suas três chaminés vermelhas, cada uma das quais maior do que qualquer dos armazéns que se estendiam pelo cais. Sentia-se o sal no ar do final de verão, com as águas do Atlântico a encontrarem-se com as do rio Hudson.

No Le Grenier, as mesas estavam cheias de gente com um aspeto medianamente agradável, na sua maioria de classe média, incluindo um repórter que estivera na gala, e os que pareciam passageiros do transa-tlântico, felizes por se encontrarem em terra firme. Escolhemos uma mesa apertada, de madeira envernizada, construída como uma peça do interior de um navio, onde cada centímetro conta. O chefe de mesa do restaurante, o Sr. Bernard, elogiou imenso o Sr. Rodierre e disse-lhe que já vira The Streets of Paris três vezes, partilhando com grande porme-nor as especificidades da sua própria carreira no Teatro Comunitário de Hoboken.

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– E a menina, não tive já oportunidade de a ver em palco com a menina Helen Hayes? – perguntou-me o Sr. Bernard, voltando-se para mim.

– Uma atriz? – interrogou-me o Sr. Rodierre com um sorriso.De perto, aquele sorriso não era seguro. Tinha de manter a cabeça

fria, já que os franceses eram o meu calcanhar de Aquiles. Na verdade, se Aquiles tivesse sido francês, provavelmente teria andado com ele ao colo de um lado para o outro, até que o seu calcanhar sarasse.

– Achei as críticas injustas... – continuou o Sr. Benard. – Vamos fazer o pedido – atalhei.– Creio que alguém até usou a palavra «rígido»...– Vamos querer escargots, Monsieur. Sem demasiado molho, por

favor...– E o que é que o Times disse acerca de The Twelfth Night? Que a

Menina Ferriday tinha feito o suficiente no papel de Olivia? Achei que foram um bocado duros...

– E sem alho. E malpassados, para não ficarem duros.– Quer que deslizem pela mesa, Mademoiselle? – O Sr. Bernard

anotou o nosso pedido e dirigiu-se à cozinha.Paul Rodierre estudou a lista dos champanhes, detendo-se nos por-

menores. – Uma atriz, hein? Nunca diria. – Havia algo de atraente no seu ar

um pouco descuidado, como uma horta que precisa de ser limpa das ervas daninhas.

– O Consulado é melhor para mim. A Mãe conhecia Roger há anos e quando ele sugeriu que o ajudasse, eu não resisti.

O Sr. Bernard colocou um cesto de pão em cima da mesa, detendo-se um momento a olhar para o Sr. Rodierre, como se quisesse memorizá-lo.

– Espero esta noite não estar a afastar algum namorado – disse Paul. Estendeu uma mão para o cesto do pão ao mesmo tempo que eu e a minha roçou a dele, quente e macia. Recolhi-a imediatamente para o colo.

– Estou demasiado ocupada para essas coisas. Sabe como é Nova Iorque... as festas e isso tudo. Muito cansativo.

– Nunca a vi no Sardi’s. – Partiu um bocado de pão quente e o seu fumo subiu na direção da luz.

– Oh, eu trabalho muito.– Tenho a sensação de que não trabalha por dinheiro.

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– Tenho uma função não remunerada, se é isso que quer dizer, mas numa sociedade educada, isso não é uma pergunta que se faça, Monsieur.

– Podemos dispensar o «Monsieur»? Faz-me sentir velho.– E tratarmo-nos pelos primeiros nomes? Mas acabámos de nos

conhecer.– Estamos em 1939.– A sociedade de Manhattan é como um sistema solar, com a sua

própria organização. Uma mulher solteira a jantar com um homem casado já é suficiente para atirar planetas para fora do alinhamento.

– Aqui ninguém nos vê – disse Paul, apontando ao chefe de mesa o nome de um champanhe da lista.

– Diga isso à Menina Evelyn Shimmerhorn, naquela mesa ali atrás.– A sua reputação vai ficar arruinada? – perguntou, com um tom

bondoso, raro em homens tão tremendamente bonitos. Talvez afinal de contas a camisa preta fosse uma boa escolha para ele.

– Evelyn não irá falar. Vai ter uma criança numa má altura, coitadinha.– Crianças. Complicam tudo, não é verdade? Na vida de um ator não

há lugar para elas.Outro ator egoísta.– Como é que o seu pai lhe ganhou esse lugar neste sistema solar?Para um conhecimento recente, Paul estava a fazer muitas perguntas.– Ganhou mesmo. Estava na área dos alimentos secos.– Onde?O Sr. Bernard colocou sobre a mesa um balde de prata com argolas

como os brincos dos ciganos, com uma garrafa de champanhe de gargalo verde-esmeralda encostada num dos lados.

– Associado da James Harper Poor.– Da Poor Brothers? Já estive em sua casa em East Hampton. Não é

exatamente pobre. Vai muitas vezes a França?– Vou a Paris todos os anos. A Mãe herdou um apartamento... na Rue

Chauveau Lagarde.O Sr. Bernard libertou a rolha da garrafa com um som discreto. Despejou

o líquido dourado no meu copo e as bolhas subiram até à borda, quase dei-tando por fora, mas acabando por ficar no nível perfeito. Um especialista.

– Rena, a minha mulher, tem uma pequena loja aí perto, chamada Les Jolies Choses. Já a viu?

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Sorvi o champanhe, com as bolhas a fazerem-me cócegas nos lábios.

Paul tirou a fotografia dela da carteira. Rena era mais nova do que eu imaginara e tinha o cabelo escuro cortado à boneca chinesa. Sorria, com os olhos bem abertos, como se estivesse a partilhar um segredo delicioso. Era linda e talvez o meu exato oposto. Imagino que teria o tipo de loja chique que ajudava as mulheres a arranjar-se ao famoso estilo francês – nada demasiado certinho, uma irreverência na dose certa.

– Não, não vi – respondi. Devolvi-lhe a fotografia. – É encantadora. – comentei, acabando o champanhe que tinha no copo.

– Claro que é demasiado nova para mim, mas... – Paul encolheu os ombros e olhou por uns instantes para a fotografia como se a visse pela primeira vez, a cabeça ligeiramente inclinada para o lado, antes de a voltar a colocar na carteira. – Não nos vemos muito.

Agitei-me com essa ideia, mas depois acalmei ao aperceber-me de que, mesmo que Paul estivesse livre, a minha natureza enérgica impor--se-ia, fazendo extinguir qualquer centelha de romance.

Na cozinha, um rádio tocava uma Edith Piaf estridente. Paul tirou a garrafa do balde e despejou mais champanhe no meu

copo. Fervilhou, com as bolhas frenéticas a escorrerem pela borda. Olhei--o. Claro que ambos sabíamos o que isso significava. A tradição. Todos os que já tivessem passado algum tempo em França a conheciam. Teria feito de propósito?

Sem hesitar, Paul passou o dedo pelo champanhe derramado, na base do meu copo, inclinou-se para mim e esfregou-me o líquido frio atrás da orelha esquerda. Quase saltei com o seu toque e depois esperei, enquanto ele afastava o meu cabelo para o lado e fazia o mesmo atrás da minha orelha direita, deixando o dedo deter-se aí um pouco mais. Fez o mesmo nas suas próprias orelhas, sorrindo.

Porque me sentia repentinamente com tanto calor?– Rena costuma visitá-lo? – perguntei. Tentei remover uma mancha

de chá da minha mão, mas descobri que era uma mancha da idade. Encantador.

– Ainda não. Ela não se interessa por teatro. Ainda nem sequer veio ver The Streets of Paris e eu também não sei se posso ficar. Por lá, Hitler está a deixar-nos a todos no limite.

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Algures na cozinha, dois homens discutiam. Onde estavam os nos-sos escargots? Tinham enviado alguém a Perpignan para ir buscar os caracóis?

– Pelo menos França tem a Linha Maginot* – disse eu.– A Linha Maginot? Oh, por favor. Um muro de cimento e alguns

postos de observação? Para Hitler, isso é apenas uma chapada com luva.– Tem vinte e cinco quilómetros.– Nada deterá Hitler se ele quiser alguma coisa – replicou Paul.Ouvia-se uma enorme confusão vinda da cozinha. Não era de admirar

que a nossa entrée ainda não tivesse chegado. O cozinheiro, sem dúvida um artista temperamental, estava furioso com alguma coisa.

O Sr. Bernard emergiu da cozinha. A porta de vaivém oscilou para a frente e para trás uma série de vezes. Foi até ao centro da sala. Teria estado a chorar?

– Excusez-moi, minhas senhoras e meus senhores.Alguém bateu com uma colher num copo e a sala silenciou-se.– Acabei de saber, de fonte segura... – O homem respirou fundo, com

o peito a expandir-se como um fole de lareira. – Sabemos, sem margem de dúvida, que... – Fez uma pausa, controlou-se e recomeçou: – Adolf Hitler invadiu a Polónia.

– Meu Deus! – exclamou Paul.Entreolhámo-nos, enquanto a sala irrompia em conversas agitadas,

numa algazarra de especulação e medo. O repórter da gala levantou-se, atirou uns dólares amarrotados para cima da mesa, agarrou no chapéu e saiu rapidamente.

No rebuliço que se seguiu a este anúncio, as últimas palavras de Sr. Bernard ficaram quase perdidas.

– Que Deus nos ajude.

* Linha de fortificações e de defesa construída pela França ao longo das suas fronteiras com a Alemanha e a Itália, após a Primeira Guerra Mundial, mais precisamente entre 1930 e 1936. (N. da T.)