commander of the british empire dame of the british empire · como enfermeira e depois como...

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Agatha Christie nasceu Agatha May Clarissa Miller, em Torquay, na Grã-Bretanha, em 1890. Durante a I Guerra Mundial, prestou serviço voluntário num hospital, primeiro como enfermeira e depois como funcionária da farmácia e do dispensário. Esta experiência revelar-se-ia fundamental, não só para o conhecimento dos venenos e preparados que figurariam em muitos dos seus livros, mas também para a própria concepção da sua carreira na escrita. Com o seu segundo marido, o arqueólogo Max Mallowan, Agatha viajaria um pouco por todo o mundo, participando activamente nas suas escavações arqueológicas, nunca abandonando contudo a escrita, nem deixando passar em claro a magnífica fonte de conhecimentos e inspiração que estas representavam. Autora de cerca de 300 obras (entre romances de mistério, poesia, peças para rádio e teatro, contos, documentários, uma autobiografia e seis romances publicados sob o pseudónimo de Mary Westmacott), viu o seu talento e o seu papel na literatura e nas artes oficialmente reconhecidos em 1956, ano em que foi distinguida com o título de Commander of the British Empire. Em 1971, a rainha Isabel II consagrou-a com o título de Dame of the British Empire. Deixando para trás um legado universal celebrado em mais de cem línguas, a Rainha do Crime, ou Duquesa da Morte (como ela preferia ser apelidada), morreu em 12 de Janeiro de 1976. Em 2000, a 31st Bouchercon World Mystery Convention galardoou Agatha Christie com dois prémios: ela foi considerada a Melhor Escritora de Livros Policiais do século XX e os livros protagonizados por Hercule Poirot a Melhor Série Policial do mesmo século. Crime_expresso_01a220_1_224_Crime_expresso_Oriente 8/23/10 11:47 AM Page 1

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Agatha Christie nasceu Agatha May Clarissa Miller, em Torquay, na Grã-Bretanha, em 1890.

Durante a I Guerra Mundial, prestou serviço voluntário num hospital, primeirocomo enfermeira e depois como funcionária da farmácia e do dispensário.

Esta experiência revelar-se-ia fundamental, não só para o conhecimento dosvenenos e preparados que figurariam em muitos dos seus livros,

mas também para a própria concepção da sua carreira na escrita.Com o seu segundo marido, o arqueólogo Max Mallowan, Agatha viajaria um

pouco por todo o mundo, participando activamente nas suas escavaçõesarqueológicas, nunca abandonando contudo a escrita, nem deixando passar emclaro a magnífica fonte de conhecimentos e inspiração que estas representavam.Autora de cerca de 300 obras (entre romances de mistério, poesia, peças para rádioe teatro, contos, documentários, uma autobiografia e seis romances publicados

sob o pseudónimo de Mary Westmacott), viu o seu talento e o seu papel naliteratura e nas artes oficialmente reconhecidos em 1956, ano em que foi

distinguida com o título de Commander of the British Empire. Em 1971, a rainhaIsabel II consagrou-a com o título de Dame of the British Empire.

Deixando para trás um legado universal celebrado em mais de cem línguas, aRainha do Crime, ou Duquesa da Morte (como ela preferia ser apelidada), morreu

em 12 de Janeiro de 1976.Em 2000, a 31st Bouchercon World Mystery Convention galardoou Agatha Christie

com dois prémios: ela foi considerada a Melhor Escritora de Livros Policiais do século XX e os livros protagonizados por Hercule Poirot

a Melhor Série Policial do mesmo século.

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Um Crime noExpresso do Oriente

AGATHA CHRISTIE

Tradução

Alberto Gomes

Revisão da Tradução

Carolina Vasconcelos

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Título original:MURDER ON THE ORIENT EXPRESSAGATHA CHRISTIE® POIROT® Copyright © 2010 Agatha Christie Limited (a Chorion company). All rights reserved. Murder on the Orient Express foi originalmente publicado em 1934

Capa: © Ideias com Peso/Luís AlegreFotografia da autora: Bettmann/Corbis/AtlânticoPressPaginação: Maria da Graça SamagaioImpressão e acabamentos: EIGAL

1.ª edição: Julho de 20028.ª edição: Outubro de 2010Depósito legal n.º 315627/10ISBN 978-989-23-1034-3Reservados todos os direitos

Edições ASA II, S.A.Uma editora do Grupo LeyaRua Cidade de Córdova, n.º 22610-038 Alfragide – PortugalTelef.: (+351) 214 272 200Fax: (+351) 214 272 [email protected]

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Para M.E.L.M. Arpachya, 1933

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ÍNDICE

PARTE I Os Factos

I Um passageiro importante no Expresso Tauro . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11II O Hotel Tokatlian . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19

III Poirot recusa um caso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26IV Um grito na noite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33V O crime . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37

VI Uma mulher? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47VII O corpo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54

VIII O caso do rapto Armstrong . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63

PARTE II Depoimentos

I O depoimento do revisor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69II O depoimento do secretário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75

III O depoimento do criado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 80IV O depoimento da senhora americana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85V O depoimento da senhora sueca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92

VI O depoimento da princesa russa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97VII O depoimento do conde e da condessa Andrenyi . . . . . . . . . . . . . . . 103

VIII O depoimento do coronel Arbuthnot . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 108IX O depoimento de Mr. Hardman . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115X O depoimento do italiano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121

XI O depoimento de Miss Debenham . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125XII O depoimento da dama de companhia alemã . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130

XIII Síntese dos depoimentos dos passageiros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 136XIV A prova da arma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143XV A prova das bagagens dos passageiros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 150

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PARTE III Hercule Poirot Senta-se e Pensa

I Quem de entre eles? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165II Dez perguntas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 172

III Certos aspectos sugestivos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 177IV A mancha de gordura num passaporte húngaro . . . . . . . . . . . . . . . . 184V O nome de baptismo da Princesa Dragomiroff . . . . . . . . . . . . . . . . . . 190

VI Um segundo interrogatório ao coronel Arbuthnot . . . . . . . . . . . . . . 194VII A identidade de Mary Debenham . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 197

VIII Mais revelações surpreendentes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 201IX Poirot propõe duas soluções . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207

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PARTE I

OS FACTOS

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CAPÍTULO I

UM PASSAGEIRO IMPORTANTE NO EXPRESSO TAURO

Eram cinco horas de uma manhã de Inverno na Síria. O comboio, gran -dio samente designado nos guias ferroviários como Expresso Tauro, estendia --se ao longo da plataforma de Alepo. Consistia numa carruagem-cozinha erestaurante, numa carruagem-cama e em duas carruagens para os passa gei roslocais.

Um jovem tenente francês de uniforme resplendente estava junto doestribo que dava para a carruagem-cama a conversar com um homenzinhomagro agasalhado até às orelhas e do qual se via apenas a pontinha vermelhado nariz e as arestas de um bigode revirado para cima.

Estava um frio de enregelar, e esta obrigação de acompanhar à estaçãoum distinto estrangeiro não tinha nada de invejável, mas o tenente Dubosccumpria a sua parte corajosamente. Saíam-lhe dos lábios expressões amáveisnum francês educado. Não que ele soubesse o que se passava. Houve ru mo -res, claro, como havia sempre em casos assim. O temperamento do general— do seu general — piorara cada vez mais. E depois aparecera este estran gei -ro bel ga — directamente de Inglaterra, segundo o que se dizia. Foi uma se -mana… uma semana de inusitada tensão. E depois aconteceram certascoisas. Um oficial notável suicidara-se, outro demitira-se — os rostos ansio -sos perderam subitamente a ansiedade, certas precauções militares afrou -xaram. E o gene ral — o general a quem o tenente Dubosc reportava — pare -ceu reju venescer dez anos.

Dubosc chegara mesmo a ouvir acidentalmente uma conversa entre elee o belga: «Salvou-nos, mon cher», dissera o general com emoção, o grandebigode branco tremendo-lhe enquanto falava. «Salvou a honra do exércitofrancês — evitou uma grande carnificina! Como posso agradecer-lhe por teracedido ao meu pedido? Vir de tão longe…».

O estrangeiro (que dava pelo nome de M. Hercule Poirot) fornecera então

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uma resposta oportuna que incluía a frase: «E eu esqueceria por acaso que jáme salvou a vida uma vez?». E o general dera também uma resposta oportu -na, negando qualquer mérito por esse serviço passado, e, por entre maismenções à França, à Bélgica, à glória, à honra e coisas afins, tinham-seabraçado efusivamente e a conversa terminara.

O tenente Dubosc continuava ainda às escuras sobre o que é que se tinhapassado, só sabia que o tinham encarregado de acompanhar M. Poirot aoExpresso Tauro, tarefa que estava a desempenhar com todo o zelo e entusias -mo próprios de um oficial jovem com uma auspiciosa carreira diante de si.

— Hoje é domingo — disse o tenente Dubosc. — Amanhã à tarde, jáestará em Istambul.

Não era a primeira vez que fazia aquela observação. As conversaçõesnuma plataforma de embarque, antes de o comboio partir, tendem a ser algorepetitivas.

— Assim é.— E, segundo creio, pretende demorar-se por lá alguns dias?— Mais oui. Istambul, uma cidade que nunca visitei. Seria uma pena

passar apenas por lá, comme ça. — E estalou os dedos de modo expressivo.— Não há pressas, vou demorar-me por lá uns dias, como turista.

— Santa Sofia, uma maravilha — disse o tenente Dubosc, que nunca viraesse templo.

Um vento frio silvou pela plataforma. Ambos tiritaram. O tenente Du -bosc conseguiu deitar um olhar sub-reptício ao relógio. Cinco para as cinco— só faltavam mais cinco minutos!

Pensando que o outro notara aquele olhar sub-reptício, apressou-se aentabular conversa novamente.

— Pouca gente viaja nesta época do ano — disse, olhando de relancepara as janelas da carruagem-cama acima deles.

— Assim é — concordou Poirot.— Esperemos que o Tauro não fique preso na neve!— Pode acontecer isso?— Já aconteceu, já. Não este ano, pelo menos até agora.— Esperemos então que não — disse M. Poirot. — As previsões meteo -

rológicas para a Europa são más.— Muito más. Nos Balcãs há muita neve.

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— Na Alemanha também, pelo que ouvi dizer.— Eh bien! — disse o tenente Dubosc, apressadamente, quando parecia

que ia haver nova pausa. — Amanhã à tarde, às sete e quarenta, estará emConstantinopla.

— Sim — disse Poirot, e prosseguiu com algum desespero: — Santa So -fia, ouvi dizer que é maravilhosa.

— Magnífica, segundo creio.A cortina de um dos compartimentos da carruagem-cama acima deles

foi levantada e uma mulher jovem olhou para fora.Mary Debenham tinha dormido pouco desde que deixara Bagdade, na

quinta-feira anterior. Não conseguira dormir bem, nem no comboio paraKirkuk, nem na hospedaria em Mossul, nem na noite anterior no comboio. Eagora, esgotada por ter permanecido acordada na cama naquele ar quente epesado do compartimento sobreaquecido, decidiu levantar-se e espreitar lápara fora.

Devia estar em Alepo. Nada digno de se ver, claro. Apenas uma compridaplataforma pobremente iluminada e o ruído de furiosas altercações em árabealgures por ali. Dois homens estavam a falar em francês por baixo da suajanela. Um era oficial, o outro um homenzinho com uns bigodes enormes.Sorriu tenuemente. Nunca vira ninguém assim tão agasalhado. Devia estarmuito frio lá fora. Era por isso que o calor no comboio era tão terrível. Tentouforçar a janela um pouco mais para baixo, mas em vão.

O revisor da carruagem-cama acercara-se dos dois homens. Disse que ocomboio estava prestes a partir; que era melhor Monsieur embarcar. O ho -men zinho tirou o chapéu. Mas que cabeça em forma de ovo ele tinha! Apesardas suas preocupações, Mary Debenham sorriu. Que homenzinho de as pec -to mais ridículo! O género de homenzinho que ninguém levaria a sério.

O tenente Dubosc estava a proferir o seu discurso de despedida. Tinha-opreparado de antemão e guardara-o até ao último minuto. Era um discursoadmirável e cortês.

Para não ficar atrás, M. Poirot respondeu-lhe na mesma moeda.— En voiture, Monsieur — disse o revisor.M. Poirot subiu a bordo do comboio com um ar de infinita relutância.

O re visor subiu atrás dele. Poirot acenou com a mão. O tenente Dubosc

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corres pondeu à saudação. O comboio avançou lentamente com um enormesola vanco.

— Enfin! — murmurou M. Hercule Poirot.— Brrrrr — disse o tenente Dubosc, tomando plena consciência de

como se sentia enregelado…

— Voilà, Monsieur — disse o revisor a Poirot, mostrando-lhe com umgesto dramático a beleza do compartimento e a perfeita arrumação dabagagem. — A pequena maleta de Monsieur, coloquei-a aqui.

A mão estendida era sugestiva. Hercule Poirot depositou-lhe na mãouma nota dobrada.

— Merci, Monsieur. — O revisor mostrou-se activo e eficiente. — Tenhoaqui os bilhetes de Monsieur. Precisava também do seu passaporte, por favor.Monsieur interrompe a sua viagem em Istambul, segundo creio?

M. Poirot assentiu.— Não há muita gente a viajar, imagino? — disse ele.— Não, Monsieur. Tenho apenas mais dois passageiros, ambos ingleses.

Um coronel da Índia e uma jovem senhora inglesa de Bagdade. Monsieurdeseja alguma coisa?

Monsieur pediu uma garrafa de Perrier.Cinco da manhã é uma hora estranha para se embarcar num comboio.

Ainda faltavam duas horas para o dia nascer. Consciente de uma noite maldormida e de uma delicada missão cumprida com êxito, M. Poirot en colheu --se num canto e adormeceu.

Quando acordou já passava das nove e meia e dirigiu-se energicamentepara a carruagem-restaurante à procura de café quente.

Nesse momento só estava lá uma pessoa, obviamente a jovem senhorainglesa que o revisor mencionara. Era alta, esguia e morena — talvez vinte eoito anos. Mostrava uma atitude segura e fria no modo como tomava opequeno-almoço e chamava o empregado para lhe trazer mais café, o querevelava um conhecimento do mundo e de quem estava habituado a viajar.Vestia roupa própria para viajar de um tecido escuro e leve, visivelmente ade -quado à atmosfera aquecida do comboio.

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Sem nada melhor para fazer, M. Hercule Poirot dispôs-se a passar otempo a observá-la sem aparentemente estar a fazê-lo.

Segundo julgava, era o género de jovem que sabia tomar conta de si comperfeito à-vontade para onde quer que fosse. Havia nela elegância e segu ran -ça. Gostou bastante daquela severa regularidade das feições e da deli cadapalidez da pele. Gostou do seu cabelo escuro, brilhante e ondulado, e dosolhos, frios, impessoais e acinzentados. Mas era, concluiu, demasiado altivapara ser aquilo a que chamava uma jolie femme.

Outra pessoa entrou então na carruagem-restaurante. Um homem alto,entre os quarenta e os cinquenta anos, magro, pele morena, cabelo ligeira -mente grisalho nas fontes.

O coronel da Índia, disse Poirot para si próprio.O recém-chegado fez uma ligeira vénia à jovem.— Bom dia, Miss Debenham.— Bom dia, coronel Arbuthnot.O coronel tinha a mão pousada na cadeira em frente à da jovem.— Permite-me? — perguntou.— Certamente. Sente-se.— Bem, como sabe, o pequeno-almoço nem sempre é uma refeição para

conversas.— Espero bem que não. Mas eu não mordo.O coronel sentou-se.— Rapaz! — chamou ele com modos peremptórios.Pediu ovos e café.Pousou os olhos por um momento em Hercule Poirot, mas desviou-os

logo com indiferença. Interpretando correctamente a mentalidade inglesa,Poirot sabia que ele dissera para si mesmo: «O raio de um estrangeiroqualquer».

Fiéis à sua nacionalidade, os dois ingleses não eram muito conversa -dores. Trocaram uns breves comentários e pouco depois a rapariga levantou --se e voltou para o seu compartimento.

Partilharam novamente a mesa ao almoço, e de novo ambos ignorarampor completo o terceiro passageiro. A conversa foi mais animada do que aopequeno-almoço. O coronel Arbuthnot falou do Punjab e ocasionalmentefazia algumas perguntas sobre Bagdade, depreendendo-se que ela tinha

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desempenhado um cargo de preceptora. No decurso da conversa descobri -ram alguns amigos comuns, o que teve o efeito imediato de os tornar maisamigáveis e menos rígidos. Falaram então do velho Tommy Fulano e JerrySicrano. O coronel perguntou-lhe se ia directamente para Inglaterra ou se sedemoraria em Istambul.

— Não, vou directamente.— E não tem pena?— Fiz este percurso há dois anos e passei então três dias em Istambul.— Oh, compreendo. Bem, devo dizer que fico contente por seguir direc -

ta mente, pois o mesmo acontece comigo. Fez uma espécie de pequena vénia desajeitada, corando um pouco.É susceptível o nosso coronel, pensou Hercule Poirot, algo divertido.

Viajar de comboio é tão perigoso como uma viagem por mar.Miss Debenham disse, impassível, que isso seria muito agradável. Mas a

sua atitude era ligeiramente reservada.Poirot reparou que o coronel a acompanhou ao compartimento. Mais

tarde atravessavam o magnífico cenário do Tauro. A rapariga deu subita men -te um suspiro quando estavam no corredor ao lado um do outro a obser va -rem os Portões da Cilícia lá em baixo. Poirot estava perto deles e ouviu-amurmurar:

— É tão bonito! Quem me dera… quem me dera…— Sim?— Quem me dera poder disfrutar disto!Arbuthnot não disse nada. A linha quadrada do maxilar pareceu tornar -

-se um pouco mais austera e severa.— Deus sabe como eu gostaria que estivesse fora de tudo isto — disse

ele.— Cale-se, por favor. Cale-se.— Oh!, não há problema. — Lançou um olhar ligeiramente aborrecido

na direcção de Poirot. E prosseguiu: — Mas não me agrada a ideia de a vercomo preceptora, sempre às ordens de mães tiranas e dos seus fedelhos can -sativos.

Ela riu com uma entoação que sugeria alguma perda de controlo.— Oh!, não deve pensar assim. A preceptora oprimida não passa de um

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mito bastante gasto. Asseguro-o de que os pais é que têm medo de seremmaltratados por mim.

Não disseram mais nada. Arbuthnot sentia-se talvez envergonhado dasua explosão de sentimentos.

Mas que comediazinha mais estranha observo eu daqui, disse Poirotpara si próprio, pensativo.

Iria lembrar-se posteriormente daquele pensamento.Chegaram a Konia nessa noite, cerca das onze e meia. Os dois ingleses

saíram para distender as pernas, caminhando para cá e para lá na plataformacheia de neve.

M. Poirot sentia-se feliz por estar a observar a actividade fervilhante daestação através de uma vidraça fechada. No entanto, cerca de dez minutosdepois, resolveu que uma lufada de ar fresco não seria afinal má ideia. Fezpreparativos cuidadosos, embrulhando-se em vários casacos e abafos e en -fian do as botas impecáveis em galochas. Assim ataviado, desceu caute losa -mente para a plataforma e começou a percorrê-la. Caminhou para lá da lo -comotiva.

Foram as vozes que lhe chamaram a atenção para os dois vultos indistin -tos na sombra de um vagão de mercadorias. Arbuthnot estava a dizer:

— Mary…A rapariga interrompeu-o.— Agora não. Agora não. Quando tudo tiver passado. Quando tivermos

deixado isto para trás… e então…M. Poirot afastou-se discretamente, pensativo.Quase não teria reconhecido a voz fria e segura de Miss Debenham.Curioso, disse para consigo.No dia seguinte interrogou-se se os dois não teriam talvez discutido.

Falavam pouco um com o outro. A rapariga pareceu-lhe ansiosa. Tinhaolheiras.

Eram cerca das duas e meia da tarde quando o comboio se deteve. Ascabeças espreitaram para fora das janelas. Um pequeno grupo de homensamontoava-se junto da linha, a olhar e a apontar para algo debaixo da carrua -gem-restaurante.

Poirot debruçou-se e falou para o revisor que passava todo apressado.

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O homem respondeu e Poirot recuou, e ao voltar-se quase colidiu com MaryDebenham, que estava mesmo atrás dele.

— O que é que aconteceu? — perguntou ela em francês e quase semfôlego. — Por que é que parámos?

— Não é nada, Mademoiselle. Foi algo que se incendiou debaixo dacarruagem-restaurante. Nada de grave. Já apagaram o fogo. Estão agora areparar os estragos. Não há qualquer perigo, asseguro-lhe.

Ela esboçou um pequeno gesto abrupto, como se a ideia de perigo fossealgo completamente sem importância.

— Sim, sim, compreendo. Mas o tempo!— O tempo?— Sim, isto vai atrasar-nos.— É possível… sim — concordou Poirot.— Mas não nos podemos dar ao luxo de atrasos! Está previsto o comboio

chegar às 6.55 e temos de atravessar o Bósforo e apanhar o Expresso doOriente–Simplon na outra margem às nove horas. Se houver uma ou duashoras de atraso, vamos perder a ligação.

— É possível, sim — admitiu ele.Olhou para ela com curiosidade. A mão agarrada à barra da janela não

estava bem firme, e os lábios também lhe tremiam.— Isso tem muita importância para si, Mademoiselle? — perguntou-lhe.— Sim. Sim, tem. Eu… eu tenho de apanhar esse comboio.Afastou-se e avançou pelo corredor para se juntar ao coronel Arbuthnot.Mas aquela ansiedade era porém desnecessária. O comboio retomou a

marcha dez minutos depois. Chegou a Haydapassar apenas com cinco minu -tos de atraso, tinha conseguido recuperar durante a viagem.

O Bósforo estava agitado e M. Poirot não apreciou a travessia. Tinha-seseparado dos companheiros de viagem no barco e não tornou a vê-los.

Ao chegar à ponte de Gálata, dirigiu-se directamente para o Hotel Toka -tlian.

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O HOTEL TOKATLIAN

No Tokatlian, Hercule Poirot pediu um quarto com casa de banho. De -pois dirigiu-se para a portaria e perguntou se havia correspon dência. À suaespera havia três cartas e um telegrama. Ficou surpreendido ao ver o telegra -ma. Não estava à espera.

Abriu-o com os seus modos elegantes e calmos de sempre. As pala vrasimpressas destacavam-se claramente.

«Evolução que previu para Caso Kassner aconteceu inesperadamentepor favor voltar imediatamente».

— Voilà ce qui est embêtant — murmurou Poirot, contrariado. Olhou derelance para o relógio.

— Tenho de partir esta noite — disse ao porteiro. — A que horas parte oOriente–Simplon?

— Às nove horas, Monsieur.— Consegue arranjar-me lugar numa carruagem-cama?— Com certeza, Monsieur. Nesta altura do ano não haverá dificuldade.

Os comboios estão quase vazios. Primeira ou segunda classe?— Primeira.— Très bien, Monsieur. Vai viajar para onde?— Para Londres.— Bien, Monsieur. Vou arranjar-lhe passagem para Londres e reservar -

-lhe um compartimento na carruagem-cama Istambul–Calais.Poirot voltou a dar uma olhadela ao relógio. Eram dez para as oito.— Tenho tempo para jantar?— Mas com certeza, Monsieur.O homenzinho belga acenou com a cabeça. Voltou à recepção para can -

celar a reserva do quarto e atravessou o vestíbulo para o restaurante. Uma mão pousou-lhe no ombro quando fazia o seu pedido ao em pre ga do.

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CAPÍTULO II

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— Ah!, mon vieux, mas que prazer inesperado! — disse uma voz atrás de si.

Era um homem de idade, baixo, robusto, de cabelo cortado en brosse.Sorria com deleite.

Poirot levantou-se de um salto.— M. Bouc!— M. Poirot!M. Bouc era belga, director da Compagnie Internationale des Wagons Lits,

e a sua amizade com a velha celebridade da Força Policial belga datava de hámuitos anos.

— Está longe de casa, mon cher — disse M. Bouc.— Um pequeno compromisso na Síria.— Ah! E quando volta para casa?— Esta noite.— Esplêndido! Eu também. Isto é, vou até Lausana, onde tenho uns

compromissos. Presumo que viajará no Oriente–Simplon?— Sim. Acabei de pedir que me arranjassem uma passagem. Era minha

intenção permanecer aqui por uns dias, mas recebi um telegrama solicitan -do o meu regresso a Inglaterra para um assunto importante.

— Ah! — suspirou M. Bouc. — Les affaires… les affaires! Mas você… vocêagora está bem no topo da carreira, mon vieux!

— Algum pequeno êxito que tive, talvez. — Hercule Poirot tentouparecer modesto mas falhou rotundamente.

M. Bouc riu.— Encontramo-nos mais tarde — disse.Hercule Poirot concentrou-se na operação de manter os bigodes fora da

sopa. Terminada aquela complicada operação, olhou em redor enquanto

aguardava o prato seguinte. Havia apenas cerca de meia dúzia de pessoas norestaurante, e dessa meia dúzia só dois lhe interessavam.

Esses dois estavam sentados a uma mesa não muito distante. O maisnovo era um homem bem-parecido de trinta anos, assumidamente america -no. Não foi ele, no entanto, mas o companheiro que atraiu a atenção do de -tective.

Era um homem entre os sessenta e os setenta anos. Assim àquela

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distância, tinha a aparência gentil de um filantropo. A cabeça ligeiramentecalva, a testa abaulada, a boca sorridente exibia uma série de dentes falsosmuito brancos, tudo parecia revelar uma personalidade benevolente. Apenasos olhos contradiziam esta conjectura. Eram pequenos, encovados e astu -ciosos. Mas não se tratava apenas disso, pois enquanto comentava qualquercoisa com o seu jovem companheiro, o homem relanceou o olhar pela sala efixou-o em Poirot por um momento, e durante aquele segundo houve na que -le olhar uma estranha malevolência, uma tensão pouco natural.

O homem levantou-se então.— Pague a conta, Hector — disse.O tom da voz era ligeiramente rouco. Tinha uma característica algo

bizarra, suave, perigosa.Quando Poirot se reuniu ao amigo no vestíbulo, os outros dois homens

estavam prestes a deixar o hotel. Estavam a trazer-lhes a bagagem para baixo.O mais novo supervisionava aquela tarefa. Pouco depois abriu a portaenvidraçada e disse:

— Já está tudo pronto, Mr. Ratchett.O homem mais velho resmungou em jeito de concordância e desa pa -

receu.— Eh bien — disse Poirot. — O que acha daqueles dois?— São americanos — disse M. Bouc.— Certamente que são americanos. O que eu quis dizer foi o que pensa

deles como pessoas? — O homem mais jovem pareceu-me bastante agradável.— E o outro?— Para lhe ser franco, meu amigo, não quis saber dele. Causou-me uma

impressão desagradável. E você?Hercule Poirot ficou um momento sem responder.— Quando ele passou por mim no restaurante — disse por fim —, tive

uma sensação estranha. Foi como se um animal bravio… um animal sel -vagem, mas bem selvagem!, percebe… tivesse passado por mim.

— E no entanto, todo ele parecia do mais respeitável que há.— Précisément! O corpo… a jaula… é tudo do mais respeitável que há…

mas o animal selvagem espreita através das grades.— Está a ser fantasioso, mon vieux — disse M. Bouc.

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— Talvez esteja. Mas não consegui libertar-me da impressão de que odiabo passou bem perto de mim.

— Aquele respeitável cavalheiro americano? — Aquele respeitável cavalheiro americano.— Bem — disse M. Bouc, animadamente. — Pode ser que sim. Há muita

maldade no mundo.A porta abriu-se naquele momento e o porteiro encaminhou-se para

eles. Tinha um ar preocupado e ansioso.— Que coisa extraordinária, Monsieur — disse ele a Poirot. — Não há no

comboio nenhum compartimento de primeira classe livre.— Comment? — exclamou M. Bouc. — Nesta altura do ano? Sem dúvida

há algum grupo de jornalistas… de políticos…? — Não sei, sir — disse o porteiro, dirigindo-se-lhe respeitosamente. —

Mas o facto é que é esta a situação.— Bem, bem — M. Bouc voltou-se para Poirot. — Não se preocupe, meu

amigo. Havemos de arranjar alguma coisa. Há sempre um compartimentolivre, o número 16. O revisor trata disso tudo! — Sorriu e depois olhou para orelógio. — Venha. Está na hora de tratarmos disso.

M. Bouc foi cumprimentado na estação com respeitosa efusividade pelorevisor da carruagem-cama de farda acastanhada.

— Boa noite, Monsieur. O seu compartimento é o número 1.Chamou os carregadores que levaram aquela carga até a meio da car rua -

gem, onde as placas de metal proclamavam o destino:

ISTAMBUL TRIESTE CALAIS

— Ouvi dizer que o comboio está cheio. — É incrível, Monsieur. Parece que toda a gente decidiu viajar esta noite!— Mesmo assim, tem de arranjar lugar para este cavalheiro. É um amigo

meu. Pode ficar no número 16.— Já está ocupado, Monsieur.— O quê? O número 16?Ambos trocaram um olhar de entendimento e o revisor sorriu. Era um

homem alto e macilento, de meia-idade.

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— Sim, Monsieur. Mas como lhe disse, não há lugares… não há lugaresem nenhum lado

— Mas que se passa afinal? — exigiu M. Bouc irritado. — Há algumaconferência em algum lugar? Alguma reunião?

— Não, Monsieur. Foi puro acaso. Acontece que muita gente decidiuviajar esta noite.

M. Bouc deu um pequeno estalido de enfado.— Em Belgrado — disse — chega a carruagem-cama que vem de

Atenas. E chega também a de Bucareste–Paris… mas só vamos chegar aBelgrado amanhã à noite. O problema é para hoje à noite. Não há nenhumcompartimento de segunda classe livre?

— Há um compartimento de segunda classe, Monsieur…— Bem, nesse caso…— Mas é um compartimento para senhoras. E já está ocupado por uma

alemã… a dama de companhia de uma senhora.— Là, là, mas que situação! — disse M. Bouc.— Não se preocupe, meu amigo — disse Poirot. — Vou ter de viajar

numa carruagem comum.— Nem pense nisso! Nem pense nisso! — Voltou-se novamente para o

revisor. — Já chegaram todos?— Bem, a verdade — disse o homem — é que um dos passageiros ainda

não chegou.Falava devagar, com hesitação.— Mas diga lá então!— Compartimento número 7… segunda classe. O cavalheiro ainda não

che gou, e faltam quatro minutos para as nove.— Quem é ele?— Um inglês. — O revisor consultou a lista. — Um tal M. Harris. — Um nome de bom agoiro — disse Poirot. — Conheço bem o meu

Dickens. Esse M. Harris não virá.— Coloque as bagagens de Monsieur no número 7 — disse M. Bouc. —

Se este M. Harris vier, dir-lhe-emos que chegou demasiado tarde… que oscom partimentos não podem ficar retidos por tanto tempo… De umamaneira ou de outra arranjaremos as coisas. Que me importa a mim um talM. Harris?

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— Como Monsieur desejar — disse o revisor.Falou com o carregador de Poirot, indicando-lhe para onde devia ir.Depois afastou-se dos degraus para deixar Poirot embarcar. — Tout à fait

au bout, Monsieur — disse. — O penúltimo compartimento.Poirot percorreu o corredor num movimento lento, já que a maior parte

dos passageiros estavam no exterior dos seus compartimentos.Os seus corteses «Pardons» eram proferidos com uma regularidade de

relógio. Alcançou por fim o compartimento indicado. Lá dentro estava ojovem americano do Tokatlian a arrumar uma mala.

Franziu o sobrolho quando Poirot entrou.— Desculpe — disse ele. — Creio que se enganou. — E depois, labo rio -

sa mente em francês: — Je crois que vous avez un erreur.Poirot replicou em inglês.— É Mr. Harris?— Não, chamo-me MacQueen. Eu…Mas nesse momento ouviu-se a voz do revisor que falava por detrás de

Poirot. Uma voz num tom de desculpa e quase sem fôlego.— Não há mais nenhum compartimento no comboio, Monsieur. Este

cavalheiro terá de ficar aqui.Estava a subir a janela do corredor enquanto falava e começou a içar para

dentro as bagagens de Poirot. Poirot reparou no seu tom de voz com algum divertimento. Certa mente

que lhe tinham prometido uma boa gorjeta se conseguisse conservar ocompartimento só para o uso do outro passageiro. Contudo, até a gorjetamais generosa perde o seu efeito quando um director da companhia estápresente a bordo dando ordens.

O revisor saiu do compartimento após ter colocado as malas nas prate -leiras de cima.

— Voilà, Monsieur — disse. — Está tudo em ordem. O seu beliche é o decima, o número 7. Partimos dentro de um minuto.

Apressou-se pelo corredor fora. Poirot voltou a entrar no comparti men -to.

— Um fenómeno a que raramente assisti — disse ele, de bom humor. —O próprio revisor a arrumar ele mesmo as bagagens! Nunca se viu!

O seu companheiro de viagem sorriu. Já tinha evidentemente recupe ra do

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daquele aborrecimento — provavelmente decidira que não valia a pena en -carar aquele assunto a não ser de um modo filosófico.

— O comboio está extraordinariamente cheio — disse ele.Soou um apito e a locomotiva deu um longo e melancólico silvo. Ambos

saíram para o corredor. Lá fora uma voz gritou.— En voiture. — Vamos partir — disse MacQueen.Mas não partiram de imediato. O apito voltou a soar.— Sir — disse o jovem, de repente —, se preferir o beliche de baixo…

mais cómodo e tudo isso… bem, por mim não há problema.MacQueen era evidentemente um rapaz muito amável.— Não, não — protestou Poirot. — Não quero privá-lo…— Não há problema…— É demasiado gentil…Protestos corteses de ambas as partes.— É só por uma noite — explicou Poirot. — Em Belgrado…— Oh, compreendo. Vai sair em Belgrado…— Não exactamente. Sabe…Um súbito solavanco. Ambos foram à janela e olharam para a longa

plataforma iluminada que deslizava lentamente. O Expresso do Oriente iniciava a sua viagem de três dias através da

Europa.

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POIROT RECUSA UM CASO

M. Hercule Poirot estava um pouco atrasado quando entrou na carrua -gem-restaurante no dia seguinte. Tinha-se levantado cedo, tomara o peque -no-almoço quase sozinho e passara a manhã a rever os apontamentos sobreo caso que requeria a sua presença em Londres. Quase não se cruzara com oseu companheiro de viagem.

M. Bouc, que já estava sentado, acenou chamando o ami go para o lugarlivre em frente de si. Poirot sentou-se e deu por si na posição privilegiada deestar na mesa servida em primeiro lugar e com a melhor comida, que eratambém inusitadamente boa.

Foi só quando estavam a comer um delicado queijo cremoso que M.Bouc permitiu que a sua atenção se encaminhasse para outros assuntos quenão a alimentação. Estava naquela fase da refeição em que uma pessoa setorna filosófica.

— Ah! — suspirou ele. — Tivesse eu o talento de um Balzac! Como eudescreveria esta cena!

Agitou a mão.— Sim, é uma ideia — disse Poirot.— Ah, concorda? Acho que ainda ninguém o fez. E no entanto… presta -

-se ao romance, meu amigo. À nossa volta há gente de todas as classes, detodas as nacionalidades, de todas as idades. Estas pessoas que são estranhosuns para os outros, vêem-se assim reunidos durante três dias. Comem edormem sob o mesmo tecto, não podem fugir uns dos outros. E ao fim dostrês dias partem, seguem os seus caminhos, e talvez nunca mais voltem aencontrar-se.

— E contudo — disse Poirot —, suponha que um acidente…— Ah não, meu amigo…— Segundo o seu ponto de vista, seria lamentável, concordo. Mas, mes mo

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CAPÍTULO III

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assim, suponhamos isso por um instante. Então, todos os que estão aqui tal -vez ficassem unidos… pela morte.

— Mais vinho! — disse M. Bouc, enchendo o copo apressadamente. —Que mórbido, mon cher. Deve ser da digestão.

— É verdade — concordou Poirot — que a comida na Síria não era talvezmuito apropriada para o meu estômago.

Bebericou o vinho. Depois recostou-se e correu o olhar pensativo pelacarruagem-restaurante. Estavam ali treze pessoas sentadas, de todas asclasses e nacionalidades, como M. Bouc dissera. Começou a observá-las.

A mesa em frente estava ocupada por três homens. Eram, supôs, via jan -tes solitários, classificados e colocados ali pelo discernimento infalível dosempregados da carruagem. Um italiano enorme e moreno palitava os dentescom entusiasmo. Em frente dele, um inglês magro e elegante exibia o rostodesaprovador do criado bem treinado. Ao lado do inglês estava um enormeamericano com um fato berrante — provavelmente um caixeiro-viajante.

— Há que pensar em grande — dizia ele numa voz alta e nasalada.O italiano tirou o palito da boca e pôs-se a gesticular espontaneamente

com ele. — Certo — disse. — É o qu’eu digo sempre.O inglês olhou pela janela e tossiu.Poirot afastou o olhar.Sentada muito direita a uma pequena mesa estava uma das velhotas

mais feias que alguma vez vira. Mas era uma fealdade com distinção —fascinava mais do que repelia. Estava sentada muito direita. Tinha à volta dopescoço um colar de grandes pérolas que, por mais improvável queparecesse, eram verdadeiras. As mãos estavam cobertas de anéis. O casaco dezibelina estava pousado sobre os ombros. Um diminuto e caro chapéu pretocontrastava horrivelmente com o seu rosto amarelado de sapo.

Estava agora a falar com o criado num tom claro e cortês mascompletamente autocrático.

— Tenha a amabilidade de colocar no meu compartimento uma garrafade água mineral e um grande copo de sumo de laranja. Trate de providenciarpara que esta noite me seja servido ao jantar frango sem qualquer molho… etambém um pouco de peixe cozido.

O criado respondeu respeitosamente que assim faria.

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Ela fez um pequeno aceno com a cabeça e levantou-se. O seu olharcruzou-se com o de Poirot e desviou-se com aquele desprendimento dearistocrata indiferente.

— É a Princesa Dragomiroff — disse M. Bouc, em voz baixa. — É russa.O marido converteu tudo em dinheiro antes da revolução e investiu-o noestrangeiro. Ela é extraordinariamente rica… Uma cosmopolita.

Poirot acenou a cabeça, anuindo. Já ouvira falar da princesa Drago miroff.— É uma personalidade — disse M. Bouc. — Feia como o pecado, mas

imponente. Não concorda?Poirot concordava.Mary Debenham estava sentada a uma das mesas grandes com duas

senhoras. Uma delas era uma senhora alta de meia-idade com uma blusaaxa drezada e saia de tweed. O cabelo de um tom amarelo pálido estava pen -teado desajeitamente num grande carrapito, usava óculos e tinha um rostocomprido, meigo e afável como o de uma ovelha. Estava a ouvir a out ra se -nhora, uma robusta idosa de rosto agradável que falava com uma voz lenta,clara e monótona que não dava mostras de parar nem para retomar o fôlego.

— …E a minha filha disse então: «Ora essa» disse ela, «não se pode apli -car os métodos americanos a este país. Aqui o povo é indolente por nature -za» disse ela. «Não têm pressa para nada». Mas mesmo assim ficaria sur -preen dida por saber o que o nosso colégio tem feito lá. Têm um excelentecorpo docente. Acho que a educação é tudo. Temos de aplicar os nossosideais ocidentais e ensinar o Oriente a reconhecê-los. A minha filha diz…

O comboio mergulhou num túnel. A voz calma e monótona foi abafada.Na pequena mesa ao lado estava o coronel Arbuthnot — sozinho. Tinha

o olhar fixo na nuca de Mary Debenham. Não estavam juntos. No entanto,facilmente o poderiam ter feito. Porquê?

Talvez Mary Debenham tivesse desaprovado a ideia, pensou Poirot. Umapreceptora aprende a ser cuidadosa. As aparências são importantes. Umarapariga com um modo de vida como o seu tinha de ser discreta.

Poirot desviou o olhar para o lado oposto da carruagem. Mesmo ao fun -do, sentada de costas para a parede, uma mulher de meia-idade vestida depreto e com um rosto largo e inexpressivo. Alemã ou escandinava, pensou.Provavel mente uma dama de companhia alemã.

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Depois dela estava um casal debruçado sobre a mesa, a falar animada -mente. O homem vestia roupa inglesa de tweed — mas não era inglês. Apesarde Poirot lhe ver apenas a nuca, a forma da nuca e os ombros traíam-no. Umhomem enorme, bem constituído. Virou subitamente a cabeça e Poirot viu --lhe o perfil. Um homem muito bem-parecido, nos seus trintas e com umgrande bigode aloirado.

A mulher diante dele era ainda jovem — aparentava vinte anos. Um saia --casaco justo preto, blusa de cetim branco, um elegante chapeuzinho pretonaquele extravagante ângulo ditado pela moda. Tinha um bonito rosto deestrangeira, pele de um branco pálido, grandes olhos acastanhados e cabelonegro-azeviche. Fumava um cigarro numa boquilha comprida. As mãos bemcuidadas exibiam unhas de um vermelho carregado. Usava uma enormeesmeralda encastoada em platina. Havia uma certa coqueteria na voz e noolhar.

— Elle est jolie… et chic — murmurou Poirot. — Marido e mulher… hã?M. Bouc anuiu.— Da embaixada húngara, creio — disse ele. — Um casal bem-parecido.Restavam apenas mais dois comensais: MacQueen, o companheiro de

viagem de Poirot, e o seu patrão, Mr. Ratchett, que estava sentado de frentepara Poirot; este estudou-lhe pela segunda vez aquele rosto nada amigável,reparando na falsa bondade da expressão e nos pequenos olhos cruéis.

M. Bouc viu certamente uma mudança na expressão do amigo.— É para o seu animal selvagem que está a olhar? — perguntou.Poirot anuiu.M. Bouc levantou-se quando trouxeram o café ao amigo. Tinha

começado antes de Poirot e já havia terminado há algum tempo.— Vou voltar para o meu compartimento — disse. — Apareça mais tar -

de para conversar comigo.— Com todo o prazer.Poirot sorveu o café e pediu um licor. O criado ia de mesa em mesa com

a caixinha de dinheiro para receber o pagamento das contas. A voz dasenhora americana idosa soou penetrante e lamurienta.

— A minha filha disse: «Leve uma caderneta de bilhetes para as refeiçõese não terá problemas, nenhum problema». Céus, não é bem assim. Parece queeles ficam com uma gorjeta de dez por cento, e ainda por cima há a garrafa

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de água mineral, e que água mais esquisita. Não tinham Evian nem Vichy, oque me parece esquisito.

— É que… eles têm… como dizer… de servir a água de cá — explicou asenhora com rosto de ovelha.

— Pois a mim parece-me esquisito. — Olhou com desagrado para omon tinho de trocos sobre a mesa. — Vejam só todas estas coisas esquisitasque ele me deu. Dinares ou como lhes chamam. Parece-me é um monte delixo. A mi nha filha disse…

Mary Debenham afastou a cadeira e despediu-se das duas senhoras comuma ligeira vénia. O coronel Arbuthnot levantou-se e seguiu-a. A senhoraamericana recolheu aquele dinheiro desprezado e saiu também, logo seguidapela senhora parecida com uma ovelha. Os húngaros já se tinham retirado. Acarruagem-restaurante estava agora vazia, apenas se encontrando Poirot,Ratchett e MacQueen.

Ratchett disse qualquer coisa ao companheiro e este levantou-se e saiu.Ele próprio se levantou depois; mas em vez de seguir MacQueen, deixou-seafundar inesperadamente no lugar em frente de Poirot.

— Tem a bondade de me dar lume, por favor? — disse. A voz era macia,levemente anasalada. — Chamo-me Ratchett.

Poirot fez um pequeno aceno com a cabeça. Enfiou a mão no bolso eretirou uma caixa de fósforos que passou ao outro; este pegou neles mas nãoacendeu nenhum.

— Creio — prosseguiu ele — que tenho o prazer de falar com M. HerculePoirot. Não é assim?

Poirot acenou novamente com a cabeça— Informaram-no correctamente, Monsieur.O detective estava ciente daqueles estranhos olhos astutos que o me -

diam antes de o outro voltar a falar.— No meu país — disse ele —, vamos directamente ao assunto. Mr.

Poirot, gostava que se encarregasse de um trabalho para mim.— A minha clientèle, Monsieur, é actualmente muito reduzida. Encar re -

go-me de poucos casos.— Ora, é natural, compreendo perfeitamente. Mas este, Mr. Poirot, sig -

nifi ca muito dinheiro. — E repetiu com aquela voz macia e persuasiva: — Muito dinheiro.

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Hercule Poirot ficou calado por um momento, e depois disse:— O que é que deseja que eu faça, Monsieur… hã… Ratchett?— Mr. Poirot, sou bastante rico, bastante rico. E homens nesta posição

têm inimigos. Eu tenho um inimigo.— Só um inimigo?— E o que pretende dizer com isso? — perguntou Ratchett, de modo

acutilante.— Monsieur, pela minha experiência, quando um homem está numa

posição que, como diz, lhe traz inimigos, então a coisa não se resume geral -mente apenas a um único inimigo.

Ratchett pareceu ficar aliviado com esta resposta. Disse, com rapidez:— Pois, claro, compreendo esse ponto de vista. Inimigo ou inimigos, não

importa. O que importa é a minha segurança.— Segurança?— A minha vida corre perigo, Mr. Poirot. Mas hoje sou um homem que

sabe tomar bem conta de si próprio. — A mão que enfiou no bolso do casacoexibiu por um momento um pequeno revólver automático. E continuoudeterminado — Não me tenho na conta de homem que se deixe apanhar adormir. Mas, da forma como vejo as coisas, um homem prevenido vale pordois. Na minha opinião, o senhor é o homem de que preciso, Mr. Poirot. Elem bre-se: muito dinheiro.

Poirot encarou-o pensativamente por uns instantes. O seu rosto mos tra -va-se completamente inexpressivo. O outro dificilmente saberia que pensa -mentos lhe passavam pela cabeça.

— Lamento, Monsieur — disse por fim. — Não lhe posso ser útil.O outro fitou-o com astúcia. — Diga lá o seu preço então — disse-lhe.Poirot abanou a cabeça.— Não está a compreeender, Monsieur. Tenho sido muito afortunado na

minha profissão. Ganhei o suficiente para satisfazer as minhas necessidadese caprichos. Agora só me ocupo dos casos… que me interessam.

— Você tem cá um descaramento — disse Ratchett. — Não o tentamvinte mil dólares?

— Não.— Se está à espera de mais, engana-se. Sei quanto é que uma coisa vale.

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— Eu também… M. Ratchett.— O que é que a minha proposta tem de errado?Poirot levantou-se.— Vai-me desculpar a franqueza… mas o seu rosto não me agrada, M.

Ratchett — disse.E abandonou então a carruagem-restaurante.

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UM GRITO NA NOITE

O Expresso Oriente–Simplon chegou a Belgrado nessa noite, às 08.45. Sóvoltaria a partir às 9.15, e portanto Poirot desceu para a pla taforma. Mas nãopermaneceu aí por muito tempo. Estava um frio cortante e caía uma nevepesada lá fora apesar de a plataforma estar resguar dada. Regressou ao seucompartimento. O revisor que estava na plataforma a ba ter com os pés e aabanar os braços para se manter quente falou com Poirot.

— As suas malas, Monsieur, foram transferidas para o compartimentonúmero 1, o compartimento de M. Bouc.

— E onde é que M. Bouc fica então?— Passou para a carruagem de Atenas que acaba de chegar.Poirot foi à procura do amigo. M. Bouc rejeitou aqueles protestos com

um gesto da mão.— Não incomoda nada. Não incomoda nada. É mais conveniente assim.

Você vai directamente para Inglaterra e portanto é preferível que viaje nacarruagem que vai até Calais. Quanto a mim, fico muito bem aqui. É maissossegado. Esta carruagem vai vazia, exceptuando eu e um médico gregobaixinho. Ah, meu amigo, que noite! Dizem que não nevava assim há anos.Esperemos que isso não nos atrase. Isto não me agrada lá muito, garanto-lhe.

O comboio saiu pontualmente da estação às 9.15 e pouco depois Poirotlevantou-se, deu as boas-noites ao amigo e percorreu o corredor regressandoà sua carruagem, que ficava a seguir à carruagem-res tau rante.

Neste segundo dia da viagem as barreiras estavam a ser quebradas. Ocoronel Arbuthnot estava à porta do seu compartimento a falar comMacQueen.

MacQueen interrompeu o que estava a dizer ao avistar Poirot. Pareceuficar muito surpreendido.

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CAPÍTULO IV

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— Ora esta! — exclamou ele. — Pensei que nos tivesse deixado. Dis seque ia sair em Belgrado!

— Entendeu-me mal — disse Poirot, a sorrir. — Recordo-me de que ocomboio acabava de sair de Istambul precisamente quando falávamos disso.

— Mas, as suas bagagens… desapareceram.— Foram levadas para outro compartimento, é tudo.— Oh, estou a ver.Retomou a conversa com Arbuthnot e Poirot atravessou o corredor.Duas portas antes do seu compartimento, deparou com a senhora ame -

ri cana idosa, Mrs. Hubbard, a falar com a senhora parecida com uma ovelha,que era sueca. Mrs. Hubbard pressionava a outra para que levasse uma re -vista.

— Não, tem de a levar, minha querida — disse. — Tenho muitas maiscoisas para ler. Céus, o frio é mesmo assustador, não acha? — Acenou amiga -velmente com a cabeça na direcção de Poirot.

— É muita amabilidade da sua parte — disse a senhora sueca. — É com todo o prazer. Espero que durma bem e que de manhã já esteja

melhor da dor cabeça.— É do frio. Vou preparar uma chávena de chá.— Tem aspirinas? Tem a certeza, mesmo? Eu tenho muitas. Bem, boa

noite, minha querida.Voltou-se para Poirot com intenções de entabular conversa mal a outra

se foi embora.— Pobre senhora, é sueca. Tanto quanto apurei, é uma espécie de mis sio -

nária… que dá aulas. Boa pessoa, mas pouco fala de inglês. Mostrou-se muitointeressada pelo que lhe contei da minha filha.

Por esta altura já Poirot sabia tudo a respeito da filha de Mrs. Hubbard.Aliás, sabiam todos aqueles que iam no comboio e entendiam inglês! Comoela e o marido pertenciam ao corpo docente de um grande colégioamericano em Esmirna, e que esta era a primeira viagem de Mrs. Hubbard aoOriente, e o que ela achava dos turcos e dos seus modos desleixados e dacondição das estradas.

A porta ao lado abriu-se e saiu o criado magro e pálido. Poirot conseguiuter um vislumbre de Mr. Ratchett sentado na cama. Este viu Poirot e o seurosto alterou-se, ensombrando-se de cólera. Depois fecharam a porta.

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Mrs. Hubbard arrastou Poirot um pouco para o lado.— Sabe, tenho um medo de morte daquele homem. Oh, não do criado…

do outro… do amo. Amo, sim, é isso mesmo! Há algo de errado nesse homem.A minha filha sempre disse que eu tenho uma grande intuição: «Quando amamã tem um palpite, acerta sempre em cheio», é o que a minha filha diz. Eeu tenho um palpite sobre esse homem. Está mesmo ao meu lado e isso nãome agrada. Ontem à noite usei de toda a minha força contra a porta decomunicação. Julguei ouvi-lo a testar o puxador. Sabe, não me admirarianada se esse homem viesse a revelar-se um assassino… um desses assaltantesde comboios de que às vezes as notícias falam. Suponho que estou a serdisparatada, mas é assim. Tenho um medo terrível do homem! A minha filhadisse que eu ia ter uma viagem agradável, mas já não me sinto muito felizcom a ideia. Pode parecer uma loucura, mas sinto que pode aconteceralguma coisa. Qualquer coisa mesmo. E nem sequer imagino como é queaquele simpático jovem suporta ser secretário dele.

Arbuthnot e MacQueen vinham pelo corredor e aproximavam-se deles.— Venha à minha carruagem — dizia MacQueen. — Ainda não foi

preparada para a noite. Quero que me explique bem essa sua política naÍndia sobre…

Passaram e percorreram o corredor em direcção à carruagem deMacQueen.

Mrs. Hubbard deu as boas-noites a Poirot.— Acho que vou já para a cama ler — disse ela. — Boa noite.— Boa noite, Madame.Poirot encaminhou-se para o seu próprio compartimento, a seguir ao de

Ratchett. Despiu-se e enfiou-se na cama, leu durante cerca de meia hora eapagou a luz.

Acordou algumas horas depois, com um sobressalto. Sabia o que é que otinha despertado — um gemido alto, quase um grito, algures mesmo ali.Nesse mesmo instante soou o agudo tinido de uma campainha.

Sentou-se e acendeu a luz. Reparou que o comboio parara — provavel -mente numa estação.

Aquele grito assustara-o. Lembrou-se de que era Ratchett que ocupava ocompartimento ao lado. Levantou-se e abriu a porta exactamente nomomento em que o revisor se apressava pelo corredor fora e batia à porta de

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Ratchett. Manteve uma pequena frincha da porta aberta e ficou a observar.O revisor bateu uma segunda vez. Soou uma campainha e uma luz acendeu --se sobre uma outra porta mais afastada. O revisor olhou sobre o ombro.

Simultaneamente, uma voz gritou de dentro do compartimento do lado:— Ce n’est rien. Je me suis trompé.— Bien, Monsieur. — O revisor apressou-se novamente, indo bater à por -

ta onde a luz tinha acendido.Poirot voltou para a cama, aliviado, e apagou a luz. Olhou para o relógio.

Faltavam exactamente vinte e três minutos para a uma.

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O CRIME

Custou-lhe tornar a adormecer. Antes do mais, sentia a falta do mo vi -mento do comboio. Se estavam numa estação, esta estava curio sa mente si -len ciosa. Em contrapartida, no comboio os ruídos pareciam inusitadamentealtos. Conseguia ouvir Ratchett a mexer-se no compartimento ao lado — umclique quando ele baixava o lavatório, o som da torneira a correr, um ruído deágua a cair, e depois outro clique quando o lavatório foi fechado. Soarampassos no corredor, os passos arrastados de alguém de chinelos.

Hercule Poirot mantinha-se acordado a olhar para o tecto. Por que razãoa estação lá fora estava tão silenciosa? Sentia a garganta seca. Esquecera-sede pedir a habitual garrafa de água mineral. Olhou novamente para o relógio.Apenas uma e um quarto. Chamaria o revisor para lhe pedir água mineral. Odedo dirigiu-se para a campainha, mas deteve-se pois ouvira um tinidonaquele silêncio. O homem não poderia atender todas as chamadas logo deimediato.

Trrim… trrim… trrim…A campainha continuava a retinir. Onde estaria o homem? Quem o

chamava já estava a ficar impaciente.Trrim…Quem quer que fosse, mantinha o dedo firmemente no botão.O homem apareceu então subitamente apressado, com passadas que

ecoavam no corredor. Bateu numa porta não muito afastada da de Poirot. E então ouviram-se vozes — a do revisor, deferente e submissa, e a de

uma mulher, insistente e loquaz.Mrs. Hubbard.Poirot sorriu para si próprio.A altercação — se era mesmo uma altercação — durou algum tempo,

numa proporção em que noventa por cento se devia a Mrs. Hubbard, contra

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CAPÍTULO V

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dez por cento da parte do revisor. Finalmente, a questão pareceu chegar a umconsenso. Poirot ouviu distintamente:

Bonne nuit, Madame, e uma porta a fechar-se.Premiu então a sua campainha. O revisor surgiu prontamente. Parecia agitado e preocupado.— De l’éau minerale, s’il vous plaît.— Bien, Monsieur. — Talvez tenha sido uma pequena centelha no olhar

de Poirot que o levou a desabafar.— La dame americaine…— Sim?O homem limpou a testa.— Imagine o tempo que ela me fez perder! Ela insiste, mas é que insiste

mesmo, que está um homem no seu compartimento. Imagine só, Monsieur!Num espaço deste tamanho. — E mostrou com a mão o espaço em redor. —Onde é que o homem poderia esconder-se? Discuto com ela. Faço-lhe verque é impossível. Ela insiste. Que tinha acordado e que havia um homem ali.E como é que ele, perguntei-lhe eu, conseguiu sair e deixar a porta trancadaatrás de si? Mas ela não quer ouvir a voz da razão. Como se não houvesse jáaborrecimentos que chegassem! A neve…

— Neve?— Mas sim, Monsieur. Monsieur não notou? O comboio parou. Apa nhá -

mos uma tempestade de neve. Só Deus sabe quanto tempo vamos ficar aqui.Lembro-me de uma vez ter ficado sete dias bloqueado pela neve.

— Onde estamos?— Entre Vincovci e Brod.— Là là — disse Poirot irritado.O homem retirou-se e voltou com a água.— Bon soir, Monsieur.Poirot bebeu um copo de água e dispôs-se a dormir.Estava quase a adormecer quando algo o despertou novamente. Desta

vez era como se alguma coisa pesada tivesse caído com um som abafadocontra a porta.

Levantou-se de um salto, abriu-a e olhou para fora. Nada. Mas à suadireita, algures mais ao fundo do corredor, uma mulher envolta num quimo -no escarlate recuou ao dar pela presença dele. O revisor estava sentado no

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seu lugar diminuto na outra extremidade, a dar entrada de números emgrandes folhas de papel. Estava tudo envolto numa calma de morte.

Decididamente, sofro dos nervos, disse Poirot, enfiando-se de novo nacama. Desta vez dormiu até de manhã.

Quando acordou, o comboio ainda estava parado. Levantou a cortina eolhou lá para fora. Pesadas camadas de neve cercavam o comboio.

Olhou para o relógio e viu que passava das nove horas.Às dez menos um quarto, todo aprumado, e elegante como sempre, diri -

giu-se para a carruagem-restaurante, onde decorria um coro de lamen tações.Tinham desaparecido já quaisquer barreiras que pudessem ter existido

en tre os passageiros. Estavam todos unidos por aquela desgraça comum. Aslamúrias de Mrs. Hubbard eram as que se faziam ouvir mais alto.

— A minha filha disse que seria a melhor das viagens no mundo. Quebastava sentar-me no comboio e chegava a Parrus. E agora podemos ficaraqui dias e dias — lamentava-se ela. — E o meu barco parte depois de ama -nhã. Como é que o vou apanhar agora? Céus, se nem sequer posso mandarum telegrama para me cancelaram a viagem! Estou tão aborrecida que nemconsigo falar disto!

O italiano disse que ele próprio tinha negócios urgentes em Milão. Oamericano alto disse que aquilo era «realmente uma pena, minha senhora», eex pres sou com modos apaziguadores a esperança de que o comboio pudesserecuperar o tempo perdido.

— A minha irmã… os filhos esperam-me — disse a senhora sueca, ecomeçou a chorar. — E eu sem poder avisá-los. Que hão-de pensar? Vãodizer que me aconteceu alguma desgraça.

— Quanto tempo iremos ficar aqui? — perguntou Mary Debenham. —Será que alguém sabe?

A sua voz soava impaciente, mas Poirot notou que já não havia sinaisdaquela ansiedade quase febril que manifestara ao embarcar no ExpressoTauro.

Mrs. Hubbard recomeçou:— Ninguém sabe nada neste comboio. E ninguém tenta fazer nada. Não

passam de um monte de inúteis estrangeiros! Céus!, se isto fosse lá no nossopaís, pelo menos alguém tentava fazer alguma coisa.

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Arbuthnot voltou-se para Poirot e falou-lhe num cuidadoso francêsinglesado.

— Vous êtes un directeur de la ligne, jo crois, Monsieur. Vous pouvez nousdire…

Poirot sorriu e corrigiu-o.— Não, não — disse ele, em inglês. — Não sou eu. Confundiu-me com o

meu amigo, M. Bouc.— Oh! Desculpe.— Não tem importância. É muito natural. Estou presentemente no

compartimento que ele ocupava antes.M. Bouc não estava ali na carruagem-restaurante. Poirot olhou em redor

para verificar quem mais estava ausente.Faltava a Princesa Dragomiroff e o casal húngaro. E também Ratchett, o

seu criado, e a dama de companhia da senhora alemã.A senhora sueca enxugou os olhos.— Que estupidez a minha — disse ela. — Para aqui a chorar como um

bebé. Que tudo corra pelo melhor, aconteça o que acontecer.No entanto, este espírito cristão estava bem longe de ser partilhado pelos

outros.— Que diabo de situação — disse MacQueen impacientemente. — Po -

de mos ficar aqui dias.— Que país é este afinal? — perguntou Mrs. Hubbard, de lágrimas nos

olhos.Quando lhe disseram que era a Jugoslávia, replicou:— Oh, uma dessas zonas dos Balcãs! Já era de esperar, não?— É a única pessoa que vejo resignada, Mademoiselle — disse Poirot a

Mary Debenham.— Que se há-de fazer? — É uma filósofa, Mademoiselle.— Isso implica uma atitude de desprendimento. Acho que a minha

atitude é mais egoísta. Aprendi a proteger-me das emoções inúteis.Nem sequer estava a olhar para ele. Tinha o olhar fixo para além dele, na

direcção da janela, onde a neve jazia em pesadas camadas. — Tem uma personalidade forte, Mademoiselle — disse Poirot amável -

mente. — Creio que é a mais forte de todos nós.

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— Oh, não. Não, certamente que não. Conheço alguém muito mais fortedo que eu.

— E essa pessoa é…?Ela pareceu de súbito voltar à realidade, dando-se então conta de que

estava a falar com um estranho, um estrangeiro, com quem apenas trocarameia dúzia de frases até àquela manhã.

Deu uma risada cortês mas distante.— Bem… aquela senhora idosa, por exemplo. Provavelmente já reparou

nela. Uma senhora muito feia, mas fascinante. Basta-lhe levantar o dedo epedir o que quer que seja com uma voz educada… que põe logo toda a genteno comboio a mexer-se.

— Acontece o mesmo com o meu amigo, M. Bouc — disse Poirot. —Mas isso é porque é um dos directores da companhia, e não porque tenhauma personalidade que se impõe.

Mary Debenham sorriu.A manhã foi decorrendo. Muitos dos passageiros permaneceram na

carruagem-restaurante, entre eles Poirot. Sentiam que o tem po passaria me -lhor estando juntos. Ouviu um pouco mais sobre a filha de Mrs. Hubbard esobre os hábitos em vida do falecido Mr. Hubbard: desde que se levantava dacama e começava o pequeno-almoço com cereais, até ir descansar à noite,com as meias que a própria Mrs. Hubbard costumava tricotar-lhe.

Enquanto escutava um confuso relato dos propósitos missonários dasenhora sueca, um dos revisores entrou na carruagem e aproximou-se dePoirot.

— Pardon, Monsieur.— Sim?— Cumprimentos de M. Bouc, que lhe agradecia a bondade de ir ter com

ele dentro de minutos.Poirot levantou-se, pediu licença à senhora sueca e seguiu o homem para

fora da carruagem.Não era o revisor da sua própria carruagem, mas um homem gordo e

aloirado.Seguiu-o pelo corredor da sua própria carruagem e depois através do

corredor da seguinte. O homem bateu a uma porta e afastou-se para deixarPoirot entrar.

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Não era o compartimento de M. Bouc. Era um da segunda classe — pro -va velmente escolhido por ser ligeiramente maior. Dava mesmo a impressãode estar apinhado.

O próprio M. Bouc estava sentado num pequeno assento no canto opos -to à entrada. Em frente, no canto junto à janela, um homenzinho morenoolhava para a neve lá fora. Um homem alto de farda azul (o chef de train) esta -va ali de pé, quase impedindo que Poirot avançasse mais, e ainda o revisor dasua própria carruagem-cama.

— Ah, meu caro amigo! — exclamou M. Bouc. — Entre. Precisamos desi.

O homenzinho encostado à janela afastou-se para o lado; Poirot es pre -meu-se para passar por entre os outros dois e sentou-se em frente do amigo.

A expressão no rosto de M. Bouc deu-lhe, como teria dito, matéria paralhe pôr o cérebro a fervilhar. Era bem claro que acontecera alguma coisa forado comum.

— Que sucedeu? — perguntou.— Bem pode perguntar! Primeiro esta neve… esta paragem. E agora…Calou-se — e o revisor emitiu um som estrangulado.— E agora o quê?— E agora há um passageiro que apareceu morto no beliche… apunha -

lado.M. Bouc falou com um desespero controlado.— Um passageiro? Que passageiro?— Um americano. Um homem chamado… chamado… — consultou uns

apontamentos que tinha diante de si.— Ratchett… será isso?… Ratchett?— Sim, Monsieur — disse o revisor, engolindo em seco.Poirot olhou para ele. Estava branco como a cal.— É melhor deixar o homem sentar-se — disse. — De contrário, ainda

desmaia.O chef de train afastou-se ligeiramente e o revisor afundou-se no canto,

enterrando o rosto nas mãos.— Brr! — disse Poirot. — A situação é séria!— Com certeza que é séria. Antes do mais, um crime… e isso, só por si, é

já uma calamidade das mais graves. Mas não só, pois as circunstâncias são

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inusitadas. Eis-nos aqui, a braços com uma paragem forçada. Podemos ficarhoras… e até mais do que horas… dias! Uma outra circunstância: na maioriados países por que passamos, a polícia nacional embarca sempre no com -boio. Mas na Jugoslávia… não. Compreende?

— É uma situação bem melindrosa — disse Poirot.— Mas ainda há pior. O Dr. Constantine… Já me esquecia, não o apre -

sentei… Dr. Constantine, M. Poirot.O homenzinho moreno fez uma pequena vénia com a cabeça e Poirot re -

tri buiu.— O Dr. Constantine é da opinião de que a morte sucedeu por volta da

uma da madrugada.— É difícil precisar exactamente nestes casos — disse o médico —, mas

julgo poder afirmar com segurança que a morte ocorreu entre a meia-noite eas duas da madrugada.

— Quando é que este M. Ratchett foi visto com vida pela última vez?— Sabe-se que ainda estava vivo cerca das vinte para a uma, quando

falou com o revisor — disse M. Bouc.— Sim, é verdade — disse Poirot. — Eu próprio ouvi o que se estava a

passar. E isso é a última coisa que se sabe?— Sim.Poirot voltou-se para o médico, que prosseguiu:— A janela do compartimento de M. Ratchett foi encontrada com ple -

tamente aberta, o que nos leva a supor que o assassino fugiu por ali. Mas, naminha opinião, essa janela aberta é para nos tapar os olhos. Quem quer quetivesse saído por ali, teria deixado rastos bem nítidos na neve. E não havianenhuns.

— O crime foi descoberto… quando? — perguntou Poirot.— Michel!O revisor levantou-se. O rosto ainda parecia pálido e assus tado.— Conte a este cavalheiro o que aconteceu exactamente — ordenou M.

Bouc. O homem respondeu com uma voz trémula.— O criado deste M. Ratchett, ele bateu várias vezes à porta esta manhã.

Não houve resposta. E então, há cerca de uma hora, veio o empregado dacarruagem-restaurante. Queria saber se Monsieur ia tomar o déjeuner. Eram

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onze horas, como deve compreender. Abro-lhe a porta com a minha chave.Mas há também uma corrente, que está posta. Ninguém responde e estátudo muito silencioso, e frio… tão frio! Com a janela aberta e a neve a entrar.Pensei que o cavalheiro talvez tivesse tido um ataque. Fui buscar o chef detrain. Quebrámos a corrente e entrámos. Ele estava… Ah! c’était terrible!

Enterrou novamente o rosto nas mãos.— A porta estava fechada e com a corrente posta por dentro — disse

Poirot, pensativamente. — Não foi suicídio… hã?O médico grego deu uma risada sardónica.— Já viu um homem suicidar-se infligindo a si próprio dez… doze…

quinze punhaladas? — perguntou.Os olhos de Poirot abriram-se mais.— Mas que grande ferocidade! — disse.— É uma mulher — disse o chef de train, falando pela primeira vez. —

Pode ter a certeza, foi uma mulher. Só uma mulher é que apunhalaria assim.O Dr. Constantine contraiu o rosto pensativo.— Teria de ser uma mulher mesmo muito forte — disse. — Não é minha

intenção usar termos técnicos, só servem para confundir, mas posso assegu -rar-lhes que um ou dois golpes foram desferidos com tal força que conse -guiram penetrar através de duras camadas de osso e músculo.

— Não foi, claramente, um crime científico — disse Poirot.— Foi mesmo bastante anticientífico — disse o Dr. Constantine. — Os

golpes parecem ter sido desferidos ao acaso e aleatoriamente. Alguns foramapenas de raspão, quase não causando dano. É como se alguém tivessefechado os olhos e golpeasse freneticamente às cegas uma e outra vez.

— C’est une femme — disse o chef de train novamente. — As mulheressão assim. Quando estão enfurecidas têm uma força incrível. — Abanou acabeça com tais ares de entendido que todos suspeitaram que ele passara jápor uma experiência pessoal assim.

— Sei de uma coisa que talvez possa contribuir para o vosso conheci -mento da situação — disse Poirot. — M. Ratchett falou comigo ontem. Tantoquanto fui capaz de entender, contou-me que a sua vida corria perigo.

— «Despacharam-no». É esse o termo americano, não é? — disse M.Bouc. — Então não se trata de uma mulher. Mas de um criminoso ou de um«atirador profissional».

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O chef de train pareceu ficar desolado por a sua teoria ter dado em nada.— Sendo assim — disse Poirot —, parece que foi feito por um amador.O seu tom exprimia desaprovação profissional.— Há um americano alto no comboio — disse M. Bouc, perseguindo a

sua ideia —, um homem de aspecto normal, com roupas horríveis. Mascachicletes, o que, creio, não se faz nos bons círculos. Sabe a quem me refiro?

O revisor interpelado anuiu.— Oui, Monsieur, o número 16. Porém, não pode ter sido ele. Eu tê-lo-ia

visto a entrar ou a sair do compartimento.— Talvez não tivesse visto. Talvez não tivesse. Mas voltaremos a isso

daqui a pouco. A questão é: que fazer? — Olhou para Poirot.— Então, meu amigo — disse M. Bouc. — Já deve ter compreendido o

que lhe vou pedir. Conheço as suas capacidades. Assuma esta investigação!Não, não, não recuse. Sabe, para nós é grave… e estou a falar-lhe em nome daCompagnie Internationale des Wagons Lits. Na altura em que a polícia jugos -lava chegar, quão simples seria se pudéssemos apresentar-lhes logo a solução!De outro modo, atrasos, aborrecimentos, mil e um incómo dos. E talvez,quem sabe, sérios incómodos para pessoas inocentes. Em vez disso… vocêresolve o mistério! Nós diremos apenas: «Ocorreu um crime — aqui têm oassassino!».

— Mas suponhamos que eu não o resolvo?— Ah! Mon cher. — A voz de M. Bouc tornou-se absolutamente afec -

tuosa. — Conheço a sua reputação. Conheço os seus métodos. Este é o casoideal para si. Verificar os antecedentes de toda esta gente, descobrir as suasbona fides, tudo isso custa tempo e incómodos infindáveis. Mas por acasonão o ouvi dizer já muitas vezes que para se resolver um caso uma pessoa sótem de se recostar na cadeira e pensar? Faça isso. Interrogue os passageirosdo comboio, observe o corpo, examine os indícios que há e de pois… bem, euconfio em si! Tenho a certeza de que isso não será indolência da sua parte.Recoste-se e pense… use (como já o ouvi dizer amiu da damente) as pequenascelulazinhas cinzentas do cérebro… e então desco brirá!

Inclinou-se para a frente, olhando com afeição para o amigo.— A sua fé comove-me, meu amigo — disse Poirot, emocionado. —

Como você diz, não será um caso assim tão difícil. Eu mesmo, na noite

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passada… mas não vamos falar disso agora. Na verdade, este problema intri -ga-me. Estava eu a pensar, ainda não há meia hora, que tínhamos pela frentemuitas horas de tédio enquanto ficássemos aqui parados. E agora… tenhoum problema mesmo à mão.

— Aceita então? — disse M. Bouc, com sofreguidão.— C’est entendu. Deixe o assunto nas minhas mãos.— Muito bem, estamos todos ao seu dispor.— Para começar, gostaria de ter uma planta da carruagem Istam bul–

–Calais, com a relação das pessoas que ocuparam os vários comparti mentos,e também gostaria de ver os respectivos passaportes e bilhetes.

— Michel encarregar-se-á disso.O revisor saiu do compartimento.— Quais são os outros passageiros do comboio? — perguntou Poirot.— Nesta carruagem, o Dr. Constantine e eu somos os únicos passageiros.

Na carruagem de Bucareste viaja um velho cavalheiro coxo. O revisor co nhe -ce-o bem. Depois há as carruagens normais, mas estas não nos interessam,pois foram fechadas depois do jantar de ontem. À frente da carruagemIstambul–Calais há apenas a carruagem-restaurante.

— Parece-me então — disse Poirot, lentamente — que vamos ter de pro -curar o nosso assassino na carruagem Istambul–Calais. — Voltou-se para omédico. — Era o que o senhor estava a sugerir, presumo?

O grego assentiu.— À meia-noite e meia ficámos detidos na neve. Ninguém pôde sair do

comboio desde então.M. Bouc disse com solenidade:— O assassino está entre nós… está no comboio neste momento.

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