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EDIÇÃO Nº 3 zzzumbido Claudio Parreira Marcelo Augusto Galvão Jussara Resende Angela Goulart Neuza Paranhos Luiz Henrique Soares Mônica Dias de Souza Evandro Alves Maciel João Felipe Gremski Daniel Irgang Junior Cazeri

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EDIÇÃO Nº 3zzzumbido

Claudio ParreiraMarcelo Augusto Galvão

Jussara ResendeAngela GoulartNeuza Paranhos

Luiz Henrique Soares

Mônica Dias de SouzaEvandro Alves MacielJoão Felipe Gremski

Daniel IrgangJunior Cazeri

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ZunindoOs editores

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Espelhos d’águaAngela Goulart

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Procedimentos para a Hora Agá

Claudio Parreira

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Poemas IIJussara Resende

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Lo-tso-yazzieMarcelo Augusto Galvão

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Fora do TempoNeuza Paranhos

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Tantra KarmaEvandro Alves Maciel

20

FeitiçoMônica Dias de Souza

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Corpo VazioLuiz Henrique Soares

24

A Caminho do Mar

João Felipe Gremski

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Apocalipse Glandular

Daniel Irgang

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A ContaJunior Cazeri

Í n d i c e

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Z U N I N D Oos editores

Você viu o que fizemos? Reflexos fisiológicos de espectros vingativos

pairando além do tempo para mimetizar desejos solitários em percursos definitivos impossíveis de

compartilhar. Se você não viu, verá. Abra os olhos, agora.

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C O L A B O R A D O R E Szunindo

Claudio Parreira é escritor. Tem contos publicados nas revistas eletrônicas Cronópios, Germina, Escritoras Suicidas, Diversos Afins, Flaubert, Le Monde Diplomatique, [LIMBO], Revista Gueto, Jornal Opção, TriploV e InComunidade (Portugal), entre outras. Foi colaborador da Revista Bundas e do jornal O Pasquim 21. Participou das coletâneas CONTOS DE ALGIBEIRA, FIAT VOLUNTAS TUA, DIMENSÕES.BR, PORTAL 2001, A FANTÁSTICA LITERATURA QUEER, FRAGMENTOS DO INFERNO e também LINHAGEM MONTESSALES – RETRATOS DA INQUISIÇÃO.

Recebeu Menção de Honra para o conto O Jardim de Esperanças (Der Garten Der Hoffnungen), da Revista de Assuntos Latino-Americanos XICOATL, Áustria, em 1996.

Foi o ganhador do 1º Concurso de Contos da Revista Piauí, em março de 2007 e, no ano seguinte, integrante do folhetim despropositado A Velha Debaixo da Cama, da mesma revista.

É autor, pela Editora Draco, do romance GABRIEL e também da coletânea de contos DELIRIUM, pela Editora Penalux.

email: [email protected] twitter: @ClaudioParreira - facebook: Claudio Parreira

Marcelo Augusto Galvão lê, escreve e reescreve ficção fantástica (horror, fantasia e ficção científica) e policial. Teve histórias publicadas em mais de dez coletâneas no Brasil e em Portugal, assim como em e-books, e também ajudou a organizar dois livros de contos homenageando Sherlock Holmes (Editora Draco).

Blog: http://galvanizado.wordpress.com

Jussara Resende é brasiliense. Graduada em jornalismo e direito, passa os dias a escrever, quando não textos técnicos, por simples prazer. Ensaios, poemas e crônicas que divulga em seu perfil no Facebook. Escritora amadora, no sentido exato da palavra.

Angela Goulart é uma artista plástica carioca radicada no ES desde 1978. Criadora dos Poemas Postais e o livro artesanal para colorir; ambos aliando desenho e poesia. Residente em Cachoeiro de Itapemirim/ES.

Neuza Paranhos é tradutora, escritora e jornalista. Publicou o volume de contos AvenidaMarginal, além de diversos contos em meios físicos e eletrônicos, como as revistas Cult eCiência e Cultura – SBPC, o jornal Rascunho, o site Bestiário e a página literária do jornal LeMonde Diplomatique. Vive em São Paulo em Vila Beatriz com gatos, cachorros e marido.

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Evandro Alves Maciel (São Paulo, 1980) é poeta, graduando Filosofia pela Faculdade de São Bento, de São Paulo e fotógrafo amador. É autor do livro de poemas “Veneno de Ornitorrinco” (Ed. Patuá, 2016).

Mônica Dias de Souza é Doutora em Antropologia e Graduada e Mestre em História. Em sua dissertação e tese investigou o culto aos escravos e de escravos. Ao longo de sua trajetória profissional foi docente, pesquisadora e sobretudo etnógrafa de diversas realidades. A Etnografia é ciência e arte do encontro com o outro, dos estranhamentos do outro em nós, este gênero carrega consigo e faz uso em crônicas e outros estilos, onde imprime suas reflexões para que alcancem um público mais amplo do que onicho acadêmico. Atualmente, junto com amigos, realiza-se no “SEIVA, a Essência da Vida em Palavras” laboratório de literatura e arte gráfica.

Luiz Henrique Soares é graduando em Letras pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). É vencedor do XXXVIII Concurso Nacional de Contos e Poesias, realizado pela FAFIMAN. Possui textos publicados em diversas revistas de literatura do país.

João Felipe Gremski tem 31 anos, nasceu em Curitiba e se formou no curso de Letras pelaUniversidade Federal do Paraná, tendo feito mestrado em Estudos Literários na mesmainstituição.

De 1991, Daniel Irgang é escritor, pessoa saudável que não usa muitas drogas e se exercita, e estudante de Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Gosta de pós-modernismo, ficção científica, body horror, e uma combinação entre estes três (venera John Carpenter, David Cronenberg e Ballard, muito embora não tenha lido Ballard). Tem exatamente uma (1) publicação literária, “E-mail Johnson”, em esrcitoressemlivro.wordpress.com (sic), do amigo e também escritor Rafael Escobar.

OS EDITORES:

Junior Cazeri teve sua biografia recusada por desrespeitar as normas de publicação.

Tânia Souza é natural de Mato Grosso do Sul, é educadora, escritora, cronista e poetisa. Já publicou em diversas antologias, entre elas À Sombra do Corvo - Poesias Sombrias, Histórias Fantásticas - Vol 1, Cursed City - Onde as Almas Não Têm Valor, Olympus - Histórias da Mitologia, Crônicas da Fantasia e Quando o Saci Encontra os Mestres do Terror além de contribuir em diversos blogs de literatura e ter participado do site Quotidianos. Seu primeiro livro solo foi DESAMORES E OUTRAS TERNURINHAS e o segundo, ESTRANHAS DELICADEZAS acaba de sair pela Editora Estronho.

Facebook: Tânia Souza

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E S P E L H O S D ’ Á G U Apor Angela Goulart

A menina dos olhos contava as estrelas do céu da boca.Semeou na planta do pé,

Margaridas, orquídeas e violetas.Isso para saudar, da boca de seu estômago todas as borboletas.

Com as minhocas de sua cabeça,Adubou a terra para fortalecer as batatas das pernas,

E para tirar as pulgas de trás das orelhas usou lanternas.Desfez o nó da garganta e aliviou o aperto do coração.

Assim, o embrulho que havia em estômago, não existe mais não.Os grilos de sua cabeça,

Colocou na palma da mão.Não lhes cobrou obediência, só pediu que não voltassem mais não.

Dobrou os joelhos, fez uma oração.Pediu o fim de toda a dor e absolvição de sua sentença.

Para a dor de cotovelo,Teceu longa luva com apenas um novelo.

Ao seu olhar no espelho,Percebeu serem seus olhos espelhos d’água.

Trancou a porta que sempre esteve aberta;Partiu tranquila sem qualquer mágoa.

Partiu na hora certa.

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P R O C E D I M E N T O S P A R A A H O R A A G Á

por Claudio Parreira

A Ciência, pois, está aí pra isso mesmo: é preciso saber a velocidade do vento, a inclinação da luz, a sua intensidade também — tudo isso para garantir um bom rendimento à tarefa que se propõe, a saber:

- esqueça essa história de pratos sofisticados, cassulê de rabanetê, que seja, e o velho escargô ô ô ô, funciona não. Se se quer fazer alguma coisa com competência, risque esses ingredientes do seu prato. O assunto é sério e exige dedicação e técnica, a saber:

- o bom e velho arroz com feijão é o prato mais indicado, desde que guarnecido com farinha de mandioca da grossa, que, entre outras coisas, serve para empelotar e dar liga na massa que se deseja, a saber:

- a consistência é um problema que há séculos intriga a humanidade. E não se trata apenas das coisas ditas físicas: o que seria da civilização

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ocidental sem a consistência do pensamento de Aristóteles, por exemplo? Claro que não é a essa consistência que nos referimos, mas serve muito bem de exemplo e é por isso que você acabou de ler, a saber:

- o fazimento da massa, ou bolo, como insistem alguns, é de suma importância para o resultado que se espera. Por isso o arroz com feijão e farinha mais água (não precisa ser mineral; basta ser líquida e molhada, como se encontra nas boas casas do ramo e afins): via de regra, desde que o Homem é Homem essa tem sido a receita de sucesso em 99,9% dos casos, a saber:

- isso varia de organismo para organismo. Algumas pessoas têm órgãos mais delicados e o sistema não funciona como se espera. Uma pena. Para esses casos recomendamos um bom médico, que às vezes são encontrados no país, o que levanta uma questão que foge um pouco ao nosso tema, a saber:

- isto posto, é preciso se levantar do restaurante ou buteco, que seja, com aquele ar de autoridade de quem acabou de completar o serviço como mandam os protocolos. E me engano logo acima ao dizer acabou de completar: meio que acabou, eu deveria dizer, porque depois vem a segunda parte, a parte mais importante, a saber:

- o primeiro sinal de que tudo corre conforme o esperado é aquela nuvem esverdeada que passa a nos acompanhar e, ao mesmo tempo,

afasta da gente homens mulheres crianças cachorros e gatos, nesta ordem. Um bom sinal de que a massa, ou bolo, vem aí, a saber:

- quando o suor na testa e demais partes do corpo se torna abundante e aflitivo é que a coisa tá pegando mesmo: só nos resta correr para casa (algumas pessoas não seguem esse critério: qualquer lugar é lugar, tanto faz, desde que seja feito, tudo bem), a saber:

- abrimos a porta como quem põe abaixo os muros de um castelo, e gritamos naturalmente lá vai e saiam todos daí até o momento glorioso de se sentar ao trono (como podem ver, a citação ao castelo não foi em vão). Nesse momento ímpar, pelo qual trabalhamos com afinco e determinação, todo o mistério se resume: a vida é isso. A saber:

- pois então que toda a complexidade daquilo que se convencionou chamar gente vem à tona: tudo não passa de uma sequência matemática, uma coisa leva à outra, natural que seja, o arroz com feijão e farinha de mandioca da grossa mais a água — depois de uma passagem pelos filtros corpóreos — deveria findar lá embaixo com a massa, ou bolo, pronta — mas surge aqui então a maravilha que é a natureza: tudo tem uma ordem, inclusive a desordem, e nem sempre o que se espera acontecer acontece como deveria. Nesse momento o suor ganha outros significados, a humanidade se reduz ao ridículo de estar ao trono com as calças e a moral arriadas, as bombas decorrentes da fina mistura arroz

etcetera citada acima explodindo nos azulejos portugueses, o ridículo do ridículo do ridículo, a saber:

- quando tudo falha, apesar dos manuais de instrução, não adianta apelar a deus e nem mesmo à literatura, especializada ou não: por vezes, e isso acontece com uma frequência assombrosa, a fina massa da qual se queria extrair algo para dar continuidade às ações do dia a dia — sim, porque sem esse ritual os dias passam doloridos e incômodos, todos nós sabemos — a fina massa, continuo, acaba por se tornar na verdade uma rolha das mais resistentes, o que nos enche de desespero e frases sem sentido que ricocheteiam entre os azulejos. A saber:

- daí então que já não nos resta mais nada a não ser cortar os pulsos, meter uma bala entre os olhos, jogar-se sob o vagão JBS-171 de qualquer metrô disponível, chamar a mãe ou, a saber:

— Socorro!

Gritar pela janela com as calças aos calcanhares não é lá muito fácil nem tampouco prático, mas é uma saída honrosa depois de tão elaborado projeto que só poderia dar em merda.

De um jeito ou de outro.

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P O E M A S I Ipor Jussara Resende

TEMPO

primeiro

Já nāo conto as horas,relembro alegrias.Nāo vejo mais o passar dos minutos,assumo minhas fraquezas.Enquanto os segundos aguçam minha sensibilidade.E nāo me importa se é noite ou dia.É vida.

segundo

Acordo cedo e vejo o diaSinto a luz a sufocar o medoMedo estranho do tempoContraditório sentimentoQuero que o tempo passeMas não quero passar no tempo.

terceiro

Se vivêssemos ao contrárioSaberíamos o futuroE ansiaríamos o passado?Já não sei mais em que rumo vouPerdi o sentido, confusaEm meio a tanta imposiçãoNão aceito verdades absolutasComo o fluxo do tempo racionalTrago um passado tão real E tão presente Que não me surpreenderia vê-lo no futuroAfinal, o que é o passar do tempo Senão o fluxo do meu caminhar?Não posso crer num padrãoPosso viver hoje o que viráE amanhã, o que passouPorque esses, quem define sou eu.

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FILHOS DO VENTO

Não consigo ver deus mais belo e perfeitoQue aquele revestido de naturezaNa sombra, nas águas, nos reflexosNas estrelas, cachoeirasNão reconheço mensageirosde cabelos longos e olhos clarosSomos todos filhos do tempo, do vento, dos medosCegos de nossas miudezasE de nossa simplicidade frente ao todoIludidos com o paraíso, lugar dos eternosAcreditando sermos mais do que somosPó, poeira, nuvem passageiraIrrisória fração do cosmo

ESPECTRO

O anel no dedo da moça tortareluzia feito o brancode seus dentes aparentesquando do sorriso amareloA mesma cor do pus que brotava da ferida aberta

Não eram presentesBugingangaso que esperava a moçasaúde e respeitoera com o que sonhavadesde a infânciamarcada pela dor constante

Por sua deficiênciaera vista como atração de circoIsolada do convívioApresentada aos estrangeirosque com frequência por lá passavamEuropeus, australianos, americanosInteressados nas riquezas africanas

Mas a deformação dos ossosque lhe impedia o prumoNão lhe cortava as asasNem afastava sonhosAlimentava a esperançade um dia deixar a vilae sumir daquele mundo

Naquele dia veio senhora novaacompanhada do maridoDizia palavras docesEm língua não compreendidaE ao ver a moça bichoFeito um palito tombado ao meioPresenteou-a com o anel

O brilho marcou o iníciodo que logo teria fimIludida com o carinhoAcreditando em milagreSonhou ter sido escolhidaComo filhaPronta a renascer em vida

Mas a realidade gritaE mostra a clarezaDo anel reluzenteDos dentes brancosDa pele negra Do amarelo doenteE da verdade cortante

DIA DAS MÃES

Mãe não tem dia, tem vida.Esfrega, enxagua, lavaOs panos, as roupas, a almaPinta, costura, recortaOs olhos, as vontades, as tarefas.Mãe não fica sozinha, divideOs espaços, a comida, a raivaO tempo, o pensamento e até a intimidade.E faz tudo, de portas abertasCom o coração em vigíliaE atende aos mûltiplos chamadosSuprindo a carência de carinho, de carona, de dinheiroAté que fiquem adultos e sigam outros rumosE se cerquem de amigosE comecem novo ciclo.Para a eternidade, enquanto sempre.Mas não é santa, é gente.

Foi no vazio da tarde que a velhinha descobriu-se de barriga cheia das tantas alegrias acumuladas ao longo da vida.

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L O - T S O - YA Z Z I Epor Marcelo Augusto Galvão

O deserto é amarelo, salpicado aqui e ali por arbustos verdes. De certa forma, um lugar bem adequado para vingança que a moça planejou: assim como ela, o deserto é incapaz de gentileza ou perdão. Sentada, numa posição que permite observar o acampamento do alvo, ela conta as balas que ainda lhe restam na fiel seis-tiros.

Seis-tiros. Moby sente vontade de rir com o pensamento: parece até que está num daqueles faroestes em preto e branco que o avô tanto gostava de ver na tevê. O revólver foi dele, comprado após a Segunda Guerra, quando serviu no exército usando uma arma semelhante. No teatro de operações do Pacífico, trabalhou para os Aliados criptografando e decodificando transmissões em navajo – sua língua natal e que jamais seria decifrada pelos inimigos japoneses. Tudo que resta da munição agora são três balas. Mais do que o suficiente.

A moça rechonchuda se levanta e avança com o revólver em riste. A poeira do deserto sobe a cada passo; ela tem a impressão de que o solo treme sob os saltos das botas. O exato oposto das suas mãos, firmes como rochas.

Faltando pouco mais de dez metros do acampamento – que não passa de uma tenda de lona escura e do que sobrou da fogueira noturna, reduzida a um punhado de cinzas – a terra amarela é maculada por uma sombra que surge do nada.

E que cresce e aumenta de tamanho como se engolisse o deserto com a mesma avidez da cascavel que abocanha um lagarto. Mas, ao invés do chocalhar do guizo da serpente, o que se escuta é o estrondo de dezenas de trovões: algo se estatela no solo ao cair do céu, levantando poeira entre Moby e o acampamento.

A moça olha para o alto, procurando por algo, mas só encontra o azul sem fim. No chão, o pó desce sem pressa até revelar uma silhueta gigantesca.

É uma baleia.

Uma baleia branca e grande – bom, na verdade, parece mais para filhote. Ainda assim, um filhote que desabou do céu e agora está imóvel, como se encalhado numa praia.

Lo-tso-yazzie. É a primeira palavra que cruza a mente da moça com o revólver ainda em riste.

Peiote é a segunda. A visão adiante só pode ser algum efeito tardio da planta alucinógena que usou mais cedo: entre os navajos, é costume ingeri-la antes do início de uma jornada importante – naquele caso, uma jornada de matança.

Sim, a única explicação plausível para um filhote de baleia desabar do céu em pleno deserto. Pois lo-tso-yazzie significa “baleia pequena” em navajo. Não só isso: era o termo usado pelo avô nas transmissões do Pacífico para designar um cruzador de guerra, palavras que não existiam na língua dele. Assim, criavam confusão entre os japoneses.

— Você é forte e resistente como uma lo-tso-yazzie — Disse o avô quando viu a neta, rechonchuda e com então seis anos, cair ao correr pelo quintal e então se levantar. Os primos que brincavam juntos decidiram que seria um apelido perfeito para Anne Lee Jim; anos depois, já na escola católica, os colegas brancos souberam da alcunha e passaram a chamá-la

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cruelmente de Moby.

Algo se mexe no interior da tenda. Um homem sai, cabelos de um branco encardido e pele sulcada por rugas profundas. Moby puxa o cão do revólver e mira.

Mas os olhos arregalados do velho se fixam na criatura adiante. O que significa que ou ambos têm a mesma alucinação ou existe mesmo uma baleia ali.

— Avô! — grita a moça. O velho finalmente se dá conta da presença da neta e do revólver. Ele abre a boca para murmurar algo: talvez uma desculpa por tudo que fez à família nos últimos anos, talvez um pedido de clemência.

Pouco importa para Moby. Ela aperta o gatilho três vezes, mirando peito, pescoço e cabeça do alvo. Do jeito que um assassino profissional faz.

O avô desaba. Sangue escorre pelos orifícios recém-abertos, se espalhando pela terra até formar uma mancha escura sobre o amarelo da terra.

A baleia se movimenta.

Moby pula assustada. O bicho se contorce de um lado para o outro, até que, com um estalo, as mandíbulas gigantescas se abrem de repente. Como se ele quisesse vomitar ou cuspir algo.

Ou alguém, como na história do profeta Jonas e a baleia que Moby aprendeu na escola. E do simbolismo que existe: o homem no ventre do animal representava a morte e, ao ser vomitado, o profeta renascia para uma nova vida.

Moby respira fundo. A fornalha da vingança dentro dela esfriou como a fogueira do acampamento. Ela observa a bocarra se abrindo e uma silhueta rechonchuda brilhante de saliva deslizar de lá.

Anne Lee Jim sorri quando se vê levantar.

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F O R A D OT E M P O

por Neuza Paranhos

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Um ano tem em média 365 dias e 12 meses, cada mês tem 30 dias e quatro semanas, diz Wojtek, com um cuidado maníaco de mencionar a média. Pra que, se tudo isso é vazio, é convenção? Assim é, mas ele continua, está finalmente chegando às horas e minutos e segundos e átimos, sabe-se lá que medidas domina, eu nem escuto mais, finjo que escuto. Wojtek acha que é deus, mas deus entrou em coma semana passada. Wojtek, preciso ir. Ele absorto em medidas de tempo. Vai demorar pra retornar. Olho seu corpo, o abdômen bem definido. Um desperdício, Wojtek e sua loucura. Olha o que o tempo fez comigo. Ele não me vê, perturbadíssimo. A hora tem sessenta minutos. Diz e entra em colapso, quer entrar no tempo, que tolice! O tempo é para otários, Wojtek. Ele me olha com seus belos olhos doidos, acha que é deus e deus entrou em coma na semana passada. Mais essa, eu devia ter desconfiado, eu e minha lentidão. Prossegui meu caminho, percorri avenidas, cheguei ao meu bairro e no lugar onde nesta manhã havia minha casa está um terreno baldio de anos. O choque foi tamanho que larguei o pé do breque e o carro bateu no portão da vizinha. A mesma a quem eu emprestava a escada pra podar o jasmineiro. Estava lá a planta olorosa de amor sufocado. Porém a vizinha não me reconheceu.

O jasmineiro das noites de verão, vertiginando perfume, nos fazendo ter corpo. Sabe deus. Deus não sabe, deus está em coma, li na

semana passada, respirando por aparelhos. Demorei um tempo a me recuperar. Wojtek contava os segundos. Larguei o carro onde estava a vizinha estupefata. Não faz ideia de quem eu seja, pra ela nunca lhe emprestei escada nenhuma. E o jasmineiro, inclusive, houve um há mais de 50 anos. Wojtek recomeça a contagem. Eu a conheço, dividimos um jasmineiro se espalhando entre muros. O terreno onde nesta manhã erguia-se a casa onde eu morava apresenta mato alto. A vizinha se aproxima, pergunta os olhos esbugalhados, não sei o que ela pergunta, desaprendi o sentido das palavras, não sei que língua ela fala, não se parece em nada minha língua pátria. Eu não tenho mais pátria, não tenho mais casa, não entendo mais esta língua da minha vizinha, a do jasmineiro. E as folhas podadas, e o perfume das minhas noites, Wojtek, onde tudo isso? São doze horas e quarenta e seis minutos nesta cidade que já não é a minha, perdi o tempo, ele já não é meu. Por que você o conta se ele já não nos pertence. Por isso você conta os minutos, Wojtek, talvez esteja tudo por acontecer, e aquele pesadelo recorrente, aquele em que tudo, em um átimo, me despertencia, talvez você me conte a respeito. Me queira, preciso de você ao meu lado enquanto as ruas forem se dissolvendo em fumaça. Wojtek está no banco de passageiro ao meu lado, peço que coloque o cinto de segurança. Ele se atrapalha e eu me inclino sobre seu peito pra puxar a alça e encaixar a extremidade no engate. A coisa emite um clect confortável, mas

não estou confortável, temos que ir. Não nos demoremos aqui. Eu sei o caminho. Wojtek sabe contar as horas, não que isso tenha grande serventia, dado que estamos fora do tempo. Os caminhos também não servem de grande coisa, não levam a lugar nenhum. Dois mil e dezessete menos mil novecentos e sessenta e quatro. Retrocedemos no tempo, engato a quarta marcha, ganho um pouco de velocidade nesta avenida de outro tempo. Um gosto vão na boca seca. Mil novecentos e cinquenta e oito mais 55 minutos às oito horas da noite. Estaciono o carro sob a lâmpada fria. Desconheço este lugar, este meio-fio abandonado, os outros carros golpeando o asfalto. Dois mil e cinquenta menos a nossa morte, você antes, eu depois. Wojtek em pânico, deus em coma.

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TA N T R AK A R M A

por Evandro Alves Maciel

TantraKarma I.:

(ad infinitum) nunca mais fazer de mim um outro que não eu mesmo nunca mais fazerde mim um outro que não eu mesmo nunca mais fazer de mim um outro que não eumesmo nunca mais fazer de mim um outro que não eu mesmo nunca mais fazer demim um outro que não eu mesmo nunca mais fazer de mim um outro que não eumesmo nunca mais fazer de mim um outro que não eu mesmo nunca mais fazer demim um outro que não eu mesmo nunca mais fazer de mim um  outro que não eumesmo nunca mais fazer de mim um outro que não eu mesmo nunca mais fazer demim um outro que não eu mesmo nunca mais fazer de mim um outro que não eumesmo nunca mais fazer de mim um outro que não eu mesmo (ad libitum)

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TantraKarma V.:

(quando noite de lua cheia) sinto consinto consisto insisto no susto suspendo o sisosurpreendo só rindo sabendo se sei sorvendo se não saindo assim de soslaio singrandosistemas solares sangrando meu sangue sorvendo o sabor sublime do teu sexosentindo o suave céu dessa boca saudade que dá resisto mas não desisto que sei ?(quando noite de lua minguante) tremo temor dos meus dias trazendo má sorte tesãodividido entre tu e tu mesma tosse tremenda testando meu toque tais e tais e taistremeliques terrenos terra em transe êxtase pra dentro transa invertida traga teucorpo trago o teu corpo trago teu corpo triste pra dentro da minha alegria tremidatremenda tresvairada alegria pedindo impedindo implodindo explodindo ex-tranhoestranha ex-trangeiro in-transigente terra móvel terremoto !  (quando noite de luacheia) sinto consinto consisto insisto no susto suspendo o siso surpreendo só rindosabendo se sei sorvendo se não saindo assim de soslaio singrando sistemas solaressangrando meu sangue sorvendo o sabor sublime do teu sexo sentindo o suave céudessa boca saudade que dá resisto mas não desisto que sei ? (quando noite de luaminguante) tremo temor dos meus dias trazendo má sorte tesão dividido entre tu e tumesma tosse tremenda testando meu toque tais e tais e tais tremeliques terrenosterra em transe êxtase pra dentro transa invertida traga teu corpo trago o teu corpotrago teu corpo triste pra dentro da minha alegria tremida tremenda tresvairadaalegria pedindo impedindo implodindo explodindo ex-tranho estranha ex-trangeiro in-transigente terra móvel terremoto ! (céu nublado sem lua)

TantraKarma X.:

(cólera) porque ninguém é de ferro e o sangue é quente porque ninguém é de ferro e osangue é quente porque ninguém é de ferro e o sangue é quente porque ninguém é deferro e o sangue é quente porque ninguém é de ferro e o sangue é quente porqueninguém é de ferro e o sangue é quente porque ninguém é de ferro e o sangue équente (invidia) teu ouro é nossa ruína e nossa ruína é o teu ouro teu ouro é nossaruína e nossa ruína é o teu ouro teu ouro é nossa ruína e nossa ruína é o teu ouro teuouro é nossa ruína e nossa ruína é o teu ouro teu ouro é nossa ruína e nossa ruína é oteu ouro teu ouro é nossa ruína e nossa ruína é o teu ouro teu ouro é nossa ruína enossa ruína é o teu ouro (prigritia) os mortos são os vivos e os vivos são os mortos osmortos são os vivos e os vivos são os mortos os mortos são os vivos e os vivos são osmortos os mortos são os vivos e os vivos são os mortos os mortos são os vivos e osvivos são os mortos os mortos são os vivos e os vivos são os mortos os mortos são osvivos e os vivos são os mortos (superbia) eu sou o que tenho e o que tenho não bastaeu sou o que tenho e o que tenho não basta eu sou o que tenho e o que tenho nãobasta eu sou o que tenho e o que tenho não basta eu sou o que tenho e o que tenhonão basta eu sou o que tenho e o que tenho não basta eu sou o que tenho e o quetenho não basta (luxuriae) porque o fogo que te mata me alivia de sangrar porque ofogo que te mata me alivia de sangrar porque o fogo que te mata me alivia de sangrarporque o fogo que te mata me alivia de sangrar porque o fogo que te mata me aliviade sangrar porque o fogo que te mata me alivia de sangrar porque o fogo que te matame alivia de sangrar (avaritia) ter por ter é poder pra foder ter por ter é poder prafoder ter por ter é poder pra foder ter por ter é poder pra foder ter por ter é poder prafoder ter por ter é poder pra foder ter por ter é poder pra foder (gula) comer pravomitar e depois comer pra vomitar e depois comer pra vomitar e depois comer pravomitar e depois comer pra vomitar e depois comer pra vomitar e depois comer pravomitar e depois comer pra vomitar e depois comer pra vomitar e depois comer pravomitar e depois comer pra vomitar e depois comer pra vomitar e depois comer pravomitar e depois comer pra vomitar e depois (?)

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F E I T I Ç Opor Mônica Dias de Souza

O medo percorria a coluna do princípio ao fim. Me benzi. Fiz desconjuro. Bati na madeira. Era tudo que sabia que podia fazer naquele momento. O recinto era esfumado. Cheiro forte de ervas invadiam completamente o minúsculo salão. Mal conseguia enxergar as pessoas. Se ruim, nem sei dizer. O medo é capaz de alterartodas as percepções. Risos ou gargalhadas? Nem sei também. Pareceram infernais neste primeiro momento. Fazia tempo que não chegava nessas sessões. Virou exótico. O homem à porta tinha cara de mistérios. Tem gente, assim, que parece de outro mundo. Na verdade, tudo aquilo era uma combinação meio ficcional. Ficção de outro mundo. Dá licença, disse e fui entrando. O homem-cara-de-mistérios sorriu. Pura esfinge, não decifro. Nem sei se quero decifrar. Dalva, minha parceira cismou de vir em terreiro. Queria engravidar. Nada de errado comigo. O resultado me tirou uma preocupação de macho alfa. Não sou porra rala, graças à Deus! Não acusou nada no exame dela também. No lugar de relaxar insistiu em escarafunchar problemas. Espirituais. Inventou que minha ex-mulher lhe fizera macumba. A danada sonhava todas

as noites com crianças puxando suas pernas. No sonho elas gritavam na sua cabeça. Gritavam nomes. Vários. Mas ela jurou reconhecer o da Márcia. Com tudo isto, fazia tempo que não trepávamos em paz. Tinha sempre um fantasma a rondar. Mal-estar. Pinicação danada no corpo. Até brochar brochei. Juro que isto nunca tinha acontecido antes. Juro mesmo. Acabei acreditando nela. Ali estávamos, sentados no meio daquela fumaça toda. O povo no centro da roda bebendo, fumando e rindo. Parecia bem divertido. Não me assombrava mais. Fiquei então à vontade. A cena era fantástica: a mulher de saia rendada e o homem num linho só e panamá na cabeça.Ambos trocando olhares, risos e bebidas. Aquilo realmente era algo religioso? Teatro. Quase ópera corporal. Divino. Os corpos se contorciam em palmas. Os pés pareciam não tocar o chão. Quer um trago? A linda mulher ofertou. Disse: Claro! Não queria parecer esnobe ou coisa assim. Fiquei magnetizado com seu olhar e sua dança. Logo, ela no centro do salão. Eu sentado. Dalva me cutucava. Dizia, não mexe com isto. É coisa séria. A porta do encantamento se abriu. Puro fetiche de um mundo imaginário. A mulher cigana de tons acima.

No cheiro, na maquiagem, na vestimenta e no comportamento. Em tudo tom saturado. A um simples sinal dela, levantei-me. Direto. Certeiro. Silêncio cortado por gargalhada triunfal. Tango. Fitava-me profundamente. Agarrou-me pelo pescoço. Rodopiamos. Imediatamente minha mão se pôs na cintura. E logo estava bailando. Cigarrilha na boca. Gargalhando saturadamente. Dalva diante de mim. Via que contava o caso sem que eu a escutasse de fato. Com minha cigarrilha baforei Dalva. Dancei o quanto pude. Bebi muito gim. Abracei muita gente. Beijei tantas outras. Minha anfitriã foi o último abraço que dei. Por fim, encarei novamente. Despedida sem lágrimas. Olho-no-olho. Notei barba espessa. Jurava que aquilo não estava ali antes. Agradeci cordialmente. Peguei a mão de Dalva. Saímos de fininho. Nada dissemos. A trepada que tivemos naquela noite foi espetacular. Corpos exaustos. Suados. Melados de satisfação. Adormecemos sem direitos a assombros. Acordamos atrasados. Era domingo. Não podíamos faltar ao culto daquele dia.

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C O R P O VA Z I Opor Luiz Henrique Soares

Sentada no sofá da sala, em frente à TV, Elvira parece acreditar que Deus talvez não exista. Esse mundo não foi feito pra gente, menina, diria sua mãe. Por um momento, ela parece concordar firmemente com a dúvida. É tão incerta a sua noção de espaço e tempo, que só tem olhos para a caixa luminosa e suas frases gritantes, esse desalinho do mundo.

Assiste atentamente ao jornal policial. O apresentador, um homem alto, de terno e gravata, rememora os casos policiais mais chocantes do dia. O discurso poeticamente agressivo, as palavras cuspidas em pequenos jatos e socos no estômago. O volume alto e estridente da TV não incomoda Elvira. Tem o corpo estático e teso, carregado do medo e da absoluta certeza do que assiste. Talvez, se não tivesse filhos, poderia encarar com maior facilidade as notícias, o lado insuportável delas.

Mas é o corpo bruto sentado no sofá da sala que não deixa, inerte.

É o corpo de Elvira quem mais sabe sobre as coisas do mundo. Por isso, tinha acordado muito cedo,

arrumado a mesa e as camas, o armário de roupas velhas. Segurou firme nas mãos geladas do filho e desceu a esquina em direção à escola. O mesmo caminho de todos os dias, a exatidão dos passos. Certo orgulho despertou-se em Elvira: se ficasse cega algum dia, poderia ainda levar e buscar a criança. Conhecia bem os buracos da rua. Conhecia a intimidade de cada passo, num ritmo melancólico de conhecer os seus próprios atropelos.

Na volta, os buracos da rua pareceram ainda maiores, como grandes bocas querendo engolir Elvira por inteira, querendo sufocá-la. Os buracos são depósitos da verdade contida no mundo. E a verdade não rima, é escura, profunda, fria, ninguém entende. Elvira já não entendia os buracos, e nem as verdades,

Da parte que cabe às mentiras, é o corpo de Elvira quem grita mais alto na rua, as dores nas pernas. O corpo de Elvira conhece bem a selvageria das palavras, o lado sujo de todas delas. É o corpo de Elvira quem primeiro ouve o silêncio da queda de um colchão, arremessado do 8º andar do prédio azul-celeste.

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Ao longe, é apenas uma espuma coberta por um grandíssimo e sedoso lençol branco, difícil de dobrar.

O colchão que cai é um espectro da queda. Ela acontece muito antes, lá em cima, quando a verdade lhe falta. A queda é a falta da verdade nas coisas. A queda é o colchão inútil que nada mais serve ao corpo, um buraco sem sentido no azul do prédio.

Elvira sabe que não há nada de importante na queda de colchões. Ninguém nas janelas, ninguém na rua. É a única testemunha do nada. A imagem inscrita em sua mente é a de um quarto vazio e pequeno, um único espelho pendurado na parede, o esqueleto da cama sem colchão: a única cena possível nessa tragédia.

Mas o que levara alguém a jogar um maldito colchão pela janela? O que levara alguém a se debruçar na janela numa manhã nublada e deixar o corpo apanhar do frio?

Não há vida em corpos que gostam de apanhar do frio, debruçados em janelas. Elvira sabia disso quando chegou em casa, quando a única coisa que vira era um colchão cruzando o céu e caindo levemente. Agora, talvez, acreditasse que Deus não teria controle sobre colchões arremessados. Talvez nem Deus estivesse preparado para as quedas.

Elvira trancou-se em casa. Era como se o mundo tivesse corroído

a verdade. Os vazios não duram para sempre, o instante da queda e pronto. Um colchão de solteiro, um quarto vazio, passos gravados na memória: nada disso resiste ao desmontar das vidas.

O que resiste é simplesmente invenção.

Elvira trancou-se em casa porque não podia trancar-se dentro de si, é medo de esquecer os passos, medo de perder o caminho. Se um dia ficasse cega, aprenderia que é melhor não ver os passos. É melhor não ver as quedas - nem a nossa, nem as dos outros - e muito menos a queda de colchões. Elvira ainda tem nas mãos a lembrança do toque gelado do filho. Aquilo que resta depois da cena final.

O corpo vazio é tentativa de preenchimento: a sala, a despensa, a família, as notícias. Elvira não tem rosto: é muda, cega; de tanta queda, acostumou-se ao chão, de ver as coisas de baixo. Fora cega tantas vezes, abandonara seu corpo na esquina outras tantas vezes. Tudo está escuro.

Resta o homem alto e sem rosto cuspindo a sujeira das palavras.

Não há muitas verdades no mundo. Elvira sabia disso. O maldito colchão arremessado do 8º andar daquele prédio azul-celeste apareceu na TV. Descobriu-se que não se tratava propriamente de um colchão, mas de uma noiva. Sim, uma noiva. O colchão arremessado era uma noiva suicida que debruçara

seu corpo na janela e apanhara do frio. Elvira soube que a verdade não rima quando abandonara seu filho na escola, quando esquecera que tudo vale bem menos do que a maldita queda de uma noiva.

Elvira viu seu rosto na TV, na queda do seu próprio corpo, no esquecimento do filho. Fora a primeira vez que viu seu rosto, imaginou o quarto vazio e o esqueleto da cama sem colchão. Viu o espelho e a noiva, a sua vontade de sumir, de voar. Se não tivesse filhos, se jogaria de um prédio azul-celeste vestida de noiva.

A queda começa muito antes, lá em cima, no tropeço dos caminhos. Elvira conhecia demais os caminhos da vida, não queria. Reivindicaria o desejo de não querer, de simplesmente dizer não, como a noiva.

Talvez a queda de um corpo arremessado do 8º andar de um prédio azul-celeste seja leve.

Talvez as noivas sobrevivam às quedas.

Talvez as mães se cansem de amar seus filhos.

Talvez Deus nada saiba sobre corpos arremessados de prédios.

Talvez não haja histórias sobre noivas e quedas, nem tempo para mães e filhos abandonados.

Não há vida para além de quartos e corpos vazios.

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A C A M I N H O D O M A R

por João Felipe Gremski

Suma

Parar de brigarcom a fotografia na parede,lugar que me extinto de viver.

Em suma,

vou (me) apagando, cores,

azul, verde mar, o som

uma réstia de fioúltimo olhar, rápido

- “ao futuro” -

e nunca mais.

K.622

Busco frestaspara a fuga

mas descubro, entre frestas,

um caminho.

Salto

O instante de luz, fresta,de uma janela da infância

que se abre devagar, triste,trazendo o som de passos mais delicados,aquilo que resta ainda intocado.

Movimentos em ondas,plumas,lençóis ao vento, planícies e

um salto

e alço, pássaro livre,um voo sem volta,

o vagar plano,sobre aquilo que já passou.

Adágio

Olhar o pássaro contra o brilhoda tarde:

nuvens pesam o dia de lembranças

incendiadas de verãoaquecidas por passos constantese sorrisos, cadeiras que não bastavam,mesas que não cediam mais espaço(o azul das manhãs a caminho do mare as chuvas das tardes que caíam em sono).

Um presente,no passado em que vivo.

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A P O C A L I P S EG L A N D U L A R

por Daniel Irgang

do céu e da terra a matéria grita em esporro, as montanhas se rompem e se movimentam lentamente pra si mesmas e pra fora de si mesmas no ritmo de um pesado e vagaroso pêndulo: algo nasce - das entranhas do pesado magma calcificado e dos sedimentos acídicos de mil vulcões que estouraram e comeram uns aos outros - nasce com os pulmões ardendo, a pele suja e coçando, vermelha e exposta, nova carne espremendo-se às últimas consequências do sangue para fazer a própria cara brotar da terra e gritar UMA SEQUÊNCIA FÔNICA INDISTINTA não diferente dos fractais brigando para se organizar no meio de uma sopa de moléculas se colidindo para formar um ser desde sempre e para sempre,

nasceu e agora vê o próprio corpo - fodido mas a primeira coisa, a única coisa, perfeição em cada músculo e tendão e osso - vê o próprio corpo com um embasbacamento de meio segundo, um resquício do frenesi animal de ter acordado sem saber o que se é, que é seguido por uma ejaculação interna irrefreável de orgulho com os pulmões ardendo como nunca hiperventilando o ar rico de enxofre e potássio e agora dá um passo mas a coxa grita de

dor, mas é uma dor boa, é até bom sentir o cheiro de terra misturada com as feridas agora que caiu e se feriu contra as escarpas do mundo convulso reflexivamente pondo o braço na frente do rosto antes de atingir o solo agudo mas o braço se rasgou esfolou a pele nova e vermelha, agora com buracos carmesim forrados com a papa terrassangue

em vinte dias, vagará pela terra até encontrar a memória, a qual fecundará e depois engolirá por inteiro, mantendo no próprio ventre a esposa grávida: ao primeiro ser é o direito de possuir e possuir totalmente, tomando primeiro o corpo por dentro e depois o corpo todo, instituindo o alheio dentro de si mesmo para que ninguém nunca mais desfrute das folhas de carne molhada que o recém-nascido descobriu ser o propósito da própria vida - mais tarde o recém-nascido dirá que fez isso para a proteção da própria família, o mundo é muito hostil, mas dentro de si sabe que a verdade é consumir e comer e possuir e punir e controlar,

ao longo dos séculos, vaga pela terra agora inerte, vomitando seus filhos e filhas, ouvindo vozes dentro de si, um monólogo que

protesta contra a própria idiotice, censurando-lhe as ações, fazendo com que esprema as têmporas, urrando sem saber o que fazer, olhando para cada falésia pontiaguda e cada precipício com a tentação final que o levaria ao esquecimento, ao fim, aonde não é nem escuro, mas a tentação ficará no canto de cada olhar pelo resto da vida, pois um dia ele tenta vomitar a esposa, talvez acabe com essa merda agora de uma vez por todas, e ele quase põe o próprio esôfago e traqueia e tudo mais em prolapso antes de sentir um movimento subindo em direção ao crânio, talvez agora -

a sua cabeça explode como uma flor, mas não é a esposa. a esposa furou o seu crânio dando a luz à primeira filha, a qual guardou para si mesma, nutrindo-a em segredo no próprio útero, secundarizando os nutrientes que provera aos filhos que acabaram nascendo, jogados no mundo, pobres diabos; a filha contudo é do mesmo BERRO que originou o progenitor e com essa porra toda ela foge do ventre como uma enorme rocha caindo do céu e esposa morre dentro daquela flor, a própria carne murchando e jazendo flácida dentro do crânio exposto, ela memória satisfeita por imprimir

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naquele animal a experiência de

ter a própria carne movida e transfigurada contra a própria vontade ou talvez sim, é tudo, é tudo... tomado pelo momento e pelo calor de um APOCALIPSE GLANDULAR aquela criatura tão rija explorando-a talvez ninguém tenha culpa. agora porém a criatura sentiu uma arrebatação nunca sofrida por ninguém que não a esposa, a memória: deu a luz, e chora atônito enquanto a filha recém-nascida com um corpo de perfeição superior cada ângulo da carne a arte e a pele reluzente e bronzeada e forte a filha ele olha enquanto ela desaparece no horizonte, correndo através do tempo e do espaço

e ele vê, é o futuro, e subitamente ele está no futuro, a sua prole cruzando com a própria prole e seres e seres proliferando-se na terra cada boca com fome e cada braço à espreita para destruí-lo antes que ele possa controlá-los, aqueles produtos vomitados retornarão, portanto retorná-los às tripas será necessário, e a criatura devora, devora, cada pedaço de carne vulnerável, apesar de qualquer súplica, de qualquer choro, do cheiro familiar, até que

da carne dos produtos burros em transa aleatória se configure a perfeição. a perfeição tornará forma, e voltará para subjugá-lo, cortando o seu órgão, e o devorará, e tomará todas as esposas e comerá a prole, e terá a memória como nunca antes, e será frustrado como nunca antes, e a carne líder sairá de um útero gritando para matá-lo, e a criatura olha em torno de si e vê as montanhas se afastando e se convergindo de modo cada vez mais rápido, a dor das épocas provocando-lhe o transbordar da saliva e o priapismo

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A C O N TApor Junior Cazeri

Dadas as circunstâncias, o que se esperava era a escolha de um restaurante decente. Não era o caso. Cristina ignorou o menu e pediu água com gás, avaliou o ambiente enquanto a boca requebrava em silêncio. Conhecedor das minúcias de seus lábios, traduzi essa inquietação como arrependimento. O que não facilitaria as coisas.

Ao lado, a junção de três mesas acomodava uma família. O pai arqueado sobre a refeição, a mãe distribuindo safanões e crianças, muitas crianças, crianças demais, que praticavam um jogo de escorregar a bunda da cadeira até o chão, engatinhar por debaixo da mesa e aparecer no lado oposto com urros triunfantes. Bônus ao derrubar talheres, copos e pratos.

Como imaginado, Cristina interpretava seu papel tanto quanto eu. Ela, ousada, atraia a mirada do garçom para seu decote. Chegou quarenta minutos atrasada, uma máscara de indiferença e tão logo acomodou-se sacou o telefone e dedicou-se a responder mensagens. O que me cabia era a espera, a humildade imposta pelo privilégio dela ter aceito esse jantar após muitos convites anteriores, devidamente rechaçados.

Eu ansiava pela brecha que permitiria apresentar minha peça. Um abrir de cortinas. No primeiro ato, o peso da culpa, gestos lentos, olhos baixos. Antes do tédio, o plot twist, promessas recheadas de confiança, ênfase no futuro. Sim, isso era importante. Cativá-la com a certeza das palavras, irresistível como um predador. Não, assim não. Como um protetor. Isso, bem melhor. Com a precaução de um enxadrista, previ as variantes da partida certificando-me de ter a resposta exata para as possíveis objeções, lamentos, acusações

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e, valha-me deus, agressões. No grande clímax, o encontro das mãos sobre a mesa, lembranças dos melhores anos, lua de mel em Mongaguá, a paixão vencendo o pudor. Lágrimas, talvez. O beijo de reconciliação.

Mas, ainda não. A luz dos holofotes lhe pertencia.

Cristina desafia-me: braços cruzados, costas retas, queixo erguido. A ausência da aliança não era ameaça, mas afirmação. O círculo pálido sulcado na carne, uma cicatriz real entre outras, invisíveis. Por duas vezes limpei a garganta e ela franziu a testa. Gaguejei nas preliminares, como ela estava e coisa e tal. Respondeu um aceno, não interessa e tanto faz. O colarinho da camisa grudava na nuca devido ao suor escorrendo por trás da orelha. Que calor era esse?

Um dos garotos exagerou na brincadeira e veio parar aos nossos pés. A mãe se esticou para captura-lo pelos cabelos sem pedir desculpas. Cristina ergueu-se, apanhou a bolsa e dirigiu-se aos reservados sem pedir licença. Ao buscar a taça, tombei o saleiro e empurrei o cardápio para fora da mesa. Minhas mãos tremiam.

Na mesa vizinha, o pai mostrava-se hábil em ignorar os gritos dos filhos, a irritação da esposa e as cotoveladas dos passantes. Levava garfada após garfada aos lábios, mastigava devagar e engolia erguendo as sobrancelhas. Um dos meninos brotou em seu colo, ganhou um afago e fez novo mergulho, atiçando o ódio da mãe. Esporro, beliscão, choro.

O barulho crescia, o berreiro da criança, os palavrões da mulher, o retinir contínuo da campainha informando um prato à disposição.

Iam e vinham as passadas dos garçons. Tlin tlin. O espocar de garrafas abertas. Tlin tlin.

Uma hipótese até então oculta nas entrelinhas do plano perfeito de reaproximação: e se Cristina não estivesse interessada em me ouvir e seu comparecimento fosse, única e exclusivamente, para ver o quão baixo eu chegaria?

Tlin tlin.

Ela não era do tipo rancoroso. Ou era? Tlin tlin. Afinal, nunca antes ela fora tão afrontada. Em suas próprias palavras, “tratada como uma ninguém”. Tlin tlin. Se Cristina pretendia colocar um fim à trama, existiria forma mais apropriada do que fazê-lo com o salto em meu pescoço?

Tum tum. Tum tum. Tum tum.

O novo som cobre os demais. Tum tum. Está ao redor e dentro de mim. Tum tum. Aperto as mãos tentando afastar o formigamento que escorre pelos dedos. Tum tum. No ouvido. Tum. Nas profundezas do ouvido. Tum. A pulsação explodindo.

Cristina saiu do reservado, celular no ouvido, sorriso no rosto. Um espasmo sacudiu minhas entranhas. Percebendo-se observada, deu-me as costas. As lâmpadas do salão piscavam continuamente. Não, eram meus olhos que se apagavam. Que merda era essa? Agarrei o tampo da mesa. O movimento fez um punho gelado atravessar meu estômago e subir, subir, e golpear o peito. O vinho, terrivelmente doce e alcóolico, não aplacou a secura em minha garganta. O pai terminou a refeição e abriu o botão da calça. Ar, eu precisava de ar.

Um arroto breve. Inspira, expira. “Tente ser menos inútil, pelo menos

hoje”. Inspira, expira. “Vão brincar”. Gritinhos histéricos. Inspira, expira. Tropeções, risos, cadeiras virando. Inspira, expira. “Jonatas, Maicon, Leandra, voltem aqui”. Inspira, expira. “Igor, Janaína”. Inspira. “Rudnei, Waleska”. Expira. “Já pra cá”. Não sei a quanto tempo espero. “Venham”. Talvez espere para sempre. “Se eu pegar o chinelo...” Sem nunca voltar atrás. “Senta aí e cala a boca”. Acordado, tenho que ficar acordado.

A mulher apontou o dedo para o marido. Cristina levantou os olhos para a mesa. Eu desmoronava, me perdia e encontrava. O marido sorriu. Apalpei os bolsos, incerto do que encontraria. A mulher socou a mesa. Eu/não-eu. Eu/não-eu. As crianças se encolheram. A carteira, isso, a carteira. Cristina sumiu em meio ao entra e sai de clientes. As chaves, tenho chaves? A esposa jogou um guardanapo no marido. Tentei me erguer, as pernas bambearam. O marido disse: vaca. A esposa disse: porco. O garçom disse: débito ou crédito?

Sair daqui, sair daqui, sair daqui.

Tlin tlin tlin tlin tlin tlin tlin tlin.

Tapo os ouvidos, aperto com tanta força que as orelhas latejam e quanto maior a pressão mais distantes as vozes, os ruídos, a campainha e, finalmente, os pensamentos. Movo os pés e eles respondem, levanto os joelhos e eles obedecem. Minha cabeça é inundada pelo suor nas palmas das mãos. Eu estaria morrendo? Nascendo? Não creio haver diferença na sensação. Música ambiente, conversas suaves e dedos tamborilando o tampo da mesa. Cristina em seu assento.

- Pois bem, vamos conversar.

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z z z u m b i d o - n º 0 3 - s e t e m b r o d e 2 0 1 7 - m e n s a l d i s t r i b u i ç ã o g r a t u i t a - e d i t o r e s : j u n i o r c a z e r i e t â n i a s o u z a

e - m a i l : c o n t a t o . z z z u m b i d o @ g m a i l . c o m . b r s i t e : r e v i s t a z z z u m b i d o . w o r d p r e s s . c o m /

c o l a b o r a d o r e s : c l a u d i o p a r r e i r a , m a r c e l o a u g u s t o g a l v ã o , a n g e l a g o u l a r t , j u s s a r a r e s e n d e , n e u z a p a r a n h o s , e v a n d r o a l v e s m a c i e l , m ô n i c a d i a s d e s o u z a , l u i z h e n r i q u e s o a r e s , j o ã o f e l i p e g r e m s k i e d a n i e l i r g a n g . t o d a s a s i m a g e n s q u e i l u s t r a m e s t e n ú m e r o s ã o d a o b r a d o f o t ó g r a f o f r a n c ê s e u g è n e a t g e t ( 1 8 5 7 - 1 9 2 7 ) . O s d i r e i t o s d e t e x t o s p e r t e n c e m a o s a u t o r e s e n ã o p o d e m s e r r e p r o d u z i d o s e m a e x p r e s s a a u t o r i z a ç ã o d o s m e s m o s .

z z z u m b i d o