zygmunt bauman - cultura aventuras liquidas modernas de uma ideia

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Cultura: aventuras líquidas-modernas de uma ideia 1 Zygmuru Bauman R es umo O que torna a mod ernidade "líquida" é a "modernização" co mpulsiva e ob es- siva, permanentemente em aceleração, através da qual nenhuma forma da vida social, tal co mo os líquidos, é de reter os seus conto rnos durant e muito tempo. A c ul - tura não rem " povos" para "cultivar". Tem, cm vez disso, clientes para seduzir. E, ao contrá rio da s ua predecessora "sólida mod erna ", o deseja fi car -eventualmente, mas quanto mais depressa, melhor - sem e mprego. O seu traba l ho é t ornar a s ua própri a sobrevivência permanente - at ravés da temporalização de todos os a pectos da vida do seus antigos eleitores, agora renascidos como clienres. Introdução: Steph en Fry No (muito improvável) caso de o seu no me não soar muit o familiar, aqui vai uma mão cheia de pis tas acerca da sua posição c ultura l actual (no ano de 2008) em Londres, a sua atmosfera e extensão: Srephen Fry, um actor exrremamenre popular e espirituoso co nt ador de hiStórias é um convid:1d o muito cobi ç:1do em festa londrina que pretenda " fa zer furor" e um adereço mwro ambicionado no direc tório de qualquer "rede" que pretenda obter um prestígio e uma importância razoáveis. Te ntand o expli car o su csso fe nomena l do wcbstte Fa ceb ook (que atmi 55 milhões de urih z.adorcs e está avaliado em $1 5bn), o principal hebdo madário britâ ni co notava que " a multidão" dos seus utilizadores, ao contr3 rio do que é habitual no s síti os de redes soctais, '" incluía multas fi guras famosas" e sugeria que is to aco ntece, pois "de que ou tra forma podemos pedir a Stephen Fry para ser nosso amigo?" (Tucker, 2007: 35). Stcphen Fry , uma personalidade admirada po r qu alquer pessoa que queira ser alguém no mund o dos especia lis tas nas últimas mo das c ultur ai s, considero u necessário exp li car e justificar aos leitores do The Guardtan (Fry, 2007) por que moti vo não faz mal uma pessoa como ele, aclamada co mo arquétipo das ma1s refinadas e s ublimes credenc iaiS cuJrurais, deshz.ar uma vez por semana para o co rriqueiro e dedicar a sua 1 de comumcaçio pdo ourO< para o "What 11ltqurdl Modemity, cuh ure and rdenttty", o rg.oniutdo na Umvent<lllck do Mmho, no dr • 28 de 1\bnl de 2008. TraduçJo de Ana Maria Brandlo

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Cultura, Modernidade

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Page 1: Zygmunt Bauman - Cultura Aventuras Liquidas Modernas de Uma Ideia

Cultura: aventuras líquidas-modernas de uma ideia1

Zygmuru Bauman

Resumo O que to rna a modernidade " líquida" é a "modernização" compulsiva e ob es­

siva, permanentemente em aceleração, através da qual nenhuma forma da vida social, tal como os líquidos, é ca p::~z de reter os seus contornos durante muito tempo. A cul­tura líquida -modem::~ não rem " povos" para "cultivar " . Tem, cm vez disso, clientes para seduzir. E, ao contrá rio da sua predecessora "sólida moderna", já não deseja ficar -eventualmente, mas quanto mais depressa, melhor - sem emprego. O seu trabalho é tornar a sua própria sobrevivência permanente - através da tempo ralização de todos os a pectos da vida do seus antigos eleitores, agora renascidos como clienres.

Introdução: Stephen Fry No (muito improvável) caso de o seu nome não soar muito familiar, aqui vai

uma mão cheia de pistas acerca da sua posição cultural actual (no ano de 2008) em Londres, a sua atmosfera e extensão: Srephen Fry, um actor exrremamenre popular e espirituoso contado r de hiStó rias é um convid:1do muito cobiç:1do em qu::~lquer festa lo ndrina que pretenda " fazer furor" e um adereço mwro ambicionado no directório de qualquer "rede" que pretenda obter um prestígio e uma importância razoáveis. Tentando explicar o su csso fenomenal do wcbstte Facebook (que atmi 55 milhões de urihz.adorcs e está avaliado em $15bn), o principa l hebdomadário britâ nico notava que " a multidão" dos seus utilizadores, ao contr3rio do que é habitual nos sítios de redes soctais, '" incluía multas figuras famosas" e sugeria que isto acontece, pois " de que outra forma podemos pedir a Stephen Fry para ser nosso amigo?" (Tucker, 2007: 35).

Stcphen Fry, uma personalidade admirada po r qua lquer pessoa que queira ser alguém no mundo dos especialistas nas últimas modas cultura is, considerou necessário explicar e justificar aos leitores do The Guardtan (Fry, 2007) por que motivo não faz mal uma pessoa como ele, aclamada como arquétipo das ma1s refinadas e sublimes credenciaiS cuJrurais, deshz.ar uma vez por semana para o corriqueiro e dedica r a sua

1 T<~to de comumcaçio cnHJid~ pdo ourO< para o ~rrunáno "What 11ltqurdl Modemity, cuh ure and rdenttty", org.oniutdo na Umvent<lllck do Mmho, no dr• 28 de 1\bnl de 2008. TraduçJo de Ana Maria Brandlo

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Con6gurações I n.• 3 I 2007

coluna aos últimos utensílio electrónicos - engenhocas que é suposto pertencerem ao "popular" {no passado, cm tempos abençoadamenre inconscientes do "pohrícamente correcto", conhec1do como as "massas") e não à culrura erudita (denominação aban clonada pelo actual vernáculo do "politicamente correcto", à excepção da troça - no sentido do despreLO e entre parêntesis). Fry começa o seu encómío com uma confissão: possuí uma qualidade que, suspeua, pode ser usada contra ele, pelo menos por alguns leitores do Guard1a11 resistentes à mudança: "Os aparelhos digitais embalam o meu mundo. Alguns podem ver n1s to uma confissão crágíca. O baUer, a ópera, o mundo natural não, Stephen? Não a hterarura, o reacro ou a política global?" E apressa se a antecipar as po1encía1s acusações: Bem, as pessoas podem ser sensíveis a roda as coisas digirais c, ainda assun, lerem livros, irem à ópera e verem um jogo de críquete e candjdararem-se aos b1lhetes dos Lcd Zeppelín sem perderem a face. Gosta de com i­da tajlandesa? E o que é que a italiana tem de mal? Eh, então ... calma! Eu gosro das duas. Sim. ~possível. Posso gostar de râguebi e dos musicais de Srephcn Sondheim. Do gótico vitoriano erudito c das instalações do Damicn Hirst. Do Hcrb Alpert's lijuana Brass c das obras para piano do f líndemíth. Dos hinos ingleses e do Richard Dawkins. Das primeiras edições do Norman Douglas e de iPods. De bilhar, de dardos c de ballet ( ... ).O amor às cngcnhoc-•s não me torna avesso ao papel, ao couro e à madeira, aos Natais à moda anriga, aos filmes do Presron Srurges ou aos passeios campestres. Nem significa, automaúcamcntc, que leio Terry Pratchert, que só respiro pela boca e que levo demasiado a boca ao prato quando como a sopa. Alguns limites ainda são respei­tados e ultrapassá-los não é aconselhável: Prarchert é deixado além do limite (porque é o segundo auror mais lido na Grii-Bretanha e, portanro, demasiado vulgar? Tão vulgar como algumas maneiras à mesa, como dobrar a cabeça sobre o prato em vez de erguer a miio?). ln toto, no entanto, esta confissão e encórruo públicos exigem ser lidos como um íranco desafio à ideia de " disnnção" de Pierre Bourdieu {1979), que governou e marcou o nosso pensamento sobre a "cultura" nas úlrimas três décadas.

Srephen Fry é conhec1do como lançador de tendências, mas é também um porra­-voz mwto fiável {e a incorporação VIVa) das tendências estabelecidas. Pode acreditar--se que não fala apenas em seu nome, mas em nome de centenas de m1lhares de mem-bros encartados da e de milhões de membros aspirantes à "elite cultural" - pessoas que sabem a diferença entre o co1mne 1! (aur e o comme ii ne (aut pas, e as primeiras a notarem o momento em que essa diferença se torna diferente do que costumava ser. Ele também não errou desta vez. De acordo com o relatório escrito por Andy McSmíth e publicado na edição onlme do The Independentl, académicos de renome reunidos na mais autorizada UniverSidade - Oxford - proclamaram que "a elite cultural não existe". Neste aspecto, tod:tvin, McSmirh, à procura de um cftulo adequadamente acu­tilante e agitador, enganou-se: o que John Goldthorpe, o mais repucado investigador social de Oxford, e a sua equipa de rrez.e elementos concluíram dos dados coligidos no Reino Unido, no Chile, na ll ungría, na H olanda e nos EUA foi que o que já não pode ser encontrado é as pessoas que estão no topo distíngLúrem-se das que estão abaixo delas por irem à ópera e admirarem o que quer que, no momenro, seja considerado

1 Consul~ te http://ocws ondc:pm.lm1 co ul lhJJ bwamlonocleJ266S86.ccc.

Zigmunl Bnuman I Cullura nvonluros l1quldas·rnodernas de urna ideia

"culn1ra erudita" e torcendo o nariz a "qualquer co1sa tão vulgar como uma canção pop ou a televisão corrente".

O leopardo da elite culrural está bem v1vo e mo rde - só mudou as suas manchas. As suas manchas podem ser chamadas, desde que R1chard A. Pererson, da Vanderbilt Uruversíry, cunhou a palavra, em 1992, "ommvorac1dade" (Perersen e Símkus, 1992) -ópera e canções pop, " arre erudita" e relcvlSão corrente; um bocado d isto, um bo­cado daquilo; agora isro, agora aqu1lo. Como afirmou Peterson (2005)l recentemente, "vemos uma mudança na política dos grupos de stat11s da elHe de sobrancelhas ergui­das que desdenham ostensivamente da cultura de base, comum ou popular de mas­sas ... para aquelas sobrancelhas que consomem de forma omnívora um vasto leque de formas de arte populares, bem como erudita ". Por outras palavras: Nihrl "cultural" a me alienmn puto, embora não exista nada de "cultural" com que me identificasse fir­me e descomprometidamcnte - à excepção de todos os outros divertimentos. Sinto-me em casa em todo o lado, embora (ou porque) esse rodo o lado a que chamaria casa não está em lado nenhum. Já não se trata de um gosto (refinado) conrra outro (vu lgar). É a omnívoracidade contra a univoracidade, a predisposição n consumir rudo contra um desgosto selectivo. A elite está viva e de boa saúde, mais viva c activa do que nunca, demasiado ocupada com rodas as coisas culturais para ter tempo para proselitizar e converter. Aparte o "deixa de ser esquisito, sê menos selectivo" e "consome mais", não rem mensagem a transmüir às multidões de unívoros ao longo da hierarquia culn1ral.

1. Cultura e liquidez As ofertas culturais, insí tia Bourd1eu ( 1979) apenas há algumas décadas, são

rodas dlligjdas à classe e seleccionadas pela classe. O Lriplo efeito da divisão de classes, da atribuição de classe e da classificação da pertença de classe é a sua principal raiso11 d 'être, a mais influente das funções sociais e até, talvez, o seu propósito latente, ainda que não manifesto. Na perspectiva de Bourdicu ( J 979), os obJets d 'art destinados ao consumo estético indexariam, assinalanam e protegenam as d1visões de classe, mar­cando de forma legível e fortalecendo as fronteiras que manteriam as classes separa­das. Para assinalar as fronreiras de forma não ambígua e para as proteger eficazmente, todos ou a majoria dos obJets d'art teriam que ser atribuídos a conjuntos muruamente exclusivos, conjuntos que não se podiam misturar, nem deviam ser apreciados eJ o u possuídos conjuntamente. O que contava não seria tanto a sua substância e virtudes intrínsecas, ou a sua ausência, mas a sua Intolerância múrua e a proibição de as misru­rar distorceria a sua inerente resistência à crista lização. Haveria um gosto erudjro, um médio e um v-ulgar- e não se poderiam misturar, como o fogo e a água.

Da Distiuction de Bourdieu (1979), a cultura emergia sobrerudo como um me­canismo usado e possivelmente também concebido para marcar as diferenças corre as classes e para as manrer diferentes, corno uma tecnologia implementada para construir c proteger a diferença de classe, a separação e a lnernrquia. Fia emergia numa situação muito similar àquela em que foi encontrada/ síruada quase um século anres por Óscar

) Vq• te o ICU •wNrio c Ckbr«UUorr rdlc:do oobcc duu dttad.u do ttu ""balho c cs1udo. ofins cm Pctcnon (200S).

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Configurações I n • J I 2007

Wilde ( 1992: 3 ): "Aqueles que descobrem significados belos nas coisas belas são os cultos ... São os cleuos para os qua1s as coisas belas apenas s(gnificam Beleza". Os eleitos. Pessoas que dão o tom e que o dão de uma forma adequada para lhes rraz.er a vitória no concurso das canções. Certamente eles encontrariam significados belos VIStO que lhes cabm decidir que coLSas ser1am belas. Antes de se chegar a descobrir esses sigmficados, quem, se não os eleitos, teria decidido onde se deviam procurar os significados belos?

Resummdo, a cultura (o conjunto de escolhas culruralmeme encoraJadas e "cul­ruralmenre relevantes"} era uma força socwlmente conservadora. E, para se libertar adequadamente dessa função, precisava de aplicar com igual z.elo cada um de dois exped ientes aparentemente opostos: precisava de ser igualmeme, se não amda mais re­solutamente estnta e descomprometida face à exclusão do que à inclusão. Juntament e com os signos que marcavam o seu " mterior", a culrura precisava de outros signos que marcavam/ estigmatizavam o "exterior", marcadores com o r6rulo indicativo h1c Srtnt leo11es associado. Tal como aquele náufrago da história inglesa ostensivamente irón ico, porém mornlmente edificante, que, quando enca lhou numa ilha desabitada, precisou de construir três abrigos para restnbclecer e reter a sua identidade íntegra: o primeiro, para nele viver; o segundo, para servir de clube que deve ser frequentado nos serões; e o terceiro como o clube cuja entrada nunca seria, em caso a lgum, franqueada.

Quando foi publicado quase há quarenta anos, a obra Distinction de Bourdieu ( 1979} virou do avesso a ideia original de "culrura", nascida e herdada do Iluminis­mo. A prática cultural que Bourdicu ( 1979) descobriu, revelou e registo u era um grito longínquo do modelo herdado de "cultura" consrruido num tempo em que o concei­to fora cunhado e introd uzido no vocabulário público no terceiro quarto do Século Dezoito, quase ao mesmo tempo que o conceito inglês de "refinamento" e o conceito alemão de "B1ldung". À data do seu nasc1mento, pretendia-se que a ideia de "cultura " simboluasse um Instrumento de progresso (assistido pelo poder) no senndo de uma condição humana universal. A "cultura " denotava, então, uma missão proseljtista, a ser empreend1da e esboçada sob a fonna de um esforço sustentado de cuhavação c esclarecimento 11mversau, de melhoramento social e de elevação espiritual e de promo­ção dos "hum1ldes" ao nível dos que estavam " no topo" . Ou, na expressão inspirada e muito célebre de Matthew Arnold no livro com o revelador riruJo O tlture or Anardry ( 1869), como um trabalho que " procura acabar com as classes; tornar correnre o que de melhor rem sido pensado e conhecido no mundo; faz.er com que rodos os homens vivam num ambiente de doçura e luz" - lançado no prefácio de " Literature and Dog­ma" ( 1873) como o trabalho que aguarda os que procuiam: " A cultura é a paixão pela doçura c pela luz. c (mnis do que isso) a paixão de as fazer preva lecer" (sublinhado nosso).

A "cultura" entrou no vocabu lário moderno como uma declaração de intenções, como um nome de urna missão ambicionada ainda a ser empreendida. SimiJarmente à ideia de que a acção pretendida retira o seu nome metafórico - a de agn-culrura, que justapunha os lavradores e os campos de plantação que lavravam - , ela servia de injuoção a missionários prospectivos, designando, ao mesmo tempo, os relativamente

ligmuntBaumon I Cultura: aventums líquidas·rnodemas de wna ideia

poucos chamados a cultivar e esses muitos que aguardavam ser objectos de cultivo: os guardiães c os seus guardados, os professores e os enstnados, os produtores e os seus produtos. A "culrura " sigruficava o planeado/ desejado pacto entre os do saber (e, acima de tudo, confiantes de estarem no saber) e os ignorantes (ou definidos como ignorantes pelos que confiavam ser conhecedores), um pacto assinado unilateralmenre e posto em acção pela emergenre "classe do saber" à procura de que o seu papel de dar o tom fosse devidamente respeitado na nova ordem emergente que começava a ser construída sobre as ruínas do anaen reg1me. O mruito declarado era o de educar, esclarecer, melhorar e enobrecer /e peuple recentemente rebapriz.ado les citoyens do recentemente estabelecido état-nation: o casamento da emergente nação auto-promo­vida a um Estado soberano com o Estado emergente a reclamar o papel de guardião da nação. "O projecto do Uuminismo" atribuiu à culwra (entendida como o LTabalho de cultwação) o estatuto de um insrrumemo fundamental de cons tmção da nação, do Estado e do Estado-naç.ão. Simulrancameme, indicava à classe letrada o principal ope­rador desse instrumento. Nas suas viagens entre a ambição política c as ruminações fi losófi cas, e vice-versa, o duplo objectivo do projecto iluminista (expHcitamenre pro­clamado ou tacitamente presumido) tinha-se cristalizado pronrnmente como disciplina dos siÍbditos estatais e como solidariedade dos naciOnais.

O emergente Estado-nação foi animado pelos números rapidamente crescentes do "povo", visto que se acreditava que o número crescente de rrabalhadores-soldados potenciais aumentaria o seu diferencial de poder. À medida que os esforços de cons­Lrução da nação, juntamente com o progresso económico, sedimenravam os números crescenres de indivíduos " redundantes" (na verdade, categorias intellas da população com que era urgentemente preciso lidar, não fosse a ordem pretendida fracassar ou o seu crescimento ser severamente perturbado•), o rec~m-estabelecido Estado-nação foi rapidamente pressionado a procurar espaços fora das suas fronteiras paia acomodar o excesso de produtos e de pessoas que não consegUia, ele próprio, absorver. Os con­sequentes esforços colonizadores e de construção do império deram um poderoso im­pulso ã ideia de "cultura" nascida do Iluminismo - e uma dimensão inteiramente nova à missã o proselirisra que essa ideia sugeria. À semelhança da visão de "esclarecimenro do povo", moldaram-se os conceitos do "fardo do homem branco" e de " libertar os selvagens da sua selvajaria". Rapidamente seriam teoricamente embelezados sob a forma da " teoria da evolução cultural", que atn buía à parte "desenvolvida " do globo o papel do padrão "mais avançado" a que o resro do planeta estava destinado, mais tarde o u mais cedo, a aceder (ou ser levado a aceder) e que deveria ser activamente ajudado (ou coagido) a seguir. A teoria da "evolução cultural" apresentou as "socieda­des desenvo lvidas" corno o centro planetário com um papel missionário face ao resto da Humanidade. O futuro papel desse ccnrro foi moldado de acordo com o padrão da função pretendida por ou arribufda i\ elite letrnda na sua relação com "o povo" no âmbito da metrópole colonial.

Bourdieu (1979) concebeu o seu estudo, recolheu os seus dados c inrerprefou os seus resultados numa alrura em que a tarefa eirada já tinha sado amplamenre comple-

4 Vcvo ~r &uman (2005).

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Configurações I n • J I 2007

tada - pelo menos, no âmbito do "cenrro" onde os mapas do mundo e os seus futu­ros antecipados/ postulados haviam sido desenhados (embora não nas suas extensões imperiais, das quais as forças exped1cionárias do "centro" eram cada ve1 mais cspec­taculaimcnte forçadas a retirar muito antes de terem elevado as realidades aos seus padrões). No centro, a declaração de dois séculos havia semeado um vasto leque e uma vasta rede de 1nsnruições, na sua ma1ona concebidas e geridas pelo Estado, suficiente­mente fones para dependerem, para o seu contínuo funcionamcnro, dos seus própn os ritmo, rouna emrinche1rada e inérc1a burocrática. O produto pretend1do (Mo povo", reincarnado nos "c1dadãos") havia sido obtido e a posição das classes eruditas na nova ordem estava, ou pelo menos acreditava-se que estava, segura. Em vez. de uma arroja­da, iconoclásria~ aventura, uma cruz.ada e urna missão, a cultura parecia (e podia fa ­lar-se dela crcd1velmcnte como) um aparato homeostárico que tornava o Estado-nação insrin1ído resistente aos ventos conrrários e o mantinha no trilho certo (ou, na famosa expressão de Talcon Parsons (1973), tomava o "sistema " "amo-equilibrado").

Em suma: de arma da revolução moderna, a "cultuia" transformou-se num adi­tivo/ estabiliz.ador, num homeóstato ou num giroscópio do moderno status q11o. Preci­samente neste momcnro (um momento breve c fugaz., como depressa se tornou claro), foi captada - imobiliz.ada c, ao estilo de uma fotografia, explorada c registada - nu Distí11ctio11 de Bo urdieu ( J 979). O relato de BoUidieu pertencia ao tipo de sabedoria do Mocho de Mmerva: espiava a paisagem que se banhava à luz. do Sol poente, visível nos contornos que j:i se começavam a d1ssolver na escuridão da no1te. Captava a sub­missão à culrura servidora do status, homeostática, socialmente reprodutora e equili­bradora do sistema no seu caminho para a redundância iminente que se aproxJmava já rapidamente. Essa redundância era o resultado de vários processos que contribuíam para a passagem da forma "sólida" à forma "líquida" da modernidade (o termo "mo­dernidade líquida" denota o esrado acrualmente prevalecente da condição modema, também chamado por outros aurores pelos nomes "pós-modernidade", "modernidade tardia", "segunda modernidade" ou "hiper-modernidade". O que torna a modernida­de " líqwda" é a "moderni1.ação" compulsiva e obsessiva, permanenremenre em acele­ração, através da qual nenhuma forma da vida social, ral como os líquidos, é capaz. de reter os seus contornos durante muito tempo. O "derretimento de todos os sólidos", um rraço eodémico e defimdor de rodas as formas modernas de vida, prossegue, mas já não se pretende, como anteriormente, que os sólidos derretidos sejam substituídos por sólidos "novos e melhorados", "m:us sólidos", que se esperava que fossem imunes a qualquer derretimento adicional).

As realidades prestes a " dissolverem-se na escuridão" à data em que o estudo de Bourdieu ( J 979) foi publicado eram aquelas que eram vistas e descritas pelo prisma do "sistema que se auto-equilibra " - o modelo idea l que os Esrados-nação da fase "sólida" da era moderna repetidamente declaraum ser sua intenção atingir c uma condição que, vez.es sem coma, com a ajuda entusiástica dos seus panegirisras erudi­tos, pretenderam ter atingido. Visto que os aparatos homeosráticos funcionais (quer diz.er, que combatem efica.Lmenre, ou, melhor ainda, evitam todo e qualquer desvio do modelo sistémilo escolh1do e restabelecem prontamente o equilíbrio temporariamente

Zlgmunl Baumnn I Cultura: llvtnluras liquidos-modarnas de uma Ideia

perdido) são cruciais para a sobrevivência dos sistema que se auto-equilibram, o im­pulso para definir/ avaliar rodo e qualquer aspecto da totalidade social em termos da sua capacidade e efeito bomeostáticos era uma tendência natuial das sociedades que acreditavam ser elas próprias, ou pretendiam tornar-se nesse ripo de sistema. Era tam­bém natural que encarassem quaisquer desv1os ao modelo escolhido com suspeição, factores que acrescentavam pressão escusável aos esforços de auto-equilíbrio sistémico e que potencialmente empurravam o todo para o desequ1líbrio. Enquanto os Estados­-nação alimentaram as suas amb1ções 1n1C1a1s, essa tendência parecia bem enraizada e assumir os efeitos estabilizadores como critério de " funcionalidade" parecia evidente c imune ao questionamenro. Logo que os Estados-nação foram forçados/ encorajados/ levados a abandonar essas ambições, as fundações já não parecem, no enraoro, ina­baláveis e a medição da "funcionalidade" das instituições pelo força dos seus efeitos estabiliz.adores deixou de parecer uma forma de procedimento óbvia.

Enquanro - mas apenas enquanto - as amb1ções de construir um sistema auto­equilibrante permaneceram vivas, a visão homeostátiea da cultura não precisou de te­mer contestação séria. Mas as ambições começaram a esmorecer e evenrualmente tive­ram que ser, relucanremenre ao princfpio, mas depois intencionalmente abandonadas sob a pressão da globaliz.ação. A dissipação das ambições expôs gradualmente a naru­rez.a vulnerável e cada vez. mais ficcional das fronteiras sistémicas e, no fim, o engodo da soberania terriwrial - e, porranro, também dos sistemas auto-sustentados e auto-equi­hbrados confinados ao território do Estado nação. A maior parte dos efeitos seminais da globaliz.ação (acima de n1do, o divórcio do poder da política e, como consequência, a rendição progressiva das suas funções tradicionais pelo enfraquecimento do Estado e a sua consequente isenção do conrrolo político) tem sido exaustivamente investigada e descrita em grande detalhe. Confinar-mc-e1, portanto, a um aspecto do processo de gJobaliz.ação demasiadas vez.es considerado em ligação com a mudança paradigmática no estudo e na teoria da cultura, nomeadamente, a mudança dos padrões de migração global. Houve rrês fases disrimas na históna da m1gração da era modema.

A primeira vaga de migração seguiu a lógica da síndrome tnparrida: terriroriali­dade da soberania, identidade "enraiz.ada", posrura de jardinagem (subsequentememe referida como TRGs). Tratou-se da emigração do centro "modern1z.ado" (leia-se, o lar da consLrução da ordem e do progresso económico, as duas principais indústrias que substituíam e dispensavam os crescentes números de " humanos desperdiçados"), cerca de 60 milhões de pessoas ao todo, para ~terras va?.ins" (leia-se, terras cuja população nativa podia ser eliminada da maior parte dos cálculos e relatórios, literalmente "não conrad;~" e "não assumida", presumida quer como nÃo existente, quer como irrelevan­te), fundando aí novas e esperançosas réplicas perfeitas de .Inglaterra, da Escócia ou do País de Gales, c d~ Londres, Berlim, Amesterdão ou Varsóvia. O que quer que tivesse restado da população indigena após uma avalanche de assassinatos discricionáiios e similares epidemias massivas havia sido apresentado como uma ourra edição d' "o povo" que aguardava "aculturação" - e administrado tal como sugerido pela "missão do homem branco".

S No Ofl&lnal, "tcrmoruhry ol sovcragnry, ·r-td' i.knruy, _.rdcrur~~ poorurr• (NO<~ do Tradutor)

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18 Con6guraç6es 1 • • 3 1 2007

A segunda vaga de migração pode ser melhor deüneada como um caso de "o Império emigra para casa ". Com o desmantelamento dos impérios coloniais, um certo número de "povos" indigenas em vários estádios do seu esclarecimento e "avanço cultural" segu1u os seus supenores coloma1s para a metrópole. À chegada, foram ajus­tados ao úmco molde de mundivisão estratégica disponívd: um molde que havia sido construído amenormente, na era da construçilo da nação, para lidar com as ategonas destinadas à "assimi lação"- um processo visando a aniquilação da diferença cultural, lançando as minorias na poma final das cruzadas, missões Kulturkiimp(e c proseüris­tas (culturalmente rebaptizada , seguindo as regras da correcção política, como "'edu­cação para a c1dadania"', desuna da à "integração"). Esta história ainda não acabou: de tempos a tempos, os seus ecos ecoam nas declarações de inrenção dos políticos, seguindo os hábitos do Mocho de Minerva, conhecido por csrcnder as suas asas ao anoitecer. Tn l corno na prime1ra fase de migração, tenta-se enfiar o drama do "império que migra de volta" no molde da já uJtrapassada smdrome TRC.

A terce1ra vaga de migração modema, agora em plena força e ainda em crescen­do, condut à idade das d1ásporas: um arquipélago mundial de povoamentos étnjcos/ religiosos/ lingufst icos esquecidos dos caminhos queimados c trilhados pelo episódio imperialista colonial e seguindo, em vez disso, a lógica da redistribuição planetária de recursos de v1da induzida pela globalização. As diásporas encontram-se espalhadas, d1fusas, estendem-se por muitos territórios nominalmente soberru1os, ignoram recla­

mações territonais de supremaCia (e, preferencialmente, de exclusividade), exigências c obrigação loca is, fecham-se no laço duplo da " nacionalidade dual (ou múltipla)" e da lealdade duaJ (ou múltipla). A emigração dos nossos dias difere das duas fases anteriores por se mover nos dois sentidos (virtualmente nenhum pa(s ~ hoje exclusi­vamente "im1grante" ou "emigrante") e por não privilegiar trajectos (os trajectos já

não são determinados pelos laços tmperiais/ coloniais do passado). Também difere por rebenrar com o velho sfndrome T RC, substituindo-o por um sfndrome EAH' (extra­territorialidade, "âncoras" que deslocam as "rafzes" como insrrumemos primários de

1dencificação, estrat~gia de caça). A nova migração lança um ponto de interrogação sobre a ligação entre identida­

de e cidadania, indivíduo e lugar, vizinhança e pertença. j onathao Rutherford (2007: 59-60), observador acutilante e perspicaz dos quadros de ligação humana cm rápida mudança, nota que os residentes da rua de Londres onde vive formam um bairro de diferentes comunidades, algumas com redes que se estendem ar~ à rua seguinte, outras que se estendem pelo mundo. ~ um bairro de fronteiras porosas, onde ~ d1fícil identi­ficar quem pertence e quem ~ estrangeiro. A que é que pertencemos nesta localidade? A que é que cada um de nós chama casa c, quando pensamos e recordamos como che­gámos aqui, que histórias partilhamos? Viver como o res to de nós (ou como a maioria desse resto) numa diáspora (que se estende ar~ que ponto e em que direcção(ões)?) enrre diásporas (que se eMendem até que po nro e em que dirccção(ões)?) colocou, pela pnmeira ve7, na agenda a questão da "arte de viver com 111110 diferença", que pode

'No original, "utrotcrruorulity, '•nchon' dtJplacmg thc 'roou' as pnmary toou oltcknuli..allou, hunung IU11te&Y " (Nota do Tradutor).

l.igrnunl Bauman I Cullura aventuras liquidas-mode.rnas de wu ideta

aparecer na agenda apenas a partir do momento em que a diferença já não seja vis ta como meramente temporária e, portanto, agora, ao contrário do passado, exigindo

artes, competências, ensino e aprend1zagem. A ideia de "direitos humanos", promo­vida no ambie.nre EAJ I para substitUir/ complementar a instituição TRC da cidadama

rernronalmente detcnnmada, tradut- e hoJe no " d1rcito a pennaneccr diferente". Aos solavancos, essa nova versão da ideia de direitos humanos sedimenta, na melhor das

hipóteses, a tolerancia; ela rem ainda que arrancar solidamente para sedimentar aso­ltdariedade. E saber se é adequado conceber a solidariedade grupal de q ualquer outra

fonna que não a das "redes" predommantemeote v1rrua1s voláteis e refreadas, galva­

nizadas e continuamente remodeladas pela interacção da Ugação c do desligamento i_ndividual, das iniciauvas apeladoras c significativas c da sua cessação, é uma questão

controversa. A nova versão da ideia de direitos humanos também desfaz hierarquias e destró i

a imagérica da evolução ascendente ("progressiva"). As formas de vida fluruam, en­

contram-se, chocam, entram em colapso, acompanham-se, fundem-se e desagregam -se com (para parafrasea r Simmel) gravidade iguaJmcnte específi ca. As hierarquias firmes

e imóveis e as linhas evolucionárias são substi tuídas po r batalhas intermináveis e cn­

demlcamcnre inconclusivas de reconhecimento; na melhor das hip6 reses, com ordens

relativas eminentemente renegociáveis. Imitando Arquimedes, que, segundo consta, insistia (provavelmente com uma espécie de desespero que apenas a imensa nebulosi­

dade do projecto podia causar) que viraria o mundo de pernas para o ar se lhe dessem

apenas um ponto de apoio, podemos dizer que explicaríamos quem se deveria assimi­

lar a quem, que dissunilirude/ idiossincrasia estaria destinada a ser uma fatia e quem

devena emergir no topo, se simplesmente nos dessem uma hjerarquia de culruras. Bem,

ela não nos é dada e não é provável que venha a sê-lo em breve. De facto, oa parte do mundo onde os pleiros a favor da cultura, incl uindo os

de Fry, são compostos e emitidos, avidamente lidos e aca loradamente debatidos, as

artes perderam (ou estão rapidamente a perder) a sua funçã o de serva das nações, dos

Estados e das hierarquias de classe emergentes. Uma a uma, tais tarefas ou perderam a sua aplicação e relevância o u acaba ram por ser leva das a cabo através de ourros meios e usando instrumentos diferentes. Emancipadas das obrigações impostas aos criadores

e aos operadores culturais pela função inicialmente missionária e depois homeosrárica

dos seus esforços, as artes (no sentido extenso que, na era da intensa md1vidualização e da crescente esfera da "política da v1da ", acabou por incluir a arre da vida) são li­

vres de servir as preocupações individuais com a auro-idenri.ficaç-ão e a auto-asserção, que deslocam a questão da "pertença" do "ames" para o " depois" da~ escolhas in­

dividualmenre levadas a cabo. Podemos dizer que a cultura (e, mais conspicuamente, mas não de forma única, o seu mmo artístico) é, na sua fase liquida-modema, feita à medida da (voluntanamenre persegUida, ou obrigatonamente suportada) liberdade de escolha mdtvidrtal. E que se desti11a a servir essa IJberdade. E que se destina a assegu­

rar que essa escolha permanece i11evttáve/: uma necessidade vital e um dever. E que n responsabilidade, a companheira inalienável da liberdade de escolha, permanece onde

Page 6: Zygmunt Bauman - Cultura Aventuras Liquidas Modernas de Uma Ideia

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a w ndtção liqutda-moderna a fo rçou a permanecer: sobre os ombros do indivíduo, agora designa do o úntco gestor da "política da vida" .

Pode d izer-se que não se trata ::1pen::~s de uma mudança de paradigma; podfamos e devíamos fala_r, antes, de um "terramoto paradigmático". Se não fosse o facto de se ter movido para o ambiente liquido-moderno juntamente com as realidades a q ue se refena no passado sóltdo-m~emo, poder se ia dtzer que o termo " paradigma " se jun­tou à fanu1ia em ráptdo c rescimento d os (como dtria Ulrich Beck) "conceitos wmbte", ou (como Jacques Derrida preferiria) conceitos que precisam de ser usados sous rature - ou melhor, nem sequer usados. A modernidade Líquida é uma guerra permanente de erosão erguida contra qualquer tipo de paradigmas- na vcrdnde, contra qua lquer o utra conformidade homeostática- e mecanismos de promoção da ro tina, destinados n sustenta r a monotonia e repecirividade dos eventos. Isso diz. respeito ao conceito pa mthgmárico (dado pela modernidade sóhda) de culrura ta nto como à pró pria culrura (a soma total dos artefactos inrencionats, de fabrico humano) que aquele conceito

prerendta alcançar e tornar inteligível. lloje, a cultura consiste em ofertas, não em nom1as. Ta l como já notado por

Bourdieu (1979), a cultura vive pela sedução, não pela regulação normativa; pelas Relações Públicas, não pelo policiamento; pela criação de novas necessidades/ desejos/ vontades, não pela coerção. Esta nossa sociedade é uma soctedadc de consunudores e, ta l como o resto do mundo como é visto e vivido pelos consumidores, a cultura trans fo rma-se num arma7_ém de produtos destinados ao consumo - cada um dos quais lutando pela atenção van áveU itinera nte dos consumidores prospectivos na esperança de a a tra ir c prender durante um pouco mais do que um momento fugaz.. Abando nar padrões rígidos, ser indulgente face à ausência de padrões, servir todos os gostOs não privilegiando nenhum, encorajar a adequnção e a "flexibilidade" (nome po liticamente correcto da fr aqueza) e romantizar a instabilidade e a inconsrância é, portanto, a es­rrarégta "cena" (a úmca razoável?) a seguir. O escrúpulo, o erguer de sobrancelhas, o franzir dos lábios supen ores, não são recomendáveis. O revisor/ crínco televisivo do

mesmo órgão de marcação de padrão e estilo onde a apologia de Fry foi publicada elo­giou a transmissão da véspera de Ano Novo de 2007/08 por prometer " fo rnecer uma selecção de entretenimento musical que ga rante preencher o apetite de rodos" (French, 2007: 6). "O que~ bom" nisto, explicou, "é que o seu apelo universal significa que pode entrar e sair do espectáculo dependendo das suas preferências" (tdtm). Uma qua­ltdade recomendável c, na verdade, digna, numa sociedade onde as redes subsmuem as est ruturas enquanto o jogo de ligação/ desligamento e uma procissão infindável d e ltgações c desligamentos substiruem a "de terminação" e a "fixação".

A fase actual de transformação gradativa da ideia de "cul rura" da sua fo rma o riginalmente inspirada no Iluminismo pam a sua reincarnação líquida-modema é im­pelida e gerida pelas mesmas forças que promovem a emancipação dos mercados face aos constra ngimentos de narurez.a não económica remanescentes- os constrangimen­tos sociats, políticos e éucos, entre outros. Ao perseguir a sua pró pria emancipação, a ec.onornia líquida-moderna centrada no consumidor confia no excesso das ofertas, no seu envelhecimento acelerado e na disstpação rápida do seu poder de sedução - que, a

Zigmunl B•uman I Culwra: aveotums liquidas·modornas de unuo ideia

pro póstto, a tornam numa econornta da extravagância e do desperdício. Visto q ue não se pode saber antecipadamente que ofertas provarão ser suficientemente tentadoras pam estimular o desejo de consumo, a única fo rma de o descobri r procede por erros de experimentação caros. O fo rnecimento contínuo de novas o fertas e um volume constantemente c rescente dos bens oferecidos são também necessários pa ra manter a rap1dez. da circulação de bens e a constante revira lrz.ação do desejo de os substituir por bens "novos e melho rados"- assim como para evrta r que a insa tisfação do consumt do r fa ce a produros individuais se condense numa hostilidade geral face ao modo de

vida consumista enquanto tal.

Nota final A culrura está agora a tomar-se numa das secções da loja "rudo o que preci a

e sonha" cm que se to rnou o mundo habitado pelos consumido res. Tal como no utras

secções dessa loja, as pra teleiras encontram-se cheias de mercadorias diariamente re­postas, ao passo q ue os balcões estão ado rnados com os anúncios das últimas ofertas destinadas a desa parecer em breve juntamente com as atracções que anunciam. Tanto as mercadorias, como os anúncios são concebtdos para estimular desejos e desperta r vontades (como George Stetner famosamente o drsse - para "o máximo impacto e obsolescência instantânea"). Os seus vendedo res e criativos contam com o casamento do poder de sedução das ofenas com a arretgada "espertez.a" e o impulso para a "ob­tenção de vamagens" dos clientes prospcctivos. A culrura líquida-modema não tem "povos" para "cul t iva r". Tem, em vez disso, clientes para seduzir. E, ao contrário da sua predccessora "sólida modema", já não deseja ficar- evenrua lmcnre, mas quanto mais depressa, melhor- sem emprego. O seu trabalho é tornar a sua própria sobrevi­vência permanente- através da temporaJiz.ação de todos os aspectos da vida dos seus antigos eleitores, agora renascidos como chentes.

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