zizek_ a caminho de uma ruptura global

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outraspalavras.net http://outraspalavras.net/posts/zizekacaminhodeumarupturaglobal/ Slavoj Žižek Zizek: a caminho de uma ruptura global Brasília, junho de 2013 Chegada dos Protestos ao Brasil e Turquia revela: há malestar generalizado contra lógicas e ideologia do capitalismo. Desafio é construir alternativas e nova democracia Por Slavoj Žižek, no London Review of Books | Tradução Vila Vudu Em seus primeiros escritos, Marx descreve a situação na Alemanha como uma daquelas na qual a única resposta a problemas particulares seria a solução universal: a revolução global. É expressão condensada da diferença entre período reformista e período revolucionário: em período reformista, a revolução global permanece como sonho que, se serve para alguma coisa, é apenas para dar peso às tentativas para mudar alguma coisa localmente; em período revolucionário, vêse claramente que nada melhorará, sem mudança global radical. Nesse sentido puramente formal, 1990 foi ano revolucionário: as muitas reformas parciais nos estados comunistas jamais dariam conta do serviço; e era necessária uma quebra total, para resolver todos os problemas do dia a dia. Por exemplo, o problema de dar suficiente comida às pessoas. Em que ponto estamos hoje, quanto a essa diferença? Os problemas e protestos dos últimos anos são sinais de que se aproxima uma crise global, ou não passam de pequenos obstáculos que pode enfrentar mediante intervenções locais? O mais notável nas erupções é que estão acontecendo não apenas, nem basicamente, nos pontos fracos do sistema, mas em pontos que, até aqui, eram percebidos como histórias de sucesso. Sabemos por que as pessoas protestam na Grécia ou na Espanha; mas por que há confusão em países prósperos e em rápido desenvolvimento como Turquia, Suécia ou Brasil? Com algum distanciamento, podese ver que a revolução de Khomeini em 1979 foi o caso original de “dificuldades no paraíso”, dado que aconteceu em país que caminhava a passos largos para uma modernização próocidente, e era o mais estável aliado do ocidente na região. Antes da atual onda de protestos, a Turquia era quente: modelo ideal de estado estável, a combinar pujante economia liberal e islamismo moderado. Pronta para a Europa, um bemvindo contraste com a Grécia mais “europeia”, colhida num labirinto ideológico e andando rumo à autodestruição econômica. Sim, é verdade: aqui e ali sempre viamse alguns sinais péssimos (a Turquia, sempre a negar o holocausto dos armênios; prisão de jornalistas; o status não resolvido dos curdos; chamamentos a uma “grande Turquia” que ressuscitaria a tradição do Império Otomano; imposição, vez ou outra, de leis religiosas). Mas eram

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Zizek_ a Caminho de Uma Ruptura Global

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Page 1: Zizek_ a Caminho de Uma Ruptura Global

outraspalavras.net http://outraspalavras.net/posts/zizek­a­caminho­de­uma­ruptura­global/

Slavoj Žižek

Zizek: a caminho de uma ruptura global

Brasília, junho de 2013

Chegada dos Protestos ao Brasil e Turquia revela: há mal­estar generalizado contra lógicas e ideologia docapitalismo. Desafio é construir alternativas e nova democracia

Por Slavoj Žižek, no London Review of Books | Tradução Vila Vudu

Em seus primeiros escritos, Marx descreve a situação na Alemanha como uma daquelas na qual a únicaresposta a problemas particulares seria a solução universal: a revolução global. É expressão condensadada diferença entre período reformista e período revolucionário: em período reformista, a revolução globalpermanece como sonho que, se serve para alguma coisa, é apenas para dar peso às tentativas para mudaralguma coisa localmente; em período revolucionário, vê­se claramente que nada melhorará, sem mudançaglobal radical. Nesse sentido puramente formal, 1990 foi ano revolucionário: as muitas reformas parciaisnos estados comunistas jamais dariam conta do serviço; e era necessária uma quebra total, para resolvertodos os problemas do dia a dia. Por exemplo, o problema de dar suficiente comida às pessoas.

Em que ponto estamos hoje, quanto a essa diferença? Os problemas e protestos dos últimos anos sãosinais de que se aproxima uma crise global, ou não passam de pequenos obstáculos que pode enfrentarmediante intervenções locais? O mais notável nas erupções é que estão acontecendo não apenas, nembasicamente, nos pontos fracos do sistema, mas em pontos que, até aqui, eram percebidos como históriasde sucesso. Sabemos por que as pessoas protestam na Grécia ou na Espanha; mas por que há confusãoem países prósperos e em rápido desenvolvimento como Turquia, Suécia ou Brasil?

Com algum distanciamento, pode­se ver que a revolução de Khomeini em 1979 foi o caso original de“dificuldades no paraíso”, dado que aconteceu em país que caminhava a passos largos para umamodernização pró­ocidente, e era o mais estável aliado do ocidente na região.

Antes da atual onda de protestos, a Turquia era quente: modelo ideal de estado estável, a combinar pujanteeconomia liberal e islamismo moderado. Pronta para a Europa, um bem­vindo contraste com a Grécia mais“europeia”, colhida num labirinto ideológico e andando rumo à autodestruição econômica. Sim, é verdade:aqui e ali sempre viam­se alguns sinais péssimos (a Turquia, sempre a negar o holocausto dos armênios;prisão de jornalistas; o status não resolvido dos curdos; chamamentos a uma “grande Turquia” queressuscitaria a tradição do Império Otomano; imposição, vez ou outra, de leis religiosas). Mas eram

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descartados como pequenas máculas que não comprometeriam o grande quadro.

E então, explodiram os protestos na praça Taksim.Não há quem não saiba que os planos paratransformar um parque em torno da praça Taksimno centro de Istambul em shopping­center nãoforam “o caso”, naqueles protestos; e que um mal­estar muito mais profundo ganhava força. Omesmo se deve dizer dos protestos de meados dejunho no Brasil: foram desencadeados por umpequeno aumento na tarifa do transporte público, eprosseguiram mesmo depois de o aumento tersido revogado. Também nesse caso, os protestosexplodiram num país que – pelo menos segundo amídia – estava em pleno boom econômico e comtodos os motivos para sentir­se confiante quantoao futuro. Nesse caso, os protestos foram aparentemente apoiados pela presidente Dilma Rousseff, que sedeclarou satisfeitíssima com eles.

O que une protestos em todo o mundo — por mais diversos que sejam, na aparência — é que todosreagem contra diferentes facetas da globalização capitalista

É crucialmente importante não vermos os protestos turcos meramente como sociedade civil secular que selevanta contra regime islamista autoritário, apoiado por uma maioria islamista silenciosa. O que complica oquadro é o ímpeto anticapitalista dos protestos. Os que protestam sentem intuitivamente que ofundamentalismo de mercado e o fundamentalismo islâmico não se excluem mutuamente.

A privatização do espaço público por ação de um governo islamista mostra que as duas modalidades defundamentalismo podem trabalhar de mãos dadas. É sinal claro de que o casamento “por toda aeternidade” de democracia e capitalismo já caminha para o divórcio.

Também é importante reconhecer que os que protestam não visam a nenhum objetivo “real” identificável.Os protestos não são, “realmente”, contra o capitalismo global, nem “realmente” contra o fundamentalismoreligioso, nem “realmente” a favor de liberdades civis e democracia, nem visam “realmente” qualquer outracoisa específica. O que a maioria dos que participaram dos protestos “sabem” é de um mal­estar, de umdescontentamento fluido, que sustenta e une várias demandas específicas.

A luta para entender os protestos não é luta só epistemológica, com jornalistas e teóricos tentando explicarseu “real” conteúdo: é também luta ontológica pela própria coisa, o que esteja acontecendo dentro dospróprios protestos. É apenas luta contra governo corrupto? É luta contra governo islâmico autoritário? É lutacontra a privatização do espaço público? A pergunta continua aberta. E de como seja respondidadependerá o resultado de um processo político em andamento.

Em 2011, quando irrompiam protestos por toda a Europa e todo o Oriente Médio, muitos insistiram que nãofossem tratados como instâncias de um único movimento global. Em vez disso, argumentavam, haveriauma resposta específica para cada situação específica. No Egito, os que protestavam queriam o que emoutros países era alvo das críticas do movimento Occupy: “liberdade” e “democracia”. Mesmo entre paísesmuçulmanos, haveria diferenças cruciais: a Primavera Árabe no Egito seria contra um regime autoritário ecorrupto aliado do ocidente; a Revolução Verde no Irã, que começou em 2009, seria contra o islamismoautoritário. É fácil ver o quanto essa particularização dos protestos serve bem aos defensores do status

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quo: não há nenhuma ameaça direta à ordem global como tal. Só uma série de problemas locaisseparados…

O capitalismo global é processo complexo que afeta diferentes países de diferentes modos. O que unetodos os protestos, por mais multifacetados que sejam, é que todos reagem contra diferentes facetas daglobalização capitalista. A tendência geral do capitalismo global é hoje expandir o mercado, invadir e cercaro espaço público, reduzir os serviços públicos (saúde, educação, cultura) e impor cada vez mais firmementeum poder político autoritário. Nesse contexto, os gregos protestam contra o governo do capital financeirointernacional e contra seu próprio estado ineficiente e corrupto, cada dia menos capaz de prover os serviçossociais básicos. Nesse contexto, os turcos protestam contra a comercialização do espaço público e contra oautoritarismo religioso. E os egípcios protestam contra um governo apoiado pelas potências ocidentais. Eos iranianos protestam contra a corrupção e o fundamentalismo religioso. E assim por diante.

Nenhum desses protestos pode ser reduzido a uma única questão. Todos lidam com uma específicacombinação de pelo menos dois problemas, um econômico (da corrupção à ineficiência do própriocapitalismo); o outro, político­ideológico (da demanda por democracia à demanda pelo fim da democraciaconvencional multipartidária). O mesmo se aplica ao movimento Occupy. Na profusão de declarações(muitas vezes confusas), o movimento manteve dois traços básicos: primeiro, o descontentamento com ocapitalismo como sistema, não apenas contra um ou outro corrupto ou corrupções locais; segundo, aconsciência de que a forma institucionalizada de democracia multipartidária não tem meios para combateros excessos capitalistas. Em outras palavras, é preciso reinventar a democracia.

A causa subjacente dos protestos ser o capitalismoglobal não significa que a única solução seja “derrubar”o capitalismo. Nem é viável seguir a alternativapragmática, que implica lidar com problemas individuaisenquanto se espera por transformação radical. Essaideia ignora o fato de que o capitalismo global énecessariamente contraditório e inconsistente: aliberdade de mercado anda de mãos dadas com os EUAprotegerem seus próprios agronegócios eagronegociantes; pregar a democracia anda de mãosdadas com apoiar o governo da Arábia Saudita.

Essa inconsistência abre um espaço para a intervençãopolítica: onde o capitalista global é forçado a violar suaspróprias regras, ali há uma oportunidade para insistir em que ele obedeça àquelas regras. Exigir coerênciae consistência em pontos estrategicamente selecionados nos quais o sistema não pode pagar para sercoerente e consistente é pressionar todo o sistema. A arte da política está em impor demandas específicasas quais, ao mesmo tempo em que são perfeitamente realistas, ferem o coração da ideologia hegemônica eimplicam mudança muito mais radical. Essas demandas, por mais que sejam viáveis e legítimas, são, defato, impossíveis. Caso exemplar é a proposta de Obama para prover assistência pública universal à saúde.Por isso as reações foram tão violentas.

Um movimento político começa com uma ideia, algo por que lutar, mas, no tempo, a ideia passa portransformação profunda – não apenas alguma acomodação tática, mas uma redefinição essencial –, porquea própria ideia passa a ser parte do processo: torna­se sobredeterminada. * Digamos que uma revoltacomece com uma demanda por justiça, talvez sob a forma de demanda pela rejeição de uma determinadalei. Depois de o povo estar profundamente engajado na revolta, ele percebe que será preciso muito mais doque a demanda inicial, para que haja verdadeira justiça. O problema então é definir, precisamente, em queconsiste esse “muito mais”.

A perspectiva liberal­pragmática entende que os problemas podem ser resolvidos gradualmente, um a um:

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“Há gente morrendo agora em Rwanda, então esqueçam a luta anti­imperialista e vamos impedir omassacre”. Ou: “Temos de combater a pobreza e o racismo já, aqui e agora, não esperar pelo colapso daordem capitalista global”. John Caputo argumenta exatamente assim em After the Death of God (2007):

Eu ficaria perfeitamente feliz se os políticos da extrema­esquerda nos EUA fossem capazes de reformar osistema oferecendo assistência universal à saúde, redistribuindo efetivamente a riqueza maisequitativamente com um sistema tributário [orig. Internal Revenue Code (IRC)] redefinido, restringindo ofinanciamento privado de campanhas eleitorais, autorizando o voto universal, para todos, tratando comhumanidade os trabalhadores migrantes, e levando a efeito uma política externa multilateralista queintegrasse o poder dos EUA dentro da comunidade internacional etc. Ou seja, intervindo sobre o capitalismomediante reformas profundas, de longo alcance… Se depois de fazer tudo isso, Badiou e Žižek aindareclamarem de um monstro chamado Capitalismo a nos assombrar, eu estaria inclinado a receber o talmonstro com um bocejo.

Não se trata de “derrubar” o capitalismo. Mas de construir lógicasde uma sociedade que vá além dele. Isso inclui novas formas de democracia

O problema aqui não é a conclusão de Caputo: se se pode alcançar tudo isso dentro do capitalismo, porque não ficar aí mesmo? O problema é a premissa subjacente de que seja possível obter tudo isso dentrodo capitalismo global em sua forma atual. Mas e se os emperramentos e mau funcionamento docapitalismo, que Caputo listou, não forem meras perturbações contingentes, mas necessários porestrutura? E se o sonho de Caputo é um sonho de ordem capitalista universal, sem sintomas, sem ospontos críticos nos quais sua “verdade reprimida” mostra a própria cara?

Os protestos e revoltas de hoje são sustentados pela combinação de demandas sobrepostas, e é aí queestá a sua força: lutam por democracia (“normal”, parlamentar) contra regimes autoritários; contra o racismoe o sexismo, especialmente quando dirigidos contra imigrantes e refugiados; contra a corrupção na políticae nos negócios (poluição industrial do meio ambiente etc.); pelo estado de bem­estar contra oneoliberalismo; e por novas formas de democracia que avancem além dos rituais multipartidários.Questionam também o sistema capitalista global como tal, e tentam manter viva a ideia de uma sociedadeque avance além do capitalismo.

Duas armadilhas há aí, a serem evitadas: o falso radicalismo (“o que realmente interessa é abolir ocapitalismo liberal­parlamentar; todas as demais lutas são secundárias”), mas, também, o falso gradualismo(“no momentos temos de lutar contra a ditadura militar e por democracia básica, todos os sonhos desocialismo devem ser, agora, postos de lado”).

Aqui, ninguém se deve envergonhar de acionar a distinção maoista entre antagonismo principal eantagonismos secundários, entre os que mais interessam no fim e os que dominam hoje. Há situações nasquais insistir no antagonismo principal significa perder a oportunidade de acertar golpe significativo, nocurso da luta.

Só uma política que tome plenamente em consideração a complexidade da sobredeterminação merece onome de estratégia. Quando se embarca numa luta específica, a pergunta chave é: como nossoengajamento ou desengajamento nessa luta afeta outras lutas?

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Praça Tahrir, Egito 2011

A regra geral é que quando uma revolta contra regime semidemocrático começa – como no Oriente Médioem 2011 – é fácil mobilizar grandes multidões com slogans (por democracia, contra a corrupção etc.). Masmuito rapidamente temos de enfrentar escolhas muito mais difíceis. Quando a revolta é bem­sucedida ealcança o objetivo inicial, nos damos conta de que o que realmente nos perturbava (a falta de liberdade, ahumilhação diária, a corrupção, o futuro pouco ou nenhum) persiste sob novo disfarce. Nesse momentosomos forçados a ver que havia furos no próprio objetivo inicial. Pode implicar que se chegue a ver que ademocracia pode ser uma forma de des­liberdade, ou que se pode exigir muito mais do que apenas a merademocracia política: que a vida social e econômica tem de ser também democratizada.

Em resumo, o que à primeira vista tomamos como fracasso que só atingia um nobre princípio (a liberdadedemocrática) é afinal percebido como fracasso inerente ao próprio princípio. Essa descoberta – de que oprincípio pelo qual lutamos pode ser inerentemente viciado – é um grande passo em qualquer educaçãopolítica.

Representantes da ideologia reinante mobilizam todo o seu arsenal para impedir que cheguemos a essaconclusão radical. Dizem­nos que a liberdade democrática implica suas próprias responsabilidades, quetem um preço, que é sinal de imaturidade esperar demais da democracia. Numa sociedade livre, dizemeles, devemos agir como capitalistas e investir em nossa própria vida: se fracassarmos, se nãoconseguirmos fazer os necessários sacrifícios, ou se de algum modo não correspondermos, a culpa énossa.

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Istambul, maio de 2013

Em sentido político mais direto, os EUA perseguem coerentemente uma estratégia de controle de danos emsua política externa, recanalizando os levantes populares para formas capitalistas­parlamentares aceitáveis:na África do Sul, depois do apartheid; nas Filipinas, depois da queda de Marcos; na Indonésia, depois deSuharto etc. É nesse ponto que a política propriamente dita começa: a questão é como empurrar aindamais adiante, depois que passa a primeira, excitante, onda de mudança; como dar o passo seguinte, semsucumbir à tentação “totalitária”; como avançar além de Mandela, sem virar Mugabe.

O que significaria isso, num caso concreto? Comparemos dois países vizinhos, Grécia e Turquia. À primeiravista, talvez pareçam completamente diferentes: Grécia, presa na armadilha da ruinosa política deausteridade; Turquia em pleno boom econômico e emergindo como nova superpotência regional. Mas e secada Turquia contiver sua própria Grécia, suas próprias ilhas de miséria? Como Brecht diz em sua ElegiasHollywoodenses (orig. Hollywood Elegies’ [1942]),

A vila de Hollywood foi planejada segundo a ideiaDe que o povo aqui seria proprietário de partes do paraíso. Ali,Chegaram à conclusão de que DeusEmbora precisando de céu e inferno, não precisavaPlanejar dois estabelecimentos, masSó um: o paraíso. Que esse,para os pobres e infortunados, funcionacomo inferno.[1]

Esses versos descrevem bastante bem a “aldeia global” de hoje: aplicam­se ao Qatar ouDubai, playgrounds para os ricos, que dependem de manter os trabalhadores imigrantes em estado desemiescravidão, ou escravidão. Exame mais detido revela semelhanças entre Turquia e Grécia:privatizações, o fechamento do espaço público, o desmonte dos serviços sociais, a ascensão de políticosautoritários. Num plano elementar, os que protestam na Grécia e os que protestam na Turquia estãoengajados na mesma luta. O melhor caminho talvez seja coordenar as duas lutas, rejeitar as tentações“patrióticas”, deixar para trás a inimizade histórica entre os dois países e buscar espaços de solidariedade.O futuro dos protestos talvez dependa disso.

* Em seu prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política, Marx escreveu (no seu pior modoevolucional) que a humanidade só se propõe problemas que seja capaz de resolver. E se invertermos aganga dessa frase e declararmos que, regra geral, a humanidade propõe­se problemas que não pode

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resolver, e assim dispara um processo cujo desdobramento é imprevisível, no curso do qual, a própriatarefa é redefinida?

[1] Não encontramos tradução para o português. Aqui, tradução de trabalho, sem ambição literária, só paraajudar a ler [NTs].