zika e microcefalia-fato_ou_ficcao_científica

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Interpretação de evidências científicas com foco especial da área cardiovascular e discussão de conceitos referentes a metodologia científica. Medicina Baseada em Evidências segunda-feira, 21 de dezembro de 2015 Zika e Microcefalia: Fato ou Ficção Científica? Diferentemente do que o título expressa, este texto não é primariamente sobre Zika, nem sobre microcefalia. Falarei todo o tempo sobre isso, mas o verdadeiro assunto é outro, mais genérico. O tema desta postagem é sobre miopia científica ou arrogância epistêmica. Estes, sim, seriam títulos mais representativos da ideia. O crescimento no Brasil da incidência de Zika e aparentemente de microcefalia constituem uma interessante história de geração de hipótese: Zika causa microcefalia. Se bem aproveitada, dará bons frutos científicos. Por outro lado, a forma como esta hipótese científica foi transformada em fato nas publicações da imprensa leiga, respaldadas por especialistas, ganhou ares de ficção científica. Ficção científica um termo pertinente e paradoxal. Paradoxal, pois o que é ciência não é ficção; pertinente pois este paradoxo é bastante prevalente. Este representa um caso caricatural da violação do princípio científico da hipótese nula. São casos como estes que Nassim Taleb, cientista da incerteza na Universidade de Massachussets, denomina de arrogância epistêmica. Este é um fenômeno comum da mente humana que, por questões evolutivas, tende a subestimar a incerteza presente em hipóteses. Isto fica mais evidente quando percebemos que, ao longo das últimas semanas, a força de convicção das afirmações a favor da relação causal entre Zika e microcefalia cresceu exponencialmente, a despeito da ausência de evidências reais. É o fenômeno da manada, quanto mais se fala mais a história ganha ares de fato, sem que haja qualquer associação entre o crescimento da convicção e o aumento do nível de evidência. São inúmeras as reportagens impressas e televisivas. Não coloco jornalistas como meros criadores de fatos, pois estes acompanham afirmações de profissionais que tem (suposta) autoridade para falar no assunto. Um médico no Fantástico recomendou às mulheres de 30 anos (que teoricamente possuem mais tempo) a não engravidar, enquanto as de 40 anos fazê-lo, desde que cuidadosamente. Em paralelo, a Revista Veja diz: “A relação entre Zika e microcefalia fetal está 100% comprovada”. E justifica sua afirmação: “O Ministério da Saúde confirmou o fato após detectar o vírus em um bebê com microcefalia que foi a óbito”. Há também aqueles que reconhecem a necessidade de comprovação definitiva, porém falam com a conotação de fato. Dizem que “tudo indica”, ao passo em que recomendam “medidas de prevenção” (são medidas mesmo?). Estes aparentam preservar o princípio da hipótese nula, porém fazem o contrário. Utilizam deste princípio para gerar uma aparência cientifica de mais credibilidade, sem perceber que já rejeitaram a hipótese nula quando fazem o mundo se comportar como se a causalidade estivesse estabelecida. Precisamos refletir quais os danos versus as vantagens da rejeição precipitada da hipótese nula. Por que será que, em geral, o pensamento científico considera que o erro tipo I (afirmar algo falso - toleramos 5% deste erro) é cientificamente mais grave do que o erro tipo II (não afirmar algo verdadeiro - toleramos um risco de 20% deste erro). Esta é uma válida reflexão para este momento. Considerando que o adequado combate à Zika deve ocorrer independentemente da criação de fatos pseudo-científicos, precisamos refletir se esta miopia científica traz (individual e culturalmente) mais benefícios ou prejuízos. A miopia científica fica evidente quando observamos a grande lacuna entre o pensamento humano cotidiano e a forma científica de raciocinar. 39 Seguir por E-mail Email address... Subm Para assistir à nossa série de vídeos, clique no link medicinabaseadaemevidencias.com Nossos Vídeos Luis Cláudio Correia Professor Livre Docente em Cardiologia Doutor em Medicina e Saúde; Professor Adjunto da Escola Bahiana de Medicina; Coordenador de Pesquisa do Hospital São Rafael. Visualizar meu perfil completo Quem sou eu Currículo Lattes Currículo Para acompanhar nossos comentários curtos sobre evidência científicas correntes, siga-nos no twitter @LuisCLCorreia Twitter Selecione o idioma Selecione o idioma Translate 1. Análise estatística de trabalhos científicos 2. Curso de medicina baseada em evidências 3. Curso de bioestatística aplicada ao SPSS Contato: [email protected] Serviços Científicos 2015 (24) Dezembro (1) Zika e Microcefalia: Fato ou Ficção Científica? Novembro (2) Outubro (2) Setembro (1) Agosto (4) Julho (4) Junho (1) Maio (1) Abril (3) Março (1) Arquivo do blog mais Próximo blog» [email protected] Paine

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Interpretação de evidências científicas com foco especial da área cardiovascular e discussão de conceitos referentes a metodologia científica.

Medicina Baseada em Evidências

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Zika e Microcefalia: Fato ou Ficção Científica?

Diferentemente do que o título expressa, este texto não é primariamente sobre Zika, nem sobre microcefalia. Falarei todoo tempo sobre isso, mas o verdadeiro assunto é outro, mais genérico. O tema desta postagem é sobre miopia científicaou arrogância epistêmica. Estes, sim, seriam títulos mais representativos da ideia.

O crescimento no Brasil da incidência de Zika e aparentemente de microcefalia constituem uma interessante história degeração de hipótese: Zika causa microcefalia. Se bem aproveitada, dará bons frutos científicos. Por outro lado, a formacomo esta hipótese científica foi transformada em fato nas publicações da imprensa leiga, respaldadas por especialistas,ganhou ares de ficção científica.

Ficção científica um termo pertinente e paradoxal. Paradoxal, pois o que é ciência não é ficção; pertinente pois esteparadoxo é bastante prevalente.

Este representa um caso caricatural da violação do princípio científico da hipótese nula. São casos como estes queNassim Taleb, cientista da incerteza na Universidade de Massachussets, denomina de arrogância epistêmica. Este é umfenômeno comum da mente humana que, por questões evolutivas, tende a subestimar a incerteza presente em hipóteses.

Isto fica mais evidente quando percebemos que, ao longo das últimas semanas, a força de convicção das afirmações afavor da relação causal entre Zika e microcefalia cresceu exponencialmente, a despeito da ausência de evidências reais.É o fenômeno da manada, quanto mais se fala mais a história ganha ares de fato, sem que haja qualquer associaçãoentre o crescimento da convicção e o aumento do nível de evidência.

São inúmeras as reportagens impressas e televisivas. Não coloco jornalistas como meros criadores de fatos, pois estesacompanham afirmações de profissionais que tem (suposta) autoridade para falar no assunto.

Um médico no Fantástico recomendou às mulheres de 30 anos (que teoricamente possuem mais tempo) a nãoengravidar, enquanto as de 40 anos fazê-lo, desde que cuidadosamente. Em paralelo, a Revista Veja diz: “A relação entreZika e microcefalia fetal está 100% comprovada”. E justifica sua afirmação: “O Ministério da Saúde confirmou o fato apósdetectar o vírus em um bebê com microcefalia que foi a óbito”.

Há também aqueles que reconhecem a necessidade de comprovação definitiva, porém falam com a conotação de fato.Dizem que “tudo indica”, ao passo em que recomendam “medidas de prevenção” (são medidas mesmo?). Estesaparentam preservar o princípio da hipótese nula, porém fazem o contrário. Utilizam deste princípio para gerar umaaparência cientifica de mais credibilidade, sem perceber que já rejeitaram a hipótese nula quando fazem o mundo secomportar como se a causalidade estivesse estabelecida.

Precisamos refletir quais os danos versus as vantagens da rejeição precipitada da hipótese nula. Por que será que, emgeral, o pensamento científico considera que o erro tipo I (afirmar algo falso - toleramos 5% deste erro) é cientificamentemais grave do que o erro tipo II (não afirmar algo verdadeiro - toleramos um risco de 20% deste erro). Esta é uma válidareflexão para este momento.

Considerando que o adequado combate à Zika deve ocorrer independentemente da criação de fatos pseudo-científicos,precisamos refletir se esta miopia científica traz (individual e culturalmente) mais benefícios ou prejuízos. A miopiacientífica fica evidente quando observamos a grande lacuna entre o pensamento humano cotidiano e a forma científica deraciocinar.

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De fato, alguns acham que ciência é uma coisa, vida prática é outra. Em artigo na Folha de São Paulo, após afirmar que“não tenho dúvida do elo entre Zika e Microcefalia”, o diretor da OPAS diz: “alguns cientistas acreditam que é preciso maisprovas, mas como profissional de saúde não tenho dúvida”. Observem que a frase propõe uma lacuna entre ciência evida prática. Isto mostra que alguns não entendem bem que ciência nada mais é do que a forma mais honesta de retratara natureza. Digo honesta, pois o método científico não serve para criar conhecimento. Serve para descrever o mundo,prevenindo-se contra fenômenos cientificamente reconhecidos: vieses cognitivos, vieses de observação e efeito doacaso.

Nosso problema é que, na história da humanidade, só muito recentemente o pensar científico contribui para nossasobrevivência individual. Mas quanto à sobrevivência da espécie, ainda não deu tempo do pensar contribuirsuficientemente. A nossa seleção natural se deu não pela capacidade de pensar, mas pela capacidade de correr. Talvezos que pensaram morreram mais (pois corriam menos). Por este motivo, ser cético e questionador não é nosso estadonatural, precisamos nos condicionar ao paradigma científico.

Karl Popper, o maior filósofo científico do século passado, propôs que a comprovação de uma hipótese deve passar peloprocesso de tentar refutá-la. Devemos começar acreditando na nulidade e mudarmos de ideia quando a evidência a favordo fenômeno ultrapassar um limiar inferior de dúvida.

O caso Zika e microcefalia mostra que ainda não entendemos o que Popper propôs. Ainda não entendemos o papel dahipótese nula. Assim, a miopia científica prevalece, com seus diversos componentes a serem descritos abaixo.

Miopia da Incerteza

Na miopia da incerteza, não percebemos o quanto incertas são coisas que “fazem sentido”. Somos apaixonadas pornossa lógica, sem perceber que esta serve para dar plausibilidade às hipóteses, não para gerar fatos (exceto naplausibilidade extrema).

Estamos repletos de exemplos em medicina de hipóteses que faziam todo sentido, porém funcionaram ao contrário. Sãoestas mesmas hipóteses que geram reação emocional neste Blog, quando mostramos evidências contrárias a crençaslógicas, porém incertas. Achamos que podemos acreditar, desde que tenhamos alguma forma de explicar.

Faz sentido de que Zika seja a responsável pelo suposto aumento de microcefalia, por três motivos: certos vírus podemalterar a embriogênese do sistema nervoso no primeiro trimestre; Zika está em crescimento; microcefalia está emcrescimento. Dadas estas premissas, as pessoas concluem que Zika causa microcefalia, sem perceberem que fazersentido não é o mesmo que ser um fato. Os especialistas que fazem afirmações certas ou quasi-certas deste pseudo-fato não percebem o grau de incerteza presente na hipótese.

Miopia de Hipóteses

Este é um viés cognitivo causado pela análise retrospectiva da história dos descobrimentos científicos. Explicarei.

Retrospectivamente, o mundo ganha um aspecto platônico, parecendo que tudo fazia muito sentido antes dacomprovação. Mas, este mundo funciona de outra forma. Na verdade, para cada explicação comprovada com base emevidências, existiram inúmeras hipóteses, e nem sempre a que parecia mais lógica foi a que venceu. As hipóteses queperderam ganham o status de silenciosas, não nos lembraremos delas, ficando apenas a hipótese vencedora como parteda narração da história. Assim, parece que um descobrimento foi feito por uma hipótese gerada, testada e comprovada.Um mundo platônico, uni-hipotético.

Na verdade, para cada descoberta, há inúmeras hipóteses que perderam, dentre as quais usualmente está a maisprovável das hipóteses. E normalmente, a hipótese favorita tem menor probabilidade de perder do que de ganhar. Ser amais provável, não quer dizer ser muito provável.

Modelos estatísticos multifatoriais previam que a seleção brasileira era a favorita para ganhar a copa do mundo de 2014,porém a probabilidade calculada era menor que 50%. Embora fosse a favorita, era mais provável que perdesse.Simplesmente porque haviam muitas hipóteses (seleções) concorrendo.

Esta falta de entendimento faz com que as pessoas superestimem a probabilidade da Zika ser a explicação, a ponto dejulgar isso como algo confirmado ou fortemente sugestivo.

Observem o vencedor de uma maratona olímpica. Diferente dos 100 metros rasos, este tipo de prova tem o resultadoinfluenciado por um processo mais complexo. É quase imprevisível saber quem vai ganhar, na realidade todos tem quasea mesma probabilidade. Por outro lado, depois do término da corrida, o vencedor ganha o título de ser o melhor e passa afazer muito sentido ele ter sido o vencedor. Encontramos sempre explicações, talento, treinamento, etc. Depois doresultado, nossa mente superestima a probabilidade prévia daquele resultado. A isso se chama falácia narrativa, quandoqualquer evento importante ganha uma explicação óbvia depois de ocorrido.

Pessoalmente, se fosse para apostar, eu colocaria meu dinheiro na Zika. Mas não colocaria muito dinheiro, pois mesmosendo a escolhida como mais provável, a probabilidade de Zika ganhar é pequena.

Ser a mais provável, não quer dizer ser muito provável.

Miopia Epidemiológica

Esta é caracterizada por confundirmos os conceitos básicos de coexistência e associação.

O termo “associação” (ou relação) é o mais utilizado nas notícias sobre zika e microcefalia. No entanto, tem sido utilizadode forma equivocada e rudimentar. Inúmeros especialistas e jornalistas mencionam associação, porém na verdade esteexemplo é de coexistência. Até então não presenciei qualquer relato sobre associação, nem mesmo uma menção decuriosidade a respeito.

“Uma mãe cujo filho nasceu com microcefalia pode ter tido Zika no primeiro trimestre”. Ou: “identificaram o vírus em doiscasos que nasceram com microcefalia”. Isso não é associação, pois falta o outro lado da história, a evidência silenciosa.O lado silencioso da história são os casos de normocefalia com história de Zika e os casos de microcefalia sem históriade Zika.

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Qual a proporção de Zika na gravidez de casos de microcefalia, comparada à proporção de Zika na gravidez de criançasque nasceram normais? Se não há dados ainda, deste que seria um estudo caso-controle, pelo menos olhemos a nossavolta e perceberemos que devem ser muitos os casos de normocefalia que tiveram Zika. Precisamos valorizar mais adúvida.

É total miopia epidemiológica falar em associação. Mas mesmo se a associação fosse comprovada, esta seria apenas oprimeiro passo na demonstração de causalidade. Há muitas associações verdadeiras, porém não causais. Observem aassociação abaixo descrita, publicada no New England Journal of Medicine. Será que é causal?

Outros falam em associação temporal. É mais uma miopia epidemiológica, pois sabemos que associação temporal é uma grandefalácia. Coisas podem crescer ou decrescer juntas, sem que haja qualquer relação causal. Ao longo do tempo uma criança fica maiorem altura e ao mesmo tempo sua habilidade de leitura aumenta. Isso quer dizer que quanto mais alta uma pessoa, maior a habilidadecom línguas?

O livro Spurious Correlation nos traz interessantes exemplos da falácia da associação temporal.

Portanto, não podemos falar em associação, quanto mais em causalidade. Ainda estamos muito longe do que poderia serconsiderado algo provável. Ainda estamos muito longe do limite de rejeição da hipótese nula. Muito longe do que poderiaser considerado algo provável.

Miopia Estatística

Essa é a mais banal das miopias, a qual decorre da falta de percepção de que precisamos de um denominador paraquantificar o risco dos desfechos. Este denominador não tem sido apresentado nos depoimentos dos médicos oureportagens da imprensa.

Fala-se em um crescimento grande do número de registros de microcefalia, de 30 casos para 1.200 casos em 3 meses.Isto é bastante assustador e o número que passa dos milhares traz a conotação de um grande risco. As grávidas entramem pânico quando se fala em 1.200 casos. No entanto, risco é uma probabilidade, advinda do total de desfechos divididopelo total de pessoas vulneráveis ao desfecho. Desta forma, dividindo-se 1.200 pelo número médio de nascidos-vivos emum período de 3 meses (em torno de 600.000), chegamos a um risco de 0.19% de uma criança nascer com microcefalia

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nestes últimos meses, dada todas as possíveis causas, não apenas Zika. Se considerarmos o cenário otimista de quemetade destes casos decorrem de Zika, diremos que 0.095% é o risco de microcefalia por Zika. Isto justifica pânico?

A miopia estatística (básica) faz com que médicos recomendem no Fantástico que mulheres deixem de engravidar. Estesse esquecem que o conjunto de outras possíveis infecções que causam sequelas em bebês ultrapassa em muito o riscode microcefalia por Zika, se este risco for verdadeiro. Segundo meus consultores obstétricos: citomegalovírus 2.6% deincidência de infecção, toxoplasmose 1.6%, sífilis 0.5%, herpes 0.2%, só para falar alguns. E 40-50% dos fetos afetadospor estas infecções apresentam sequelas.

Por que só agora recomendamos não engravidar? Ou colocado de outra forma: o número (com denominador) justifica opânico?

O que Kant diria?

Percepção = sentidos + inconsciente.

Segundo Kant, a interpretação que damos ao que vemos é involuntária e incontrolavelmente influenciada peloinconsciente. Sua filosofia foi mais tarde confirmada por psicólogos cognitivos. Na postagem Ensaio sobre a Cegueira,discutimos como seria importante que a interpretação de métodos de imagem ou do exame físico fosse cega em relaçãoà probabilidade pré-teste, ou seja, ao quadro clínico ou epidemiológico.

Ao se deparar com a atual epidemia de microcefalia, Kant se perguntaria se o aumento do número de casos poderiadecorrer de um problema de percepção influenciado pelo cognitivo de pessoas já influenciadas pelo modismo.

Talvez esse raciocínio pareça demasiadamente cético quando sugerimos a não existência do problema. Por outro lado,este mesmo raciocínio se torna demasiadamente plausível quando pensamos na possibilidade de superestimativa doproblema.

Não há dúvida que a mente dos diagnosticadores de microcefalia está enviesada involuntariamente pelo modismo, o queimplica em uma noção de probabilidade pré-teste aumentada. Para agravar, encontramos o conforto cognitivo, que seapresenta quando se torna mais confortável laudar de acordo com o mundo externo do que de forma independente. Istofaz com que médicos prefiram ampliar sua sensibilidade, em detrimento da especificidade. Isto pode gerar umabanalização dos diagnósticos.

Como cardiologista, sei o quanto pode ser subjetivo laudar uma disfunção sistólica do ventrículo esquerdo ou calcularuma fração de ejeção, número mágico para quem não passa pelo processo de quantificação. Porém nada entendo deobstetrícia ou ultrassom obstétrico. Por isso, perguntei a especialistas de mente científica e a resposta foi semelhante aoque vivencio na ecocardiografia. Há subjetividade em muitos casos. Na dúvida, de que forma se comportam osdiagnosticadores neste momento particular de modismo? E como se comportavam antes?

Pouco se falava do problema, portanto a sensibilidade dos médicos não estava voltada para isso. Hoje, a principal ideiaque está na mente de um ultrassonografista (e da coitada da grávida) antes do exame é se há sinais de microcefalia.

No sistema público de saúde, provavelmente menos grávidas faziam ultrassom. Hoje vemos mutirões de ultrassom. E osmédicos que fazem os exames estão muito mais atentos. Isso tudo indica que é muito plausível acreditar que no passadohavia subnotificação.

Desta forma, há plausível subnotificação do passado e supernotificação do presente. Quantitativamente, parte doproblema é criada por isso. Pelo menos parte do problema.

Reflexões Finais

Até o momento, tivemos acesso a apenas relatos de coexistência Zika-microcefalia publicados pela imprensa leiga, quedesconsideram o lado silencioso das evidências. Ainda não dispomos de publicações em revistas científicas, aquelas queseguem um rigor na descrição dos métodos e resultados da pesquisa, passando pelo crivo da revisão por pares.

Tais artigos surgirão em revistas científicas. Como todo estudo, estes deverão passar pelo crivo da análise do nível deevidências. Mas, devemos estar atentos para a particularidade maior desta questão cientifica: a hipótese nula foiprecipitadamente rejeitada, abrindo guarda aos vieses de confirmação e publicação.

Nassim Taleb aborda bem o problema dos especialistas em seu livro A Lógica do Cisne Negro. Especialistas deatividades que lidam com incerteza sofrem do problema da auto-ilusão. É por este motivo que comentaristas políticoserram muito mais do que modelos estatísticos de previsão de eleições. A arrogância epistêmica obstrui a habilidadepreditiva de especialistas e suas ideias se tornam pegajosas. Depois de criadas, fica pouco provável de mudar. É ofenômeno de perseverança da crença, quando as ideias são tratadas como propriedades pessoais, da qual nãoqueremos nos desfazer. É quando muitos convictos pesquisadores tendem a procurar confirmação de suas ideias a todocusto, vibrando quanto encontram resultados positivos, mesmo que à custa de P-value hacking, problema das múltiplascomparações ou vies de publicação.

Entre a ausência de evidencias sobre uma questão (estado atual) e a resposta definitiva, normalmente existe uma lacunarepleta de estudos pequenos, de qualidade mediana, cuja divulgação é regida pelo viés de publicação de evidênciaspositivas. Isto estenderá o obscurantismo científico, até que em algum momento saberemos a verdade.

No mundo em que a hipótese nula foi violada, é indispensável que os diagnósticos Zika e microcefalia sejam feitos deforma cega e independente. Resultados definitivos virão de estudos prospectivamente desenhados, com hipóteses edesfechos primários definidos a priori.

Enquanto isso, grávidas devem evitar se expor a qualquer tipo de doença infecciosa e outros agentes sabidamenteteratogênicos como sempre fizeram. Devem também evitar um demasiado envolvimento com recomendações caricaturaiscontra Zika. E devem estar cientes de que não há razão probabilística (risco absoluto) para que o pânico roube atranquilidade de suas gestações.

Se Zika é responsável pelo crescimento dos casos de microcefalia, por enquanto não sabemos.

Mas a pergunta primordial desta postagem é outra: sabemos distinguir entre fato e ficção?

Page 5: Zika e microcefalia-fato_ou_ficcao_científica

Postado por Luis Cláudio Correia às 15:39

* Texto escrito por Luis Correia e Denise Matias, com colaboração intelectual dos obstetras Allan Silva e Leomar Lyrio.

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11 comentários:

Carlos Eduardo Montenegro 21 de dezembro de 2015 16:52

Caro Luis Cláudio, fico muito feliz com esse seu texto. Minha esposa está grávida e tenho pesquisado um pouco sobre esseassunto, mesmo sendo cardiologista. E minha conclusão (até o momento) é que há motivos pra cuidados, masnão pra pânico, como você também pontuou. Um abraço.

Responder

Yhago Frota 21 de dezembro de 2015 17:47

Achei o assunto muito interessante, com isso a sociedade pode ter uma noção do que realmente vemacontecendo sobre esse problema que vem causando medo e pânico, principalmente as mulheres gestantes.Parabéns pelo texto..

Responder

Lucas Tramujas 21 de dezembro de 2015 19:04

Na minha visão, ainda precisamos evoluir muito nas escolas médicas quanto a importância e a necessidade dese dominar a epidemiologia clínica, e é por isso que o princípio da hipótese nula é violado constantemente, aausência do seu conhecimento faz com que precipitadamente profissionais de saúde adotem a hipótesealternativa sem um olhar crítico e adequado às evidências. Outro aspecto que também contribui muito para isso,na minha análise, é o pensamento médico mecanicista. Mecanismos fisiológicos são colocados acima do teste dehipóteses simplesmente por soarem extremamente lógicos e ai - a hipótese nula e todos os critérios decausalidade de Hill são jogados por terra nesse mesmo instante. Me chamou atenção o trecho referente a associação( os estudos que demonstram associação) e a causalidade -isso vêm bem a calhar, porque , muitos não sabem que associação não garante causalidade. Muitos não sabemque estudos descritivos, estudos observacionais não podem afirmar causalidade e muitos não sabem que relatosestão no nível mais baixo na escala de evidências.Acho que infelizmente, visto os fatos de especialistas afirmarem com 100% de certeza que café e vinho protegemo coração, que vitamina c previne C câncer e que o vírus zika causa microcefalia que não sabemos reconhecer aincerteza, não sabemos diferenciar acaso de causa , fato ou ficção e que precisamos ler mais david sackett oumedronho...

Responder

Lucio Amorim 21 de dezembro de 2015 19:05

Como eu venho falando, da mesma forma que lavar o meu carro não faz chover no dia seguinte - apesar dissosempre acontecer - não é necessariamente um surto de Zika Vírus o responsável pela explosão de casos demicrocefalia no Nordeste Brasileiro.

Sim, nossa mente entende o mundo através de explicações convincentes, e de fato faz muito sentido associaruma nova síndrome de má-formação congênita a uma nova doença infecciosa que apareceu no mesmo período.

O problema é que correlação não implica causalidade - o mundo é complexo demais para correlacionarmos umacoisa a outra com apenas uma variável - porque não incluir nessa conta sistemas imunológicos comprometidospor vacinas mal-formuladas, dioxinas no ar, metais pesados na água, agrotóxicos na comida...?

Por enquanto não há dado que suporte a associação do vírus transmitido pelo mosquito às crianças com máformação. As causas prováveis são inúmeras, e reduzir um problema tão grave a algo tão fora de controle é, decerta maneira, eximir os órgãos e autoridades competentes de sua responsabilidade.

Excelente artigo, obrigado!

Responder

CLX 21 de dezembro de 2015 19:25

Muito pertinente os comentários. Você citou Kant, e aqui incluo outro filosofo chapa-branca que é Descartes. Naideia descartiana, nossos sentidos nos fazem errar, como a percepção do tamanho de um objeto, colocado emdiferentes posições em relação a luz solar. Portanto, devemos sempre duvidar, e a dúvida será nosso guia dediscernimento. E já que estamos aqui, trago uma provocação da filosofia materialista, principalmente em relaçãoaos afetos. Nossa forma de entender o mundo e viver no mundo é dependente dos nossos afetos devido asnossas relações com o mundo e os corpos presentes nele. Nesse sentido, o afeto rei sempre presente em nós, omedo, exerce um papel determinante em uma série de decisões. Ás vezes ficamos tristes sem nem mesmo viveralgo. Somente pela nossa imaginação. Isso seria o temor. Ás vezes ficamos alegres da mesma forma. E issoseria a esperança. Esperança e temor são, na ideia materialista, indissociáveis. Porque se eu tenho esperança éporque temo. E se temo é porque tenho esperança. E diria um filósofo materialista: ambos são espectros daignorância, porque quando se sabe não há o que temer e não há o que esperar. Infelizmente, vemos deturpaçõesdo método científico e da sua finalidade. Na grande maioria, para provar concepções distorcidas de umarealidade distante, ou mesmo porque politicamente é mais agradável à sociedade vigente. Mais fácil e cômodo, eignorante.

Page 6: Zika e microcefalia-fato_ou_ficcao_científica

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Carlinhos Gonçalves 21 de dezembro de 2015 19:51

Excelente postagem...como tantas outras que já li neste blog...tomara que a questão Zika e Microcefalia sirvapara que todos os profissionais envolvidos na saúde consigam interpretar corretamente as evidências científicase a ficção fique somente na saga Star Wars!

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Manoel Sarno 21 de dezembro de 2015 23:45

Luis, como sempre, escrevendo barbaramente. Mas eu sou um dos que rejeitaram a hipótese nula desde agostodeste ano quando comecei a atender inúmeros casos de microcefalia em hospitais públicos e no atendimentoprivado. Ao analisar os exames e a história clínica, não tem como ter dúvidas da associação da microcefalia aoZika vírus. Vamos aos fatos (serão publicados em breve):1) Microcefalia com lesões destrutivas e calcificações cerebrais - quase que patognomônicas de causainfecciosa;2) 85% x 20% de história de doença exantemática na gestação (principalmente no 1o trimestre) quandocomparadas às gestantes sem diagnóstico de microcefalia fetal ou outras lesões do SNC;3) Concorrência temporal entre a epidemia por Zika e microcefalia 6 meses depois, com gráficos superponíveis;4) Não há relatos de novas infecções ou de mutações de outros vírus que possam estar causando estas lesões,que, repito, são quase que patognomônicas de infecção;

O fato de ainda não termos dados científicos que comprovem a associação indica que apesar de todo nossoavanço como civilização, nós sabemos muito pouco ainda. E mais. tem um viés que ninguém comenta, que é oviés de pesquisar apenas o que é interessante para os países privilegiados. Devem ter inúmeras doençasdesconhecidas na África, América Latina ou Ásia que ninguém estuda direito. Quando fizemos nosso projeto de pesquisa para investigar a possível associação, em julho deste ano, aindatínhamos a hipótese nula como alternativa. Hoje, não há como. Precisamos publicar o mais rápido possível estesdados para poder alertar outros países do problema. Há relatos na Colômbia e México em outubro e novembrode infecção por Zika Virus e agora em Cabo Verde. Estes países precisam conhecer esta associação o maisrápido possível para se prevenirem.

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latb pessoal 22 de dezembro de 2015 08:43

parabens pelo texto: incômodo, desagradável, além de politicamente inconveniente.Entretanto, jamais inoportuno.ha! vamos combinar. combater com eficiencia o aedis é fundamental. detesto mosquitos

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Beatriz Passos 22 de dezembro de 2015 18:13

Excelente texto! Parabéns!

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Giordano Alves 23 de dezembro de 2015 00:39

Excelente! Parabéns!

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Ednaldo Silva Jr 23 de dezembro de 2015 05:35

Parabéns ao autor pelo excelente texto!!! Diferente de muitos comentários aqui feitos, não faço parte dacomunidade médica (talvez ainda venha a fazê-lo nesta vida) e o que eu teria a dizer é que depois da dita"confirmação" da relação zika-microcefalia eu venho questionando aos meus amigos e vossos colegas deprofissão o quanto isso seria realmente uma função direta: Teve Zika? Então o bebê está condenado a uma vidade privações (caso ele chegue a ter uma DNV)? E se a mulher em tenra idade teve a manifestação da doença muito antes da fecundação, retendo em seuhistórico o vírus Zika todos os seus possíveis filhos estariam condenados a tal sortilégio? Seria de bom gradoentão fazer uma campanha de esterilização dessas mulheres? O quanto é possível determinar que se a infecçaotenha ocorrido até o primeiro trimestre ou até o segundo essa relação seria direta? Quantos casos ocorreram nosEstados que registraram a doença de mães com Zika que tiveram filhos sem microcefalia mas com outrasdoenças congênitas? Essas doenças tb irão pra estatística da Zika? Quantas não infectadas com Zika tiveramfilhos microcéfalos? Quantas infectadas tiveram bebês normocéfalos?Ainda estamos acordando para as pesquisas dessa doença, que não é endêmica, quanto pudemos aprender comoutros países que tb tem manifestações do vírus? Ao começarmos a engatinhar nos estudos talvez partes dessasquestões e de inúmeras outras que eu tenho e aqui não foram elencadas, possam ser respondidas e tantasoutras apareçam, pq o perguntar é o que motiva a procurar uma resposta na pesquisa séria. Como foi lembradopelo autor, muitos outros motivos para microcefalia existem e o Zika no futuro pode vir a ser mais um que podeaumentar essa lista. Carece de fundamentos e de uma pesquisa séria longe dos olhos e da pressão dessaimprensa marrom e tendenciosa que temos aqui no nosso Brasil.

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