zico' atacou, dinis morreu: quem tem culpa? (1)

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‘Zico’ atacou, Dinis morreu: quem tem culpa? A VISÃO consultou, em primeira mão, o processo-crime relativo à morte da criança de 18 meses atacada pelo pit bull da família, em Beja, no ano passado. Uma história de pobreza, desleixo e ignorância POR PEDRO MIGUEL SANTOS V anessa Neves, 27 anos, e João Ja- neiro, 29 anos, trocaram Setúbal por Beja, em 2011, em busca de uma vida melhor. Estavam de- sempregados e o primeiro filho, Dinis, tinha nascido havia dias. Mas João encontrou tra- balho na sua cidade natal e, por isso, mudou- SOCIEDADE JUSTIÇA O dono do cão não tratava dele mas no processo-crime é apenas testemunha. Os pais e a avó da criança surgem como arguidos ‘Zico’ O pit bull está à guarda da Associação Animal desde agosto passado e, até à conclusão do processo, a ordem para abatê-lo está suspensa FOTO: FERNANDO NEGREIRA se para casa dos pais, com a companheira, o bebé e um outro filho mais velho, fruto de uma anterior relação. Não tinham dinhei- ro para arrendar casa própria. Desenrasca- ram-se. O jovem casal e o bebé ocuparam um quarto, num pequeno T2. Os avós, Jacinto Manuel, 55 anos, e Maria Antónia, 57 anos, dormiam no outro. E a criança mais velha, com 9 anos, passava a noite na sala. Já sabiam que também ali vivia um cão, Zico, arraçado de pit bull, que pertencia a Pedro Janeiro, 37 anos, irmão mais velho de João. O caní- deo abrigava-se na varanda, descoberta, que dá acesso à cozinha. Ficava preso a uma tor- neira da máquina de lavar, com uma corda a servir de trela. Quando fazia muito frio, dei- xavam-no ficar na cozinha. Era aí que o cão se encontrava, naquele fatídico 6 de janeiro de 2013, em que mordeu Dinis, na cabeça. A criança, de ano e meio, morreu no dia se- guinte, vítima de graves lesões no crânio. Máquina de guerra Até Dinis começar a gatinhar, o pit bull anda- va à solta, no apartamento. Só depois passa- ram a prendê-lo na varanda, com frequência, até porque largava muito pelo e nem sempre se portava bem, fazendo estragos vários. Va- nessa nunca concordou com a presença do cão dentro de casa. João sentia-se incomo- dado, mas não queria discutir com o irmão, embora este já não morasse com os pais. A avó do menino, Maria Antónia chegou a su- gerir que se deixasse o animal na quinta de uma amiga ou num canil. Mas o filho mais ve- lho, Pedro Janeiro, nunca o permitiu, apesar da pouca atenção que dava a Zico, nas raras vezes em que visitava os pais. Pedro é o macho alfa dos Janeiro. Gosta de cães grandes, de preferência se forem de raças perigosas. Faz musculação – na zona abdominal tem tatuada, em inglês, a expres- são Hard Life (Vida Dura). Não cuidava do animal há alguns anos, mas argumentava que o bicho nunca tinha feito mal a ninguém. Não era verdade. A 10 de setembro de 2006, Jacinto Manuel teve um ataque epilético, caiu em cima do Zico e este mordeu-lhe no braço direito. As marcas ainda hoje são visí- veis. Numa outra ocasião, soltou-se e atacou o cão de um vizinho, nas escadas do prédio. Nenhuma das situações foi alguma vez co- municada às autoridades, como obriga a lei. O animal foi treinado para se sentar, dei- tar, rebolar. O dono atirava-lhe paus, para 68 v 20 DE FEVEREIRO DE 2014

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A VISÃO consultou, em primeira mão, o processo-crime relativo à morte da criança de 18 meses atacada pelo pit bull da família, em Beja, no ano passado. Uma história de pobreza, desleixo e ignorância

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‘Zico’ atacou, Dinis morreu: quem tem culpa? A VISÃO consultou, em primeira mão, o processo-crime relativo à morte da criança de 18 meses atacada pelo pit bull da família, em Beja, no ano passado. Uma história de pobreza, desleixo e ignorânciaPOR PEDRO MIGUEL SANTOS

Vanessa Neves, 27 anos, e João Ja-neiro, 29 anos, trocaram Setúbal por Beja, em 2011, em busca de uma vida melhor. Estavam de-

sempregados e o primeiro filho, Dinis, tinha nascido havia dias. Mas João encontrou tra-balho na sua cidade natal e, por isso, mudou-

SOCIEDADE JUSTIÇA

O dono do cão não tratava dele mas no processo-crime é apenas testemunha. Os pais e a avó da criança surgem como arguidos

‘Zico’ O pit bull está à guarda da Associação Animal desde agosto passado e, até à conclusão do processo, a ordem para abatê-lo está suspensa

FOTO

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se para casa dos pais, com a companheira, o bebé e um outro filho mais velho, fruto de uma anterior relação. Não tinham dinhei-ro para arrendar casa própria. Desenrasca-ram-se. O jovem casal e o bebé ocuparam um quarto, num pequeno T2. Os avós, Jacinto Manuel, 55 anos, e Maria Antónia, 57 anos,

dormiam no outro. E a criança mais velha, com 9 anos, passava a noite na sala. Já sabiam que também ali vivia um cão, Zico, arraçado de pit bull, que pertencia a Pedro Janeiro, 37 anos, irmão mais velho de João. O caní-deo abrigava-se na varanda, descoberta, que dá acesso à cozinha. Ficava preso a uma tor-neira da máquina de lavar, com uma corda a servir de trela. Quando fazia muito frio, dei-xavam-no ficar na cozinha. Era aí que o cão se encontrava, naquele fatídico 6 de janeiro de 2013, em que mordeu Dinis, na cabeça. A criança, de ano e meio, morreu no dia se-guinte, vítima de graves lesões no crânio.

Máquina de guerraAté Dinis começar a gatinhar, o pit bull anda-va à solta, no apartamento. Só depois passa-ram a prendê-lo na varanda, com frequência, até porque largava muito pelo e nem sempre se portava bem, fazendo estragos vários. Va-nessa nunca concordou com a presença do cão dentro de casa. João sentia-se incomo-dado, mas não queria discutir com o irmão, embora este já não morasse com os pais. A avó do menino, Maria Antónia chegou a su-gerir que se deixasse o animal na quinta de uma amiga ou num canil. Mas o filho mais ve-lho, Pedro Janeiro, nunca o permitiu, apesar da pouca atenção que dava a Zico, nas raras vezes em que visitava os pais.

Pedro é o macho alfa dos Janeiro. Gosta de cães grandes, de preferência se forem de raças perigosas. Faz musculação – na zona abdominal tem tatuada, em inglês, a expres-são Hard Life (Vida Dura). Não cuidava do animal há alguns anos, mas argumentava que o bicho nunca tinha feito mal a ninguém. Não era verdade. A 10 de setembro de 2006, Jacinto Manuel teve um ataque epilético, caiu em cima do Zico e este mordeu-lhe no braço direito. As marcas ainda hoje são visí-veis. Numa outra ocasião, soltou-se e atacou o cão de um vizinho, nas escadas do prédio. Nenhuma das situações foi alguma vez co-municada às autoridades, como obriga a lei.

O animal foi treinado para se sentar, dei-tar, rebolar. O dono atirava-lhe paus, para

68 v 20 DE FEVEREIRO DE 2014