zazie realmente no metro -...

3
Zazie realmente no metrô* A boca do metrô tinha um cheiro forte, de poeira, uma poeira ferruginosa e desidratada que Zazie julga inédita e que ela aspira com entusiasmo. Fez-se ouvir um resmungo, trinta segundos depois apareceram dois ou três crossmen, de cotovelos grudados no corpo, depois algumas pessoas apressadas porém menos ágeis, em seguida as donas de casa, por fim uns velhos, pesados viajantes. Zazie desceu alguns degraus e ficou ali, plantada no meio da escadaria, emocionada por descer aquela via sagrada. Um garoto um pouco mais velho que ela a empurrou ao passar, perguntando se não dava para ela ir logo, né? – Corno – que ela replicou. O outro, sufocado, no entanto precisa continuar a correr, já que pegou embalo: ele ruminará o xingamento o dia inteiro e só o terá digerido no dia seguinte à noite. Zazie já sabe disso e está feliz consigo mesma. Retoma a descida interrompida, cada degrau lhe parece nupcial, está encantada. Ei-la na penumbra. À direita, a vendedora de jornais, com todos as suas revistas ilustradas, precede o guichê igualmente servido por uma mulherzinha. Em frente, um subterrâneo bífido, decorado por anúncios em duas e três dimensões e placas azuladas com uma constelação de letras brancas. Nada daquilo parece tão simples. Zazie vacila, no entanto não pode vacilar, sabe disso, e depois ela já enrolou demais, o tio Gabriel ou a tia Marceline vão fazer sua aparição com certeza, é só uma questão de tempo, eles também não vão sequestrá-la, não, mas é que. Ela se demora em frente à banca de jornais. – Procura alguma coisa, meu pequeno? – lhe pergunta a consignatária, suspeitosa. – Meu pequeno não procura nada – responde Zazie friamente. A boa mulher tem um sobressalto: – Então por que você está olhando assim as minhas revistas? – Olhar não tira pedaço, né? – Ah, mas olha aqui, meu pequeno, não tô acostumada a ser tratada nesse tom por crianças. Zazie mede o que da sua adversária vai além das pilhas de gazetas e deixa pra lá: – Cretina! O quê? – berra a vendedora que, ao mesmo tempo, pensa merda, essa fedelha tem vocabulário. Quanto a Zazie, ela lamenta não ter uma caixa de fósforos, ela bem que teria tocado um foguinho na banca, ia arder de um jeito bem divertido, com um pouco de sorte a ovelhinha má até poderia fazer um churrasquinho. No final das contas, a Zazie ainda pode voltar outra hora, munida do material necessário. Não esquecer disso. Claro que ela não respondeu ao “o quê?”, que era uma confissão de derrota. Ela se aproximou do guichê. Felizmente a essa hora não tem muita gente, ela se demora na frente do cartaz onde os preços estão afixados. É bem complicado, Zazie vacila de novo, humilhada por suas vacilações: família numerosa ou não? Carnê de dez, bilhete unitário ou semanal? E a classe? O primeiro problema se resolve da maneira mais simples, pelo exercício do bom senso: Zazie é filha única. Quanto aos demais, não se trata de dinheiro, a vaquinha deu a Zazie os meios para pagar dois ou três carnês se ela quisesse. É que a

Upload: duongthuy

Post on 26-Nov-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Zazie realmente no metro - gazetaonline.globo.comgazetaonline.globo.com/_midias/pdf/157770-4a6ce79a09456.pdf · preciso dar explicação ... Zazie os examina dos pés à cabeça e

Zazie realmente no metrô*

A boca do metrô tinha um cheiro forte, de poeira, uma poeira ferruginosa e desidratada que Zazie julga inédita e que ela aspira com entusiasmo. Fez-se ouvir um resmungo, trinta segundos depois apareceram dois ou três crossmen, de cotovelos grudados no corpo, depois algumas pessoas apressadas porém menos ágeis, em seguida as donas de casa, por fim uns velhos, pesados viajantes.

Zazie desceu alguns degraus e ficou ali, plantada no meio da escadaria, emocionada por descer aquela via sagrada. Um garoto um pouco mais velho que ela a empurrou ao passar, perguntando se não dava para ela ir logo, né?

– Corno – que ela replicou. O outro, sufocado, no entanto precisa continuar a correr, já que pegou embalo: ele

ruminará o xingamento o dia inteiro e só o terá digerido no dia seguinte à noite. Zazie já sabe disso e está feliz consigo mesma. Retoma a descida interrompida, cada degrau lhe parece nupcial, está encantada.

Ei-la na penumbra. À direita, a vendedora de jornais, com todos as suas revistas ilustradas, precede o guichê igualmente servido por uma mulherzinha. Em frente, um subterrâneo bífido, decorado por anúncios em duas e três dimensões e placas azuladas com uma constelação de letras brancas. Nada daquilo parece tão simples. Zazie vacila, no entanto não pode vacilar, sabe disso, e depois ela já enrolou demais, o tio Gabriel ou a tia Marceline vão fazer sua aparição com certeza, é só uma questão de tempo, eles também não vão sequestrá-la, não, mas é que. Ela se demora em frente à banca de jornais.

– Procura alguma coisa, meu pequeno? – lhe pergunta a consignatária, já suspeitosa.

– Meu pequeno não procura nada – responde Zazie friamente. A boa mulher tem um sobressalto: – Então por que você está olhando assim as minhas revistas? – Olhar não tira pedaço, né? – Ah, mas olha aqui, meu pequeno, não tô acostumada a ser tratada nesse tom por

crianças. Zazie mede o que da sua adversária vai além das pilhas de gazetas e deixa pra lá: – Cretina! – O quê? – berra a vendedora que, ao mesmo tempo, pensa merda, essa fedelha

tem vocabulário. Quanto a Zazie, ela lamenta não ter uma caixa de fósforos, ela bem que teria

tocado um foguinho na banca, ia arder de um jeito bem divertido, com um pouco de sorte a ovelhinha má até poderia fazer um churrasquinho. No final das contas, a Zazie ainda pode voltar outra hora, munida do material necessário. Não esquecer disso.

Claro que ela não respondeu ao “o quê?”, que era uma confissão de derrota. Ela se aproximou do guichê. Felizmente a essa hora não tem muita gente, ela se demora na frente do cartaz onde os preços estão afixados. É bem complicado, Zazie vacila de novo, humilhada por suas vacilações: família numerosa ou não? Carnê de dez, bilhete unitário ou semanal? E a classe? O primeiro problema se resolve da maneira mais simples, pelo exercício do bom senso: Zazie é filha única. Quanto aos demais, não se trata de dinheiro, a vaquinha deu a Zazie os meios para pagar dois ou três carnês se ela quisesse. É que a

Page 2: Zazie realmente no metro - gazetaonline.globo.comgazetaonline.globo.com/_midias/pdf/157770-4a6ce79a09456.pdf · preciso dar explicação ... Zazie os examina dos pés à cabeça e

despesa lhe parece idiota, pueril e desastrada (atrás dos buraquinhos da maquinoide eles iam se espantar, fazer mais perguntas, perguntas idiotas). Ela se decidiu por um bilhete unitário de primeira classe (Zazie era econômica, mas não mão-de-vaca). Só um ponto ficava por ser elucidado: seria preciso especificar a estação aonde se queria ir? Era pouco provável, já que o tio Gabriel tinha dito que dava para circular por horas e horas no metrô sem que ninguém perguntasse nada. Por outro lado, Zazie não tinha estudado o mapa, o quê que ela ia dizer? Panthéon? Torre Eiffel? Arco do Triunfo? Obelisco? Notre-Dame? Não disse nada e estendeu as moedas.

Zazie se irritou de ver que era tão fácil. A funcionária nem olhou pra ela. Não era preciso dar explicação nenhuma. Mais à frente, um sujeito recortava confetes em pedaços de cartolina, um sujeito não menos indiferente. E o reino subterrâneo se abria diante dela. Sorriu. Ainda seria preciso escolher entre a direita e a esquerda. Preferiu a direção em que havia mais nomes. Mais uma escadaria. Zazie não tem pressa: o portão está aberto. Um trem entra na estação: o portão se fecha. Zazie corre, tenta se insinuar, empurra, nada feito, a composição parte sem ela. Louca de raiva, jura que nunca mais vai se deixar prender por aquela armadilha para pegar cretinos. O sinal vermelho se afasta, o portão se abre de novo. Zazie não aproveita a abertura logo em seguida, se zanga um pouco, mas o quê, é só um troço automático, é d +. Ela se decide. Olhaí ela na plataforma.

Que legal. Um corredorzão de ladrilhos branquinhos. Uma iluminação realmente a giorno. Uma seleção das obras mestras da publicidade contemporânea. Zazie ainda está no primeiro estágio do maravilhamento (o boquiabrimento) quando uma massa resmungona de barulho e luz vem se postar ao longo da plataforma. As portas se abrem. Seres humanos se deslocam com rapidez, às vezes até mesmo com furor. As portas se fecham. Apitam. E Zazie não vê mais que a lanterna vermelha que se afasta rumo a outra estação.

A rapidez das operações metropolitanas faz Zazie passar do boaquiabrimento à ilusão, não sem alguma irritação. Mas a descoberta da indicação “primeira classe” lhe dá nova confiança, ela se põe bem debaixo da placa e, com pé firme, espera o novo trem. Ei-lo parando. Uma porta se abre. Zazie se enfia, empurrando alguns adultos que protestam fracamente. Ela pula num lugar livre e nele põe energicamente suas nádegas: o trem já está partindo, é maravilhoso.

É do balacobaco, diz a si mesma com sua vozinha interior, e eles têm cara de babaca, que ela acrescenta, para sua instrução pessoal. Ela não está a fim de se espantar com as pessoas, é verdade, mas é preciso dizer que a espécie humana não está representada de maneira lá muito brilhante no vagão em questão. Um exausto pelo trabalho tenta se recuperar deixando arrastar uma pasta de couro na ponta do braço. Duas mulheres gastas e acabadas trocam frases idiotas. Pra completar, uma viúva toda de preto, que nem no interior.

Zazie os examina dos pés à cabeça e do ombro direito ao esquerdo, os estuda de alto a baixo e na diagonal, os detalha, os reconstrói, conclui que não são lá muito empolgantes. Uma nova estação. Ninguém desce. Um mocorongo sobe e vai se aboletar lá no fundo, o olho trêmulo. As portas se fecham de novo, graças ao automático e ao ar comprimido, e vamos embora. Zazie descobre agora dubo, dubon, dubonnet, dubo, dubon, dubonnet, várias estações são atravessadas, Zazie quase não presta mais atenção, cantarola dubo, dubon, dubonnet,1 não consegue mais parar.

1 Referência à propaganda da bebida Dubonnet, que ocupava as paredes dos túneis dos metrôs de Paris.

Page 3: Zazie realmente no metro - gazetaonline.globo.comgazetaonline.globo.com/_midias/pdf/157770-4a6ce79a09456.pdf · preciso dar explicação ... Zazie os examina dos pés à cabeça e

Ouve uma voz que dizia assim: senhorita, ela não tinha o costume de ouvir chamarem ela assim: senhorita, ela se pergunta se era mesmo para ela essa emissão de vocábulo: senhorita. Como iteravam, ela levanta os olhos. Tratava-se de um homem vestido de azul e com um quepe. Tinha na mão um incontestável alicate. Quê que ele queria com ela? (interrogação muda). O bilhete dela. Ele não ia ficar com o bilhete. Não, tratava-se apenas de fazer mais um furo. Isso feito, o controlador devolveu a ela, murmurando obrigado, no entanto ele achava que aquela criança pobremente vestida não tinha pagado. Mas não, é o mocorongo que está em falta, o bilhete dele já foi obliterado, ele não quer admitir, quer olhar de cima, mas é um covarde e o funcionário, este um cabeçudo, lhe mostra que as dissimulações dele não valem nem um peido e que ele não passa de uma criatura lamentável que precisava ser atirada no buraco das uóters. Zazie acompanha a discussão com atenção, vários argumentos de um e outro lado lhe parecem obscuros, o que a leva a examinar com mais atenção o pedacinho de cartolina dela; então ela constata que a segunda perfuração não é circular, mas triangular, no verso, descobre uma pequena obliteração enigmática, composta de três números. Todas essas particularidades lhe parecem hostis, com certeza tem sacanagens escondidas naqueles sinais, a prova é que o mocorongo foi obrigado a descer com, ainda por cima, um pontapé na bunda, porque o cagaço não o deixou educado com o homem de quepe. Zazie acha melhor desconfiar e depois, quando o tio Gabriel dizia assim, dá pra ficar horas e horas no metrô sem que ninguém te pergunte nada, pois é, a Zazie acha que o tio Gabriel é um loroteiro.

Ela está pensando isso ainda mais quando chega ao final da linha. Não tinha mais ninguém no vagão, ela esperava pacientemente, um outro homem de quepe a fez sair dali. Ela leu: a partir desta porta os bilhetes não são mais válidos, e empalideceu.

Ela ainda não conhecia bem os usos para ter a ideia de dizer: deixei a minha estação passar, será que eu poderia ir até a outra plataforma, e o sujeito teria berrado a permissão para a mulher do alicate, só isso. Mas ela não conhecia. Subiu lentamente a escadaria que a levou à superfície do solo.

Pronto. Zazie se encontrava numa das entradas da cidade. Formidáveis arranha-céus de cinco e seis andares emolduravam uma suntuosa avenida que inúmeros veículos automóveis percorriam nos dois sentidos. A multidão espessa pinga-pingava por todos os lados. Uma vendedora de balões, música de carrossel acrescentavam uma nota melancólica à beleza do espetáculo. Mesmo maravilhada, Zazie não conseguiu conter sua raiva por ter sido obrigada a sair da terra tão rápido.

*Capítulo inédito escrito por Raymond Queneau para Zazie no metrô e não incluído na versão final do livro. ©Editions Gallimard Tradução: Paulo Werneck