zamora, m. uma contribuição critica a projetos comunitarios

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ZAMORA, M. Uma Contribuição Critica a Projetos Comunitarios

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  • LABORELaboratrio de Estudos Contemporneos

    POLM!CARevista Eletrnica

    Universidade do Estado do Rio de JaneiroR So Francisco Xavier, n 524 - 2 andar, sala 60 - Maracan - Rio de Janeiro - RJ

    CEP 24.590-013 Tels: (0xx21) 2587-7960/ 2587-7961 e-mail: [email protected]

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    UMA CONTRIBUIO CRTICA A PROJETOS COMUNITRIOS

    MARIA HELENA ZAMORA

    Doutora em Psicologia Clnica pela PUC-Rio. Vice-Coordenadora do LIPIS. Professora da PUC-Rio. Profa.

    convidada da Ps-graduao em Psicologia Jurdica da [email protected]

    1. Introduo

    Este artigo est baseado na anlise crtica de um projeto comunitrio, empreendido

    por uma ONG e encerrado h dois anos, que teve como nfase os direitos da criana e do

    adolescente no mbito da sade, da educao e da proteo contra vrias formas de

    violncia. Outro foco importante do projeto era a formao de agentes comunitrios que

    seriam multiplicadores de conhecimentos estratgicos sobre tais direitos.

    O projeto atuou em vrios municpios do estado do Rio de Janeiro, com o

    financiamento de trs importantes agncias internacionais, com vrios apoios nacionais,

    bem como doaes locais de menor vulto e teve a durao total de cinco anos. Tive a

    oportunidade de acompanhar sua avaliao de processo, ao longo de dois anos; bem como

    pude ter acesso a todos os envolvidos; seja das equipes executoras, seja das localidades.

    Acredito que o resultado deste acompanhamento pode ser interessante, visto que os

    problemas apresentados pela mencionada iniciativa so muito comuns aos projetos de

    organizaes no-governamentais, universidades engajadas em projetos comunitrios de

    extenso e de agncias governamentais que trabalham com uma proposta de participao

    comunitria. Ao longo deste escrito, procuro analisar esses problemas comuns.

    possvel aprender com as limitaes e falhas de pesquisa e de interveno e, com o

    exame honesto delas, contribuir para a construo de novos horizontes na atuao de

    projetos sociais nos coletivos. Pergunto-me porque tais falhas no so pensadas em sua

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    generalidade, por que no se tm mais trabalhos de pesquisa e de reflexo terica sobre o

    assunto?

    O fato provavelmente tem a ver com o que Boaventura Santos denominou de razo

    indolente e de desperdcio da experincia:

    Bloqueada pela impotncia auto-infligida e pela displicncia, a

    experincia da razo indolente uma experincia limitada, to limitada

    quanto a experincia do mundo que ela procura fundar. por isso que a

    crtica da razo indolente tambm uma denncia do desperdcio da

    experincia (p.40).

    2. Participao Comunitria: o fechamento dos espaos

    Para Hernndez (1994), existem trs dimenses bsicas da participao social ativa:

    1. ser parte, no sentido do pertencimento; 2. ter parte [tener parte, no original em espanhol],

    significando ter algo a dizer, a oferecer e a receber e 3. tomar parte ter uma atuao

    crtica. Isso refora o pressuposto bsico de que a populao local a protagonista legtima

    de qualquer projeto ou de qualquer mudana poltica que diga respeito sua vida, cabendo

    aos tcnicos e especialistas apenas a facilitao das condies de auto-anlise e autogesto,

    ou seja, dos processos de discusso e resoluo dos seus problemas (Baremblitt, 1992).

    A participao ampla implica que os beneficiados opinem e decidam em qualquer

    etapa e aspecto da iniciativa, de seu desenho, de sua implantao. Via de regra, as

    comunidades no participam da elaborao dos projetos que visam benefici-las e que

    envolvem suas vidas. Pergunta-se populao como fazer, mas j se leva pronto o que

    fazer. Em geral, as populaes no participam, nem direta nem indiretamente, da proposta

    inicial de interveno, de seu esboo, levado aos financiadores.

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    A construo conjunta do projeto e de suas aes requer uma relao horizontal, um

    espao confivel onde os acordos sejam cumpridos e a livre palavra garantida. Ali, em

    reunio ampla, dvidas so tiradas, solues criativas so apresentadas e a confiana se

    reafirma. Ao longo de sua implantao, no projeto analisado que mencionei e em outros

    que conheci, os debates coletivos no aconteciam, apesar de previstos no cronograma e no

    oramento. Isso gerava falsas expectativas e desconfianas na relao com a comunidade.

    Descuidado este espao de trocas fundamental, com a pressa do cumprimento das

    obrigaes por parte dos consultores e agentes comunitrios, a relao entre a instituio e

    a comunidade tendia a se configurar como hierrquica, trabalhista, s que sem suas

    garantias. Causou-me espanto saber que certos agentes comunitrios se autodenominavam

    funcionrios da ONG. A instituio, que se acreditava parceira das comunidades, era

    referida como empregador, chefe e mesmo patro.

    H uma tenso entre os 'empoderados' (membros locais participantes, agentes

    comunitrios) e os intelectuais e tcnicos. Esta tenso no deve ser negada ou

    despolitizada, mas trabalhada, no sentido do rompimento voluntrio da situao de

    submisso e dependncia implcita na relao sujeitoobjeto (FalsBorda, citado por

    Jimenz-Rodriguez, 2004). Sem a possibilidade ampla de dilogo, as relaes hierrquicas

    de poder/saber, fundadas historicamente, no fazem se no serem repetidas na vida

    cotidiana.

    O projeto distanciou-se de seu ideal de participao, que era uma de suas maiores

    riquezas. A reunio, que aqui chamaremos de Conselho Geral, acontecia com encontros

    bimensais de parceiros institucionais (igrejas, associaes de moradores, postos de sade,

    escolas, Conselhos Tutelares, outras ONGs...), moradores e convidados de fora, para

    discutir alguns aspectos do projeto, ou ento, um tema proposto com antecedncia. Todos

    tinham voz e voto e a equipe procurava apenas facilitar a discusso. Reuniam-se entre 20 e

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    40 homens e mulheres, entre 17 e 80 anos e tomavam um lanche com a equipe, sempre em

    espaos neutros, seguros e confortveis. O fato de poderem compartilhar experincias era

    um ponto importante. Lembremos que a pressa, a necessidade de garantir o sustento, os

    prprios trabalhos comunitrios que tomam considervel tempo e a diviso das localidades

    pelo narcotrfico, tm tornado difceis os encontros e tm eivado de desconfiana as

    relaes ditas comunitrias.

    Vrias idias centrais para o projeto saram dessas reunies do Conselho Geral, que

    envolviam as pessoas em reflexo e alegria. Como disse Frei Beto, durante o I Congresso

    Brasileiro de Psicologia da Comunidade e Trabalho Social (1992, p. 57, citado por Soares,

    2001):

    O universo de expresso popular um universo visual e o acadmico

    conceitual. O povo conta um causo, o acadmico fala a teoria. O

    universo de expresso popular parte da experincia de vida, o nosso

    universo acadmico literrio ou livresco. Quando ns acadmicos

    falamos que sabemos, estamos nos referindo a um saber memorizado,

    associado por bibliografia. Quando um elemento popular diz que sabe, um

    mecnico diz que sabe, um pedreiro diz que sabe, porque eles fizeram e

    no porque eles souberam. O saber popular entra pelas mos, entra pelo

    saber, pelo sentir, pela intuio, pela esttica.

    Os eventos comunitrios davam certo no projeto e do certo, geralmente - porque

    de fato constrem o espao necessrio, embora no o nico, para a participao

    comunitria. Outros territrios e dispositivos podem ser produzidos e inventados, mas

    decerto no abandonados. Como diz Guatttari (1986), cada vez mais precisamos mais de

    criao e povo!

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    3. Confuso de linguagem dentro e fora da equipe

    Percebemos, no exame de vrios projetos sociais, que comum que os tcnicos e os

    membros da comunidade no se entendam a respeito dos termos empregados e at que nem

    notem esta dissonncia. Por exemplo, pode acontecer de os profissionais descreverem seu

    trabalho como voltado para o acesso e a ampliao dos direitos e a comunidade falar em

    assistncia, em pessoas que vm olhar por ns, para salvar os meninos e meninas. A

    equipe tcnica baseia-se em uma concepo (alis, em geral naturalizada) de conquista e

    afirmao de direitos e a comunidade envolvida fala em termos de caridade e filantropia.

    Isso compromete o processo e os resultados finais.

    Entenda-se que a populao local no tem que incorporar o vocabulrio tcnico ou

    estudar o assunto. preciso apenas compartilhar das idias gerais com as pessoas do local

    e estar certo de que elas realmente concordam com tais idias. Os agentes comunitrios

    tambm precisam estar capacitados para entender e utilizar os conceitos centrais

    empregados. Todos os envolvidos devem compartilhar uma linguagem e um iderio

    comum.

    A prpria equipe executora nem sempre se entende em relao aos pressupostos

    tericos e extra-cientficos que norteiam seu projeto. Por exemplo, entrei em contato com

    certa equipe onde pelo menos uma parte trabalhava com um referencial de linguagem

    apoiada na produo latino-americana da Anlise Institucional e na produo de Foucault e

    Guattari. Isso implica uma nfase e uma valorizao do saber e do trabalho das

    comunidades, da elaborao de estratgias para a participao popular e da concepo da

    sociedade [brasileira] como desigual e injusta. J outra parte da equipe trabalhava com um

    referencial de tecnologia social e com a concepo de nossa sociedade como portadora de

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    um enorme dficit social, o que requer planejamento para aes e investimentos

    compensatrios.

    A existncia de tais vises diferentes no est aqui colocada como um impedimento

    para resultados interessantes. Mediados pela reflexo, pode-se chegar a pontos

    convergentes e ao reconhecimento das diferenas, mesmo das diferenas irredutveis, com

    a produo de um consenso, possvel e provisrio. O problema acontece quando essas

    diferenas no so reconhecidas nem discutidas.

    Falta geralmente a esse tipo de trabalho um espao de reflexo, de troca e de crtica

    dos passos j dados. necessrio ter um tempo e um lugar para estudar e discutir sobre os

    passos dados e os futuros passos, que no pode ser desfavorecido em favor de outros

    compromissos. Fazer isso no ociosidade nem academicismo, mas garante consistncia,

    adequao e coeso ao projeto.

    Mas ao longo do processo, na prtica cotidiana, as prioridades ditadas pela

    coordenao da gesto, as exigncias dos vrios financiadores internacionais e suas

    concepes e expectativas sobre projetos sociais em pases perifricos e, sobretudo, a falta

    de estudo e sistematizao das experincias em favor de um imediatismo de agenda; enfim,

    o reinado de um pragmatismo pouco propenso anlise crtica, foram, pelo menos no caso

    visto, afastando cada vez mais as direes e a equipe de um consenso no pensar, no falar e

    portanto no agir.

    Tudo isso aponta para a comunicao: importante que a linguagem comum,

    produzida no entendimento amplo, seja expandida em publicaes de formatos variados.

    Comunicar-se em seminrios, congressos, eventos culturais e estabelecer uma troca

    sistemtica com movimentos sociais, centros de defesa dos direitos de crianas, conselhos

    de sade e da criana, fruns de discusso e afins uma estratgia fundamental para a

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    divulgao do projeto e seus resultados e para a construo de uma verdadeira atuao em

    redes (Zamora, 2005), e de fomento a polticas pblicas consistentes.

    4. Para no concluir...

    Muitos outros desafios so propostos a todos os que esto no campo social. Destaco a

    necessidade de pensar mais a respeito da refilantropizao da assistncia; das verdadeiras

    disputas dos diferentes nveis de governo para ver quem no assume obrigaes claramente

    previstas na Constituio; haveria que pensar sobre o papel do chamado Terceiro Setor na

    gesto da questo social; haveria tambm muito o que falar sobre a questo da atuao (e

    omisso) da universidade e das suas diretrizes (ou sua falta delas) na implantao dos

    programas de extenso. Contudo, aqui priorizei apenas dois problemas que afetam as

    intenes de construir ou ampliar as possibilidades de participao popular; quis mostrar

    como o prprio cotidiano da pesquisa e da interveno, com todas as suas exigncias, se

    destitudo de reflexo, apenas reproduz lugares e funes marcados pelo lugar ocupado por

    cada classe social; pela diviso entre trabalho manual e trabalho intelectual e muitas vezes

    vm apenas reforar o que para combater.

    Ressalvo que o projeto foi bem sucedido, cumprindo com muitas de suas propostas.

    No se trata de desqualificar esse tipo de iniciativas e nem os tcnicos nela envolvidos.

    Mas certamente seu impacto e resultados poderiam ter sido maiores e mais interessantes na

    vida de pessoas que pouco ou nada tm e que, apesar disto, conseguem superar nossas

    limitadas expectativas sobre suas possibilidades de coragem e alegria, de criar, se organizar

    e mudar a vida.

    Acertos e erros na pesquisa e na interveno constituem lies aprendidas e podem

    contribuir para exercitar uma razo ativa nem indolente nem omissa diante dos grandes

    desafios atuais do campo social em tempos dos ventos do Norte do neoliberalismo.

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    Referncias Bibliogrficas

    BAREMBLITT, G. (1992). Compndio de Anlise Institucional e outras correntes. Rio de

    Janeiro: Rosa dos Tempos.

    SANTOS, BOAVENTURA DE SOUSA. (2000) A Crtica da Razo Indolente: Contra o

    Desperdcio da Experincia. So Paulo: Cortez.

    GUATTARI, F. E ROLNIK, S. (1986) Micropoltica: Cartografias do Desejo. Petrpolis:

    Vozes.

    JIMNEZ-DOMNGUEZ, B. ( 2004) La Psicologa Social Comunitaria en Amrica Latina

    como Psicologa Social Crtica, Vol. XIII, N 1: Pg. 133-142

    HERNNDEZ, E. (l994). Elementos que facilitan o dificultan el surgimiento de un

    liderazgo comunitario. En M. Montero (Coord.), Psicologa Social Comunitaria.

    Mxico: Universidad de Guadalajara.

    SOARES, A. B. (2001) Comunidades e Intervenes: Olhares em (Des) Construo

    Dissertao de Mestrado - UERJ.

    ZAMORA, M. H. (2005). O Trabalho em rede na ao socioeducativa. In: Revista Atitude

    Legal. Rio de Janeiro: Projeto Legal, Pgs. 49-52.