yudith rosenbaum - clarice lispector (folha explica)(doc)(rev)

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  • CLARICE LISPECTOR

    http://groups.google.com.br/group/digitalsource

    Esta obra foi digitalizada pelo grupo Digital Source para proporcionar, de maneira totalmente gratuita, o benefcio de sua leitura queles que no podem compr-la ou queles que necessitam de meios eletrnicos para ler. Dessa forma, a venda deste e-book ou at mesmo a sua troca por qualquer contraprestao totalmente condenvel em qualquer circunstncia. A generosidade e a humildade a marca da distribuio, portanto distribua este livro livremente.

    Aps sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original, pois assim voc estar incentivando o autor e a publicao de novas obras.

  • CONSELHO EDITORIAL

    Alcino Leite Neto

    Ana Luisa Astiz

    Antonio Manuel Teixeira Mendes

    Arthur Nestrovski

    Carlos Heitor Cony

    Gilson Schwartz

    Marcelo Coelho

    Marcelo Leite

    Otavio Frias Filho

    Paula Cesarino Costa

  • FOLHA EXPLICA

    CLARICE LISPECTOR

    YUDITH ROSENBAUM

    PUBLIFOLHA

  • 2002 Publifolha Diviso de Publicaes da Empresa Folha da Manh S/A

    2002 Yudith Rosenbaum

    Editor

    Arthur Nestrovski

    Editor-assistente

    Paulo Nascimento Verano

    Assistncia editorial

    Marcelo Ferlin Assami

    Capa e projeto grfico

    Silvia Ribeiro

    Assistncia de produo grfica

    Soraia Pauli Scarpa

    Reviso

    Mrio Vilela

    Fotos

    Folha Imagem: Wilmar/FI (p.25), p. 92

    Editorao eletrnica

    Picture studio & fotolito

  • SUMRIO

    INTRODUO:

    VESTGIOS DE UMA IDENTIDADE ......................................7

    1. CLARICE E SEU TEMPO ..............................................................15

    2. O NCLEO SELVAGEM DA VIDA

    (ROMANCES PARTE I) .......................................................27

    3. A NASCENTE E A ESTRELA

    (ROMANCES PARTE II) ......................................................47

    4. CLARICE CONTISTA

    OU A NTIMA DESORDEM .....................................................63

    5. ENTRE O EU E O OUTRO

    (CONTOS PARTE II) ...........................................................75

    6. RELANCES DE CLARICE ..............................................................85

    CRONOLOGIA ...............................................................................93

    BIBLIOGRAFIA ...............................................................................99

    Para Marcelo,

    minha estrela de todas as horas

  • 7

    INTRODUO:

    VESTGIOS DE UMA IDENTIDADE

  • 8

    Sou uma iniciada sem seita.

    gua Viva (1973)

    surgimento de Clarice Lispector (1920-77) no cenrio literrio

    brasileiro dos anos 40 representou um verdadeiro choque para

    crticos e leitores da poca. E continua sendo at hoje uma

    experincia, no limite, indecifrvel, seja para seu pblico cativo, seja para os

    que dela se aproximam pela primeira vez. Da, talvez, as centenas de artigos,

    ensaios e teses que rondam sua obra, tentando decifrar o que, afinal,

    provocaria tanto fascnio para alguns e tanto mal estar e perplexidade para

    outros, mitificada ou rejeitada ao longo de mais de 30 anos de produo

    literria passando por romances, contos, crnicas e livros infantis , a

    mulher e escritora Clarice Lispector resiste a todas as tentativas de

    enquadramentos, classificaes ou definies. O que

    9

    ela pensava da vida talvez pudesse estender-se a sua prpria pessoa: "O

    mundo me parece uma coisa vasta demais e sem sntese possvel".1

    Em vrios depoimentos, entrevistas e cartas, ela insistia em preservar-

    se, mas Ilustrava as expectativas de que fosse uma personalidade misteriosa ou

    extica: "Levo uma vida muito corriqueira. Crio meus filhos. Cuido da casa.

    Gosto de ver meus amigos. O resto mito".2

    A amiga e confidente Olga Borelli, que partilhou do cotidiano de

    Clarice Lispector nos ltimos anos de vicia da autora, confirma: "Ela era uma

    dona-de-casa que escrevia romances e contos".3 Com a mquina de escrever

    no colo, produzia seus livros com os filhos ao redor, atendendo ao telefone,

    chamando a empregada e recebendo os amigos.

    1 Olga Borelli, Clarice Lispector: Esboo Para um Possvel Retrato. Rio de Janeiro, Nova Fronteira. 1952;

    p. 112

    2 Ibidem, p. 435

    3 Ibidem. p. 14.

    O

  • Mesmo tendo evitado expor sua intimidade ao pblico, Clarice

    Lispector fez de seus textos um vasto itinerrio de uma identidade inquieta e

    turbulenta, inadaptvel s expectativas sociais, obsessiva na captura de si

    mesma e do outro, desmascarando, sob o verniz do cotidiano, um mundo de

    desejos e fantasias inconfessveis. E possvel conhec-la atravs de inmeros

    vestgios, indcios e revelaes, dispersos sob as falas de tantas personagens,

    narradores implcitos ou interpostos, ou ainda nos vrios fragmentos

    espcies de epigrama e aforismo que aparecem infiltrados num corpo

    textual incomum. A literatura de uma das mais importantes escritoras

    brasileiras est, portanto, muito alm da simplicidade domstica que seu

    cotidiano faz crer.

    10

    Se verdade que sua vida no primou por aventuras espetaculares, seus

    textos fizeram dessa contingncia a maior marca. Diz a autora: "Meus livros,

    infelizmente para mim, no so superlotados de fatos e sim da repercusso

    dos fatos nos indivduos".4 Sero tambm as ressonncias de seus escritos que

    nos levaro a um possvel perfil da prpria escritora e, sobretudo, s

    complexas relaes entre realidade e linguagem presentes em sua obra,

    inditas na poca em que a autora surgiu.

    DESEJO DE PERTENCER

    Clarice Lispector nasceu em Tchechelnik, uma aldeia da Ucrnia,

    quando a famlia emigrava da Rssia para a Amrica, fugindo da perseguio

    aos judeus aps a Revoluo Bolchevique de 1917. Os pais hesitaram entre os

    EUA e o Brasil e acabaram aportando em Macei, capital de Alagoas, em

    1921. Clarice Lispector tinha ento dois meses de idade, sendo a menor de

    trs irms. Em 1924, a famlia muda-se para Recife, onde reside por nove

    anos. E nesse perodo, recm-alfabetizada, que Clarice Lispector descobre a

    literatura: "quando eu aprendi a ler e escrever, eu devorava os livros! [...] Eu

    pensava que livro como rvore, como bicho: coisa que nasce! No descobria

    que era um autor! L pelas tantas, eu descobri que era um autor. A disse: 'Eu

    tambm quero'".5

    A pequena escritora, ento com sete anos, comea a mandar contos

    para a seo infantil do Dirio 4 Ibidem, p. 70.

    5 Nadia Battela Gotlib, Clarice: Uma Vida Que se Conta. So Paulo: tica, 1995: p. 87.

  • 11

    de Pernambuco, que nunca os publicar. "As outras crianas eram publicadas e

    eu no", relembra Clarice. "Logo compreendi por qu: elas contavam

    histrias, uma anedota, acontecimentos. Ao passo que eu relatava sensaes...

    coisas vagas." 6

    Esse mesmo episdio, o primeiro de uma srie de desencontros entre o

    universo ficcional da autora e o mundo das convenes literrias, ser matria

    da crnica "Era uma Vez", que foi publicada em 1964 no volume A Legio

    Estrangeira 7 (e que reaparecer no Jornal do Brasil, em 1972, com o ttulo "Ainda

    Impossvel"). Nessa crnica, a autora, j adulta, pensa "estar pronta para o

    verdadeiro 'era uma vez'" e tenta apenas relatar um acontecimento: "No

    entanto, ao ter escrito a primeira frase, vi imediatamente que ainda me era

    impossvel. Eu havia escrito: 'Era uma vez um pssaro, meu Deus'".

    desse assombro constante do ato de narrar diante da realidade,

    sempre impossvel e inatingvel pela palavra, que a obra clariciana ir tratar,

    convulsiva e reiteradamente. Ao leitor, restar deixar-se conduzir por uma

    escritura errante, que alude ao inexprimvel, zona obscura do que a palavra

    no pode expressar, como se l nesta passagem do romance gua Viva:

    "Ouve-me, ouve o silncio. O que te falo nunca o que eu te falo e sim outra

    coisa. Capta essa coisa que me escapa e no entanto vivo dela e estou tona de

    brilhante escurido".8

    No s sua escrita se faz pelo avesso sendo a escuta do que se cala

    ou a viso do que se oculta , mas a prpria verso que a autora traz de seu

    nascimento revela uma "falha" de origem, um desvio fundante que a

    12

    acompanhar vida afora e que ela chama de uma "espcie de solido de no

    pertencer". A palavra de Clarice, numa de suas crnicas: "fui preparada para

    ser dada luz de um modo to bonito. Minha me j estava doente, e, por

    superstio bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma

    mulher de uma doena. Ento fui deliberadamente criada: com amor e

    esperana. S que no curei minha me. E sinto at hoje essa carga de culpa:

    fizeram-me para uma misso determinada e eu falhei. Como se contassem

    comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado. Sei que meus pais

    6 Ibidem, p. 88.

    7 A legio estrangeira (Fundo de Gaveta Parte II). Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1961. p. 140.

    8 gua Viva 5. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980; p. 14.

  • me perdoaram eu ter nascido em vo e t-los trado na grande esperana. Mas

    eu, eu no me perdo".9

    A me de Clarice, Marieta, sofria de uma paralisia progressiva que a

    tornou invlida, at morrer, em 1930. O pai, Pedro, era mascate e teve uma

    vida marcada pela pobreza. Uma das frases iniciais da mesma crnica

    "Tenho certeza de que no bero a minha primeira vontade foi a de pertencer"

    torna-se um veio importante na compreenso da vida e da obra de Clarice

    Lispector. Imigrante russa, nunca se sentiu russa, e nem sequer falava a lngua

    idiche dos pais. Os "erres" de sua lngua presa confundiam os ouvintes, que

    pensavam tratar-se de uma francesa. O judasmo, por sua vez, era vivido de

    forma crtica, como declarou a um jornalista um ano antes de morrer: "Eu sou

    judia, voc sabe. Mas no acredito nessa besteira de judeu ser o povo eleito

    por Deus. No coisa nenhuma. Os alemes que devem ser porque fizeram

    o que fizeram. Que grande eleio foi essa para os judeus?" 10 Sentia-se,

    sobretudo, brasileira, tendo o portugus como lngua materna. Mas a

    identidade de si mesma perma-

    13

    necia-lhe obscura, fugidia, e sua escrita parece ter sido sempre uma tentativa

    de encontrar-se. E perder-se novamente.

    Nascida europia, criada nordestina, residente carioca a partir dos 13

    anos e, na condio de esposa de diplomata, habitante de vrios pases (Itlia,

    Sua, Inglaterra e EUA, entre outros), Clarice Lispector no passaria

    inclume por tal nomadismo. "Tudo terra dos outros, onde os outros esto

    contentes", diria em carta de Berna para a irm Tnia, em 1946.

    Sua dispora pessoal exterior e interior inspirou as falas mais

    diversas de alguns amigos prximos. Para o escritor Antnio Callado, "Clarice

    era uma estrangeira na terra". Para o cronista Otto Lara Resende, "era o seu

    tanto adivinha". J o amigo e psiquiatra Hlio Pellegrino a via como "vidente e

    visionria", uma "personalidade lisrgica". O jornalista Paulo Francis, por fim,

    acabou sendo o mais contundente: "Clarice era uma mulher insolvel".11

    Seja como for, o dilogo possvel com a obra dessa escritora ter de

    fazer-se aos poucos, de forma tateante e fragmentria, de um modo mais

    9 A Descoberta do Mundo 3 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992: p. 111.

    10 Apud. Nelson Vieira, "A expresso Judaica na Obra de Clarice Lispector". Em: Vilma Aras e Berta

    Waldman (orgs.). Remate de Males, 9. Campinas:: Unicamp, 1989; p. 207.

    11 Todos os depoimentos citados esto em Gotlib. op. cit., p. 52-3

  • alusivo do que afirmativo como so, na verdade, os seus escritos. Alis,

    mesmo querendo desmistificar-se, Clarice estava convicta de que s poderia

    ser entendida telepaticamente... Para ser fiel a uma escrita que busca no

    esmagar com palavras as entrelinhas,12 preciso ler distraidamente, desarmar-

    se para reconhecer o que

    14

    ela denomina "o invisvel ncleo da realidade" e experimentar o "assustador

    contato com a tessitura de viver". Mas a referncia maior do presente estudo

    explicitado pela prpria autora: "Se eu tivesse que dar um ttulo minha vida

    seria: procura da prpria coisa".13

    Como se v, este pequeno livro introdutrio dever partir de uma

    desistncia desistir de "explicar" Clarice. O que se pretende, ento,

    rastrear algumas linhas de fora que marcam sua obra, pouco esquematizvel

    num percurso progressivo ou evolutivo historicamente. Donde a opo por

    um tratamento mais temtico-estilstico, dentro dos vrios gneros cultivados

    pela autora. Mesmo essa diviso dos captulos sendo dois sobre os

    romances e dois sobre os contos, precedidos pelo captulo inicial "Clarice e

    Seu Tempo", atravessados por alguns trechos de suas crnicas e finalizados

    por "Relances de Clarice" atende apenas necessidade didtica de

    apresent-la ao leitor j que suas preocupaes fundamentais, entremeadas a

    seu estilo inconfundvel, no se diferenciam por gneros nem por pocas. So

    sempre a mesma personalidade literria e os mesmos motivos recorrentes que

    esto em jogo, compondo uma espcie de "samba de uma nota s", que

    ressurge sob disfarces, dissimulaes, fingimentos e outras estratgias a serem

    vistas. Nosso caminho ter a figura da espiral, que convida a revisitar aspectos

    j abordados para reinscrev-los numa nova e, ao mesmo tempo, familiar

    configurao.

    12

    "Mas j que se h de escrever, que ao menos no se esmaguem com palavras as entrelinhas." Em: A Legio Estrangeira, op. cit., p. 137.

    13 Ibidem, p. 221.

  • 15

    1 CLARICE E SEU TEMPO

  • 16

    A realidade a matria-prima, a linguagem o modo como vou busc-la e como no acho.

    Mas do buscar e no achar que nasce o que no conhecia, e que instantaneamente reconheo.

    A Paixo Segundo G.H. (1964)

    uando Clarice Lispector iniciou o curso de direito, em 1939, pensava

    em reformar penitencirias. Ela mesma conta que, por ter sido muito

    reivindicadora de direitos quando criana, todos diziam que seria

    advogada, mas acabou escolhendo estudar direito por Falta, diz ela, de

    qualquer outra orientao profissional. Nunca exerceu o ofcio, nem mesmo

    para defender seus prprios direitos autorais. Em 1943, formada e j casada

    com o colega de turma e futuro embaixador Maury Gurgel Valente, Clarice

    exercia, desde 1940, a atividade de jornalista que permeou sua vida at os

    ltimos anos em simultaneidade com a de escritora.14

    17

    No mesmo ano de 1940, Clarice Lispector tem seu primeiro conto

    publicado, no jornal carioca Pan, com o ttulo "Triunfo";15 o drama conjugal j

    est em pauta e ser o eixo nuclear de boa parte de sua obra futura. A

    narrativa se faz toda em torno das impresses de Luisa, que acorda no dia

    seguinte partida do marido, Jorge, e depara com o silncio da separao: "De

    repente seus olhos crescem. Luisa acha-se sentada na cama, com um

    estremecimento por todo o corpo. Olha com os olhos, com a cabea, com

    todos os nervos, a outra cama do aposento. Est vazia". Lentamente, as cenas

    conjugais, bem como a briga da noite anterior, vo se configurando para a

    protagonista e para o leitor: "imagens, as mais loucas, chegavam-lhe

    mente apenas esboadas e j fugidias". Desde ento, visvel um trao perene

    de sua obra a cumplicidade entre narrador e personagem, ambos de tal

    modo identificados que a fronteira entre as falas de uni e outro se apaga: "E 14

    Clarice Lispector foi uma das primeiras reprteres brasileira. Era a nica mulher redatora na agenda Nacional. Depois Trabalhou como reprter no jornal A Noite, ao lado de personalidades, como por exemplo, os escritores Lcio Cardoso (que ser um dos seus amigos mais ntimos) e Antonio Callado. Escrevia ainda para o Correio da Manh, o Dirio da Noite, a revista Senhor e a revista Manchete, entre outros peridicos.

    15 Jornal Pan. Rio de Janeiro. 25/5/1940.

    Q

  • aquela sensao j experimentada das outras vezes em que brigavam: se ele for

    embora, eu morro, eu morro".

    Aps caracterizar o homem como "intelectual fino e superior" e a

    mulher como algum que sofre a ausncia e se cr incapaz, Clarice inverte o

    jogo (como far tantas outras vezes) e termina o texto com a frase triunfante

    de Luisa, dita pela voz do narrador: "Ele voltaria, porque ela era a mais forte".

    Para alm do senso comum, as noes de feminino e masculino, bem como as

    de fora e fragilidade, j esto postas em questo no texto inaugural da autora.

    Aos 20 anos, ainda em 1940, a jovem escritora aprofunda a nfase no

    mundo interno das personagens e focaliza, no conto "A Fuga", publicado

    postumamente no volume A Bela e a fera (1979), os breves momentos

    18

    de uma esposa que resolve separar-se aps 12 anos de um casamento

    sufocante. Em sua fugaz caminhada de libertao pela cidade, a mulher

    percebe como esteve aprisionada: "Sim, doze anos pesam como quilos de

    chumbo. Os dias se derretem, fundem-se e formam um s bloco, uma grande

    ncora". E sintetiza o que ser um leitmotiv da autora: "Os desejos so

    fantasmas que se diluem mal se acende a lmpada do bom senso".16

    Outra frase do conto exemplifica a sensibilidade da autora para captar

    densas transformaes psquicas e sociais a partir de sutilezas da linguagem,

    como se v nesta passagem, em que a protagonista se pe a imaginar o que

    diria a um transeunte: "Meu filho, eu era uma mulher casada e sou agora uma

    mulher". A simples retirada de um adjetivo tem o alcance de um ritual de

    passagem.

    PPEERRTTOO DDOO CCOORRAAOO SSEELLVVAAGGEEMM

    Tambm ritualstica ser a entrada impactante nas letras brasileiras do

    primeiro livro de Clarice Lispector, Perto do Corao Selvagem, em 1943,

    significando uma enorme renovao na prosa que se fazia no pas desde os

    anos 30. Far o romance regionalista de ento, o que importava era a realidade

    social retratada em tom de denncia da injustia e do preconceito, marcada

    pelo neonaturalismo do entreguerras (1918-39) e fortemente influenciado pelo

    romance social americano de Upton Sinclair, John Steinbeck e John dos

    Passos, do jovem Ernest Hemingway e de William Faulkner. O chamado

    16

    A Bela e a Fera. 4 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992. P. 78

  • romance social brasileiro, inaugurado com

    19

    A Bagaceira (1928), de Jos Amrico de Almeida, ser cultivado em tons

    diferentes por Jos Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos e

    Jorge Amado, entre outros. Os temas da misria, da fome nordestina e das

    relaes de poder e dominao entre os homens sero enfocados num registro

    coloquial, mais natural e mais prximo dos agentes e do meio cultural em

    questo. No entanto, a potncia da linguagem, presente em diferentes nveis

    nesses autores, estar, de modo geral, ainda subordinada ao tema, fazendo a

    palavra comprometer-se mais com a realidade emprica que quer denunciar do

    que com o mundo da inveno lingustica. A supremacia da experimentao

    esttica ser uma marca da dcada seguinte.

    nesse cenrio que a obra de estria de Clarice Lispector desestabiliza

    as referncias romanescas institudas, tais como o descritivismo de cenrios e

    tipos humanos e o vis determinista e fatalista ainda impregnante. Antonio

    Candido sintetiza o "desvio criador" representado pela escrita clariciana, que

    vai aos poucos saindo da marginalidade para tornar-se ponto de referncia: "A

    jovem romancista ainda adolescente estava mostrando narrativa

    predominante em seu pas que o mundo da palavra uma possibilidade

    infinita de aventura, e que antes de ser coisa narrada a narrativa forma que

    narra".17 E afirma: "Por isso o seu pri-

    20

    meiro livro foi um choque, cuja influncia caminhou lentamente, medida

    que a prpria literatura brasileira se desprendia das suas matrizes mais

    contingentes, como o regionalismo, a obsesso imediata dos 'problemas'

    sociais e pessoais, para entrar numa fase de conscincia esttica

    generalizada".18

    Essa "conscincia esttica", que cria uma nova realidade com base na

    soberania da palavra, ter, na mesma poca, outro ilustre representante: o

    17

    Antonio Candido, "No Comeo Era de Fato o Verbo". Em: Clarice Lispector, A Paixo Segundo G.H.. Edio crtica, coord. Benedito Nunes. 2. ed. Madrid/Paris/Mxico/Buenos Aires/So Paulo/Rio de Janeiro/Lima: Allca XX (Col. Archivos), 1996; p. XVII. Embora Clarice Lispector contasse na poca 24 anos, provavelmente Antonio Cndido considera a data de nascimento10 de dezembro de 1925 (e no 1920), o que a faz mais jovem do que de fato era. H muitas verses de sua certido de nascimento, talvez devido ao processo de imigrao ou mesmo a perdas de documentao. Nas ltimas dcadas de vida a prpria escritora adotou diferentes datas, e a crtica fixou por muito tempo o ano de 1925. Atualmente, contudo, sabe-se que a data correta 10 de dezembro de 1920.

    18 Idem, Ibidem p. XIX

  • escritor mineiro Joo Guimares Rosa, que lana Sagarana em 1946. Ambos,

    Lispector e Rosa, sero o marco de uma enorme ruptura com a forma de

    representar a realidade utilizada at ento. O universo semntico de seus

    textos extrapola os limites dicionarizados e aposta na construo de seus

    prprios referentes. assim que se pode entender o novo campo vocabular

    de Clarice, quando escreve: "O que uma janela seno o ar emoldurado por

    esquadrias?" Ou ainda: "Escrever tantas vezes lembrar-se do que nunca

    existiu". As definies so viradas pelo avesso para revelar por dentro a

    realidade dos seres, gerando ainda novas faces do real a partir de experimentos

    com a linguagem.

    Para os dois autores, vale a mxima de que os escritores criam no

    apenas suas personagens, mas tambm seus leitores. As obras de ambos foram

    recebidas inicialmente com a resistncia de quem se habituou a uma forma

    romanesca acabada e linear. No caso de Clarice, o primeiro romance recebeu de

    lvaro Lins uma dura crtica, publicada em fevereiro de 1944, que teria abalado

    muito a jovem estreante. No artigo, intitulado "A Experincia Incompleta:

    Clarice Lispector", Lins no deixa de reconhecer a originalidade e os

    21

    mritos da escritora, como "a capacidade de analisar as paixes e sentimentos

    sem quaisquer preconceitos; os olhos que penetram at os cantos misteriosos

    do corao; o poder do pensamento e da inteligncia; e sobretudo a audcia:

    audcia na concepo, nas imagens, nas metforas, nas comparaes, no jogo

    de palavras".19 Mas considera o romance incompleto e inacabado, sem

    "unidade ntima", j que se sustenta mais por "situaes isoladas do que pelo

    conjunto". Critica, ainda, o que chama de "verbalismo" e acusa tanto a falta da

    "criao de um ambiente mais definido e estruturado quanto a existncia de

    personagens como seres vivos".

    Quanto a esses aspectos, v-se que as reivindicaes do crtico referem-

    se a procedimentos ainda realistas, incongruentes com a experincia de uma

    escrita que se pretende justamente fragmentria e descontnua.

    O pressuposto do crtico que a obra se insere na chamada "literatura

    feminina", marcada pela exagerada projeo lrica e narcsica da autora, o que,

    segundo Lins, prprio do carter das mulheres, pouco contidas para aterem-

    se aos "limites da impessoalidade realista ou naturalista". Ainda assim, a

    19

    lvaro Lins. Os Mortos de Sobrecasaca: Ensaios e Estudos (1940-1960). Rio de janeiro. Civilizao Brasileira, 1963; p. 191.

  • mistura de lirismo e realismo situaria o romance, para Lins, na categoria do

    "realismo mgico", o que faria da obra a primeira experincia no Brasil "do

    moderno romance lrico, do romance que se acha dentro da tradio de um

    Joyce ou de uma Virgnia Woolf".

    J a recepo de Srgio Milliet foi mais entusiasmada: "Raramente tem

    o crtico a alegria da descoberta [...]. Pois desta feita fiz uma que me enche de

    22

    satisfao". E prossegue: "Diante daquele nome estranho e at desagradvel,

    pseudnimo sem dvida, eu pensei: mais uma dessas mocinhas que principiam

    'cheias de qualidades', que a gente pode elogiar de viva voz, mas que

    morreriam de ataque diante de uma crtica sria".20 Fascinado com o dilogo

    interior da personagem principal, Joana, Milliet percebe nela o que prprio

    do universo da autora: "Porque para essa herona de olhos fixos nos menores,

    nos mais tnues movimentos da vida, no h uma realidade, mas vrias; e todo

    o seu drama nasce mesmo da contradio, do antagonismo de seu mundo

    prprio, cheio de significados especficos, com os mundos alheios, ou mais

    vulgares ou impenetrveis".21 Ao final do artigo, depois de aproximar a autora

    de escritores como Andr Gide e Charles Morgan, o crtico conclui que Perto

    do Corao Selvagem "surge no nosso mundo literrio como a mais sria

    tentativa de romance introspectivo".

    UUMM EESSTTIILLOO NNIICCOO

    Lrico, mgico, feminino, introspectivo... As classificaes continuaro

    a suceder-se, tentando abarcar um estilo rebelde a todos. No entanto, algumas

    afirmaes menos arriscadas so possveis. Trata-se de uma literatura no mais

    estritamente realista, mas simblica ainda que o apego ao mundo exterior

    obra no tenha desaparecido de todo, oscilando em tenso com um

    antirealismo, como veremos mais adiante. ver-

    23

    dade que a tradio literria brasileira conheceu, com os modernistas Mrio de

    Andrade e Oswald de Andrade, nos anos 20, semelhante compromisso com a

    linguagem em detrimento, por exemplo, do documentarismo naturalista.

    Os paulistas, porm, como todo o movimento da Semana de Arte Moderna,

    20

    Sergio Milhet. Dirio Crtico II (1944) 2. ed. So Paulo: Martins/Edusp. 1982; p.27.

    21 Ibidem, p. 28-9.

  • buscavam demolir as velhas estruturas acadmicas que enrijeciam o vo

    liberto da linguagem, sobretudo na poesia, como atestavam os modelos

    parnasianos. Eram "homens de guerra",22 com um programa consciente e

    engajado. J nossa autora no respondia a nenhum manifesto, a nenhuma

    determinao programtica. Sentia-se isolada nas letras brasileiras e no

    pertencia a nenhum grupo organizado. De fato, seu estilo encontrava apenas

    em si mesmo a motivao e a prpria legitimidade.

    Clarice Lispector no poderia tambm ser alinhada com a vertente,

    ento em voga, do romance psicolgico, inspirado pelos franceses Julien

    Green, George Bernanos, Franois Mauriac e Jacques Maritain e cultuado

    entre ns por toda uma gerao de escritores e pensadores catlicos ou

    espiritualistas, como Otvio de Faria, Tristo de Athayde, Cornlio Pena e

    Lcio Cardoso. Distantes do engajamento social, penetram na subjetividade e

    universalizam o que antes era regional e agnstico. As noes de pecado,

    culpa, esprito, carne, sobrenatural e religiosidade, bem como todo o universo

    fantasmagrico e mrbido que ali se expressava, no correspondiam,

    entretanto, ao mundo clariciano. Ainda que Clarice tambm explore a

    intimidade, priorize a experincia interior e toque a esfera da metafsica, o

    mistrio que emana de seus textos

    24

    advm de uma sondagem milimtrica da alma e no de alguma transcendncia

    mstica religiosa. Alm disso e de modo ainda mais importante , seus

    recursos expressivos so muito mais radicais.

    Como diz Berta Waldman a respeito de Perto do Corao Selvagem, "a

    descrio minuciosa de mltiplas experincias psquicas no implica nunca a

    anlise de caracteres ou fixao de tipos maneira do realismo psicolgico do

    sculo 19".23 O que ocorre, segundo Waldman, a ruptura da linearidade de

    todas as instncias narrativas enredo, espao, tempo, personagens, ponto

    de vista , categorias ainda preservadas no romance intimista. Optando pela

    conscincia individual como centro de apreenso do real, sua escrita resultar

    fragmentria e ambivalente j que o sujeito da conscincia ser questionado

    em sua capacidade de abarcar a totalidade da experincia. A crise da

    subjetividade, denunciada pela arte moderna no comeo do sculo 20,

    dominar a cena literria clariciana, e essa nova condio do homem no

    22

    Antonio Candido, op. cit., p. XVII.

    23 Berta Waldman. A Paixo Segundo G. H. 2. ed. rev. e ampl. So Paulo: Escuta 1992; p. 34.

  • mundo acarretar profundas inovaes formais. O resultado ser uma

    atmosfera inslita e voltil, marcada pelo fluxo mental e pelas associaes

    livres das personagens, misturadas de forma ambgua s falas do narrador,

    traos conhecidos da fico moderna.

    Se Clarice Lispector no reformou penitencirias, como imaginava

    quando estudante, certamente continuou muito "reivindicadora de seus

    direitos", pelo menos em sua fidelidade para criar sem concesses,

    transgredindo vrios parmetros e modelos estabelecidos em seu tempo. De

    que modo e a que preo o que veremos a seguir.

    25

    Clarice Lispector (1961)

  • 26

    Primeira edio de A Cidade Sitiada (Rio de Janeiro: A Noite, 1949)

  • 27

    2

    O NCLEO SELVAGEM DA VIDA

    (ROMANCES PARTE I)

  • 28

    Estou falando de procurar em si prprio a nebulosa que aos poucos se condensa, aos poucos se concretiza,

    aos poucos sobe tona at vir como um parto a primeira palavra que a exprima.

    "Escrever ao Sabor da Pena", em A Descoberta do Mundo (1984)

    larice Lispector escreveu nove romances, tendo sido o ltimo, Um

    Sopro de Vida, publicado postumamente, em I978. Desse conjunto,

    foram selecionados quatro para comentar aqui, dados os limites desta

    apresentao. Neste captulo, o foco recair sobre o primeiro, Perto do Corao

    Selvagem, j introduzido no captulo anterior, e o quinto, A Paixo Segundo

    G.H., de 1964. Far o prximo, esto reservados gua Viva, de 1973, e o

    ltimo livro publicado em vida, A Hora da Estrela, de 1977.

    Clarice tinha o hbito de guardar folhas soltas guardanapos, tquetes,

    papis de chiclete etc. com idias surgidas ao longo das mais variadas

    situaes cotidianas. Ser a ordenao dessas notas que ir compor o romance

    de estria, que marca tambm seu mtodo desde ento definitivo: jamais

    reescrevia nem revisava suas anotaes fragmentrias e dispersas. "Eu

    acrescento ou corto, mas no

    29

    reescrevo."24 Esse modo muitas vezes "catico" de criao era frequentemente

    acompanhado de uma angstia intensa, ao lado de sofridos perodos de

    absoluta inatividade. Sero justamente esses vazios, nos quais a torrente

    criativa parece secar definitivamente, que Clarice buscar registrar como parte

    inerente do texto, seja nas pausas, seja nos silncios, seja mesmo no branco da

    escritura. As lacunas do discurso acabam tambm sendo expressivas, pois

    constituem respiros da palavra em que pulsa a inquietao silenciada.

    E o que lemos j no terceiro pargrafo de Perto do Corao Selvagem, cujas

    imagens parecem transitar do silncio ao movimento, revelando as percepes

    da protagonista, Joana, aqui ainda criana: "Houve um momento grande,

    parado, sem nada dentro. Dilatou os olhos, esperou. Nada veio. Branco. Mas

    24

    Cf. Gotlib. op. cit..p. 172.

    C

  • de repente num estremecimento deram corda no dia e tudo recomeou a

    funcionar, a mquina trotando, o cigarro do pai fumegando, o silncio, as

    folhinhas, os frangos pelados, a claridade, as coisas revivendo cheias de pressa

    como uma chaleira a ferver. S faltava o tin-dlen do relgio que enfeitava tudo.

    Fechou os olhos, fingiu escut-lo e ao som da msica inexistente e ritmada

    ergueu-se na ponta dos ps. Deu trs passos de dana bem leves, alados".25

    Embora a narrao seja em terceira pessoa, o mundo interno da

    personagem trazido para o leitor como se fosse revelado pela prpria

    protagonista, pois o narrador no se distancia do que mostra; ele acompanha

    em detalhes as menores oscilaes do olhar infantil

    30

    de Joana. Pausas e movimentos so descritos microscopicamente, agigantados

    por uma mirada que quer surpreender o instante em que as coisas se

    apresentam para um sujeito. o ponto de partida do romance e a perspectiva

    utpica de chegada de toda uma obra.26

    Esse primeiro livro, ganhador do prmio da Fundao Graa Aranha,

    abre-se com uma epgrafe retirada de uma obra de James Joyce, Retrato do

    Artista Quando Jovem (1916); a frase sugerida pelo amigo Lcio Cardoso, e

    Clarice a usa tambm para o ttulo, ressalvando que, de Joyce, s leu esta nica

    sentena: "Ele estava s. Estava abandonado, feliz, perto do selvagem corao

    da vida".27 A esto algumas linhas mestras da narrativa clariciana: abandono,

    solido, felicidade na oposio vida domesticada. Esse antagonismo com o

    mundo via de acesso ao ncleo selvagem da vida ser a marca de Joana,

    a personagem que tece a trama, desconexa e errante, do romance.28

    25

    Perto do Corao Selvagem. 6. ed. Rio de Janeiro. Jos Olympio, 1977.

    26 Ao tratar do quarto romance da autora. A Ma no Escuro, Gilda de Mello e Souza no s consagra

    Clarice Lispector como "romancista do instante", mas tambm comenta esse olhar narrativo feminino sensvel ao detalhe e mincia, uma vez que a posio social da mulher a teria limitado ao "espao confinado em que a vida se encerra: o quarto com os objetos o jardim com as flores, o passeio curto que se d at o rio ou a cerca". E define o que seria o olhar mope, prprio dessa escrita: "A viso que constri por isso uma viso de mope, e, no terreno que o olhar baixo abrange, as coisas muito prximas adquirem uma luminosa nitidez de contornos" ("O Vertiginoso Relance", em: O Baile das Quatro Artes: Exerccios de Leitura; So Paulo: Duas Cidades, 1980; p.79).

    27 James Joyce. Retrato do Artista Quando Jovem. trad. Jos Geraldo Vieira. So Paulo: Civilizao

    Brasileira, 1970.

    28 Antonio Candido, em dois artigos publicados em 1744 na Folha da Manh e depois reunidos no

    volume Vrios Escritos (So Paulo: Duas Cidades. 1977) considera o romance uma "variao sobre o suplcio de Tntalo. Joana passeia pela vida e sofre, sempre obcecada por algo que no atinge" (p. 127). O crtico tambm arrisca uma definio para a obra: "Aos livros que procuram esclarecer mais a essncia tio que a existncia, mais o ser do que o estar, com um tempo mais acentuadamente psicolgico, talvez seja melhor chamar de romances de aproximao" (p. 128).

  • 31

    A estruturao dos captulos no atende a nenhuma ordem cronolgica,

    saltando da infncia para a vida adulta e desta novamente para a meninice e

    adolescncia, j que o tempo que importa o da memria e o da introspeco.

    Como apontou Roberto Schwarz em artigo publicado em 1959, nesse

    romance "o tempo inexiste como possibilidade de evoluo".29 O fio tnue da

    fbula cria poucos e rarefeitos ncleos de ao: a infncia de Joana, a perda do

    pai, as relaes com o professor, o casamento, o amante, a separao entre

    Joana e o marido, Otvio, a viagem final. A trama feita de erupes e

    rupturas, cujo nico centro a busca de um mistrio intocvel: o ser, a

    existncia, a prpria identidade: "Quando me surpreendo ao fundo do espelho

    assusto-me, mal posso acreditar que tenho limites, que sou recortada e

    definida. Sinto-me espalhada no ar, pensando dentro das criaturas, vivendo

    nas coisas alm de mim mesma [...]. Fascinada mergulho o corpo no fundo do

    poo, calo todas as suas fontes e sonmbula sigo por outro caminho.

    Analisar instante por instante, perceber o ncleo de cada coisa feita de tempo

    ou de espao. Possuir cada momento, ligar a conscincia a eles, como

    pequenos filamentos quase imperceptveis mas fortes. a vida? Mesmo assim

    ela me escaparia".30

    A pergunta final dessa citao, como veremos, acompanhar a escritura

    da autora at seus ltimos dias. como diz Joana mais adiante: "O que

    importa afinal: viver ou saber que se est vivendo?" O hiato entre o vivido e o

    seu saber torna-se uma verdadeira

    32

    obsesso da escritora ao longo de toda a sua obra; para anular a distncia entre

    o pensar e o agir, a palavra e a vida, o ser e a linguagem, preciso tocar o

    potico como modo de capturar a "coisa" em si mesma. A prosa potica em

    Clarice, com suas analogias, aluses, sugestes, metforas e metonmias, ,

    portanto, o recurso mximo de quem quer superar as mediaes impostas pela

    lngua na captura da verdade do mundo, sabendo, porm, que o real s

    adquire sentido para o homem na linguagem, e sempre de forma oblqua e

    deslocada. O esforo da autora est em subverter os sentidos j gastos pelo

    uso corrente da lngua e resgatar o cdigo lingustico em sua fonte primeira:

    "as palavras vindas de antes da linguagem, da fonte, da prpria fonte".

    29

    Roberto Schwarz,"Perto do Corao Selvagem". Em: A Sereia e o Desconfiado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981: p. 54.

    30 Perto do Corao Selvagem. op. cit.. p. 63.

  • A personagem Joana vive na encruzilhada entre o imperativo de um

    logos vigilante, que est excessivamente presente em suas percepes c

    sensaes, e a tentativa de evitar a invaso do entendimento, que impede a

    entrega ao livre ser. Se por um lado essa inflao egica potencializa o

    discurso, por outro obstculo para a vida: "A personalidade que ignora a si

    mesma realiza-se mais completamente. Verdade ou mentira?" O romance

    parece apontar para uma nova concepo de sujeito, no mais identificado

    com uma racionalidade que se acredita soberana, mas sim descentrado da

    conscincia e aberto ao mundo imprevisvel e ilimitado do inconsciente.

    "Liberdade pouco. O que desejo ainda no tem nome."

    O mundo que decorre desse esvaziamento da razo cartesiana

    atravessado por foras nem sempre apaziguveis. A subjetividade que ascende

    ao primeiro plano inquieta e transgressora e s encontra sua natureza na

    destrutividade:"A certeza de que dou para o mal, pensava Joana". Ou ainda:

    "Nem o prazer me

    33

    daria tanto prazer quanto o mal, pensava ela surpreendida. Sentia dentro de si

    um animal perfeito, cheio de inconsequncias, de egosmo e vitalidade".

    De fato, o leitor acompanha o emergir de uma personalidade movida

    por fantasias (mais do que aes) de sadismo e de violncia como foras vitais

    inalienveis. Desde criana, Joana sensvel ao que h de selvagem nas

    relaes animais e humanas, e o prazer de tal viso j se deixa espreitar pela

    narrativa: "Encostando a testa na vidraa brilhante e fria olhava para o quintal

    do vizinho, para o grande mundo das galinhas-que-no-sabiam-que-iam-

    morrer. E podia sentir como se estivesse bem prxima de seu nariz a terra

    grande, socada, to cheirosa e seca, onde bem sabia, bem sabia uma ou outra

    minhoca se espreguiava antes de ser comida pela galinha que as pessoas iam

    comer". O contraste entre ingenuidade e violncia, bem como a sobreposio

    da morte ignorncia dos seres frente a ela, imprime uma tenso ao pargrafo.

    A vida animal, em toda a sua instintividade e "autodesconhecimento", ser um

    dos temas preferidos da autora, e a ele voltaremos nos demais captulos.

    OO MMAALL,, OO RREEAALL

    Essas mesmas pulses fanticas 31 iro ressurgir ao longo da obra de

    31

    Segundo a psicanlise, os seres humanos so movidos por um par opositivo de pulses: as de Tntaros, ou pulses de morte, que atuam de modo a desfazer vnculos, destruir ligaes e estabelecer cortes: e as de Eros, que so pulses de vida, responsveis pelo movimento amoroso de fuso, unio e vinculao entre os seres

  • Clarice Lispector de formas sempre transformadas. Vale a pena citar um

    pequeno trecho

    34

    da crnica Nossa Truculncia", de 1969, que aborda justamente o ato de

    comer galinha ao molho pardo: "Quando penso na alegria voraz com que

    comemos galinha ao molho pardo, dou-me conta de nossa truculncia. [...]

    Deveramos no com-la e a seu sangue? Nunca. Ns somos canibais,

    preciso no esquecer. E respeitar a violncia que temos. E, quem sabe no

    comssemos a galinha ao molho pardo, comeramos gente com seu sangue.

    [...] A nossa vida truculenta: nasce-se com sangue e com sangue corta-se a

    unio que o cordo umbilical. E quantos morrem com sangue. E preciso

    acreditar no sangue como parte de nossa vida. A truculncia. amor

    tambm".32 A questo do mal no ser secundria na literatura clariciana. A

    emergncia de uma negatividade visceral e iniludvel, necessariamente

    recalcada para dar lugar s convivncias e convenincias sociais, ser um dos

    motores de sua narrativa e tambm uma das responsveis pelo incomodo e

    pelo mal-estar que os textos de Clarice provocam em tantos leitores. As

    perverses humanas so escancaradas e explicitadas sem nenhum antdoto ou

    anestsico: "Roubar torna tudo mais valioso. O gosto do mal mastigar

    vermelho, engolir fogo adocicado".33 As expresses bizarras fazem parte de

    uma espcie de "linguagem do mal", que se mostra na desconstruo da

    sintaxe tradicional e na transgresso dos modos convencionais de

    representao deslocam-se as pontuaes, frases interrompem-se

    inconclusas, verbos se suspendem no infinitivo e no gerndio, presentificando

    ao mximo os momentos para que o leitor se detenha na intensidade do

    vivido.

    35

    A autora parece interessada em despojar-nos de possveis defesas que

    nos afastem do contato com o real em sua vitalidade, prazeroso ou no.

    Porque tambm o prazer pode ser truculento, vivo demais para ser suportado.

    Para ler Clarice em todo o seu alcance, preciso aceitar a violncia desse

    confronto, capaz de desvelar realidades insuspeitadas.

    AA MMUULLHHEERR

    Outro aspecto que advm dessa face rebelde da personagem refere-se 32

    A Descoberta do Mundo, op. cit., p. 269

    33 Perto do Corao selvagem, op. cit., p. 14.

  • problemtica feminina, que a partir dos anos 80 ganhou projeo nos estudos

    sobre a mulher na literatura. Ao lado de escritoras como Virgnia Woolf e

    Katherine Mansfield, Clarice Lispector desmontou os alicerces das narrativas

    centradas na viso patriarcal do feminino. Explicando melhor: nos textos que

    assumem a ptica masculina (no importando o sexo do autor), a mulher o

    "outro imanente" do homem,34 o outro buscado pelo heri empreendedor

    (que sempre o homem); fica reservado a ela o lugar de objeto silencioso,

    bem como papis subalternos, dceis, romnticos e passivos.

    Em Perto do Corao Selvagem, a identidade feminina luta para apropriar-

    se de si mesma, longe do espelho masculino. Rompem-se as definies

    preconcebidas sobre as adequaes de gnero, e o que prevalece a

    desmontagem de esteretipos e mscaras de ambos os sexos. A ambio de

    Joana tornar-se mais ampla do

    36

    que os enquadramentos que a limitam; ela recusa a frma dada pelo social e

    empreende uma viagem final rumo a um destino desconhecido, controntando-

    se com um vazio criativo, que 6 o de todos ns. E o que lemos no incio do

    ltimo captulo: "Impossvel explicar. Afastava-se aos poucos daquela zona

    onde as coisas tm forma fixa e arestas, onde tudo tem um nome slido e

    imutvel. Cada vez mais afundava na regio lquida, quieta e insondvel, onde

    pairavam nvoas vagas e frescas como as da madrugada".

    Por fim, caberia ressaltar que no s as personalidades da autora e da

    protagonista recusam as molduras paralisantes. A escritura tambm o faz a

    partir de um obscurecimento do fio narrativo, de uma perda dos referenciais

    romanescos familiares e de um desmascaramento da dita "naturalidade" dos

    papis sexuais e sociais, que na verdade so construdos histrica e

    culturalmente. Mesmo que esse romance parea desconectado das

    preocupaes "realistas" diretas, ele problematiza a realidade por vias oblquas

    e desviadas, que sero desde j, e at o final do percurso da autora, seu modo

    peculiar de fazer fico.35

    34

    Segundo Simone de Beauvoir. O Segundo Sexo. Trad. Srgio Milliet So Paulo Difel, 1970.

    35 Diz Berta Waldman a respeito dessa obra: "Por mais que o romance se desligue voluntariamente da

    histria, ele interioriza as carncias, as projees utpicas e os dilemas sociedade em que se inscreve, e quando a carga conflitiva dos dilemas aumenta, o romance passa a expor a conscincia dilacerada e a falta de inteireza da existncia, dilacerando-se tambm na sua estrutura"(A Paixo Segundo C.L. op. cit., p. 44).

  • OO SSUUJJEEIITTOO NNEEGGAADDOO

    Entre o primeiro romance e o quinto, A Paixo Segundo G.H., passaram-

    se 20 anos, e os livros intermedirios (O Lustre, A Cidade Sitiada e A Ma no

    Escuro, alm dos

    37

    contos e livros infantis) continuaram desafiando a crtica. Os dois primeiros

    ainda focalizam a mulher no embate antagonstico com seu meio. Em O

    Lustre, concludo em Npoles em 1946, Virgnia, a protagonista, vive uma

    estranha relao com o irmo, Daniel, cheia de mistrio e indcios de incesto.

    Sua vida est marcada pelo signo da gua "Ela seria fluida durante toda a

    vida" e por um trnsito entre o mundo decadente do casaro da Granja

    Quieta, de onde restaram cones de um passado morto (como o lustre do

    ttulo), e a cidade grande. Reeditando o estigma da mulher sem espao

    prprio, Virgnia passar pelas relaes sem vincular-se a nada, morrendo

    atropelada no final.

    Para escrever A Cidade Sitiada, publicado em 1949, Clarice Lispector

    debateu-se durante trs anos e numa das poucas excees a seu mtodo

    fez mais de 20 cpias, tendo sido esse o livro que mais lhe deu trabalho. Em

    meio ao "silncio aterrador das ruas de Berna", cidade sua em que morou de

    1946 a 1949, a autora parece sentir-se igualmente sitiada, como a protagonista

    Lucrcia no subrbio de So Geraldo. Tudo ali parece reduzir-se a meras

    imagens e representaes, cpias de um real perdido. Donde a importncia,

    nesse romance, do plano pictrico e espacial, em que o olhar pousa na

    superfcie das coisas e se coloca como modo essencial de apreenso do

    mundo.36

    De 1953 a 1956, Clarice se dedica ao livro A Ma no Escuro (que teve

    como primeiro ttulo A Veia no Pulso), concludo cm Washington, mas

    publicado apenas cinco anos depois, em 1961. A autora diz ter copiado o

    texto 11 vezes para "saber o que estava querendo dizer" e o considerou seu

    livro mais bem estruturado. Narra-se nele a histria de Martim, primeiro

    protagonista

    36

    Ver a esse respeito Regina Pontieri, Uma potica do Olhar. So Paulo: Atche 1999.

  • 38

    masculino, que foge aps pensar ter matado a esposa (ela sobrevive sem que

    ele saiba), refugiando-se numa fazenda. Ali, convive com a proprietria,

    Vitria, sua prima Ermelinda e a cozinheira. Como no filme Teorema (de

    Pasolim, 1968), a chegada do estranho tumultua as relaes consolidadas, pois

    Vitria vive uma paixo tensa por Martim, que j havia seduzido a cozinheira

    e se tornado amante de Ermelinda.

    A trajetria desse pseudocriminoso at ser descoberto e preso uma

    viagem inicitica a partir de um ponto zero, dado biblicamente pela

    transgresso, no caso um "assassinato inaugural". Recusando a linguagem

    compartilhada e as convenes de um mundo j estabelecido, Martim

    desnasce como sujeito, pe-se no lugar do vazio e do silncio para

    reconstruir-se. Mas, como mostra a face irnica e pardica da obra, estudada

    no ensaio "Eppur, Si Muove", de Berta Waldman e Vilma Aras, a faanha

    herica no se cumpre: "A maneira como o livro desemboca numa avalanche

    de clichs e aforismos (inclusive chaves do Romantismo) sela o fracasso da

    busca. A expresso cristalizada significa aqui claramente a impossibilidade do

    discurso individual e nico na sociedade reificada; por tabela, a

    impossibilidade da constituio de um sujeito particular".37

    AA PPAAIIXXOO SSEEGGUUNNDDOO GG..HH..

    Mas a linhagem de personagens claricianas em busca do "ncleo da

    existncia" prossegue de modo ainda mais

    39

    radical num dos romances mais inslitos da autora. A Paixo Segundo G.H,38 o

    primeiro escrito em primeira pessoa. A poca difcil, para Clarice e para o

    Brasil. O ano de 1964, data da publicao do livro, marcado pelo golpe

    militar que depe Joo Goulart, num quadro de agitao poltica que ir

    radicalizar-se ideologicamente, tanto esquerda quanto direita. Os tempos

    so de crise da sociedade brasileira, que enfrenta o autoritarismo do Estado,

    de um lado, e vive os prenncios dos movimentos libertrios europeus, de

    outro.

    Quanto autora, seu casamento terminara em 1959, quando retornou

    37

    Berta Waldman e Vilma Areas, Eppur.Si Muove". Em: A Paixo Segundo C.L., op. cit.,p. 152.

    38 A Paixo Segundo G.H.. 10. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

  • para o Brasil com os dois filhos, Pedro e Paulo. Escreve o romance em 1963 e

    confunde o leitor quando diz: "eu estava na pior das situaes, tanto

    sentimental como de famlia, tudo complicado, e escrevi A Paixo... que no

    tem nada a ver com isso".39 Seja como for, separada, com problemas

    financeiros, Clarice inicia a retomada de sua vida no Rio de Janeiro sozinha, tal

    como a personagem G.H., uma dona-de-casa de classe mdia alta, escultora,

    que terminou recentemente um relacionamento e vive um enfrentamento com

    a solido e o vazio. Em face do momento vivido, poltico e existencial, esse

    romance tenta fazer da literatura um exerccio de liberdade, rompendo os

    limites de uma escrita enclausurada nos padres ticos e estticos da poca.

    Desde sua abertura "A Possveis Leitores" , o livro quebra

    expectativas de um romance tradicional a ser digerido por um leitor passivo:

    "Este livro como um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido

    apenas por pessoas de alma j formada. Aquelas

    40

    que sabem que a aproximao, do que quer que seja, se faz gradualmente e

    penosamente atravessando inclusive o oposto do que se vai aproximar".

    Essa travessia pela contramo do que esperado ser, na verdade, uma das

    figuras centrais do romance.

    Quando resolve limpar a casa, comeando pelo quarto da empregada

    Janair, recm-sada do emprego, G.H. no imagina que ir viver uma radical

    experincia de desorganizao pessoal: "Eu ia me defrontar em mim com um

    grau de vida to primeiro que estava prximo do inanimado". O que G.H.

    est prestes a viver transformar o ato domstico de arrumar o lar em seu

    avesso: "O que vi arrebenta minha vida diria". Esse romance, que se fiz de

    avanos e recuos, repeties e adiamentos da narrativa (pois a frase de

    abertura do captulo seguinte repete a ltima do anterior), exige do leitor um

    tipo de desaprendizagem, semelhante ao despoja-mento que a personagem

    percorre, para assim poder experimentar uma espcie de "alegria difcil", que a

    escritora diz ter vivido com seu livro.

    A narrao se fiz apenas 24 horas depois do ocorrido e carrega ainda as

    marcas do assombro: "------------ estou procurando, estou procurando.

    Estou tentando entender". Esses seis travesses iniciais (que se repetem no

    final do romance) mostram a tentativa desesperada de dilogo entre G.H. e

    um interlocutor imaginrio o leitor? o amante que a deixou? um suposto

    39

    Apud Gotlib, op. cit., p. 357.

  • analista? Mostram tambm uma busca de sentido a partir de um corte com o

    mundo domesticado e familiar, do qual G.H. se v expulsa, oscilando entre

    entregar se a uma ordem extraordinria, de uma "aterradora liberdade" ao ter

    sido arrastada para o espao do desconhecido, e resistir ao contato com o que

    no tem forma nem nome. " difcil perder-se. E to difcil que

    provavelmente arrumarei depressa um modo

    41

    de me achar, mesmo que achar-me seja de novo a mentira de que vivo."

    E o que, afinal, G.H. vivncia que a faz abandonar a organizao

    humana "para entrar nessa coisa monstruosa que minha neutralidade viva"?

    Sua jornada, tal como a de Marfim, tem incio num ato transgressor. Na rea

    de servio,"corredor escuro" que separa o confortvel living do quarto da

    empregada Janair, G.H. joga o cigarro aceso para baixo num "gesto proibido"

    e se dirige ao bas-fond do apartamento. O corredor sombrio, umbigo simblico

    entre um mundo e outro, evoca os ritos de soleira (ou de passagem) por onde

    os heris mitolgicos vivem suas metamorfoses: Jonas dentro da baleia, Jos

    no poo escuro, Alice atravs do espelho...40 A queda do heri, que se

    precipita no abismo de onde emergir transformado, ressurge aqui num

    cenrio urbano carioca, mais uma verso da floresta escura do poeta italiano

    Dante Alighien, que inicia A Divina Comdia com os versos: "A meio caminho

    desta vida/ achei-me a errar por uma selva escura,/ longe da boa via ento

    perdida".41 Tambm G.H. est prestes a viver a "perda de tudo o que se possa

    perder e, ainda assim, ser".

    A camada mtica do romance, que logo se desdobrar numa via mstica

    de sacrifcios e revelaes, no ofusca a dimenso concreta e social do

    encontro da burguesa G.H. com o outro de uma classe social inferior e

    desconhecida. No quarto, G.H. v um inesperado mural desenhado a carvo

    um homem nu.

    42

    uma mulher nua e um co, que no se veem um ao outro. Tambm G.H. no

    se lembrava do rosto da empregada. Era uma "mensagem bruta" de Janair

    para a patroa, que nesse momento reconhece ter sempre sido olhada apenas

    40

    Ver Affonso Romano de Sant'Anna."O Ritual Epifnico do Texto". Em: Clarice Lispector, A Paixo Segundo G.H. edio crtica, coord. Benedito Nunes, pg. 241-61).

    41 Dante Alighieri. A Divina Comdia. Trad. e notas Cristiano Martins, Belo Horizonte/So Paulo: Itatiaia

    Edusp, 1979); p. 101

  • por seus pares: "Janair era a primeira pessoa realmente exterior de cujo olhar

    eu tomava conscincia".

    Somente aps essa percepo da diferena entre o eu e o outro, ruptura

    do universo fechado e auto-suficiente de G.H., ser possvel a apario de

    uma alteridade ainda mais radical: uma "barata grossa", que sai do fundo do

    armrio e duela com G.H. at o final do romance. Como diz Berta Waldman.

    "agora a oposio no mais de classes sociais, mas de espcies diversas".42

    E a partir desse confronto com o ser grotesco e ancestral da barata,

    contraste absoluto com a humanidade refinada da personagem, que se d o

    "itinerrio da paixo" 43 de G.H., tocando os extremos de uma experincia

    paradoxal de nojo e maravilhamento, seduo e loucura, sofrimento e xtase.

    Num jogo de espelhos entre G.H. e a barata, identificaes e estranhamentos

    se alternam; G.H. oscila entre a atrao e a repulsa pela barata, que figurao

    do avesso de si mesma e a arrasta para uma viagem regressiva e primai rumo

    natureza pr-humana. Aps golpear com a porta o corpo da barata que

    resiste , G.H. sente-se compelida a comungar antropofagicamente com a

    "hstia" sagrada e profana que a massa branca que rompe o invlucro do

    bicho. A cena da ingesto, po-

    43

    rm, no se conta. A narrao se apaga junto com o desmaio de G.H., pois s

    o silncio pode expressar o indesignvel.

    Como vida primria, informe e indelimitada, a massa insossa da barata

    a condensao extrema da matria indesejvel e expulsa da conscincia, mas

    que retorna gerando angstia e terror:44 "Como chamar de outro nome aquilo

    horrvel e cru. matria-prima e plasma seco, que ali estava, enquanto eu

    recuava para dentro de mim em nusea seca, eu caindo sculos e sculos

    dentro de uma lama [...] era uma lama onde se remexiam com lentido

    insuportvel as razes de minha identidade".

    A escrita dessa arqueologia da alma de G.H., introspeco sem limites,

    cria os termos mais antitticos para dar voz a um estado de desordem e caos:

    42

    Berta Waldman. A Paixo Segundo C.L. (op. cit..p. 75)

    43 C.F. Jos Amrico Motta Pessanha. Clarice Lispector: o Itinerrio da Paixo". EM: Remates de Males, 9;

    Campinas: Unicamp.1989; p. 181-98.

    44 Inevitvel pensarmos na categoria psicanaltica do unheimlich, tal como est no ensaio "O Estranho"

    (1919), de Freud. Trata-se dos contedos antes conhecidos e, familiares que foram reprimidos no inconsciente. O retorno desse recalcado, que deveria ter ficado oculto e vem luz, o responsvel pelo mal-estar e pela "inquietante estranheza" do que nos assusta.

  • "inferno de vida crua", "horrvel mal-estar feliz", "amostra de calmo horror

    vivo", "o inexpressivo diablico", "danao e alegre terror", para enfim

    desaguar na frase: "Eu chegara ao nada, e o nada era vivo e mido". Inevitvel

    pensarmos tambm novamente na imagem da mulher estampada no

    achatamento da barata e nessa chegada ao nada, problematizando a idia do

    feminino como lugar do silncio e da passividade.

    Nessa inequvoca regresso ao neutro, ao pr-humano, ao ponto

    minimal de "vivificadora morte", d-se uma desfigurao da personagem e do

    prprio romance. Ao final, a jornada herica se torna uma antiodissia. Ao

    contrrio do processo formador da

    44

    cultura e do sujeito racional, simbolizado pela viagem pica de Ulisses na

    Odissia de Homero, G.H. recusa sua humanidade e se distancia da civilizao

    para fundir-se se s pulses primordiais, face demonaca e divina do selvagem

    corao da vida. G.H. tocou no impuro, no inumano da matria virginal, para

    sentir "o gosto da identidade das coisas". Essa fuso final, negao absoluta de

    um sujeito separado do objeto, anulao da pessoa subjetiva em nome da pura

    concretude, encontra, nas transgresses gramaticais e nas novas regncias

    verbais, sua morada na linguagem: "Os seres existem os outros como modo

    de se verem"; "O mundo se me olha. Tudo olha para tudo, tudo vive o outro";

    "a vida se me ". A primeira pessoa (me) e a terceira (se) identificam-se e

    intercambiam lugares.

    ""VViivveerr NNoo RReellaattvveell""

    preciso ainda uma ltima visada dessa metamorfose kafkiana de G.H.

    (que, porm, longe est daquela de Gregor Samsa, pois nele a converso em

    inseto monstruoso no provoca a derrocada de uma personalidade, nem

    destri o sistema anterior de uma famlia parasitria antes o corrobora). G.H.

    se debate com a necessidade imperiosa de relatar um acontecimento

    inalcanvel pela linguagem, ainda que s a palavra possa salv-la de uma

    mudez perigosa. "Viver no relatvel", diz G.H., mas preciso "com esforo

    traduzir sinais de telgrafo para uma lngua que desconheo, e sem sequer

    entender para que servem os sinais". Novamente, est em questo o dilema da

    representao impossvel. Como dar forma ao inominvel, se ao faz-lo o que

    importa dizer restar eclipsado?

    A mesma questo se coloca desde o incio da obra da autora, como

  • vimos. Na viso de Plnio W. Prado Jr., trata-se de uma "esttica do fracasso":

    "Ela

    45

    no nomeia o inominvel, no designa o indeterminvel como se fosse um

    objeto no mundo, um fato determinado: ao contrrio, atravs do esforo e do

    malogro de sua linguagem ela faz sentir que algo escapa e resta no

    determinado, no apresentado; ela inscreve uma ausncia, alude ao que se

    evola". 45

    E, por fim, uma "esttica do negativo" que toma forma nesse anti-

    romance de uma anti-herona, que se despersonaliza at o limite de identificar-

    se com uma matria vital inumana que antecede toda subjetivao. O sujeito

    negado para mergulhar no anonimato, resgatar seus primrdios e comear a

    existir novamente a partir do nada.

    Enfim, enfim quebra-se realmente o meu

    invlucro e sem limite eu era. Por no ser, eu era.

    Pg. 46 em branco

    45

    Plnio W. Prado Jr., "O Impronuncivel: Notas Sobre um Fracasso Sublime. Em: Remate de Males. 9. Campinas: Unicamp, 1989; p. 24 -5.

  • 47

    3

    A NASCENTE E A ESTRELA (ROMANCES PARTE II)

  • 48

    Mas a palavra mais importante da lngua

    tem uma nica letra: . .

    gua Viva (1973)

    epois de terminar A Ma no Escuro, em 1956, passaram-se oito anos

    de aridez e nenhum romance. E, quando Clarice pensou que no

    escreveria nunca mais, veio de repente um livro inteiro, A Paixo

    Segundo G.H. Esse modo abrupto com que surge o livro condiz com a falta de

    qualquer tipo de planejamento na escrita clariciana: "No ato de escrever... as

    coisas aparecem. Nunca fao um plano por antecipao".46

    Assim foi tambm com Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, de

    1969, escrito em apenas nove dias. O livro comea com vrgula e termina com

    dois-pontos, desmontando a idia de uma histria pronta e acabada. Como

    obra aberta, o romance narra a histria de amor entre o professor de filosofia

    Ulisses e a professora primria Lri. Se o nome

    49

    dele j evoca a Odissia homrica, viagem de Ulisses tentado pelas sereias, a

    personagem nos remete ainda a outra sereia lendria, da tradio germnica, a

    chamada Lorelei. O jogo amoroso do casal desenha um processo de

    amadurecimento do homem e da mulher, para que possam encontrar-se numa

    relao de transparncia e simetria. Os limites e possibilidades dessa unio

    revelam, novamente, como o eu se constitui a partir de um outro e como

    nele perde e constri sua identidade.

    Os estgios dessa trajetria podem ser vistos como sesses de anlise,

    que estruturam um sujeito capaz de ser fiel a si mesmo e amar ao outro. Raros

    so os finais felizes na obra de Clarice, e poucas vezes, como nesse caso, o

    dilogo se efetiva como real comunicao. Segundo Ndia Gotlib, esse livro

    "narra, como outros romances anteriores da mesma autora, o aprender pela

    desaprendizagem de saberes estereotipados, que se conquistam atravs da

    razo, entendimento, lgica, compreenso, e pela imerso noutro canal de

    46

    Ibidem, p. 394.

    D

  • percepo, o do no-entendimento, das sensaes, das intuies, e mesmo das

    adivinhaes. Mas esse romance, diferentemente dos demais, narra uma

    histria de evoluo progressiva da mulher que caminha corajosamente, da

    dor ao prazer. Trata-se de uma histria otimista em que se consegue atingir

    esse difcil estgio do dar-se em alegria".47 Alm dessa diferena, o romance se

    afasta do predomnio da introspeco, marca registrada da autora, para abrir-

    se a uma explicitao maior da vida exterior.

    50

    GGUUAA VVIIVVAA

    Nem sempre os textos nascem de um nico jorro, como foi o caso de

    Uma Aprendizagem... Para escrever gua Viva, a autora debateu-se durante trs

    anos e hesitou muito em public-lo, o que s ocorreu em 1973. Achava-o

    ruim "porque no tinha histria, no tinha trama". De fato, de todas as

    narrativas da autora, essa talvez seja a mais independente da fbula ou do

    enredo. O romance, que vem acompanhado da inscrio "Fico", teria tido

    pelo menos dois ttulos anteriores: Atrs do Pensamento: Monlogo com a Vida e

    Objeto Gritante. Mas a autora acabou preferindo gua Viva, "coisa que

    borbulha. Na fonte".

    Os anos que antecederam o livro trouxeram srios problemas

    escritora. O filho mais velho, Pedro, comea a apresentar um quadro de

    esquizofrenia e seria uma preocupao para a me durante toda a vida. Em

    1967, um incndio, causado por um cigarro aceso esquecido ao adormecer,

    ser um triste marco na biografia da autora. Clarice fere gravemente a mo

    direita com que escrevia e fica dois meses hospitalizada, passando por

    cirurgias para enxertos. Recupera-se, aps ter estado entre a vida e a morte,

    como relata em crnica futura.48 Os manuscritos tornam-se ilegveis, e Clarice

    passa a assinar com bastante dificuldade.

    Ainda assim, movida pela necessidade de melhorar sua condio

    financeira, a autora escreve crnicas para o Jornal do Brasil de 1967 a 1973. A

    escrita do romance gua Viva49 entremeava-se com as crnicas,

    47

    Trata-se da crnica "Meu Natal"; de 21 de dezembro de 1968. Em: A Descoberta do Mundo, op. cit., p.164.

    48 gua Viva. 5 ed. Rio de Janeiro; Nova Fronteira, 1980.

    49

  • 51

    feitas de m vontade: "Eu estava escrevendo o livro, ento eu detestava fazer

    crnica. Ento eu aproveitava e botava no era crnica no, era um texto

    que eu publicava".50 De fato, assim como sua atividade jornalstica alimentava-

    se dos escritos ficcionais, gua Viva se revela um corpo de colagens de outros

    textos, fragmentos, pedaos que migram de vrios trechos de sua obra

    anterior. Embora o romance parea nascido de um fluxo initerrupto de

    meditaes, memrias e confisses, h um laborioso esforo para

    desentranhar, da complexidade do mundo, a simplicidade e a espontaneidade.

    Era por isso que a autora combatia os que a consideravam uma

    ''escritora em transe", como neste bilhete em resposta a um comentrio sobre

    sua obra: "Jamais ca em transe na minha vida. No psicografo nem 'baixa' em

    mim nenhum pai-de-santo. Sou como qualquer outro escritor. Em mim, como

    em alguns que tambm no so apenas "racionalistas", o processo de gestao

    se faz sem demasiada interferncia do raciocnio lgico e quando de repente

    emerge tona da conscincia vem em forma do que se chama inspirao".51

    E do que trata gua Viva? Atravs de um "monlogo dialogado" de um

    "eu" que se dirige a um "tu" imaginrio, annimo, puro ouvinte sem corpo de

    uma voz que tece as reflexes mais diversas, o livro sugere o nascimento da

    palavra, o nascimento do sujeito, o nascimento do leitor e, no limite, a

    gestao do prprio autor. "Voc que me l que me ajude a nas-

    52

    cer, convoca o texto, que se contorce em dores de parto. Escrevo-te uma

    onomatopia, convulso da linguagem". Radicaliza-se aqui o que na Paixo j

    se buscava a escrita do nascedouro, das origens, de um mundo arcaico pr-

    reflexivo, anterior s determinaes sociais, desejo regressivo e uterino

    "agora quero o plasma quero me alimentar diretamente da placenta". E

    qual linguagem pode alcanar o que fica "atrs do pensamento"? De que

    modo buscar "a palavra ltima que tambm to primeira que j se confunde

    com a parte intangvel do real"? S uma improvisao errante, uma escrita

    caleidoscpica, feita de "acrobticas e areas piruetas", pode "fotografar o

    perfume" e, mais uma vez, tentar expressar o indizvel.52

    50

    Cf. Gotlib, op. cit.,p. 375.

    51 O bilhete dirigido ao professor de literatura Edgar Pereira, tem como objetivo "corrigir um detalhe"

    nas notas de Pereira sobre o livro de crnica: A Viso do esplendor, lanado em 1975. Apud. Lcia Helena: Nem Musa, Nem Medusa, Niteri: Eduff, 1997: p.27).

    52 importante ressaltar que gua Viva despertou o interesse da crtica feminina francesa, sobretudo a

  • O que sabemos da narradora-personagem que seu oficio a pintura,

    mas que abandona por momentos seu pincel e se pe a pintar por palavras. O

    livro todo um experimento verbal, oscilando entre os plos do abstrato e do

    figurativo. O que importa registrar no papel, como um sismgrafo, as

    pulsaes da vida no instante em que brotam. O que vale o caminho, o

    processo, a travessia: "Entro lentamente na escrita assim como j entrei na

    pintura. E um mundo emaranhado de cips, slabas, madressilvas, cores e

    palavras limiar de entrada de ancestral caverna que o tero do mundo e

    dele vou nascer". E frases, imagens, idias vo surgindo e sumindo nesse

    percurso, mostrando que a escrita um ser movente, gua viva em eterna

    mutao.

    O sujeito que escreve almeja perder-se no terreno voltil das palavras,

    na cadeia inconsciente da lin-

    53

    guagem, sem controlar o fio de sua meada. Rompido o princpio da no-

    contradio que rege o texto lgico-sinttico convencional

    (sujeito/verbo/complemento) , resta no estancar o fluxo da tala de quem

    se considera uma "iniciada sem seita": "Comprazo-me com a harmonia difcil

    dos speros contrrios. Para onde vou? A resposta : vou".

    Mais uma vez, estamos longe da literatura que retrata o real, que copia

    um referente externo. Trata-se, antes, de um "deslocamento da coisa descrita

    para o ato de descrever", e nesse processo o sujeito-autor, senhor de si e do

    texto que escreve, perde seus contornos, seu controle e seu saber absolutos.53

    Ele cede lugar ao que desconhece, ao acaso da frase seguinte, ao inconcluso e

    desordenado.

    Mas a entrega total e o caos absoluto so impossveis, j que a escrita

    no pura simultaneidade; ela se faz de sucesses lineares, sustentada por

    cdigos compartilhveis. For isso, "de vez em quando te darei uma leve

    histria ria meldica e cantabile para quebrar este meu quarteto de cordas:

    um trecho figurativo para abrir uma clareira na minha nutridora selva". Alguns

    exemplos disso aparecem nas definies bastante originais sobre as flores:

    parte do artigo de Hlne Cixous no nmero 40 da revista Potique, em 1979. Cixous lanou a obra da escritora brasileira no circuito internacional, com vrios outros artigos e livros. Essa questo ser retomada mais adiante (ver p. 89)

    53 Ver a esse respeito Lcia Helena. "O Lugar Enfeitiado", em: Nem Musa, Nem Medusa. op. cit.; e

    Maria Lcia Homem, No Limiar do Silncio: Palavras e Autoria em Clarice Lispector (tese de doutoramento. FFLCH-USP. 2001).

  • "Rosa a flor feminina que se d toda e tanto que para ela s resta a alegria de

    se ter dado. Seu perfume mistrio doido. [...] J o cravo tem uma

    agressividade que vem de certa irritao. [...] A violeta introvertida e sua

    introspeco profunda. Dizem que se esconde por modstia. No .

    Esconde se para poder captar o prprio segredo. [...] A famosa

    54

    orqudea exquise e antiptica. No espontnea. Requer redoma. [...] Tulipa

    s tulipa na Holanda. Uma nica tulipa simplesmente no . Precisa de

    campo aberto para ser". Os trechos figurativos acabam sendo bancos de areia

    em meio ao rio de gua viva, imagem hbrida de orgnico e inorgnico,

    animado e inanimado. gua viva , ainda, metfora maior da busca clariciana:

    a forma do informe.

    O aspecto fragmentrio do livro, que no alcana nunca dizer a

    totalidade, bem como sua busca pelo cerne ltimo e primeiro da vida,

    aproxima a autora do limite de seu projeto esttico. Para a amiga Olga Borelli,

    esse texto o "prenncio do fim" ou "a ante-sala da desagregao absoluta".

    "De tal modo a morte apenas futura que h quem no aguente e se

    suicide. E como se a vida dissesse o seguinte: e simplesmente no houvesse o

    seguinte. S os dois-pontos espera" (gua Viva).

    AA MMOORRTTEE DDAA EESSTTRREELLAA

    E como nasce o ltimo livro da autora publicado em vida, A Hora da

    Estrela? 54

    Durante a escrita do livro, Clarice lutava contra um cncer no tero,

    tendo concludo a obra alguns meses antes de morrer. Segundo Olga Borelli, a

    escritora entregava amiga envelopes com trechos que iam sendo catalogados

    e destinados a dois livros diferentes e simultneos: A Hora da Estrela e Um

    Sopro de Vida, 55

    55

    este pstumo. Em ambos, a autora interpe narradores masculinos para

    contar a histria das mulheres que protagonizam o enredo, marcado tambm

    pela temtica tia morte. As mulheres, Macaba, de A Hora da Estrela, e Angela

    54

    A Hora da Estrela, 22 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves. 1993.

    55 Um Sopro de Vida (Pulsaes). 10 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994.

  • Pralini, de Um Sopro de Vida, espelham-se por contraste: a primeira, pobre,

    raqutica e semi-analfabeta, era "incompetente para a vida"; a segunda era

    escritora rica, elegante, moradora da zona sul do Rio, ex-esposa de um grande

    industrial.

    Os perfis de mulher at ento trabalhados pelos romances claricianos

    focalizavam mulheres sozinhas, letradas, profissionais bem-sucedidas, voltadas

    para a prpria subjetividade e solido. Mas A Hora da Estrela um marco

    terminal dessa sondagem do feminino, uma vez que, no fim da vida, a

    escritora elege como personagem principal uma mulher de outra classe social e

    cultural, desvendando uma feminilidade desconhecida.56

    Como veremos no captulo seguinte, os perfis femininos dos contos

    so bem diferentes: donas-de-casa pequeno-burguesas que esto s voltas com

    os papis de me e esposa e que, instigadas por incidentes banais,

    repentinamente deparam com uma sofrida alienao de si mesmas. Contudo,

    o modo como so investigadas essas personagens, tanto nos contos quanto

    nos romances, revela o mesmo apego mincia, o mesmo jogo nada inocente

    entre narrador, personagem c leitor, as mesmas artimanhas irnicas de quem

    afirma algo querendo sempre insinuar seu contrrio.

    Quando Clarice Lispector esteve na TV Cultura, em 1977, para ser

    entrevistada por Jlio Lerner (em

    56

    programa que s foi ao ar, a pedido da autora, aps seu falecimento, em 9 de

    dezembro de 1977, e que seria um de seus poucos registros em vdeo),57 ela

    fez muito mistrio sobre o livro que estava escrevendo. Afirmou apenas que

    teria 13 ttulos58 e seria a "histria de uma inocncia pisada, de uma misria

    annima".

    O livro quase um testamento ou um testemunho de uma escritora

    diante da morte. Migrante da Ucrnia para o Nordeste e depois para o Rio de

    Janeiro, Clarice se projeta na protagonista, Macaba, que sai de Alagoas para

    56

    Para maior aprofundamento. ver Mrcia Ligia Guidin, Roteiro de Leitura "A Hora da Estrela" So Paulo tica, 1996). O livro de Clarice Lispector foi adaptado para o cinema em 1986, com direo de Susana Amaral, roteiro de Alfredo Orz e atuaes de Marcela Cartaxo, Jos Dumont, Tamara Taxman e Fernanda Montenegro.

    57 O depoimento foi publicado anos depois com o ttulo "A ltima Entrevista de Clarice Lispector"

    (revista Shalom, 296, ano 27. jun.-ago. 1992; p. 62-9).

    58 "A Culpa Minha". "O Direito ao Grito". "Quanto ao Futuro", "Eu No Posso Fazer Nada". "Lamento

    de um Blue" e "Sada Discreta Pela Porta dos Fundos", entre outros.

  • morrer no Rio, "uma cidade feita toda contra ela".

    As primeiras pginas surgiram num banco em meio feira carioca de

    So Cristvo, reduto dos nordestinos onde, por acaso, a autora teria visto o

    rosto de sua futura Macaba. Os Nordestes de Clarice e dessa moa se

    encontram, e torna-se imperioso dar voz a uma infncia e a uma vivncia de

    estrangeiridade, de estar fora do lugar em meio a um mundo dos outros. o

    que se revela na fala do narrador Rodrigo M.S., na verdade Clarice Lispector

    (como vem anunciado na "Dedicatria do Autor"): " que numa rua do Rio

    de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdio no rosto de uma

    moa nordestina. Sem falar que eu em menino me criei no Nordeste". A

    persona masculina quase nada esconde da autora Lispector, que acaba

    desmascarando a si mesma (implicada e identificada com a histria que

    delegou a outro contar) e tambm ao prprio jogo ficcional, j que explicita

    55

    o que deveria ficar oculto: o autor por trs do processo de criao.

    Raqutica na infncia, rf aos dois anos e criada pela tia, que a

    maltratava, Macaba vem ao Rio trazida pela mesma tia, que morre deixando-a

    empregada como datilografa e morando num cortio da rua Acre. Suas "fracas

    aventuras" se reduziro a um namoro incuo com Olmpico de Jesus

    ("sobrenome de quem no tem pai"), paraibano e metalrgico, que desejava

    ser deputado por seu estado. A colega de trabalho, Glria, loura exuberante e

    "carioca da gema", visita uma cartomante que a aconselha a roubar o

    namorado da amiga, restando a Macaba a solido de sempre. Numa consulta

    que faz ela tambm mesma cartomante, uma ex-prostituta chamada Madama

    Carlota, Macaba receber pela primeira vez um destino iluminado de riqueza

    e casamento com um homem estrangeiro. Espantada,"s ento vira que sua

    vida era uma misria". Mas, ao sair da consulta, sentindo-se "grvida de

    futuro" e j quase outra pessoa, Macaba atropelada por um Mercedes-Benz

    amarelo, morrendo na calada.

    RReellaattooss CCrruuzzaaddooss

    A curta trajetria dessa moa annima, que "vivia num atordoado

    limbo entre cu e inferno", que era "apenas fina matria orgnica" e que "no

    fazia falta a ningum", constitui apenas um dos planos da narrativa. Benedito

    Nunes59 mostrou que o romance conjuga mais dois relatos entrecruzados: um 59

    "Clarice Lispector ou O Naufrgio da Introspeco". Em: remate de Males. 9 Campinas: Unicamp, 1989; p. 93-79.

  • deles a histria do prprio narrador, Rodrigo M.S., que se faz personagem,

    narrando-se a si mesmo e competindo com a

    58

    Protagonista: Sua autodefinio o aproxima dos escritores marginais dos

    anos 60 e 70 na literatura brasileira, como os narradores de Rubem Fonseca:

    "Sim, no tenho classe social, marginalizado que sou. A classe alta me tem

    como um monstro esquisito, a mdia com desconfiana de que eu possa

    desequilibr-la, a classe baixa nunca vem a mim".60 Rodrigo se nordestiniza

    para superar a distncia que o separa de sua criao, Macaba: "Para falar da

    moa tenho que no fazer a barba durante dias e adquirir olheiras escuras por

    dormir pouco, s cochilar de pura exausto, sou um trabalhador manual". Mas

    o esforo intil; ele sente-se culpado e impotente por no poder modificar o

    destino de sua prpria inveno.

    O terceiro patamar narrativo a prpria histria da narrao que conta

    a si mesma, problematizando a difcil tarefa de narrar. Questiona-se no s o

    sentido e a funo de relatar um enredo ralo de latos ("Por que escrevo sobre

    uma jovem que nem pobreza enfeitada tem?"), mas sobretudo o ato de

    "tornar ntido o que esta quase apagado e que mal vejo. Com mos de dedos

    duros enlameados apalpar o invisvel na prpria lama". Como chegar ao cerne

    duro e indevassvel dessa personagem que "no se conhece seno atravs de ir

    vivendo toa"? Que palavra pode significar essa que "no sabia que ela era o

    que era, assim como um cachorro no sabe que um cachorro"?

    O movimento de auto-indagao do romance espcie de avesso da

    inconscincia da protagonista acaba por configurar uma potica da

    narrao, um

    59

    modo de aproximar-se do objeto narrado sem destru-lo com "adjetivos

    esplendorosos" ou "carnudos" substantivos": "No vou enfeitar a palavra pois

    se eu tocar no po da moa esse po se tornar em ouro [...] e a jovem no

    poderia mord-lo, morrendo de fome. Tenho ento que falar simples para

    captar a sua delicada e vaga existncia". O escritor e seu ofcio acabam sendo

    uma das principais temticas desenvolvidas no romance.

    A figura de Macaba parece desdobrar-se, aos olhos do narrador, em

    60

    Sobre esse romance: a comparao com Rubem Fonseca, ver o ensaio de Ligia Chiappini "Pelas Ruas da Cidade uma Mulher Precisa Andar: Leitura de Clarice Lispector". Em: Revista Sociedade e Literatura, 1. So Paulo DTLLC-FFLCH-USP: p. 60-80.

  • duas faces. Por um lado, ela carrega no interior de sua pobreza um dom

    valioso, um "delicado essencial". H em Macaba uma "sorte de inocncia

    fundamental, uma espcie de ausncia de pecado original, que cativa

    Rodrigo".61 Ela nem sequer pode perguntar "quem sou eu", pois "cairia

    estatelada no cho". Tinha a "felicidade pura dos idiotas". Ao no pensar-se,

    Macaba acaba sendo imagem emblemtica de uma espcie de utopia

    clariciana de atingir o puro ser, o neutro, xtase pleno, adeso total aos

    sentidos, que se faz pela negao da razo discursiva. Por essa via, Macaba se

    alinha a toda uma galeria de personagens, humanas ou no, que se constituem

    por serem menos, por serem pouco, por tocarem o nada: a empregada Eremita.

    do conto "A Criada"; a pigmia do conto "A Menor Mulher do Mundo"; a ave

    do conto "Uma Galinha"; e outras. como se Macaba guardasse intacto algo

    que foi perdido com a aculturao.

    Mas essa mesma face revela sua sombra, indcio da opresso de quem

    foi excluda do intercmbio econmico e cultural. Destituda da palavra e do

    simbli-

    60

    co ("ela falava, sim, mas era extremamente muda"), Macaba esta merc do

    outro, inclusive do narrador, que gera por ela e se revolta com sua passividade:

    "Por que ela no reage? Cad um pouco de fibra?" Para ele, Macaba "tinha

    uma cara que pedia tapa". A alienao de Macaba atravessa todo o romance

    "No sei bem o que sou... No sei o que est dentro do meu nome", diz

    para Olmpico , e no h espelho no qual possa se reconhecer como cidad,

    como mulher, como pessoa ntida: "Pareceu-lhe que o espelho bao e escuro

    no refletia imagem alguma. Sumira por acaso a sua existncia fsica?"

    Somente quando comea a desejar um futuro, quando percebe seu

    passado miservel e sente-se carente no presente, que Macaba vive seu

    instante de subjetivao, seu prenncio de conscincia. Na condio de ser

    desejante, no estertor da morte que "passava de virgem a mulher". Cada na

    calada, em seu momento glorioso, grand finale de sua hora da estrela (e a

    ironia se desdobra na estrela da Mercedes-Benz, cone da sociedade industrial

    que atropela a migrante nordestina), Macaba tem um encontro fugaz consigo

    mesma: "Agarrava-se a um fiapo de conscincia e repetia mentalmente sem

    cessar: eu sou, eu sou, eu sou..." ainda a sua hora de reconhecer uma

    61

    Cf. Mrio Eduardo Costa Pereira, "Solido e alteridade em: A Hora da Estrela, de Clarice Lispector". Em: M. E. Costa Pereira (orgs. Leituras da Psicanlise: estticas da excluso. Campinas: Mercado de letras, 1988; p. 20.

  • feminilidade at ento esvaziada: "pois s agora entendia que mulher nasce

    mulher desde o primeiro vagido. O destino de mulher ser mulher".

    OO NNoommee:: MMaaccaabbaa

    Se de fato a morte salva a personagem de uma vida inteira de

    humilhaes ("Ela estava enfim livre de si e de nos"), no se pode ignorara

    tora simblica do nome Macaba, o que traz um novo olhar interpretativo

    para a obra. Ela representa toda a descendncia dos hebraicos

    61

    macabeus, zelotas bblicos oprimidos pelos gregos, quando estes dominaram

    Jerusalm em 175 a.C foraram a helenizao dos judeus proibindo a Tor e

    os ritos religiosos monotestas. A histria dos macabeus, conta como eles

    resistiram e no cederam cultura dos deuses olmpicos do paganismo grego,

    continuando fiis Lei de Moiss, garantindo a liberdade religiosa e a no-

    assimilao pela nova sociedade que se impunha.62 A simplicidade resistente

    de Macaba no permite que se adapte civilizao moderna, pois ela era

    "incompetente para a vida", para a sociedade capitalista diferentemente de

    Olmpico de Jesus, que j foi seduzido pela sociedade de consumo, perdeu do

    seu "delicado essencial".

    O carter atemporal dessa histria dado explicitamente pelo texto:

    "Embora a moa annima da histria seja to antiga que podia ser uma figura

    bblica". Nesse sentido, A Hora da Estrela conjuga, no mnimo, trs nveis de

    narrativa: o resgate em novos moldes do romance social dos anos 30,

    construindo um segundo ato, agora na cidade grande, para a saga dos

    migrantes de Vidas Secas, de Graciliano Ramos; uma continuidade com a linha

    existencial da fico clariciana, que focaliza a linguagem e o ser a partir de um

    olhar oblquo e mope, questionando o ato da escrita e sua representao do

    inundo; e, por fim, a face mtica de uma obra que projeta as personagens

    numa dimenso universalizante maior, ainda que estejam to intimamente

    enraizadas em seus parcos cotidianos.

    62

    C.F.. Berta Waldman "O Estrangeiro em Clarice Lispector: uma leitura de A Hora da Estrela". Em: Regina Zilberman et al., Clarice Lispector: A Narrao do Indizvel: . Porto Alegre: Artes e Ofcios,1998, p.93-104.

  • 62

    Primeira edio de Laos de Famlia, com capa de Cyro del Nero

    (Rio de Janeiro. Francisco Alves, 1960)

  • 63

    4

    CLARICE CONTISTA OU A NTIMA DESORDEM

  • 64

    Escrevo-te em desordem, bem s