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O objetivo deste artigo é o de apresentar as conceitualizações dife- renciadas sobre a categoria de feminização aplicada à compreen- são do mundo do trabalho e refletir sobre as implicações científicas e políticas desse conceito

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    FEMINIZAO OU FEMINILIZAO?APONTAMENTOS EM TORNO DE UMA CATEGORIA

    Feminization or feminilization?Notes on a category

    Silvia Yannoulas1

    RESUMO

    O objetivo deste artigo o de apresentar as conceitualizaes dife-renciadas sobre a categoria de feminizao aplicada compreen-so do mundo do trabalho e refletir sobre as implicaes cientficas e polticas desse conceito. Destaca-se que, na literatura especializa-da sobre gnero e trabalho, so utilizados, alternativamente, dois significados diferentes para a categoria de feminizao das pro-fisses e ocupaes, que se correspondem com metodologias e tcnicas distintas para a coleta e anlise de informao pertinente. Um significado quantitativo que optamos por denominar de femi-nilizao: refere-se ao aumento do peso relativo do sexo feminino na composio de uma profisso ou ocupao; sua mensurao e anlise realizam-se por meio de dados estatsticos e um significado qualitativo que denominaremos feminizao que alude s transfor-maes de significado e valor social de uma profisso ou ocupao, originadas a partir da feminilizao ou aumento quantitativo e vin-culadas concepo de gnero predominante em uma poca.

    1 Silvia Cristina Yannoulas Licenciada em Cincias da Educao pela Universidade de Buenos Aires (UBA), Mestre em Sociologia pela Faculdade Latino-americana de Cincias Sociais Sede Acadmi-ca Argentina (FLACSO/Argentina), e Doutora em Sociologia pelo Programa de Doutorado Conjunto FLACSO/Sede Acadmica Brasil e Universidade de Braslia (FLACSO/Brasil - UnB). Atualmente se de-sempenha como Professora Adjunta do Departamento de Servio Social da Universidade de Braslia (SER/UnB) e integra o corpo permanente de professores do Programa de Ps-graduao em Poltica Social do SER/UnB. E-mail: .

    Temporalis, Brasilia (DF), ano 11, n.22, p.271-292, jul./dez. 2011.

    alinecamposRealce

    alinecamposNotafeminilizao = quantidade de mulheresfeminizao = aspectos e valores atribuidos uma profisso em decorrncia do processo de feminilizao.

    alinecamposSublinhado

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    PALAVRAS-CHAVEFeminizao. Magistrio. Ocupao. Profisso. Relaes de gnero.

    ABSTRACT

    This article aims at presenting the different conceptualizations of the category feminization applied to understanding the labor world and reflecting on the scientific and political implications of this concept. We highlight that in the literature on gender and la-bor, two different meanings are used alternatively for the category of feminization of professions and occupations, which correspond to distinct methodologies and techniques for collecting and ana-lyzing relevant data. A quantitative meaning, which we opted for calling feminilization and refers to increasing the relative weight of the female gender in the composition of a profession or occu-pation its measurement and analysis are carried out using sta-tistical data; and a qualitative meaning that we will call feminiza-tion, which refers to transformations in meaning and social value of a profession or occupation deriving from feminilization or quantitative increase linked to the predominant conception of gender of a given time.

    KEYWORDSTeaching. Occupation. Profession. Gender Relationships.

    Submetido em 30/05/2011 Aceito em 28/06/2011

    INTRODUO2

    No decorrer dos estudos de doutorado, realizados no incio da d-cada de 1990, pesquisamos comparadamente os processos de fe-minizao do magistrio do ensino fundamental no perodo entre 1870 e 1930, com nfase no Brasil e na Argentina. As leituras opor-

    2 Agradecemos a cuidadosa reviso realizada pela Assistente Social e Mestre em Poltica Social Kelma Jaqueline Soares.

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    Temporalis, Brasilia (DF), ano 11, n.22, p.271-292, jul./dez. 2011.

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    tunamente realizadas, visando construir um estado da arte sobre a construo social e histrica das relaes de gnero no mundo do trabalho, mais especificamente sobre os processos de femini-zao da profisso docente na Amrica Latina, levaram a postular a existncia de ao menos duas grandes maneiras de entender o fenmeno da feminizao: uma perspectiva fundamentalmente quantitativa, preocupada em descrever e mensurar o fenmeno que denominamos como feminilizao, e uma perspectiva funda-mentalmente qualitativa, que procura compreender e explicar os processos, a qual denominei feminizao propriamente dita.3

    A nosso ver, mesmo quando as expresses feminilizao e femi-nizao so at hoje, indistintamente, utilizadas na literatura es-pecializada, sua diferenciao cientificamente pertinente e po-liticamente relevante. Sem dvida, os aspectos quantitativos so intrnsecos aos processos de transformao da composio sexual das profisses. De outro lado, os aspectos qualitativos da transfor-mao das profisses, que dizem respeito adstrio de certas ca-ractersticas generificadas, no so to evidentes e requerem um pensamento analtico mais completo, complexo e sofisticado.

    Os estudos sobre a relao das mulheres com o poder poltico chamaram inicialmente a ateno para essa dupla perspecti-va quantitativa e qualitativa (CASTELLS, 1996). Os resultados quantitativos atingidos na arena poltica obrigaram a uma nova reflexo sobre a participao das mulheres no poder, sob um enfoque qualitativo. Foi paulatinamente percebido que as mulheres que participam dos sistemas polticos republicanos defrontam-se com inmeros obstculos derivados do predom-nio masculino, o que se constituiu como uma espcie de elite discriminada4. Diante da ampliao do processo de participa-o cidad surgiram dois tipos de questes-chave:

    3 No dicionrio Houaiss (2001), as expresses feminizao e feminilizao so tratadas como sinnimas. Entretanto, para efeitos da nossa abordagem, preferenciamos os dicionrios especializa-dos da rea dos estudos de gnero, como o Dicionrio Crtico do Feminismo organizado por Hirata e colaboradoras. Assim, utilizamos feminilizao como termo derivado de feminilidade, no sentido de destacar o sexo ou caractersticas anatomico-fisiolgicas das pessoas contabilizadas na anlise quantitativa da composio de uma profisso ou ocupao. Sobre feminilidade e virilidade, ver o verbete desenvolvido por Molinier e Welzer-Lang (2009).4 Segundo Leon (1994), a elite discriminada um grupo duplamente isolado tanto da elite mascu-lina como da massa feminina e dominado, pois aquela est limitada a pequenas pores de poder que a elite masculina cede a partir de persistentes presses.

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    a) O nmero de mulheres o que garante uma formulao de po-lticas pblicas em prol das mulheres como coletivo social? Ou melhor: quando as mulheres participam da poltica, defendem os interesses das mulheres?

    b) possvel que o ingresso massivo de mulheres na poltica contri-bua para modificar as estruturas e mecanismos masculinizados da poltica? Isto : a feminilizao da poltica contribui para a sua efetiva feminizao, a ponto de alterar a prpria prtica poltica?

    O objetivo deste artigo o de apresentar as conceitualizaes dife-renciadas sobre a categoria de feminizao aplicada compreenso do mundo do trabalho e refletir sobre as consequncias cientficas e polticas que cada conceitualizao carrega. Para tanto, retomare-mos o exemplo dos histricos processos de feminizao do magist-rio. Essa reflexo se faz necessria no contexto dos estudos de g-nero e dos estudos do trabalho, bem como suas inter-relaes, pois o debate (quanto a essa categoria) ainda se encontra em aberto.

    FEMINILIZAO DA ARTE DE ENSINAR

    A feminizao da profisso docente na escola de ensino fundamen-tal marcou um importante momento na existncia e na represen-tao simblica das mulheres. H outras profisses que se femini-zaram, mas, talvez, apenas o magistrio foi to importante desde o ponto de vista simblico e poltico: os Estados nacionais latino--americanos, recm-constitudos, depositaram nas mos do corpo docente feminino a tarefa de reproduzir os fundamentos da nova identidade nacional (MORGADE, 1992; 1997).

    Desde as revolues burguesas at hoje, o princpio da igualdade foi consolidado gradativamente, porm em coexistncia confli-tante com a constituio de uma identidade feminina diferente da masculina (YANNOULAS, 1992). A construo discursiva dessas identidades sexualmente diferenciadas est relacionada com o es-tabelecimento de novas normas de conduta e espaos especficos para cada sexo. Especialmente, a partir do sculo XIX, nas socie-dades ocidentais, verificou-se uma preocupao por estabelecer identidades diferenciadas para o conjunto dos homens e para o

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    alinecamposTexto digitadomagistrio

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    conjunto das mulheres. Essa preocupao pode ser observada, por exemplo, nos dicionrios e enciclopdias de poca, sob os verbe-tes relativos aos conceitos de mulher, de homem, de feminino, de masculino, de fmea, de macho, entre outros. E tambm nas refe-rncias realizadas pelos cientistas sociais clssicos (Comte, Marx, Durkheim e Weber, entre outros cientistas sociais da poca). A construo discursiva dessas identidades sexuadas permitiu, em um contexto de igualdade formal, discriminar os seres humanos em virtude do sexo.

    Segundo YANNOULAS (1992), a identidade feminina foi constitu-da, discursivamente, com base em dois tipos de argumentos:

    Argumentao ecolgica: refere-se funo reprodutiva (bio-lgica e social) que as mulheres deveriam desempenhar nas fa-mlias, no lar e com relao aos filhos;

    Argumentao essencialista: refere-se s caractersticas atribu-das s mulheres como parte de uma essncia natural (fraque-za, irracionalidade, dependncia, afetividade etc.).

    Essas argumentaes constituram uma nova matriz de significado sobre a identidade feminina do sculo XIX. Situou-se como ideal feminino, por excelncia, a maternidade e, como espao feminino privilegiado, o privado. Maternidade e espao privado que foram redefinidos em um contexto histrico marcado pelo surgimento dos Estados nacionais, pela industrializao e urbanizao. Polti-cos, demgrafos, socilogos, pedagogos, economistas, sindicalis-tas, legisladores e feministas essencialistas e reformistas elabora-ram diversos discursos que colocaram a me no lugar da principal responsvel pelo bem-estar e a educao dos filhos (futuros cida-dos). A famlia nuclear estabeleceu-se, progressivamente, como novo modelo de famlia, adaptado s necessidades da urbe, do Estado. Com base nessa identidade feminina, foi legitimada a dis-criminao das mulheres, em diversos mbitos mercado de traba-lho, poltica, cultura, entre outros , ainda que, simultaneamente, tenha-se afirmado a igualdade dos seres humanos.

    Paralelamente, a identidade masculina foi construda, discursiva-mente, com base em outras duas argumentaes:

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    alinecamposNotaMaternidade como ideal feminino e espao privado como prprio ao feminino

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    a) Argumentao poltica: refere-se funo produtiva e pblica que o homem deveria desenvolver com relao sociedade;

    b) Argumentao essencialista: atribuindo caractersticas ditas es-senciais como, por exemplo, a fora fsica, a agressividade, a ra-cionalidade, a independncia, entre outras.

    Acreditamos ser de utilidade para uma melhor compreenso dos processos de feminizao a apresentao do conceito de diviso sexual do trabalho5. Essa diviso est fundada em relaes sociais que estabelecem grupos antagnicos (homens e mulheres), que desenvolvem atividades diferenciadas, construdas socialmente (no so decorrncia de determinaes biolgicas), com funda-mentos em bases materiais que no so unicamente ideolgicas, as quais, portanto, so passveis de periodizao e comparao intercultural; e, fundamentalmente, so relaes sociais hierr-quicas entre homens e mulheres. Trata-se de uma relao de po-der, de dominao, no neutra ou complementar, mas, sim, con-traditria.

    A industrializao e a urbanizao ancoraram-se em uma diviso sexual do trabalho antiga, reciclaram-na e a utilizaram para man-ter as desigualdades em contextos de suposta igualdade. A nova diviso sexual (e social) do trabalho outorgou novos sentidos aos conceitos de trabalho (trabalho produtivo) e de no trabalho (o trabalho reprodutivo), de pblico e privado, e estabeleceu, sepa-radamente, as esferas feminina e masculina, as quais, respectiva-mente, se materializam em: no trabalho: domstico, reprodutivo, gratuito, privado e feminino, por seus aspectos, contrastando com o trabalho: industrial, produtivo, remunerado, pblico e masculino. Na teoria sociolgica e no senso comum, passou a ser denominado trabalho apenas o trabalho produtivo e assalariado, excluindo todas as atividades destinadas reproduo da vida biolgica e social. Trabalhar foi pensado como uma atividade a ser realizada extramuros, uma atividade pblica. Cuidar do lar, dos filhos, dos idosos e da famlia ficou delimitado como atividade no trabalho, privada (YANNOULAS, 1992).

    5 Uma anlise da construo cientfica da noo de diviso sexual do trabalho pode ser vista no ver-bete elaborado por Kergoat (2009).

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    alinecamposTexto digitadotrabalho e no trabalho

    alinecamposNotatrabalho: masculino, pblico, remunerado, produtivo

    no trabalho: feminino, privado, gratuito

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    O contedo da legislao aprovada na virada do sculo XIX para o XX expressou ideias especficas sobre as mulheres, suas caracte-rsticas espirituais, emocionais e fsicas, e contribuiu para a deter-minao de funes especficas nos cuidados da famlia6. O traba-lho feminino remunerado (em particular, o fabril) era considerado danoso para a sade biolgico-reprodutiva das mulheres (o que se compreende quando pensamos nas condies de trabalho nas f-bricas da poca e no trabalho domiciliar para unidades de produ-o). O trabalho fabril era considerado prejudicial para as famlias e naes e para a reproduo social em sentido amplo, pois a famlia dependia do cuidado das mulheres. A participao das mulheres no mercado de trabalho foi tolerada (como desgraa inevitvel para as mulheres pobres), porm desaconselhada e muito controlada, pois a principal funo das mulheres era a maternidade, o cuidado e a preservao do ncleo familiar.

    Nesse contexto, os estudos normalistas e o exerccio do magist-rio pelas mulheres se configuram como uma grande exceo na Amrica Latina: no apenas foi tolerado, mas promovido pelas autoridades pblicas. Para compreender a exceo realizada com relao ao magistrio, podemos apelar ao conceito de espao so-cial, conforme definio de Arendt (1983). O espao pblico entre os gregos era o espao do plural e heterogneo por excelncia, o nico igual era o direito palavra e ao dos cidados. A capaci-dade humana de organizao poltica se opunha associao natu-ral no lar (ikia). O espao privado era o espao das mulheres e dos escravos, o reino da necessidade. A esfera social, que para Aren-dt no privada nem pblica, constitui fenmeno relativamente recente, associada modernidade europeia e conformao do Estado-Nao. O social seria a forma de coletividade humana na qual as pessoas perdem seu poder de aparecer, de falar e agir, em uma confuso annima, onde j no existe o pblico e o privado (a sociedade de massas seria seu pice). No social tudo exibido, porm ningum aparece. Tudo dito, porm ningum fala. A apa-rio do social significou, para Arendt, a perda da pluralidade pbli-ca e da desigualdade privada, estabelecendo-se a lei da igualdade entendida como homogeneizao. A esfera do social se constitui

    6 Tal expresso vlida tanto na Europa como na Amrica. Ver: ANDERSON y ZINSSER, 1992; DUBY y PERROT, 1991-1993; GIL LOZANO, PITA, y INI, 2000; DEL PRIORE, 2004.

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    como espao de mediao e normatizao, entre o pblico e o pri-vado (YANNOULAS, 1994).

    Esses conceitos arendtianos de pblico, social e privado so po-tentes para pensar a feminizao do magistrio na Amrica Latina. Com a apario do corpo docente, que na Amrica Latina, dife-rentemente da Europa, aconteceu paralelamente a sua feminiza-o, a tarefa docente passou a ser pautada e controlada cada vez mais. As profissionais tornaram-se intercambiveis, substituveis, pois perderam sua identidade (como o conjunto dos trabalhado-res inseridos no modelo de produo taylorista-fordista). Elas se localizaram na esfera do social, mas no falam por si prprias, no produzem conhecimento, perdem sua individualidade, visto que estendem as tarefas do cuidado privado para uma esfera que no pblica no sentido original grego, porm social.

    Na Amrica Latina, desde os primrdios das repblicas, o magist-rio no ensino das primeiras letras foi considerado uma atividade a ser desenvolvida pelos seres humanos sem diferenciao com base no sexo. Porm, pelos argumentos naturalistas da identidade femi-nina as mulheres poderiam desempenhar melhor essa profisso. De outra parte, a limitada remunerao outorgada se justificava em grande medida no argumento ecolgico da identidade femini-na, pois as mulheres apenas precisariam de um salrio complemen-tar, sendo filhas ou esposas em um lar onde um chefe de famlia, homem, desempenharia o papel de provedor principal.

    Os manuais de conduta para boas moas alegavam que era acei-tvel para uma moa de boa famlia a atividade de magistrio, po-rm, apenas at o casamento, porque aps o vnculo conjugal seria o momento para cuidar do marido e dos filhos7. A ideia ligava a mulher ao cuidado em duas fases da sua vida. No primeiro caso, o cuidado deve ser direcionado a crianas, especialmente as caren-tes, at que, no segundo caso, ela possa ter suas prprias crianas. Nesse caso, ela s estaria externalizando seus atributos ecolgicos e essenciais para melhorar o mundo.

    7 Dentre outros exemplos, ver: CAMINHA, Adolfo, A normalista, de 1893; BINZER, Ina von, Os meus romanos, alegrias e tristezas de uma educadora alem no Brasil, de 1887; FURLONG, Guillermo, La cul-tura femenina em la poca colonial, de 1951; e GALVEZ, Manuel, La maestra normal, de 1964. Tambm consultar GIL LOZANO y otras, 2000; DEL PRIORE, 2004.

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    alinecamposNotaestender tarefas privadas para o social (pblico)

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    alinecamposNotao magistrio, na amrica latina, inicialmente era passvel de ser exercido por ambos os sexos. Porm, o discurso essencialista de que as mulheres poderiam desempenhar melhor essa funo, devido sua natureza.A baixa remunerao tambm contribuia para esse pensamento, visto que mulheres no tinham necessidade de altos salrios, pois a o provedor principal do lar o homem, em alguns casos o pai e em outros o marido.

    alinecamposRealce

    alinecamposTexto digitadocuidado

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    Era necessrio um corpo docente a baixo custo, para realizar a grande cruzada pedaggica de transformar os sditos coloniais em cidados das novas repblicas: as mulheres latino-americanas passaram a ser consideradas educadoras por excelncia, visto que eram uma mo de obra barata, eram dceis e, sem outras opor-tunidades laborais decentes, se tornam mais atrativas. A profes-sora possua vantagens comparativas em relao aos professores, pois polticos e pedagogos da poca afirmavam que as mulheres instruem menos, porm educam mais. Alm disso, se as mulheres tinham sido definidas como as responsveis pelas crianas no lar, nada mais razovel do que encomendar a elas a transio para o mundo do pblico com a transferncia de responsabilidade sobre o ensino das primeiras letras.

    PROFISSIONALIZAO E FEMINIZAO

    Se considerarmos que profisso uma atividade laboral que re-quer uma preparao ou qualificao especfica, a profisso docen-te redefinida era ideal para as mulheres, pois outorgava uma for-mao especfica para duas funes: professora e me. Segundo Yannoulas (1996), a especificidade da profisso docente, com uma qualificao obtida em instituies especficas (na poca, as esco-las normais), foi definida com base em quatro critrios:

    a) o tipo de contrato que regula seu exerccio, estabelecendo que a docente uma profissional subalterna, com a tarefa de trans-mitir saberes de diversas naturezas (valores, normas de condu-ta, saberes instrumentais etc);

    b) a relao com o conhecimento ou formao acadmica, pois a professora uma profissional que domina certas reas de co-nhecimento a ser transmitido. Capacitadas, fundamentalmente, para transmitir, as professoras no foram pensadas como pro-dutoras ou crticas desse conhecimento;

    c) a relao com a infncia ou formao pedaggica, pois a profes-sora trabalha com infantes e deve, consequentemente, dominar metodologias especficas para tanto;

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    d) a relao simblica da professora com a sociedade constitui-se como a transmissora indiscutida do saber legitimado.

    Para Louro (2010), no Brasil, possvel identificar algumas trans-formaes sociais que viabilizaram a entrada das mulheres em sa-las de aula at atingir o predomnio do magistrio. Os discursos da poca apelavam ordem e ao progresso, pela modernizao da sociedade, pela higienizao da famlia e pela formao dos jovens cidados, que, necessariamente, redundariam na educao das mulheres (das mes). As novas teorias psicolgicas e pedaggicas deixaram de colocar o foco na transmisso de conhecimentos e fo-caram sua ateno na absoro e criao dos mesmos, consideran-do o afeto como fundamental para facilitar a aprendizagem.

    O recrutamento e a formao do corpo docente adequado foi uma das premissas fundamentais para o empreendimento de consti-tuir os fundamentos dos novos sistemas educacionais nacionais. A prtica de ensinar, que at esse momento na Amrica Latina tinha sido exercida de maneira espontnea, requeria, a partir desse mo-mento, habilitaes especficas e certificadas por uma qualificao profissional em escolas normais e, futuramente, na universidade. A constituio do corpo docente ou magistrio homogneo permi-tiria um processo relativamente unificado de imposio cultural. O desempenho da prtica pedaggica j no mais estaria liberado subjetividade das pessoas individuais, mas apresentaria um carter tipificado, pautado. Aqueles e aquelas includas no corpo docente ou no magistrio compartilhariam uma formao comum, espec-fica. A certificao significava a possibilidade de modificar os indi-vduos, porm, sem alteraes na funo social desempenhada ou na prtica pedaggica.

    O corpo docente, como todo grupo social, possui uma dupla exis-tncia: de um lado, a existncia material objetiva, que pode ser quantificada segundo uma srie de propriedades (sexo, idade, ori-gem social); de outro, uma existncia simblica, como represen-tao cultural ou matriz de significado. Essa dupla existncia do magistrio, material e simblica, tem consequncias em relao ao sexo (biolgico) e ao gnero (social): sua existncia material objeti-va quanto ao nmero de mulheres discentes nas escolas normais e docentes nas escolas fundamentais, bem como as representaes

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    em torno do magistrio, que prescrevem o dever ser do docen-te em uma forma genericamente discursiva, mais prxima daquela identidade feminina mencionada.

    O diploma docente se transformou em garantia de competncia. Credencial de competncia cultural, o diploma outorga ao porta-dor um valor convencional, constante e garantido juridicamente da sua relao com os conhecimentos. Esse diploma o instrumento que permite a intercambiabilidade dos profissionais. Institucio-nalizar as prticas pedaggicas mais ou menos espontneas em prticas pedaggicas organizadas nas escolas implicou um proces-so de definio profissional que estabeleceu os limites e maneiras da circulao e apropriao dos saberes, de estudantes e professo-ras. Tambm significou excluir a escola e as professoras da produ-o de saberes vlidos socialmente.

    FORMAS E MODELOS DE FEMINIZAO

    Com base nos aspectos apontados no tpico anterior, podemos postular dois tipos de feminizao da profisso docente: uma que considera a relao estabelecida entre a incorporao de mulheres no corpo docente (existncia material objetiva) e outra sobre o es-tabelecimento da obrigatoriedade escolar atrelada conformao de Estado-nao, onde nesse ltimo caso tratou-se de:

    a) Processo basicamente conflitivo: quando a obrigatoriedade es-colar e a formao de um corpo docente (masculino) antecede-ram o processo de feminizao. A exigncia de celibato apenas para as mulheres constituiu uma das chaves-mestre para impe-dir a permanncia de mulheres no magistrio8; a insero ape-nas em escolas de meninas foi outra daquelas chaves. Nesses casos, o processo de feminizao do magistrio aconteceu mais tardiamente, associado sada dos homens da profisso por causas externas como as grandes guerras na Europa e tambm

    8 Sobre as modificaes na profisso docente na Europa, ver ACKER, 1995. Sobre as modificaes na profisso docente nos Estados Unidos, ver APPLE, 1989. Sobre as modificaes na profisso docente na Argentina, ver MORGADE, 1992; YANNOULAS, 1996; e BILLOROU in DI LISCIA & MARISTANY, 1997. Sobre as modificaes na profisso docente no Brasil, ver NOVAES, 1984; REIS, 1993; VILLELA in LOPES, 2007; e YANNOULAS, 1996.

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    aos processos gradativos de instaurao da educao mista en-tre as crianas pequenas (ensino de meninos e meninas conjun-tamente), para a qual se dava preferncia s professoras9. Para ilustrar, nos pases europeus, a construo dos sistemas escola-res aconteceu com a excluso material e simblica das mulhe-res, em uma concepo pedaggica que no permitia a incluso de caractersticas femininas e que apelava fora aos castigos fsicos e disciplina como tcnicas fundamentais para o ensino--aprendizagem;

    b) Processo sem conflitos: quando a obrigatoriedade escolar e a formao do corpo docente (feminino) tiveram lugar paralelo ou incluso, posteriormente, criao de instituies especficas para a formao de professores. A necessidade de expandir o ensino das primeiras letras e de repassar os valores cvicos em contexto de recursos escassos foi a chave-mestre que permitiu o acesso massivo de mulheres ao magistrio na Amrica Latina ps-colonial, inclusive em alguns casos, pensou-se a profisso para as rfs, como educao profissional para as jovens que no possuam dependncia financeira de homem algum (pai ou marido). Nesses casos, o processo de feminizao foi mais r-pido e estimulado, porm controlado por autoridades pblicas masculinas (supervisores, professores de escolas normais, mi-nistros de educao, conselheiros de educao, entre outros).

    Nos processos de feminizao sem conflitos aparentes, as mulhe-res no precisaram batalhar ou esperar a sada dos homens do ma-gistrio: elas foram chamadas a participar ativamente dos proces-sos de construo das bases dos sistemas educacionais em pases nos quais o peso da tradio de magistrio masculino no existia. Na Amrica Latina, o discurso sobre o sistema educacional rede-finiu o significado da atividade docente e a vinculou identidade feminina. Esses processos de feminizao foram, intrinsecamente, atrelados s teorias pedaggicas que questionavam a utilizao dos castigos fsicos como tcnicas de ensino-aprendizagem no es-pao escolar.

    De outra parte, seria necessrio distinguir dois significados diferen-

    9 Sobre coeducao e educao mista, ver o verbete produzido por FORTINO (2009).

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    tes de feminizao das profisses e ocupaes10 observveis com estratgias metodolgicas diferentes:

    Significado quantitativo (que para efeitos de distino denomi-naremos feminilizao): refere-se ao aumento do peso relativo do sexo feminino na composio da mo de obra em um deter-minado tipo de ocupao;

    Significado qualitativo (que denominaremos de feminizao propriamente dita): refere-se s transformaes em um deter-minado tipo de ocupao, vinculadas imagem simblica do feminino predominante na poca ou na cultura especificamen-te analisadas. Essa imagem pode implicar uma mudana no sig-nificado da profisso.

    Duas observaes necessrias: 1) O segundo significado inclui e expande o primeiro significado, sendo ambos diferentes, porm, complementares. O segundo significado alude a uma compreenso mais ampla e sofisticada dos processos de incorporao de mulhe-res em uma determinada profisso ou ocupao, porque alm de descrever a entrada delas no campo profissional ou ocupacional, tenta explicar as razes que permitiram essa entrada. 2) Inclusive na literatura especializada, a categoria feminizao utilizada sem ser definida especificamente, ou seja: a feminizao usualmen-te naturalizada, at mesmo nos estudos feministas. Avanaremos mais sobre o assunto no prximo tpico.

    H uma relao entre o que denominamos feminilizao e o sexo. Tambm existe uma relao entre o que denominamos feminiza-o em sentido estrito e o gnero. Entendemos que a palavra sexo provm do latim sexus e refere-se condio orgnica (anatmico--fisiolgica), que distingue o macho da fmea. A definio do que sexo est na estabilidade desse conceito ao longo do tempo. A categoria de gnero provm do latim genus e refere-se ao cdigo de conduta que rege a organizao social das relaes entre ho-

    10 A sociologia das profisses desenvolvida nos pases anglo-saxes ops as verdadeiras profisses s outras atividades de trabalho designadas como ocupaes. As primeiras tm direitos especficos reconhecidos pelo Estado e pela legislao, que organizam sua formao, controlam seu exerccio e comportam uma formao demorada. As segundas no conquistaram esses direitos particulares (Ver verbete sobre o tema in: Kergoat, Picot & Lada, 2009).

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    mens e mulheres. Em outras palavras, o gnero o modo como as culturas interpretam e organizam a diferena sexual entre homens e mulheres. Sua principal caracterstica est na mutabilidade, isto , na possibilidade de mudana na relao entre homens e mulhe-res atravs do tempo. No se trata de um atributo individual, mas que se adquire a partir da interao com os outros e contribui para a reproduo da ordem social (YANNOULAS, 1996).

    Historicamente, a delimitao e o exerccio das profisses esto sexualmente marcados. O mercado de trabalho est segmentado em dois sentidos: horizontal (poucas profisses e ocupaes ab-sorvem a maioria das trabalhadoras) e vertical (poucas mulheres ocupam altos cargos, ainda que se considerem setores de ativida-de com preponderante participao feminina como a educao, a sade, o servio social etc.). Em todas as culturas, realiza-se uma interpretao bipolar (feminino masculino) e hierrquica (o mas-culino mais valorizado que o feminino) das relaes entre homens e mulheres. Quando se discute essa questo, pretende-se debater e transformar a construo social e cultural das relaes de gne-ro, no sentido de pluraliz-las e democratiz-las, a fim de contribuir para a eliminao de discriminaes baseadas em dicotomias es-tereotipantes e hierarquizantes. O gnero, mais do que o do sexo, permite reconhecer as diferenas existentes entre as prprias mulheres (e entre os prprios homens), a partir de caractersticas tnicas, raciais, de classe, de orientao sexual, de idade, entre ou-tras possveis (YANNOULAS, 1996).11

    Postulamos que existe uma intensa relao entre o acesso massivo de mulheres em uma determinada profisso ou ocupao (femini-lizao, contabilidade de pessoas de sexo feminino ou fmeas) e a progressiva transformao qualitativa da mesma (feminizao, caracterizao e tipificao de uma ocupao ou profisso). Com o ingresso massivo de mulheres, diminuem as remuneraes e o trabalho perde prestgio social. Sob outra perspectiva, quando as profisses se feminilizam, passam a ser entendidas como extenso no espao pblico da funo privada de reproduo social (funo dos cuidados). Assim, ao analisar a mudana na existncia objeti-va de uma profisso (feminilizao), necessrio entender como e

    11 Sobre diferenciao biolgica e diferenciao social, ler o verbete produzido por MATHIEU (2009).

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    por que aconteceu a mudana (feminizao de atributos, caracte-rsticas descritivas que determinam e regulam o exerccio da pro-fisso ou ocupao).

    Nesse caso, por que foi aceito e at estimulado que as mulheres latino-americanas desempenhassem to importante papel na vida extramuros? Diversos fatores agiram nesse sentido: (a) um discurso poltico que fomentava a incorporao de mulheres aos incipientes sistemas educacionais como guardis da cidadania, (b) um discurso da administrao cientfica do trabalho que identificava nas mulhe-res mo de obra barata e disponvel e, finalmente, (c) um discurso pedaggico que cientificamente destacava as habilidades femini-nas para lidar com crianas nas novas perspectivas educacionais que fundamentavam o ensino na persuaso e no na imposio. As mulheres poderiam suavizar as tcnicas pedaggicas, disciplinar e ensinar sem castigar corporalmente. Socialmente, era mais fcil admitir que crianas de ambos os sexos ficassem encomendadas s mulheres (j que, nos lares, as crianas eram cuidadas tambm por mulheres). Assim, as mulheres sairiam de casa para transitar em espaos escolares sem riscos de corrupo moral por estarem em contato direto com a infncia (j purificada, sacralizada).

    PENDNCIAS METODOLGICAS E DESDOBRAMENTOS POLTICOS

    A feminizao do assalariamento uma das maiores mutaes so-ciais do final do sculo XX, pois, em poucas dcadas, elas se torna-ram quase a metade do mundo do trabalho, conforme apontam as especialistas feministas sendo que o aumento quantitativo do as-salariamento entre as mulheres foi acompanhado de algumas mu-danas qualitativas no tipo de insero que elas receberam no mer-cado de trabalho e no desempenho de atividades. A maioria das mulheres, atualmente, no cessam de trabalhar, mesmo quando tm filhos. No ocorre a pronunciada descontinuidade da trajet-ria profissional, embora o custo pessoal e familiar seja muito alto12.

    12 A maioria das mulheres atualmente no responde mais ao antigo perfil de participao das mulhe-res no mercado de trabalho, detectado pelos primeiros estudos feministas de sociologia do traba-lho. Entretanto, antes e agora, diversos grupos de mulheres participam de maneiras diferenciadas no mercado de trabalho, continuando a ser particularmente sensveis aos condicionantes familiares

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    Entretanto, e de maneira paradoxal, essas transformaes pouco afetaram a hierarquia das desigualdades profissionais em termos de prestgio social, remuneraes ou potencial perda de emprego, pois no foram capazes de alterar o tipo de carreira profissional, o qual pautado, geralmente, pelo modelo do profissional masculi-no ou, dito em outros termos, pelas possibilidades concretas dos homens no exerccio das respectivas profisses. Em contrapartida, no houve uma profunda transformao da diviso sexual do tra-balho e o trabalho reprodutivo permaneceu sob responsabilidade predominante das mulheres (YANNOULAS, 2003).

    Tambm de maneira paradoxal, o tratamento da categoria de fe-minizao deixa a desejar. Kergoat, Picot e Lada (2009) entendem que nos anos 1980 as problemticas de estudo das Cincias Sociais se reorientam para anlises em termos de feminizao ou mas-culinizao de profisses ou setores em que a diviso sexual do trabalho estivesse em constante reelaborao. Houve, ento, uma emergncia de estudos e anlises sobre sociologia do emprego e do desemprego femininos, que outorgaram visibilidade ao espao reduzido e desprestigiado ocupado pelas mulheres no mercado de trabalho, bem como aos processos de precarizao, flexibilizao e desvalorizao que acompanharam o aumento quantitativo das mulheres em certos setores e atividades do mercado de trabalho.

    Para Dias (2010), a reflexo sobre a feminizao como categoria terica de anlise , relativamente, recente no campo dos estudos do trabalho. No Brasil, sua trajetria iniciada na dcada de 1990, momento em que acontecem mudanas significativas no mundo do trabalho e na contratao de fora de trabalho feminina, con-forme apontado anteriormente. A feminizao seria, portanto, uma categoria em movimento, em processo de construo. O foco do estudo est usualmente centrado em descrever e interpretar a elevada proporo de mulheres em processos capitalistas con-temporneos. Bruschini (1998), Hirata (2002) e Saffioti (1997) so autoras relevantes para compreender a emergncia da categoria feminizao entre os estudos de gnero e os estudos do trabalho no Brasil.

    as mulheres chefas de famlia.

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    Dias (2010) tambm esclarece que, semanticamente, a palavra fe-minizao um substantivo que vem sendo utilizado para designar ato ou efeito de feminizar, dar feio feminina a algum aspecto da vida social. No h uma definio semntica do processo, mas sim fatores, elementos, hipteses explicativas que auxiliam no entendi-mento das formas (diversificadas) de incorporao e de concentra-o das mulheres no universo do trabalho. O desafio, o propsito atual, seria o de ir alm do enfoque quantitativo, qual seja, refletir em que medida esses elementos estariam, de fato, redefinindo a posio feminina na esfera produtiva ou se no estariam configu-rando uma nova estratgia de explorao dessa fora de trabalho, pois a participao aumenta, paralelamente, com a precarizao e a flexibilizao do trabalho.

    Algumas autoras do campo apontam para efeitos ambguos dos processos de feminizao: se de um lado possibilitam a incorpo-rao das mulheres ao mercado de trabalho e sua emancipao econmica, de outro esses processos acontecem junto com a racio-nalizao do processo de trabalho em um contexto de mudanas (tecnolgicas, nas relaes de trabalho, no mercado) (cf. SEGNINI, 1998; DIAS, 2010; ABRAMO, 1998).

    Le Feuvre (2008) destaca que a maior parte das pesquisas sobre feminizao das profisses superiores (grupos profissionais carac-terizados por um nvel elevado de prestgio e/ou remunerao) chama a ateno para os avanos das mulheres nas ltimas duas dcadas, mas no necessariamente aponta para o carter ambguo dessa penetrao, particularmente pelos postos especficos que elas ocupam na hierarquia profissional interna. A nosso ver, isso possvel porque h uma utilizao restrita e limitante da categoria de feminizao, que destaca em demasia os aspectos quantitativos em detrimento dos qualitativos. A maioria desses estudos apon-ta para a chegada progressiva das mulheres nos antigos basties masculinos e sustentam, mais ou menos explicitamente, o pos-tulado segundo o qual o carter quantitativamente misto dessas profisses constitui um indicador emprico confivel do nvel de igualdade atingido.

    As posies tericas e as escolhas metodolgicas anteriormente apontadas por meio da utilizao dos termos feminilizao e femi-

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    nizao para ento analisar tal categoria de feminizao no so neutras, nem possuem apenas um valor heurstico ou especulativo. Elas orientam escolhas polticas; o objetivo mais amplo o de reco-nhecer as mulheres no mundo do trabalho, da cincia, da poltica, das relaes sociais. As estatsticas, que etimologicamente so o inventrio de conhecimentos teis para o estadista (extenso, po-pulao, recursos), constituem um dado isolado quando no esto inseridas num contexto de interpretao mais amplo. Ainda que pretensamente objetivas, as estatsticas no se limitam a regis-trar dados neutros e possuem a marca dos esteretipos e concei-tuaes dadas em uma poca e cultura.

    As reflexes expostas sobre os sentidos da categoria de feminiza-o podero contribuir para uma melhor compreenso das manei-ras e perspectivas da participao feminina no mundo do trabalho, bem como para elucidar a polmica em torno da feminizao da pobreza questionada, quantitativamente, pelos economistas e demgrafos; defendida qualitativa e politicamente pelas acad-micas e ativistas feministas. As marcas de gnero das profisses e ocupaes podem ser observadas tambm nessa polmica, como j foram destacadas em outras oportunidades por vrias autoras feministas13. Assim, a polmica sobre a feminizao dos processos sociais no apenas epistemolgica, mas fundamentalmente po-ltica.

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