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XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE e PRÉ-ALAS BRASIL. 04 a 07 de setembro de 2012, UFPI, Teresina-PI. GRUPO DE TRABALHO 03 - Sociologia e antropologia das emoções TÍTULO: Quem é essa mulher? Análise das representações femininas nos manuais de autoajuda Rossana Maria Marinho Albuquerque, doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) Bolsista do CNPQ [email protected]

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XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE e PRÉ-ALAS

BRASIL.

04 a 07 de setembro de 2012, UFPI, Teresina-PI.

GRUPO DE TRABALHO 03 - Sociologia e antropologia das emoções

TÍTULO: Quem é essa mulher? Análise das representações femininas nos manuais de

autoajuda

Rossana Maria Marinho Albuquerque, doutoranda em Sociologia pela Universidade

Federal de São Carlos (Ufscar)

Bolsista do CNPQ

[email protected]

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Resumo : O trabalho contém apontamentos parciais da pesquisa de doutoramento e analisa as representações femininas construídas nos manuais de autoajuda, classificados como best-sellers, direcionados às mulheres. As representações aqui são consideradas tanto no seu aspecto de gênero (são constituídas enquanto relação), quanto no sentido de uma determinada produção de discurso sócio-histórica (expressando um determinado ideal feminino). No presente artigo, destacamos fragmentos de dois dos livros analisados: “O que toda mulher inteligente deve saber” e “Por que os homens fazem sexo e as mulheres fazem amor?”. No desenvolvimento da exposição, caracterizamos a literatura de autoajuda no contexto de sua difusão e articulamos a discussão à dimensão de gênero, a partir de autores que problematizam a questão, a exemplo de Giddens, Hochschild, Ehrenreich e English, entre outros.

1 – Introdução

O artigo expõe elementos da pesquisa de doutorado ainda em andamento, na qual

analisamos as representações femininas nos manuais de autoajuda direcionados às

mulheres, através da análise do conteúdo do material selecionado e de entrevistas semi-

estruturadas a serem realizadas com leitoras deste gênero de literatura.

Para a tese de doutorado, selecionamos quatro manuais, classificados entre os

mais vendidos no Brasil: “Os segredos das mulheres inteligentes” (CARTER e SOKOL,

2010), “Por que os homens amam as mulheres poderosas?” (ARGOV, 2009), “Por que os

homens fazem sexo e as mulheres fazem amor?” (PEASE e PEASE, 2000) e “O que toda

mulher inteligente deve saber” (CARTER e SOKOL, 2006). A escolha dos mais vendidos

(best sellers) para objeto de análise se deu por conta de sua expressão entre os livros do

ramo que são procurados no Brasil, o que também dá indícios de sua procura e

identificação por parte do público leitor.

A autoajuda enquanto fenômeno sócio-histórico é mais abrangente que a literatura

aqui discutida. Ela expressa um contexto de incertezas e busca de segurança no

cotidiano das relações. Neste sentido, numa época de inúmeras transformações de

caráter global, com implicações individuais, difunde-se a autoajuda e esta expressa, a

princípio, que as pessoas estão buscando respostas para as questões que as afligem (em

grupos, terapias, aconselhamentos de manuais) e, ao mesmo tempo, se

autorresponsabilizam pelas soluções destas questões.

Nesta exposição, destacamos trechos de dois dos livros analisados: “Por que os

homens fazem sexo e as mulheres fazem amor?” (PEASE e PEASE, 2000) e “O que toda

mulher inteligente deve saber” (CARTER e SOKOL, 2006). A análise apresentada no

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artigo identifica algumas das constatações analíticas decorrentes da observação do

conteúdo dos manuais, articulada com uma discussão teórica, tanto no que diz respeito

ao fenômeno da autoajuda de maneira mais ampla, quanto na sua dimensão de gênero.

No texto, discorremos brevemente sobre padrões de gênero socialmente

construídos, com o intuito de problematizar os discursos ou modelos construídos

historicamente. No caso do nosso objeto de análise, interessa uma dupla articulação:

considerar o fenômeno da autojuda e sua difusão no contexto contemporâneo, ao mesmo

tempo em que percebemos o enfoque de gênero presente nas publicações sugeridas

para as mulheres, o que nos faz pensar também sobre um determinado padrão de gênero

vivenciado na atualidade, expressando ideais de sentimentos, família, feminilidade,

relações de gênero e trabalho, maternidade, etc.

No curso da apresentação, fazemos uma contextualização do fenômeno da

autoajuda e sua difusão. A literatura de autoajuda é estudada observando-se,

principalmente, sua ênfase no papel do indivíduo como condutor da sua história. Neste

sentido, os autores apresentados localizam o contexto da modernidade e ascensão das

relações sociais capitalistas como motores do culto ao indivíduo, explicitando o que há de

específico no discurso sobre a individualidade propagada nos livros de autoajuda,

inclusive porque eles se modificam ao longo de algumas décadas. Em relação à literatura

voltada para as mulheres, encontramos uma dimensão específica, pois não se trata de

um êxito qualquer, ele se relaciona principalmente aos relacionamentos afetivos, como

poderá ser observado mais adiante.

Para articular as dimensões de gênero e autoajuda, valemo-nos de trabalhos que

analisam tal relação, assim como recorremos à crítica feminista como recurso analítico-

crítico dos padrões de gênero socialmente construídos. Por fim, fazemos análise de

alguns trechos selecionados dos livros citados anteriormente, expondo algumas das

constatações até então observadas na literatura. Destaque-se que tais apontamentos

estão em fase de andamento em termos de pesquisa e são decorrentes das respostas às

primeiras questões de pesquisa. Neste sentido, embora aqui já estejam contidos alguns

de nossos achados de pesquisa não estão, por sua vez, descritos em caráter

definitivo/conclusivo.

2 – Padrões de gênero e construção sociohistórica

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A maneira como a mulher é representada em um dado contexto expressa um

conjunto de relações sociais estabelecidas que, por sua vez, pressupõe construções

simbólicas componentes da reprodução social. Neste sentido, o que se entende como

homem ou mulher ideal corresponde a um pressuposto sócio-histórico específico.

As mulheres já foram representadas de diversas maneiras. Muito do que se

escreveu sobre elas, ao longo da história, expressava um olhar masculino da realidade

social. Nas palavras de Confortin (2003, p. 108): “se aparecessem, era como uma nota de

rodapé ou como algo semelhante a um desvio de norma”.

Até que as próprias mulheres expressassem suas representações de mundo, o que

se relatava sobre elas é traduzido pelo olhar masculino/patriarcal, visualizado-as em um

lugar de segundo plano na reprodução social 1. Moraes (2002) observa que, a partir do

século XIX, com o advento das lutas feministas, a estrutura patriarcal é questionada e

enfrentada. Tal questionamento resultou na conquista de vários lugares socialmente

importantes ocupados pelas mulheres, mas não a eliminação completa do poder

simbolizado pela dominação masculina.

É, paradoxalmente, também na modernidade que se constrói uma figura da mãe-

esposa adequada à sociabilidade burguesa: caberia à mulher a responsabilidade pelos

cuidados domésticos e educação dos filhos (BADINTER, 1985). Esse padrão, ao mesmo

tempo em que encontra um sentido na reprodução social, é confrontado pelas feministas,

sobretudo ao longo do século XX.

Diante da constituição da reprodução social baseada na família nuclear e do

confronto feminista, que buscou uma posição social para além do ambiente doméstico,

cria-se uma espécie de padrão que, por um lado reconhece a inserção da mulher em

vários campos de atividade social e, por outro lado, mantém sua “naturalizada”

responsabilidade pela edificação do lar.2

No processo de construção/desconstrução dos padrões valorativos construídos

sobre e também pelas próprias mulheres, encontramos o nosso objeto de estudo, situado

no complexo processo de construção das representações femininas, legatário de um

passado de dominação de gênero e de um recente questionamento feminista. É

interessante observar que o fato de as mulheres também se representarem através da

literatura disso não decorre uma postura necessariamente feminista. No caso dos 1 Ver Moraes (2002) e Saffioti (2004). 2 Uma exposição contemporânea dessa relação é discutida em Hirata e Kergoat (2008).

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manuais analisados, é possível encontrar passagens que são diretamente divergentes de

posicionamentos feministas e são escritos por mulheres.

Os livros de autoajuda destinados às mulheres são publicações difundidas na

segunda metade do século XX. Mas os manuais voltados para estimular um

comportamento ideal para mulheres têm existência anterior. Uma das particularidades da

modernidade é que, mesmo quando da existência de determinados padrões, estes são

desconstruídos e reconstruídos com mais freqüência, se comparamos a épocas pré-

modernas. Um rápido exame do histórico brasileiro a respeito dos padrões femininos

socialmente construídos permite visualizar melhor tal afirmação.

A partir da coletânea organizada por Del Priore (2004), percebemos que falar sobre

a mulher no Brasil significa fazer referência a um universo complexo que compreende a

mulher dos espaços urbanos (assim como as várias mulheres urbanas, divididas em

classes), a mulher dos espaços rurais, a mulher indígena e, em cada um desses campos,

encontramos os padrões de comportamento ideais esperados para uma mulher.

Na publicação referida acima, D’Incao (2004) nos mostra, analisando a primeira

metade do século XX, como a construção social do papel da esposa foi estabelecida

articulando-se com a estruturação dos espaços urbanos no Brasil. Aponta a autora que a

consolidação do capitalismo no Brasil configurou o incremento da vida urbana que, por

sua vez, oferecia novas alternativas de convivência social. Esse é o cenário no qual se

constrói um lugar para a esposa-mãe, “um tesouro social imprescindível”. Segundo

D’Incao (2004, p. 229): “é reforçada a ideia de que ser mulher é ser quase integralmente

mãe dedicada e atenciosa, um ideal que só pode ser atingido na família”. Na formulação

desse padrão valorativo, estimula-se o culto ao amor romântico, além da exaltação da

virgindade como uma forma de preservação de status social.

Bassanezi (2004) mostra como os padrões de comportamento sugeridos às

mulheres podem modificar em um decurso rápido de tempo. A autora pesquisa os

manuais de comportamento dirigido às mulheres brasileiras nos anos 1950 e descreve o

perfil estabelecido naquele contexto. Fundamentalmente voltados para as mulheres, estes

manuais indicavam que a felicidade conjugal dependia dos esforços femininos e sugeriam

uma série de comportamentos considerados adequados para as moças que

pretendessem lograr um casamento com êxito.

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Buitoni (2009) apresenta um estudo sobre a representação social da mulher

construída pela imprensa brasileira. Sua pesquisa, que analisa desde os impressos do

século XIX até o final do século XX, consegue revelar quantos padrões diferentes já foram

considerados como ideais para as mulheres. Ao analisar tais publicações, a autora

considera os elementos presentes em cada contexto histórico, o que permite a formação

de tais ideias.

Cabe observar que, ao conduzir uma análise do conteúdo dos manuais, não há a

intenção de confirmá-lo ou negá-lo de acordo com as práticas sociais; trata-se de

perceber como esse discurso é produzido e encontra ressonância social, pois se por um

lado opera com uma construção de ideal do que seja a mulher, por outro é fortalecido

pelos leitores que se identificam fortemente com tais publicações.

2.1 - Gênero, diferenças e questionamentos feminist as

Nesta subseção, apresentamos um rápido esboço de teorias feministas

contemporâneas que discutem a produção discursiva da diferença, através de

questionamentos pós-estruturalistas, que nos apropriamos criticamente, pois se por um

lado compreendemos que há uma complexidade no trato da análise da constituição da

subjetividade em tais formulações, por outro não prescindimos da consideração da

estrutura social como cenário no qual se constituem as chamadas práticas discursivas e

que nos fornece elementos para dar a devida concretude ao contexto analisado.

Incorporamos algumas referências que auxiliam a problematizar o conteúdo dos

manuais para além da representação homem/mulher (a chamada representação binária

de gênero), que caracteriza a maior parte das publicações. No entanto, não descartamos

a análise dos dilemas de gênero compreendidos neste binarismo, pois ele nos conduz a

problemáticas atuais que pensamos ser relevantes para um debate feminista crítico.

A concepção de subjetividade também foi acrescida pelas contribuições das teorias

que consideram a dimensão psicanalítica, para abordar fenômenos subjetivos que

extrapolam a esfera consciente de decisões.

A menção de elementos críticos à chamada heteronormatividade do social,

formulada pelos teóricos queers, nos serve de base para perceber como a construção

discursiva dos padrões de gênero dos manuais é fundada na heterossexualidade dos

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relacionamentos. A crítica queer, nesse sentido, atua para desconstruir o binarismo

heteronormativo e mostrar o que há de implícito na oposição binária, conforme Miskolci

(2009). O homo é entendido não como complemento do hetero, mas a partir daquilo que

fica silenciado no discurso de normalização da sexualidade. Podemos acrescentar as

críticas de Butler (2010) ao chamado binômio sexo/gênero, que utilizamos para

compreender as formulações de um discurso de naturalização das diferenças de gênero

pautada em argumentos biológicos.

Woodward (2008) também oferece vários apontamentos em sua abordagem teórica

e conceitual sobre identidade e diferença. Através das formulações da autora, podemos

destacar alguns pressupostos para análise da formação de identidades em determinados

contextos. Segundo as indicações da autora: a) a identidade é construída relacionalmente

e situadas em um contexto; b) as identidades são construídas através da marcação da

diferença; c) há, na base do pensamento moderno, uma construção binária das

identidades, que normalmente diferencia termos opostos e, ao mesmo tempo, cria um

padrão centrado nos termos binários; d) as identidades podem se apoiar em

essencialismos (tentativas de fixar identidades), que podem se manifestar através de

argumentos biológicos (raça, gênero, etc), mas também culturais.

A crítica dos essencialismos também pode ser verificada em Scott (1998), ao

observar as possibilidades de um discurso asumir um caráter essencializador, quando a

experiência é tomada analiticamente como um dado pronto. Para ela (1998, p. 304), “não

são indivíduos que têm experiência, mas sim os sujeitos que são constituídos pela

experiência”.

Brah (2006) oferece eixos para pensar na questão da identidade e da diferença,

que também serão considerados na análise teórica da questão. Para a autora, a diferença

pode ser concebida em quatro eixos, que se articulam:

a) Diferença como experiência (pp. 360-361): “a experiência não reflete de maneira

transparente uma realidade pré-determinada, mas é uma construção cultural”; “Contra a

idéia de um “sujeito da experiência” já plenamente constituído a quem as “experiências

acontecem”, a experiência é o lugar da formação do sujeito”; “é útil distinguir a diferença

como marcador de distintividade de nossas “histórias” coletivas da diferença como

experiência pessoal inscrevendo a biografia individual”.

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b) Diferença como relação social: “se refere à maneira como a diferença é

constituída e organizada em relações sistemáticas através de discursos econômicos,

culturais e políticos e práticas institucionais” (p. 362).

c) Diferença como subjetividade: “Houve um reconhecimento crescente de que as

emoções, sentimentos, desejos e fantasias mais íntimas da pessoa, com suas múltiplas

contradições, não poderiam ser compreendidas puramente em termos dos imperativos

das instituições sociais. As novas leituras foram essenciais para um entendimento mais

complexo da vida psíquica. A psicanálise perturba noções de um eu unitário, centrado e

racional por sua ênfase num mundo interior permeado pelo desejo e pela fantasia. Esse

mundo interior é tratado como o lugar do inconsciente com seus efeitos imprevisíveis

sobre o pensamento e outros aspectos da subjetividade. Ao mesmo tempo, a psicanálise

facilita a compreensão das maneiras como o sujeito-em-processo é marcado por um

senso de coerência e continuidade, um senso do núcleo a que ela ou ele chama de “eu””

(p. 367).

d) Diferença como identidade: “A subjetividade – o lugar do processo de dar

sentido a nossas relações com o mundo – é a modalidade em que a natureza precária e

contraditória do sujeito-em-processo ganha significado ou é experimentada como

identidade [...] Portanto, a identidade não é fixa nem singular; ela é uma multiplicidade

relacional em constante mudança. [...] Em outras palavras, a mobilização política diz

respeito centralmente a tentativas de re-inscrever a subjetividade através de apelos à

experiência coletiva” (p. 372).

Vê-se que a noção de diferença aqui referida incorpora elementos psicanalíticos,

dando complexidade ao estudo da dimensão cultural da subjetividade. Os mecanismos de

constituição da afirmação do “eu” são pensados em processo de mediação entre o social

e as posições de sujeito, que não se expressam como simples atos da consciência, e

também não são meras internalizações da cultura externa ao sujeito. Os pressupostos de

interpretação nos permitem pensar na relação entre discurso e experiência concreta, que

ela chama de sujeito-em-processo.

3 – O fenômeno da autoajuda: princípios e contextos de difusão

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As bases das noções de autoajuda podem ser identificadas a partir dos princípios

liberais constituídos no processo de constituição da sociedade capitalista. A ideia do

indivíduo como condutor dos acontecimentos ressoa na filosofia, na política, na economia,

em síntese, no conjunto das formações ideais instauradas a partir da modernidade.

Rudiger (1996) estudou a relação entre individualismo e literatura de autoajuda, um

trabalho que se tornou uma espécie de clássico sobre o tema no Brasil 3. Através de seu

estudo, podemos observar como as bases da autoajuda estão relacionadas ao advento

do individualismo moderno e, ao mesmo tempo, perceber como esse discurso se justifica

de diferentes formas ao longo do processo de consolidação do capitalismo. Os sentidos

conferidos à autoajuda, nesse sentido, reformulam-se historicamente.

A primeira publicação de autoajuda data de meados do século XIX (1859), escrita

pelo britânico Samuel Smiles, intitulada “Self-help”. No contexto de difusão da disciplina

do trabalho e da concorrência instauradas pela grande indústria, a autoajuda é

compreendida como o cultivo de um dever ético para com a sociedade, sustentado pela

ideia de caráter. A ideia de liberdade individual está diretamente associada às obrigações

para com a vida coletiva. O caráter aqui aparece como uma mediação individual da moral

(RUDIGER, 1996).

A doutrina defendida por Smiles é, no dizer de Rudiger (1996), conservadora

naquele contexto, pois tentava conciliar valores de uma velha ordem social ao ritmo de

vida industrial, numa tentativa de incentivar, através de valores, o culto de uma vida com

características tradicionais, num contexto que não mais as comportava. Nas palavras de

Rudiger (1996, p. 48), “em resumo, a referida literatura procurou conciliar os valores

antigos com os novos, confeccionando um amálgama que todavia não resistiu ao

movimento compressor desses últimos”. Ainda segundo o autor (1996, p. 65), “o

desenvolvimento do individualismo se encarregou de mostrar, porém, que esses deveres

não só eram custosos, mas também conflitavam com a verdadeira natureza do

subjetivismo moderno”.

Giddens (2002) compreende tais processos como expressões da modernidade

radicalizada. Para o autor, a interpelação subjetiva do “eu” é um dos traços da

modernidade. Neste sentido, os processos de compreensão das ações/sentimentos

individuais são entendidos a partir do que ele considera como modernidade reflexiva, ou 3 Utilizaremos várias passagens do autor, pois ele nos serve como fonte fundamental na contextualização do tema.

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seja, os indivíduos buscam cada vez mais um saber institucionalizado que auxilie na sua

compreensão subjetiva.

Giddens (2002) também considera o caráter contingente da modernidade. Para ele,

a modernidade expressa a superação dos laços tradicionais da vida social, estes

caracterizados pelo peso cultural que, se possibilitavam uma margem previsível de ação,

ao mesmo tempo, garantia ao indivíduo um vínculo e segurança ao seu grupo de

pertença. O caráter reflexivo da modernidade, assim, põe ao indivíduo a demanda de

planejar o curso cotidiano de sua vida e calcular os riscos futuros. É na relação entre

segurança e risco que o indivíduo sente a necessidade da busca de aconselhamentos,

tendo em vista, segundo Giddens, as freqüentes transformações de ordem global que, por

sua vez, também trazem impacto na vida cotidiana.

No contexto dos Estados Unidos, a noção de autoajuda foi fundada na

representação do self-made man, o indivíduo que se autoconstrói e obtém sucesso

econômico e social. Aqui, prevalece a ideia da livre iniciativa individual e a compreensão

de que o êxito depende unicamente do esforço e persistência mental no objetivo

pretendido. A cultura da autoajuda americana estabeleceu-se através da doutrina do Novo

Pensamento, que se utilizava de elementos da psicologia, através do cultivo da

personalidade, e da ênfase do mentalismo, este entedido como o esforço mental para

realização individual (RUDIGER, 1996).

Ao comparar as noções britânicas de autoajuda, fundadas no dever moral, às

práticas da nova psicologia americana, Rudiger (1996, p. 85) observa que se instaura

uma cultura terapêutica, na qual

...a prática do autocultivo é vista como terapia e não mais como expressão de uma revolta ou protesto (interior) do indivíduo contra a sociedade. O sentimento romântico de mal-estar na sociedade é sublimado no sentimento psicológico de mal-estar consigo mesmo, que está na base da moderna cultura terapêutica.

Em síntese, seguindo os apontamentos de Rudiger (1996, pp. 90 – 95), as práticas

de autoajuda, reelaboradas a partir dos fundamentos da nova psicologia ou mentalismo,

passaram por mudanças nos modos de subjetivação: 1) O cultivo moral do caráter foi

suplantado pelo objetivo de transformar o indivíduo em pessoa de sucesso; 2) a defesa do

cumprimento dos deveres sociais como obrigação primordial do indivíduo foi substituída

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pela busca de satisfação dos desejos através da prática da auto-sugestão; 3) a condução

da vida deixa de ter como parâmetro a vida social para basear-se progressivamente no

poder da mente, um “eu” que parte de si próprio para compor seus cenários e trajetórias;

4) o conteúdo moral socialmente estabelecido cede lugar às valorações supramorais que

“devem constituir o poder e a harmonia da personalidade”.

Em ambos padrões, verificamos elementos da cultura individualista manifestados

em diferentes contextos de hegemonia e formas de estruturação do capital. A cultura do

cultivo da personalidade difunde-se principalmente nos meios de gerenciamento da

atividade produtiva, ou em segmentos profissionais mais centrados na classe média dos

espaços urbanos.

A difusão da literatura de autoajuda no Brasil, emergente a partir de década de 80

do século XX, vem sendo pesquisada principalmente no segmento das vertentes

associadas ao mentalismo. Os estudos de Bosco (2001), Chagas (2001; 2002), Demo

(2005) e Rüdiger (1996) centram principalmente na compreensão da autoajuda situada

em um contexto de crescente culto do individualismo, assim como os recursos

institucionais que se reportam às soluções no campo privado das relações.

É interessante observar que até então, o recorte de gênero não é explicitado, nem

segmentado na literatura de autoajuda. Tem-se a ideia de um indivíduo liberal abstrato. A

literatura direcionada às mulheres difunde-se principalmente a partir da segunda metade

do século XX e coincide com a progressiva participação as mulheres no mundo do

trabalho, incluindo sua inserção em determinadas carreiras; nos levantes feministas de

ênfase nas transformações culturais; nos dilemas dos papéis de gênero que se

apresentam quando da inserção massiva das mulheres no mundo do trabalho,

compreendendo também as questões relacionadas à família, maternidade, sexualidade,

relacionamentos afetivos, divórcio, etc. Compreendemos, nesse sentido, os manuais de

autoajuda escritos para mulheres como uma espécie de resposta a um conjunto de

transformações sociopolíticas e econômicas, com impactos na esfera privada, que acaba

por estabelecer um diálogo com tais mudanças sem, no entanto, questioná-las a fundo. A

base narrrativa da autoajuda para mulheres tem o perfil terapêutico, porém os dilemas

apresentados referem-se principalmente aos relacionamentos afetivos.

3.1 – Gênero e autoajuda

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Em publicação mais recente, Rüdiger (2010) produziu uma análise sobre a

experiência amorosa a partir da literatura de autoajuda direcionada às mulheres no Brasil,

discutindo o fenômeno que nomeia ethos terapêutico, explicando sua expansão associada

ao declínio do amor romântico como padrão ideal burguês dos relacionamentos

amorosos, ao lado de transformações de ordem econômica, sexuais, culturais,

vivenciadas pelas mulheres.

Alves (2005) analisa as “receitas para a conjugalidade”, através da literatura de

autoajuda, considerando que esta não apenas reflete, mas também instaura novas

configurações. Priorizando o recorte analítico de gênero e a problemática contemporânea

dos sentimentos, a autora identifica vários padrões presentes nas publicações, no seu

conjunto confluindo para a alternativa do casamento como um imperativo psicológico

feminino, ou no dizer de Alves (2005, p. 189), “a conjugalidade enquanto norma prescrita”.

O cenário no qual se constroem as orientações da autoajuda normalmente

apresentam situações típicas-ideais nas quais os indivíduos só precisam se pensar

enquanto caso singular. Não estão ali confrontadas tensões de ordem econômica,

política, culturais, às quais o leitor precise considerar para se perceber no mundo.

Hochschild (2003) oferece uma boa fonte de argumentos que articula “emoção,

gênero, família, capitalismo, globalização”. Ela estuda, no contexto americano, livros de

aconselhamentos direcionados às mulheres, publicados entre as décadas de 1970 e

1990.

A autora analisa o que considera “espírito comercial da vida íntima”, relacionando a

dimensão privada da esfera familiar e dos sentimentos com o contexto social capitalista.

Observa os impactos das transformações sociais na esfera da vida privada e o custo

emocional gerenciado pelas mulheres, ao administrar os papéis de gênero demandados

pela vida social, oscilando entre padrões conservadores e modernos. A literatura de

autoajuda aparece, assim, como um diálogo com esses vários elementos, que por vezes

se apresentam em contradição.

Um dos aspectos interessantes analisados por Hochschild (2003) é apontar como

um discurso feminista de transformação pode ser absorvido pela lógica capitalista,

podendo ressignificá-lo segundo propósitos mercantis. A ideia de mulher moderna, por

exemplo, pode ser compreendida como aquela que concilia todas as obrigações ditas

femininas e, sobretudo, mantém o controle emocional.

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A análise de Hochschild permite pensar na fusão de padrões de gênero

estabelecidos na atualidade, que apresentam rupturas de comportamentos femininos,

mas também conservação de modelos tradicionais que associam as mulheres à esfera

doméstica e à maternidade (mixando códigos tradicionais e igualitários). Para a análise do

conteúdo dos manuais de autoajuda, tais apontamentos são importantes, pois as

publicações operam com um linguajar que contém elementos de representação de uma

mulher moderna (“mulher poderosa”, “mulher inteligente”), mas ao mesmo tempo acaba

por situá-la a uma perspectiva limitada de expectativas: ela pode ser moderna para

atender as expectativas no ambiente do trabalho, na condução hábil dos dilemas

cotidianos, no trato emocional dos relacionamentos, não ultrapassando essa margem

previsível de situações que a caracterizam como tal.

Ao observar como pode ser paradoxal o discurso de transformação num contexto

capitalista, a autora estabelece uma comparação com a “ética prostestante e o espírito

capitalista” nos termos de Weber, afirmando que (2003, p. 23) “o feminismo está para o

espírito comercial da vida íntima, assim como o protestantismo está para o espírito do

capitalismo. O primeiro legitima o segundo. O segundo toma de empréstimo mas também

transforma o primeiro”.

No recorte de gênero da autoajuda, há um dilema de ordem emocional que é posto

para as mulheres, como condição de bem-estar. O êxito aqui não está relacionado ao

sucesso econômico, profissional, conforme o padrão de autoajuda descrito na subseção

anterior. A mulher é tão bem sucedida quanto mais consiga driblar os obstáculos

emocionais que lhe surjam nos relacionamentos íntimos. Os manuais, neste sentido,

operam com uma racionalização das emoções, oferecendo estratégias de equilíbrio,

através de “mandamentos” que, se seguidos, sugerem evitar que as mulheres se

machuquem sentimentalmente.

Hochschild (2003, p. 56) constata que todo esse manejo de controle emocional

expressa uma desigualdade de gênero que impõe ao lado subordinado o custo subjetivo

do trabalho das emoções. Divergindo de Goffman, que visualiza atores atuando

igualmente no curso de uma interação, a autora afirma que uns são levados a atuar mais

que os outros. Tal afirmação se exemplifica em diversas sugestões dos manuais para que

as mulheres simulem determinadas expressões ou sentimentos, como forma de

administrá-las.

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Ehrenreich e English (2003), centradas no contexto americano, em um longo

estudo sobre discursos de especialistas direcionados para mulheres, também destacam o

fenômeno da autoajuda com enfoque no mundo feminino, que denominam como

psicologia de mercado. Para as autoras, a “psicologia de mercado” apresenta um

conteúdo que se assemelha aos ideais feministas, ao destacar oportunidades, autonomia,

etc. No entanto, apontam que a semelhança se dissolve facilmente, pois o feminismo

sempre atuou – mesmo em suas variadas vertentes – com programas de mudança social

no plano coletivo e não apenas projeto de aperfeiçoamento pessoal. Segundo Ehrenreich

e English (2003, p. 343), “as mulheres não se liberariam uma a uma, mas por meio de

esforços políticos para socializar as funções que tiveram no lar”.

4 – As representações femininas nos manuais de auto ajuda

Selecionamos trechos de dois manuais de autoajuda, os quais analisamos e

articulamos com os referenciais teóricos anteriormente abordados. Para fins de

exposição, vamos separar a análise dos fragmentos por livro, para caracterizar melhor

cada um deles.

4.1 – A mulher inteligente, de Steven Carter e Juli a Sokol

“O que toda mulher inteligente deve saber” é uma publicação da década de 1990,

que se direciona às mulheres já em seu título, e apresenta aconselhamentos a respeito

dos relacionamentos amorosos, relatados através de narrações de casos que, na maioria

das vezes, são citados como exemplos do “ que não se deve fazer”. As narrações vão se

ajustando às diversas fases de um relacionamento, podendo ser dirigido a tipos diferentes

de leitoras. Ao longo das narrações, vamos identificando vários pressupostos contidos no

livro, através dos quais observamos padrões morais, de gênero, classe, etc.

Para Carter e Sokol (2006, pp. 5-7), ser inteligente é saber conduzir os

relacionamentos evitando o sofrimento, é deixar a “inteligência controlar as emoções, e

não o inverso”, manter distância de pessoas ou situações que signifiquem sofrimento.

Aqui já observamos a sugestão de trabalho das emoções também identificada nos

manuais estudados por Hochschild, revelando dois pressupostos: 1) a associação

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“mulher-emoção”; 2) a dimensão dos papéis de gênero presentes na vida privada e seus

impactos na subjetividade feminina.

Ao longo das páginas, o título universalista que recruta “toda mulher” vai dando

lugar a figuras específicas nas narrações, o que nos permite identificar um segmento de

público para o qual o manual se dirige. Em várias passagens, aparece a mulher

profissional, com perfil de classe média, contrastada pela estabilidade na carreira e

insegurança emocional: “Vitória é, na realidade, uma pessoa muito séria. Ela tem um

emprego sólido...” (2006, p. 10); Durante a fase de solteira, a mulher inteligente pode

aproveitar para “impulsionar sua carreira [...] desenvolver novos interesses [...] gastar seu

dinheiro naquilo que lhe der na telha” (2006, pp. 68-69); “Bonnie reconhece que tem

dificuldade em acertar nos seus relacionamentos. Embora a maioria das pessoas a

considere auto-suficiente, competente e independente, quando conhece um homem de

quem gosta ela se entrega demais a ele” (2006, p. 106).

Os relacionamentos narrados são, necessariamente, heterossexuais. Uma mulher

sempre busca ou sonha com um homem. E mesmo quando aparecem outras dimensões

na sua vida que não sejam o relacionamento amoroso, falta-lhe algo se ela não

preencheu essa lacuna afetiva. Há um diálogo e explicitação das vantagens de uma vida

solteira, no entanto há sempre a retomada do ideal de relacionamento no eixo narrativo. E

aqui há um binário que conduz à citada matriz heterossexual discutida pela teoria queer:

ou se é solteira, ou comprometida. Qualquer comportamento desviante desse padrão é

tido como problemático, sinal de que a mulher não sabe se conduzir emocionalmente. A

exemplo, encontramos a personagem Linda, mulher independente na carreira e insegura

com a sua solidão, mencionada para ilustrar a maneira adequada de encontrar o “homem

certo” para ela (2006, pp. 28-29). As relações sexuais são sugeridas com uma lista de

cautelas que, em conjunto, formam um cálculo utilitário no qual só se deve “investir” tendo

em vista a possibilidade dos resultados esperados (2006, p.59): “É óbvio que o sexo

coloca o relacionamento em um novo patamar, mas uma mulher inteligente sabe que não

quer chegar a esse novo patamar até ter certeza de que é o ponto onde ela realmente

quer estar”.

Alguns trechos sugerem igualdade de gênero (embora outras passagens pareçam

contradizê-la), que identificamos como uma especificidade de discurso deste manual. O

texto sugere que em “um bom relacionamento” (2006, p. 99) a individualidade dos

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envolvidos é respeitada, os parceiros têm os mesmos direitos e estão igualmente

comprometidos. Outro fragmento é mais explícito ao tratar dos papéis de gênero e aqui

aparece a mixagem de códigos discutida por Hochschild, pois o texto inicia questionando

um padrão tradicional de gênero, mas conclui defendendo um tradicionalismo bem

dosado (2006, p. 109):

Querendo ou não, nós ainda continuamos condicionadas pelos estereótipos dos anos 1950. Como poderia ser diferente? Em qualquer banca de jornal podemos ver revistas que se dedicam exclusivamente a habilidades domésticas como cozinhar, receber bem, controlar gastos e decorar a casa. Desde que estejam no lugar certo e no momento certo, não há nada de errado com essas coisas.

Em síntese, a mulher inteligente de Carter e Sokol pode ser solteira

temporariamente ou comprometida, mas heterossexual e, embora deva priorizar o seu

“eu”, só se completa quando encontra o parceiro correto. Esse encontro, por sua vez, não

ocorre aleatoriamente: ele deve ser fruto da prática persistente dos aconselhamentos do

manual, que se encerra com os “11 mandamentos da mulher inteligente”, demonstrando

seu caráter prescritivo.

4.2 – Fundados na determinação biológica: as difere nças entre masculino e

feminino no casal Pease

“Por que os homens fazem sexo e as mulheres fazem amor?”, de Allan Pease e

Bárbara Pease (2000), apresenta um roteiro específico, pois não se trata de um manual

para quem almeja um relacionamento amoroso; ele já pressupõe um casal que vai

aprender a lidar com as diferenças nos modos de ser homem ou mulher. O livro está

classificado entre os mais lidos no Brasil, foi traduzido em mais de 30 línguas e constitui

parte dos empreendimentos do casal de escritores, que comercializam produtos no

campo dos relacionamentos e oferecem palestras e cursos em vários países. 4

Todo o argumento do casal Pease vai se basear no que Woodward (2008)

denomina de essencialismo biológico, ou seja, as diferenças de gênero são associadas às

determinações biológicas, que aparecem como chave explicativa para a naturalização de

comportamento, apresentado como diferenças entre sexos. O título, a princípio, não está

4 O casal mantém uma página na internet, onde divulgam seus produtos: <http://www.peaseinternational.com>.

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direcionado para um gênero específico. Porém, as narrações dos casos e os comentários-

síntese após as exposições referem-se mais a problemáticas femininas (nos termos aqui

considerados) do que masculinas, o que nos leva a constatar que ele é, majoritariamente,

direcionado a um público de leitoras.

Além do aspecto da difusão alcançada pelo livro, é interessante analisar a forma

como ele constrói as diferenças de gênero, de modo a justificar e naturalizar

comportamentos, cabendo ao leitor aceitar e compreender as diferenças, já que os

autores as apresentam como resultado de determinações biológicas. O recurso à história

humana é sempre apresentado através de uma imagem fictícia narrada da “época das

cavernas”, para a qual se transporta todo o padrão de gênero estabelecido na atualidade.

Acontece o que Heller (2008) considera como ultrageneralização, ou seja, os fragmentos

imediatos da experiência dos indivíduos tendem a ser compreendidos como se

obedecessem a um modelo padrão (“sempre foi assim”, “acontece com todo mundo”). As

formulações contêm fragmentos das experiências cotidianas (e o número de leitores é

expressão disso), mas tendem a criar, enquanto discurso, uma generalização e

atemporalidade, ao estabelecer padrões de conduta/comportamentos.

Como exemplo da afirmação anterior, encontramos a passagem que descreve

como agia o “homem de sucesso” da época das cavernas e como este era valorizado pela

esposa, por “expor a vida pela família” (2000, p. 16). Uma cena típica das camadas

médias urbanas é construída como imaginário da vivência de antepassados históricos.

Nela se reflete uma noção de individualidade moderna, determinadas relações de trabalho

e estrutura social e familiar.

As diferenças e comportamentos são apresentados como decorrência da

determinação biológica, que prescindiria da história para se manifestar. Segundo os

autores (2000, p. 13), “...ainda que criados numa ilha deserta, sem uma sociedade

organizada ou pais que os influenciassem, meninos competiriam física e mentalmente

entre eles, formando grupos com uma nítida hierarquia, e meninas trocariam toques e

carinhos, se tornariam amigas e brincariam com bonecas”. Há várias pressuposições de

papéis de gênero, que associam as figuras masculinas a um padrão bélico de força,

comando e hierarquia, ao lado de uma construção pacífica, sentimental e maternal

(representada pelas bonecas), protagonizada pelo feminino.

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Há passagens em que o apelo ao determinismo biológico é expresso através de

metáfora, na qual as mulheres são associadas a figuras animais, “perua”, “gata”,

enquanto o homem é concebido como o caçador, conforme o exemplo narrado (p.30) da

manifestação de ciúme de Chris, incomodada com a presença de uma “perua”, que fora

notada telepaticamente por todas as mulheres presentes, e despercebida pelos homens,

pois estes – incluindo seu companheiro Lyn - não teriam cérebro preparado para perceber

detalhes. O exemplo é dado como forma de estimular a compreensão das mulheres sobre

a lógica caçadora do cérebro masculino.

As diferenças cerebrais também são invocadas para justificar a capacidade das

mulheres acumularem funções. Segundo o manual (p. 45), os homens conseguem fazer

apenas uma coisa por vez; diferente das mulheres, que conseguem conciliar múltiplos

papéis. Se considerarmos o contexto de inserção das mulheres no mercado de trabalho e

a permanência do vínculo feminino nas atividades domésticas, a justificativa apresentada

produz uma naturalização das atribuições de gênero socialmente estabelecidas. O

mesmo ocorre quando os autores sugerem que o ouvido da mulher está geneticamente

programado para ouvir o choro do bebê na madrugada, ao contrário dos homens.

Na medida em que o comportamento sugerido pelo manual é confrontando pela

diversidade cultural existente na vida social, o texto já apresenta a justificativa dos

“desvios do padrão”, ao considerar que há exceções, pois os autores se referem à média

dos indivíduos, ou seja, (p. 15) “como a maioria dos homens e mulheres age na maior

parte do tempo”. A dita determinação biológica, nesse sentido, serve apenas para

considerar como age a maioria. O recurso a termos abstratos ou universalizantes é

utilizado em todo o texto: maioria, média, homens, mulheres, etc.

O livro do casal Pease apresenta outro diferencial, pois reserva uma seção

destinada a discorrer sobre o homossexualismo. A princípio, poderia parecer que os

autores escapam do modelo heteronormativo. No entanto, consideramos que é a

passagem que mais reforça o padrão de relacionamentos fundado na família nuclear. A

homossexualidade é concebida pelo autores como decorrência da carga hormonal

dispendida durante a gravidez e a forma como as sexualidades são apresentadas vai

articulando diretamente sexo a gênero, a exemplo da denominação lésbica, aquela que

tem “corpo de mulher e cérebro masculino” (p. 117). Há trechos mais emblemáticos que

sugerem às mulheres cuidados durante a gravidez, para evitar desregulação hormonal

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(pp. 120-121). A associação biológica a comportamentos culturais é descrita de maneira

mais precisa e direta na seção “Como transformar um rato em gay”, na qual se afirma que

é possível produzir um comportamento gay em um rato “macho” a depender da carga

hormonal nele introduzida. Aqui, cruzam-se noções de macho e fêmea, animal e social,

feminino e masculino, homo e hetero e, numa análise mais detalhada, vem à tona todos

os pressupostos de gênero implícitos no exemplo. O capítulo sobre homossexualidade é,

neste sentido, o mais heterossexual de todos, pois todos os caminhos levam ao padrão

da relação homem-mulher com vistas à reprodução biológica.

Os autores finalizam o livro reforçando os principais aconselhamentos e lembrando

que apesar das enormes diferenças entre homens e mulheres, o sucesso dos

relacionamentos deve ser creditado principalmente à figura feminina, pois ela (2000, p.

178) “possui a habilidade necessária para administrar o relacionamento e a família. [...] O

homem está mais preparado para perseguir e abater a caça, encontrar o caminho de volta

para casa, olhar o foco e procriar”.

Considerações finais

Os apontamentos aqui expostos expressam algumas das constatações até então

observadas na análise de conteúdo das obras de autoajuda selecionadas para a

pesquisa. Na fase em andamento, é possível verificar vários elementos que constituem os

padrões de gênero, que analisamos a partir das representações femininas presentes nos

manuais. Neste sentido, discorremos sobre alguns dos nossos achados analíticos, que

serão complexificados quando da análise das representações das leitoras, que

demandará um outro desafio metodológico de perceber tais padrões através de suas falas

e, ao mesmo tempo, estabelecer uma articulação com as etapas anteriores da pesquisa.

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