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PAIDÉIA 1 Antiguidade grega: a Paidéia O homem é a medida de todas as coisas. Protágoras Introdução Na Antiguidade a Grécia não forma uma unidade política, mas se compõe de diversas regiões, que com o tempo constituem as cidades-estados. Ainda que se mantivessem como unidades políticas autônomas, o caldeamento inicial de diversos povos converge para uma mesma civilização, pois as diferentes cidades têm em comum, o idioma e a religião, além de similaridades nas instituições sociais e políticas. Os gregos se distinguiam dos demais povos denominando sua pátria de Hellás, ou Hélade, a si mesmos de helenos e aos outros. pejorativamente, de “bárbaros”. Só mais tarde os latinos passam a usar o nome de Graii, de que deriva Graecia. Vejamos, em linhas gerais, como se constituiu este povo de marcante influência na civilização ocidental até os tempos presentes. I. CONTEXTO HISTÓRICO 1. A Civilização micênica A civilização micênica, desde o início do segundo milênio a.C., reúne vários povos, sobretudo aqueus, que se estabelecem com um regime de comunidade primitiva. Com o tempo, forma-se uma aristocracia militar, e a figura do guerreiro adquire importância cada vez maior, cujos chefes mais destacados vivem nos castelos de Tirinto e Micenas. Desta última cidade, no início do século XII a.C., partem Agamêmnon, Aquiles e Ulisses para sitiar e conquistar Tróia, no litoral da Ásia Menor. No final desse mesmo século, a invasão dos bárbaros dórios mergulha a Grécia em um período obscuro até o século IX a.C. Muitos aqueus fogem para a Ásia Menor, onde fundam colônias que mais tarde prosperam pelo comércio. 2. Tempos homéricos Os tempos homéricos (dos séculos XII ao VIII a.C.) são assim chamados porque nessa época teria vivido Homero (século IX ou VIII a.C.), a quem se atribui a autoria das epopéias Ilíada e Odisséia. Naquele mundo ainda essencialmente rural. o enriquecimento dos senhores faz surgir uma aristocracia proprietária de terras que aos poucos implanta o sistema escravista. 3. Período arcáico No período arcaico (século VIII a VI) ocorrem grandes transformações sociais e políticas com o advento das cidades-estado (póleis) e a caracterização de uma sociedade dividida em classes baseadas no na escravidão. Incrementa-se o comércio, que se estende para as colônias gregas. Por volta do século VIII a.C., a escrita já se encontra

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PAIDÉIA 1 Antiguidade grega: a Paidéia 

O homem é a medida de todas as coisas.Protágoras

IntroduçãoNa Antiguidade a Grécia não forma uma unidade política, mas se compõe de diversas regiões, que com o tempo constituem as cidades-estados. Ainda que se mantivessem como unidades políticas autônomas, o caldeamento inicial de diversos povos converge para uma mesma civilização, pois as diferentes cidades têm em comum, o idioma e a religião, além de similaridades nas instituições sociais e políticas.Os gregos se distinguiam dos demais povos denominando sua pátria de Hellás, ou Hélade, a si mesmos de helenos e aos outros. pejorativamente, de “bárbaros”. Só mais tarde os latinos passam a usar o nome de Graii, de que deriva Graecia.Vejamos, em linhas gerais, como se constituiu este povo de marcante influência na civilização ocidental até os tempos presentes. I. CONTEXTO HISTÓRICO1. A Civilização micênica A civilização micênica, desde o início do segundo milênio a.C., reúne vários povos, sobretudo aqueus, que se estabelecem com um regime de comunidade primitiva. Com o tempo, forma-se uma aristocracia militar, e a figura do guerreiro adquire importância cada vez maior, cujos chefes mais destacados vivem nos castelos de Tirinto e Micenas. Desta última cidade, no início do século XII a.C., partem Agamêmnon, Aquiles e Ulisses para sitiar e conquistar Tróia, no litoral da Ásia Menor. No final desse mesmo século, a invasão dos bárbaros dórios mergulha a Grécia em um período obscuro até o século IX a.C. Muitos aqueus fogem para a Ásia Menor, onde fundam colônias que mais tarde prosperam pelo comércio.2. Tempos homéricos Os tempos homéricos (dos séculos XII ao VIII a.C.) são assim chamados porque nessa época teria vivido Homero (século IX ou VIII a.C.), a quem se atribui a autoria das epopéias Ilíada e Odisséia. Naquele mundo ainda essencialmente rural. o enriquecimento dos senhores faz surgir uma aristocracia proprietária de terras que aos poucos implanta o sistema escravista.3. Período arcáicoNo período arcaico (século VIII a VI) ocorrem grandes transformações sociais e políticas com o advento das cidades-estado (póleis) e a caracterização de uma sociedade dividida em classes baseadas no na escravidão. Incrementa-se o comércio, que se estende para as colônias gregas. Por volta do século VIII a.C., a escrita já se encontra suficientemente desligada de preocupações religiosas, sendo utilizada para facilitar a administração dos negócios. Data dessa época a invenção da moeda, com a qual é superada a economia natural, baseada em trocas.No final do período, várias lutas sociais denunciam uma crise social e política que resulta do conflito entre a aristocracia rural e os setores populares representados pelos comerciantes em ascensão. As leis escritas, decorrentes das reformas do legislador Sólon, favorecem o acesso dos ricos comerciantes ao poder, e no Final do século VI a.C. as reformas ele Clístenes dão condições para o nascimento de uma nova ordem política, que é a democracia.O período arcaico também marca a gestação de novos tempos. Nas colônias gregas da Jônia (litoral ocidental da atual Turquia) e da Magna Grécia (sul da Itália e Sicília)

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aparecem os primeiros filósofos e o pensamento científico se desliga de preocupações míticas, como veremos adiante. O período clássico (séculos, V e IV a.C.) representa o apogeu da civilização grega. A esplêndida produção nas artes, literatura e filosofia delineia definitivamente o que virá a ser a herança cultural do mundo ocidental.Na política, o auge do ideal grego de democracia é representado por Péricles, estratego de Atenas. Trata-se, no entanto, de uma "democracia escravista", na qual os cidadãos são apenas os homens livres. Ora, Atenas tinha cerca de meio milhão de habitantes, dos quais 300 mil eram escravos e 50 mil, metecos (estrangeiros). Excluídas as mulheres e as crianças, apenas os 10% restantes têm o direito de decidir por todos! Atentando para o número de escravos, percebe-se que nesse tempo a escravidão grega atinge o auge. Em todas as atividades artesanais o braço escravo "liberta” o cidadão para se dedicar às funções teóricas, políticas e de lazer, consideradas mais dignas.O período helenístico (séculos III e II a.C.) registra a decadência política. Como vimos a Grécia nunca constituiu uma unidade política e as cidades-estados ora se rivalizam em poder e influência, ora se unem contra um inimigo comum, como no caso da ameaça persa. Ainda na época clássica as desavenças entre as poderosas cidades de Esparta e Atenas culminam em guerra da qual Atenas sai derrotada. Dessa situação aproveita-se a Macedônia para conquistar as cidades gregas também convulsionadas por conflitos internos. Mais tarde, o macedônio Alexandre expande suas conquistas pela Ásia e África. formando um império.Mesmo que a Grécia tenha sido dominada, não podemos falar em destruição da civilização grega. O próprio Alexandre teve como mestre o filósofo Aristóteles e amava a cultura grega.Após a morte precoce de Alexandre. em 323 a.C. o império se fragmenta, e por volta dos séculos II e I a.C. os romanos se apropriam não só desses territórios, mas das expressões culturais da civilização grega. A fusão da tradição grega com a oriental resultante das conquistas alexandrinas, dá origem ao que se chama cultura helenística.1. O que é a paidéiaOs povos da Antiguidade oriental não dispõem de uma reflexão especialmente voltada para a educação, porque esse saber e essa prática se encontram vinculados às tradições religiosas recebidas dos ancestrais. Decorre daí o caráter tradicionalista da educação, ocupada com a transmissão do saber do passado, o que a toma rígida e estática. Tratando-se de sociedades teocráticas, a educação não se separa da religião; o escriba, o sacerdote ou o mago são os depositários desses valores.Na Grécia clássica ao contrário, as explicações predominantemente religiosas são substituídas pelo uso da razão autônoma da inteligência crítica e pela atuação da personalidade livre, capaz de estabelecer uma lei humana e não mais divina. Surge, pois, a necessidade de elaborar teoricamente o ideal da formação não do herói, submetido ao destino, mas do cidadão. Este deixa de ser o depositário do saber da comunidade para se tornar o que elabora a cultura da cidade. A ênfase no passado é deslocada para o futuro: o homem não está preso a um destino traçado, mas é capaz de projeto, de utopia.Por volta do século V a.C. é criada a palavra Paidéia que de início significa apenas criação dos meninos (pais, paidós, criança”). Com o tempo adquire nuanças que a tornam intraduzível. Werner Jaeger, helenista alemão que escreveu uma obra com esse nome, diz: "Não se pode evitar o emprego de expressões modernas como civilização, cultura, tradição, literatura ou educação; nenhuma delas, porém, coincide realmente com o que os gregos entendiam por Paidéia. Cada um daqueles termos se limita a exprimir um aspecto daquele conceito , global e, para abranger o campo total do conceito grego, teríamos de empregá-los todos de uma só vez.A Grécia clássica pode ser considerada o berço da pedagogia. A palavra paidagogos significa literalmente aquele que conduz a criança (agogós, "que conduz”). no caso o escravo o que acompanha a criança à escola. Com o tempo, o sentido se amplia para designar toda teoria sobre a educação. São os gregos que, ao discutir os fins da Paidéia, esboçam as primeiras linhas conscientes da ação pedagógica e assim influenciam por

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séculos a cultura ocidental.As questões: o que é melhor ensinar? como é melhor ensinar? e para que ensinar? enriquecem as reflexões dos filósofos e marcam diversas tendências, como veremos a seguir.2. Tradição míticaAté o século VI a.C. ainda predomina na Grécia uma concepção mítica do mundo. Significa que as ações humanas são influenciadas pelo sobrenatural, ou seja, sofrem interferência divina. Os mitos gregos recolhidos pela tradição recebem forma poética e são transmitidos oralmente pelos cantores ambulantes conhecidos como aedos e rapsodos, que os recitam de cor em praça pública.Dentre eles, destaca-se Homero provável autor das epopéias Ilíada e Odisséia. A primeira trata da Guerra de Tróia (ílion em grego) e a outra relata o retomo de Ulisses (Odisseus, em grego) a Ítaca após a Guerra de Tróia. Não é muito seguro que Homero tenha realmente existido, e pelo estilo dos dois poemas alguns estudiosos julgam que são obras de autores diversos, de diferentes épocas.Segundo os relatos míticos dessas epopéias o herói vive na dependência dos deuses e do destino e portanto falta-lhe a noção de livre-arbítrio, o que não o diminui diante dos homens comuns. Ao contrário. ter sido escolhido pelos deuses é sinal de valor e em nada desmerece sua virtude. Nessa perspectiva, a noção de virtude (areté em Grego) não se confunde com o conceito moral de virtude conforme o conheceremos depois, mas significa força, excelência o superioridade, alvo supremo do herói. Trata-se da virtude do “guerreiro belo e bom".Hesíodo, outro poeta que teria vivido por volta do final do século VIII e princípios do VII a.C., produz uma obra com característica já voltada para a época que se inicia, a seguir, ou seja, de busca da própria individualidade. Ainda assim, predomina a crença nos mitos.3. Nasce a filosofiaAlguns autores costumam chamar de "milagre grego" a passagem do pensamento mítico para o racional e filosófico. Mais recentemente, porém, outros estudiosos admitem que esse foi um processo preparado lentamente pelo passado mítico e cujas características não desaparecem como por encanto na nova visão filosófica do mundo.Segundo essa interpretação, o surgimento da filosofia na Grécia não é, na verdade, um salto realizado por um povo privilegiado mas a culminância de um processo que se fez ao longo de milênios e para o qual concorreram as novidades introduzidas na época arcaica. São elas: a escrita, a moeda, a lei e a pólis, e o aparecimento do filósofo. Essas transformações foram responsáveis por uma nova visão que o homem passa a ter do mundo e de si próprio.A escrita gera uma nova idade mental. Com ela advém a possibilidade de maior abstração, que tende a modificar a estrutura do pensamento ao propiciar o distanciamento do vivido o confronto das idéias. a retomada do relato escrito. Enfim, surge como exigência de rigor e clareza, o que estimula o espírito crítico.Com o advento da lei escrita, a justiça até então dependente da arbitrariedade dos reis ou da interpretação da vontade divina, sujeita-se à discussão, encarnando uma face propriamente humana. Esse novo ideal igualitário fundamenta a democracia nascente.Para Jean-Pierre Vernant. helenista e pensador francês, o que há de novo no nascimento do pólis é que ela está centralizada na ágora (praça pública), onde se discutem os problemas de interesse comum. A pólis se constitui com a autonomia da palavra. Não mais a palavra mágica dos mitos, concedida pelos deuses e portanto comum a todos, mas a palavra humana do conflito da argumentação. A expressão da individualidade por meio do debate engendra a política, libertando o homem dos desígnios divinos, para que ele próprio possa tecer seu destino na praça pública. A instauração dessa ordem humana dá origem ao cidadão da polis, figura inexistente no mundo coletivista da tribo.Decorre daí uma nova concepção de virtude, diferente do valor do guerreiro belo e bom. Se antes a virtude era ética, aristocrática, agora ela é política, voltada para o ideal

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democrático da igual repartição do poder.Finalmente, "a filosofia é filha da cidade”. Surge como problematização e discussão de uma realidade antes não questionada pelo mito. O aparecimento da filosofia, fato histórico enraizado no passado, portanto se acha vinculado às já citadas transformações: a escrita, a lei, a moeda, o cidadão, a pólis, as instituições políticas.4. Períodos da filosofia gregaPara compreender melhor essa nova forma de pensar, lembramos que a divisão clássica da filosofia grega se centraliza na figura de Sócrates, compondo os períodos:- pré-socrático (séculos VII e VI a.C.): os primeiros filósofos surgem nas colônias gregas da Jônia e na Magna Grécia. Ao iniciar o processo de separação entre a filosofia e o pensamento mítico,  ocupam-se com questões cosmológicas sobre os elementos constitutivos de todas as coisas;- socrático ou clássico ( séculos V e IV a.C.): dele fazem parte o próprio Sócrates, seu discípulo Platão e posteriormente o discípulo deste, Aristóteles. Os sofistas e também Isócrates são dessa época:- pós-socrático (séculos III e II a.C.): após a morte do imperador Alexandre, tem início o helenismo e surgem as correntes filosóficas do estoicismo e do epicurismo5. Sofistas: a arte da persuasãoComecemos pelo período clássico, que nos interessa justamente pelo tipo diferente de educação em via de se formar. Os novos mestres são os sofistas, sábios itinerantes de todas as partes do mundo grego e que agora se encontram em Atenas. Os mais famosos foram: Protágoras de Abdera (485-410 a.C.), Górgias de Leôncio (485-380 a.C.). Híppias de Élis, e outros, como Trasímaco. Pródico, Hipótiamos.A palavra sofista, etimologicamente, vem de sophos, que significa sábio, ou melhor, professor de sabedoria. Pejorativamente passou a significar homem que emprega sofismas, ou seja, alguém que usa de raciocínio capcioso, de má fé com intenção de enganar.Deve-se essa imagem caricatural às críticas de Sócrates e Platão à atitude intelectual dos sofistas e ao costume de cobrarem muito bem por suas aulas. Recentemente tem sido atenuada essa avaliação depreciativa. tentando-se redimensionar a verdadeira importância da sofística.Enquanto os primeiros filósofos pré-socráticos ocupam-se sobretudo com a natureza (physis), os sofistas procedem à passagem para a reflexão propriamente antropológica voltando-se para as questões de moral e política. Serão também os responsáveis por elaborar teoricamente e legitimar o ideal democrático da classe em ascensão, a dos comerciantes enriquecidos. Na nova ordem política da cidade, as virtudes louvadas não são mais as do aristocrata bem-nascido, "de origem divina", que se destacava pela coragem na guerra. Diferentemente, a virtude do cidadão da pólis é cívica e está na sua capacidade de discutir e deliberar nas assembléias. Por isso os sofistas fascinam a juventude com o brilhantismo da sua retórica e se propõem a ensinar a arte da persuasão do convencimento, do discurso que serão bem aproveitados na praça pública, sede da assembléia democrática.Nesse sentido os sofistas são os criadores da educação intelectual que vai se tornar independente da educação física e musical até então predominantes nos ginásios. Além disso ampliam a noção de Paidéia: de simples educação da criança passa a ter significado mais abrangente, estendendo-se à contínua formação do adulto, capaz então de repensar por si mesmo a cultura do seu tempo.À revelia das críticas de Sócrates. os sofistas valorizam a figura do professor e, ao exigir remuneração dão destaque ao aspecto profissional dessa função.Outra obra importante que devemos aos sofistas está na sistematização do ensino. por terem formado um currículo de estudos composto por gramática - da qual foram os

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iniciadores -, retórica o dialética. Por influência dos pitagóricos, desenvolvem também a aritmética, geometria. astronomia e música. Fica assim constituída a tradicional divisão das sete artes liberais, assim chamadas por se destinarem aos homens livres, desobrigados das tarefas manuais. Esse currículo será mais bem organizado no período helenísticoDas obras dos sofistas só nos restaram alguns fragmentos, além dos comentários como já vimos, tendenciosos - feitos por filósofos seus contemporâneos e posteriores. É bem verdade que alguns sofistas abusavam da retórica elaborando um discurso vazio, um palavreado oco, ou justificando, com igual maestria posições contrárias sobre o mesmo assunto. Talvez devido à excessiva atenção ao formal da exposição e defesa de idéia, se achavam, naquele momento histórico, mais interessados na arte da persuasão do que na verdade da argumentação.Aliás, a sofística já prenuncia a luta pedagógica que movimentará o século seguinte, ou seja, o duelo entre a filosofia e a e a retórica, como veremos.  

 PAIDÉIA 2 6. O diálogo socráticoSócrates (e. 469-399 a.C.) é uma figura emblemática na história da filosofia. Apesar de, no seu tempo, muitos o terem confundido com os sofistas, na verdade a eles se opôs de maneira tenaz. Critica o fato de cobrarem por suas aulas e também discorda da maneira de encaminharem as discussões.Procurado pelos jovens, Sócrates passa horas discutindo nos locais públicos de Atenas, como a praça ou o ginásio,onde interpela os transeuntes e faz perguntas aos que julgam entender determinado assunto, deixando-os afinal sem saída e obrigados a reconhecer a própria ignorância.Esse procedimento ficou conhecido por método socrático, nascido da perplexidade do filósofo diante do oráculo de Delfos que o identificara como "o homem mais sábio". Não se considerando tal, mas sem desacreditar do oráculo consulta as pessoas que se diziam sábias e descobre a fragilidade desse saber. Percebe então que a sabedoria começa pelo reconhecimento da própria ignorância. “Só sei que nada sei” é para Sócrates o principio da sabedoria atitude em que se assume a tarefa verdadeiramente filosófica de superar o enganoso saber baseado em idéias preconcebidas.A primeira parte do método socrático chama-se ironia (do grego eironeia, "perguntar fingindo ignorar). processo negativo e destrutivo de descoberta da própria ignorância. A segunda parte, a maiêutica (de maieutiké relativo ao parto") é construtiva e consiste em dar à luz novas idéias.Como Sócrates nada deixou escrito tomamos conhecimento do conteúdo dessas discussões Pelas obras de seus discípulos, sobretudo as de Platão. Geralmente seus diálogos tratam de questões morais como a virtude, a coragem, a piedade, a amizade,  o amor. Quando Sócrates inicia as discussões, percebe que os interlocutores julgando saber do assunto perdem-se em aspectos superficiais e contingentes como fatos e exemplos mantendo-se no nível empírico da simples opinião. Sócrates assume uma postura mais radical e procura definir rigorosamente aquilo de que se fala. pois não basta descrever as diversas virtudes, mas saber a essência  delas. Por exemplo diante dos atos de coragem descobrir o que é a coragem. Com isso Sócrates chega à definição do conceito.Todo esse trabalho, no entanto não tem um objetivo puramente intelectual. O que Sócrates pretende, usando a máxima “Conhece-te a ti mesmo" é o reto conhecimento das virtudes humanas, a fim de se poder levar uma vida igualmente reta. A filosofia favorece portanto a vida moral do homem, porque conhecer o bem e praticá-lo são a mesma coisa, assim como a maldade provém da ignorância, já que para Sócrates ninguém é mau voluntariamente. Chamamos de intelectualismo ético a doutrina socrática que identifica o sábio e o homem virtuoso.

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Derivam daí diversas conseqüências para a educação, como: o conhecimento tem por fim tornar possível a vida moral; o processo para adquirir o saber é o diálogo: nenhum conhecimento pode ser dado dogmaticamente, mas como condição para o desenvolver a capacidade de pensar: toda educação é essencialmente ativa e por ser auto-educação leva ao conhecimento de si mesmo: a análise radical do conteúdo das discussões, retirado do cotidiano, leva ao questionamento do modo de vida de cada um e em última instância da própria cidade.Essa doutrina considerada subversiva por colocar em questão os valores vigentes levanta contra Sócrates inimigos rancorosos. Acusado de corromper a mocidade e de não crer nos deuses da cidade, é condenado à morte. A história da sua acusação, defesa e execução é contada nos belos diálogos de Platão. Apologia de Sócrates e Fédon. 7. A utopia de PlatãoArístocles é o verdadeiro nome de Platão (428-347 a.C.), assim chamado talvez por possuir ombros largos. O vigor do seu pensamento nos faz questionar o que de fato é de seu mestre Sócrates e o que é sua criação original.Ateniense de família aristocrática sentia-se atraído por política, apesar de ter sofrido pesados reveses ao tentar pôr em prática suas teorias. Por exemplo, após ser bem recebido na Sicília por Dionísio, o Velho, foi vendido como escravo, mas por sorte um rico armador o reconheceu e libertou. Em Atenas, lecionou durante 40 anos na Academia. Um dos ginásios de ensino superior da cidade.Para compreender a proposta pedagógica de Platão é preciso associá-la ao seu projeto inicial, que é político, antes de tudo. Por isso veremos algumas características do seu pensamento filosófico.A alegoria da cavernaNo livro VII de A República, Platão expõe o "mito" da caverna, na verdade uma alegoria usada para melhor explicar sua teoria. Segundo esse famoso relato, homens se encontram acorrentados em uma caverna desde a infância, de tal forma que, não podendo se voltar para a entrada, apenas enxergam o fundo da caverna. Aí são projetadas as sombras das coisas que passam às suas costas, onde há uma fogueira. Se um desses homens conseguisse se soltar das correntes para contemplar, a luz do dia os verdadeiros objetos quando regressasse para contar o que vira não mereceria o crédito de seus antigos companheiros, que o tomariam por louco.A análise desse “mito” pode ser feita primeiramente de dois pontos de vista: o epistemológico (relativo ao conhecimento) e o político (que por sua vez desdobrará implicações pedagógicas).

Quanto à dimensão epistemológica Platão compara o acorrentado ao homem comum que permanece dominado pelos sentidos pelas paixões e só alcança um conhecimento imperfeito da realidade, restrito ao mundo dos fenômenos no qual as coisas são meras aparências e estão em constante fluxo. A esse conhecimento Platão chama doxa. “opinião”.O homem que se liberta dos grilhões é o filósofo, capaz de atingir o verdadeiro conhecimento a episteme “ciência” quando a razão ultrapassa o mundo sensível e atinge o mundo das idéias, lugar da essência imutável de todas as coisas dos verdadeiros modelos ou arquétipos. Este é o único verdadeiro, e o mundo sensível só existe enquanto participa do mundo das idéias, do qual é apenas sombra ou cópia. Por exemplo, se percebemos inúmeras abelhas dos mais variados tipos, a idéia de abelha deve ser uma, imutável, a verdadeira realidade.Essas idéias gerais são hierarquizadas e no topo está a idéia do Bem, a mais alta em perfeição e a mais geral de todas. Os seres e as coisas não existem senão à medida que

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participam do Bem. E o Bem supremo é também a Suprema Beleza o Deus de Platão.A conclusão que se tira dessa interpretação epistemológica é que Platão é idealista, o que significa conforme sua teoria do conhecimento, que as idéias são mais reais que as próprias coisas.Retornemos ao relato da alegoria da caverna. O filósofo, aquele que se liberta dos grilhões passando da opinião à ciência tem a obrigação de orientar os demais. Eis aí a dimensão política e pedagógica do "mito", decorrente da pergunta: "como influenciar os homens que não vêem'?" Ora, cabe ao sábio dirigi-los, sendo-lhe reservada a elevada função da ação política. Ao apresentar sua proposta de governo modelo, Platão descreve a pedagogia ideal na obra A República.Na continuidade do relato do "mito" na mesma obra, imagina uma cidade utópica a Callipolis. "Cidade Bela”. Etimologicamente utopia significa em nenhum lugar (em grego, ou-topos). Platão imagina portanto um lugar que não existe, mas que deve ser o modelo da cidade, em que são eliminadas a propriedade e a família e todas as crianças recebem educação do Estado. Como as pessoas não são iguais, a educação é dada de acordo com essas diferenças a fim de ocuparem suas posições na sociedade, o que é feito por meio de seguidas seleções.Até os 20 anos a educação é a mesma para todos. O primeiro corte identifica as pessoas com a alma de bronze,. ou seja, com uma sensibilidade grosseira e que as qualifica para a agricultura, o artesanato e o comércio. A elas seria confiada a subsistência da cidade.Os outros continuam na escola por mais dez anos. Com o segundo corte,. aqueles que têm a coragem dos guerreiros de "alma de prata”  interrompem os estudos a fim de constituir a guarda do Estado como soldados encarregados da defesa da cidade.Desses sucessivos cortes sobraram os mais notáveis, que por terem "alma de ouro", serão instruídos na arte de dialogar. Aprendem, então, a filosofia, capaz de elevar a alma até o conhecimento mais puro, fonte de toda a verdade.Aos 50 anos aqueles que passaram com sucesso por essa série de provas estarão aptos a ser admitidos no corpo supremo dos magistrados. Cabe-lhes o exercício do poder, pois apenas eles têm a ciência da política.Note-se que Platão desenvolve idéias avançadas para seu tempo: o Estado assume a educação; a educação da mulher é semelhante à do homem; os estágios superiores dependem do mérito de cada um e não da riqueza: é valorizada a educação intelectual, coroando pela dialética o estudo das ciências (com especial destaque para a matemática).Essa utopia representa um modelo aristocrático de poder em oposição à democracia, que segundo Platão confia indevidamente nas decisões do homem comum, incapaz de conhecer a ciência política. Não defende, porém, a aristocracia de berço ou riqueza, mas aquela em que o governo é confiado aos mais sábios. Platão propõe, portanto uma sofocracia (etimologicamente "poderda sabedoria”) em que o poder seria confiado aos filósofos ou em que os reis seriam filósofos. Aprender é lembrarRetomando a relação contraposta por Platão entre o mundo das idéias e o mundo sensível dos fenômenos, veremos que o filósofo parte do pressuposto de que a alma teria vivido a contemplação do mundo das idéias, na qual conheceu as essências por simples intuição (conhecimento direto e imediato). Ao se encarnar, no entanto, a alma teria se esquecido de tudo.Por isso, para Platão, aprender é lembrar. Segundo a teoria da reminiscência. todo conhecimento é esforço para se lembrar do que a alma contemplou no mundo das idéias esquecendo-se ao se encarnar. É esforço para superar as dificuldades que os sentidos - simples ocasião e não causa do conhecimento - interpõem para alcançar a verdade.Portanto educar não é levar o conhecimento de fora para dentro, mas despertar no

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indivíduo o que ele já sabe proporcionando ao corpo e à alma a realização do bem e da beleza que eles possuem e não tiveram ocasião de manifestar. Para Platão, embora o corpo seja inferior à alma intelectual, também possui uma alma irracional composta de duas partes: uma irascível, impulsiva, localizada no peito: outra concupiscível voltada para os desejos de bens materiais e apetite sexual localizada no ventre.O problema moral humano, para Platão, encontra-se na tentativa de dominar a alma inferior. Esta perturba o conhecimento verdadeiro porque, escravizada pelo sensível, leva a opinião e, conseqüentemente, ao erro. 0 corpo é também ocasião de corrupção e decadência moral. Se a alma superior não souber controlar as paixões e os desejos, o homem será incapaz de um comportamento moral.Que conseqüências resultam dessas teorias para definir um ideal de educação?Primeiramente, a educação física proporciona ao corpo uma saúde perfeita, permitindo que a alma ultrapasse o mundo dos sentidos e melhor se concentre na contemplação das idéias. Caso contrário. a fraqueza física torna-se empecilho à vida superior do espírito. Da mesma forma, o amor sensível se subordina ao amor intelectual. No diálogo O banquete, Platão nos faz ver que, se na juventude predomina a admiração pela beleza física, o homem amadurecido descobre que a verdadeira beleza é espiritual.Essa transposição pode ser favorecida com a educação do corpo e do espírito pela ginástica. Também pela música, entendida no amplo sentido de formação literária e artística. As crianças aprendem o ritmo e a harmonia. condição para alcançar a harmonia da alma.Platão recomenda ainda o ensino da geometria, e segundo uma tradição antiga parece que na entrada da Academia destacava-se a inscrição "Não entre aqui quem não souber geometria". A aritmética, a geometria e a astronomia, formando o currículo de base científica, não têm, no entanto o objetivo de formar especialistas, mas preparar para a mais elevada atividade humana, o filosofar.Contrariando a educação tradicional, baseada nos textos das epopéias, sobretudo as de Homero, Platão recomenda que a poesia seja excluída do ensino, limitando-se a proporcionar o gozo artístico. O motivo da crítica está no fato de que o poeta apenas imita a realidade e cria um mundo de mera aparência, que afasta o homem do conhecimento verdadeiro, estimula as paixões e os instintos. Ao contrário, Platão defende a aprendizagem da resistência racional à dor, ao sofrimento, para não sucumbirmos à vida dos sentimentos.Numa breve conclusão sobre Platão, podemos ressaltar que ele se contrapõe a diversas tendências do seu tempo. Por exemplo a sofocracia contraria as concepções democráticas, embora nessa época Atenas já estivesse sofrendo uma série de reveses políticos. Além disso como veremos a seguir ao defender a formação científico-filosófica, Platão perde em popularidade para o educador Isócrates, que representa a tendência literário-retórica. Apesar desses insucessos as idéias platônicas irão fecundar de maneira decisiva a filosofia cristã. sobretudo nos seus primórdios. 8. lsócrates e a retóricaIsócrates (436-338 a.C.) contemporâneo de Platão e de certa forma seu opositor defende posições que agitam as discussões sobre educação na antiga Atenas. Discípulo dos sofistas e de Sócrates, funda uma escola de nível superior na qual forma várias gerações durante 55 anos. Pouco restou da abundante produção de discursos, na maior parte destinados aos exercícios didáticos para as aulas de retórica, a “arte de bem dizer”. Vimos que a retórica se torna importante instrumento para a cidade democrática, na qual os cidadãos procuram convencer seus iguais nas assembléias do povo ou nos tribunais, Sabemos também como Sócrates e Platão criticam os sofistas por fazerem generalizações às vezes indevidas e se ocuparem com um palavreado vazio e formal. Para Platão, embora o bem falar (ou escrever) não possa ser desprezado é no entanto, secundário. Antes de aprender retórica para convencer um oponente. é preciso que a pessoa se esforce por conhecer a verdade porque só o conhecimento dará estrutura orgânica e ordenação lógica ao discurso. Caso contrário este se torna mero amontoado

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de banalidades e equívocos.Em contraposição Isócrates considera Platão muito intelectualista, e seus ensinamentos restritos demais a um público elitista. Duvida até que fosse possível alcançar a episteme, meta do projeto platônico. Mais práticos, os retóricos caçoam dos filósofos, acusando-os de se dedicarem a discussões estéreis, inúteis, distanciadas da vida cotidiana. Para Isócrates, seria melhor contentar-se com a opinião razoável.Isócrates é importante pelo fato de centrar sua atenção na linguagem, descobrindo formas que facilitassem a aprendizagem do discurso. Assim como o corpo necessita de exercício, para treinar o espírito destaca as vantagens da repetição e desenvolve diversas técnicas de desdobramento do discurso. Ensina como reunir material de pesquisa distingue as partes de que se compõe a peça oratória e formula regras para orientar as maneiras de apresentação. como o processo de refutação de teses, as sentenças, a ironia. Sugere ainda recorrer à história para encontrar exemplos de conduta moral e de decisões políticas. que sempre ilustram um bom discurso.Muitas vezes se opõe aos sofistas, porque sua concepção de eloqüência está dissociada da formação moral, cívica e patriótica.A história nos mostra que a atuação dos retóricos no tempo da Grécia clássica foi mais marcante do que a dos filósofos, como Platão, cuja influência só se fará sentir mais tarde. Naquele momento, a ênfase às questões de linguagem e literatura orienta a educação de maneira definitiva. A propósito, o filósofo e orador romano Cícero diz que Isócrates "ensinou a Grécia a falar".9. Realismo aristotélicoAristóteles (384-332 a.C.) nasceu na cidade de Estagira, ao norte da Grécia. Dirigindo-se a Atenas, foi discípulo de Platão, tendo permanecido por 20 anos na Academia. Posteriormente teria sido preceptor do futuro imperador Alexandre Magno.Mais tarde fundou em Atenas sua própria escola, o Liceu, no ginásio de Apolo Lício, em uma dependência chamada peripatos, daí o fato de sua filosofia ser conhecida como peripatética. Segundo hipótese corrente, Aristóteles daria suas aulas andando pelos jardins da escola, no peripatos (de peri ao redor e pateo passear).Superando a influência do mestre, Aristóteles elabora um sistema filosófico original que abrange os mais diversos aspectos do saber do seu tempo, inclusive das ciências. Filho de médico, herda o gosto pela observação tendo classificado cerca de 540 espécies de animais, o que mostra a importância dada à investigação científica, também valorizada na sua concepção pedagógica.Vejamos algumas linhas do pensamento aristotélico, para melhor compreendermos suas idéias pedagógicas.Aprendemos que, para Platão, as coisas concretas, em constante movimento, são simples aparências, sombras da verdadeira realidade do mundo das idéias, do mundo imóvel dos conceitos. Aristóteles critica o idealismo do mestre e desenvolve uma teoria realista, segundo a qual a imutabilidade do conceito e o movimento das coisas podem ser explicados a partir das coisas mesmas, recusando portanto o artifício do mundo das idéias.Para explicar o ser Aristóteles usa dois elementos indissociáveis: a matéria e a forma. A matéria é pura passividade contendo as virtualidades da forma em potência. A forma é o princípio inteligível, a essência comum aos indivíduos de uma mesma espécie, pela qual cada um é o que é. Fazendo um paralelo um tanto grosseiro, numa estátua a matéria é o mámore a forma é a idéia que o escultor realiza e pela qual individualiza e determina.Apoiado na noção de matéria e forma, explica o devir (ou movimento). Todo ser tendo a atualizar a forma que tem em si como potência, tende a atingir a perfeição que lhe é própria e o fim a que se destina. Assim, a semente do carvalho enterrada, tende a se desenvolver e se transformar no carvalho que era em potência. O movimento é, pois, a passagem da potência para o ato.A teoria do movimento leva a à distinção entre as causas possíveis dos seres. Voltando ao exemplo da estátua, para haver transformação, atuam várias delas: a causa material

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é o mármore, a causa eficiente é o escultor; a causa formal é a forma que a estátua adquire, e a causa final é o motivo ou a razão por que uma matéria adquire determinada forma, ou seja, a finalidade da estátua. A pedagogia aristotélicaComo conseqüência dessa teoria do movimento e das causas para a pedagogia, toda educação deve levar em conta o fato de o homem estar em constante devir. A educação tem como finalidade ajudar o homem a alcançar a plenitude e a realização do seu ser, a atualizar as forças que tem em potência. Note-se aqui uma característica da pedagogia da essência, pois a educação pretende levar o homem a "tornar-se o que deve ser”.Não mais discutindo como os seres são, mas como podem vir a ser, nos encontramos finalmente no campo da ética, parte da filosofia que trata da ação humana tendo em vista o bem. O sumo bem é alcançar a felicidade. Ela consiste na plenitude da realização do homem, quando desenvolve suas faculdades físicas, morais e intelectuais.Para Aristóteles, no entanto, aquilo que mais fundamentalmente caracteriza o homem e o distingue do animal é a capacidade de pensar e, portanto sua perfeição se encontra no exercício dessa atividade. Se a virtude do homem é viver conforme a razão, cabe a ela disciplinar os sentimentos e os instintos.Diferentemente de Sócrates que identificava saber e virtude, Aristóteles enfatiza a ação da vontade, exercitada pela repetição, que conduz ao habito: só é virtuoso o homem que tem o habito da virtude. Daí ser a imitação instrumento por excelência desse processo, segundo o qual a criança se educa repetindo os atos de vida dos adultos, adquirindo hábitos que vão formar uma segunda natureza.Essa aprendizagem se faz no esforço de buscar por escolha livre o justo meio entre dois vícios (que representam os extremos por falta ou por excesso). Por exemplo, a coragem é o meio-termo entre a covardia e a temeridade; a gentileza, entre a indiferença e a irascibilidade, a liberalidade, entre a avareza e a prodigalidade, e assim por diante.Estreitamente ligada à ética, encontra-se a política, pela qual o homem define as condições da vida boa em sociedade. Na sua obra Política, Aristóteles esboça uma teoria da educação, discutindo como o Estado deve se ocupar com a formação para a cidadania. Coerente com o pensamento de seu tempo, restringe o benefício da cidadania aos homens livres, sobretudo aos que dispõem de tempo para o ócio digno  excluindo portanto os que se ocupam com as artes mecânicas, como os artesãos e escravos.A metodologia de Aristóteles merece um destaque. E bem verdade que desde Sócrates e os sofistas já existiam questões metodológicas, mas deve-se a Aristóteles a organização rigorosa do Organon ou instrumento de pensar, que mais tarde recebe a denominação de lógica frmal. A compreensão precisa dos processos de análise e síntese, indução, dedução e analogia ajudará a desenvolver também o método lógico de ensinar.A repercussão do pensamento aristotélico não se deu de imediato na Grécia do seu tempo. Sabe-se que seus trabalhos foram levados para a Ásia Menor por volta de 287 a.C. e teriam se perdido por cerca de 200 anos, até reaparecerem na biblioteca de Alexandria, onde foram classificados e posteriormente levados para Roma.Durante a Idade Média, sua obra permanece muito tempo desconhecida ressurgindo inicialmente por intermédio dos árabes e depois, a partir do século XIII, é incorporada pela filosofia escolástica que adapta seu paganismo às concepções cristãs. Daí até os nossos tempos é marcante sua influência na filosofia ocidental. 10. Os pós-socráticosNa segunda metade do século IV a.C., com a conquista macedônica, as cidades-estados gregas perdem a autonomia. Depois dessa época, os tempos são conturbados pela expansão do império alexandrino.A insegurança das Guerras e o contato com o pensamento oriental mudam o centro das reflexões filosóficas, fazendo surgir um novo tipo de intelectual. A ênfase é deslocada da

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metafísica ou da política para as questões éticas, sobretudo no que diz respeito à realização subjetiva e pessoal. Na impossibilidade de controlar o que se acha fora de si, o homem procura a serenidade interior. Representam essa tendência as escolas filosóficas do estoicismo e do epicurismo.O estoicismo não tem origem única, mas sofre a influência de diversas tendências. Segundo seu principal representante Zeno de Cítio (336-264 a.C.), ao buscar a felicidade o homem deve fugir do prazer, que em última análise apenas proporciona dor e sofrimento. O exercício da virtude consiste na auto-suficiência, alcançada se conseguir afastar-se dos bens materiais e dominar as paixões que trazem intranqüilidade à alma. O domínio racional leva à aceitação do destino e a resignação, e por isso o ideal do sábio é a ataraxia (imperturbabilidade), a apatia (ausência de paixão) e a aponia (ausência de dor).No epicurismo, doutrina iniciada por Epicuro (341-270 a.C.), o ideal do sábio é atingir igualmente a ataraxia, embora sem o mesmo sentido dos estóicos. Epicuro é um hedonista (hedoné, "prazer”) e, por isso, ao considerar a felicidade como busca do prazer, não nega as afecções humanas, nem propõe a insensibilidade. O homem deve evitar tudo o que se opõe à felicidade (temor, dor, sofrimento) e aproximar-se de tudo o que a proporciona como a satisfação das necessidades físicas e espirituais, dentre as quais distingue especialmente a amizade.Contradizendo as pessoas que julgam o epicurismo uma busca desenfreada de prazeres, Epicuro destaca o papel da razão na seleção dos prazeres, já que a realização apressada de alguns pode trazer sofrimento no futuro. Atender as verdadeiras necessidades do homem significa buscar o prazer duradouro, sereno, espiritual.As tendências estóicas e epicuristas que caracterizam a filosofia helenística se acham em consonância com urna concepção de educação muito diferente daquela do período clássico. Nos novos tempos diminui o interesse pela educação física, sendo valorizada a razão no controle dos sentidos e das paixões.O pensamento helenístico se aproxima das religiões do Oriente e. mais tarde, das concepções cristãs predominantemente ascéticas.As filosofias epicuristas e, sobretudo, as estóicas (nas suas tendências ecléticas) marcarão o pensamento romano nas figuras de Cícero, Sêneca. Epicteto e Marco Aurélio,

Teoria do conhecimento na Antiguidade

Para os que entram nos mesmos rios, correm outras e novas águas ( ... ) Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio .   (Heráclito de Éfeso)

Necessário é dizer e pensar que só o ser é; pois o ser é, e o nada, ao contrário, nada é: afirmação que bem deves considerar. Desta via de investigação, eu te afasto; mas também daquela outra, na qual vagueiam os mortais que nada sabem, cabeças duplas. Pois é a ausência de meios que inove, em seu peito, o seu espírito errante. Deixam-se levar, surdos e cegos, mentes obtusas, massa indecisa, para a qual o ser e o não ser é considerado o mesmo e não o mesmo, e para a qual em tudo há uma via contraditória.(Parinênides)

1. IntroduçãoNa Grécia, a passagem do mundo tribal à pólis (a cidade-estado grega) determina a mudança da maneira de pensar, que antes era predominantemente mítica e depois, com o aparecimento das cidades, faz surgir a racionalidade critica típica do pensar filosófico.

O advento da pólis grega é concomitante a outras transformações também marcantes, como o aparecimento da escrita, da moeda (em decorrência da expansão do comércio), dos legisladores (que elaboram nova concepção de poder nas leis

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escritas). Essas transformações culminam com a figura do cidadão e do filósofo, em um mundo antes marcado pelo desígnio divino.

Começa então a grande aventura filosófica dos gregos, cuja influência se faz sentir até nossos dias. Costuma-se dividir a filosofia grega em quatro grandes períodos:

O período pré-socrático (séculos VIl e VI a.C.) abrange os filósofos das colônias gregas Jônia e Magna Grécia) que iniciaram o processo de desligamento entre a filosofia e o pensamento mítico.

O  período socrático ou clássico (séculos V e IV a.C.)   o centro cultural passa a ser Atenas; desse período fazem parte o próprio Sócrates e seu discípulo Platão, que posteriormente foi mestre de Aristóteles. O pensamento organizado e sistemático de Platão e Aristóteles influenciará durante séculos a cultura ocidental. Os sofistas são desse período e foram duramente criticados por seus contemporâneos.

O  período pós socrático (séculos III e II a.C.)   caracteriza-se pela expansão macedônica sobre os territórios gregos e formação do império de Alexandre Magno, que se estendeu por regiões da Ásia e parte do norte da África. Após a morte de Alexandre, inicia se a época helenística, marcada pela influência oriental; as correntes filosóficas mais conhecidas são o estoicismo e o epicurismo, principais expressões do período pós-socrático.

2. Filosofia pré-socráticaA filosofia pré-socrática se caracteriza pela preocupação com a natureza do mundo exterior.

O nascimento da filosofia na Grécia é marcado pela passagem da cosmogonia para a cosmologia. A cosmogonia, típica do pensamento mítico, é descritiva e explica como do caos surge o cosmos, a partir da geração dos deuses, identificados às forças da natureza. Na cosmologia, as explicações rompem com a religiosidade: a arché (=princípio) não se encontra mais na ordem do tempo mítico, mas significa princípio teórico, enquanto fundamento de todas as coisas. Daí a diversidade de escolas filosóficas, dando origem a fundamentações conceituais (e portanto abstratas) muito diferentes entre si.

Vamos destacar apenas dois, dentre os pré-socráticos: Heráclito e Parmênides. Relembramos também que o tempo destruiu grande parte da obra dos primeiros filósofos, deles nos restando apenas fragmentos e os comentários sobre seus textos feitos pelos filósofos do período clássico.

Heráclito: tudo fluiHeráclito (544 484 a.C.) nasceu em Éfeso, na Jônia (atual Turquia). Tal como seus contemporâneos pré-socráticos, busca compreender a multiplicidade do real. Mas, ao contrário deles, não rejeita as contradições e quer apreender a realidade na sua mudança, no seu devir. Todas as coisas mudam sem cessar, e o que temos diante de nós em dado momento é diferente do que foi há pouco e do que será depois: "Nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio, pois na segunda vez não somos os mesmos, e também o rio mudou.”

Portanto não há ser estático, e o dinamismo pode bem ser representado pela metáfora do fogo, forma visível da instabilidade. Símbolo da eterna agitação do devir, "o fogo eterno e vivo, que ora se acende e ora se apaga”.

Para Heráclito o ser é o múltiplo. Não no sentido apenas de que existe a multiplicidade das coisas, mas de que o ser é múltiplo por estar constituído de oposições internas. O que mantém o fluxo do movimento não é o simples aparecer de novos seres, mas a luta dos contrários, pois "a guerra é pai de todos, rei de todos". E é da luta que nasce a harmonia, como síntese dos contrários.

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Pode se dizer que Heráclito teve a intuição da lógica dialética, a ser elaborada por Hegel e depois Marx, no século XIX.

Parmênides: o ser é imóvelParmênides (c.540 c.470 a.C.) viveu em Eléia, cidade do sul da Magna Grécia (atual Itália) e é o principal expoente da chamada escola eleática. Elaborou importantíssima teoria filosófica na medida em que influenciou de forma decisiva o pensamento ocidental. Ocupou-se longamente em criticar a filosofia heraclitiana: ao "tudo flui" (panta rei) de Heráclito, contrapôs a imobilidade do ser.

Para Parmênides é absurdo e impensável considerar que uma coisa pode ser e não ser ao mesmo tempo. A contradição opõe o princípio segundo o qual "o ser é" e o "não-ser não é". Mais tarde, os lógicos chamarão a isto princípio de identidade, base de toda construção metafísica posterior.

Por raciocínios que não cabe examinar neste texto, Parmênides conclui, a partir do princípio estabelecido, que o ser é único, imutável, infinito e imóvel. Não há, entretanto, como negar a existência do movimento no mundo que percebemos, onde as coisas nascem e morrem, mudam de lugar e se expõem em infinita multiplicidade. Para Parmênides, o movimento existe apenas no mundo sensível, e a percepção levada a efeito pelos sentidos é ilusória. Só o mundo inteligível é verdadeiro, pois está submetido ao princípio que hoje chamamos de identidade e de não contradição.

Uma das conseqüências dessa teoria é a identidade entre o ser e o pensar. Ou seja, as coisas que existem fora de mim são idênticas ao meu pensamento, e o que eu não conseguir pensar não pode ser na realidade.

3. Os sofistasO século de Péricles (V a.C.) constitui o período áureo da cultura grega, quando a democrática Atenas desenvolve intensa vida cultural e artística. Os pensadores do período clássico, embora ainda discutam questões referentes à natureza, desenvolvem o enfoque antropológico, abrangendo a moral e a política.

Os sofistas vivem nessa época, e alguns deles são interlocutores de Sócrates. Os mais famosos sofistas foram: Protágoras, de Abdera (485-411 a.C.); Górgias, de Leôncio, na Sicília (485-380 a.C.); Híppias, de Élis; e ainda Trasímaco, Pródico, Hipódamos, entre outros. Tal como ocorreu com os pré-socráticos, dos sofistas só nos restam fragmentos de suas obras, além das referências muitas vezes feitas por filósofos posteriores.

A palavra sofista, etimologicamente, vem de sophos, que significa "sábio", ou melhor, "professor de sabedoria". Posteriormnente adquiriu o sentido pejorativo de "homem que emprega sofismas", ou seja, alguém que usa de raciocínio capcioso, de má fé, com intenção de enganar. Sóphisma significa"sutileza de sofista".

Os sofistas sempre foram mal interpretados devido às críticas que sobre eles fizeram Sócrates e Platão. A imagem de certa forma caricatural da sofística tem sido reelaborada no sentido de procurar resgatar a verdadeira importância do seu pensamento.

São muitos os motivos que levaram à visão deturpada dos sofistas que a tradição nos oferece. Em primeiro lugar, há enorme diversidade teórica entre os pensadores reunidos sob a designação de sofista. Talvez o que possa identifica-los é o fato de serem considerados sábios e pedagogos. Vindos de todas as partes do mundo grego, desenvolvem um ensino itinerante pelos locais em que passam, mas não se fixam em lugar algum. Deve-se a isso o gosto pela crítica, o exercício do pensar resultante da circulação de idéias diferentes.

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Segundo Jaeger, historiador da filosofia, os sofistas exercem influência muito forte, vinculando-se à tradição educativa dos poetas Homero e Hesíodo. Os sofistas deram importante contribuição para a sistematização do ensino. Formaram um currículo de estudos: gramática (da qual foram os iniciadores), retórica e dialética; por influência dos pitagóricos, desenvolveram a aritmética, a geometria, a astronomia e a música. Essa divisão será retomada no ensino medieval, constituindo o trivium (referente aos três primeiros) e o quadrivium (referente aos quatro últimos).

Para escândalo de seus contemporâneos, costumavam cobrar pelas aulas e por esse motivo Sócrates os acusava de prostituição. Cabe aqui um reparo: na Grécia Antiga, apenas os nobres se ocupavam com o trabalho intelectual, pois gozavam do ócio, ou seja, da disponibilidade de tempo decorrente do fato de que o trabalho manual, de subsistência, era ocupação de escravos. Ora, os sofistas, geralmente homens saídos da classe média, faziam das aulas seu ofício, já que não eram suficientemente ricos para filosofarem descompromissadamente. Se alguns sofistas de menor valor podiam ser chamados de mercenários do saber, isso na verdade era acidental. (Será que essas observações podem nos servir ainda hoje?)

Os sofistas elaboram o ideal teórico da democracia, valorizada pelos comerciantes em ascensão, cujos interesses se contrapõem aos da aristocracia rural. A exigência que os sofistas vêm satisfazer é de ordem essencialmente prática, voltada para a vida: iniciam os jovens na arte da retórica, instrumento indispensável na assembléia democrática, e os deslumbram com o brilhantismo da participação no debate público.

Se foram acusados pelos seus detratores de pronunciarem discursos vazios, essa fama se deve à excessiva atenção dada por alguns deles ao aspecto formal da exposição e da defesa das idéias, pois se achavam preocupados com a persuasão, instrumento por excelência do cidadão na cidade democrática. Os melhores deles, no entanto, buscaram aperfeiçoar os instrumentos da razão, ou seja, a coerência e o rigor da argumentação, porque não basta dizer o que se considera verdadeiro, é preciso demonstra-lo pelo raciocínio. Pode-se dizer que aí se encontra o embrião da lógica, mais tarde desenvolvida por Aristóteles.

Quando Protágoras, um dos mais importantes sofistas, diz que "o homem é a medida de todas as coisas", esse fragmento deve ser entendido não como expressão do relativismo do conhecimento, mas enquanto exaltação da capacidade de construir a verdade: o logos não mais é divino, mas decorre do exercício técnico da razão humana.

4. SócratesSócrates (c.470 399 a.C.) nada deixou escrito e teve suas idéias divulgadas por dois de seus principais discípulos, Xenofonte e Platão. Evidentemente, devido ao brilho deles, é de se supor que nem sempre fossem realmente fiéis ao pensamento do mestre. Nos diálogos que Platão escreveu, Sócrates figura sempre como o principal interlocutor.

Mesmo tendo sido incluído muitas vezes entre os sofistas, Sócrates recusava tal classificação, e opunha-se a eles de forma crítica.

Sócrates se indispôs com os poderosos do seu tempo, sendo acusado de não crer nos deuses da cidade e corromper a mocidade. Por isso foi condenado e morto.

Costumava conversar com todos, fossem velhos ou moços, nobres ou escravos, preocupado com o método do conhecimento. Sócrates parte do pressuposto "só sei que nada sei", que consiste justamente na sabedoria de reconhecer a própria ignorância, ponto de partida para a procura do saber.

Por isso seu método começa pela parte considerada "destrutiva", chamada ironia (em grego, "perguntar"). Nas discussões afirma inicialmente nada saber, diante do

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oponente que se diz conhecedor de determinado assunto. Com hábeis perguntas, desmonta as certezas até o outro reconhecer a ignorância. Parte então para a segunda etapa do método, a maiêutica (em grego, "parto"). Dá esse nome em homenagem a sua mãe, que era parteira, acrescentando que, se ela fazia parto de corpos, ele "dava à luz" idéias novas.

Sócrates, por meio de perguntas, destrói o saber constituído para reconstruí-lo na procura da definição do conceito. Esse processo aparece bem ilustrado nos diálogos relatados por Platão, e é bom lembrar que, no final, nem sempre Sócrates tem a resposta: ele também se põe em busca do conceito e às vezes as discussões não chegam a conclusões definitivas.

As questões que Sócrates privilegia são as referentes à moral, daí perguntar em que consiste a coragem, a covardia, a piedade, a justiça e assim por diante. Diante de diversas manifestações de coragem, quer saber o que é a "coragem em si", o universal que a representa. Ora, enquanto a filosofia ainda é nascente, precisa inventar palavras novas, ou usar as antigas dando-lhes sentido diferente. Por isso Sócrates utiliza o termo logos, que na linguagem comum significava "palavra", "conversa", e que no sentido filosófico passa a significar "a razão que se dá de algo”, ou mais propriamente, conceito.

Assim explica García Morente em Fundamentos de filosofia: "O que os geômetras dizem de uma figura, do círculo, por exemplo, para defini-lo, é o logos do círculo, é a razão dada do círculo. Do mesmo modo, o que Sócrates pede com afã aos cidadãos de Atenas é que lhes dêem o logos da justiça, o logos da coragem. (...) Pois que é este logos senão o que hoje denominamos 'conceito'? Quando Sócrates pede o logos, quando pede que indiquem qual é o logos da justiça, que é a justiça, o que pede é o conceito da justiça, a definição da justiça”

5. PlatãoPlatão (428-347 a.C.) viveu em Atenas, onde fundou uma escola denominada Academia.

Para melhor sintetizar as idéias de Platão, recorremos ao livro VII de A República, onde seu pensamento é ilustrado pelo famoso "mito da caverna". Platão imagina uma caverna onde estão acorrentados os homens desde a infância, de tal forma que, não podendo-se voltar para a entrada, apenas enxergam o fundo da caverna. Aí são projetadas as sombras das coisas que passam às suas costas, onde há uma fogueira. Se um desses homens conseguisse se soltar das correntes para contemplar à luz do dia os verdadeiros objetos, quando regressasse, relatando o que viu aos seus antigos companheiros, esses o tomariam por louco, não acreditando em suas palavras.

A análise do mito pode ser feita pelo menos sob dois pontos de vista: o epistemológico (relativo ao conhecimento) e o político (relativo ao poder).

Segundo a dimensão epistemológica, o mito da caverna é uma alegoria a respeito das duas principais formas de conhecimento: na teoria das idéias, Platão distingue o mundo sensível, dos fenômenos, e o mundo inteligível, das idéias.

O mundo sensível, acessível aos sentidos, é o mundo da multiplicidade, do movimento, e é ilusório, pura sombra do verdadeiro mundo. Assim, mesmo se percebemos inúmeras abelhas dos mais variados tipos, a idéia de abelha deve ser una, imutável. a verdadeira realidade. Com isto Platão se aproxima do instrumental teórico de Parmênides e, aliando-o aos ensinamentos de Sócrates, elabora uma teoria original.

Do seu mestre aproveita a noção nova de logos e continuando o processo de compreensão do real, cria a palavra idéia (eidos), para referir-se à intuição intelectual, distinta da intuição sensível.

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Portanto, acima do ilusório mundo sensível, há o mundo das idéias gerais, das essências imutáveis que o homem atinge pela contemplação e pela depuração dos enganos dos sentidos.

Sendo as idéias a única verdade, o mundo dos fenômenos só existe na medida em que participa do mundo das idéias, do qual é apenas sombra ou cópia. Por exemplo, um cavalo só é cavalo enquanto participa da idéia de "cavalo em si. Trata-se da teoria da participação, mais tarde duramente criticada por Aristóteles.

Para Platão há uma dialética que fará a alma elevar-se das coisas múltiplas e mutáveis às idéias unas e imutáveis. As idéias gerais são hierarquizadas, e no topo delas está a idéia do Bem, a mais alta em perfeição e a mais geral de todas: os seres e as coisas não existem senão enquanto participam do Bem. E o Bem supremo é também a Suprema Beleza. É o Deus de Platão.

Se lembrarmos o que foi dito a respeito dos pré-socráticos, podemos verificar que Platão tenta superar a oposição instalada pelo pensamento de Heráclito que afirmava a mutabilidade essencial do ser, e oposição de Parmênides, para o qual o ser é imóvel. Platão resolve o problema: o mundo das idéias se refere ao ser parmenídeo, e o mundo dos fenômenos ao devir heraclitiano.

Mas como é possível aos homens ultrapassarem o mundo das aparências ilusórias? Platão supõe que os homens já teriam vivido como puro espírito quando contemplaram o mundo das idéias. Mas tudo esquecem quando se degradam ao se tornarem prisioneiros do corpo, que é considerado o "túmulo da alma". Pela teoria da reminiscência, Platão explica como os sentidos se constituem apenas na ocasião para despertar nas almas as lembranças adormecidas. Em outras palavras, conhecer é lembrar. No diálogo Menon, Platão descreve como um escravo, ao examinar figuras sensíveis que lhe são oferecidas, é induzido a lembrar-se das idéias e descobre uma verdade geométrica.

Voltando ao mito da caverna: o filósofo (aquele que se libertou das correntes), ao contemplar a verdadeira realidade e ter passado da opinião (doxa) à ciência (episteme), deve retornar ao meio dos homens para orienta-los.

Eis assim a segunda dimensão do mito, a política, surgida da pergunta: como influenciar os homens que não vêem? Cabe ao sábio ensinar e governar. Trata-se da necessidade da ação política, da transformação dos homens e da sociedade, desde que essa ação seja dirigida pelo modelo ideal contemplado.

Idealismo ou realismo das idéias?Alguns teóricos tendem a interpretar o pensamento de Parmênides e de Platão como representantes do idealismo. Como veremos adiante, o idealismo é uma expressão do pensamento moderno, no momento em que a teoria do conhecimento se torna reflexão autônoma.

Secundo García Morente, o eleatismo não é idealismo, mas realismo. Quando Parmênides identifica ser e pensar, não se pode concluir que ele reduz o ser das coisas ao pensamento, pois em nenhum momento é negada a existência autônoma das coisas reais. Aliás, toda filosofia antiga é “ingênua” no sentido de aceitar o pressuposto de que “as coisas são reais”.

O que se deve levar em conta é que naquele momento a filosofia está no seu berço e Parmênides leva até as últimas conseqüências o poder recém descoberto da razão de procurar entender o mistério do mundo.

Como vimos, Platão rejeita como enganosa a multiplicidade do mundo e privilegia as idéias como essências existentes das coisas do mundo sensível. Ou seja, a cada “sombra” do mundo dos fenômenos correspondem a uma essência imutável no mundo das idéias. Platão confere às idéias uma existência real; portanto, trata-se menos de

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uma teoria idealista e mais propriamente de um realismo das idéias. Ou ainda, segundo outros, de um idealismo objetivo.

6. AristótelesAristóteles (384-322 a.C.) nasceu em Estagira, na Calcídica (região dependente da Macedônia). Seu pai era médico de Filipe, rei da Macedônia. Mais tarde, Alexandre, filho de Filipe, foi discípulo de Aristóteles até o momento em que precisou assumir precocemente o poder e continuar a expansão do império.

Freqüentou a Academia de Platão e a fidelidade ao mestre foi entremeada por críticas que mais tarde justificaria dizendo: “Sou amigo de Platão, mas mais amigo da verdade”. Sua extensa obra forma um dos grandes sistemas filosóficos cuja importância se encontra tanto na abrangência dos assuntos abordados como na interligação rigorosa entre as partes constitutivas.

Em 340 a.C. funda em Atenas o Liceu, assim chamado por ser vizinho do templo de Apolo Lício.

Uma nova concepção do devirAristóteles retoma a problemática do conhecimento e se preocupa em definir a ciência como conhecimento verdadeiro, conhecimento pelas causas, capaz de superar os enganos da opinião e de compreender a natureza do devir. Mas ao analisar a oposição entre o mundo sensível e o inteligível segundo a tradição de Heráclito, Parmênides e Platão, Aristóteles recusa as soluções apresentadas e critica pormenorizadamente o mundo “separado” das idéias platônicas.

A teoria aristotélica se baseia em três distinções fundamentais, que passamos a descrever simplificadamente: substância essência acidente; ato potência; forma matéria, que por sua vez desembocam na teoria das quatro causas.

Aristóteles "traz as idéias do céu à terra": rejeita o mundo das idéias de Platão, fundindo o mundo sensível e o inteligível no conceito da substância, enquanto "aquilo que é em si mesmo", ou enquanto suporte dos atributos.

Ora, quando dizemos algo de uma substância, podemos nos referir a atributos que lhe convêm de tal forma que, se lhe faltassem, a substância não seria o que é. Designamos esses atributos de essência propriamente dita, e chamamos de acidente o atributo que a substância pode ter ou não, sem deixar de ser o que é. Então, a substância individual "este homem" tem como características essenciais os atributos pelos quais este homem é homem (Aristóteles diria, a essência do homem é a racionalidade) e outros, acidentais (como ser gordo, velho ou belo), atributos esses que não mudam o ser do homem em si.

No entanto, o problema das transformações dos seres ainda não se resolve com os conceitos de essência e acidente, e por isso Aristóteles recorre às noções de forma e matéria. Matéria e o principio indeterminado de que o mundo físico é composto, é  “aquilo de que é feito algo”, o que não coincide exatamente com o que nós entendemos por matéria na física, por se caracterizar pela indeterminação. Forma é “aquilo que faz com que uma coisa seja o que é”.

Todo ser é constituído de matéria e forma, princípios indissociáveis. Enquanto que a forma é o princípio inteligível, a essência comum aos indivíduos da mesma espécie, pela qual todos são o que são, a matéria é pura passividade, contendo a forma em potência. Numa estátua, por exemplo, a matéria (que nesse caso é a matéria segunda, pois já tem alguma determinação) e o mármore; a forma é a idéia que o escultor realiza na estátua.

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É através da noção de matéria e forma que se explica o devir. Todo ser tende a tornar atual a forma que tem em si como potência. Assim, a semente, quando enterrada, tende a se desenvolver e se transformar no carvalho que era em potência.

Percebe-se aí o recurso aos dois outros conceitos, de ato e potência, que explicam como dois seres diferentes podem entrar em relação, agindo um sobre o outro. O conceito de potência não deve ser confundido com força, mas sim com a ausência de perfeição em um ser capaz de vir a possuí-la. Pois uma potência é a capacidade de tomar-se alguma coisa e para tal, é preciso que sofra a ação de outro ser já em ato. A semente que contém o carvalho em potência foi gerada por um carvalho em ato.

O movimento é, pois, a passagem da potência para o ato. O movimento é "o ato de um ser em potência enquanto tal", é a potência se atualizando. Tais considerações levam à distinção dos diversos tipos de movimento e às causas do movimento ou teoria das quatro causas: as mudanças derivam da causa material, da causa formal, da causa eficiente e da causa final.

Mesmo ainda considerando o postulado parmenídeo de que o ser é idêntico ao pensar, Aristóteles pôde superar Parmênides e Platão ao usar os conceitos acima expostos, pelos quais se compreende a imutabilidade e a mudança, o acidental e o essencial, o individual e o universal. Se conhecer é lidar com conceitos universais, é também aplicar esses conceitos a cada coisa individual. Com isso, nem é preciso justificar a imobilidade do ser, nem criar o mundo das essências imutáveis.

Deus, Ato PuroToda a estrutura teórica da filosofia aristotélica desemboca na teologia. A descrição das relações entre as coisas leva ao reconhecimento da existência de um ser superior e necessário, ou seja. Deus. Isso porque, se as coisas são contingentes, já que não têm em si mesmas a razão de sua existência, é preciso concluir que são produzidas por causas a elas exteriores. Assim, todo ser contingente foi produzido por outro ser, que também é contingente e assim por diante. Para não ir ao infinito na seqüência de causas, é preciso admitir uma primeira causa, por sua vez incausada, um ser necessário (e não contingente). Esse Primeiro Motor (imóvel, por não ser movido por nenhum outro) é também um puro ato (sem nenhuma potência). Chamamos Deus ao Primeiro Motor Imóvel, Ato Puro, Ser Necessário. Causa Primeira de todo existente.

7. A metafísicaVimos como a filosofia grega, desde o momento em que se separa do pensamento mítico, elabora conceitos para instrumentalizar a razão no esforço de compreensão do real.

Entre as diversas e importantes contribuições do pensamento grego, destaca-se o caminho percorrido por Parmênides, Platão e Aristóteles na busca dos conceitos que explicassem o ser em geral e que hoje reconhecemos como sendo o assunto tratado pela parte da filosofia denominada metafísica.

Há uma curiosidade em torno da origem do nome metafísica. Embora sempre façamos referência à metafísica de Aristóteles, ele próprio usava a denominação filosofia primeira. O termo metafísica surgiu no século 1 a.C., quando Andrônico de Rodes, ao classificar as obras de Aristóteles, colocou a Filosofia primeira depois das obras de Física: Meta Física, ou seja, "depois da Física".

De qualquer forma, nada impediu que esse "depois", puramente espacial, fosse considerado "além", no sentido de tratar de assuntos que transcendem a física, que estão além dela porque ultrapassam as questões postas a partir do conhecimento do mundo sensível. Portanto, no sentido pelo qual o conhecemos hoje, o termo só começou a ser aplicado a partir do século V da nossa era.

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A filosofia primeira não é primeira na ordem no conhecer, já que partimos do conhecimento sensível, mas a que busca as causas mais universais (e portanto as mais distantes dos sentidos) e que são as mais fundamentais na ordem real. Trata se da parte nuclear da filosofia, onde se estuda "o ser enquanto ser", isto é, o ser independentemente de suas determinações particulares.

É a metafísica que fornece a todas as outras ciências o fundamento comum, o objeto ao qual todas se referem e os princípios dos quais dependem. Ou seja, todas as ciências se referem continuamente ao ser e a diversos conceitos ligados diretamente a ele, tais como identidade, oposição, diferença, gênero, espécie, todo, parte, perfeição, unidade, necessidade, possibilidade, realidade etc. Mas nenhuma ciência examina tais conceitos. É nesse sentido que consideramos que o objeto da metafísica consiste em examinar o ser e suas propriedades

Exercícios1. Qual é a principal preocupação dos filósofos pré-socráticos? 2. Faça um paralelo entre Heráclito e Parmênides, por meio de um esquema

comparativo de suas idéias. 3. Relacione as duas epígrafes que iniciam este capítulo, explicando a crítica feita

por Parmênides a Heráclito. 4. Qual foi a principal contribuição de Parmênides ao pensamento ocidental? 5. Qual foi a importância dos sofistas para a educação e a política? 6. "Só sei que nada sei": em que medida não se trata de simples conclusão

psicológica, mas de uma atitude filosófica? 7. Qual é a importância do conceito, não só no pensamento de Sócrates, mas

para a filosofia nascente? 8. Em que medida a teoria das idéias de Platão pretende superar o pensamento

de Heráclito e Parmênides? 9. O que significa dizer que Aristóteles trouxe as idéias do céu à terra"? 10. Considerando a substância mesa: cite um atributo essencial, um acidental; qual

é a matéria, qual a forma? 11. Explique: para Aristóteles o movimento é a passagem da potência para o ato. 12. Explique por que o pensamento de Aristóteles desemboca numa teoria de

Deus. 13. Qual é a importância da metafísica no pensamento grego?

O nascimento da FilosofiaConvite à FilosofiaDe Marilena ChauiEd. Ática, São Paulo, 2000. Ouvindo a voz dos poetasEscutemos, por um instante, a voz dos poetas, porque ela costuma exprimir o que chamamos de “sentimento do mundo”, o sentimento da velhice e da juventude perene do mundo, da grandeza e da pequeneza dos humanos ou dos mortais.Assim, o poeta grego Arquíloco escreveu:E não te esqueças, meu coração,que as coisas humanas apenasmudanças incertas são.

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Outro poeta grego, Teógnis, cantando sobre a brevidade da vida, dizia:Choremos a juventude e a velhice também,pois a primeira foge e a segunda sempre vem.Também o poeta grego Píndaro falava do sentimento das coisas humanas como passageiras:A glória dos mortais num só dia cresce,Mas basta um só dia, contrário e funesto,para que o destino, impiedoso, num gestoa lance por terra e ela, súbito, fenece.Mas não só a vida e os feitos dos humanos são breves e frágeis. Os poetas também exprimem o sentimento de que o mundo é tecido por mudanças e repetições intermináveis. A esse respeito, a poetisa brasileira Orides Fontela escreveu:O vento, a chuva, o sol, o frioTudo vai e vem, tudo vem e vai.E o poeta brasileiro, Carlos Drummond, por sua vez, lamentou:Como a vida muda.Como a vida é muda.Como a vida é nuda.Como a vida é nada.Como a vida é tudo....Como a vida é senhade outra vida nova...Como a vida é vidaainda quando morte...Como a vida é forteem suas algemas....Como a vida é bela...Como a vida valemais que a própria vidasempre renascida.O sentimento de renovação e beleza do mundo, da vida, dos seres humanos é o que transparece nos versos do poeta brasileiro Mário Quintana, nos seguintes versos:Quando abro a cada manhã a janela do meu quartoÉ como se abrisse o mesmo livroNuma página nova...E, por isso, em outros versos seus, lemos:O encantosobrenaturalque hánas coisas da Natureza!...se nela algo te dáencanto ou medo,não me digas que seja feiaou má,é, acaso, singular...

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Numa das obras poéticas mais importantes da cultura do Ocidente europeu, as Metamorfoses, o poeta romano Ovídio exprimiu todos esses sentimentos que experimentamos diante da mudança, da renovação e da repetição, do nascimento e da morte das coisas e dos seres humanos. Na parte final de sua obra, lemos:Não há coisa alguma que persista em todo o Universo. Tudo flui, e tudo só apresenta uma imagem passageira. O próprio tempo passa com um movimento contínuo, como um rio... O que foi antes já não é, o que não tinha sido é, e todo instante é uma coisa nova. Vês a noite, próxima do fim, caminhar para o dia, e à claridade do dia suceder a escuridão da noite... Não vês as estações do ano se sucederem, imitando as idades de nossa vida? Com efeito, a primavera, quando surge, é semelhante à criança nova... A planta nova, pouco vigorosa, rebenta em brotos e enche de esperança o agricultor. Tudo floresce. O fértil campo resplandece com o colorido das flores, mas ainda falta vigor às folhas. Entra, então, a quadra mais forte e vigorosa, o verão: é a robusta mocidade, fecunda e ardente. Chega, por sua vez, o outono: passou o fervor da mocidade, é a quadra da maturidade, o meio-termo entre o jovem e o velho; as têmporas embranquecem. Vem, depois, o tristonho inverno: é o velho trôpego, cujos cabelos ou caíram como as folhas das árvores, ou, os que restaram, estão brancos como a neve dos caminhos. Também nossos corpos mudam sempre e sem descanso... E também a Natureza não descansa e, renovadora, encontra outras formas nas formas das coisas. Nada morre no vasto mundo, mas tudo assume aspectos novos e variados... Todos os seres têm sua origem noutros seres. Existe uma ave a que os fenícios dão o nome de fênix. Não se alimenta de grãos ou ervas, mas das lágrimas do incenso e do suco da amônia. Quando completa cinco séculos de vida, constrói um ninho no alto de uma grande palmeira, feito de folhas de canela, do aromático nardo e da mirra avermelhada. Ali se acomoda e termina a vida entre perfumes. De suas cinzas, renasce uma pequena fênix, que viverá outros cinco séculos... Assim também é a Natureza e tudo o que nela existe e persiste.O que perguntavam os primeiros filósofosPor que os seres nascem e morrem? Por que os semelhantes dão origem aos semelhantes, de uma árvore nasce outra árvore, de um cão nasce outro cão, de uma mulher nasce uma criança? Por que os diferentes também parecem fazer surgir os diferentes: o dia parece fazer nascer a noite, o inverno parece fazer surgir a primavera, um objeto escuro clareia com o passar do tempo, um objeto claro escurece com o passar do tempo?Por que tudo muda? A criança se torna adulta, amadurece, envelhece e desaparece. A paisagem, cheia de flores na primavera, vai perdendo o verde e as cores no outono, até ressecar-se e retorcer-se no inverno. Por que um dia luminoso e ensolarado, de céu azul e brisa suave, repentinamente, se torna sombrio, coberto de nuvens, varrido por ventos furiosos, tomado pela tempestade, pelos raios e trovões?Por que a doença invade os corpos, rouba-lhes a cor, a força? Por que o alimento que antes me agradava, agora, que estou doente, me causa repugnância? Por que o som da música que antes me embalava, agora, que estou doente, parece um ruído insuportável?Por que o que parecia uno se multiplica em tantos outros? De uma só árvore, quantas flores e quantos frutos nascem! De uma só gata, quantos gatinhos nascem!Por que as coisas se tornam opostas ao que eram? A água do copo, tão transparente e de boa temperatura, torna-se uma barra dura e gelada, deixa de ser líquida e transparente para tornar-se sólida e acinzentada. O dia, que começa frio e gelado, pouco a pouco, se torna quente e cheio de calor.Por que nada permanece idêntico a si mesmo? De onde vêm os seres? Para

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onde vão, quando desaparecem? Por que se transformam? Por que se diferenciam uns dos outros? Mas também, por que tudo parece repetir-se? Depois do dia, a noite; depois da noite, o dia. Depois do inverno, a primavera, depois da primavera, o verão, depois deste, o outono e depois deste, novamente o inverno. De dia, o sol; à noite, a lua e as estrelas. Na primavera, o mar é tranqüilo e propício à navegação; no inverno, tempestuoso e inimigo dos homens. O calor leva as águas para o céu e as traz de volta pelas chuvas. Ninguém nasce adulto ou velho, mas sempre criança, que se torna adulto e velho.Foram perguntas como essas que os primeiros filósofos fizeram e para elas buscaram respostas.Sem dúvida, a religião, as tradições e os mitos explicavam todas essas coisas, mas suas explicações já não satisfaziam aos que interrogavam sobre as causas da mudança, da permanência, da repetição, da desaparição e do ressurgimento de todos os seres. Haviam perdido força explicativa, não convenciam nem satisfaziam a quem desejava conhecer a verdade sobre o mundo.O nascimento da FilosofiaOs historiadores da Filosofia dizem que ela possui data e local de nascimento: final do século VII e início do século VI antes de Cristo, nas colônias gregas da Ásia Menor (particularmente as que formavam uma região denominada Jônia), na cidade de Mileto. E o primeiro filósofo foi Tales de Mileto.Além de possuir data e local de nascimento e de possuir seu primeiro autor, a Filosofia também possui um conteúdo preciso ao nascer: é uma cosmologia. A palavra cosmologia é composta de duas outras: cosmos, que significa mundo ordenado e organizado, e logia, que vem da palavra logos, que significa pensamento racional, discurso racional, conhecimento. Assim, a Filosofia nasce como conhecimento racional da ordem do mundo ou da Natureza, donde, cosmologia.Apesar da segurança desses dados, existe um problema que, durante séculos, vem ocupando os historiadores da Filosofia: o de saber se a Filosofia - que é um fato especificamente grego - nasceu por si mesma ou dependeu de contribuições da sabedoria oriental (egípcios, assírios, persas, caldeus, babilônios) e da sabedoria de civilizações que antecederam à grega, na região que, antes de ser a Grécia ou a Hélade, abrigara as civilizações de Creta, Minos, Tirento e Micenas.Durante muito tempo, considerou-se que a Filosofia nascera por transformações que os gregos operaram na sabedoria oriental (egípcia, persa, caldéia e babilônica). Assim, filósofos como Platão e Aristóteles afirmavam a origem oriental da Filosofia. Os gregos, diziam eles, povo comerciante e navegante, descobriram, através das viagens, a agrimensura dos egípcios (usada para medir as terras, após as cheias do Nilo), a astrologia dos caldeus e dos babilônios (usada para prever grandes guerras, subida e queda de reis, catástrofes como peste, fome, furacões), as genealogias dos persas (usadas para dar continuidade às linhagens e dinastias dos governantes), os mistérios religiosos orientais referentes aos rituais de purificação da alma (para livrá-la da reencarnação contínua e garantir-lhe o descanso eterno), etc. A Filosofia teria nascido pelas transformações que os gregos impuseram a esses conhecimentos.Dessa forma, da agrimensura, os gregos fizeram nascer duas ciências: a aritmética e a geometria; da astrologia, fizeram surgir também duas ciências: a astronomia e a meteorologia; das genealogias, fizeram surgir mais uma outra ciência: a história; dos mistérios religiosos de purificação da alma, fizeram surgir as teorias filosóficas sobre a natureza e o destino da alma humana.

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Todos esses conhecimentos teriam propiciado o aparecimento da Filosofia, isto é, da cosmologia, de sorte que a Filosofia só teria podido nascer graças as saber oriental.Essa idéia de uma filiação oriental da Filosofia foi muito defendida oito séculos depois de seu nascimento (durante os séculos II e III depois de Cristo), no período do Império Romano. Quem a defendia? Os pensadores judaicos, como Filo de Alexandria, e os Padres da Igreja, como Eusébio de Cesaréia e Clemente de Alexandria.Por que defendiam a origem oriental da Filosofia grega? Pelo seguinte motivo: a Filosofia grega tornara-se, em toda a Antigüidade clássica, e para os poderosos da época, os romanos, a forma superior ou mais elevada do pensamento e da moral.Os judeus, para valorizar seu pensamento, desejavam que a Filosofia tivesse uma origem oriental, dizendo que o pensamento de filósofos importantes, como Platão, tinha surgido no Egito, onde se originara o pensamento de Moisés, de modo que havia uma ligação entre a Filosofia grega e a Bíblia.Os Padres da Igreja, por sua vez, queriam mostrar que os ensinamentos de Jesus eram elevados e perfeitos, não eram superstição, nem primitivos e incultos, e por isso mostravam que os filósofos gregos estavam filiados a correntes de pensamento místico e oriental e, dessa maneira, estariam próximos do cristianismo, que é uma religião oriental.No entanto, nem todos aceitaram a tese chamada “orientalista”, e muitos, sobretudo no século XIX da nossa era, passaram a falar na Filosofia como sendo o “milagre grego”.Com a palavra “milagre” queriam dizer várias coisas:● que a Filosofia surgiu inesperada e espantosamente na Grécia, sem que nada anterior a preparasse;● que a Filosofia grega foi um acontecimento espontâneo, único e sem par, como é próprio de um milagre;● que os gregos foram um povo excepcional, sem nenhum outro semelhante a eles, nem antes e nem depois deles, e por isso somente eles poderiam ter sido capazes de criar a Filosofia, como foram os únicos a criar as ciências e a dar às artes uma elevação que nenhum outro povo conseguiu, nem antes e nem depois deles.Nem oriental, nem milagreDesde o final do século XIX da nossa era e durante o século XX, estudos históricos, arqueológicos, lingüísticos, literários e artísticos corrigiram os exageros das duas teses, isto é, tanto a redução da Filosofia à sua origem oriental, quanto o “milagre grego”.Retirados os exageros do orientalismo, percebe-se que, de fato, a Filosofia tem dívidas com a sabedoria dos orientais, não só porque as viagens colocaram os gregos em contato com os conhecimentos produzidos por outros povos (sobretudo os egípcios, persas, babilônios, assírios e caldeus), mas também porque os dois maiores formadores da cultura grega antiga, os poetas Homero e Hesíodo, encontraram nos mitos e nas religiões dos povos orientais, bem como nas culturas que precederam a grega, os elementos para elaborar a mitologia grega, que, depois, seria transformada racionalmente pelos filósofos.Assim, os estudos recentes mostraram que mitos, cultos religiosos, instrumentos musicais, dança, música, poesia, utensílios domésticos e de trabalho, formas de habitação, formas de parentesco e formas de organização tribal dos gregos foram resultado de contatos profundos com as culturas mais avançadas do Oriente e com a herança deixada pelas culturas que

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antecederam a grega, nas regiões onde ela se implantou.Esses mesmos estudos apontaram, porém, que, se nos afastarmos dos exageros da idéia de um “milagre grego”, podemos perceber o que havia de verdadeiro nessa tese. De fato, os gregos imprimiram mudanças de qualidade tão profundas no que receberam do Oriente e das culturas precedentes, que até pareceria terem criado sua própria cultura a partir de si mesmos. Dessas mudanças, podemos mencionar quatro que nos darão uma idéia da originalidade grega:1. Com relação aos mitos: quando comparamos os mitos orientais, cretenses, micênicos, minóicos e os que aparecem nos poetas Homero e Hesíodo, vemos que eles retiraram os aspectos apavorantes e monstruosos dos deuses e do início do mundo; humanizaram os deuses, divinizaram os homens; deram racionalidade a narrativas sobre as origens das coisas, dos homens, das instituições humanas (como o trabalho, as leis, a moral);2. Com relação aos conhecimentos: os gregos transformaram em ciência (isto é, num conhecimento racional, abstrato e universal) aquilo que eram elementos de uma sabedoria prática para o uso direto na vida.Assim, transformaram em matemática (aritmética, geometria, harmonia) o que eram expedientes práticos para medir, contar e calcular; transformaram em astronomia (conhecimento racional da natureza e do movimento dos astros) aquilo que eram práticas de adivinhação e previsão do futuro; transformaram em medicina (conhecimento racional sobre o corpo humano, a saúde e a doença) aquilo que eram práticas de grupos religiosos secretos para a cura misteriosa das doenças. E assim por diante;3. Com relação à organização social e política: os gregos não inventaram apenas a ciência ou a Filosofia, mas inventaram também a política. Todas as sociedades anteriores a eles conheciam e praticavam a autoridade e o governo. Mas, por que não inventaram a política propriamente dita?Nas sociedades orientais e não-gregas, o poder e o governo eram exercidos como autoridade absoluta da vontade pessoal e arbitrária de um só homem ou de um pequeno grupo de homens que decidiam sobre tudo, sem consultar a ninguém e sem justificar suas decisões para ninguém.Os gregos inventaram a política (palavra que vem de polis, que, em grego, significa cidade organizada por leis e instituições) porque instituíram práticas pelas quais as decisões eram tomadas a partir de discussões e debates públicos e eram adotadas ou revogadas por voto em assembléias públicas; porque estabeleceram instituições públicas (tribunais, assembléias, separação entre autoridade do chefe da família e autoridade pública, entre autoridade político-militar e autoridade religiosa) e sobretudo porque criaram a idéia da lei e da justiça como expressões da vontade coletiva pública e não como imposição da vontade de um só ou de um grupo, em nome de divindades.Os gregos criaram a política porque separaram o poder político e duas outras formas tradicionais de autoridade: a do chefe de família e a do sacerdote ou mago;4. Com relação ao pensamento: diante da herança recebida, os gregos inventaram a idéia ocidental da razão como um pensamento sistemático que segue regras, normas e leis de valor universal (isto é, válidas em todos os tempos e lugares. Assim, por exemplo, em qualquer tempo e lugar 2 + 2 serão sempre 4; o triângulo sempre terá três lados; o Sol sempre será maior do que a Terra, mesmo que ele pareça menor do que ela, etc.).Mito e FilosofiaResolvido esse problema, agora temos um outro que também tem ocupado muito os estudiosos. O novo problema pode ser assim formulado: a Filosofia nasceu realizando uma transformação gradual sobre os mitos gregos ou

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nasceu por uma ruptura radical com os mitos?O que é um mito?Um mito é uma narrativa sobre a origem de alguma coisa (origem dos astros, da Terra, dos homens, das plantas, dos animais, do fogo, da água, dos ventos, do bem e do mal, da saúde e da doença, da morte, dos instrumentos de trabalho, das raças, das guerras, do poder, etc.).A palavra mito vem do grego, mythos, e deriva de dois verbos: do verbo mytheyo (contar, narrar, falar alguma coisa para outros) e do verbo mytheo (conversar, contar, anunciar, nomear, designar). Para os gregos, mito é um discurso pronunciado ou proferido para ouvintes que recebem como verdadeira a narrativa, porque confiam naquele que narra; é uma narrativa feita em público, baseada, portanto, na autoridade e confiabilidade da pessoa do narrador. E essa autoridade vem do fato de que ele ou testemunhou diretamente o que está narrando ou recebeu a narrativa de quem testemunhou os acontecimentos narrados.Quem narra o mito? O poeta-rapsodo. Quem é ele? Por que tem autoridade? Acredita-se que o poeta é um escolhido dos deuses, que lhe mostram os acontecimentos passados e permitem que ele veja a origem de todos os seres e de todas as coisas para que possa transmiti-la aos ouvintes. Sua palavra - o mito - é sagrada porque vem de uma revelação divina. O mito é, pois, incontestável e inquestionável.Como o mito narra a origem do mundo e de tudo o que nele existe?De três maneiras principais:1. Encontrando o pai e a mãe das coisas e dos seres, isto é, tudo o que existe decorre de relações sexuais entre forças divinas pessoais. Essas relações geram os demais deuses: os titãs (seres semi-humanos e semidivinos), os heróis (filhos de um deus com uma humana ou de uma deusa com um humano), os humanos, os metais, as plantas, os animais, as qualidades, como quente-frio, seco-úmido, claro-escuro, bom-mau, justo-injusto, belo-feio, certo-errado, etc.A narração da origem é, assim, uma genealogia, isto é, narrativa da geração dos seres, das coisas, das qualidades, por outros seres, que são seus pais ou antepassados.Tomemos um exemplo da narrativa mítica.Observando que as pessoas apaixonadas estão sempre cheias de ansiedade e de plenitude, inventam mil expedientes para estar com a pessoa amada ou para seduzi-la e também serem amadas, o mito narra a origem do amor, isto é, o nascimento do deus Eros (que conhecemos mais com o nome de Cupido):Houve uma grande festa entre os deuses. Todos foram convidados, menos a deusa Penúria, sempre miserável e faminta. Quando a festa acabou, Penúria veio, comeu os restos e dormiu com o deus Poros (o astuto engenhoso). Dessa relação sexual, nasceu Eros (ou Cupido), que, como sua mãe, está sempre faminto, sedento e miserável, mas, como seu pai, tem mil astúcias para se satisfazer e se fazer amado. Por isso, quando Eros fere alguém com sua flecha, esse alguém se apaixona e logo se sente faminto e sedento de amor, inventa astúcias para ser amado e satisfeito, ficando ora maltrapilho e semimorto, ora rico e cheio de vida.2. Encontrando uma rivalidade ou uma aliança entre os deuses que faz surgir alguma coisa no mundo. Nesse caso, o mito narra ou uma guerra entre as forças divinas, ou uma aliança entre elas para provocar alguma coisa no mundo dos homens.O poeta Homero, na Ilíada, que narra a guerra de Tróia, explica por que, em certas batalhas, os troianos eram vitoriosos e, em outras, a vitória cabia aos

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gregos. Os deuses estavam divididos, alguns a favor de um lado e outros a favor do outro. A cada vez, o rei dos deuses, Zeus, ficava com um dos partidos, aliava-se com um grupo e fazia um dos lados - ou os troianos ou os gregos - vencer uma batalha.A causa da guerra, aliás, foi uma rivalidade entre as deusas. Elas apareceram em sonho para o príncipe troiano Paris, oferecendo a ele seus dons e ele escolheu a deusa do amor, Afrodite. As outras deusas, enciumadas, o fizeram raptar a grega Helena, mulher do general grego Menelau, e isso deu início à guerra entre os humanos.3. Encontrando as recompensas ou castigos que os deuses dão a quem os desobedece ou a quem os obedece.Como o mito narra, por exemplo, o uso do fogo pelos homens? Para os homens, o fogo é essencial, pois com ele se diferenciam dos animais, porque tanto passam a cozinhar os alimentos, a iluminar caminhos na noite, a se aquecer no inverno quanto podem fabricar instrumentos de metal para o trabalho e para a guerra.Um titã, Prometeu, mais amigo dos homens do que dos deuses, roubou uma centelha de fogo e a trouxe de presente para os humanos. Prometeu foi castigado (amarrado num rochedo para que as aves de rapina, eternamente, devorassem seu fígado) e os homens também. Qual foi o castigo dos homens?Os deuses fizeram uma mulher encantadora, Pandora, a quem foi entregue uma caixa que conteria coisas maravilhosas, mas nunca deveria ser aberta. Pandora foi enviada aos humanos e, cheia de curiosidade e querendo dar a eles as maravilhas, abriu a caixa. Dela saíram todas as desgraças, doenças, pestes, guerras e, sobretudo, a morte. Explica-se, assim, a origem dos males no mundo.Vemos, portanto, que o mito narra a origem das coisas por meio de lutas, alianças e relações sexuais entre forças sobrenaturais que governam o mundo e o destino dos homens. Como os mitos sobre a origem do mundo são genealogias, diz-se que são cosmogonias e teogonias.A palavra gonia vem de duas palavras gregas: do verbo gennao (engendrar, gerar, fazer nascer e crescer) e do substantivo genos (nascimento, gênese, descendência, gênero, espécie). Gonia, portanto, quer dizer: geração, nascimento a partir da concepção sexual e do parto. Cosmos, como já vimos, quer dizer mundo ordenado e organizado. Assim, a cosmogonia é a narrativa sobre o nascimento e a organização do mundo, a partir de forças geradoras (pai e mãe) divinas.Teogonia é uma palavra composta de gonia e theós, que, em grego, significa: as coisas divinas, os seres divinos, os deuses. A teogonia é, portanto, a narrativa da origem dos deuses, a partir de seus pais e antepassados.Qual é a pergunta dos estudiosos? É a seguinte: A Filosofia, ao nascer, é, como já dissemos, uma cosmologia, uma explicação racional sobre a origem do mundo e sobre as causas das transformações e repetições das coisas; para isso, ela nasce de uma transformação gradual dos mitos ou de uma ruptura radical com os mitos? Continua ou rompe com a cosmogonia e a teogonia?Duas foram as respostas dadas.A primeira delas foi dada nos fins do século XIX e começo do século XX, quando reinava um grande otimismo sobre os poderes científicos e capacidades técnicas do homem. Dizia-se, então, que a Filosofia nasceu por uma ruptura radical com os mitos, sendo a primeira explicação científica da realidade produzida pelo Ocidente.A segunda resposta foi dada a partir de meados do século XX, quando os estudos dos antropólogos e dos historiadores mostraram a importância dos

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mitos na organização social e cultural das sociedades e como os mitos estão profundamente entranhados nos modos de pensar e de sentir de uma sociedade. Por isso, dizia-se que os gregos, como qualquer outro povo, acreditavam em seus mitos e que a Filosofia nasceu, vagarosa e gradualmente, do interior dos próprios mitos, como uma racionalização deles.Atualmente consideram-se as duas respostas exageradas e afirma-se que a Filosofia, percebendo as contradições e limitações dos mitos, foi reformulando e racionalizando as narrativas míticas, transformando-as numa outra coisa, numa explicação inteiramente nova e diferente.Quais são as diferenças entre Filosofia e mito? Podemos apontar três como as mais importantes:1. O mito pretendia narrar como as coisas eram ou tinham sido no passado imemorial, longínquo e fabuloso, voltando-se para o que era antes que tudo existisse tal como existe no presente. A Filosofia, ao contrário, se preocupa em explicar como e por que, no passado, no presente e no futuro (isto é, na totalidade do tempo), as coisas são como são;2. O mito narrava a origem através de genealogias e rivalidades ou alianças entre forças divinas sobrenaturais e personalizadas, enquanto a Filosofia, ao contrário, explica a produção natural das coisas por elementos e causas naturais e impessoais.O mito falava em Urano, Ponto e Gaia; a Filosofia fala em céu, mar e terra. O mito narra a origem dos seres celestes (os astros), terrestres (plantas, animais, homens) e marinhos pelos casamentos de Gaia com Urano e Ponto. A Filosofia explica o surgimento desses seres por composição, combinação e separação dos quatro elementos - úmido, seco, quente e frio, ou água, terra, fogo e ar.3. O mito não se importava com contradições, com o fabuloso e o incompreensível, não só porque esses eram traços próprios da narrativa mítica, como também porque a confiança e a crença no mito vinham da autoridade religiosa do narrador. A Filosofia, ao contrário, não admite contradições, fabulação e coisas incompreensíveis, mas exige que a explicação seja coerente, lógica e racional; além disso, a autoridade da explicação não vem da pessoa do filósofo, mas da razão, que é a mesma em todos os seres humanos.Condições históricas para o surgimento da FilosofiaResolvido esse problema, temos ainda um último a solucionar: O que tornou possível o surgimento da Filosofia na Grécia no final do século VII e no início do século VI antes de Cristo? Quais as condições materiais, isto é, econômicas, sociais, políticas e históricas que permitiram o surgimento da Filosofia?Podemos apontar como principais condições históricas para o surgimento da Filosofia na Grécia:● as viagens marítimas, que permitiram aos gregos descobrir que os locais que os mitos diziam habitados por deuses, titãs e heróis eram, na verdade, habitados por outros seres humanos; e que as regiões dos mares que os mitos diziam habitados por monstros e seres fabulosos não possuíam nem monstros nem seres fabulosos. As viagens produziram o desencantamento ou a desmistificação do mundo, que passou, assim, a exigir uma explicação sobre sua origem, explicação que o mito já não podia oferecer;● a invenção do calendário, que é uma forma de calcular o tempo segundo as estações do ano, as horas do dia, os fatos importantes que se repetem, revelando, com isso, uma capacidade de abstração nova, ou uma percepção do tempo como algo natural e não como um poder divino incompreensível;

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● a invenção da moeda, que permitiu uma forma de troca que não se realiza através das coisas concretas ou dos objetos concretos trocados por semelhança, mas uma troca abstrata, uma troca feita pelo cálculo do valor semelhante das coisas diferentes, revelando, portanto, uma nova capacidade de abstração e de generalização;● o surgimento da vida urbana, com predomínio do comércio e do artesanato, dando desenvolvimento a técnicas de fabricação e de troca, e diminuindo o prestígio das famílias da aristocracia proprietária de terras, por quem e para quem os mitos foram criados; além disso, o surgimento de uma classe de comerciantes ricos, que precisava encontrar pontos de poder e de prestígio para suplantar o velho poderio da aristocracia de terras e de sangue (as linhagens constituídas pelas famílias), fez com que se procurasse o prestígio pelo patrocínio e estímulo às artes, às técnicas e aos conhecimentos, favorecendo um ambiente onde a Filosofia poderia surgir;● a invenção da escrita alfabética, que, como a do calendário e a da moeda, revela o crescimento da capacidade de abstração e de generalização, uma vez que a escrita alfabética ou fonética, diferentemente de outras escritas - como, por exemplo, os hieróglifos dos egípcios ou os ideogramas dos chineses -, supõe que não se represente uma imagem da coisa que está sendo dita, mas a idéia dela, o que dela se pensa e se transcreve;● a invenção da política, que introduz três aspectos novos e decisivos para o nascimento da Filosofia:1. A idéia da lei como expressão da vontade de uma coletividade humana que decide por si mesma o que é melhor para si e como ela definirá suas relações internas. O aspecto legislado e regulado da cidade - da polis - servirá de modelo para a Filosofia propor o aspecto legislado, regulado e ordenado do mundo como um mundo racional.2. O surgimento de um espaço público, que faz aparecer um novo tipo de palavra ou de discurso, diferente daquele que era proferido pelo mito. Neste, um poeta-vidente, que recebia das deusas ligadas à memória (a deusa Mnemosyne, mãe das Musas, que guiavam o poeta) uma iluminação misteriosa ou uma revelação sobrenatural, dizia aos homens quais eram as decisões dos deuses que eles deveriam obedecer.Agora, com a polis, isto é, a cidade política, surge a palavra como direito de cada cidadão de emitir em público sua opinião, discuti-la com os outros, persuadi-los a tomar uma decisão proposta por ele, de tal modo que surge o discurso político como a palavra humana compartilhada, como diálogo, discussão e deliberação humana, isto é, como decisão racional e exposição dos motivos ou das razões para fazer ou não fazer alguma coisa.A política, valorizando o humano, o pensamento, a discussão, a persuasão e a decisão racional, valorizou o pensamento racional e criou condições para que surgisse o discurso ou a palavra filosófica.3. A política estimula um pensamento e um discurso que não procuram ser formulados por seitas secretas dos iniciados em mistérios sagrados, mas que procuram, ao contrário, ser públicos, ensinados, transmitidos, comunicados e discutidos. A idéia de um pensamento que todos podem compreender e discutir, que todos podem comunicar e transmitir, é fundamental para a Filosofia.Principais características da Filosofia nascenteO pensamento filosófico em seu nascimento tinha como traços principais:● tendência à racionalidade, isto é, a razão e somente a razão, com seus princípios e regras, é o critério da explicação de alguma coisa;● tendência a oferecer respostas conclusivas para os problemas, isto é,

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colocado um problema, sua solução é submetida à análise, à crítica, à discussão e à demonstração, nunca sendo aceita como uma verdade, se não for provado racionalmente que é verdadeira;● exigência de que o pensamento apresente suas regras de funcionamento, isto é, o filósofo é aquele que justifica suas idéias provando que segue regras universais do pensamento. Para os gregos, é uma lei universal do pensamento que a contradição indica erro ou falsidade. Uma contradição acontece quando afirmo e nego a mesma coisa sobre uma mesma coisa (por exemplo: “Pedro é um menino e não um menino”, “A noite é escura e clara”, “O infinito não tem limites e é limitado”). Assim, quando uma contradição aparecer numa exposição filosófica, ela deve ser considerada falsa;● recusa de explicações preestabelecidas e, portanto, exigência de que, para cada problema, seja investigada e encontrada a solução própria exigida por ele;● tendência à generalização, isto é, mostrar que uma explicação tem validade para muitas coisas diferentes porque, sob a variação percebida pelos órgãos de nossos sentidos, o pensamento descobre semelhanças e identidades.Por exemplo, para meus olhos, meu tato e meu olfato, o gelo é diferente da neblina, que é diferente do vapor de uma chaleira, que é diferente da chuva, que é diferente da correnteza de um rio. No entanto, o pensamento mostra que se trata sempre de um mesmo elemento (a água), passando por diferentes estados e formas (líquido, sólido, gasoso), por causas naturais diferentes (condensação, liquefação, evaporação).Reunindo semelhanças, o pensamento conclui que se trata de uma mesma coisa que aparece para nossos sentidos de maneiras diferentes, e como se fossem coisas diferentes. O pensamento generaliza porque abstrai (isto é, separa e reúne os traços semelhantes), ou seja, realiza uma síntese.E o contrário também ocorre. Muitas vezes nossos órgãos dos sentidos nos fazem perceber coisas diferentes como se fossem a mesma coisa, e o pensamento demonstrará que se trata de uma coisa diferente sob a aparência da semelhança.No ano de 1992, no Brasil, os jovens estudantes pintaram a cara com as cores da bandeira nacional e saíram às ruas para exigir o impedimento do presidente da República.Logo depois, os candidatos a prefeituras municipais contrataram jovens para aparecer na televisão com a cara pintada, defendendo tais candidaturas. A seguir, as Forças Armadas brasileiras, para persuadir jovens a servi-las, contrataram jovens caras-pintadas para aparecer como soldados, marinheiros e aviadores. Ao mesmo tempo, várias empresas, pretendendo vender seus produtos aos jovens, contrataram artistas jovens para, de cara pintada, fazer a propaganda de seus produtos.Aparentemente, teríamos sempre a mesma coisa - os jovens rebeldes e conscientes, de cara pintada, símbolo da esperança do País. No entanto, o pensamento pode mostrar que, sob a aparência da semelhança percebida, estão diferenças, pois os primeiros caras-pintadas fizeram um movimento político espontâneo, os segundos fizeram propaganda política para um candidato (e receberam para isso), os terceiros tentaram ajudar as Forças Armadas a aparecer como divertidas e juvenis, e os últimos, mediante remuneração, estavam transferindo para produtos industriais (roupas, calçados, vídeos, margarinas, discos, iogurtes) um símbolo político inteiramente despolitizado e sem nenhuma relação com sua origem.Separando as diferenças, o pensamento realiza, nesse caso, uma análise. 

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1. Parte I GÊNESE DA FILOSOFIA ENTRE OS GREGOS

 

A filosofia foi criação do gênio helênico: não derivou aos gregos a partir de estímulos precisos tomados das civilizações orientais; do Oriente, porém, vieram alguns conhecimentos científicos, astronômicos e matemático geométricos, que o grego soube repensar e recriar em dimensão teórica, enquanto os orientais os concebiam em sentido prevalentemente prático. Assim, se os egípcios desenvolveram e transmitiram a arte do cálculo, os gregos, particularmente a partir dos Pitagóricos, elaboraram uma teoria sistemática do número; e se os babilônios fizeram uso de observações astronômicas particulares para traçar as rotas para os navios, os gregos as transformaram em teoria astronômica orgânica.

 

I. A filosofia como criação do gênio helênico

A filosofia, como termo ou conceito, é considerada pela quase totalidade dos estudiosos como criação própria do gênio dos gregos. Efetivamente, enquanto todos os outros componentes da civilização grega encontram correspondência junto aos demais povos do Oriente que alcançaram elevado nível de civilização antes dos gregos (crenças e cultos religiosos, manifestações artísticas de natureza diversa, conhecimentos e habilidades técnicas de vários tipos, instituições políticas, organizações militares etc.). No que se refere à filosofia encontramo-nos, ao invés, diante de um fenômeno tão novo que não só não encontra correspondência precisa junto a esses povos, mas tampouco nada tem de estreita e especificamente análogo.

Dessa forma, a superioridade dos gregos em relação aos outros povos nesse ponto específico é de caráter não puramente quantitativo, mas qualitativo, pois o que eles criaram, instituindo a filosofia, constitui novidade absoluta.

Quem não levar isso em conta não poderá compreender por que, sob o impulso dos gregos, a civilização ocidental tomou uma direção completamente diferente da oriental. Em particular, não poderá compreender por que motivo os orientais, quando quiseram se beneficiar da ciência ocidental e de seus resultados, tiveram de adotar também algumas categorias da lógica ocidental. Com efeito, a ciência não e possível em qualquer cultura. Há idéias que tornam estruturalmente impossível o nascimento e o desenvolvimento de determinadas concepções, e até mesmo idéias que impedem toda a ciência em seu conjunto, ao menos como hoje a conhecemos.

Pois bem, por causa de suas categorias racionais, foi a filosofia que possibilitou o nascimento da ciência e, em certo sentido, a gerou. E reconhecer isso significa também reconhecer aos gregos o mérito de terem dado uma contribuição

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verdadeiramente excepcional à história da civilização.

2. A impossibilidade da derivação da filosofia do Oriente

Naturalmente, sobretudo entre os orientalistas, não faltaram tentativas de situar no Oriente a origem da filosofia, especialmente com base na observação de analogias genéricas constatáveis entre as concepções dos primeiros filósofos gregos e certas idéias próprias da sabedoria oriental. Todavia nenhuma dessas tentativas teve êxito. Já a partir de fins do século dezenove, a crítica rigorosa produziu uma série de provas verdadeiramente esmagadoras contra a tese de que a filosofia dos gregos tivesse derivado do Oriente.

a)      Na época clássica, nenhum dos filósofos ou dos historiadores gregos acena minimamente à pretensa origem oriental da filosofia.

b)      Está historicamente demonstrado que os povos orientais, com os quais os gregos tiveram contato, possuíam de fato uma forma de "sabedoria" feita de convicções religiosas, mitos teológicos e "cosmogônicos", mas não uma ciência filosófica baseada na razão pura (no logos, como dizem os gregos). Ou seja, possuíam um tipo de sabedoria análoga à que os próprios gregos possuíam antes de criar a filosofia.

c)       Em todo caso, não temos conhecimento da utilização, por parte dos gregos, de qualquer escrito oriental ou de traduções desses textos. Antes de Alexandre, não resulta que tenham chegado à Grécia doutrinas dos hindus ou de outros povos da Ásia, como também que, na época em que surgiu a filosofia na Grécia, houvesse gregos em condições de compreender o discurso de um sacerdote egípcio ou de traduzir livros egípcios.

d)      Admitindo que algumas idéias dos filósofos gregos possam ter antecedentes precisos na sabedoria oriental (mas isso ainda precisa ser comprovado), podendo assim dela derivar, isso não mudaria a substância da questão que estamos discutindo. Com efeito, a partir do momento em que nasceu na Grécia, a filosofia representou nova forma de expressão espiritual, de tal modo que, ao acolher conteúdos que eram fruto de outras formas de vida espiritual, ela os transformava estruturalmente, dando-lhes forma rigorosamente lógica.

3. Os conhecimentos científicos egípcios e caldeus e a transformação operada pelos gregos

Os gregos, ao invés, adotaram dos orientais alguns conhecimentos científicos. Com efeito:

a)    dos egípcios derivaram alguns conhecimentos matemático geométricos;b)    dos babilônios, alguns conhecimentos de astronomia.

Todavia, também em relação a esses conhecimentos precisamos fazer alguns esclarecimentos importantes, indispensáveis para compreender a mentalidade grega e a mentalidade ocidental que dela derivou.

a)      Ao que sabemos, a matemática egípcia consistia de modo predominante no conhecimento de operações de cálculo aritmético com objetivos práticos, como, por exemplo, o modo de medir certa quantidade de

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gêneros alimentícios, ou então de dividir determinado número de coisas entre um número dado de pessoas. Assim, analogamente, a geometria também devia ter caráter predominantemente prático, respondendo, por exemplo, à necessidade de medir novamente os campos depois das inundações periódicas do Nilo, ou à necessidade de projeção e construção das pirâmides. É claro que, ao obterem tais conhecimentos matemático-geométricos, os egípcios desenvolveram uma atividade da razão atividade, aliás, bastante considerável. Mas, reelaborados pelos gregos, tais conhecimentos se tornaram algo muito mais consistente, realizando verdadeiro salto qualitativo. Com efeito, sobretudo por intermédio de Pitágoras e dos Pitagóricos, os gregos transformaram aquelas noções em uma teoria geral e sistemática dos números e das figuras geométricas, indo muito além dos objetivos predominantemente práticos aos quais os egípcios parecem ter se limitado.

b)      O mesmo vale para as noções astronômicas. Os babilônios as elaboraram com objetivos predominantemente práticos, ou seja, para fazer horóscopos e previsões. Mas os gregos as purificaram e cultivaram com fins predominantemente cognoscitivos, por causa do espírito "teorético" que visava ao amor do conhecimento puro, o mesmo espírito que, como veremos, criou e nutriu a filosofia. No entanto, antes de definir em que consiste exatamente a filosofia e o espírito filosófico dos gregos, devemos desenvolver ainda algumas observações preliminares essenciais.

 

 2. Parte II

II. As formas da vida grega que prepararam o nascimento da filosofia

 

A filosofia surgiu na Grécia porque justamente na Grécia formou se uma temperatura espiritual particular e um clima cultural e político favoráveis.

As fontes das quais derivou a filosofia helênica foram a poesia, a religião, as condições sociopolíticas adequadas.

1) A poesia antecipou o gosto pela harmonia, pela proporção e pela justa medida (Homero, os Líricos) e um modo particular de fornecer explicações remontando às causas, mesmo que em nível fantástico poético (em particular com a Teogonía de Hesíodo).

2) A religião grega se distinguiu em religião pública (inspirada em Homero e Hesíodo) e em religião dos mistérios, em particular a órfica. A religião pública considera os deuses como forças naturais ampliadas na dimensão do divino, ou como aspectos característicos do homem sublimados. A religião órfica considera o homem de modo dualista: como alma imortal, concebida como demônio, que por uma culpa originária foi condenada a viver em um corpo, entendido como tumba e prisão. Do Orfismo deriva a moral que põe limites precisos a algumas tendências

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irracionais do homem. O que agrupa essas duas formas de religião é a ausência de dogmas fixos e vinculantes em sentido absoluto, de textos sagrados revelados e de intérpretes e guardiões desta revelação (ou seja, sacerdotes preparados para essas tarefas precisas). Portal motivo, o pensamento filosófico gozou, desde o início, de ampla liberdade de expressão, com poucas exceções.

3)Também as condições socioeconômicas, conforme dissemos, favoreceram o nascimento da filosofia na Grécia, com suas características peculiares. Com efeito, os gregos alcançaram certo bem estar e notável liberdade política, a começar das colônias do Oriente e do Ocidente. Além disso, desenvolveu se forte senso de pertença à Cidade, até o ponto de identificar o "indivíduo" com o "cidadão", e de ligar estreitamente a ética com a política.

1. Os poemas homéricos

Os estudiosos estão de acordo ao afirmar que, para poder compreender a filosofia de um povo e de uma civilização, é necessário fazer referência: à arte; à religião; às condições sociopolíticas do povo em questão.

1)    Com efeito, a grande arte, de modo mítico e fantástico, ou seja, mediante a intuição e a imaginação, tende a alcançar objetivos que também são próprios da filosofia.

2)    Analogamente, por meio da fé, a religião tende a alcançar certos objetivos que a filosofia procura atingir com os conceitos e com a razão.

3)    Não menos importantes (e hoje se insiste muito nesse ponto) são as condições socioeconômicas e políticas, que freqüentemente condicionam o nascimento de determinadas idéias e que, de modo particular no mundo grego, ao criar as primeiras formas de liberdade institucionalizada e de democracia, tornaram possível precisamente o nascimento da filosofia, que se alimenta essencialmente da liberdade.

Antes do nascimento da filosofia, os poetas tinham importância extraordinária na educação e na formação espiritual do homem grego, muito mais do que tiveram entre outros povos. O helenismo inicial buscou alimento espiritual de modo predominante nos poemas homéricos, ou seja, na Ilíada e na Odisséia (que, conforme se sabe, exerceram nos gregos influência análoga à que a Bíblia exerceu entre os hebreus, uma vez que não havia textos sagrados na Grécia), em Hesíodo e nos poetas gnômicos dos séculos VII e VI a.C.

Ora, os poemas homéricos apresentam algumas peculiaridades que os diferenciam de poemas que se encontram na origem da civilização de outros povos, pois já contêm algumas das características do espírito grego que resultarão essenciais para a criação da filosofia.

a)    Com efeito, Homero tem grande senso da harmonia, da proporção, do limite e da medida;

b)    não se limita a narrar uma série de fatos, mas também pesquisa suas causas e razões (ainda que em nível mítico fantástico);

c)     procura de diversos modos apresentar a realidade em sua inteireza, ainda que de forma mítica (deuses e homens, céu e terra, guerra e paz, bem e mal, alegria e dor, totalidade dos valores que regem a vida do homem).

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Para os gregos também foi muito importante Hesíodo com sua Teogonia, que relata o nascimento de todos os deuses. E, como muitos deuses coincidem com partes do universo e com fenômenos do cosmo, a teogonia torna se também cosmogonia, ou seja, explicação mítico poética e fantástica da gênese do universo e dos fenômenos cósmicos, a partir do Caos originário, que foi o primeiro a se gerar. Esse poema abriu o caminho para a posterior cosmologia filosófica, que, ao invés de usar a fantasia, buscará com a razão o "princípio primeiro" do qual tudo se gerou. O próprio Hesíodo, com seu outro poema “As obras e os dias” mas sobretudo os poetas posteriores, imprimiram na mentalidade grega alguns princípios que seriam de grande importância para a constituição da ética filosófica e do pensamento filosófico antigo em geral. A justiça é exaltada como valor supremo em muitos poetas e se tornará até conceito ontológico (referente ao ser, isto é, fundamental), além de moral e político, em muitos filósofos e especialmente em Platão.

Os poetas líricos fixaram de modo estável outro conceito: a noção do limite, ou seja, a idéia de nem demasiadamente muito nem demasiadamente pouco, isto é, o conceito da justa medida, que constitui a conotação mais peculiar do espírito grego e o centro do pensamento filosófico clássico.

Recordemos, finalmente, uma sentença, atribuída a um dos antigos sábios e gravada no frontispício do templo de Delfos, consagrado a Apolo: "Conhece a ti mesmo." Essa sentença, muito famosa entre os gregos, tornar se ia inclusive não apenas o mote do pensamento de Sócrates, mas também o principio basilar do saber filosófico grego até os últimos Neoplatônicos.

2. A religião pública e os mistérios órficos

2.1 As duas formas da religião grega

O segundo componente ao qual é preciso fazer referencia para compreender a gênese da filosofia grega, como já dissemos, é a religião. Todavia, quando se fala de re¬ligião grega, é necessário distinguir entre a religião pública, que tem o seu modelo na representação dos deuses e do culto que nos foi dada por Homero, e a religião dos mistérios. Há inúmeros elementos comuns entre essas duas formas de religiosidade (como, por exemplo, a concepção de base politeísta), mas também importantes diferenças que, em alguns pontos de destaque (como, por exemplo, na concepção do homem, do sentido de sua vida e de seu destino último), tornam se até verdadeiras antíteses.

Ambas as formas de religião são muito importantes para explicar o nascimento da filosofia, mas ao menos em alguns aspectos  sobretudo a segunda.

2.2 Alguns traços essenciais da religião pública

Para Homero e para Hesíodo, que constituem o ponto de referência das crenças próprias da religião pública, pode se dizer que tudo é divino, pois tudo o que acontece é explicado em função de intervenções dos deuses. Os fenômenos naturais são promovidos por numes: raios e relâmpagos são arremessados por Zeus do alto do Olimpo; as ondas do mar são provocadas pelo tridente de Poseidon; o sol é levado pelo áureo carro de Apolo, e assim por diante.

Também a vida social dos homens, a sorte das cidades, as guerras e a paz são

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imaginadas como vinculadas aos deuses de modo não acidental e, por vezes, até de modo essencial.

Todavia, quem são esses deuses? Como os estudiosos de há muito reconheceram e evidenciaram, esses deuses são forças naturais personificadas em formas humanas idealizadas, ou então são forças e aspectos do homem sublimados e fixados em esplêndidas figuras antropomórficas. (Além dos exemplos já apresentados, recordemos que Zeus é a personificação da justiça; Atena, da inteligência; Afrodite, do amor, e assim por diante.)

Esses deuses são, pois, homens amplificados e idealizados, e, portanto, diferentes do homem comum apenas por quantidade e não por qualidade. E por isso que os estudiosos classificam a religião pública dos gregos como uma forma de "naturalismo", uma vez que ela pede ao homem não propriamente que ele mude sua natureza, ou seja, que se eleve acima de si mesmo; ao contrário, pede que siga sua própria natureza. Fazer em honra dos deuses o que está em conformidade com a própria natureza é tudo o que se pede ao homem. E, da mesma forma que a religião pública grega foi "naturalista", também a primeira filosofia grega foi "naturalista". A referência à "natureza" continuou sendo uma constante do pensamento grego ao longo de todo o seu desenvolvimento histórico.

2.3 O orfismo e suas crenças essenciais

Contudo, nem todos os gregos consideravam suficiente a religião pública e, por isso, em círculos restritos, desenvolveram-se os "mistérios", com as próprias crenças específicas (embora inseridas no quadro geral do politeísmo) e com as próprias práticas. Entre os mistérios, porém, os que mais influíram na filosofia grega foram os mistérios órficos, e destes devemos dizer brevemente algumas coisas.

O Orfismo e os órficos derivam seu nome do poeta trácio Orfeu, seu suposto fundador, cujos traços históricos são inteiramente cobertos pela névoa do mito.

O Orfismo é particularmente importante porque, como os estudiosos modernos reconheceram, introduz na civilização grega novo esquema de crenças e nova interpretação da existência humana. Efetivamente, enquanto a concepção grega tradicional, a partir de Homero, considerava o homem como mortal, pondo na morte o fim total de sua existência, o Orfismo proclama a imortalidade da alma e concebe o homem conforme o esquema dualista que contrapõe o corpo à alma.

O núcleo das crenças órficas pode ser assim resumido:

a)    No homem hospeda-se um princípio divino, um demônio (alma) que caiu em um corpo por causa de uma culpa originária.

b)    Esse demônio não apenas preexiste ao corpo, mas também não morre com o corpo, pois está destinado a reencarnar se em corpos sucessivos, a fim de expiar aquela culpa originária.

c)     Com seus ritos e práticas, a "vida órfica" é a única em grau de pôr fim ao ciclo das reencarnações e de, assim, libertar a alma do corpo.

d)    Para quem se purificou (os iniciados nos mistérios órficos) há um prêmio no além (da mesma forma que há punições para os não iniciados).

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Em algumas lâminas órficas encontradas nos sepulcros de seguidores dessa seita, entre outras coisas, lêem-se estas palavras, que resumem o núcleo central da doutrina:

"Alegra-te, tu que sofreste a paixão: antes, não a havias sofrido. De homem, nasceste Deus"; "Feliz e bem aventurado, serás Deus ao invés de mortal"; "De homem nascerás Deus, pois derivas do divino".

Isso significa que o destino último do homem é o de "voltar a estar junto aos deuses". Com esse novo esquema de crenças, o homem via pela primeira vez a contraposição em si de dois princípios em contraste e luta: a alma (demônio) e o corpo (como tumba ou lugar de expiação da alma). Rompe se assim a visão naturalista; o homem compreende que algumas tendências ligadas ao corpo devem ser reprimidas, ao passo que a purificação do elemento divino em relação ao elemento corpóreo torna se o objetivo do viver.

Uma coisa deve se ter presente: sem o Orfismo não se explicaria Pitágoras, nem Heráclito, nem Empédocles e, sobretudo, não se explicaria uma parte essencial do pensamento de Platão e, depois, de toda a tradição que deriva de Platão; ou seja, não se explicaria grande parte da filosofia antiga, como veremos melhor mais adiante.

2.4 Falta de dogma e de seus guardiões na religião grega

Uma última observação é necessária. Os gregos não tiveram livros sagrados ou considerados fruto de revelação divina. Conseqüentemente, não tiveram uma dogmática (isto é, um núcleo doutrinal) fixa e imutável, Como vimos, os poetas constituíram se o veículo de difusão de suas crenças religiosas.

Além disso, (e esta é outra conseqüência da falta de livros sagrados e de uma dogmática fixa), na Grécia também não pode subsistir uma casta sacerdotal guardiã do dogma (os sacerdotes tiveram escassa relevância e escassíssimo poder, porque não tiveram a prerrogativa de conservar dogmas, nem a exclusividade de receber oferendas religiosas e oficiar sacrifícios).

Essa inexistência de dogmas e de guardiões dos mesmos deixou ampla liberdade para o pensamento filosófico, que não se deparou com obstáculos que teria encontrado em países orientais, onde a livre especulação enfrentaria resistência e restrições dificilmente superáveis.

Por esse motivo, os estudiosos destacam com razão essa circunstância favorável ao nascimento da filosofia que se verificou entre os gregos, a qual não tem paralelos na antiguidade.

3. As condições sóciopolítico-econômicas que favoreceram o surgimento da filosofia

Recentemente os estudiosos acentuaram igualmente a liberdade política de que os gregos se beneficiaram em relação aos povos orientais. O homem oriental era obrigado a uma cega obediência não só ao poder religioso, mas também ao político, enquanto o grego a este respeito gozou de uma situação privilegiada,

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pois, pela primeira vez na história, conseguiu construir instituições políticas livres.

Nos séculos VII e VI a.C., a Grécia sofreu uma transformação Socioeconômica considerável. Deixou de ser país predominantemente agrícola, desenvolvendo de forma sempre crescente o artesanato e o comércio. Assim, tornou-se necessário fundar centros de distribuição comercial, que surgiram inicialmente nas colônias jônicas, particularmente em Mileto, e depois também em outros lugares. As cidades tornaram se florescentes centros comerciais, acarretando forte crescimento demográfico. O novo segmento de comerciantes e artesãos alcançou pouco a pouco notável força econômica e se opôs a concentração do poder político, que estava nas mãos da nobreza fundiária. Com a luta que os gregos empreenderam para transformar as velhas formas aristocráticas de governo em novas formas republicanas, nasceram as condições, o senso e o amor da liberdade.

Há, porém, um fato muito importante a destacar, confirmando de forma cabal tudo o que já dissemos: a filosofia nasce primeira nas colônias e não na mãe pátria precisamente, primeiro nas colônias orientais da Ásia Menor (em Mileto) e logo depois nas colônias ocidentais da Itália meridional justamente porque as colônias, com sua operosidade e comércio, alcançaram primeiro a situação de bem-estar e, por causa da distância da mãe pátria, puderam construir instituições livres antes mesmo que ela.

Foram, portanto, as condições sociopolítico-econômicas mais favoráveis das colônias que, juntamente com os fatores apresentados anteriormente, permitiram o surgimento e o florescimento da filosofia, a qual, passando depois para a mãe pátria, alcançou seus cumes em Atenas, ou seja, na cidade em que floresceu a maior liberdade de que os gregos gozaram. Dessa forma, a capital da filosofia grega foi a capital da liberdade grega.

Resta ainda uma última observação. Com a constituição e a consolidação da Pólis, isto é, da Cidade-Estado, o grego deixou de sentir qualquer antítese e qualquer vínculo à própria liberdade; ao contrário, descobriu-se essencialmente como cidadão. Para o grego, o homem passou a coincidir com o cidadão. Dessa forma, o Estado tornou se o horizonte ético do homem grego e assim permaneceu até a era helenística. Os cidadãos sentiram os fins do Estado como seus próprios fins, o bem do Estado como seu próprio bem, a grandeza do Estado como sua própria grandeza e a liberdade do Estado como sua própria liberdade.

Sem levarmos isso em conta, não poderemos compreender grande parte da filosofia grega, particularmente a ética e toda a política da era clássica e, depois, também os complexos desdobramentos da era helenística.

Depois desses esclarecimentos preliminares, estamos agora em condições de enfrentar a questão da definição do conceito grego de filosofia.

 3. Parte III

III. Conceito e objetivo da filosofia antiga

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A filosofia (= amor pela sabedoria) tem por objeto a totalidade das coisas (toda a realidade, o "todo") e nisto confina com a religião; usa um método racional, e nisto tem contatos com a ciência (com a qual por certo período se identifica); além disso, tem como escopo a pura "contemplação da verdade", ou seja, o conhecimento da verdade enquanto tal, e nisto se diferencia das artes, que têm intuito prevalentemente prático.

 A contemplação da verdade que é aspiração natural do homem é vista como fundamento da moral e também da vida política no seu mais alto sentido; e os filósofos consideram na o momento supremo da vida do homem, fonte da verdadeira felicidade.

 

1. As conotações essenciais da filosofia antiga

1.1 A filosofia como “amor de sabedoria”

Conforme a tradição, o criador do termo "filo-sofia" foi Pitágoras, o que, embora não sendo historicamente seguro, é no entanto verossímil. O termo certamente foi cunhado por um espírito religioso, que pressupunha ser possível só aos deuses uma "sofia" ("sabedoria"), ou seja, a posse certa e total do verdadeiro, enquanto reservava ao homem apenas uma tendência à sofia, uma contínua aproximação do verdadeiro, um amor ao saber nunca totalmente saciado   de onde, justamente, o nome "filosofia", ou seja, "amor pela sabedoria".

Todavia, o que entendiam os gregos por essa amada e buscada "sabedoria"?

Desde seu nascimento, a filosofia apresentou três conotações, referentes:

a) ao seu conteúdo;

b) ao seu método;

c) ao seu objetivo.

1.2 O conteúdo da filosofia

No que se refere ao conteúdo, a filosofia quer explicar a totalidade das coisas, ou seja, toda a realidade, sem exclusão de partes ou momentos dela. A filosofia, portanto, se distingue das ciências particulares, que assim se chamam exatamente porque se limitam a explicar partes ou setores da realidade, grupos de coisas ou de fenômenos. E a pergunta daquele que foi e é considerado como o primeiro dos filósofos   "Qual é o princípio de todas as coisas?"   mostra a perfeita consciência desse ponto. A filosofia, portanto, propõe-se como objeto a totalidade da realidade e do ser. E, como veremos, alcança-se a totalidade da realidade e do ser precisamente descobrindo a natureza do primeiro "princípio", isto é, o primeiro “por que” das coisas.

1.3 O método da filosofia

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No que se refere ao método, a filosofia procura ser "explicação puramente racional daquela totalidade" que tem por objeto. O que vale em filosofia é o argumento da razão, a motivação lógica, o logos. Não basta à filosofia constatar, determinar dados de fato ou reunir experiências: ela deve ir além do fato e além das experiências, para encontrar a causa ou as causas apenas com a razão. É justamente este o caráter que confere "cientificidade" à filosofia. Pode-se dizer que tal caráter é comum também às outras ciências, que, enquanto tais, nunca são mera constatação empírica, mas são sempre pesquisa de causas e de razões. A diferença, porém, está no fato de que, enquanto as ciências particulares são pesquisa racional de realidades e setores particulares, a filosofia é pesquisa racional de toda a realidade (do princípio ou dos princípios de toda a realidade).

Com isso, fica esclarecida a diferença entre filosofia, arte e religião. A grande arte e as grandes religiões também visam a cap¬tar o sentido da totalidade do real, mas elas o fazem, respectivamente, uma, com o mito e a fantasia, outra, com a crença e a fé, ao passo que a filosofia procura a explicação da totalidade do real precisamente em nível de logos.

1.4 O escopo da filosofia

O escopo ou fim da filosofia está no puro desejo de conhecer e contemplar a verdade. Em suma, a filosofia grega é desinteressado amor pela verdade.

Conforme escreve Aristóteles, “os homens, ao filosofar, buscaram o conhecer a fim de saber e não para conseguir alguma utilidade prática”. Com efeito, a filosofia nasceu apenas depois que os homens resolveram os problemas fundamentais da subsistência e se libertaram das necessidades materiais mais urgentes.

E Aristóteles conclui: “Portanto, é evidente que nós não buscamos a filosofia por nenhuma vantagem a ela estranha. Ao contrário, é evidente que, como consideramos homem livre aquele que é fim para si mesmo, sem estar submetido a outros, da mesma forma, entre todas as outras ciências, só a esta consideramos livre, pois só ela é fim a si mesma”.

É fim a si mesma porque tem por objetivo a verdade, procurada, contemplada e desfrutada como tal.

Compreendemos, portanto, a afirmação de Aristóteles: "Todas as outras ciências serão mais necessárias do que esta, mas nenhuma será superior." Uma afirmação que todo o helenismo tornou própria.

1.5 Conclusões sobre o conceito grego de filosofia

Impõe se aqui uma reflexão. A “contemplação” peculiar à filosofia grega, não é um otium vazio. Embora não se submeta a objetivos utilitaristas, ela possui relevância moral e também política de primeira ordem. Com efeito, é evidente que, ao se contemplar o todo, mudam necessariamen¬te todas as perspectivas usuais, muda a visão do significado da vida do homem, e uma nova hierarquia de valores se impõe.

Em resumo, a verdade contemplada infunde enorme energia moral. Com base

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nessa energia moral Platão construiu seu Estado ideal.

Entretanto, resultou evidente a absoluta originalidade dessa criação grega. Os povos orientais também tiveram uma "sabedoria" que tentava interpretar o sentido de todas as coisas (o sentido do todo), mas não submetida a objetivos pragmáticos. Tal sabedoria, porém, estava permeada de representações fantásticas e míticas, o que a levava para a esfera da arte, da poesia ou da religião. Ter tentado essa aproximação com o todo fazendo uso apenas da razão (do logos) e do método racional, foi, podemos concluir, a grande descoberta da "filosofia" grega. Uma descoberta que, estruturalmen¬te e de modo irreversível, condicionou todo o Ocidente.

2. A filosofia como necessidade primária do espírito humano

Alguém poderá perguntar: Por que o homem sentiu necessidade de filosofar? Os antigos respondiam que tal necessidade se enraíza estruturalmente na própria natureza do homem. Escreve Aristóteles: "Por natureza, todos os homens aspiram ao saber." E ainda: "Exercitar a sabedoria e o conhecer são por si mesmos desejáveis aos homens: com efeito, não é possível viver como homens sem essas coisas."

E os homens tendem ao saber porque se sentem cheios de "estupor" ou de "maravilhamento ".Diz Aristóteles: "Os homens começaram a filosofar, tanto agora como na origem, por causa do maravilhamento: no princípio, ficavam maravilhados diante das dificuldades mais simples; em seguida, progredindo pouco a pouco, chegaram a se colocar problemas sempre maiores, como os relativos aos fenômenos da lua, do sol e dos astros e, depois, os problemas relativos à origem de todo o universo."

Assim, a raiz da filosofia é precisamente esse "maravilhar-se", surgido no homem que se defronta com o Todo (a totalidade), perguntando se qual a origem e o fundamento do mesmo, bem como o lugar que ele próprio ocupa nesse universo. Sendo assim, a filosofia é indispensável e irrenunciável, justamente porque não se pode extinguir o deslumbramento diante do ser nem se pode renunciar à necessidade de satisfaze-lo.

Por que existe tudo isso? De onde surgiu? Qual é sua razão de ser? Esses são problemas que equivalem ao seguinte: Por que existe o ser e não o nada? E um momento particular desse problema geral é o seguinte: Por que existe o homem? Por que eu existo?

Trata se, evidentemente, de problemas que o homem não pode deixar de se propor ou, pelo menos, são problemas que, à medida que são rejeitados, diminuem aquele que os rejeita. E são problemas que mantêm seu sentido preciso mesmo depois do triunfo das ciências particulares modernas, porque nenhuma delas consegue resolve-los, uma vez que as ciências respondem apenas a perguntas sobre a parte e não a perguntas sobre o sentido do "todo".

Por essas razões, portanto, podemos repetir, com Aristóteles, que não apenas na origem, mas também agora e sempre, a antiga pergunta sobre o todo tem sentido e terá sentido enquanto o homem se maravilhar diante do ser das coisas e diante do seu próprio ser.

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3. As fases e os períodos da história da filosofia antiga

A filosofia antiga grega e greco-romana tem uma história mais que milenar. Parte do século VI a.C. e chega até o ano de 529 d.C., ano em que o imperador Justiniano mandou fechar as escolas pagãs e dispersar seus seguidores. Nesse espaço de tempo, podemos distinguir os seguintes períodos:

1)    O período naturalista, caracterizado pelo problema da physis (isto é, da natureza) e do cosmo, e que, entre os séculos VI e V a. C., viu sucederem se os Jônios, os Pitagóricos, os Eleatas, os Pluralistas e os Físicos ecléticos.

2)    O período chamado humanista, que, em parte, coincide com a última fase da filosofia naturalista e com sua dissolução, tendo como protagonistas os Sofistas e, sobretudo, Sócrates, que pela primeira vez procura determinar a essência do homem.

3)    O momento das grandes sínteses de Platão e Aristóteles, que coincide com o século IV a.C., caracterizando se sobretudo pela descoberta do supra sensível e pela explicitação e formulação orgânica de vários problemas da filosofia.

4)    Segue se o período caracterizado pelas Escolas Helenísticas, que vai da conquista de Alexandre Magno até o fim da era pagã e que, além do florescimento do Cinismo, vê surgirem também os grandes movimentos do Epicurismo, do Estoicismo, do Ceticismo e a posterior difusão do Ecletismo.

5)    O período religioso do pensamento véteropagão desenvolve-se quase inteiramente em época cristã, caracterizando-se sobretudo por um grandioso renascimento do Platonismo, que culminará com o movimento neoplatônico. O reflorescimento das outras escolas será condicionado de vários modos pelo mesmo Platonismo.

6)    Nesse período nasce e se desenvolve o pensamento cristão, que tenta formular racionalmente o dogma da nova religião e defini-lo à luz da razão, com categorias derivadas dos filósofos gregos.

A primeira tentativa de síntese entre o Antigo Testamento e o pensamento grego será realizada por Fílon, o judeu, em Alexandria, mas sem prosseguimento. A vitória dos cristãos imporá, sobretudo, um repensamento da mensagem evangélica à luz das categorias da razão.

Este momento do pensamento antigo constitui, porém, um coroamento do pensamento grego, mas assinala, antes, a entrada em crise e a superação de sua maneira de pensar e, assim, prepara a civilização medieval e as bases do que será o pensamento cristão “europeu”.

Esse momento do pensamento, portanto, mesmo considerando os laços que tem com a última fase do pensamento pagão que se desenvolve contemporaneamente, deve ser estudado à parte, precisamente como pensamento véterocristão, e deve ser considerado atentamente, nas novas instâncias que instaura, como premissa e fundamento do pensamento e da filosofia medievais.

A REFORMA RELIGIOSA

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RELIGIÃO E POLÍTICA EM UM MUNDO EM MUDANÇA1. O LUTERANISMO1.1. O origem da ReformaAs criações artísticas e intelectuais do Renascimento foram produzidas por pessoas culturalmente preparadas e, dado o seu caráter inovador, dirigiam se a uma minoria. O Renascimento cultural foi, por isso, basicamente um movimento de elite e permaneceu circunscrito a ela. A Reforma religiosa, ao contrário, propagou-se rapidamente por toda a Europa e mobilizou toda a sociedade, provocando desde rebeliões camponesas até guerras prolongadas entre Estados, passando por massacres e perseguições. E tudo começou com uma polêmica sobre a salvação da alma, tendo como pano de fundo um grave desencontro entre o formalismo da Igreja Católica e uma nova e intensa religiosidade entre os fiéis.Desde o século XIV, assolada por calamidades públicas (fome, peste, guerra), a Europa presenciava uma transformação no modo de vivenciar a religião. Tendo passado por essa experiência traumática de convívio quase cotidiano com a morte, a preocupação com a salvação da alma assumiu uma importância enorme na vida das pessoas. A Igreja Católica encontrava-se, porem, despreparada para atender às novas e intensas necessidades espirituais dos fiéis. Na realidade, a hierarquia eclesiástica reproduzia as desigualdades sociais. Existia o alto clero (papas, cardeais, arcebispos, bispos e abades), cujos representantes vinham quase exclusivamente da nobreza, e o baixo clero (padres paroquiais, monges), integrado por indivíduos das camadas inferiores da sociedade. O problema, entretanto, começava no topo da hierarquia eclesiástica. Os papas, Alexandre VI (1492-1503), Julio II (1503-1513) e Leão X (1518-1521), que se destacaram como grandes mecenas no Renascimento, são invariavelmente mencionados pelos historiadores como religiosos negligentes em relação ao seu cargo, tal era o amor com que se dedicavam aos afazeres do mundo profano. Os bispos não davam exemplo melhor. Escolhidos entre as famílias nobres e por acordo entre reis e papas, a nomeação era muitas vezes simples pagamento por serviços. Interessados apenas nas rendas do bispado, o agraciado pela indicação nem sequer residia na diocese e muito menos orientava o serviço sacerdotal dos padres lotados nas paróquias. Estes eram muitas vezes escolhidos entre os próprios fiéis do local e assumiam o sacerdócio sem nenhuma preparação prévia. A missa, por exemplo, era rezada em latim (uma língua que ninguém mais entendia) por sacerdotes sem preparo, normalmente analfabetos e incultos, e que, como os fiéis, também não compreendiam o sentido da liturgia que presidiam. Como decorrência desse estado de coisas, os fiéis buscaram formas alternativas de religiosidade. Assim, enquanto as Igrejas se esvaziavam, aumentava o número de peregrinos aos locais “santificados”, crescia o volume de comércio de relíquias sagradas, etc.1.2. Lutero e a salvação pela féFoi nesse ambiente de religiosidade que viveu Martinho Lutero. Nascido e criado no ducado da Saxônia (Alemanha), Lutero tornou-se monge agostiniano em 1505, desviando-se da carreira jurídica para a qual estava se preparando. Tendo optado pela vida religiosa por que temia não ser merecedor da salvação, como monge fez penitências e entregou-se aos estudos religiosos, chegando a professor de teologia na universidade de Wittemberg, capital da Saxônia, Sua inquietação, entretanto, persistiu. Até que conseguiu formular para o seu drama interior (medo do Inferno), uma teoria da salvação da alma com base nas epístolas de São Paulo, nas quais encontrou o que procurava em afirmações como esta: "Nós sustentamos que o homem é justificado pela fé, sem as obras da lei".De acordo com a doutrina católica, a salvação era tida como conseqüência das obras, isto é, das boas ações orientadas pelas autoridades eclesiásticas. A Igreja e o

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seu corpo clerical eram considerados indispensáveis à salvação dos fiéis, que, como leigos, não saberiam o que fazer para salvar a própria alma. 

Em um de seus textos tratando da salvação pela fé, Lutero escreveu:Não se trata aqui apenas dos pecados cometidos por atos, por palavras ou por pensamentos, mas igualmente do pendor para o mal... E é um erro crer que esse mal possa ser debelado pelas ações, visto a experiência provar que, não obstante todas as boas ações, essa cobiça do mal subsiste e que ninguém dela está isento, até mesmo uma criança de um dia. Porém a misericórdia divina é tal que, embora esse mal subsista, não é tido como pecado para aqueles que invocam Deus e lhe imploram com lágrimas sua libertação Por conseguinte, somos pecadores a nossos olhos e, apesar disso, somos justificados perante Deus pela fé.(Apud Jean Delumeau. Nascimento e afirmação da Reforma. São Paulo: Pioneira, 1989. p. 88.)

Lutero, entretanto, defendia que o homem está para sempre condenado, em virtude da gravidade que representou o pecado original - o pecado de Adão e Eva. Porém, se, apesar de saber que está para sempre condenado, o fiel mantiver a sua fé, essa fé o salvará.Tal concepção estava em desacordo com a doutrina católica. Dando-se a salvação pela fé e não sendo possível alguém ter fé em lugar de outrem, a salvação convertia-se, necessariamente, numa questão particular, que dizia respeito apenas a cada um. Assim, não havia necessidade nem de padres, nem de santos. A concepção luterana dispensava todos os intermediários entre Deus e os fiéis e, por isso, foi tida como heresia, como pecado contra os dogmas da Igreja. Porém, diferentemente das heresias anteriores, o luteranismo foi uma heresia triunfante, que deu certo. E havia razões para o seu triunfo.Examinando-se com cuidado a concepção luterana de sã ação, verifica se que ela valoriza a vida interior do crente. Por isso, pode-se dizer que ela deu forma ao individualismo na religião cristã.Enquanto permaneceu uma convicção pessoal de Lutero, essa concepção não representou nenhum perigo para a Igreja. O problema começou quando ele a tornou pública, o que ocorreu em decorrência da venda de indulgências na Alemanha.3.1. A questão das indulgências e o rompimento com a IgrejaA indulgência era um perdão antecipado pelos pecados veniais ou perdoáveis, obtido mediante pagamento de um valor estipulado pela Igreja. Sua instituição se deu por ocasião das cruzadas medievais, quando os papas concediam o perdão em troca da participação do senhor nas expedições, dispensando, assim, o fiel das penas do Purgatório.Do ponto de vista da concepção católica da salvação, nada havia de errado com a venda de indulgências, consideradas uma obra. Mas não era esse o ponto de vista de Lutero, que considerava absolutamente essencial a manutenção da consciência do pecado por parte dos fiéis, coisa que o comércio de indulgência não proporcionava. Por isso, ele resolveu manifestar-se, apresentando as 95 Teses nas quais criticava duramente aquele comércio.O documento foi parar nas mãos do papa e suas teses foram condenadas. Lutero corria o perigo de ser penalizado como o tcheco jan Hus, que, por motivo semelhante, fora chamado a Roma e acabara condenado à fogueira, episódio acontecido no século XIV Lutero teve mais sorte. O duque Frederico da Saxônia saiu em sua defesa, tornado-se o seu protetor. Apesar disso, Lutero foi excomungado em 1521.

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A Igreja não havia percebido que as teses de Lutero eram apenas a expressão de um movimento de interiorização da religiosidade que a Europa ocidental estava vivendo. Isso queria dizer que Lutero teria seguidores. E, de fato, o luteranismo recebeu adesões de todas as camadas sociais. Cada grupo tinha os seus motivos. Os humildes camponeses dá Alemanha foram impulsionados pela revolta contra a sua condição miserável e fizeram do luteranismo uma bandeira social, apesar de o próprio Lutero ser contra isso. Para maior infelicidade da Igreja Católica, as teses luteranas deram aos príncipes alemães o pretexto de que eles precisavam para romper com a Igreja e voltar a se apropriar de seus bens, constituídos sobretudo de terras. O luteranismo foi, pois, um sucesso e difundiu-se rapidamente por toda a Alemanha. Todas as tentativas feitas pela Igreja no sentido de refrear esse movimento fracassaram. Restava, entretanto, ainda uma esperança, representada pelo imperador Carlos V (1500-1568). Esse poderoso monarca era, ao mesmo tempo, rei da Espanha e imperador do Sacro Império Roma no Germânico e, como tal, a autoridade máxima na Alemanha.O imperador fez várias tentativas para levar os luteranos novamente para o seio da Igreja. Fracassando em todas elas, quis finalmente obrigá-los pela força, na Dieta de Spira (1529). Os príncipes luteranos ali reunidos protestaram, vindo desse episódio o nome protestantes dado aos seguidores de Lutero e, por extensão, a todas as outras correntes consideradas heréticas naquele período. A unidade cristã na Alemanha havia se rompido de maneira irreversível. 2. O CALVINISMO2.1. A Doutrina da predestinaçãoEntre as inúmeras correntes protestantes que surgiram no rastro do movimento de Lutero, destaca-se o calvinismo, a versão latina do protestantismo criada por João Calvino, de origem francesa. Simpatizante de Lutero, Calvino teve que fugir da França e se estabeleceu em Genebra, na Suíça, onde fundou uma nova corrente protestante, que diferia tanto do catolicismo quanto do luteranismo na concepção de salvação.A salvação pelas obras e a salvação pela fé, embora fossem concepções incompatíveis, tinha em comum o fato de responsabilizarem o fiel por sua salvação, uma vez que era ele quem praticava as obras ou mantinha acesa a própria fé. Calvino, ao formular a doutrina da predestinação, supunha Deus como totalmente responsável pela iniciativa da salvação (ou da danação). Para ele, desde o começo dos tempos Deus já havia predestinado uns à salvação e outros a danação. A razão por que Deus assim procedia era um mistério insondável.  Não estava ao alcance do homem conhecer os desígnios de Deus. Aos homens era dado saber apenas que estavam divididos e predestinados, ignorando a razão disso. Também estava fora do alcance de cada fiel saber se ele se encontrava ou não entre os eleitos de Deus.2.2. Calvino e o capitalismoSegundo essa concepção, como cada pessoa estava predestinada, nada se podia fazer para modificar a vontade divina. Teoricamente, essa situação conduziria os fiéis à mais completa passividade, visto que, estando ou não entre os eleitos, nada havia que pudessem fazer. Na pratica, a incerteza trazia ao espírito uma permanente intranqüilidade, que só encontrou solução quando a doutrina calvinista admitiu a existência de sinais que identificavam os eleitos. Estes eram os que vinham à terra com uma missão atribuída por Deus. Saber qual era essa missão constituía o mesmo que atender ao "chamamento" de Deus. Ora, em Latim, chamar é “vocare”. Portanto, os que atendiam àquele chamamento eram os que encontravam a sua vocação, palavra que deriva de vocare. Aqueles que atendessem ao chamamento de Deus eram os que encontravam a sua vocação e nela se realizavam. O êxito do fiel na vida profissional era, assim, um sinal de que estavam entre os eleitos. Os que haviam sido abandonados por Deus colecionavam fracassos, pois estavam destituídos de missão e, portanto, de vocação.

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Assim, à doutrina da predestinação, ao contrário do que se poderia imaginar, fez dos calvinistas sujeitos ativos da própria salvação. Porém, como o sinal da predestinação era dado Pela vocação, o calvinismo acabou fazendo do trabalho um sacramento. Disso nasceu o traço mais característico dessa doutrina: “ ética da valorização do trabalho”.Sendo o mundo uma criação de Deus, o calvinismo considerava sagrado tudo o que nele existia Possuir uma missão era o mesmo que ser escolhido para administrá-lo, de acordo com a vocação de cada um, dada por Deus. A religião calvinista criou, desse modo, trabalhadores e empresários disciplinados e sóbrios, admiravelmente ajustados às necessidades do desenvolvimento capitalista. Nesse sentido, podemos dizer que, assim como o Renascimento criou uma cultura que se harmonizava com a mentalidade burguesa, o protestantismo foi, em boa medida, uma versão burguesa do cristianismo.3. O ANGLICANISMO3. 1. De Henrique VIII a Elizabeth I A Inglaterra representou um terceiro foco protestante, cuja originalidade esteve no fato de ser liderado pelo próprio rei. Depois de vivenciar algumas dificuldades em relação à Igreja, Henrique VIII (1309-1541) separou-se de Roma com o decreto “Ato de Supremacia” (1534) separando a Igreja da Inglaterra da Igreja de Roma. As terras dos mosteiros foram desapropriadas e vendidas mais tarde a particulares, o que contribuiu para provocar uma importante revolução econômica no campo. O pretexto de Henrique VIII para romper com a Igreja foi a oposição do papa ao seu divórcio com Catarina de Aragão, que não havia lhe dado um filho, mas apenas uma filha, a futura rainha Maria Tudor. Henrique VIII pretendia casar-se com Ana Bolena, com quem teve outra filha, a futura rainha Elizabeth I, sucessora de Maria Tudor. Mas o grande motivo da separação foi econômico. Ao separa a Igreja de Roma a Igreja na Inglaterra deixou de pagar tributos a RomaA Igreja Anglicana foi no tempo de Henrique VIII uma espécie de versão nacional inglesa da Igreja Católica.  A estrutura eclesiástica se manteve, com exceção do papado, cuja autoridade foi transferida para o rei. A forma definitiva foi dada, entretanto, pela rainha Elizabeth I (1558 1603). Com ela, o anglicanismo adotou a doutrina calvinista, porém manteve a estrutura episcopal, à maneira da Igreja Católica, da qual preservou também grande parte da liturgia: forma de celebrar seus ritos e sacramentos.Foi essa mistura que provocou na Inglaterra a formação de seitas não conformistas. Os calvinistas, por exemplo, pretendiam purificar a Igreja Anglicana, dela eliminando a organização episcopal, considerada um resquício  papista . Por pretenderem purificar o anglicanismo desse resquício herdado do catolicismo, os calvinistas tornaram-se conhecidos como puritanos.4. A REFORMA CATÓLICA OU CONTRA-REFORMA4. 1   O concílio de Trento e a reação católica A Igreja Católica reagiu contra o protestantismo convocando o Concílio de Trento (1545-1563), no qual reafirmou a sua doutrina e estabeleceu uni conjunto de medidas defensivas e ofensivas. A fim de impedir a contaminação pelo protestantismo dos países não atingidos, o concílio instituiu o index que consistia numa relação de livros proibidos aos católicos, e o Tribunal da Santa Inquisição para reprimir a heresia. Criou também o catecismo para orientar os fiéis, e os seminários, com a função de formar futuros sacerdotes. Alem disso, objetivando reconquistar o terreno perdido, organizou-se para a realização de ações direcionadas à catequese.As iniciativas estabelecidas pelo Concílio de Trento não foram suficientes para trazer os Protestantes de volta à Igreja Católica. Com a fundação (1534) da Companhia de Jesus a ordem dos jesuítas por Inácio de Loyola, a Igreja ganhou um importante e poderoso instrumento de difusão do catolicismo, sobretudo na América Latina, mas na Europa o quadro desfavorável a ela permaneceu inalterado.

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Uma rápida observação da geografia religiosa depois da Reforma permite verificar que houve certa coincidência, de um lado, entre protestantismo e capitalismo e, de outro, entre catolicismo e tradicionalismo. Assim, os atuais pólos dinâmicos do capitalismo, como Alemanha, Suíça, Holanda, Suécia, Inglaterra e EUA, são protestantes. A França, onde os protestantes estiveram prestes a tomar o poder, apresenta-se, nesse quadro, como uma zona de transição: depois de uma luta sangrenta, os católicos conseguiram recuperar o terreno perdido, mantendo o país fiel a Roma. Não foram tocados pelo protestantismo a Itália, os países ibéricos e suas colônias americanas, grupo no qual estão as regiões menos desenvolvidas do ponto de vista capitalista. Atividades1. Como podemos explicar o fato de a Reforma religiosa ter se tornado um fenômeno muito mais abrangente do que o Renascimento?2. A princípio, as teses de Lutero eram uma heresia. a) O que são heresias?b) Como ele conseguiu triunfar, mesmo opondo se à poderosa Igreja Católica?3. Se compararmos o catolicismo, o luteranismo, o calvinismo e o anglicanismo: a) que semelhanças poderemos identificar entre eles?b) que diferenças poderemos identificar entre eles?4. Explique por que o calvinismo instaurou a ética de valorização do trabalho.5. Por que o puritanismo pode ser considerado um desdobramento do anglicanismo 6. Quais são as afinidades entre os movimentos reformistas e a mentalidade burguesa em formação nessa mesma época?'7. Como a Igreja Católica reagiu diante dos vários movimentos reformistas 8. Jean Delumeau, historiador especializado no estudo da Reforma religiosa, depois de analisar o problema das causas desse movimento, concluiu desse modo o seu pensamento:“A causa principal da Reforma teria sido, em suma, a seguinte: numa época conturbada, que além disso assistia à afirmação do individualismo, os fiéis teriam sentido a necessidade de uma teologia mais sólida e mais viva que aquela que lhes era ensinada [...] por um clero muitas vezes pouco instruído e rotineiro...”Nascimento e afirmação da Reforma. São Paulo: Pioneira, 1989, p. 271. 

MUNDO MODERNO 1. AS TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS1.1.Conjuntura e estruturaNo estudo da História, devemos ter em mente que qualquer sociedade é um todo mais ou menos coerente e estruturado a partir de alguns poucos princípios, em geral ditados pela camada dominante. As sociedades anteriores ao capitalismo, por exemplo, organizavam-se tendo em vista sobretudo a segurança contra ataques externos. O seu elemento principal era, por isso, o corpo militar aristocrático, que, pela sua reconhecida importância social, contava com privilégios e era obedecido em razão do respeito que, graças as suas armas, inspirava aos trabalhadores. Já as sociedades capitalistas estruturam-se tendo por

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fundamento a proteção da propriedade privada e o favorecimento à lucratividade dos empresários. Em suma, as sociedades divididas em classes se organizam segundo o interesse, a mentalidade e os objetivos da camada dominante. As vozes e as ações contrárias são quase sempre silenciadas.As sociedades, entretanto, mudam.  Nem sempre da maneira como gostaria a camada dominante, como se verificou no feudalismo. Mas a pergunta principal é: o que provoca a mudança?Desde logo, precisamos distinguir entre mudanças conjunturais e mudanças estruturais. As primeiras dizem respeito a modificações ocorridas dentro de um sistema social, enquanto as segundas se referem a modificações do próprio sistema social. A transição do feudalismo ao capitalismo é um exemplo de mudança estrutural. Ela ocorreu na opinião de Eric Hobsbawm, importante historiador inglês, de maneira lenta e sinuosa e levou pelo menos oito séculos para se completar: do ano 1000 a 1800, quando chegou ao fim, na Inglaterra, a Primeira Revolução Industrial. O mesmo historiador observou ainda que ninguém pode duvidar que, no período de 1000 anos - todo ou quase todo - antes de 1800 a evolução econômica [da Europa] seguiu firmemente na mesma direção, ou seja: na direção do desenvolvimento comercial e urbano.A principal conseqüência desse desenvolvimento foi a lenta dissolução das relações servis, que eram a base do domínio da aristocracia guerreira medieval. Vejamos como foi esse processo.1.2. O trabalho compulsórioFazia parte da condição servil trabalhar nas terras do senhor, entregar a ele parte da colheita ou efetuar pagamentos em dinheiro em troca de "proteção". Não havia portanto reciprocidade. Os servos efetuavam pagamentos em espécie ou em dinheiro porque eram obrigados ou forçados a isso. Os senhores tinham direito sobre o trabalho dos servos, em virtude do costume instituído na Idade Média.Ser forçado trabalhar sem receber nenhuma compensação material o que caracteriza aquilo que os historiadores denominam trabalho compulsório. A servidão é um tipo de trabalho forçado ou compulsório. Ainda hoje temos o costume de dizer que, para viver, somos obrigados a trabalhar. Mas essa obrigação tem um sentido totalmente diferente da obrigação dos servos. Hoje, quem não trabalha não recebe salário e, portanto, não tem dinheiro para adquirir os bens de que necessita. O trabalhador hoje se vê na obrigação de trabalhar por razões meramente econômicas. Não era o caso dos servos; estes eram obrigados a trabalhar e a pagar ao senhor devido não a razões econômicas, mas ao costume e à tradição. A violação desse costume ou o não cumprimento das leis costumeiras era punido, em última instância, com o uso da violência por parte do senhor. Havia, portanto, uma força extra-econômica, ou seja, não econômica, que mantinha os servos seu lugar, ao passo que são forças puramente econômicas  as que mantêm hoje em dia os trabalhadores em sua condição. Os servos eram controlados diretamente pelos senhores ou por seus representantes (poder pessoal), enquanto o trabalhador atual é controlado pelo mercado (poder impessoal). O trabalhador de hoje tem patrão, e este não tem poder pessoal sobre aquele: o empregado pode abandonar o seu emprego

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quando bem entender. O servo, ao contrário, estava preso à terra e não podia abandoná-la: ele não tinha patrão, mas um senhor com poderes sobre sua vida particular. É por isso que dizemos que os servos não eram homens livres.Pois bem, com as crises do século  XIX  a servidão tal como existia antes praticamente desapareceu, e o homem livre tornou-se elemento constitutivo das sociedades da Europa ocidental.1.3. A afirmação da sociedade do homem livreAfirmar que a servidão praticamente desapareceu significa constatar que a maioria dos camponeses se libertou da autoridade direta dos senhores. Se os camponeses se libertaram, então o poder dos senhores sobre eles foi anulado ou, pelo menos, diminuiu consideravelmente. Por isso, em meados do século XV, quando as crises do século anterior acabaram, a questão era: como controlar a massa camponesa que se libertara da servidão?Para reaver esse controle bastaria, teoricamente, restaurar a autoridade senhorial no campo e fazer o campesinato retornar à sua antiga condição servil. Mas essa era uma solução impraticável em virtude do alto nível de urbanização e mercantilizarão atingido pelo Ocidente. Vejamos por quê.O desenvolvimento comercial e urbano não era incompatível com o feudalismo. Ao contrário, era parte integrante dele. O feudalismo ocidental era uma unidade em que cidade e campo se intercomunicavam. E foi graças a isso que se criou, para os servos, a alternativa da fuga para as cidades. Da mesma forma, foi graças à economia monetária que a prestação de serviços gratuitos (corvéia) pôde ser substituída por pagamento em dinheiro, o que afrouxou e enfraqueceu os laços da servidão, provocando a sua decadência e, finalmente, a sua dissolução. Por isso, para restaurar a servidão no Ocidente seria necessário destruir as cidades e o comércio - o que era impossível - e ainda lidar com a revolta camponesa que poderia ser desencadeada. 2. TRANSFORMAÇÕES POLÍTICAS E ECONÔMICAS 2.1. As cidades-estados e os impérios universais“Pode-se dizer que todo desenvolvimento constitucional da Antiguidade se move entre os extremos da cidade-estado e do império universal." Essa afirmação foi feita, com razão, pelo historiador alemão Otto Hintze. Os sumérios e os egípcios criaram, como sabemos, as mais antigas das civilizações baseadas em cidades-Estados e no império universal. Na Antiguidade clássica, os gregos, com suas Cidades-Estados, reproduziram o modelo de civilização instituído pelos sumérios, e Roma, que se tornou império universal, o modelo inaugurado pelos egípcios. Os fenícios, por sua vez, seguiram o exemplo de cidade-estado, e os persas, o de império universal.Apesar de diferentes quanto à forma de organização política, as civilizações baseadas em cidades-estados e as que constituíram impérios universais apresentavam um ponto em comum: eram organizações bastante vulneráveis aos ataques de bandos armados. Por

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essa razão, todas as sociedades antigas priorizavam a segurança e, em maior ou menor grau, todas elas eram belicosas. Não é de estranhar, assim, que o guerreiro fosse a figura mais importante por toda parte.Porém, diferentemente das guerras primitivas, as guerras da Antiguidade desempenhavam uma importante função econômica. Nenhuma outra atividade trazia enriquecimento mais rápido. Para os vencedores, é claro. Para os vencidos significava empobrecimento, dominação e morte. Estar preparado para a guerra era, pois, a preocupação número um das antigas cidades-estados e dos impérios universais.A guerra tinha também uma função política, pois propiciava ao rei dividir com seus guerreiros os despojos arrancados aos inimigos e, através dessa ”Generosidade”, reafirmar a sua autoridade como chefe guerreiro.Mas nem sempre o saque era a parte mais lucrativa da Guerra. Os vencedores podiam anexar os territórios sob domínio dos vencidos e, de vitória em vitória, acabar criando um vasto império. E era desse modo que os impérios funcionavam: depois de submetidos, os povos conquistados passavam a pagar tributos regulares ao reino conquistador, prolongando-se, assim, os benefícios das vitórias militares.Assim, tanto nos impérios universais quanto nas cidades-estados antigas, o valor que se conferia a função social dos guerreiros era equivalente ao que hoje em dia se dá à função social do empresário. Daí o prestígio, logo convertido em poder e privilégio, desfrutado pelos guerreiros em toda a Antiguidade. Foi esse o mecanismo que comandou em toda parte a metamorfose dos guerreiros em nobres. De fato, as sociedades da Antiguidade eram essencialmente nobiliárquicas ou aristocráticas.2.2. Uma nova direção da HistóriaQuando caiu o Império Romano e o seu lugar foi ocupado pelos reinos germânicos, parecia que esse padrão, tão familiar na Antiguidade, se reproduziria. Mas não foi o que aconteceu. Com a Idade Média (476-1453) teve início na história da humanidade uma forma inédita de desenvolvimento, que desembocou na sociedade capitalista atual a primeira inteiramente comandada por empresários, e não por aristocracias guerreiras.Essa importante mudança de direção da História ocorreu numa certa altura da Idade Média, quando ficou claro que a guerra não era mais tão lucrativa.Isso se deveu, em grande parte, à alteração da posição de subordinação a guerra ocupada tradicionalmente pelo comércio na sociedade, A partir da Idade Média teve início um processo que inverteu essa antiqüíssima relação, abrindo caminho para a constituição do capitalismo. No capitalismo, a guerra ficou claramente subordinada ao comércio, e as guerras passaram a ser feitas para remover obstáculos ao desenvolvimento mercantil. Em outras palavras: nas sociedades capitalistas os generais estão quase sempre a serviço de interesses empresariais, e não o contrário.2.3. As cruzadas e a expansão ultramarina

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A partir do final da Idade Média, os interesses mercantis passaram a comandar as guerras. Ao longo da Idade Média e da Idade Moderna, podemos apontar dois momentos decisivos dessa transformação, representados pelas Cruzadas (1096-1270) e pela expansão ultramarina européia (séculos XV-XVI), importantes processos do expansionismo europeu.Chamamos de Cruzadas a uma série de expedições cristãs empreendidas contra os muçulmanos no Oriente Médio. Elas tiveram início em 1095, quando o papa Urbano II anunciou uma expedição a Jerusalém, contra os muçulmanos, com a finalidade de libertar o Santo Sepulcro o túmulo de Cristo. O anúncio foi recebido com grande entusiasmo, fato que surpreendeu o papa. Quatro anos mais tarde, em 1099, pouco antes de sua morte, Urbano II recebia a esperada notícia: Jerusalém fora libertada. Ao longo de quase duzentos anos, oito expedições foram enviadas à Terra Santa. Em meados do século XIII, essas expedições começaram a ser chamadas pelo nome com que ficariam conhecidas: Cruzadas. Antes disso, elas eram designadas como peregrinação ou guerra santa.Tomando como referência as quatro primeiras cruzadas, observamos a seguinte evolução:

      na primeira (1096) predominou o fervor religioso contra os "infiéis" (entenda-se os muçulmanos);

      na segunda (1147-1149) e na terceira (1189-1191), o espírito guerreiro motivado por conquistas territoriais;

      na quarta 1204), o interesse comercial veneziano atropelou a todos. Como se pode ver, de uma cruzada a outra, a fé foi substituída pela guerra e a guerra, pelo comércio. Ao longo das quatro primeiras cruzadas destacaram-se, pois, sucessivamente, os sacerdotes, os guerreiros e os comerciantes, não por acaso, as camadas sociais cujo entrelaçamento modelou a sociedade feudal.Já a expansão ultramarina, iniciada por Portugal com a conquista de Ceuta em 1415, foi marcada, em seu início, pela oscilação entre a conquista territorial no Marrocos, na África defendida pela nobreza e a expansão marítima para o sul defendida pelos comerciantes. Entre 1415 e 1460, a conquista militar alternou-se com a abertura de novos mercados. Porém, conforme as palavras de Vitorino Magalhães Godinho, um grande historiador português, com D. João II (1481-1491), Portugal entrou “no apogeu da política comercial e marítima, do mesmo passo que a nobreza [foi] ferreamente abatida”. Em outras palavras, a expansão ultramarina mais do que as cruzadas assinala o momento histórico em que os comerciantes suplantaram os guerreiros. De resto, o seu triunfo foi assegurado pela colonização da América, na qual eles criaram para si um importante e estratégico ponto de apoio para as suas atividades na Europa. Ao submeterem ao seu controle e em seu benefício boa parte da produção colonial, os comerciantes ingressaram num processo de irreversível ascensão econômica.2.4. O novo caráter das cidadesCom a ascensão dos comerciantes verificada a partir da Idade Média, o desenvolvimento urbano ingressou em uma nova era. Como vimos, as civilizações Greco-romanas foram basicamente urbanas, mas

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desconheciam uma autêntica economia urbana, pois a sua base era essencialmente rural. Somente na Idade Média as cidades começaram a ganhar uma feição econômica própria, com base no comércio e no artesanato, passando, em seguida, a influir sobre a economia rural. Na Idade Média teve início, portanto, o processo de urbanização do campo, em contraposição ao padrão das cidades ruralizadas da Antiguidade clássica. Isso porque as sociedades feudais deram ao comércio e à produção urbana, pela primeira vez na História, “um lugar estrutural autônomo”, conforme expressão do historiador John Merrington. Essa nova condição histórica estimulou a criação e o desenvolvimento das cidades-Estados italianas (Veneza, Gênova e Pisa...), cujo papel na economia européia a partir do século XI foi de grande relevância.À medida que o comércio e as cidades se desenvolviam, ia ganhando espaço um novo tipo de organização política: as monarquias nacionais (século XII em diante). Essas novas entidades menores que os impérios universais, porém maiores que as cidades-Estados   abarcaram, com o tempo, as cidades e os poderes senhoriais locais e regionais e emanciparam-se dos poderes universais, originando o absolutismo monárquico. Com a sua afirmação em várias partes França, Inglaterra, Espanha, Portugal, etc.-, surgiram vários focos de poder político suficientemente fortes para pôr fim ao sonho imperialista do Sacro Império e do papado. Em plena Idade Média, nascia desse modo a Europa, cuja inovadora característica consistia em ser politicamente dividida em monarquias nacionais, mas economicamente unificada pelo mercado.O Estado absolutista foi, ao lado do desenvolvimento da economia de mercado, um dos importantes elementos do mundo moderno.Atividades

   O que você entende por conjuntura e por estrutura?   Por que o servo era um trabalhador compulsório?   Por que até meados da Idade Média as sociedades eram essencialmente guerreiras?

   Por que o texto afirma que, a certa altura da Idade Média, “a guerra não era mais tão lucrativa”?

   Explique por que as Cruzadas exemplificam muito bem a mudança do papel da guerra nas sociedades européias.

   Identifique a razão para a expansão marítima portuguesa ser tomada como marco importante na História ocidental.

   Quais as características que distinguiam as cidades italianas das demais cidades européias.

   Leia atentamente o texto e descreva as mudanças que mais marcam a história. 

ORIGENS E CARACTERISTICAS DO FEUDALISMOFeudalismo: o novo sentido do desenvolvimento histórico1. As bases matérias em transição

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Desde a queda de Roma, um novo sistema - o feudalismo - estava em lenta gestação. O escravismo, que tinha sido a base da civilização greco-romana, encontrava-a se em plena decomposição, desencadeando um processo de grave regressão econômica.Isso ocorria porque, como o escravismo não incentivava o desenvolvimento econômico e tecnológico, com seu declínio, toda a sociedade sofreu as conseqüências da fragilidade inerente a esse sistema. A economia foi retrocedendo a um estágio primitivo à medida que o escravismo romano se desagregava. Uma vez que uma nova sociedade teria de ser construída a partir dessas ruínas, havia pouco espaço para a implantação de impérios universais, como os da Antiguidade.Agravando esse quadro, havia as constantes guerras entre os reinos bárbaros, além de várias ondas invasoras, como a dos árabes na península Ibérica, no século VIII, e a dos escandinavos e húngaros em vários pontos da Europa, no século seguinte. A ausência de poderes estatais fortes e bem constituídos fez com que a segurança e a defesa ficassem a cargo dos senhores que detinham os poderes locais ou regionais.2. As novas bases materiaisA partir do século VIII, quando o feudalismo começou a se constituir, surgia uma nova base material, na qual a economia comercial e urbana foi ganhando importância aos poucos. Essa economia, que pela primeira vez apresentava duas faces, uma rural e outra urbana, também não se mostrou propícia às formações imperiais. O seu benefício foi mais bem assimilado pelas monarquias nacionais, que, não por acaso, se constituíram paralelamente ao amadurecimento do feudalismo.Chamamos de feudalismo ao sistema social que se desenvolveu na Europa medieval, cuja característica básica foi a dominação e exploração dos camponeses pela nobreza por meio da servidão. Produto de um longo processo de transformação, o feudalismo remonta ao Baixo Império Romano. Em sua composição encontramos elementos tanto de origem germânica quanto romana, e sua "síntese equilibrada", no dizer do historiador Perry Anderson, ocorreu na Gália (norte da França atual), onde o feudalismo assumiu a sua forma clássica.

Do escravismo ao feudalismoOs proprietários dos latifúndios romanos eram absenteístas, isto é, residiam nas cidades, e não em seus domínios rurais. A partir das crises do século III (anarquia militar), os grandes proprietários começaram a se fixar em seus domínios, praticamente os únicos locais seguros, para onde também convergiram os pobres das cidades e do campo.Para receber e instalar esse contingente, os senhores destinaram uma parte das terras aos seus protegidos, o que implicou a divisão do domínio em dois segmentos: a parte que continuou sendo do senhor e cuja exploração era diretamente comandada por ele (denominada reserva senhorial), e a parte loteada e explorada por seus protegidos (denominada manso). Em troca dessa proteção, estes eram obrigados a pagar certo valor em produtos, em dinheiro e em prestação de serviços ao seu protetor.Com essas modificações, o antigo latifúndio escravista converteu-se em villa, na qual surgiu um novo tipo de trabalhador: o colono, que cultivava os lotes.Esse modelo resistiu às invasões bárbaras, mas, a partir do século VII começou a se transformar, dando lugar aos embriões do que seria o feudalismo.2. O senhorioSem abandonar inteiramente a exploração direta da reserva, o senhor deu lotes de terras a alguns casais de escravos, que passaram a ser os responsáveis pelo

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cultivo desses terrenos. Tais casais de escravos eram chamados de servi casatti, ou seja,”servos com casa” “estabelecidos”. Essa solução atendia em vários pontos aos interesses dos senhores: não cabia mais a eles o encargo de sustentar esses trabalhadores criavam-se condições estimulantes para o aumento da produtividade do trabalho; os filhos desses escravos, ao atingirem a idade de trabalhar, constituíam numa época de declínio da escravidão, valiosa mão-de-obra.Com essa iniciativa dos senhores, passaram a existir então dois tipos de lotes: o que era cultivado pelos colonos e o que era cultivado pelos escravos. Esses lotes ganharam o nome de mansos. Manso livre ou ingênuo (ingénuile) era a parcela cultivada pelos colonos, e manso servil a cultivada pelos escravos. A partir daí, a terra mansionária foi se ampliando, pois o senhor deixou aos poucos de cultivar diretamente a reserva, transferindo essa tarefa aos detentores dos mansos. Portanto, a porção diretamente explorada pelo senhor tendeu a diminuir, o que fez a villa começar a desaparecer, dando lugar ao senhorio. Assim firmava-se uma das características do senhorio: a terra mencionaria era sempre maior do que a reserva senhorial.Por que o senhor entregava suas terras aos camponeses? A resposta é simples: os grandes proprietários concluíram que era mais vantajoso receber a sua parte em produtos, moeda ou serviço, deixando a cargo dos camponeses o trabalho de produzir, do que assumirem eles próprios a direção dessa tarefa. Em suma, os senhores optaram por viver de rendas, tornando-se, pois, rendeiros. Com o retalhamento de sua propriedade em mansos, a villa se desintegrou e se reorganizou em senhorio, que foi a unidade básica de produção do feudalismo.Havia ainda mais um elemento importante para a plena configuração do feudalismo: os germânicos apesar de conhecerem a desigualdade social e mesmo a escravidão, possuíam uma organização social incomparavelmente menos desenvolvida do que a romana. Dotados de forte sentimento igualitário. os germânicos haviam conservado a tradição aldeã do campesinato independente e a prática do uso comum das terras. Assim, foi sob a influência dos camponeses independentes que se deu a síntese da villa com a tradição aldeã germânica. O resultado dessa síntese foi, precisamente, o senhorio, agora plenamente configurado. Este diferia da villa romana num ponto crucial: implicava a incorporação de uma terceira porção de terras, ao lado da reserva e dos mansos, denominada terras comunais. Estas eram constituídas de floresta e pastos de uso comunitário. Esse processo histórico estendeu-se por bastante tempo: do século V ao X.Portanto, em geral, o senhorio era um domínio formado por três partes: reserva senhorial, mansos e terras comunais, sendo os servos a mão-de-obra predominante e característica. Mas qual é a origem dos servos?3. A origem da servidãoRecordemos que, no Baixo Império Romano (235-476), a economia chegou a beira de um colapso. Para mantê-la em funcionamento e garantir os impostos, o Estado Romano impôs uma lei proibindo os indivíduos de abandonar a sua profissão e obrigando os filhos a se dedicarem, no futuro, ao mesmo trabalho de seus pais.Aplicada ao campo, essa lei resultou na proibição, ao trabalhador rural (o colono), de abandonar a terra que cultivava. Em compensação, o proprietário não podia tirar a terra do colono. Esse princípio estendeu-se também aos escravos. Criou-se então uma situação bastante curiosa: o colono, diferentemente do escravo, era um trabalhador juridicamente livre, mas, como estava proibido de abandonar a terra que cultivava, torva-se, de fato, escravo de uma coisa: a terra. Para qualquer um que não estivesse habituado com esse sistema, a condição do colono seria um verdadeiro enigma. E assim era para os bárbaros que derrubaram o império.

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Os germânicos não compreenderam as sutilezas romanas; eles não conseguiam entender como uma pessoa podia ser escrava de uma coisa. Assim, quando um colono fugia, para os romanos era compreensível uma ordem que mandasse   de volta o colono à sua terra de origem. Mas os visigodos, nas mesmas circunstâncias, ordenavam que o colono fosse restituído ao seu dono. Foi essa diferença (de "terra" para  “dono”) que converteu o colono, gradualmente em outro tipo de trabalhador caracteristicamente feudal: o servo. Enquanto o colono era “escravo” de uma coisa, mas juridicamente livre, o escravo era um trabalhador dependente de uma pessoa, o senhor. Essa diferença foi desaparecendo ao longo dos séculos VII e VIII, ao mesmo tempo que ocorria o nivelamento de colonos e escravos: enquanto estes melhoraram um pouco de condição, aqueles sofreram um grave rebaixamento, pois deixaram de ser homens livres e foram classificados como servos.A palavra servo vem de servus (latim) que quer dizer que significa escravo. No período medieval esse termo adquiriu um novo sentido, passando a designar a categoria social dos homens não livres, ou seja, dependentes de um senhor.Mas nem todos os trabalhadores eram servos: em meio às grandes propriedades, sobreviviam os camponeses independentes. As pequenas propriedades que cultivavam chamavam-se alódios (do germânico all od, que significa "plena posse”)  termo com que se designavam as terras livres, isentas de direitos senhoriais. As terras alodiais diminuíram a partir do século XI, quando, sem recursos para se defender nas freqüentes guerras, muitos dos pequenos proprietários viram-se obrigados a entrega-las a algum poderoso senhor, ao qual se submetiam em troca de proteção. Essa foi a origem dos vilões que estavam sujeitos a um regime menos opressivo, em que os trabalhadores tinham liberdade para deixar a terra quando bem entendessem.

Vilão, isto é habitante da villa. Esse termo, que designava um tipo específico de trabalhador rural, com o passar do tempo passou a significar todos os trabalhadores de um determinado domínio feudal. Deixou de ser indicação de morador da villa para designar os trabalhadores de um feudo.

4. A servidãoA condição servil era marcada por um conjunto de direitos senhoriais ou, do ponto de vista dos servos, de obrigações servis:

      Corvéia - trabalho gratuito, em geral nas terras do senhor (reserva), mas também em outros serviços necessários, como construção ou manutenção de estradas, etc. A porção de tempo dedicado à corvéia variava de três dias por semana a alguns dias por ano, conforme a categoria do camponês ou as necessidades do senhor.

      Censo ou foro pagamento anual, em dinheiro, que correspondia a uma espécie de aluguel da terra.

      Banalidades: pagamento de taxas pelo uso das instalações pertencentes e monopolizadas pelo senhor a exemplo do moinho, forno e lagar (tanque em que se espremia a uva para fazer o vinho).

      Dízimo: pagamento feito para a Igreja, correspondente à décima parte da produção agrícola. Entretanto, muitas vezes era recolhido e embolsado pelo senhor, abuso esse que foi coibido mediante as reformas da Igreja estipuladas pelo papa Gregório VII (1073-1085).

      Talha: taxa a princípio excepcional, mas com o tempo cobrada com maior freqüência, cujo valor era estabelecido arbitrariamente pelo senhor. Essa era uma das obrigações mais odiadas pelos servos.

      Champart, (de campi-partes): pagamento de uma porcentagem da produção da terra arroteada, ou seja, uma terra que se tornara arável graças ao esforço do servo.

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Apesar do nivelamento entre antigos colonos e escravos, a condição dos descendentes de antigos escravos continuava a marcada por algumas obrigações características, como a dedicação de maior número de dias (três por semana) ao trabalho gratuito “corvéia” na reserva senhorial, além do pagamento de várias taxas específicas: a mão morta para herdar o manso a capitação (chevage) taxa anual por cabeça. cobrada dos membros da família; a formariage   taxa para obter o direito de casar com pessoa sujeita a outro senhor.O parcelamento da soberania1. O senhorio e o feudoO senhorio era a unidade básica de produção do feudalismo e o traço característico desse sistema. Em certas condições, entretanto, o senhorio podia transformar-se em feudo. Isso ocorria quando um grande senhor, proprietário de um vasto domínio, concedia um senhorio a outro senhor. Quem concedia tornava-se suserano, o que recebia tornava-se seu vassalo. Dizia-se, nesse caso, que o senhorio fora enfeudado ou dado em benefício, convertendo-se então em feudo.O ato de concessão de um feudo ganhou, no século XII uma forma solene: o vassalo ajoelhava-se diante do seu suserano; as suas mãos eram colocadas entre as do suserano, ao qual declarava: “Eu lhe juro homenagem, meu senhor, por esta terra”. E, depois de prestar juramento sobre a Bíblia, ficava de pé e abraçava o seu suserano. Esse juramento era válido apenas entre os dois, e, se um deles morresse, seu descendente deveria repetir o ritual com a outra pessoa em questão.Esse ato impunha, de parte a parte, deveres e obrigações, Era dever do suserano proteger o vassalo de seus inimigos, e era dever do vassalo prestar serviço militar toda vez que fosse solicitado pelo seu suserano. Ao vassalo cabia dar ajuda financeira ao suserano em quatro casos precisos:

    no casamento de sua filha,     quando seu filho era armado cavaleiro,     para pagar resgate de seu suserano em caso de seqüestro e, por fim,     quando este partia para as Cruzadas, que eram expedições militares empreendidas pelos cristãos contra os muçulmanos.Um dos aspectos curiosos das relações de vassalagem era a possibilidade de um indivíduo ser vassalo de uma pessoa e suserano de outra. Dessa forma, um senhor podia ser, simultaneamente, vassalo e suserano. Suseranos e vassalos eram ligados entre si por um forte laço com a seguinte característica: cada vassalo devia fidelidade estrita ao seu suserano, mas não ao suserano de seu suserano. Assim, um grande duque fosse vassalo de um rei e tivesse seus próprios vassalos, estes deviam fidelidade ao duque, e não ao rei. No caso hipotético de um rompimento entre o rei e o duque, os vassalos deste eram obrigados a segui-lo por dever de fidelidade.A verdade, porém, é que a quebra dos laços de fidelidade era muito rara, pois quem assim agisse incorria na traição denominada - felonia. A não ser que se tratasse mesmo de um senhor extremamente poderoso, a felonia era uma falta gravíssima cuja conseqüência era o isolamento de quem a praticava, pois à pessoa em questão não seria mais aceita como vassalo por outros senhores. No entanto, esse rompimento era uma possibilidade sempre presente, já que, como um indivíduo podia ser vassalo de vários senhores ao mesmo tempo, no caso de um conflito entre estes, o vassalo era colocado diante da difícil situação de escolha, pois devia fidelidade a todos eles.Na realidade, o feudo não existia fora das relações de vassalagem. O poder de um senhor era medido pela quantidade de vassalos e, em conseqüência, pela

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quantidade de terras possuídas. 

O feudo e a câmaraA relação entre um suserano e um vassalo implicava sempre a doação de um fétido do primeiro para o segundo. Contudo, esse feudo não necessariamente se constituía na concessão de terras, Veja o que afirma um documento medieval:Feudo é o benefício dado pelo senhor a algum homem porque se tornou seu vassalo e lhe fez homenagem de ser-lhe leal, tomou este nome de fé que deve o vassalo guardar ao senhor. São duas as formas de feudo: uma é a outorga, uma vila, ou castelo, ou outra coisa que se constitua um bem de raiz e este feudo não pode ser tomado do vassalo a não ser se falecer o senhor com o qual tratou ou se fizer algum erro pelo qual o deva perder [...]. Outra maneira é o chamado feudo de câmara; este se faz quando o ~rei doa maravedis [antiga moeda] a algum vassalo seu, todo ano em sua câmara e este feudo pode o rei cancelar quando quiser.Jaime Pmsky. Modos de Produção feudal. São Pasulo Global, 1982. p.70.)

2. Suserania e soberaniaReferimo-nos freqüentemente aos reis como soberanos.Mas os reis medievais eram, na verdade, suseranos, e não propriamente soberanos. É importante fazer essa distinção, pois a autoridade do suserano era muito mais restrita que a do soberano, já que o suserano era obedecido apenas pelos seus vassalos imediatos, e não pelos vassalos dos seus vassalos. Assim, ao rei obedeciam, por exemplo, os condes e os duques, mas não os vassalos desses condes e duques, e assim por diante.Para distinguirmos melhor as diferenças entre essas duas relações, podemos lembrar que um suserano tem vassalos, enquanto um soberano tem súditos. A soberania é a expressão de um poder supremo que se exerce sobre todos os súditos, independentemente da posição social de cada um deles. Os reis medievais não eram, pois, soberanos, no rigor do termo, embora tendessem a assumir essa característica na Baixa Idade Média.O sistema de vassalagem, com efeito, tem a propriedade de criar múltiplos pólos de poder fracionando ou parcelando a soberania. A suserania surge, portanto, como produto da decomposição do Estado, equivalendo à substituição de um sistema jurídico por laços e sujeições pessoais regulados pelo costume.De fato, a existência de um poder central “Estado” e sua correspondente base territorial e populacional formam habitualmente um todo, cuja unidade se expressa num conjunto de leis que confere regras estáveis para os governados. Mas, desde a queda de Roma, esse Estado havia desaparecido e, com ele, foi desativado o seu elaborado e abrangente sistema jurídico. A existência de leis comuns, assim como dos meios para manter a sua vigência, deixou os mais fracos desprotegidos, impelindo-os a buscarem abrigo entre os poderosos dispostos a lhes dar proteção. Dizia-se então que os mais fracos se encomendavam aos mais fortes. Na realidade, dependendo de sua condição, estabeleciam com os poderosos um tipo específico de relação: os trabalhadores (em geral, camponeses) tornavam- se servos e os guerreiros (em geral, pequenos senhores), vassalos. Em ambos os casos, o elemento regulador não era um sistema jurídico estatal, mas simples laços de homem  a homem.Devemos, portanto, distinguir servidão de vassalagem. Enquanto a primeira diz respeito à relação entre o senhor e o camponês, a segunda refere-se a relação entre senhores.

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3. O poder banal dos senhoresAs relações de vassalagem formaram uma infinidade de núcleos de poder, cada qual com um poderoso senhor substituindo o Estado no plano local ou regional. Em seu conjunto, esse senhoriato formava uma camada social diferente de tudo o que conhecemos hoje. Podemos iluminar as suas particularidades fazendo uma breve comparação.Uma empresa, hoje, por maior que seja, está sujeita às leis do país em que opera. Em seus domínios, os empresários agem como proprietários em relação aos bens e como patrões em relação a seus empregados; desempenham, portanto, funções basicamente econômicas. Já o senhor feudal sempre foi muito mais do que isso, uma vez que ele não era apenas proprietário e patrão. Em seus domínios, exercia o papel de juiz, cobrava taxas, mantinha a ordem interna e protegia militarmente os seus domínios de eventuais agressões externas. Hoje essas funções pertencem ao Estado, ao governo. Portanto, os senhores feudais, além de serem proprietários e patrões, desempenhavam o papel de governadores, em seus domínios. A esse direito amplo de mando ou de governo chamamos poder banal.

O termo banal deriva de um velho vocábulo de origem germânica, ban que se referia ao direito ou poder de comando de alguém. Mais tarde, passou  a significar o conjunto de poderes próprios de um rei exercidos localmente pelos grandes senhores feudais.

Se, por um lado, devido ao seu amplo poder de mando - o ban -, os senhores sujeitavam os camponeses de diversas formas e era precisamente essa sujeição que transformava os camponeses em servos, por outro, exatamente por todos os senhores deterem o seu ban no plano regional, local, ou no âmbito de seu senhorio, o Estado unificado e centralizado tornou-se inviável e a Idade Média se caracterizou por sua peculiar soberania fragmentada.Ordens e estamentos1. Realidade e representaçãoA sociedade feudal encontrava-se estruturada em torno de um eixo o trabalho servil. Assim, a realidade feudal girava, em última instância, em torno da exploração e da opressão dos servos pelos senhores feudais. Seria esse o retrato do feudalismo, caso os servos tivessem tido a oportunidade de formular e difundir a sua visão da sociedade. Contudo, os que formulam e difundem a visão da sociedade costumam ser as pessoas que pertencem ao topo, à camada dominante da sociedade.Os senhores feudais viam a sociedade do ponto de vista militar, pois eram essencialmente guerreiros. Para eles, tudo começava e terminava na honra obtida pela bravura em campo de batalha, em que se disputava o domínio territorial com outros senhores. Porém, na maior parte das vezes, esses senhores não faziam mais do que abusar de sua força, tiranizando os mais fracos. Em parte, foi para enfrentar a turbulência dos senhores e impor a supremacia da fé que a Igreja elaborou a mais coerente visão da sociedade feudal.2. Sacerdotes, guerreiros e camponesesNa sociedade feudal, senhores e servos não se misturavam. Tecnicamente falando, a mobilidade social estava, em princípio bloqueada: servos não se tornavam senhores e vice-versa. Dizemos, então, que a sociedade feudal era   “estamentizada”, ou seja, sem mobilidade social. A posição social era determinada pelo nascimento: nascia-se servo ou nobre.A rigidez entretanto, não era absoluta, e entre os próprios nobres havia uma hierarquia. No topo da sociedade feudal estava a nobreza de sangue, que, em sua maioria, descendia dos nobres do tempo de Carlos Magno. Esse grupo da

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alta nobreza era, de fato, fechado. Abaixo dele estavam os cavaleiros, que faziam parte da pequena nobreza e, em geral, estavam vinculados aos grandes senhores (nobreza de sangue) como vassalos e guerreiros a seu serviço. Existia ainda outro grupo social pertencente à nobreza, o dos ministeriais ou nobres de serviço. Tratava-se de uma espécie de funcionários de grandes senhores, cuja condição estava aberta era acessível a camadas sociais inferiores. Muitos ministeriais cujos descendentes se tornaram cavaleiros, vinham de origem humilde, e alguns eram descendentes de servos. A sociedade feudal comportava, pois, na prática, certo grau de mobilidade social. Mas não era esse o ponto de vista da Igreja.No século XI, os bispos elaboraram uma teoria a respeito de como era e como deveria ser a sociedade feudal. Afirmavam eles que a ordem terrestre era o reflexo da ordem celeste, o que equivalia a dizer que a ordem social era sagrada e imutável e que o lugar de cada um era determinado por Deus, Conseqüentemente, alterar essa ordem social equivaleria a contrariar a vontade de Deus e era, portanto, pecado.Para elaborar a sua teoria social, os bispos tomaram como base os três pilares daquela sociedade: o religioso, o militar e o econômico. A partir deles criaram uma teoria trifuncional da sociedade, descrevendo-a como composta, respectivamente, pelos oratores (que oram ou rezam - o clero), pelos pugnatores ou bellatores  (os que lutam ou guerreiam - os nobres) e pelos laboratores (os que labutam ou trabalham - os servos). Estabelecia-se, desse modo, uma rígida hierarquia: o topo era ocupado pelo clero, seguido pela nobreza e, por fim, na base, estavam os trabalhadores. Cada uma dessas categorias representava a uma ordem ou estamento. Essa sociedade de ordem ou estamental consagrava a desigualdade social, fundamentando-se na "natureza", ou seja, uns nascem livres (os nobres) e Outros não (os servos). Mas esse princípio não valia para o clero, que se colocava acima da desigualdade característica do mundo profano. Dessa forma, a ordem social era definida como um estado de coisas que independia da vontade dos homens. Conseqüentemente, tanto a hierarquia social quanto a desigual distribuição da riqueza eram perfeitamente legítimas e expressavam a vontade divina. Uma  vez que a função de cada um na Terra era ditada por Deus, tudo estava bem ordenado: cumpria ao clero rezar; ao nobre governar e guerrear e aos camponeses trabalhar assegurando o sustento das duas outras ordens. Segundo essa concepção, a desordem social podia acontecer em caso de usurpação das funções, isto é, se os camponeses começassem a “decidir”, os nobres a "rezar'' e os padres a "combater”.Assim é, que a Igreja procurava conformar as diferentes camadas sociais numa ordem por ela concebida e na qual, na verdade, ela reservou a si mesma o lugar mais importante. Atividades1. Por que a desagregação do escravismo propiciou um grave retrocesso econômico?2. Como foi que o latifúndio escravista romano se tornou villa?3. Qual é a diferença entre villa e senhorio?4. Qual é a diferença entre senhorio e feudo?5. Faça um esquema mostrando como os colonos e os escravos se tornaram servos.6. Por que as obrigações servis demonstram claramente a exploração dos senhores exercida sobre os servos. 7. Explique por que, na realidade, os reis medievais eram mais suseranos do

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que soberanos.8. Estabeleça a distinção entre servidão e vassalagem.9. Faça em um desenho esquemático representando um senhorio com as diferentes partes que o compunham.10. A partir do declínio do Império Romano, a insegurança fez com que os mais fracos procurassem os mais poderosos, dos quais obtinham proteção em troca de serviços.Como era conhecido o pacto que se estabelecia nestes casos? 

ORIGEM E DECLÍNIO DO IMPÉRIO CAROLÍNGIO As duas ondas invasoras germânicas1. A primeira onda invasora.Os primeiros grupos germânicos atravessaram grandes distâncias até chegarem às regiões romanas em que se estabeleceram de maneira mais permanente: visigodos, na Espanha: ostrogodos, na Itália; vândalos, no norte da África, e burgúndios, na Sabóia.Cada grupo contava aproximadamente com 80 mil indivíduos, dos quais 20 ou 25 mil eram guerreiros. Comparados aos 16 milhões de romanos que encontraram, os germânicos formavam um bloco diminuto. Sendo assim, era grande o risco de serem engolidos pelos conquistados. Para evitar que isso ocorresse, mantiveram juridicamente separadas as duas populações: romanos e germânicos eram regidos cada qual pelas suas próprias leis. Mesmo quando se converteram ao cristianismo, os germânicos não aderiram à ortodoxia católica, mas à heresia ariana, criando assim uma Igreja germânica separada.Após ocuparem os extensos e populosos territórios que encontraram, os germânicos mantiveram os antigos funcionários romanos de baixo escalão, a fim de evitar o colapso dos mecanismos de governo. Adotaram o costume romano da hospitalitas (hospitalidade), com base no qual procederam à repartição dos bens, ficando com 1/3 ou 2/3 de terras e de escravos. No plano econômico, não modificaram em nada o escravismo e o colonato vigentes, preservando a vida econômica que gravitava em torno da villa (propriedade rural).2. A segunda onda invasoraEsse quadro começou a mudar com a ocorrência da segunda onda invasora, integrada pelos francos, anglo-saxões e lombardos. Esses grupos conquistaram, respectivamente, a Galia, a Inglaterra e o norte da Itália, territórios por onde se expandiram. Esses novos invasores germânicos haviam sofrido pouca ou nenhuma influência romana.Ao contrário dos primeiros invasores, os novos não percorreram longas distâncias, Quando os francos conquistaram a Gália, toda a sua população já estava concentrada numa região vizinha, a Bélgica. Os anglo-saxões estavam concentrados no norte da Alemanha, de frente para a Inglaterra.

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Os lombardos estavam no sul da Áustria, a um passo da Itália. Essa proximidade da área de conquista permitiu um fluxo constante de reforços populacionais, possibilitando que cada avanço fosse aprofundado com a colonização dos domínios adquiridos.Essa segunda onda ainda diferenciou-se da anterior em outro aspecto: os invasores não negociaram nada, simplesmente tomaram as terras. Daí em diante, as villae entraram em acentuado declínio. Seguindo esse movimento, o que ainda restava da administração romana desmoronou, enquanto o direito germânico foi se tornando dominante.Curiosamente, os francos, que estavam menos familiarizados com a tradição romana e, portanto, com o cristianismo, foram os primeiros entre os povos germânicos a se converterem ao catolicismo. Tal conversão repetiu-se mais tarde, com os anglo-saxões e com os lombardos.Desses três povos invasores os francos foram os mais empreendedores, como veremos em seguida.

As duas fases da Idade MédiaA Idade Média estendeu-se por mil anos, abarcando o período que vai da queda do Império Romano, em 476, até a tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos, em 1453. Podemos, entretanto, distinguir nesse período duas fases: uma que vai do século V ao XI, denominada Alta Idade Média, e outra que se estende do século XI ao XV, chamada Baixa Idade Média.Ao longo da primeira fase, temos a formação e a dissolução dos reinos germânicos num processo de acentuada ruralização da economia. Na fase seguinte, a vida urbana e revigorada pelo desenvolvimento do comércio, e no século XIV a sociedade medieval é atingida por uma grave crise que irá assinalar o fim da Idade Média.

Os merovíngios (481-751)1. A expansão dos francosPor volta de 480, existiam duas importantes tribos francas: a dos francos sálios e a dos ripuários. Em 481, os francos sálios, da região de Tournai, elegeram como rei um jovem de 16 anos, chamado Clóvis (481-511), e com ele foi fundada a dinastia Merovíngia, de Meroveu, nome do avô de Clóvis.Cinco anos após sua ascensão, Clóvis conquistou o reino de Siágrio. Tempos depois, submeteu os francos ripuários à sua autoridade. Em 507 derrotou os visigodos, anexando aos seus domínios o território que deu origem à Aquitânia.Clóvis destacou-se não só por seus êxitos militares, mas também por ter sido o primeiro chefe bárbaro a adotar o catolicismo, fazendo-se batizar, juntamente com 3 mil guerreiros, em 496.Uma vez que os filhos de Clovis continuaram a sua obra de conquista, estendendo sua autoridade pelo reino da Burgúndia e pela Germânia, esse processo de unidade e integração amadureceu e se ampliou com relativa rapidez. Com os primeiros merovíngios, os francos se tornaram o mais poderoso dos povos germânicos, e sob sua influência se constituiu uma nova sociedade.2. A divisão do reino francoSessenta anos depois da morte de Clóvis, o vasto domínio conquistado

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pelos francos estava dividido em três reinos: Austrásia, Nêustria e Borgonha; já a Aquitânia, conquistada aos visigodos, tornara-se objeto de saque dos três reinos.Os merovíngios reinaram durante 270 anos, de 481 a 751. Porém, como nos últimos cem anos da dinastia os três reinos foram governados por reis considerados incapazes - apelidados de "reis indolentes” -, o poder foi se transferindo para as mãos dos prefeitos ou mordomos do palácio (major domus) que desempenhavam o papel de primeiro  ministro.Durante muito tempo, a Nêustria foi o mais importante e poderoso reino merovíngio. Entretanto, após várias guerras, Pepino de Heristal, o major domus da Austrásia, assumiu a mordomia  dos três reinos, unificando-os sob a sua autoridade. Seu filho e sucessor, Carlos Martel, enfrentou com êxito, logo depois da morte do pai, uma revolta dos nobres da Nêustria e consolidou definitivamente o poder de sua família. Além disso, conquistou enorme prestígio depois de vencer os árabes na batalha de Poitiers (732), impedindo que conquistassem a Gália, como já haviam feito com a Espanha visigótica, Assim, ele preparou o caminho para que seu filho, Pepino, o Breve, derrubasse o último rei merovíngio, Childerico III, e assumisse o trono franco.3. A ruralização da economiaDurante o período merovíngio, o processo de ruralização da economia, originado no Baixo Império romano, fortaleceu-se devido à decadência do artesanato, à destruição de estradas e à escassez de moeda. Conseqüentemente, o comércio e as cidades entraram em declínio. As atividades econômicas reduziram se à agricultura, e a única forma de riqueza era a terra. No final do século VII e início do VIII, período em que Carlos Martel defendia heroicamente a Gália dos ataques árabes, estes já haviam conquistado o Mediterrâneo, impossibilitando que outros povos navegassem pelo litoral dos reinos bárbaros.Os carolíngios (751-987)1. Pepino, o Breve (751-768)Conhecido como “o Breve", em virtude de sua baixa estatura, Pepino cercou sua audaciosa iniciativa de muito cuidado. Antes de agir, teve a prudência de obter o apoio do papa Zacarias (741-752), que autorizou a deposição de Childerico III. Teve início então uma nova dinastia, mais tarde denominada em homenagem aquele que viria a ser maior soberano da dinastia: Carlos Magno, filho de Pepino, o Breve.Desde a conversão de Clóvis, os francos eram os principais aliados da Igreja. Pepino, o Breve, reiterou essa velha tradição. Depois de eleito “rei de todos os francos”, foi consagrado (abençoado) pelo arcebispo São Bonifácio.O apoio da Igreja a Pepino, o Breve, entretanto, não foi desinteressado. Roma encontrava-se, na época, ameaçada pela chegada dos lombardos, que, em 568, já haviam fundado o seu reino no norte da Itália. O preço do apoio a Pepino foi cobrado pelo papa Estevão II (752-757) sucessor de Zacarias, que lhe solicitou ajuda contra os lombardos. O rei franco atendeu ao apelo e realizou duas campanhas vitoriosas (754-756) contra o rei lombardo, obrigando o a ceder vários territórios ao papado. Dessa concessão territorial nasceram os Estados da Igreja, cuja extinção só ocorreria em 1870, devido à unificação da Itália. Ainda em benefício da Igreja, Pepino transformou em lei a doação do dízimo décima parte da renda

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antes feita espontaneamente pelos fiéis.2. As conquistas de Carlos Magno (768-814)Pepino, o Breve, morreu em 768, e o seu reino foi dividido entre seus dois filhos: Carlomano e Carlos, que eram rivais e disputaram o poder. Carlos unificou o reino depois da morte de Carlomano, ocorrida em 771, e deu início a conquistas, tendo corno alvo a Itália, a Germânia e a Espanha.Carlos Magno era inimigo do rei lombardo Didier, que tinha sido aliado de Carlomano. A oportunidade do acerto de contas surgiu quando o papa Adriano I (772-795) solicitou sua ajuda contra uma nova ameaça lombarda. Carlos Magno cruzou os Alpes em 773, cercou a cidade de Pávia   capital lombarda e a conquistou em 774. Em seguida, anexou o território Lombardo aos seus domínios e se proclamou rei da Itália. Do papa, recebeu o título de Patrício dos Romanos, que o tornava protetor da Cidade Eterna Roma. A autoridade de Carlos Magno abrangia agora o norte e o centro da Itália. A parte sul estava sob controle bizantino.Pouco antes de atacar os lombardos, Carlos Magno havia iniciado a conquista da Germânia. Depois de pôr fim à independência da Baviera, ele voltou se contra os saxões, derrotando-os em 777. Alguns anos depois, sob a liderança de Widukind, os saxões se revoltaram. Após duras campanhas, Carlos Magno completou a conquista em 803.No ano seguinte à primeira derrota dos saxões, em 778, Carlos Magno dedicou-se a uma campanha ambiciosa: a reconquista da Espanha muçulmana. Não só viu fracassar seu plano como, durante o regresso, parte de seu exército, comandado pelo marquês da Bretanha, Rolando, foi massacrado pelos bascos no desfiladeiro de Roncevales. Esse acontecimento serviu de base para a criação, trezentos anos mais tarde, de uma célebre obra literária: a Canção de Rolando, o mais importante poema épico medieval escrito em francês.3. A fundação do império (800)Com algumas exceções, entre elas a Espanha, os domínios territoriais de Carlos Magno praticamente reconstituíam o antigo Império Romano. Essa proeza não passou despercebida da Igreja. No Natal do ano 800, quando se encontrava em Roma, Carlos Magno foi coroado imperador pelo papa Leão III (795-816).Com o coroamento de Carlos Magno foi retomada, no Ocidente, a tradição do império universal, antes representada pelos romanos. Impunha-se agora, porém, uma diferença importante: o poder universal dividia-se em dois, o imperial e o papal. O primeiro referia-se ao poder universal temporal e o segundo, o espiritual. Teoricamente, nenhuma autoridade era superior a do papa em assuntos religiosos ou espirituais, o mesmo acontecendo com o imperador quanto a assuntos politicos ou temporais.Na prática, porém, sob a aparência de um sistema supercentralizado, a realidade era bem outra.4. A fragilidade do impérioO império fundado por Carlos Magno, de fato, não estava destinado a durar. A imensidão territorial do império contrastava com uma administração sumaria e rudimentar. O esquema de governo do tempo dos merovíngios continuava em plena vigência. Seguindo a prática de administração itinerante adotada pelos reis merovíngios,  Carlos Magno deslocava-se por todo o território com a sua comitiva. O império encontrava-se dividido em

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dezenas de condados (perto de duzentos), cada qual governado por um conde - um nobre de confiança do imperador. Ele não era propriamente um funcionário, mas uma espécie de sócio, com direito a certa porcentagem dos impostos imperiais. Primeiramente, um conde poderia ser demitido a qualquer momento, de acordo com a vontade do imperador, mas, com o tempo, o cargo tornou se vitalício e hereditário. Além disso, devido a distância e aos precários meios de comunicação, os condes governavam como se o imperador não existisse. Por isso, a fim de mantê-los obedientes e faze-los atender aos propósitos do imperador, os condes eram fiscalizados pelos agentes imperiais chamados missi dominici, isto é, os enviados do imperador , constituídos em pares, ou seja, um membro do clero e outro laico. Para manter a sua autoridade, anualmente no mês de março ou de maio, o imperador reunia os grandes nobres, com os quais decidia quanto a inúmeras medidas a serem tomadas no plano político. Essas medidas eram transformadas em leis, reunidas e promulgadas em capítulos (Capitulares).Contra a tendência descentralizadora do império, estabeleciam-se a vinculação e a subordinação dos súditos ao poder central, simbolicamente, pelo Juramento de fidelidade ao imperador, feito por todos os homens livres.Esse sistema administrativo, bastante rudimentar, procurava preencher uma lacuna particularmente grave: a impossibilidade de recolher impostos e, por conseqüência, de ter, como fatores efetivos de unidade, burocracia e exército permanentes. Até mesmo o imperador vivia das rendas de seus próprios domínios, que eram grandes, porém insuficientes para financiar a administração de um imenso território.Como se vê, o império estava desprovido de uma estrutura administrativa compatível com a sua extensão, sendo assim, não tinha meios eficientes para lutar contra forças descentralizadoras infinitamente mais poderosas.A razão dessa fraqueza estava numa prática que, apesar de conhecida desde os merovíngios, só se consolidou e se generalizou com Carlos Magno: o estabelecimento definitivo de vínculos entre a doação de terras e a prestação de serviço militar. O nobre que recebia a doação prestava um juramento de fidelidade ao imperador; em troca, recebia o benefício (concessão de terras), tornando-se a partir disso vassalo do imperador. Ao longo do século VIII, os nobres começaram a praticar a relação de vassalagem entre si, atingindo inclusive os estratos inferiores da hierarquia a pequena nobreza. Com isso, surgiram múltiplos pólos de poder, o que contribuiu para a gradual demolição do poder central.5. Declínio dos carolíngiosCarlos Magno morreu em 814, sendo sucedido por Luís, o Piedoso (814-840). Dotado de grande fervor religioso daí o seu cognome, o novo imperador deixava-se dominar pelas autoridades religiosas. Essa característica de sua personalidade foi, em parte, responsável pelo enfraquecimento do poder imperial.Com a morte de Luís, o Piedoso, em 840, o império foi disputado pelos seus três filhos: Luís e Carlos se uniram contra Lotário o filho mais velho, herdeiro do título imperial. Os dois primeiros juraram permanecer unidos contra Lotário e registraram por escrito essa intenção. Sendo conhecido como Juramento de Estrasburgo (842), esse documento foi redigido em alemão e frâncês antigos. Até onde se sabe, trata-se do mais antigo documento escrito nessas línguas.

Os últimos carolíngios

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O reino de Lotário se decompôs rapidamente, dando inicio aos principados independentes de Provença, Borgonha e Lotaríngia (mais tarde, Lorena). Enquanto isso, os dois outros reinos mantiveram a unidade, dividindo entre si os despojos do reino de Lotário. Assim, a Frância Oriental iria tornar-se a Alemanha, e a Ocidental o reino da França.Depois da morte do último filho de Lotário, o título imperial foi, em 857, para as mãos daque¬le que é considerado o primeiro rei da França, Carlos, o Calvo.No reinado de Carlos, o Gordo, que era um dos filhos de Luís, o Germânico, o império foi brevemente unificado. Sendo, em 885, o único soberano carolíngio, Carlos foi destituído tanto na Germânia (Alemanha) quanto na França, pelas respectivas nobrezas, em 887.Na França, os carolíngios finalmente desapareceriam com a ascensão de Hugo Capeto ao trono, em 987, iniciando-se então a dinastia Capetíngia (987-1328).Na Germânia, o último carolíngio desapareceu em 819, sendo substituído por um representante da nova dinastia a Saxônica. O segundo soberano dessa linhagem, Oto I, após ter contido os invasores húngaros, fez-se coroar imperador em 962.

Derrotado, em 843 Lotário aceitou dividir o império com os irmãos e assinou com eles o Trotado de Verdun. Com esse tratado, coube a Lotário, além do título imperial, a posse das regiões do norte da Itália e das regiões francesas de Aix la Chapelle (antiga Austrásia), Borgonha e Provença. Luís, conhecido como “o Germânico”, assumiu o controle de todo o território à leste do Reno e ao norte dos Alpes: essas terras ficariam conhecidas como Francia Oriental. Carlos, conhecido como “o Calvo” ganhou os territórios a oeste dos domínios de Lotário, chamados de Frância Ocidental.6. As invasões do século IXO rápido desmoronamento do Império Carolíngio evidenciou a fragilidade de suas bases. O seu desmembramento nos reinos da França e da Germânia não melhorou a situação. A vulnerabilidade desses reinos foi aproveitada pelos escandinavos (suecos, noruegueses e dinamarqueses), húngaros, sarracenos (muçulmanos da, África do norte) e eslavos. Os ataques vieram, então, de todos os lados.Os escandinavos, conhecidos também como vikings ou normandos, vieram do norte, por mar, penetrando pelos rios para atacar e pilhar os povoados. As vítimas eram as ricas abadias e, às vezes as cidades. O seu raio de ação era bastante extenso: os suecos (ou varegues) entraram na Rússia, onde fundaram o primeiro Estado russo, o Estado de Kiev, ao passo que os noruegueses se concentraram na Irlanda, e os dinamarqueses atacaram o litoral da França e da Inglaterra, alcançando também a Espanha e a Itália.No início do século IX, os normandos dedicavam-se às pilhagens. Em meados do mesmo século começaram a se estabelecer nas embocaduras dos rios que possuíam importância comercial. No século X muitas dessas áreas foram reconquistadas pelos cristãos, restando apenas um grupo bastante poderoso, que se fixou no curso inferior do rio Sena por volta de 896 e cujo domínio foi reconhecido pelo rei carolíngio em 911.Essa foi a origem, na França, da Normandia. Esse grupo, o mais influente dentre os escandinavos, conquistou a Inglaterra 1066, o sul da Itália e a Sicília (1029) (estes dois últimos territórios eram antes dominados pelos muçulmanos) e esteve presente no Império Bizantino na época das cruzadas.Enquanto os ataques normandos vinham do norte, os muçulmanos (sarracenos) devastavam o litoral da Itália a partir do sul. Do leste, por terra, chegavam húngaros ou magiares ameaçando a Alemanha e o sul da França. Por fim, estabeleceram-se na região que se tornaria a Hungria.

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Por último, os eslavos, provenientes da planície, russa, atacaram as fronteiras orientais da Alemanha. A esse grupo étnico pertencem os poloneses, tchecos, croatas, sérvios e russos.As invasões do século IX trouxeram inúmeras conseqüências para o Império Carolíngio em decomposição. Elas deixaram claro que os normandos e sarracenos detinham o controle dos mares, reduzindo a cristandade ocidental a uma existência basicamente terrestre e rural. Em vista da desorganização do poder central, a defesa contra os normandos ficou a cargo de cada localidade. Isso fez com que o poder passasse rápida e definitivamente para as mãos dos grandes proprietários rurais (os nobres).O sonho imperial renasceu em 962, quando um soberano alemão, Oto I, assumiu a coroa daquele que veio a ser conhecido como o Sacro Império Romano-Germânico. Tendo a sua sede na Áustria, o Sacro Império constituiu-se como sucessor do Império Carolíngio e estendeu o seu domínio sobre a Itália. Por esse motivo, esteve em permanente conflito com o papa, disputando com ele a hegemonia italiana.

ESPARTA E A ATENASESPARTA1. OrigensOs dórios invadiram o Peloponeso a partir do século XI a.C., destruindo as cidades aquéias, e ali se estabeleceram em vários pontos. Dois séculos depois, um dos ramos dórios fundou no vale do rio Eurotas - uma região fértil - a cidade de Esparta, também conhecida como Lacedemônia.  No início, Esparta não destoava das outras cidades em seu desenvolvimento e em sua organização geral. Como todas elas, Esparta havia adotado a monarquia como forma de governo, Porém, uma guerra com os seus vizinhos da Messênia mudou completamente a rota de seu desenvolvimento. Esparta se transformou num verdadeiro acampamento militar e, ao contrário das demais cidades gregas, que evoluíram da monarquia até a democracia, ficou como uma cidade parada no tempo.2. Expansão espartanaEsparta começou a sua expansão conquistando a Lacônia e, em seguida, voltou-se para Messênia, a oeste. Messênia foi dominada por volta de 730 e 720 a.C., depois de uma guerra prolongada. Derrotados, os habitantes de ambas as regiões (Lacônia e Messênia) foram escravizados, dando origem aos hilotas. Quase cem anos depois, em 650 a.C., o ódio que os hilotas messênios sentiam pelos espartanos transformou-se em uma grande revolta, originando a segunda e mais dura guerra da Messênia, que se prolongou por trinta anos. Os hilotas messênios foram novamente vencidos, mas o seu ódio mortal aos espartanos obrigou estes a viver em permanente estado de alerta. Foi assim, por causa dos conflitos com os hilotas, que Esparta virou um acampamento militar.A peculiar organização social e política dos espartanos é atribuída a um legislador lendário, chamado Licurgo, que teria remodelado a sociedade, dotando a de novas instituições.

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Esparta: uma sociedade parada no tempoUm importante economista, Maurice Dobb, num livro clássico traduzido para o português com o título “A evolução do capitalismo”, observou que:[...] o processo de modificação histórica, em sua maior parte, é gradual e contínuo. No sentido de que não há acontecimento que não possa ser ligado a algum acontecimento imediatamente anterior numa cadeia racional, ele poderá ser descrito como contínuo em toda parte. Mas o que parece forçosamente estar implicado em qualquer concepção do desenvolvimento dividido em períodos ou épocas, cada qual caracterizado por seu sistema econômico distinto, é que há pontos decisivos no desenvolvimento econômico nos quais o ritmo se acelera além do normal e nos quais a continuidade é rompida, no sentido de uma mudança acentuada de direção na corrente de acontecimentos.(8. ed. Rio de Janeiro: Zahar. p. 2 1.)

Em síntese, para o autor, pode haver continuidade no plano dos acontecimentos e, ao mesmo tempo, estar ocorrendo uma ruptura ou descontinuidade no plano da estrutura. O escravismo grego, assim como o capitalismo moderno, e um fenômeno estrutural. Esse ponto de vista é bastante útil para compreender que, a rigor, o fato histórico não é constituído tão somente de acontecimentos visíveis. Afinal, os acontecimentos dependem do quadro geral em que ocorrem. Num sistema capitalista, por exemplo, ocorrem principalmente acontecimentos capitalistas. Assim, quando num sistema social, como o espartano, cria se uma estrutura na qual todos os acontecimentos ocorrem para enrijece-la e torna-la imutável e esse propósito é atingido em boa medida, podemos então dizer que estamos diante de uma sociedade parada no tempo, não no sentido de que nada acontece, mas no sentido de que o que acontece ali apenas contribui para reforçar a estrutura, ou status quo, como se diz em latim. Para uma sociedade que decidiu não mudar, a expressão parada no tempo é uma metáfora mais do que adequada.3. A sociedade espartanaA onipresença do Estado e a militarização da sociedade foram, a partir do século VII a.C., os traços característicos de Esparta. Toda a organização estava voltada para o problema fundamental da cidade: conter a sempre possível revolta dos hilotas, cuja população era muitas vezes superior à espartana.Uma fronteira muito nítida passou, então, a separar as classes sociais. Os cidadãos, devotados inteiramente ao exército, formavam a aristocracia privilegiada. Abaixo deles, havia duas classes inferiores, a dos periecos e a dos hilotas. Os periecos (habitantes da periferia) formavam uma camada intermediária, constituída de homens livres, porém sem direitos políticos. Dedicavam-se à agricultura, ao comércio e ao artesanato, atividades proibidas à aristocracia espartana. Os hilotas eram a classe mais baixa e numerosa da sociedade e pertenciam, como escravos, ao Estado.4. Estatismo e militarizaçãoA aristocracia espartana organizou a sociedade basicamente em torno de dois objetivos: formar os mais adestrados e disciplinados soldados e, ao mesmo tempo, criar mecanismos que garantissem o máximo de coesão e solidariedade entre eles.

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O mais importante passo dado nesse sentido foi a distribuição eqüitativa das terras conquistadas na Lacônia e na Messênia, em forma de lotes (kleroi) para as famílias espartanas. Esses lotes, embora transmissíveis por herança, não eram propriedades privadas, mas estatais. Neles trabalhavam os hilotas, que eram escravos do Estado cedidos aos cidadãos.5. Os iguaisA estatização da base econômica atendia, assim, a finalidades muito bem definidas. A primeira delas, sem dúvida, era a de criar um poderoso laço de solidariedade entre os espartanos. A distribuição igualitária de lotes e de hilotas, que não eram propriedades particulares mas estatais, inibia a concorrência e o individualismo, introduzindo a uniformidade entre os espartanos, que, orgulhosamente, chamavam a si próprios de homoioi = iguais).Por outro lado, atendidos em suas necessidades básicas pelo trabalho dos hilotas, os espartanos dedicavam-se integralmente a vida militar. E isso fazia sentido em uma sociedade na qual, para cada espartano, existiam dez hilotas. A superioridade numérica dos hilotas precisava ser contrabalançada pela qualidade militar dos espartanos.Essa foi a razão por que toda a educação ficou a cargo do Estado. As crianças que nasciam eram submetidas aos anciãos da tribo. Em caso de deficiência física, era ordenado o seu sacrifício, ou seja, elas eram atiradas no precipício. As outras permaneciam aos cuidados da mãe até os 8 anos, quando então eram entregues ao Estado.Sob o cuidado estatal a criança aprendia os rudimentos da escrita e da leitura, além de música, valorizada em sua função militar de elevar o ânimo dos soldados na guerra. De resto, o ensino resumia-se aos rigorosos exercícios militares e ao aprendizado da devoção e lealdade à cidade; enfim, ao desenvolvimento da destreza militar e da renúncia à própria individualidade.Aos vinte anos os espartanos eram submetidos a uma prova decisiva para serem admitidos no mundo adulto como verdadeiros soldados. Essa prova chamava-se criptia (isto quer dizer vida secreta) e consistia em viver escondido, alimentar-se do que se conseguia furtar e matar hilotas. Nesse último caso, não se excluía a possibilidade muito real de o próprio jovem ser morto pelos hilotas.Mesmo depois de atingir a vida adulta, o espartano era obrigado a fazer a refeição comum (syssitias) com os companheiros, para a qual contribuía com seus próprios recursos. Do contrário era excluído da categoria de cidadão.O perfil de um espartano típico era o de um homem com uma cultura sumária que nutria grande desprezo pela riqueza. De extrema simplicidade em seus costumes, contentava-se com uma alimentação frugal e era dono de extrema sobriedade verbal: exprimia-se com grande economia de palavras, em fórmulas breves e concisas. Daí vem a expressão laconismo (de Lacônia), utilizada ainda hoje para designar pronunciamentos breves. De resto, o espartano era um indivíduo dominado por um devotamento quase fanático pela sua cidade e estava sempre pronto para sacrificar a própria vida por ela. Essa vida simples e despojada, que exigia ao mesmo tempo grande sacrifício pessoal, caracterizou Esparta de tal modo que ainda hoje denominamos espartana uma existência simples e despojada.

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Essa elite que criou a mais poderosa cidade, na opinião dos próprios gregos, era constituída de aproximadamente 10 mil soldados. Todavia, apesar de se orgulhar da igualdade que a unia, havia discreta desigualdade de fortuna entre seus membros. Primeiro, porque era permitido acumular lotes (kleroi) através do casamento. Depois, porque as terras periféricas não enquadradas no sistema do loteamento estatal podiam ser objeto de compra e venda.A educação feminina restringia-se a fazer das mulheres mães de crianças sadias. As jovens praticavam ginástica e eram habituadas a se mostrar nuas nas festas. Comparativamente, elas eram muito mais livres do que as mulheres de Atenas, já que a vida familiar estava reduzida a quase nada. A educação das crianças era transferida para o Estado muito cedo, enquanto os próprios maridos passavam a maior parte da vida nos quartéis. Essa peculiar condição feminina deu às mulheres espartanas responsabilidades não usuais na Grécia. Muitas delas tornavam-se boas administradoras dos recursos familiares, chegando a multiplica-los em transações comerciais proibidas aos maridos, mas não a elas.6. O governo de EspartaO sistema político de Esparta era tipicamente oligárquico e altamente conservador. Mas a monarquia não desapareceu, e Esparta foi a única das grandes cidades a mantê-la. Na verdade, tratava-se de uma diarquia e não de uma monarquia, visto que em Esparta governavam dois reis, escolhidos entre duas famílias, os Ágidos e os Euripôntides, sendo a primeira aquéia, e a segunda, dória. Os membros dessas duas famílias de reis es¬tavam proibidos de contrair matrimônio entre si. Essa peculiaridade teve origem provavelmente no compromisso estabelecido entre as duas comunidades no momento da conquista. Detentores de grandes fortunas e honrarias, os reis eram os comandantes supremos do exército e tinham importantes funções religiosas.Porém, os poderes mais amplos eram exercidos tradicionalmente pela Gerúsia (Conselho dos Anciãos), composta de 28 membros com mais de 60 anos e presidida pelos dois reis.No século VII a.C. foi criada uma nova instituição, a Assembléia dos Cidadãos (Ápela), aberta à participação de todos os espartanos com mais de trinta anos. Nesse novo órgão eram discutidas e aprovadas as propostas de governo enviadas pela Gerúsia.Esse alargamento da participação política com a criação da Ápela resultou da crescente importância da infantaria (hoplita hoplita = homens armados), cuja atuação se consagrou na conquista da Messênia. Os gerontes (membros da Gerúsia) passaram a ser eleitos pela Ápela, que também escolhia os cinco éforos, integrantes do Eforato, detentores da suprema autoridade executiva, com mandato de um ano.Apesar da ampliação do sistema político, Esparta manteve as características oligárquicas de governo. Os gerontes, embora eleitos, eram vitalícios, e o Eforato, como guardião da tradição, detinha um grande poder, muitas vezes temível pela indefinição de seus limites. De fato, os éforos vigiavam de perto não só os costumes como a atuação dos reis, agindo ao mesmo tempo como policiais, juízes e supervisores da administração. Assim, quando entre o Eforato e a Gerúsia existia pleno acordo   o que ocorria sempre, nenhum outro poder tinha condições de contestar. Esse domínio completo sobre a

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cidade, feitas as contas, era exercido por 35 pessoas (as trinta da Gerúsia mais os cinco éforos).

As eleições em EspartaPlutarco, na obra “A vida de Licurgo”, trata, entre outros assuntos das eleições em Esparta. No trecho abaixo ele explica como se davam as eleições dos membros do Conselho dos Anciãos.Quanto ao conselho dos anciãos, foi o próprio Licurgo que, como eu já disse, nomeou os primeiros membros e estes foram os associados de sua empresa.Para o futuro o membro falecido deveria, conforme as disposições que ele tomava, ter por sucessor o cidadão do qual o valor seria julgado o mais alto entre os homens idosos de mais de sessenta anos.Esta era a mais importante, pensava ele, das competições existentes no mundo e a mais digna de ser disputada. Pois não se tratava do mais rápido dos rápidos, do mais forte dos for¬tes, mas do melhor e do mais sábio entre os bons e os sábios. [...]A escolha se fazia da seguinte maneira: reunia-se a Assembléia, designavam se os homens que se recolheriam em uma casa vizinha. Eles não podiam ver, nem serem vistos. Somente o clamor da Assembléia chegava a seus ouvidos. Era através de gritos, neste caso, como tudo o mais, que eles julgavam os concorrentes. Estes não eram introduzidos todos juntos mas, após o sorteio, um de cada vez atravessava em silêncio a Assembléia. Os membros do júri, fechados, tinham pranchetas, onde inscreviam para cada concorrente a amplitude do clamor. Eles ignoravam de quem estava-se tratando, sabendo somente que se tratava do primeiro, do segundo, do terceiro e assim por diante. Aquele que tivesse recebido as aclamações mais prolongadas e mais calorosas, eles o proclamavam eleito.(Apud Jaime Pinsky, “100 textos de História antiga. São Paulo: Contexto, 1999. p. 68-69)

ATENAS1. A origem de AtenasAtenas é a mais famosa cidade fundada pelos jônios e a mais conhecida e admirada das cidades gregas. Na península da Ática, onde se encontra, havia primitivamente inúmeras pequenas cidades, entre elas Elêusis e Maratona. Com o tempo, toda a Ática foi unificada por Atenas, segundo a lenda, pelo rei mítico Teseu. A ele se atribui a façanha de ter matado o Minotauro o lendário monstro cretense do labirinto, que tinha cabeça de touro e corpo de homem. Assim, na origem de Atenas, misturam-se realidade e lendas, mas é provável que a unificação da Ática tenha ocorrido por volta do século XIII a,C.                         2. Organização política do regime aristocráticoComo todas as cidades gregas, Atenas começou monárquica, mas tornou-se rapidamente aristocrática. A aristocracia ateniense, composta pelos chamados eupátridas (“os bem nascidos”), referia se a si mesma como os aristoi ("os melhores").O governo aristocrático de Atenas era composto por três magistrados eleitos por um ano, chamados arcontes, dos quais um era o basileu (rei), o outro, arconte polemarco (=chefe militar) e o terceiro, arconte epônimo. O

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nome desse último arconte era dado ao ano de seu governo - a palavra epônimo significa "aquele que dá ou empresta o nome". Assim, determinado ano era designado como o ano do arcontado de x ou y, conforme o nome de quem havia sido, naquele ano, o arconte epônimo, Porém, o núcleo real do poder era o Areópago (Conselho dos Anciãos). Existia também uma Assembléia do Povo (Eclésia), mas com poderes bastante reduzidos.3. A crise do regime aristocráticoBeneficiada por um território relativamente rico e extenso, Atenas não esteve entre as cidades que se lançaram à colonização. Mas o seu desenvolvimento não destoou da tendência geral. Como em outras cidades, a produção cerâmica e a metalurgia do ferro propiciaram o enriquecimento de um grupo de indivíduos que estava excluído do fechado mundo da aristocracia eupátrida. Desse grupo vieram as pressões para a abertura do sistema político.Acompanhando a tendência geral, também em Atenas desenvolvia-se um processo de concentração fundiária, que beneficiava os eupátridas, em prejuízo dos pequenos proprietários. Estes perdiam suas terras, eram escravizados ou forçados a trabalhar em terras alheias como hectémoros (sexteiros). Essa última denominação, referia-se aos camponeses que, trabalhando nas terras dos grandes proprietários, retinham para si apenas um sexto do que produziam, entregando os cinco sextos ao dono da terra.A combinação entre a revolta dos novos ricos e a dos camponeses empobrecidos abriu caminho para as reformas em Atenas.4. As reformas de Sólon (594-591 a.C)A reivindicação de leis escritas era comum às camadas populares de toda a Grécia. Em Atenas, a primeira tentativa fracassada de atender à reivindicação foi feita por uma comissão de seis legisladores (testometas). Logo depois, os eupátridas conseguiram impedir que um nobre, chamado Cílon, instalasse a tirania. Finalmente, em 621 a.C., Drácon, um arconte, estabeleceu as leis escritas. Contudo, as tensões sociais continuaram, já que a situação dos camponeses não havia mudado. O problema da distribuição desigual das terras só foi enfrentado por outro legislador, Sólon, em 594 a.C., quando uma guerra civil estava prestes a eclodir.Sólon, que era um eupátrida enriquecido no comércio, foi nomeado arconte em 594 a.C., com plenos poderes para empreender as reformas necessárias. Pela primeira vez na Grécia foram propostas medidas realmente avançadas, que fizeram prevalecer o interesse público em detrimento dos interesses privados dos eupátridas.Do conjunto das medidas introduzidas por Sólon, a decisiva foi, sem dúvida, a abolição da escravidão por dívidas, que era o meio pelo qual os eupátridas arregimentavam a mão-de-obra necessária para o trabalho em suas propriedades. A conseqüência imediata das reformas de Sólon foi, por isso, a estabilização das pequenas e médias propriedades, que se converteram em padrão em Atenas.Contudo, o espírito que presidiu as reformas de Sólon que era um moderado foi o da busca de um ponto de equilíbrio entre os interesses dos eupátridas e os do povo (demos). Por isso, as suas reformas foram consideradas demasiadamente radicais pelos nobres e muito moderadas pelo povo, descontentando assim a uns e outros. 

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As reformas de Sólono Abolição das dívidas antigas e proibição da escravização por dívidas. o Regime censitário: fim do monopólio político dos eupátridas, com a

divisão da sociedade em quatro classes, segundo a renda; às duas classes superiores foram concedidas as altas magistraturas, à terceira, os cargos na baixa administração, e à última, o direito de voto, mas não de voz, na Assembléia do Povo. (E importante salientar que o critério de renda era o rendimento da terra. Assim, na primeira classe, a dos mais ricos, estavam os que colhiam, no mínimo, 500 medidas. Na segunda, dos cavaleiros, os que colhiam de 300 a 500 medidas. Na terceira, a dos zeugitas, os que colhiam entre 200 e 300 medidas. Por fim, na dos thetas, os que colhiam menos de 200 medidas.)

o Criação do Conselho dos Quatrocentos, a Bulé, que iria contrabalançar o poder do Areópago, órgão tradicional aristocrático, que se restringiu às suas atribuições religiosas e judiciárias. A Bulé estava encarregada de preparar as sessões da Eclésia, à qual tinham acesso todos os cidadãos.

o Criação do tribunal popular, o Helieu (ou Heliéa), ao qual tinham acesso as quatro classes, como membros.

5. A tirania de Pisístrato (561-528 a.C.)Pelas razões apresentadas, as reformas de Sólon estavam condenadas a não durar. Nos trinta anos seguintes, a anarquia irrompeu de tempos em tempos, e uma importante reforma foi feita na legislação: a renda em dinheiro foi tomada como critério de classificação do indivíduo na hierarquia das quatro classes, criada por Sólon. Com essa mudança foram colocadas no mesmo plano a renda da terra e a do comércio (riqueza mobiliária), o que abriu os altos escalões do governo aos comerciantes e armadores, que imprimiram uma nova dinâmica à política ateniense. Essa concessão foi reflexo do rápido desenvolvimento mercantil verificado após a criação de uma moeda ateniense própria, o dracma.Aos poucos, os diversos interesses em jogo se cristalizaram em três agrupamentos sociais, geograficamente bem delimitados:

o paralianos: moradores da costa, que agiam em defesa do desenvolvimento comercial;

o pedienses: grandes proprietários da planície o diacrenses: pequenos proprietários das montanhas, cujos interesses

se opunham aos dos dois grupos anteriores. A insatisfação e revolta dos diacrenses tornou-se um campo fértil para políticos ambiciosos, entre os quais se destacou Pisístrato.Parente de Sólon, Pisístrato era dono de uma grande fortuna, ocupou o cargo de arconte polemarco (supremo chefe militar) e se tornou líder dos diacrenses. Depois de simular uma tentativa de assassinato da qual teria sido vítima, adquiriu o privilégio de ter uma guarda pessoal, Com a qual tomou o poder em 561 a.C. Foi desalojado, mas retornou em 550 a.C., sendo novamente expulso. Conquistou o poder definitivamente só em 540 a.C., tornando-se então o primeiro tirano de Atenas, situação que perdurou até sua morte, em 528 a.C.O governo de Pisístrato destacou-se pelo caráter anti-aristocrático, tendo promovido a efetiva independência dos pequenos e médios proprietários e estimulado o comércio e o artesanato. Voltado para o interesse popular,

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realizou inúmeras obras públicas, cuja execução proporcionou a criação de empregos para os pobres; além disso, dividiu as grandes propriedades, fez empréstimos aos camponeses, instituiu a justiça itinerante com a qual se evitava o incômodo deslocamento dos camponeses para a cidade, deu apoio à produção de cerâmica de Atenas que, assim, superou a de Corinto e estabeleceu contatos comerciais com varias regiões do Mediterrâneo, dinamizando o comércio marítimo.O êxito dessa política manifestou-se na prosperidade econômica, que logo se refletiu na remodelação arquitetônica de Atenas - vários templos foram erguidos para o culto de diversos deuses. O florescimento da religiosidade popular, que ocorria paralelamente ao despertar da cultura, levou Pisístrato a patrocinar as grandes festas religiosas, como as Panatenéias e as Grandes Dionisíacas, e a promover concursos teatrais que deram a elas um brilho excepcional. Hiparco e Hípias, filhos e sucessores de Pisístrato, deram continuidade à política do pai, mas a oposição à tirania havia crescido. Sem o mesmo talento de Pisístrato, os irmãos tiranos tenderam a endurecer o regime, encomendando inclusive assassinatos políticos. A brutalidade praticada por eles, porém, apenas acirrou os ânimos. Hiparco foi assassinado por dois jovens aristocratas, e Hípias foi deposto em 510 a.C. pelos eupátridas, apoiados pelo exército espartano do rei Cleômenes, e fugiu para a Pérsia.6. Clístenes e a criação da democraciaCom a derrota e a fuga de Hípias, era de esperar que Atenas retrocedesse ao regime aristocrático, firmemente apoiado por Esparta. Essa possibilidade realmente existiu, mas a ela se opôs um líder eupátrida, Clístenes, que, apoiado pelo povo, derrotou seus adversários. Alçado assim ao poder, o novo chefe político implantou reformas radicais, fundando a democracia.Esse processo, que caminhou da tirania para a democracia, alterando em profundidade a natureza da sociedade ateniense, ocorreu paralelamente à introdução massiva da escravidão. Veremos adiante que a coincidência entre o progresso da escravidão e o florescimento da democracia nada tem de paradoxal.As reformas de Clístenes, cujo objetivo era quebrar definitivamente o poderio aristocrático, começaram com um radical reordenamento social. Os atenienses foram divididos em cem circunscrições territoriais, demos, distribuídas por três regiões distintas: a cidade, a costa e o interior. Os cem demos foram agrupados em dez tribos, levando se em conta um detalhe: cada tribo era formada por um número proporcional de demos de cada uma das três divisões regionais (cidade, costa, interior) para evitar particularismos.As conseqüências imediatas dessa surpreendente reorganização social foram:

o todos os cidadãos, independentemente de sua condição, passaram a pertencer a um demos;

o visto que cada tribo era formada por um número proporcional de demos das três regiões, a influência dos interesses locais foi neutralizada em favor dos interesses gerais;

o a influência política das grandes famílias aristocráticas foi eliminada

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o as instituições políticas foram ajustadas à nova organização social, estabelecendo se as bases da democracia ateniense.

No momento em que Clístenes concluía as suas reformas, Atenas não era, porém, militarmente tão poderosa quanto Esparta nem dispunha de uma economia mercantil mais dinâmica do que a de Corinto. Com as Guerras Médicas, ocorridas um pouco depois, esse quadro se modificou, e Atenas se tornou a potência hegemônica da Grécia. 

As reformas de ClístenesCom base na nova organização social, Clístenes remodelou as instituições políticas.

o A Bulé (o Conselho dos Quatrocentos, criado por Sólon) passou a ter quinhentos membros, à razão de cinqüenta por tribo, escolhidos por sorteio. Tornou se um importante órgão político: cuidava da administração, elaborava leis a serem discutidas na Eclésia (Assembléia do Povo) e cumpria funções judiciárias.

o O Arcontado, ou magistratura suprema, passou a ter dez arcontes, um por tribo.

o Foram criadas dez unidades de infantaria hoplita e dez esquadrões de cavalaria, cujo comando foi entregue a dez estrategos (generais), eleitos à razão de um por tribo.

o Foi instituído o ostracismo, que consistia no exílio por dez anos de cidadãos considerados nocivos à ordem pública. Considerada um recurso para neutralizar a tirania, a pena do ostracismo precisava ser votada na Eclésia, e o cidadão a ela condenado conservava os seus bens, além de sua família não ser obrigada a acompanha-lo no exílio.

o Duas instituições não sofreram alterações: a Eclésia e o Areópago.  

A FORMAÇÃO E TRANSFORMAÇÃO DA GRÉCIA ANTIGA A FORMAÇÃO DA GRECIA ANTIGA 1. Os indo-europeusO estudo da língua é um dos importantes meios para identificar certos grupos humanos do passado. Assim, segundo os estudiosos, a maioria dos idiomas falados na Europa, na América, na índia e em algumas partes da Ásia descendem do grupo lingüístico composto pelo hitita, tocário, indo-iraniano, grego, ilírico, ítalo-celta, germânico, báltico, eslavo, albanês, armênio e traço-frígio. Esse grupo de línguas originou- se, por sua vez, de uma língua comum: o indo-europeu ou indo-germanico, da qual não há registro mas se sabe, com certeza, que foi falada por volta de 4500 anos antes de Cristo.Os gregos eram um povo indo europeu, e a sua língua era constituída de

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quatro dialetos: jônico-ático, aqueu, eólio e dórico, que correspondiam às quatro tribos das quais eles se originaram: jônios, aqueus, eólios e dórios.Os indo-europeus começaram a chegar por volta de 2000 a.C. à região que mais tarde seria a Grécia. Os primeiros foram os jônios, e não os aqueus, como geralmente se afirma. Eles permaneceram ali praticamente sozinhos até 1580 a.C., quando chegaram os aqueus e os eólios. A Ultima corrente indo-européia a se estabelecer na região foi a dos dórios, a partir de 1200 a.C. 2. As duas civilizações gregasAté muito recentemente, conhecia-se bem pouco da história da Grécia anterior a 800 a,C. Porém, a decifração da primitiva escrita grega, a Linear B, em 1953, e as descobertas arqueológicas das últimas décadas possibilitaram um notável avanço nos conhecimentos sobre o período da história grega compreendido entre 1950 e 800 a.C.Com base nesses conhecimentos, podemos dizer hoje que houve, na realidade, duas civilizações gregas. A primeira, que floresceu entre 1950 e 1100 a.C., denomina-se micênica, e a segunda, que se desenvolveu entre 800 e 338 a.C., constitui a civilização grega da pólis. Entre uma e outra pode-se dizer que se verificou uma regressão histórica, fruto da desorganização trazida pela invasão dória.De fato, foi somente depois do século II a.C. que os gregos começaram a chamar a si mesmos de helenos e inventaram uma genealogia segundo a qual descendiam de um antepassado comum, Helen ou Helene, um lendário rei da Grécia. Por que então, em português, dizemos grego em vez de helenos para nos referirmos a esse povo? A explicação é a seguinte: Aristóteles (384 322 a.C.), filósofo grego, afirmava que a denominação pré-histórica dos helenos era graikos, termo que passou para o latim (língua dos romanos) como graecus e daí para o português como grego. A periodização da história gregaA história da Grécia antiga estende se por um período de quase 2000 anos: de 1950 a.C. (quando chegam os jônios) a 338 a.C. (invasão macedônica). Ao longo desse período, podemos identificar na história grega quatro fases distintas:Período Micênico (1950 a 1100 a.C.): época do povoamento e da formação da primeira civilização em solo grego, a Civilização micênica, que se desenvolveu sob grande influência cretense.• Período Homérico (1100 a 800 a.C.): fase de regressão, devido à invasão dória. Durante trezentos anos, a Grécia regrediu a uma forma primitiva de organização social e econômica. No final do período, surgiram as cidades-Estados.• Período Arcaico (800 a 500 a.C.): as cidades-Estados evoluira e amadureceram, destacando-se entre elas Atenas e Esparta.Período Clássico - 500 a 338 a.C.): as cidades-Estados chegaram a sua plena maturidade quando a democracia ateniense atingiu o máximo

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de esplendor, na época de Péricles. Em 338, Filipe, rei da Macedônia, invadiu a Grécia e pos fim à independência das cidades gregas.Período Helenístico, constituído por duas fases: de 338 a 323 a.C.: com a morte de Filipe em 336, o trono foi ocupado por seu filho Alexandre Magno, que formaria um vasto império universal.de 323 a 275 a.C.: fragmentação do impé¬rio e nascimento das monarquias helenísticas (Macedônia, Pérgamo, Asia e Egito).

 O nascimento e as transformações políticas e sociais das poleis 1. A desigualdade social e o nascimento da Grécia clássica A civilização micênica foi destruída pelos dórios, que a devastaram entre 1200 e 1100 a.C. Com isso, a Grécia regrediu a um estágio primitivo de organização social, cujo núcleo principal parece ter sido a comunidade familial. Cada grupo tinha a sua terra e a cultivava coletivamente. Com o tempo, essas comunidades foram se desmembrando, e a distribuição das terras tornou-se desigual. Esse fenômeno ocorreu de modo generalizado em todas as aldeias tribais em que os gregos haviam se organizado depois da invasão dória. Simultaneamente à diferenciação social provocada por essa redistribuição da terra, as aldeias de uma região se uniram através de um processo que os gregos denominaram sinecismo ("habitação comum"), do qual surgiram as cidades-Estados, ou póleis (plural de pólis).Diferentemente das primitivas cidades micênicas, as póleis eram menos extensas, porém muito mais numerosas. Em meados do século VI a.C., incluindo as que foram fundadas fora da Grécia, as cidades Estados gregas eram 1500, todas elas independentes, com governo próprio. 2. Aristocracia: guerreiro e proprietárioA grande novidade na sociedade grega do período arcaico foi a invenção da propriedade privada da terra. Numa sociedade com claro predomínio social do guerreiro, essa inovação trouxe à cena um novo personagem, o guerreiro proprietário, e com ele um novo princípio de hierarquização social. Assim, ao lado da divisão em guerreiros e não guerreiros, a sociedade grega começou a apresentar também a divisão em proprietários e não proprietários, com a hierarquização dos primeiros em grandes, médios e pequenos proprietários.A divisão social tornava-se, assim, mais complexa do que a verificada em sociedades anteriores. Apesar dessa nova realidade histórica em desenvolvimento, as póleis que se constituíram no final do período homérico eram governadas por reis, tal como no passado ocorrera na sociedade micênica. A monarquia, entretanto, não durou muito. A propriedade privada havia criado a possibilidade de uns ficarem com maior parcela de terras do que outros, e isso mudou muita coisa. A primeira conseqüência foi justamente a transferência do poder dos reis

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para um grupo restrito de poderosas famílias de guerreiros que haviam se tornado grandes proprietárias de terras, ao qual podemos chamar, adequadamente, de nobreza ou aristocracia. A propriedade privada da terra foi, assim, responsável pela transformação do guerreiro em aristocrata.3. A concentração da propriedade fundiária A concentração de terras que deu origem à aristocracia não foi, entretanto, um processo indolor. Para que algumas poucas e poderosas famílias ficassem com as maiores e as melhores terras, outras certamente foram obrigadas a ceder lugar pela força. Dessa repartição desigual de terras resultaram as três categorias de proprietários: grandes, médios e pequenos. Com o crescimento populacional do século VIII a.C., esses últimos foram os que mais sofreram.Tendo que sustentar proporcionalmente mais pessoas, os pequenos proprietários empobreceram e tinham, então, que escolher entre solicitar empréstimos aos grandes proprietários nobres, ou sair da Grécia à procura de novas terras.Os que adotaram a primeira solução permaneceram na Grécia. Os empréstimos eram feitos em gêneros alimentícios, que os agricultores empobrecidos não tinham depois como pagar. Como resultado, eram colocados diante de duas alternativas. A primeira consistia em entregar alguém da família ou a si mesmos como escravos para quitar a dívida. A segunda, em entregar a terra, mas continuar a trabalhar nela como hectémoros ou sexteiros. Isto é, tinham o direito de reter para si e para a família apenas um sexto do que produziam, entregando os cinco sextos restantes para o novo dono da terra.Os nobres devem ter percebido que fazer empréstimos aos agricultores em dificuldade era um negócio muito lucrativo, pois eles podiam ao final acabar obtendo mais terras ou então mais escravos. E, de fato, a nobreza das cidades gregas estava concentrando as terras em suas mãos e se convertendo rapidamente numa camada social escravista.Um grande número de agricultores, porém, resolveu emigrar, e desse movimento nasceu a colonização grega do século VIII a.C. Essa colonização, essencialmente agrícola, abrangeu várias regiões do Mediterrâneo, mas concentrou se em dois pontos: no Ocidente, no sul da Itália e Sicília e, no Oriente, nas margens do mar Negro. 4. A colonização grega e suas conseqüências Esse movimento colonizador coincidiu com a expansão do comércio que se fazia entre as cidades na Grécia continental e que, a partir de 650 a.C., abrangeu também as áreas colonizadas. A ampliação do horizonte mercantil dinamizou por sua vez a economia grega, beneficiada ainda pela invenção da moeda, verificada no pequeno reino da Lídia, em 680 a.C.No transcorrer desse processo formou-se uma nova camada de homens enriquecidos pelo comércio e cuja fortuna foi investida também na aquisição de terras, dando origem a uma nova aristocracia.Para a aristocracia tradicional, o desenvolvimento mercantil teve também efeitos benéficos. O solo grego era inadequado para certos

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tipos de cereal, como o trigo, mas apropriado para a cultura da vinha e da oliveira. Por essa razão, nas terras dessa aristocracia tradicional o cultivo de cereais foi sendo substituído pela produção de vinho e azeite, voltada para o comércio colonial. A Grécia continental passou então a importar cereais das colônias, que chegavam em abundância e a baixo preço. Os pequenos proprietários que não dispunham de recursos para fazer a reconversão das culturas pois a vinha e a oliveira requerem um longo tempo de maturação foram arruinados. 5. A crise do regime aristocráticoNesse quadro de transformações econômicas, as aristocracias tradicionais, que monopolizavam o poder, viram-se diante de dois problemas. De um lado, a nova aristocracia, que, graças ao comércio, ganhara uma posição de destaque, ansiava por participação no governo das cidades, forçando a abertura política. De outro, as camadas populares clamavam por reformas para pôr freio à sua pauperização. Essa dupla pressão, do alto e da base, colocou em xeque o regime aristocrático, inaugurando uma fase de instabilidade em toda a Grécia. 6. Os primeiros legisladoresA questão das dívidas, da qual podia resultar tanto a perda da propriedade quanto da liberdade (escravidão por dívidas), era, no essencial, um problema a ser decidido na esfera da justiça. Porém, as leis então praticadas eram transmitidas oralmente e aplicadas pela aristocracia tradicional que governava a cidade. Sua aplicação ficava assim sujeita a interpretações arbitrárias, abusos e corrupções. Por essa razão, a mais forte reivindicação das camadas populares foi, inicialmente, de leis escritas.Esse movimento ganhou corpo também nas colônias, que foram, aliás, as primeiras a adotar as leis escritas. Primeiro em Locros 660 a.C.), no sul da Itália, com o legislador Zaleuco, e algum tempo depois em Catânia, na Sicília, com o legislador Carondas. Mais para o fim do século VII a,C., em 621, a cidade de Atenas cedeu à pressão popular e nomeou Drácon, encarregando-o de estabelecer as leis por escrito.As leis adotadas por esses primeiros legisladores ficaram famosas pela severidade. Zaleuco reeditou a lei de talião   da qual originou o princípio do “olho por olho, dente por dente”, e Drácon não foi menos rigoroso. Ainda hoje, chamamos de draconianas às leis demasiadamente severas.Apesar disso, é preciso destacar um aspecto positivo dessa realização grega. Os assassinatos, até então tidos como questões privadas e, por isso, dizendo respeito apenas às famílias envolvidas, eram resolvidos pela vendetta (=vingança). Em conseqüência disso, assassinatos mútuos perpetuavam conflitos sangrentos entre as famílias. A severidade das leis teve por objetivo impor a presença do Estado como distribuidor de justiça, assinalando desse modo a passagem da justiça privada para a pública. 7. A tirania e o fim do regime aristocrático

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A atuação dos legisladores restringiu em boa parte a arbitrariedade dos governos aristocráticos, mas não foi suficiente para derrota-los. Para completar a obra de desmantelamento do regime aristocrático iniciada pelas pressões populares, foi preciso outro movimento: a tirania. A palavra tirania significava, para os gregos, "governo ilegítimo", isto é, que chegara ao poder pela força. Como tipo de governo, a tirania não deve ser confundida com a ditadura, que é uma instituição romana.A cidade de Corinto foi a primeira a adotar a tirania, em meados do século VII a.C.. Os tiranos vinham de famílias cuja fortuna se devia ao desenvolvimento mercantil e que ansiavam por uma posição política correspondente à sua importância econômica, uma vez que eram prejudicadas pelo exclusivismo da aristocracia tradicional, que bloqueava a sua ascensão. Mas essas famílias só conseguiram implantar a tirania graças ao apoio popular que receberam.Como materialização da aliança entre a camada dos novos ricos e o povo, a tirania voltou se contra o regime aristocrático e foi responsável direta pelo seu desmantelamento. Por toda parte onde se instalou, a tirania caracterizou se como um governo anti-aristocrático, colocando em prática de modo efetivo as reformas preconizadas por aqueles legisladores que estavam sinceramente empenhados em minorar os sofrimentos das camadas populares. Os mais importantes resultados da tirania na Grécia foram o bloqueio da tendência de concentração de terras nas mãos da aristocracia, a consolidação das pequenas e médias propriedades e o fim do monopólio político da nobreza. 8. A constituição do sistema escravistaComo resultado das reformas, com raras exceções, as cidades-Estados gregas tornaram-se mais igualitárias e democráticas.Mas o conjunto dessas transformações deixou sem solução um problema relativamente importante: o da escassez de mão-de-obra, surgido em decorrência da recuperação das pequenas e médias propriedades e da proibição da escravização dos próprios gregos por dívidas. Foi para resolver esse problema que ganhou impulso em toda a Grécia a escravização de estrangeiros capturados em guerra ou em atos de pirataria.A escravidão era conhecida no mundo antigo. Fazer a guerra, vencer e escravizar os inimigos eram práticas bastante corriqueiras. Nem o Egito nem a Mesopotâmia desconheciam a escravidão, Porém, ambos ignoravam o escravismo como sistema. Para egípcios, mesopotâmios e outros povos antigos, a escravidão jamais foi o eixo e a chave de suas organizações sociais, mas foi ambas as coisas para os gregos e, mais tarde, para os romanos. Afirmar que, para esses últimos, a escravidão foi o eixo e a chave da sua organização social equivale a dizer que esta, sem a escravidão, não teria sido o que foi. Essa é a diferença entre as sociedades que apenas tiveram escravos e as que fizeram da escravidão um sistema.Para egípcios e mesopotâmicos, extinguir a escravidão não implicaria desorganizar a sociedade.A escravidão na Grécia não foi, portanto, um mero acidente, mas um sistema com mecanismos de reposição e expansão plenamente integrados na lógica do funcionamento da sociedade. A escravidão foi

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um fenômeno estrutural na Grécia. 9. A emancipação intelectual da GréciaAo se tornar um sistema, o escravismo afetou não só a economia, mas toda a esfera da vida social grega.Da generalização do trabalho escravo na Grécia decorreu, antes de tudo, a estratégica distinção entre homem livre e cativo. A sua repercussão imediata pôde ser notada na formulação do conceito de liberdade, em oposição ao conceito de escravidão. Por outro lado, transferindo para os escravos não só o trabalho pesado, mas também as tarefas manuais corriqueiras, os homens livres puderam dedicar se às atividades intelectuais, que notabilizaram a civilização grega, e à participação nas atividades políticas, que culminaria na construção da democracia. Em suma, tanto a excelência intelectual e artística da Grécia quanto a sua rica experiência política assentaram-se no trabalho da imensa população escravizada. É importante notar, por fim, que a difusão da escravidão caminhou paralelamente ao aparecimento da democracia. Assim, a cidade de Quios - uma ilha -, que foi a primeira a introduzir a escravidão em grande escala, foi também a primeira a adotar a democracia. Mas foi a cidade de Atenas, sem dúvida, aquela que melhor representou o padrão grego de civilização. 10. Civilização urbana e economia ruralNa origem do extraordinário florescimento da civilização grega encontra-se o desenvolvimento da vida urbana. Contudo, o desenvolvimento e a importância das cidades na Grécia não tiveram como base uma economia urbana de vulto. Ao contrário, a economia grega permaneceu, até o fim, essencialmente rural. O comércio e o artesanato atividades eminentemente urbanas em momento algum da história grega sobrepujaram a economia rural.Assim sendo, como explicar a existência de uma civilização urbana tão marcante como a grega, que não se sustentava em uma economia urbana compatível com sua dimensão e importância? A resposta está na escravidão. Os escravos trabalhavam no campo permitindo aos seus senhores residir na cidade. Esse foi o segredo da civilização grega. 

UNIDADE E DIVERSIDADE DAS CIDADES GREGAS 1. A formação da identidade grega Acabamos de examinar os traços gerais da evolução política grega. Mas a existência desses traços não significa que reinava a harmonia entre os gregos. A unidade existia, mas como síntese da diversidade. Vejamos como essas duas coisas se combinaram na Grécia.Durante a época micênica, a influência dos aqueus foi tão grande que Homero utilizou o termo aqueus para designar também os jônios e

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eólios. No Período Homérico, em virtude do retrocesso provocado pela invasão dória, nenhum nome genérico foi criado para designar os gregos. Somente no século VII a.C. os gregos começaram a designar a si próprios como helenos. Em geral, é a essa fase que nos referimos quando falamos em civilização grega. 2. A organização socialA inovação principal desse povo, ou dos gregos propriamente ditos, foi a criação das cidades Estados (póleis).Apesar de inovadoras, as cidades-Estados conservaram ainda as formas tribais de organização uma reminiscência dos tempos homéricos. Na realidade, a pólis havia se constituído pela união das tribos.Enquanto as póleis eram compostas de tribos, estas se subdividiam em várias fratrias (de frater, "irmão"), que eram formas muito antigas de organização religiosa. Seus membros se consideravam irmãos, pois acreditavam descender de um ancestral comum e cultuavam as mesmas divindades. As fratrias, por sua vez, estavam divididas em clãs (gené, plural de genos), família em sentido amplo, que abrangiam primos, tios, avós, etc. Assim, partindo das unidades menores para as maiores, teríamos o seguinte esquema: genos   fratria    tribo  pólis Quem foi Homero?Não se sabe ao certo quem foi Homero. Há indícios de que ele, na verdade, reuniu nas obras Ilíada e Odisséia poemas que, embora fossem de autores desconhecidos, passaram a partir do século IX a.C. a ser atribuídos a ele. O certo é que sem esses dois poemas épicos se conheceria muito menos sobre os gregos da época micênica, e a história contada desse povo seria muito diferente. Os gregos antigos já davam a essas obras uma enorme importância, e há quem diga que os poemas teriam para os gregos o mesmo papel que a Bíblia teve para a civilização ocidental.A narrativa que constitui esses poemas reúne elementos reais e fantásticos, imaginários e históricos, deuses e seres mortais. Revela, por isso, muito da cultura de seu tempo.Na Ilíada são narradas as aventuras de Aquiles nos últimos anos da guerra dos gregos contra os troianos e destacados valores como a honra, a bravura, a fidelidade, a moral.Na Odisséia são narradas as aventuras de Ulisses na sua volta para casa, após o fim dessa guerra. Composto de 24 cantos, o poema é muito rico de informações sobre o dia-a-dia dos gregos no período homérico.

Esse esquema, elaborado pelos próprios gregos antigos, foi adotado pelos historiadores. Porém, há dúvida em relação ao genos, organização que não parece ser tão antiga como os gregos pensavam. Ela seria, na verdade, apenas "uma criação artificial, nascida do orgulho das famílias poderosas, desejosas de justificar seu domínio por um enobrecimento a posteriori, segundo o historiador Paul Petit . Essa é uma suposição

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bastante razoável, visto que o igualitarismo das fratrias e não o exclusivismo do genos parece estar na origem da formação social dos tempos homéricos. Como conclui o mesmo autor, "o genos seria, na realidade, não a causa, mas somente o resultado do nascimento generalizado do regime aristocrático".Quando os gregos se referiam a uma pólis, não tinham em mente apenas seu território. Ao dizer, por exemplo, Atenas, referiam-se ao mesmo tempo aos atenienses e ao seu governo. A pólis não era, portanto, um lugar geográfico, mas um espaço político.As cidades-Estados gregas tinham vários traços em comum, mas suas particularidades se destacavam. Ciosas de sua independência e de suas peculiaridades, elas tendiam a rivalizar em todos os campos esportivo, artístico e, por vezes, militar umas com as outras. Cada uma tinha sua divindade protetora, e as discórdias e conflitos eram freqüentes, principalmente entre cidades vizinhas. Atenas, por exemplo, era inimiga de Egina e Mégara, da mesma forma que Platéia era inimiga de Tebas, e Corinto, de Argos. Porém, nenhuma oposição foi mais marcante e exemplar do que entre Esparta (cidade de origem dória) e Atenas (de origem jônica).  

As primeiras sociedades históricasA DESIGUALDADE SOCIAL E A INVENÇÃO DA ESCRITA1. História antes e depois da escritaOs historiadores consideram a invenção da escrita um acontecimento da maior importância. Segundo uma visão tradicional, o seu surgimento assinala a passagem da Pré-História para a História propriamente dita. São chamadas de históricas as sociedades que deixaram documentos escritos, através dos quais são estudadas, ao passo que são pré-históricas as que desconheciam a escrita e deixaram apenas restos ou vestígios materiais.Portanto, a escrita é utilizada como critério para distinguir a História da Pré-História, sem que isso implique um juízo de valor; o domínio da escrita não torna as sociedades históricas necessariamente superiores às pré-históricas. A escrita deve, isto sim, ser vista como manifestação de uma profunda transformação das sociedades humanas.2. A origem da escritaAlguém pode pensar que a escrita, desde a sua invenção, sempre serviu para a produção de cartas, livros, transmissão de notícias, etc. Houve momentos em que até os especialistas chegaram a pensar assim. Em 1939 foram encontradas na Grécia cerca de seiscentas placas de argila contendo uma escrita que os arqueólogos chamaram de “Linear B” e que ninguém sabia decifrar. Um historiador francês conta qual era então a expectativa dos estudiosos:Antes da decifração “da Linear B”, devaneara-se muito quanto ao conteúdo das placas: pensava-se encontrar nelas textos religiosos e literários, talvez mesmo uma Ilíada ou uma Odisséia primitiva. Os sonhos revelaram-se vãos. As placas são unicamente documentos administrativos, listas e inventários.

Jean Clenisson, um renomado historiador francês, escreveu um livro

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bastante conhecido de introdução ao estudo da História. Em certa passagem dessa obra ele afirma:"Sem documentos (bem entendido: documentos escritos), não há história": esta é a fórmula clássica. Até mesmo os que se rebelam contra ela são tacitamente levados a aceita-la. O primeiro volume de uma recente coleção histórica francesa, concebida dentro de um novo espírito, intitular-se-á: “O homem antes da escrita”.O homem após a escrita, o homem histórico", não é mais velho do que 5 milênios. Isto é bem pouco diante dos seiscentos milênios dos tempos sem escrita, a cujo respeito apenas dispomos de informações proporcionadas pelos restos, pelos vestígios de toda categoria, os desenhos e as pinturas nas paredes das cavernas, que constituem objeto de estudo da arqueologia. Sem dúvida, a regra não é completamente observada pelos povos aos quais se reserva, desde pouco tempo, a qualificação de "proto históricos". Situam-se eles na fronteira, instalados concomitantemente no limite extremo da pré-história e no limiar da história, pois são conhecidos tanto pelas pesquisas arqueológicas, quanto pelas tradições escritas de seus vizinhos, já possuidores de um alfabeto.(1niciação aos estudos históricos. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 1991. p. 42.)

O mais antigo registro escrito encontrado na Mesopotâmia também era um documento administrativo. Mesmo na América pré-colombiana, isto é, antes de Colombo, existiu algo equivalente entre os incas. Estes não chegaram a desenvolver a escrita propriamente dita, mas dispunham de um instrumento mnemônico chamado quipu, constituído de cordas coloridas com diferentes nós, que era utilizado como  “livro contábil" pelos funcionários do Estado.3. O poder e a escritaSão muitos os vestígios de que a escrita nasceu, de fato, como instrumento para registro da contabilidade dos bens dos templos e dos palácios. Os templos recebiam as oferendas dos fiéis, enquanto os palácios habitados pelos reis recebiam os impostos pagos por seus súditos. A concentração da riqueza e a necessidade de administrá-la conduziram, assim, a invenção da escrita. Tendo como origem o simples registro contábil, a escrita entretanto, desenvolveu-se até se transformar num meio privilegiado de expressão. Seu aprendizado demandava, porém, grande esforço do aprendiz. Por isso o domínio da escrita permaneceu restrito a um pequeno grupo de pessoas e tornou-se fonte de prestígio. Num antigo documento egípcio, um pai dá o seguinte conselho ao filho:“Decide-te pela escrita, e estarás protegido do trabalho árduo de qualquer tipo poderás ser um magistrado de elevada reputação. O escriba está livre dos trabalhos manuais [...] é ele quem dá ordens [...]. Não tens na mão a palheta do escriba? É ela que estabelece a diferença entre o que és e o homem que segura um remo. As antigas inscrições que chegaram até nós são, na maioria, textos religiosos ou governamentais, quase sempre não passando estes últimos de exaltação dos feitos dos soberanos. As vezes, tais registros possuem um tom sombrio e cruel, como o de um imperador assírio que se gabava de ter derrotado os inimigos:[...] esfolei os maiorais [...]. E revesti a torre com suas peles alguns eu emparedei dentro da torre, a outros empalei em estacas sobre a torre [..] e

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cortei os membros dos seus oficiais [...]. Alguns cortei a cabeça e os dedos, a outros cortei o nariz, as orelhas [...] e de muitos arranquei os olhos. Aos mancebos e às moças, lancei na fogueira.Desejando comunicar as gerações futuras os próprios feitos para perpetuar a sua glória, esses reis procuravam moldar a História à sua imagem e semelhança. Inegavelmente, tiveram nisso grande êxito. A força dessa tradição milenar pode ser observada ainda hoje em grande parte dos livros de História, em que predominam narrativas dos grandes feitos dos governantes, enquanto pouca coisa se diz das camadas sociais inferiores, uma vez que muito pouco do que pensavam foi registrado por escrito.4. A origem das desigualdades sociaisNão parece haver dúvidas, portanto, de que a escrita foi precedida pela constituição do poder, do qual é um dos produtos. Como instrumento de poder, a escrita revela a existência da dominação e, portanto, da desigualdade entre os homens.Logo, mais do que a invenção da escrita, a transformação histórica de maior relevância foi a instituição da desigualdade social. A invenção da escrita foi, em princípio, um efeito secundário dessa transformação. Nesse sentido, à história da humanidade pode ser dividida em dois períodos fundamentais, diferentes desses a que estamos habituados. O primeiro caracterizado pela existência de sociedade sem classes, e o segundo, pelo aparecimento e difusão das sociedades de classes.Assim, conforme nosso ponto de vista, Pré-História vem a ser, na realidade, sinônimo de sociedade sem classes, e História, o período iniciado quando se constituíram as primeiras sociedades de classes. De acordo com esse critério, os incas, por exemplo, integram as sociedades históricas, pois, embora desconhecessem a escrita, viviam numa sociedade dividida em classes sociais, ou seja, havia indivíduos socialmente superiores e inferiores.

5. As primeiras sociedades históricas ou sociedades sem classesAs primeiras sociedades de classes surgiram quase simultaneamente em vários lugares. As mais antigas. representadas pelos egípcios e sumérios, constituíram-se por volta de 3200 a.C., às margens do rio Nilo e dos rios Tigre e Eufrates. Um pouco mais tarde (2500 a.C.), e de modo independente, o fenômeno se repetiu nas margens do rio Indo, no atual Paquistão, e do rio Amarelo, na China, dando origem as civilizações indiana e chinesa. Por volta de 2000 a.C., apareceram nos Andes e na Meso-América as culturas Chavín e dos Olmecas, das quais resultaram, respectivamente, as civilizações dos incas e dos maias e astecas. É interessante observar que todas essas sociedades apresentavam padrões estruturais  semelhantes: uma multidão de camponeses dominados e explorados por uma forte organização estatal integrada por guerreiros e sacerdotes sob a chefia de um monarca. Os egípcios e os sumérios (na Mesopotâmia) foram seus iniciadores e principais modelos. Vejamos mais de perto as características dessas primeiras sociedades históricas.

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AS SOCIEDADES ORGANIZADAS DE MODO ESTATAL1. Características Tanto no Egito corno na Mesopotâmia dos sumérios, todo o território era considerado propriedade dos deuses. Porém, na prática, os verdadeiros proprietários eram os reis, que em nome dos deuses cobravam dos agricultores os impostos com os quais sustentavam os guerreiros, os sacerdotes e a vida suntuosa da corte. Para efeitos práticos, os reis detinham a propriedade tácita ou teórica das terras, enquanto nas aldeias os agricultores tinham a sua posse útil, ou o usufruto da terra. Assim, uma vez que trabalhavam a terra que não lhes pertencia de direito, estavam sujeitos ao pagamento de tributos em espécie ou em trabalho (corvéia) aos reis e aos sacerdotes, conforme o caso. Entre os egípcios e os sumérios inexistia o que hoje denominamos propriedade privada.Portanto, era através da cobrança de impostos que o excedente se transferia para os membros da camada superior da sociedade, financiando a sua vida luxuosa. Podemos, portanto, caracterizar as sociedades suméria e egípcia do seguinte modo: embora desconhecessem a propriedade privada, encontravam-se já divididas em classes. O modo como sumérios e egípcios se organizavam para produzir correspondia assim a um modo de transição entre Pré-História e História, pois ignoravam a propriedade privada, como na Pré-História, mas já estavam divididos em classes, o que é típico das sociedades históricas.Uma vez que o Estado concentrava em suas mãos a propriedade teórica de todos os recursos naturais, a propriedade privada não tinha como se desenvolver, permanecendo insignificante e pouco expressiva. Guerreiros e sacerdotes não necessitavam, a rigor, de propriedade, pois encontravam-se na direta dependência do Estado, que os sustentava através dos tributos pagos pelos agricultores. Disso se conclui que, tanto na sociedade suméria como na egípcia, as camadas dominantes faziam parte do Estado. O Estado apresentava-se, pois, como a comunidade superior, em oposição a massa dos trabalhadores, que pertencia à comunidade inferior.À comunidade inferior, composta de trabalhadores agrícolas e artesanais, cabia prover materialmente a comunidade superior, integrada pelo monarca e sua família, pela nobreza cortesã ou guerreira e pelos sacerdotes. Porém, como essa camada superior era minoritária, pode-se pensar que ela absorvia um volume pequeno da produção total. Entretanto, não era isso o que ocorria. O Estado na verdade não limitava seus gastos à manutenção de seus integrantes. Ele mobilizava para a construção de obras públicas, palácios, templos, túmulos, etc,, um contingente imenso de trabalhadores, cujas despesas eram custeadas pelos impostos cobrados. Pode se compreender, assim, por que a comunidade inferior, a dos trabalhadores, que tudo produzia, era composta por gente empobrecida e oprimida.O fundamento do poder desses antigos Estados era a religião: os reis eram representantes dos deuses ou eram considerados deuses em pessoa, como o faraó. Apesar desse fundamento comum, as sociedades egípcia e suméria eram bastante diferentes quanto à forma.Enquanto o Egito estava organizado como um universal, os sumérios encontravam-se divididos em inúmeras cidades-Estados, entre as quais a rivalidade era permanente. As constantes guerras entre as cidades

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enfraqueceram os sumérios como um todo, abrindo caminho para a conquista, a unificação e a constituição do primeiro império mesopotâmico acadiano. Depois vieram outros: o primeiro império babilônico, o império assírio e o segundo império babilônico. Assim, na Mesopotâmia, as cidades-Estados sumerianas foram substituídas por impérios universais. Acadianos, babilônios e assírios, povos de língua semítica, substituíram os sumérios, povo não semita, na Mesopotâmia.Uma diferença fundamental entretanto persistiu entre egípcios e mesopotâmios: o poder imperial egípcio baseava se fundamentalmente na religião e num opressivo sistema burocrático, e o mesopotâmico, desde o tempo dos sumérios, era essencialmente militar.Trabalho obrigatório e gratuito que os trabalhadores prestavam a um senhor ou ao Estado. Esse tipo de tributo existiu entre inúmeros povos em diferentes períodos, mas sempre em sociedades que adotavam o trabalho compulsório. 

O RENACIMENTO CULTURALORIGENS DO RENASCIMENTO1. Origem e uso do termo RenascimentoGiorgio Vasari (1511-1574), italiano nascido na cidade de Arezzo, publicou em 1550 um importante livro sobre os artistas plásticos de sua época, intitulado Vida dos mais excelentes pintores, escultores e arquitetos italianos, desde Cimabue[1] até a nossa época. Em sua opinião, com a queda de Roma (476), a arte entrara em decadência,  renascendo  somente por volta de 1250. Vasari identificou três fases no que concebia como Renascimento (Rinascita, em italiano) artístico. Na primeira fase colocou como centro o pintor Giotto nascido em 1261 ou 1277 e morto em 1337. Na segunda, situada de 1400 a 1500, considerou como figura principal o pintor Masaccio (1401-1428) Na terceira fase, a mais importante das três, deu destaque a Leonardo da Vinci (1452-1519), Rafael (1483-1520) e Michelangelo (1475-1564). Essas três fases são denomidas pelos italanos Trecento, Quattrocento e Cinquecento, respectivamente.Vasari foi talvez o primeiro estudioso a empregar o termo Renascimento para descrever o florescimento artístico da Itália nos séculos e XVI. Mas somente no século XIX o termo passou a ser usado para identificar não só as criações artísticas na pintura, como todo o movimento então ocorrido, incluindo a literatura e a ciência, que tomava como modelo e inspiração a cultura da Antigüidade clássica.Enquanto o pintor italiano Giotto renovava as artes plásticas com suas obras, o poeta e escritor italiano Francisco Petrarca (1303-1374) destacava-se como o iniciador do humanismo. Não por coincidência, ambos anunciavam uma importante mudança no campo da cultura, denominada pelos historiadores, seguindo a tradição iniciada por Vasari, Renascimento cultural.

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2. Petrarca e o humanismoTambém Petrarca tinha em mente a idéia de renascimento, quando propôs uma nova periodização da história européia. Ele chamava de Antigüidade ao período que termina com a conversão do imperador Constantino ao cristianismo (337). O período seguinte constituía uma nova era, que Petrarca chamou de Moderna, e estendia se até a época em que ele vivia (século XIV). O termo Moderno, contraposto a Antigüidade, tinha então uma conotação negativa. Com o tempo, entretanto, Moderno foi sendo associado ao renascimento da cultura antiga e acabou ganhando um significado positivo. Sendo a época Moderna aquela em que os valores antigos estavam renascendo, firmou-se a idéia de que o período compreendido entre aqueles dois extremos constituía a época Média, a que estava no meio de duas épocas brilhantes: a Antiga e a Moderna. Idade Moderna acabou virando, assim, sinônimo de idade da Renascença.Petrarca considerava a sua época como parte de um “tempo obscuro”, iniciado com a decadência do Império Romano e a invasão dos bárbaros germânicos ou godos. Em comparação com a época dos antigos gregos e romanos, plena de realizações culturais, a sua época lhe parecia bastante pobre.Essa visão petrarquiana acabou sendo adotada, pois correspondia ao que muitos sentiam de maneira vaga e confusa. Petrarca deu forma e precisão a esse sentimento generalizado. Por ter sido ele o primeiro a expressar uma admiração particularmente intensa pela cultura greco-romana, os estudiosos concordam em fazer dele o iniciador de um importante movimento cultural, que veio a ser conhecido como humanismo, por revalorizar e retomar o estudo das ciências humanas ou humanidades. Nascia, assim, uma tradição de culto aos valores antigos e, com ela, a idéia de que as grandes realizações culturais da Antigüidade clássica haviam desaparecido com o fim do mundo antigo. Os germânicos, identificados como responsáveis diretos pela queda do Império Romano, foram tomados como a encarnação dos valores opostos àqueles que os humanistas propunham cultuar e exaltar. A brilhante civilização antiga, os humanistas contrapunham a barbárie gótica, a superstição e a ignorância traços que foram atribuídos (erradamente) como característicos de todo o período medieval.Deve-se, portanto, a Petrarca e aos humanistas que a ele se seguiram o entusiasmo pela cultura antiga greco-romana e o mérito de terem despertado uma nova atitude intelectual. Por isso, a respeito dos humanistas já foi dito que eram a “consciência do Renascimento”. Porém, devemos ter em mente que o termo humanismo refere-se ao aspecto intelectual e literário do Renascimento, não se incluindo nele o aspecto relativo às artes plásticas.3. Renascimento: uma denominação polêmicaAlguns historiadores consideram a adoção do termo Renascimento uma escolha infeliz, pois, segundo eles, a palavra sugere que o movimento de renovação artística e intelectual iniciado por Giotto e Petrarca não produziu nada além de imitações e cópias de obras de artistas e intelectuais da Grécia e Roma antigas. Outros criticam a escolha do termo, ressaltando que a cultura antiga não foi esquecida durante a Idade Média, de modo que seria um absurdo falar de “renascimento” de algo que não havia morrido.

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Tais historiadores exageram. Se o Renascimento fosse uma simples imitação e cópia do passado, a maioria dos historiadores não iria perder tempo em afirmar o contrário. Por outro lado, o fato de a cultura antiga não ter sido esquecida durante o período medieval não significa que no Renascimento ela tenha servido aos mesmos propósitos. Durante a Idade Média, a herança cultural do mundo antigo foi mobilizada para servir à teologia cristã. No Renascimento, a volta ao passado foi sintoma de inconformismo em relação à realidade do século XIV e usada para dar força e dignidade às inovações artísticas e intelectuais que estavam surgindo.O recurso ao passado para engrandecer uma realização do presente não é um fenômeno desconhecido na História. Ao contrário, isso ocorreu com freqüência. Duzentos anos depois de Petrarca, algo parecido aconteceu no campo da religião, quando Martinho Lutero rebelou-se contra a Igreja Católica e lançou as bases do protestantismo. O mesmo fenômeno repetiu-se durante as revoluções burguesas na Inglaterra e na Franca. Segundo um grande pensador alemão do século XIX, Karl Marx, Lutero inspirou-se nas palavras do apóstolo São Paulo, enquanto Cromwell e os revolucionários ingleses do século XVII tomaram de empréstimo a linguagem do Velho Testamento para exprimir com ardor a sua missão. Já os revolucionários franceses inspiraram-se na República de Roma e, mais tarde, quando Napoleão estava no poder, no Império. Marx comparou esse retorno ao passado ao processo de aprendizagem de uma língua estrangeira. Conforme suas próprias palavras, “o principiante que aprende um novo idioma traduz sempre as palavras deste idioma para sua língua natal; mas só quando puder maneja-la sem apelar para o passado e esquecer sua própria língua no emprego da nova terá assimilado o espírito desta última e poderá produzir livremente nela”. Podemos ilustrar esse fenômeno com outro exemplo: os primeiros automóveis tinham a forma de carruagens e só muito lentamente adquiriram um desenho próprio. Os diferentes estilos de automóveis só ganharam uma forma própria quando os seus desenhistas a “esqueceram” a carruagem. CARACTERISTICAS DO RENASCIMENTO1. O humanismoDe fato, apesar de a valorização da cultura antiga ser um dos traços característicos do humanismo, a sua verdadeira base foi o antropocentrismo, ou seja, a valorização do ser humano. Essa é uma característica que se opunha ao teocentrismo medieval. Porém, o fato de os humanistas serem antropocêntricos não quer dizer  que fossem ateus. Ao contrário, eles eram profundamente cristãos. Portan to, sem se afastarem da religião, os humanistas fizeram da capacidade, de conhecer pela razão uma das qualidades mais elevadas do homem.  A fim de poder empregar e desenvolver a inteligência humana, defenderam o livre exame dos textos sagrados, inclusive da própria Bíblia. Foi essa imensa confiança nas qualidades humanas que caracterizou o humanismo e foi também isso que levou o movimento a rever e a se inspirar na cultura greco-romana, que, sob esse aspecto, era um tesouro inesgotável.Na Idade Média, OS livros eram copiados manualmente e, por essa razão, eram raros. No século XIV começou se a utilizar a técnica da xilogravura, isto é, esculpiam-se as letras numa chapa de madeira, sobre a qual passava-se tinta e se

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deitava o papel. No início do século seguinte, os tipos (letras.) passaram a ser esculpidos separadamente e o livro era composto pelo tipógrafo. Mas, qualquer que fosse a técnica, havia um problema permanente: a madeira se desgastava rapidamente.Finalmente, em 1450, o alemão Johann Gutenberg ficou famoso por inventar os tipos móveis de chumbo, que permitiam uma tiragem em número inimaginável comparativamente com a possibilitada pelos tipos de madeira. A nova técnica proporcionou, em conseqüência, o barateamento do livro, que foi um importante aliado na difusão do humanismo. Ela permitiu a publicação de obras antigas, colocando-as ao alcance de um público relativamente amplo. Na Itália, ficou célebre a editora veneziana de Aldo Manucci, que acabou se tornando um importante centro de divulgação do humanismo.

 O mesmo espírito investigativo impulsionou o pensamento científico. Leonardo da Vinci, a figura de maior relevo dessa vertente do humanismo, escreveu: Minhas idéias nasceram da pura e simples experiência, que é verdadeira mestra [...]. A experiência é a única intérprete da natureza: é preciso,pois, consulta-la sempre e variá-la de mil maneiras [...] Sem experiência não há certeza [...]. Antes de formular uma regra geral, repita a experiência e veja se os resultados são constantes. [...] Nenhuma investigação humana pode se chamar verdadeira ciência, se ela não passa pelas demonstrações matemáticas. Muitos artistas e filósofos do Renascimento escreveram sobre a natureza e o seu valor para a arte, mas nenhum foi tão bom observador como Leonardo da Vinci. A prova tanto da sua curiosidade insaciável como do seu entendimento profundo da natureza pode encontrar se nos seus muitos desenhos e livros de notas. Muitas vezes, atrasando o trabalho das pinturas encomendadas, apontava meticulosamente tudo o que via à sua volta, embora fosse um lugar comum.Os primeiros desenhos dos anos setenta do século XV mostram o seu fascínio pelas paisagens, pelas montanhas, as rochas e a água, e pelos efeitos da cor e da luz na natureza. "As cores das sombras nas montanhas a uma grande distância adquirem um azul mais belo, muito mais puro, que as suas partes iluminadas." Essas observações incorporam se multas vezes nas suas pinturas. Deixou se fascinar cada vez mais pelos trabalhos da natureza mais complicados, um fascínio claramente evidente nos seus desenhos de plantas e de dissecações anatômicas, que o mesmo levava a cabo.[...] Um entendimento exato dos músculos e dos nervos foi a chave para as representações realistas de homens, mulheres e animais em ação: as observações anatômicas podiam conduzi-lo também a idéias sobre engenharia, incluindo uma máquina voadora. Inclusive as criações artísticas imaginativas dependiam da observação direta do mundo real.Leonardo imaginou os seus desenhos e notas formando um livro enciclopédico da natureza, com pequenos tratados sobre temas do ponto de vista da óptica, da anatomia e da pintura. As suas observações e pensamentos desenvolveram se numa filosofia natural baseada na totalidade da natureza. ”olho, a janela da alma, é o órgão principal pelo qual o entendimento pode obter a vista mais completa e magnífica das infinitas obras da natureza”. No entanto, como estudo pormenorizado, Leonardo não completou nenhuma grande enciclopédia nem tratado, mas só muito poucas pinturas.

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Foi esse modo de pensar, calcado na experiência e na demonstração matemática, que colocou Da Vinci na origem da ciência moderna, ao lado do polonês Copérnico (1470-I543), do alemão Kepler (1571-1630) e do italiano Galileu (1564- 1642). Os três últimos ficaram famosos por terem estabelecido, contra a vontade da Igreja, a teoria heliocêntrica, em contraposição à teoria geocêntrica, Por último, teve também enorme importância para o estabelecimento da ciência moderna o inglês Isaac Newton (1642-1727), que coroou o trabalho dos cientistas anteriores com a formulação da lei da gravitação universal.2. As artes plásticasA valorização da cultura antiga levou as artes plásticas a desenvolverem novas características. A pintura medieval estava aparentemente obcecada pelas divindades. Ao pintarem a Virgem Maria, por exemplo, os pintores medievais pareciam estar perseguindo um único objetivo: captar a sua divindade e não a sua humanidade ou feminilidade. Por isso, tinham a predileção por fundos dourados ou azuis, sobre os quais projetavam a sua imagem. Com essa técnica, o pintor sugeria que a Virgem Maria encontrava-se em algum lugar fora deste mundo.A pintura renascentista, ao contrário, caracterizou-se desde o início pela preocupação em representar o espaço de maneira naturalística, em três dimensões. E enquanto a pintura medieval era bidimensional  levava em conta apenas a largura e a altura os quadros renascentistas eram tridimensionais: além da largura e altura, adotaram também a profundidade. Para obter esse efeito, os artistas do Renascimento utilizaram perspectiva: o que se encontrava em primeiro plano maior do que as figuras de segundo plano, com os elementos representados diminuindo de tamanho proporcionalmente à distância a que na realidade estariam do olhar do observador.O uso da técnica da perspectiva imprimiu às obras dos pintores renascentistas duas características especiais: naturalidade e humanidade. Em outras palavras, as pinturas renascentistas eram realistas, o que significa que os pintores procuravam representar os elementos com o máximo de fidelidade. Isso é visível mesmo nas pinturas consagradas à representação de cenas bíblicas. Os pintores procuravam o que havia de humano na Virgem Maria ou no Menino Jesus e os ambientavam na realidade deste mundo, colocando os em cenários em que aparecem janelas, árvores, animais, etc., em vez de inseri-los num fundo azul ou dourado, sem vida.Outro aspecto bastante significativo dessa pintura foi a manifestação do individualismo, como atesta a multiplicação dos retratos, geralmente de figuras públicas (nobres, príncipes, reis, rainhas, etc.) ou de comerciantes abastados, burgueses).O individualismo, que com o passar do tempo se desenvolveu cada vez mais, tem as suas raízes na economia de mercado. Compreende-se: o jogo de compra e venda gera a concorrência entre os agentes econômicos. Concorrência inteiramente baseada no interesse material de cada um, Portanto, o comércio e uma atividade que divide as pessoas, transformando as em concorrentes. E isso que gerou o moderno individualismo. Por outro lado, o fato de cada um precisar confiar na própria iniciativa e criatividade, sem desviar a atenção da realidade concreta, calculando os riscos e os lucros, estimulou o comportamento racional. O uso da experiência e de

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cálculos matemáticos na procura da verdade tinha estreita relação com a crescente racionalidade da vida econômica. A perspectivaEntre os muitos avanços técnicos verificados nas artes durante o Renascimento, um dos mais importantes foi a descoberta da perspectiva linear, devida ao engenheiro Bruneleschi. O que hoje para nós parece bastante natural representar a dimensão da profundidade, respeitando a proporção foi um incrível aprimoramento alcançado pelos pintores renascentistas. Fazendo uso de cálculos matemáticos (proporção), os pintores passaram então a poder representar com maior realismo os vários planos (do mais próximo ao fundo infinito). O discípulo de Bruneleschi, Alberti, registrou essas descobertas no tratado Sobre a pintura, publicado em 1436. O segredo estava em calcular a diferença entre o tamanho do elemento representado e a distância do observador da pintura, de tal maneira que os planos horizontais deveriam convergir para o fundo da cena. Os pintores renascentistas foram aprimorando mais e mais essa técnica, explorando a percepção tridimensional das pinturas.Filippo Lippi usa essa técnica com grande mestria. Ele também demonstra dominar outra técnica tipicamente renascentista, a das transparências.

O Renascimento corresponde à transposição para a esfera cultural de uma certa conduta burguesa e, como tal, teve conseqüências. Em linhas gerais, as realizações artísticas e intelectuais do Renascimento contribuíram poderosamente para emancipar a cultura da tutela eclesiástica, ou seja, do domínio e dos interesses da Igreja. O Renascimento foi um importante elo no processo de libertação da razão, que culminou, no século XVIII na filosofia iluminista e na constituição da moderna sociedade burguesa e capitalista. Observemos, entretanto, que, embora seja incorreto desvincular o Renascimento da formação do capitalismo e, portanto, da burguesia, as obras de seus grandes artistas e humanistas não eram “capitalistas” ou “burguesas”, da mesma forma que não podem ser reduzidas a meras imitações ou cópias da cultura antiga. Na realidade, o renascimento ajudou a estabelecer, a partir de uma experiência social criada pela burguesia, um universo cultural em cujo centro se encontrava o ser humano e não Deus. Não se negava que Deus tivesse feito o mundo e os homens. Mas o que importava era a compreensão racional tanto da natureza quanto da sociedade. Essa mudança de perspectiva fez toda a diferença. Não foi por mero acaso que a moderna ciência nasceu nesse ambiente, no qual se buscava a explicação do porquê das coisas e dos homens não fora das coisas e dos homens, mas neles mesmos. Foi isso que nos trouxe o mundo em que hoje vivemos.3. Figuras do RenascimentoFrancisco Petrarca (1304-1374) foi um grande poeta, autor de Cancioneiro, obra que reúne 366 poemas, dos quais 31, são sonetos, sendo a maior parte dedicada  a Laura, seu amor de juventude. A originalidade da obra, na opinião dos estudiosos, está em o poeta ter transformado os próprios sentimentos e emoções nos temas principais de sua criação poética, o que fez dele o primeiro poeta lírico moderno.É preciso mencionar que essa obra, a mais apreciada entre as criações de Petrara, foi escrita em italiano, língua que também foi utilizada por outro grande poeta, Dante Alighieri (1265-1321), em seu grande poema Divina Comédia. Isso não era comum. Os escritores medievais exprimiam-se em latim a língua falada pelos antigos romanos e que a Igreja preservou como

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seu idioma oficial. O latim, por ser a língua adotada pela Igreja e pelos intelectuais, era considerado o idioma nobre, em contraposição às línguas usadas no dia a dia, faladas pelo povo, como o italiano, o francês, o português, etc., que compunham o que se chama de língua vulgar (vulgo, “povo”).Atribui-se a Dante Alighieri o mérito de ter “criado” a língua italiana moderna, ao escrever a obra-prima Divina Comédia, na qual narra em versos uma viagem imaginária pelo Inferno, Purgatório e Paraíso. O guia de Dante nessa viagem é o poeta romano Virgílio, que o conduz até as portas do Paraíso, onde é recebido por sua amada Beatriz. A narrativa focaliza personalidades do passado e do presente e o lugar em que o poeta diz te-las encontrado. Dante pintou, assim, um grande, painel de sua época, externando a sua opinião sobre as personalidades que vairetratando. Tanto Dante Aliglieri quanto Petrarca valorizaram a língua vulgar, fazendo do italiano uma língua literária. Também contribuiu para a transformação do italiano em língua literária o escritor Giovanni Boccaccio (1313-1375), autor de Decamerão, um livro com cem histórias, recolhidas de diversas fontes, que se tornou modelo da prosa italiana.O uso e a valorização literária da língua vulgar se difundiram em pouco tempo por toda a Europa. Foi na língua vulgar que produziram suas obras autores como Shakespeare (Inglaterra), Cervantes (Espanha), Rabelais (França) e Camões (Portugal). Essa tendência contraria explicitamente a tese que considera o Renascimento simples retorno e cópia dos antigos. MecenatoA Itália foi durante muito tempo apenas uma expressão geográfica e não um país. Desde a Idade Média (século XI) ela era composta de uma multidão de cidades-Estados independentes e assim continuou até a sua unificação no século XIX. Na época do Renascimento, algumas dessas cidades Estados, como Florença, Milão e Veneza, destacavam se não só pela riqueza, mas também pela proteção que dispensavam aos artistas e intelectuais. Os governantes dessas cidades, representantes de certas famílias, como a Sforza, de Milão, e Médici, de Florença, notabilizaram-se como mecenas, isto é, como protetores dos sábios e dos artistas. O mais célebre entre os mecenas foi Lourenço, o Magnífico, da família Médici. Em seu tempo Florença se converteu no principal centro renascentista e nela trabalharam os mais célebres artistas e intelectuais da época, como Leonardo da Vinci e Michelangelo. Entre os papas encontramos também grandes mecenas, a exemplo de Nicolau V (14471-1455), Alexandre VI (1492-1503), Júlio II (1503-1513) e Leão X (1513-1521), para os quais trabalharam os artistas plásticos Rafael e Michelangelo.

William Shakespeare (1564-1616) é considerado um dos maiores dramaturgos de todos os tempos. Suas peças, entretanto, foram desprezadas por seus contemporâneos mais ilustrados, que as consideraram demasiadamente vulgares. Entre seus trabalhos teatrais mais conhecidos destacam-se as tragédias Romeo e Julieta (1595), Júlio César (1599), Hamlet (1601), Rei Lear (1605) e Macbeth (1606). Sua genialidade, entretanto, é hoje reverenciada, uma vez que seus textos, mesmo tendo cerca de quatrocentos anos, continuam atuais, por tratar essencialmente de questões humanas. Miguel de Cervantes (1547-1616) é o autor da obra primaD. Quixote (1615) e François Rabelais (1494- 1553) escreveu a sátira Gargântua e Pantagruel.

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No século XVI, a Itália nos deu um pensador político de grande importância:

Nicolau Maquiavel (1469-1527), autor da célebre obra “O Príncipe”,  em que a arte de governar é considerada sob a ótica puramente humana. Fora da Itália, brilhava o humanismo cristão do holandês Erasmo de Roterdã (1466-1536), autor de “O elogio da loucura”, obra na qual são satirizados os abusos cometidos pelos clérigos em nome da Igreja.  Na Inglaterra, Thomas Morus se consagrava com “A utopia”, na qual ele descreve uma sociedade imaginária, fraterna e sem desigualdades. 

 

[1] Cenni di Petro (Giovanni) Cimabue (c.1240 – 1302) foi um pintor florentino e criador de mosaicos. Ele também é popular por ter descoberto Giotto e ser considerado o último grande pintor italiano a seguir a tradição bizantina.

Sua biografia foi descrita por Giorgio Vasari no livro "As Vidas dos Artistas". Seu nome foi mencionado no Purgatório da Divina Comédia, de Dante Alighieri. Cimabue morreu em Pisa.

Cimabue introduziu a idéia de tratar imagens e obras como indivíduos. Seu grande rival era Duccio, em Siena. Muitas de suas obras estão no interior da Basílica de São Francisco de Assis e na Galleria degli Uffizi, na Itália e no Louvre, em Paris.

A REVOLUÇÃO NEOLÍTICA Do paleolítico ao neolítico1. O homem como fabricante de ferramentasUma das características do ser humano é agir sobre o meio natural com a ajuda de instrumentos, como arco e flecha, armas de fogo, enxada, arado, trator, colhedeira mecânica, etc. Nesse sentido, todo homem é um fazedor de ferramentas.Os mais antigos vestígios da existência humana são objetos e ferramentas de pedra lascada legados pelas sociedades paleolíticas. O fato de os homens do Paleolítico terem fabricado seus instrumentos simplesmente lascando pedras não deve, entretanto, iludir-nos a respeito das habilidades técnicas requeridas, pois, como afirma Claude Lévi Strauss, (Raça e ciência. São Paulo: Perspectiva. 1970. p. 255) antropólogo francês, para produzi-los não basta bater num seixo até lasca-lo: percebeu-se isso muito bem no dia em que se tentou reproduzir os principais tipos de ferramentas pré-históricos. Observando os indígenas que dominam a técnica, diz o antropólogo, descobriu-se a complicação dos processos indispensáveis e que vão, às vezes, até à fabricação preliminar de verdadeiros “aparelhos de lascar”: martelos com contrapesos para controlar o impacto e sua direção; dispositivos os amortecedores para evitar que a vibração rompa a lasca. E preciso também um amplo conjunto de noções sobre a origem local, os processos de extração, a resistência e a estrutura dos materiais utilizados, um treino muscular apropriado, o conhecimento das  técnicas, etc.

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2. Da economia coletora à economia produtoraApesar da reconhecida habilidade como fabricantes de ferramentas e da prática do cultivo realizado em certa escala pelas mulheres, a economia do Paleolítico era essencialmente coletora. Na realidade, só podemos dizer que as sociedades pré-históricas ingressaram na era da economia produtora quando, além das ferramentas, passaram a produzir em escala apreciável e de modo sistemático e permanente a sua própria alimentação, por meio da agricultura e da pecuária. Os mais antigos vestígios conhecidos de uma economia desse tipo foram encontrados na Palestina (Oriente Médio), e, segundo os especialistas, datam de 9000 a.C.Devemos às mulheres a seleção das espécies silvestres que deram origem ao centeio, ao arroz, etc., tal como hoje os conhecemos. Foi graças ao trabalho feminino que se revolucionou a existência humana. Gordon Childe, arqueólogo australiano, denominou de revolução neolítica a essa conquista, que, no entanto, não foi obtida de forma repentina, como pode sugerir a palavra revolução. Ao contrário, a seleção e o cruzamento de espécies diferentes de plantas que resultaram nos exemplares que chegaram até nós foi um longuíssimo processo, que deve ter durado centenas ou até milhares de anos. A economia neolítica, no início de domínio das mulheres, tornou-se no seu apogeu uma ocupação predominantemente masculina.O trigo, o arroz e o milho são cereais de alto valor nutritivo. Seu consumo, porém, não levou ao abandono do consumo dos alimentos de origem animal, que, ao contrário, se enriqueceu com a domesticação de carneiros, cabras, porcos, galinhas, bois, etc. Além dos cereais e da carne, o leite e seus derivados também compunham a dieta dos homens neolíticos.Entretanto, é importante lembrar que essa variedade de alimentos era obtida pelo trabalho humano. E quanto mais se desenvolvia a economia neolítica, maior se tornava a necessidade de trabalho. Ao ter controle sobre plantas e animais, os homens descobriram métodos mais adequados para aumentar seus rendimentos e produzir excedentes, acumulando recursos suficientes para garantir a sobrevivência em épocas de má colheita. Ao contrário dos animais, que sucumbem diante da escassez e às vezes correm o risco de extinção, os homens passaram, graças ao trabalho, a dispor da possibilidade de enfrentar ativamente as crises de subsistência.3. A amplitude da revolução neolíticaAs novas condições de vida criadas pela economia produtora modificaram profundamente a vida humana. Sobre a importância das realizações humanas do  neolítico, Lévi Strauss afirmou que “dependemos ainda hoje das imensas descobertas que marcaram o que se denomina, sem qualquer exagero, de revolução neolítica: a agricultura, a criação, a cerâmica, a tecelagem... A todas essas ‘artes da civilização’, nestes oito ou dez mil anos, temos dado apenas aperfeiçoamentos”.De fato, a revolução neolítica não se limitou à agricultura e à criação. Entre 6000 e 3000 a.C. situa-se o período em que o sistema tecnológico do Neolítico foi plenamente desenvolvido. As invenções de então só encontram paralelo em número e importância na Revolução Industrial do século XVIII na nossa era. Foi durante aquele período que se inventou o arado puxado por boi, o barco a vela, o carro de rodas e, por fim, teve início a utilização de metais. O trabalho humano começava a transformar a face do mundo.4. O trabalho e a atividade livre

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Todos nós sabemos que não há sociedade sem trabalho. Mas não se pode afirmar que as sociedades paleolíticas fossem sociedades especialmente organizadas para o trabalho. Isso só se tornou uma possibilidade com a revolução neolítica. Os homens do Paleolítico caçavam e pescavam, mas não era a caça ou a pesca que os definia socialmente, pois deles não se podia dizer que fossem caçadores ou pescadores. Na realidade, no Paleolítico, e no Neolítico homens e mulheres trabalhavam, mas nem por isso eles eram trabalhadores. Houve entre esses dois períodos da Pré-História uma diferença significativa. Na economia coletora do Paleolítico, o surgimento de trabalhadores era praticamente impossível. Coisa bem diversa ocorreu no Neolítico: a existência de trabalhadores passou a ser uma possibilidade real, porque o trabalho tornou-se então uma importante ocupação social.Para compreender o significado histórico da revolução neolítica, devemos, entretanto, distinguir trabalho de atividade livre. Um jogador de futebol contratado por um clube está fazendo o seu trabalho quando disputa uma partida como profissional, mas estará exercendo uma atividade livre se estiver participando de um jogo de futebol entre amigos. Da mesma forma, um agricultor que planta alface está fazendo o seu trabalho, mas um operário que cultiva alface em seu quintal está exercendo uma atividade livre. O trabalho é uma imposição de um senhor, de um empresário. Mas pode ser também uma imposição da sociedade como um todo, como ocorria com a caça no Paleolítico ou com o trabalho agrícola no Neolítico. O trabalho é, na verdade, uma necessidade social que, nas sociedades divididas e baseadas na desigualdade entre os homens, converte-se numa imposição de uma classe sobre outra. Já a atividade livre é, por definição, algo que se escolhe, sendo, portanto, a manifestação de uma preferência. Observemos, entretanto, que atividade livre não é sinônimo de lazer, embora tenham em comum o fato de serem escolhas livres dos sujeitos. A atividade livre e, por assim dizer, o trabalho que se faz por prazer e sem a obrigação de se obter o próprio sustento. Portanto, uma sociedade do tempo livre não é o mesmo que uma sociedade do lazer, na qual a maioria das pessoas passa a maior parte do tempo sem fazer nada ou apenas se divertindo.Tenhamos em mente que essa distinção é apenas um artifício mental, pois, na realidade, trabalho, lazer e atividade livre se misturam, não sendo incomum alguém vivenciar momentos de lazer com profundo sentimento de tédio ou encontrar muita alegria no trabalho, ou ainda exercer atividade livre como uma obrigação.Considerando-se a distinção feita acima, a caça, a pesca, a coleta de vegetais, a preparação de alimentos, o cuidado com as crianças, etc., eram indubitavelmente trabalho para os homens do Paleolítico, visto que eram atividades socialmente obrigatórias, pois delas dependia a sobrevivência de cada um e do grupo como um todo. Todavia, estudos de alguns antropólogos sobre as sociedades primitivas atuais mostraram que os seus membros gastam em “atividades econômicas” no máximo cinco horas diárias e na maioria das vezes apenas três ou quatro horas.Consideremos, pois, a título de hipótese, a possibilidade de existência de dois tipos radicalmente distintos de sociedade, segundo o tempo de ocupação de todos e de cada um em atividades livres ou no trabalho. Podemos incluir as sociedades pré-históricas, tanto paleolíticas quanto neolíticas, na categoria de sociedades do tempo livre, uma vez que isso é uma suposição estava ao alcance da maioria escolher para si atividades

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livres e gratificantes, visto que o trabalho ainda não ocupava o tempo todo e toda a vida de alguém, ou talvez apenas de alguns poucos. Sociedades em que o trabalho supera a atividade livre ou autônoma constituem sociedades do trabalho, tipificadas pelas sociedades divididas em classes sociais. O nosso problema, agora, é descobrir como surgiram essas últimas. Ou, dizendo de outro modo, qual a origem da desigualdade social.5. A cultura de irrigaçãoAo contrário do que se poderia supor, a agricultura neolítica era itinerante ou nômade, pois o esgotamento do solo obrigava a comunidade a mudar-se com freqüência. Existiam, entretanto, regiões em que a fertilidade do solo era naturalmente renovada, possibilitando a sedentarização de uma comunidade de agricultores. Particularmente favorecidas eram as regiões situadas às margens dos rios Nilo, no Egito, Tigre e Eufrates, na Mesopotâmia, e Indo, na Índia. Esses rios depositavam um lodo fértil (aluvião) em suas margens por ocasião das cheias, renovando anualmente o solo. Mas o aproveitamento dessa vantagem natural requeria grande investimento em trabalho de construção de tanques, canais e diques para controlar as cheias. Foi o que fizeram os habitantes dessas regiões. Eles criaram a cultura de irrigação, que esteve na base das grandes civilizações egípcia, sumeriana (na Mesopotâmia) e do vale do Indo, Essas grandes civilizações foram as primeiras construídas e mantidas pelo trabalho dos agricultores. Graças a eles, dezenas ou centenas de artesãos dispensados do trabalho agrícola puderam eternizar em obras monumentais, a exemplo das famosas pirâmides do Egito, o poder do trabalho humano.6. O nascimento das cidadesA cultura de irrigação que floresceu no antigo Oriente requeria grandes obras para o controle das cheias e elas não poderiam ser realizadas por apenas um indivíduo e, sua família. Era preciso retinir uma multidão de gente trabalhando coordenadamente. Isso supunha a existência de um centro coordenador, com o seu pessoal encarregado do planejamento, enquanto a maioria se encarregava da execução. Essa divisão tornava o trabalho mais eficiente e, como resultado, deve ter ocorrido o aumento da produção e, portanto, do excedente econômico. O aumento do excedente possibilitou o “investimento” em obras arquitetônicas, templos, palácios, etc., em torno das quais se originaram as primeiras cidades. O surgimento das primeiras sociedades urbanas era expressão de uma forma avançada de organização do trabalho e foi indício da transformação das sociedades do trabalho em sociedades divididas em classes sociais.Essa hipótese parece ser confirmada pelas escavações arqueológicas realizadas na Mesopotâmia.Os restos recolhidos nas camadas mais profundas e antigas da crosta terrestre são de aldeias neolíticas em crescimento. Em camadas menos profundas, encontraram-se, em vez de restos de construções modestas, alicerces de templos monumentais, em forma de torres com degraus, datados de 4000 a 3000 a.C. Esses templos, denominados zigurates, foram construídos pelos sumerianos, que lançaram as bases da civilização mesopotâmica. Em torno desses templos nasceram as primeiras cidades-Estados, todas elas localizadas na Suméria, situada no sul da Mesopotâmia. Nelas residia a corporação de sacerdotes, que recebia e estocava as doações dos fiéis, administrando essa riqueza em nome do deus da cidade. As cidades sumerianas cresciam e se enriqueciam, ao mesmo tempo que a sua economia e a sociedade tornavam-se mais complexas, como atesta a

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multiplicação de artesãos especializados na produção de jóias, esculturas, moveis e instrumentos musicais, como a harpa e a lira. Assim, cidade e campo passaram a formar os dois pólos de uma nova realidade histórica.

GUERREIROS E TRABALHADORES1. Sociedades primitivas e sociedades pré-históricasOs historiadores reconstroem o passado baseando se principalmente em documentos escritos. Como as sociedades pré-históricas desconheciam a escrita, sua reconstrução é feita com base nos vestígios materiais deixados por elas. Para os arqueólogos que fazem esse trabalho, tornou-se bastante útil o estudo das chamadas  “sociedades primitivas” feito pelos antropólogos. Os agrupamentos de indígenas que a expedição de Pedro Álvares Cabral encontrou no Brasil e outros com características semelhantes ainda existentes aqui e em outras partes do mundo são exemplos dessas sociedades ditas primitivas. Muitas delas encontram-se, tecnicamente falando, no Paleolítico, e são vistas como documentos vivos de um passado remoto da humanidade. Embora não devam ser tomadas como fiéis sobreviventes da Pré-História, elas são referências importantes para a reconstrução hipotética das sociedades humanas em seus primórdios. Seja como for, qualquer reconstituição histórica, baseada ou não em documentos escritos, não é nem poderia ser uma reconstituição do passado completa, detalhada e absolutamente fiel àquela realidade. Trata-se apenas de uma representação possível e perpetuamente sujeita a revisão. O papel da História não é chegar ao absolutamente verdadeiro, mas apenas contribuir, dentro de suas possibilidades, para ampliar ou aprofundar a compreensão que temos de nós mesmos como seres humanos.Tendo em conta essas limitações, podemos dizer que a família é o núcleo fundamental das sociedades “primitivas”, e que estas desconhecem a divisão entre governantes e governados no sentido hoje habitual dessa relação. A chefia entre os indígenas, por exemplo, estudada por outro antropólogo francês, Pierre Clastres, tem um caráter totalmente diferente do que poderíamos esperar. Os chefes têm, por exemplo, várias esposas, mas isso não constitui propriamente um privilégio. Esse direito lhes é concedido pelo fato de as esposas poderem ajudá-los a cumprir a obrigação que têm, como chefes, de presentear a todos.As sociedades primitivas são, em resumo, igualitárias. O chefe indígena, em conseqüência, não tem poder e, como qualquer outro membro que se destaca, é dono apenas do prestígio decorrente do reconhecimento de seu valor como guerreiro e de sua habilidade ao tratar de desentendimentos internos. Embora não possamos garantir que as características dos povos "primitivos" contemporâneos se apliquem aos da Pré-História, não seria descabido supor que as sociedades paleolíticas e neolíticas pré-históricas fossem, a seu modo, igualitárias. Uma vez que a desigualdade pressupõe a exploração do homem pelo homem, para que ela tivesse se verificado, teria sido necessário, no mínimo, que uma economia produtora razoavelmente desenvolvida estivesse já em funcionamento. Nesse sentido, parece pouco provável que as sociedades humanas de antes da revolução neolítica fossem caracterizadas pela desigualdade social.2. A guerra, o trabalho, e a desigualdade social

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Como o igualitarismo é possivelmente um dos traços universais das sociedades "primitivas", podemos considerá-lo também como uma das características das sociedades pré-históricas. Assim sendo, estas desconheceriam a exploração econômica de um grupo social por outro e, por conseguinte, a hipótese é de que inexistiam nas sociedades pré-históricas tanto a ambição pelo poder quanto pela riqueza. Se não tinham como objetivo nem o poder nem a riqueza, por que as sociedades pré-históricas faziam a guerra? Essa era a pergunta que os europeus do século XVI não se cansavam de fazer em relação aos índios. Numa carta atribuída a Américo Vespúcio, este afirma não saber por que os índios guerreiam entre si, pois, segundo ele,   não têm bens próprios, nem Senhorios de Impérios ou Reinos, e não sabem o que é propriedade, ou avidez de reinar; o qual me parece a causa das guerras e de cada desordenado ato".Em suma, se não buscam nem o poder nem a riqueza, por que os índios guerreiam? Uma das respostas possíveis a essa pergunta foi dada por Pierre Clastres, antropólogo a que já nos referimos, para quem a guerra é um dos traços comuns a todas as sociedades "primitivas". Estas são, em essência, sociedades de guerreiros. Por quê? Porque elas eram extremamente vulneráveis aos ataques externos. Isso se aplica também às sociedades antigas, como a egípcia, grega, persa, romana, chinesa, etc. A integridade física de todas essas sociedades era assegurada primordialmente pela força militar.Por isso, para uma sociedade como a neolítica, que dependia do trabalho coletivo e organizado, era natural que a preocupação com a defesa fosse tão grande quanto com a produção de alimentos.Afinal, a produção obtida pelo trabalho da comunidade era um motivo a mais para atrair a cobiça de outros povos. Por isso, o guerreiro era figura social da maior importância. Mas nem todos os homens podiam ser guerreiros em tempo integral. A maioria devia dedicar-se ao trabalho de produzir alimentos e era mobilizada apenas em tempo de guerra. Assim, somente os guerreiros que demonstrassem destreza e bravura em combate estavam dispensados do trabalho para poder dedicar-se integralmente à arte militar. Com o tempo, a divisão dos homens em guerreiros e trabalhadores cristalizou-se e, aos poucos, transformou-se numa relação entre dominantes (guerreiros) e dominados (trabalhadores).3. O trabalho como sinal de inferioridade socialA interiorização de quem trabalha pode ser constatada por meio do estudo da origem da palavra trabalho, que veio do latim tripalium, nome de um instrumento de tortura, Em alemão, trabalho é Arbeit significava, em sua origem, "pobreza". Segundo a Bíblia, Adão foi expulso do Paraíso   onde não havia trabalho e condenado a “ganhar o pão de cada dia com o suor do seu rosto”, isto é, condenado a trabalhar para sobreviver. Resumindo, a palavra trabalho (travail em francês, labor, em inglês) liga-se, em sua origem, à idéia de sacrifício, sofrimento e pobreza.Inversamente, a coragem e a bravura foram cantadas como os mais altos valores do homem e o culto do herói não deixa dúvidas quanto ao lugar que os guerreiros ocupavam nas sociedades antigas. Podemos dizer, portanto, que a inferioridade de quem trabalhava estava relacionada à superioridade de quem tinha por ofício guerrear.4. Mecanismos da dominação social

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Na realidade, o trabalho era um atributo feminino. Às mulheres cabiam as tarefas rotineiras e prosaicas das aldeias, enquanto os homens reservavam para si as tarefas consideradas por eles mesmos as mais nobres e grandiosas, como a guerra atribuição masculina por excelência. Entretanto, à medida que, com a revolução neolítica, também os homens foram ingressando no mundo do trabalho, a oposição masculino/feminino foi substituída por esta outra: guerreiro/trabalhador. Pelo menos, é o que se pode supor tendo em vista o fato de que, nas primeiras sociedades em que a desigualdade social se tornou patente, a linha divisória entre as pessoas foi sempre a que separava os nobres, que se definiam, antes de tudo, como guerreiros, e os trabalhadores. Uma vez que a camada superior era composta de guerreiros, conclui-se que a origem e o fundamento da desigualdade social se relacionam de algum modo com o uso da violência. Sabemos, contudo, ser impossível manter a ordem social usando apenas a violência. Para que uma sociedade assentada na desigualdade funcione é preciso que essa desigualdade seja, de um modo ou de outro, aceita (legitimada) pelos que se encontram na base da sociedade. A nossa hipótese é de que isso pode ter ocorrido por meio de um duplo mecanismo: primeiro, pelo reconhecimento da função social da camada superior e dominante como a mais importante para todos. Segundo, pela divinização do poder por meio da religião. Surgiu assim, ao lado do guerreiro nobre, a figura do sacerdote.Os antigos acreditavam que todas as coisas deste mundo pertenciam aos deuses e aos mortos. Por isso, julgavam-se na obrigação de fazer oferendas e sacrifícios, em troca dos quais esperavam uma retribuição dos deuses e dos mortos. Para que essa comunicação entre a Terra e o Céu fosse feita de modo correto e permanente, surgiu um grupo de especialistas em assuntos espirituais: os sacerdotes. Estes formavam um grupo com autoridade espiritual sobre o conjunto da sociedade, já que falavam e agiam em nome dos deuses. De resto, essa autoridade decorria da posição central ocupada pela religião na vida dos povos pré-históricos e antigos. Demonstram esse fato a construção de grandes templos, de centros cerimoniais e até monumentos que exigiram não só grande empenho dos trabalhadores e artesãos, mas também a mobilização de recursos empregados na alimentação destes durante o tempo de execução das obras.O gigantismo das obras arquitetônicas utilizadas para cultos religiosos pode ser interpretado como prova de fé, mas também como manifestação de um novo fenômeno histórico, chamado poder.5. O surgimento do EstadoTodas as sociedades do passado, sem exceção, elaboraram a sua explicação da origem do mundo e do homem. Todas elas tinham a sua concepção do mundo (cosmogonia) e a sua concepção do homem, transmitidas de uma geração para outra por meio de narrativas míticas. A criação do universo e do homem, tal como é relatada, por exemplo, na Bíblia, é, tecnicamente, uma narrativa mítica. A concepção mitológica do homem e do mundo é comum a todas as sociedades antigas.As explicações mítico-religiosas atribuem a entidades divinas não só a criação do mundo e dos homens, mas também a criação das próprias normas ou leis que regulam a sociedade. Os deuses eram, pois, concebidos como entidades dotadas de poder sobre o homem e a natureza. Portanto, no princípio, só os deuses eram poderosos e a desigualdade entre homens e

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deuses era aceita sem questionamento. Entre os homens, reinava a igualdade.Entretanto, com a divisão da sociedade em guerreiros, sacerdotes e trabalhadores, a desigualdade social entre os homens foi se instalando, Guerreiros e sacerdotes tornaram-se a camada superior e dirigente da sociedade, e o líder acatado por esses dois segmentos ganhou, com o tempo, a condição universal de rei ou monarca. Este, como chefe militar, sumo sacerdote e representante dos deuses na Terra, colocou-se no topo da sociedade. Assim, com a associação de guerreiros e sacerdotes liderados pelo rei nasceu o Estado, que, em toda Antiguidade, foi tido como materialização do poder divino. A esse poder deviam obediência todos aqueles que não participavam como governantes do Estado, isto é, a maioria dos que tinham como função apenas trabalhar.Com o poder divino materializado na forma de Estado, os “deuses” começaram a falar pela boca dos reis, ou então o próprio rei como no caso dos faraós tornou-se "deus" em pessoa. Assim, a religião mudou a sua função social: tornou-se justificação simbólica da desigualdade entre os homens. Com o surgimento do primeiro sistema de poder apoiado no poder divino e militar, estruturaram se as primeiras sociedades organizadas em forma de Estado. Foi assim, provavelmente, que a humanidade deixou a Pré-História e ingressou na História propriamente dita.