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ANO 04 2014 SEGURANÇA, JUSTIÇA E CIDADANIA ISSN 2178-8324 Educação Policial 7

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ANO 042014

SEGURANÇA, JUSTIÇA E CIDADANIA

ISSN 2178-8324

Educação Policial

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SEGURANÇA, JUSTIÇA E CIDADANIA

ISSN 2178-8324

Educação Policial

7ANO 042014

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Conselho EditorialAntônio Rangel Bandeira (VIVARIO) César Barreira (UFC)

Cláudio Beato (UFMG) Cristina Villanova (senasp - MJ)Guaracy Mingardi Ivone Freire Costa (UFBA)

Jorge Zaverucha (UFPE) José Vicente Tavares dos Santos (UFRGS)Luciane Patrício B. de Moraes (senasp - MJ) Maira Baumgarten (FURG)

Marcelo Ottoni Durante (UFV) Maria Stela Grossi Porto (UnB)Michel Misse (UFRJ) Naldson Costa (UFMT)Renato Lima (FBSP) Ricardo Balestreri

Roberto Kant de Lima (UFF) Rodrigo Azevedo (PUC - RS)Sergio Adorno (USP) Wilson Barp (UFPA)

2014 © Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP)Todos os direitos reservados. É permitida a reprodução total ou parcial desta obra, desde que seja citada a fonte e não seja para venda ou qualquer fim comercial. As opiniões expressas nos trabalhos e artigos são de inteira e exclusiva responsabilidade dos autores.

Presidente da RepúblicaDilma Rousseff

Ministro da JustiçaJosé Eduardo Cardozo

Secretária Nacional de Segurança PúblicaRegina Maria Filomena de Luca Miki

Departamento de Pesquisa, Análise da Informação e Desenvolvimento de Pessoal em Segurança Pública

Isabel Seixas de FigueiredoCoordenador Geral de Pesquisa e Análise da Informação

Gustavo Camilo BaptistaEditoras

Ana Carolina Cambeses PareschiLuciane Patrício Braga de Moraes

Revisão gramatical e normalizaçãoLaísa Tossin

Diagramação e Projeto Gráfico Emerson Soares Batista Rodrigues

Isaque Lopes Pinheiro Colaboração

Anna Lúcia Santos da Cunha Aline Alcarde Balestra Ygor Souza Rodrigues

Ministério da Justiça – MJSecretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP)

Setor Comercial Norte, Quadra 6, Conjunto A, Torre A, 1o andar, sala 112Brasília, DF – Brasil – CEP: 70.716-900

Telefone: (61) 2025-7840 / Fax: (61) 2025-9236

341.5514Segurança, Justiça e Cidadania / Ministério da Justiça. – Ano 4, n. 7, (2014). --

Brasília : Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP), 2014. p. Il.[Irregular]Continuação da Coleção Segurança com Cidadania.ISSN: 2178-83241. Policial, formação profissional, Brasil. 2. Políticas públicas, Brasil. 3. Segurança pública, Brasil. I.

Brasil. Ministério da Justiça (MJ).

CDD

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Apresentação Regina Maria Filomena de Luca Miki ................................................................................................... 05

Editorial ................................................................................................................................................ 07

Dilemas do Ensino Policial: das heranças às pistas inovadoras José Vicente Tavares dos Santos............................................................................................................11

Para que a vida siga adiante – As contribuições da professora Valdemarina na concepção teórico metodológica da Matriz Curricular Nacional Bernadete Cordeiro e Rose Mary Gimenez ........................................................................................... 31

O profissionalismo na formação profissional do policial brasileiro: rupturas, permanências e desdobramentos contemporâneos Paula Poncioni ...................................................................................................................................... 47

A Brigada Militar (e a formação do oficial) na contemporaneidade Dani Rudnicki ........................................................................................................................................ 77

Apontamentos de uma experiência de ensino policial Rosimeri Aquino da Silva .................................................................................................................... 131

Formação Policial e Práticas Institucionais das Delegacias da Mulher em Sergipe: entre e capacitação e a educação continuada Maria Teresa Nobre ............................................................................................................................ 149

Instrução aos Autores ........................................................................................................................ 187

SUMÁRIO

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APRESENTAÇÃO

A Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça é o órgão do Governo Federal responsável por conceber e implementar a Política Nacional de Segurança Pública. Faz parte do conjunto de suas atribuições realizar e fomentar estudos exploratórios e pesquisas aplicadas voltadas para conhecer de modo mais aprofundado as causas e as possíveis saídas que podem levam à redução da criminalidade e da violência.

A Revista Segurança, Justiça e Cidadania, editada pela Senasp/MJ, é um periódico cujo objetivo é publicar estudos e pesquisas aplicadas nos temas da Segurança Pública e da Justiça Criminal, oferecer um espaço para discussão qualificada neste campo e, com isso, contribuir para o desenho e a implementação de políticas públicas mais adequadas.

O número 7 dedica-se a abordar um tema cada vez mais importante nas últimas duas décadas no âmbito da segurança pública: a formação policial. Parte-se do pressuposto de que “educação policial” é algo mais complexo e amplo do que simplesmente “treinamento” e de que as polícias brasileiras só terão melhores condições de atuar se forem, não somente melhor capacitadas ou formadas, mas também que seus profissionais sejam tratados com a mesma dignidade que se exige deles no exercício de sua atividade, observando os direitos humanos de todos.

Com isso, esperamos que esta publicação represente uma importante contribuição para os diversos atores interessados neste campo, sejam eles gestores públicos, profissionais das instituições de segurança pública, pesquisadores, estudiosos e a sociedade em geral.

Boa leitura!

Regina Maria Filomena de Luca MilkiSecretária Nacional de Segurança Pública

Apresentação | 5

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EDITORIAL

O tema da formação policial é hoje um dos temas fundamentais abordados no campo da segurança pública, visto que representa um dos pilares de um processo de mudança paradigmática no ofício de polícia e no papel que as polícias têm e exercem nas sociedades democráticas e atuais. Desde o início da década de 1990, a segurança pública vem-se consolidando como tema de reflexão sociológica, pedagógica, psicológica, antropológica e policial, dada a crise institucional do aparato policial frente ao crescimento da violência de diversos matizes nas sociedades em geral. Com este processo, o tema da “educação policial” coloca-se na vanguarda, opondo-se àquilo que seria mais comum e tradicional no meio policial, o “treinamento”, procurando suplantar uma visão compartimentada e “adestrada” do exercício profissional de polícia. A tendência das últimas décadas orienta-se para uma educação policial capaz de reconhecer o valor da pessoa humana e sua dignidade, num contexto de conhecimento, de respeito e de exercício dos direitos dos cidadãos, sejam eles os próprios policiais, seja a população como um todo.

É por essas razões que a Senasp dedica um número da Revista Segurança, Justiça e Cidadania para tratar desse assunto tão importante à mudança da cultura policial, procurando, com isso, estimular ainda mais a reflexão sobre o tema. Não por acaso, a Senasp criou, a partir de 2004, a Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública (Renaesp), fomentando a criação de cursos de Especialização em segurança pública, executados por universidades públicas e privadas do país, e promovendo a aproximação das instituições policiais e de seus profissionais aos centros de pesquisas e universidades. Dentre os objetivos da Renaesp estão, justamente, articular o conhecimento prático dos policiais, com os conhecimentos produzidos no ambiente acadêmico e difundir e reforçar a construção de uma cultura de segurança pública fundada nos paradigmas da modernidade, da inteligência, da informação e do exercício de competências estratégicas, técnicas e científicas. Tais objetivos são perseguidos por meio de uma grade curricular obrigatória a todos os cursos, da qual constam disciplinas tais como Sociologia da Violência, Direitos Humanos, Violência contra a Mulher dentre outras, todas com ênfase nas Ciências Sociais e na mediação dos conflitos.

A ordem de apresentação dos artigos segue uma certa lógica em termos da amplitude do tema abordado, juntamente com a cronologia dos fatos descritos e analisados. Assim, partimos de um âmbito mais geral, que contextualiza a temática do ensino policial, passamos pelas bases institucionais federais de padronização do ensino policial no país a partir da criação da Matriz Curricular Nacional para a Formação dos Profissionais de Segurança Pública, para só então chegarmos às análises mais pontuais sobre conceitos, temas e instituições mais específicos no

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âmbito do ensino policial: o profissionalismo na formação do policial; a formação do policial no interior da Brigada Militar do Rio Grande do Sul; a construção social da identidade do policial; e a formação e as práticas institucionais das delegacias da mulher em Sergipe.

O artigo de abertura deste número, de autoria de José Vicente Tavares dos Santos, faz justamente esta reflexão ampla do contexto em que se insere o tema da Educação Policial, suas heranças, dilemas e desafios. O autor nos apresenta dados nacionais e internacionais de como o tema tem ganhado cada vez mais espaço e discussão, seja no meio policial, seja no meio acadêmico, reforçando que este processo não tem se dado de forma linear ou sem atritos e contradições. Vislumbra que há mesmo uma tendência de mudança de paradigma não apenas no ensino policial, mas no papel e na postura que a polícia como um todo tem e desempenha em nossas sociedades contemporâneas. Esta mudança tem-se dado no sentido de se buscar a consolidação do conceito de “segurança cidadã”, dentro do qual a “educação policial” é fundadora, em oposição ao simples “treinamento” como prática de formação policial. Tal educação deve estar embasada não apenas no conhecimento contemporâneo, entendido como “um processo de construção histórica que se diferencia do conhecimento espontâneo e do senso comum e se explicita mediante categorias e conceitos”, mas também na “construção social do controle democrático, não violento e transcultural” do ofício de polícia e de uma sociedade construída segundo os valores de um Estado Democrático de Direito.

Seguindo uma ordem lógica, para não dizer cronológica, vem o artigo de Bernardete Cordeiro e Rose Mary Gimenez que discorre sobre as inúmeras contribuições da educadora Valdemarina Bidone de Azevedo e Souza na elaboração da Matriz Curricular Nacional para a Formação dos Profissionais de Segurança Pública (MCN), sob os auspícios da Senasp a partir de 2003. Segundo as autoras, uma das principais contribuições da educadora foi a metodologia descrita na Matriz, que procura alinhar os princípios de uma formação como um processo complexo e contínuo de desenvolvimento de competências aos conteúdos tratados de forma integrada, considerando a transversalidade dos direitos humanos e os profissionais de segurança pública como sujeitos de reflexão contínua de seus conceitos, suas práticas e suas atitudes.

O texto seguinte é de autoria de Paula Poncioni e trata do profissionalismo na formação do policial brasileiro. A autora discorre sobre a literatura acerca do conceito de “profissionalismo” de modo a verificar em que medida este conceito se enquadra ou não à profissão policial e de que modo. Analisa as grades curriculares dos cursos de formação oferecidos pelas academias de polícia do Rio de Janeiro (civil e militar), assim como o corpo docente destes cursos. As conclusões relativas ao Rio de Janeiro podem, em certa medida, serem generalizadas para todas as polícias estaduais do país, suscitando o debate em torno da questão.

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O artigo de Dani Rudnicki discorre sobre a formação do oficial na Polícia Militar do Rio Grande do Sul, denominada de Brigada Militar. Para tanto, busca, principalmente nos relatos de oficiais de diversos postos, o ethos do “brigadiano”, as suas recentes mudanças e contradições, especialmente, no que diz respeito à formação de novos oficiais.

Rosimeri Aquino da Silva, por sua vez, analisa os cursos de atualização profissional ministrados durante o governo de Olívio Dutra (1999-2002) no Rio Grande do Sul, considerados como parte do processo de introdução de pedagogias inovadoras no ensino policial brasileiro durante a década de 1990. Utiliza não somente os próprios currículos, mas também as narrativas orais de alunos e professores que deles participaram. A partir desta análise, revela os aspectos tradicionais, críticos e identitários da educação policial como um todo.

O número fecha com o texto de Maria Teresa Nobre, no qual a autora descreve e analisa duas experiências de formação policial em Sergipe com o efetivo policial das delegacias da mulher, em 2002. A pesquisa apontou as especificidades das duas experiências, que se fundamentaram em concepções diferenciadas de educação, modos de intervenção institucional e relação polícia-sociedade, além de analisar o que cada uma delas trouxe de contribuições ou impasses para as policiais que lidam com violência de gênero.

Dessa forma, espera-se que este sétimo número da Revista Segurança, Justiça e Cidadania contribua para o desenvolvimento das discussões a respeito da educação policial e da formulação de políticas públicas voltadas ao enfrentamento dos dilemas e desafios de uma segurança pública efetivamente cidadã.

As editoras

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Dilemas do ensino policial: das heranças às pistas inovadorasJosé Vicente Tavares dos Santos1

Resumo: O objetivo deste texto é analisar o problema da educação policial na sociedade contemporânea, discutindo as várias dimensões da questão: crise institucional, cultura organizacional, corrupção, violência policial e as alternativas mundiais para os dilemas do ofício de policial. Propomos que existem quatro tipos ideais de polícia, ou quatro modelos de polícia, presentes em um campo de conflitos, com disputas pela hegemonia nas organizações de ensino policial: o tipo ideal autoritário; o tipo ideal técnico-profissional; o tipo ideal de polícia comunitária; e o tipo ideal de polícia cidadã. Neste campo social, alguns problemas parecem alimentar a aventura sociológica: a) a organização policial seria exclusivamente uma das tecnologias políticas que foram colocadas em ação, desenvolvidas no quadro da razão de Estado para fazer do indivíduo um elemento disciplinado e para tornar possível o desenvolvimento do Estado e da Sociedade moderna, confundindo a polícia com a reprodução da ordem pública?; b) qual o padrão atual do Ensino Policial?. Diante da progressiva rede de ensino policial internacional, poderíamos reconhecer a construção de uma cidadania mundial, marcada pela criação institucional e pela difusão e comunicação de práticas sociais, jurídicas e simbólicas inovadoras no setor da Segurança Pública e Sociedade.

Palavras-Chave: Educação Policial. Polícias. Segurança Pública.

Abstract: The objective of this paper is to analyze the problem of police education in contemporary society, discussing the various dimensions of the issue: institutional crisis, organizational culture, corruption, police violence and global alternatives to the dilemmas of police craft. We propose that there are four ideal types of police or four police models, present in a field of conflicts, disputes over hegemony in police education organizations: the authoritarian ideal type, the ideal type technical-professional, the ideal type of community policing, and the ideal type of citizen police. In the social field, some problems seem to feed the sociological adventure: a) the police organization would be purely one of political technologies that were put into action, developed in the framework of reason of state to make the individual a disciplined member and to make development possible State and Modern Society, confusing the police with the reproduction of public order?; b) what is the current standard of Police Education? Given the international police network of progressive education, we recognize the construction of global citizenship, marked by institutional creation and the dissemination and communication of innovative social, legal and symbolic practices in Public Safety and Society sector.

Keywords: Police training. Police. Public safety.

1 Professor Titular de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Pesquisador do CNPq.

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1 INTRODUÇÃOEste texto pretende analisar o problema da Educação Policial na

sociedade contemporânea, em um contexto de crise institucional, de uma cultura organizacional tradicional, mas também de fabricação de alternativas mundiais para a construção de um outro padrão de ensino nas polícias. Gostaríamos de discutir a construção social do profissional da segurança pública, processo pleno de dificuldades e de possibilidades. Por isso, algumas questões incitam a imaginação sociológica:

• Quais são os padrões pedagógicos vigentes nas academias e escolas de polícia?

• As desigualdades sociais estão conformando a cultura política dominante nas academias de polícia na modernidade tardia?

• As academias de polícia estão preparando policiais para aplicar a lei, respeitando os limites impostos pelo Estado Democrático de Direito, a fim de assegurar os direitos e a dignidade dos cidadãos e cidadãs?

• Estão os alunos recebendo uma Educação ou estão sendo apenas treinados para exercer suas funções técnicas e sociais na sociedade contemporânea?

A questão policial tornou-se mundial, seja pela ineficácia e ineficiência frente ao crescimento dos fenômenos de violência difusa – violência política, violência social, violência simbólica, violência de gênero, violência ecológica – seja pelos novos traços da criminalidade violenta na “modernidade tardia”. Essas crises representam as dificuldades do ofício de polícia, frequentemente reduzido à sua dimensão de controle social repressivo, com o apelo sistemático ao uso da violência ilegal e ilegítima, e produzindo graves violações de direitos humanos.

Desde a década de 1990, desenvolveu-se em uma escala global a discussão das novas questões sociais mundiais, definidas pela Organização das Nações Unidas (ONU) como meta prioritária. A configuração da questão policial como uma das novas questões sociais mundiais pode ser observada pelo registro da realização de mais de cinquenta reuniões internacionais sobre o tema, em vários continentes, desde a Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos, realizada em Viena, em 1993, passando pelos fóruns sociais mundiais, a partir de 2001, até a I Conferência Brasileira de Segurança Pública, em julho de 2009, e o Fórum Social Mundial de 2010, em Porto Alegre.

Nessas reuniões internacionais, foram discutidas as transformações na sociedade contemporânea, as novas formas do crime, a expansão da violência difusa, as violências contra grupos em vulnerabilidade, a violência homofóbica, a violência

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contra as crianças e os idosos e a violência de gênero. Foram analisadas, ainda, as várias formas de vitimização, e de sobrevitimização dos pobres, dos indígenas, dos negros, dos pardos e das minorias étnicas.

Discutiu-se, ainda, a potenciação da sociedade civil, o envolvimento das coletividades locais e a construção ou o relembrar – pois já estava em Hobbes, e nos autores contratualistas dos séculos XVII e XVIII – da segurança como um direito constitutivo. A segurança não é algo adicional, não é um muro que separa os ricos dos pobres, os brancos dos negros, os negros dos indígenas, os homens das mulheres ou aqueles com as várias orientações sexuais. Em suma, a segurança como um direito fundamental da modernidade.

A profissão de policial é muito importante, simboliza a unidade da questão nacional, e desde o século XVIII, tem a função de garantir o Estado-Nação. Deve garantir a ordem social, no sentido do ordenamento da convivência entre homens e mulheres, de todas as classes e categorias sociais. Para tanto, os profissionais deste corpo especializado adquiriram o exercício do monopólio da coerção física, legal e legítima. Emerge, então, o paradoxo: este setor do aparelho de Estado, até muito recentemente, tem sido pouco valorizado, principalmente na política latino-americana.

Configura-se o problema da profissionalização da polícia, de garantir a melhoria das condições de trabalho, de salários e de melhorar a formação do policial, para transformá-lo em um profissional competente, que exerce um serviço público compatível com as exigências e as demandas da sociedade complexa.

Há um mal-estar na vida dos policiais brasileiros. Na História recente, o ciclo de greves que houve em diversas polícias no país – em 1997, 1999, 2000, 2001, 2004 e que perdura, ocasionalmente, até nossos dias – representa um sentimento de injustiça vivenciado pelos profissionais. Por um lado, foram expressivas a recorrência e a dramaticidade dos acontecimentos. Houve tiroteios entre policiais em Belo Horizonte, Alagoas e Ceará. Alguns comandantes foram baleados nas ruas, houve ocupações de quartéis por policiais e suas famílias e na Bahia os líderes das greves foram enviados para o manicômio judiciário. Por outro, a persistência dos problemas – desde os baixos salários até as péssimas condições de trabalho, dos regulamentos autoritários e militarizados até a escassez de meios de trabalho – acentua esta identidade inconclusa. Ao que parece, as greves tiveram como efeito revelar à sociedade as dificuldades vivenciadas por seus guardiões, mas estimulou o associativismo, levando os policiais à arena política. Tal processo contribuiu para levar a questão da crise da Segurança à agenda pública.

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2 CRÍTICA DA VIOLÊNCIA E DO AUTORITARISMODesde a década de 1990, a violência, nas cidades e nos campos, passa

a constar da agenda pública da sociedade brasileira2 e o controle social “parece ter esgotado suas funções no interior de modelos tradicionais”, indicando um deslocamento para “a reflexão sobre as formas de interação e sociabilidade em emergência, quer entre as classes populares quer entre as demais classes sociais, bem como as modalidades de socialização” (ADORNO, 1999, p. 100-101).

Partimos da identificação da presença da violência, exercida ou vivida, no ofício de policial, ao lado das funções de uso legal da coerção física e de agentes da integração social, a fim de salientar as possibilidades de um trabalho policial sem risco de vida para o agente público e sem colocar vidas em risco entre a população. A partir das denúncias de graves violações de direitos humanos por parte de membros das polícias civis e militares, uma das dificuldades é como garantir o respeito aos direitos humanos em todos os momentos da atividade policial (MINGARDI, 1992; KANT DE LIMA, 1999, p. 23-38; LEMGRUBER; MUSUMECI; CANO, 2003; ZAVERUCHA, 2003). Ocorre uma virtual impossibilidade do ofício de policial, seja pelas dificuldades em garantir a ordem pública, por ela estar internacionalizada e privatizada, seja pelas limitações em contribuir à construção do consenso, pois as bases da comunidade não mais existem em sociedades complexas.

A violência exercida por membros das polícias civis e militares tem como origem uma cultura do ofício de policial marcado pela cultura da dominação masculina, pelo machismo, a cultura de “homem de fronteira” e do policial-herói. No processo de socialização do policial, no caso de várias academias da Polícia Militar, ao lado do currículo oficial, vigora um currículo oculto que apequena o valor da educação formal e sobrevaloriza a experiência profissional (ALBUQUERQUE, 1999; ALBUQUERQUE; MACHADO, 2001, p. 214-236). Por um lado, esta cultura se forma a partir de uma discriminação e uma estigmatização do homem rural, definido como rústico, “grosso”, “primitivo” e violento. Nas áreas urbanas, as representações sociais desta cultura da violência se fundam em uma imagem do “criminoso virtual”: o homem pobre, jovem, negro e favelado, em qualquer circunstância, será o suspeito, o abordado, o alvo preferencial.

3 AS ACADEMIAS DA POLÍCIA MILITARUma pesquisa realizada pela Secretaria Nacional de Segurança Pública

do Ministério da Justiça (Senasp/MJ) obteve, em 2005, informações a respeito de 24 academias da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros Militar, distribuídas por 17 estados. No ano seguinte, foram obtidas informações a respeito de 20 academias 2 Sobre isso ver, por exemplo: BARREIRA; ADORNO, 2010; ZALUAR, 1999; 2004; VELHO; ALVITO, 1996; VELHO, 1996; GRYNSZPAN

(Org.), 1999; TAVARES-DOS-SANTOS, 2006.

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distribuídas por 14 estados (BRASIL, 2008). Em termos de instalações, cerca de 10 academias da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros Militar responderam sobre as condições de laboratórios de informática: este conjunto reúne 19 laboratórios de informática com capacidade total para 273 profissionais. Ou seja, temos em média dois laboratórios por academia com capacidade de 14 pessoas por laboratório; destas 10 academias, quatro informaram que os laboratórios precisam de reformas e apenas uma academia informou que as condições do laboratório estão muito boas. Em termos de acesso à internet, o número de academias da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros Militar integradas a redes de informática diminuiu de 2005 para 2006, passando de 83% para 70%. Também o número de academias da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros Militar com acesso à TV a cabo diminuiu de 2005 para 2006, passando de 29% para 20%. No que se refere a bibliotecas, o número de academias da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros Militar com biblioteca era de 18 em 2006. Avaliando a quantidade de livros existentes nos acervos das bibliotecas, segundo áreas de interesse, verificamos que o número de livros por biblioteca diminuiu, de 2005 para 2006, passando de 4.926 para 4.083. O total do acervo era de 73.497, em 2006, dos quais 60.232 foram classificados como “outras áreas”. Os restantes 13.265 livros foram assim distribuídos:

Gráfico 1 Percentual das áreas de conhecimento dos livros das bibliotecas das academias da Polícia

Militar e do Corpo de Bombeiros Militar, 2006

Fonte: Ministério da Justiça / Secretaria Nacional de Segurança Pública / Departamento de Pesquisa Análise da Informação e Desenvolvimento de Pessoal em Segurança Pública / Coordenação Geral de Pesquisa e Análise da Informação – Pesquisa Perfil das Organizações de Segurança Pública, 2006.

Policiamento

Combate a incêndioSalvamento

Emergência Médica

Armamento e Tiro

LegislaçãoMilitar

Direito Penal

Criminologia

Direitos Humanos

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Reordenando tais temas, podemos afirmar que as três grandes áreas são: Ciências Jurídicas (6.387), Tecnologias Policiais (4.255) e Emergências (2.623).

As informações sobre o corpo profissional existente nas academias da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros Militar, segundo o grau de instrução, indicam, em 2006, em um universo de 2.266 profissionais, que 22% concluíram o Ensino Superior e fizeram cursos de Pós-Graduação.

Tabela 1 Distribuição do efetivo das academias da Polícia Militar e do Corpo de bombeiros Militar,

segundo o grau de instrução, em 2005 e 2006

Grau de Instrução

Efetivo por Grau de Instrução

2005 2006

N.Abs. (%) N.Abs. (%)

Ensino Fundamental 206 9,99 185 8,16

Ensino Médio Incompleto 77 3,73 80 3,53

Ensino Médio Completo 992 48,09 1239 54,68

Ensino Superior Incompleto 222 10,76 277 12,22

Ensino Superior Completo 446 21,62 388 17,12

Pós-Graduação 120 5,82 97 4,28

Total 2063 100 2266 100Fonte: Ministério da Justiça / Secretaria Nacional de Segurança Pública / Departamento de Pesquisa Análise da Informação e Desenvolvimento de Pessoal em Segurança Pública / Coordenação Geral de Pesquisa e Análise da Informação – Pesquisa Perfil das Organizações de Segurança Pública, 2006.

A promoção de cursos integrados com outras instituições de segurança pública passou a ser feito em 75% das academias. As instituições com as quais é mais frequente esse tipo de integração são a Polícia Civil, o Corpo de Bombeiros Militar, as universidades públicas (15 academias em 2006) e a Secretaria Nacional de Segurança Pública. Menos registradas são articulações com organizações da sociedade civil e da defesa civil nacional.

As modalidades atuais de formação policial ressentem-se de problemas estruturais das organizações policiais brasileiras, em especial, da fragmentação dos serviços operacionais, da supervalorização da cultura jurídica, da orientação pelo direito positivo, de uma metodologia baseada na enumeração desproporcional de conteúdos, com uma metodologia de avaliação basicamente memorialista (SÁ, 2002; BALIEIRO, 2003). A fragmentação dos serviços expressa uma disputa de competências entre as polícias – Polícia Federal, Polícia Civil, Polícia Militar, Corpo de Bombeiros Militar, guardas municipais –, bem como os problemas relativos à regulação das empresas privadas de segurança.

Tal dispersão reflete-se na formação policial, pois agora existe uma duplicação de instituições de ensino policial – quase todos os estados brasileiros têm duas escolas: as academias da Polícia Militar e as escolas de polícia da

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Polícia Civil – e inexistem centros de formação sistemática. Este é o caso da descentralização pela via da “municipalização” de algumas funções policiais, pois a maioria das guardas municipais (com exceção de grandes cidades) não têm centros de formação sistemática.

A transição do regime militar para o atual regime civil implicou um conjunto de confrontos sociais e políticos em torno do destino das instituições públicas e de seus papéis construídos em um almejado processo de democratização. A ideia de democracia passou a atuar como importante catalisador das lutas sociais pelo poder na sociedade brasileira. Nesse contexto de luta, houve intenso debate entre diversos setores da sociedade sobre os lugares que deveriam ocupar a Justiça e os organismos responsáveis pela segurança pública na reconstrução do Estado democrático.

As organizações policiais vieram a expressar a crise da profissionalização da polícia: as condições de trabalho; a formação do policial; o exercício de um serviço público compatível com as demandas de uma sociedade complexa que apresenta problemas de lei e ordem também complexos. As dimensões deste problema são múltiplas.

Em primeiro lugar, as dualidades das carreiras: na seleção e na formação do profissional policial, tanto militar quanto civil, a carreira será dupla, uma carreira para praças e outra para oficiais; uma carreira para escrivães e investigadores, outra para delegados. Em segundo lugar, no processo de socialização do policial, no caso de várias academias da Polícia Militar, ao lado do currículo oficial, vigora um currículo oculto (NUMMER, 2004; ARAUJO FILHO, 2003). Em terceiro lugar, observa-se a ausência de conteúdos referentes a sistemas de informação – desde a informatização dos boletins de ocorrência, em redes on line, até o georreferenciamento das ocorrências, importante para o policiamento ostensivo, porque ele permite planejar o posicionamento de patrulhas e de policiais na rua, e para a investigação.

A questão da formação da polícia ostensiva funda-se em uma dificuldade de redução da criminalidade e da violência. No entanto, ainda não houve a ruptura com o modelo de formação policial orientado pela perspectiva da formação do Exército, baseada na doutrina da segurança nacional, segundo a qual a polícia deveria ter como função a defesa do Estado. Por conseguinte, as tentativas de mudança no sistema de ensino da polícia no Brasil ocorreram em um contexto institucional fragmentado, no qual coexistem práticas pedagógicas arcaicas com propostas curriculares democráticas e críticas.

Ou seja, as instituições de ensino policial no Brasil apresentam um quadro de carência e necessidades, resquícios de uma herança militarista e juridiscista do passado e uma segmentação corporativa. As academias da Polícia Militar mantêm traços de uma cultura organizacional militarizada, com a exaltação da disciplina, da hierarquia militar e de formação em operações de índole militar, aliadas a um arcaísmo pedagógico, com poucas exceções (CASTRO, 1990; FERNANDES, 1974).

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A formação profissional do policial militar é marcada por ritos de passagem, onde se deve romper com a identidade civil e assumir uma nova existência. Busca-se a normalização, por meio da relação de docilidade-utilidade, mediante o exercício constante de um poder disciplinar.

Evidenciou-se que há clareza quanto às situações de risco psicológico nas quais podem se envolver os policiais no dia a dia, daí a necessidade de se desenvolver a formação permanente. Ainda assim, a questão da saúde mental dos policiais é um serviço ainda quase inexistente tanto nas academias quanto ao longo de seu trabalho.

A perspectiva seria a formação de um profissional de segurança pública para o qual o exercício da coerção legal passa a ser orientada pelos princípios do Estado de Direito (BALESTRERI, 2003). Houve mudanças nos cursos de formação de policiais militares, pois iniciou a exigência do Ensino Médio para a entrada, e atualmente algumas polícias começam a prever a necessidade do Ensino Superior para entrar nos níveis iniciais da carreira.

Evidenciou-se a importância do relacionamento com as universidades e a necessidade de superar estigmas recíprocos. Por conseguinte, as tentativas de mudança no sistema de ensino da polícia evidenciaram um ensino fragmentado no qual as propostas curriculares, democráticas e críticas, coexistem com práticas pedagógicas arcaicas e a continuidade do modo tradicional de ensino policial.

Há experiências de inovação curricular, de processos de ensino-aprendizagem, de metodologias didáticas e de integração institucional. A década de 1990 foi pródiga em experiências de ensino policial inovadoras, no interior das instituições policiais de ensino e nos convênios realizados com universidades, em vários Estados brasileiros, indicando uma discussão sobre currículos, conteúdos e concepções do ofício de policial.

No Rio Grande do Sul, foi aprovada uma nova lei, em 1997, para a Brigada Militar, segundo a qual as pessoas entram para as academias de curso superior e lá permanecem por dois anos (RUDNICKI, 2007). Em Minas Gerais, foi aprovada lei nos mesmos termos em 2010. Seria uma nova tendência?

4 AS ESCOLAS DA POLÍCIA CIVIL

No caso das escolas de Polícia Civil, a formação dos policiais é orien-tada pelo direito positivo e formalista, restando pouco espaço para disciplinas propriamente referentes ao exercício do ofício de polícia, tais como investiga-ção criminal, mediação de conflitos, gestão do desempenho policial e análise de informações criminais.

O formalismo jurídico e criminológico presente nos currículos da maioria das instituições de ensino policial brasileiras confirma a análise crítica do Direito formulada por Sousa Santos:

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A gestão científica da sociedade teve de ser protegida contra eventuais oposições através da integração normativa e da força coerciva fornecida pelo direito. Por outras palavras, a despolitização científica da vida social foi conseguida através da despolitização jurídica do conflito social e da revolta social (SOUSA SANTOS , 2000, p. 52).

A concepção penalista entende as questões da segurança pública por meio da lógica jurídico-penal, na qual a repressão por meio da aplicação da lei se apresenta como a solução para a criminalidade. O paradigma penalista é observado, sobretudo, na grande carga horária destinada ao estudo de disciplinas jurídicas na formação dos policiais. Poucas horas são dedicadas à investigação criminal ou à construção, ao monitoramento e à análise de sistemas de informação. Em contrapartida, a incorporação das Ciências Humanas começa a ocorrer em vários cursos de formação de policiais.

Também fazem parte desta cultura que orienta a formação prática dos policiais, inserida em um currículo oculto das academias de polícia, os efeitos dos meios de comunicação de massa que provocam a transformação dos atos de violência extraordinária em violência ordinária, com a exaltação do policial repressivo ou do policial-herói, o que despreza toda a relevância social do ofício de policial e, principalmente, as funções de prevenção da criminalidade, de investigação policial de ocorrências e de responsabilidade social dos policiais.

Estamos frente a uma mensagem dos meios de comunicação de massa que, sob a aparência de condenar a violência, vem transformá-la em norma social, indicando um modo de dominação no qual as relações de poder seriam caracterizadas pelo excesso de poder, naturalizando a anomia ou legitimando as práticas sociais e de membros das polícias civis e militares, orientadas pela violência.

5 O PAPEL DAS UNIVERSIDADESOs convênios entre universidades e instituições de ensino policial têm

sido marcados por uma busca de atualização dos princípios democráticos, por uma melhor qualificação profissional dos altos dirigentes das polícias, sobretudo, em termos de gestão e de sistema de informação, e pela busca de uma educação orientada pelo saber da complexidade a fim de explicar as transformações sociais, políticas e culturais em curso na contemporaneidade. Observamos tais iniciativas no Brasil, na Argentina, nos Estados Unidos, na Inglaterra e na França.

As instituições têm culturas que temos que respeitar. Porém, a democratização interna das instituições é um dos requisitos do mundo atual. Isto implica discutir valores: há uma crise de um modelo autoritário e repressivo de polícia, de Budapeste a Nova Iorque, de Paris a Porto Alegre. Este modelo de uma polícia violenta a serviço das elites, no qual figura o mando autoritário dos dirigentes, desqualificando a organização, está em crise (ROLIM, 2006).

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Desenvolve-se, desde a década de 1990, um intercâmbio entre universidades e organizações de segurança pública a fim de visualizar novos rumos para os modelos de polícia. Esta nova realidade aproximou os órgãos de segurança pública dos estados e as universidades. A incorporação da disciplina de Direitos Humanos teve como efeito uma nova percepção do tema dos direitos fundamentais. A perspectiva reside na formação de um policial, de um profissional de segurança pública: o exercício da coerção legal passa a ser orientada pelos princípios do Estado Democrático de Direito. Houve mudanças também nos cursos de formação de policiais militares, pois iniciou a exigência do Ensino Médio para a entrada, o que provocou alterações nos cursos para jovens policiais. Neste contexto, o aprendizado de técnicas que respeitem a dignidade humana passa a ter um papel central na definição do ofício de polícia.

A Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública (Renaesp) da Senasp/MJ, organizada em 2004, consiste em um programa de fomento de cursos de especialização em Segurança Pública para difundir entre os profissionais de segurança pública “o conhecimento e a capacidade crítica, necessários à construção de um novo modo de fazer segurança pública, compromissado com a cidadania, os Direitos Humanos e a construção da paz social e articulado com os avanços científicos e o saber acumulado”3., cujos objetivos são:

• articular o conhecimento prático dos policiais, adquiridos no seu dia a dia profissional, com os conhecimentos produzidos no ambiente acadêmico;

• difundir e reforçar a construção de uma cultura de segurança pública fundada nos paradigmas da modernidade, da inteligência, da informação e do exercício de competências estratégicas, técnicas e científicas;

• incentivar a elaboração de estudos, diagnósticos e pesquisas aplicadas em Segurança Pública que contribuam para o processo de institucionalização do SUSP4.

No ano de 2010, funcionavam 85 cursos de Especialização em Segurança Pública, Direitos Humanos e Cidadania, em 63 instituições de Ensino Superior, tendo como alunos profissionais da segurança pública e do público em geral. Há alguns conteúdos obrigatórios (dentro das 360 horas/aula regulares): Sociologia da Violência, Direitos Humanos, Violência contra a Mulher e a Criança, Análise da Violência Homofóbica e Administração Pública. Os conteúdos restantes são organizados pelas universidades, porém há uma ênfase em Ciências Sociais e na mediação de conflitos.

3 Disponível em http://portal.mj.gov.br 4 Disponível em http://portal.mj.gov.br

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Este programa aproximou os setores de segurança pública dos estados e as universidades no Brasil: de um lado, a tradicional formação técnica e operacional e o estudo das leis; do outro, incorpora a enraizada formação acadêmica, com a compreensão científica dos fenômenos sociais, históricos, econômicos e culturais. Assim, construiu-se um processo de diálogo entre universidades e órgãos de segurança pública, configurando um debate sobre novos rumos aos modelos de policiar, orientados no sentido de democratização das relações sociais.

6 A CONSTRUÇÃO DO OFÍCIO DE POLICIALDiversos agentes sociais expressaram, em muitos países, uma crítica

à cultura policial e aos modos de comportamento autoritários das polícias. Assiste-se a uma crise mundial das polícias: houve reformas, no Norte – Estados Unidos, Canadá, Europa – e no Sul – África do Sul, Índia, e de modo parcial em países da América Latina (no Brasil, Uruguai, Argentina, Chile, Paraguai, Colômbia e México). Muitos países realizaram reformas nas academias e escolas de Polícia, principalmente para contrabalançar a insatisfação pública com o modo de policiamento e com a ineficiência e ineficácia das instituições de segurança pública. Os policiais iniciam sua socialização profissional nas escolas de polícia, porém há grande evidência de que ao lado do currículo oficial, há uma cultura profissional que reduz a importância da educação formal e sobrevaloriza a experiência “na rua”. Neste processo, emergiu a necessidade de pensarmos a questão das tecnologias policiais.

Desenvolve-se um curso em Brasília, oferecido pela ONU, sobre o uso de técnicas policiais com respeito à dignidade humana, desde os anos de 1990 (CORDEIRO; SILVA, 2003). Tanto a dignidade do policial quanto daquele que eventualmente ele tem que deter ou conter. Isto faz com que seja necessária a formação deste policial no uso adequado da arma de fogo. Por exemplo, na Escola de Polícia da Catalunha, na Espanha, há professores que são campeões de tiro olímpico, e a cada aula se aprende a usar arma de fogo, explicitando o que isso significa. Assim como, a cada projétil que é deflagrado, é necessário um relatório. A arma de fogo é um dos instrumentos que o trabalho policial usa no dia a dia; outro é o colete a prova de balas, que protege o policial; outro é o uso do rádio, da viatura; e as técnicas de abordagem. Tais tecnologias não estão separadas de uma concepção teórica de um modelo de polícia: no trabalho cotidiano do policial, a técnica é subordinada ao modelo teórico.

Uma organização necessita que o trabalho de cada um seja reconhecido, seja em termos salariais, ou em termos do prestígio, reconhecendo-se que qualquer trabalho é um trabalho digno, mediante o qual a pessoa constrói sua dignidade humana. O reconhecimento do valor da pessoa garante uma instituição democrática, eficiente e eficaz, orientada pela corresponsabilidade.

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Por conseguinte, começa a haver a delimitação de uma identidade profissional de policial, um profissional com múltiplas aptidões, flexibilidade, capaz de tomar decisões em uma situação de emergência, ou seja, de exercer a discricionariedade com inteligência e sensibilidade à situação social. A formação deve ser um aprendizado das novas tecnologias de comunicação e de informação, com a valorização do profissional dentro das próprias instituições.

Tem início a trajetória de um policial voltado para a segurança do cidadão: uma Polícia Cidadã orientada para a mediação de conflitos, para a prevenção e a erradicação das formas de violência social (GROSSI-PORTO, 2010). Emerge a busca por uma especificidade da formação do policial, entre as matérias de ciências sociais e ciências sociais aplicadas, como o Direito, e as matérias técnicas da profissão de polícia. Delineia-se a aplicabilidade da presença do Direito nas academias, tanto da Polícia Civil quanto da Polícia Militar. Em contrapartida, a incorporação das Ciências Humanas exige uma formação de professores de ciências humanas que compreendam o trabalho das polícias.

Há um modelo de orientação da conduta, o técnico-profissional, ou seja, a ideia de que as polícias deveriam somente “combater o crime”, que está em crise. Isto não quer dizer que não seja necessário o profissionalismo, corpos especializados, técnicas policiais suficientemente apreendidas e exercidas, com técnica para resolver uma situação de crise. Mas por outro lado estas unidades especiais, altamente especializadas, não bastam para o conjunto das ocorrências que a polícia ostensiva precisa atender, em sua grande maioria casos de conflitos não necessariamente criminais.

Logo, um policial precisa ter uma formação de mediação de conflitos. Por um lado, porque há processos muito delicados, como o caso do sequestro, onde o negociador é uma figura central, é um profissional especializadíssimo que faz a negociação. Torna-se preciso qualificar este profissional com conteúdos de Antropologia, Sociologia e Psicologia Social, para que ele possa ser um mediador de conflito e realizar eficazmente seu trabalho policial.

Verificamos a existência de malhas informais de integração entre as organizações policiais, seja entre pares, seja entre desiguais na hierarquia, o que revela um processo de mudança possível na conformação das instituições de ensino policial e nos formatos dos programas de formação em diversos níveis funcionais. O termo “integração” supõe entes diferenciados, que não perdem suas próprias características ao passarem a atuar solidariamente, pois a intenção é propor processos de construção, nos quais os saberes pessoais e institucionais são respeitados, agregados e potencializados.

Um sistema de segurança pública democrático passa, antes de tudo, por qualificação humana e capacitação técnica dos operadores diretos do sistema, os policiais civis e militares e os bombeiros militares. Não há qualificação e capacitação sem educação; não há educação que possa depender exclusivamente de elementos adquiridos antes e fora das instituições.

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7 LINHAS DE MUDANÇA NO ENSINO POLICIALPerceber linhas de mudança significa observar o avanço tecnológico na

sistematização dos dispositivos de segurança e, ao mesmo tempo, a efetivação de uma política pública baseada nas pessoas, ou seja, no investimento na contratação de mais policiais, na formação em Direitos Humanos, na qualificação em métodos científicos e na inteligência policial, com dispositivos de participação da sociedade, como os conselhos de Segurança. Observa-se um processo de transição para a educação e a construção de uma nova profissão de policial, com toda a complexidade, responsabilidade e dignidade que esta profissão requer.

Neste tema, as questões principais são: a formação dos policiais, dos modelos de polícias em discussão e da relevância dos sistemas de informação policial. Há necessidade de construirmos um novo saber, elucidando as questões complexas acerca da segurança e das polícias, em um intenso e profícuo diálogo entre profissionais da segurança pública e cientistas sociais sobre o controle social, mediante uma abordagem multidisciplinar, o qual somente poderá contribuir para a construção de uma democracia socialmente justa, respeitosa da dignidade humana e garantidora de uma segurança cidadã.

A experiência internacional, desde os anos de 1990, evoca orientações diversas: o desenvolvimento da Polícia Comunitária, desde o Departamento de Polícia de Chicago, aliado ao modelo orientado à solução de problemas (GOLDSTEIN, 2003); ou a “polícia de proximidade”, na França; o modelo de gerenciamento policial de Nova Iorque chamado de “tolerância zero”, com o lema “Courtesy, professionalism, respect”, configurando o “profissionalismo” como categoria organizadora das polícias em sociedades democráticas. Ainda mais, verifica-se a categoria “diversity”, ou seja, o respeito à diversidade e à diferença, seja em Boston, USA, em Hamburgo, na Alemanha, ou na International Academy Bramshill, no Reino Unido. A diversidade significa:

As diferenças podem incidir sobre raça, sexo, habilidades ou qualidades físicas, orientação sexual, idade, religião ou crença. O tema central é aceitar, respeitar e valorizar essas diferenças e permitir que pessoas de todas as raças e origens possam participar na formação em igualdade de condições (International Academy Bramshill).5

Além do Brasil, em alguns países, há convênios dos órgãos de segurança pública com universidades: na Argentina, na Província de Buenos Aires (Universidad de Lannus) e na Província de Córdoba (Universidad de Villa Maria) para cursos de graduação; nos Estados Unidos, com dezenas de cursos de graduação e de pós-graduação em Criminologia, Justiça Criminal e Estudos Policiais. Algumas polícias municipais auxiliam no pagamento das taxas (New York, com a Columbia University, John Jay College of Criminal Justice – CUNY, University of Albany e St. John’s University; Chicago, com a Northwestern University). Na França, a Escola Nacional

5 Disponível em http://www.college.police.uk/en/16278.htm .

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de Polícia tem um convênio com a Universidade de Lyon para um Mestrado. Na Irlanda do Norte, há um acordo entre o Police College do Police Service of Northern Ireland e a University of Ulster para oferecer aos novos policiais certificates in Police Studies, desde 2002, em Belfast.

Pode-se afirmar que as instituições de ensino policial estão vivenciando um processo de mudança, ainda que não linear nem determinista, cujos resultados parecem ambivalentes. Por vezes, assistimos à reprodução da cultura militarista e juridicista, às vezes, por uma mudança de comando. Em outros lados, há indícios de mudanças importantes na formação policial.

8 A TENSÃO CONCEITUAL: TREINAMENTO OU EDUCAÇÃO?A investigação empírica nos levou à seguinte interpretação: no

campo da “sociologia dos estudos policiais”, existe uma tensão teórica entre os conceitos de “treinamento” dos policiais e o conceito de “educação policial”. Refere-se à educação dos profissionais de segurança, pois estamos em face de um saber teórico-prático que precisa orientar-se pelo processo educativo, o qual se fundamenta em profissionais educados, e não apenas treinados, formados ou, in absurdum, adestrados.

Pode-se estabelecer uma distinção entre “treinamento policial” e “educação policial”, distinção que salienta as relações entre a educação policial e a pesquisa sobre o policiar. O objetivo do treinamento é claro.

O objetivo do treinamento é ensinar um método específico de desempenhar uma tarefa ou de responder a uma dada situação. O conteúdo ensinado é usualmente com uma delimitada abrangência. Treinamento é focado em como levar a cabo uma tarefa em uma situação particular, orientado a objetivos precisos (HABERFELD, 2002, p. 33).

Pagon (1996, p. 45) também define o treinamento nos mesmos moldes: “[t]reinamento policial é um processo de aquisição de conhecimentos particulares ou habilidades necessárias ao trabalho policial, em períodos delimitados”. Segundo a International Academy Bramshill, do Reino Unido, treinamento significa: “[u]m processo planejado para modificar o comportamento de atitudes, conhecimentos ou habilidades através de experiência para alcançar um desempenho eficaz em uma actividade ou o conjunto de actividades de aprendizagem” (International Academy Bramshill)6. Complementa Frigotto (2010): “[a] noção de treinamento se relaciona a uma perspectiva de ser humano unidimensional”7. E o ex-diretor da New York Police Academy acentua: “[t]reinamento, por definição, é ensinar uma matéria em nível da percepção. Treinamento é frequentemente associado com instrução prática, repetição, e preparação para uma habilidade” (O´KEEFE, 2004, p. 48).

6 Disponível em: http://www.college.police.uk/en/16278.htm .7 Comunicação pessoal ao autor, bem como as que seguem, outubro de 2010.

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Por consequência, há uma distinção entre treinamento e educação, afirma Haberfeld (2002, p. 32):

O objetivo do treinamento é ensinar um método específico de execução de uma tarefa ou responder a uma determinada situação. O assunto ensinado é geralmente estreito no escopo. Educação envolve a aprendizagem de conceitos gerais, termos, políticas, práticas e teorias.

Ou seja, a “Educação, por outro lado, situa-se mais no nível conceitual e é tradicionalmente associada com a preparação para uma profissão” (O´KEEFE, 2004, p. 48).

A educação policial é assim definida por Pagon (1996, p. 60): “[d]efinimos educação policial como um processo de transmissão de conhecimentos gerais ou específicos relacionados com a Polícia o qual conduz à obtenção de um grau. Tipicamente, os programas educacionais de polícia duram vários anos”. Na mesma linha, a Academia inglesa define a educação policial: “[a]tividades destinadas a desenvolver o conhecimento, habilidades, valores morais e a compreensão necessária em todos os aspectos da vida, em vez de um conhecimento e habilidades relativas a somente um campo limitado de atividade” (International Academy Bramshill)8.

Evocando Paulo Freire, escreve Frigotto (2010): [o] centro da compreensão de educação por Freire é

de que ela não é adestramento, mas sim um processo de formação mediante o qual as pessoas se tornam capazes de ler a realidade, ler o mundo. Trata-se de formar sujeitos que construam sua autonomia e em relação com outros sujeitos atuem conscientemente na sociedade.

Por consequência,[a] Educação tem que levar em conta o desenvolvimento

de todas essas dimensões. A educação é um direito social e subjetivo. No âmbito do conhecimento, é permitir que cada educando aproprie-se dos conceitos básicos que permitem compreender como funciona o mundo das coisas, da natureza e o mundo dos homens, as relações sociais. Pois, o ser humano é um ser de múltiplas dimensões: biológicas, intelectuais, psíquicas, afetivas, culturais, estéticas, sociais, etc. (FRIGOTTO, 2003, p. 156).

Enfim, a compreensão dos processos sociais é fundamental, uma vez que:[c]riar uma sensibilidade no policial – criando uma

imaginação sociológica – não é simplesmente um meio de fornecer informações aos policiais; ao contrário, é um modo de criar uma perspectiva necessária para que eles compreendam amplamente a informação (O´KEEFE, 2004, p. 118).

8 Disponível em http://www.college.police.uk/en/16278.htm .

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9 O CONCEITO DE SEGURANÇA CIDADÃ E A EDUCAÇÃO POLICIALO processo de educação policial possibilitará a construção de um saber

teórico-prático processual e reflexivo, fundado no princípio da complexidade, o qual reconhece a multidimensionalidade do social, a incorporação do indeterminismo, da incerteza e do risco nas ações coletivas e a ruptura epistemológica no processo de conhecimento das situações sociais.

A formação dos policiais tem-se ressentido, por um lado, da insuficiência do ensino do Direito aplicado ao ofício de policial, porque a formação que muitas vezes delegados e oficiais tem recebido em cursos jurídicos foi orientada pelo Direito Positivo e Dogmático, restrito a tecnicalidades do Direito. Tal orientação tem sido questionada, seja porque as dimensões da mundialização estão colocando em cheque o Direito Positivo muito vinculado ao Estado-Nação, seja porque há um novo tipo de relacionamento entre Estado e sociedade civil. Principalmente na área do Direito Penal e na área do Sistema e Justiça Criminal é um Direito marcado por uma ótica regulatória, ótica que entende a sociedade como um mecanismo de peças que terão de ser ajustadas funcionalmente. Em síntese, é importante que na formação policial haja conteúdos das Ciências Jurídicas – Direito Constitucional, Direito Penal, Direito Processual Penal, Direito Administrativo, Direito Tributário, Direitos Humanos, Justiça Restaurativa –, mas é importante que haja uma incorporação vinculada aos objetivos do serviço policial.

Refletir sobre o Ensino Policial é assumir o conhecimento contemporâneo:[o] conhecimento, em todas as áreas, é entendido como

um processo de construção histórica que se diferencia do conhecimento espontâneo e do senso comum e se explicita mediante categorias e conceitos. Enquanto conhecimento histórico sempre será relativo e aberto e, portanto, passível de ser reconstruído e ampliado. Para ser histórico se constrói ou é apropriado dentro da relação entre a particularidade (espaço e tempo das mediações) e um grau crescente de universalidade (historicamente construída). Esta relação historicamente construída permite superar a homogeneização abstrata que violenta as particularidades (e, portanto, a complexidade e diversidade da realidade dos sujeitos) e a atomização do real em infinitas e desconexas particularidades (FRIGOTTO, 2003, p. 154-156).

A emergência de uma noção de segurança cidadã supõe a construção social de um controle social democrático, não violento e transcultural, retomando o objetivo do policial como ofício de uma governamentalidade não mais apenas do Estado, e do direito de propriedade, mas agora preocupado com as práticas de si, emancipatórias, dos grupos e conjuntos dos cidadãos e cidadãs em suas vidas cotidianas. Por esta via, tanto as instituições de socialização – a família, a escola, as associações locais, os meios de comunicação – quanto as organizações de controle social formal – as polícias, o sistema judiciário, as instituições prisionais – podem reconstruir o objetivo de uma sociedade do bem-estar social.

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Em vários países do mundo, observamos um processo de mudanças não linear, não determinista e não probabilístico; porém, um processo de mudanças possível, demonstrável por evidências empíricas relevantes na formação policial. Deixaríamos, então, policiais e civis, de ter as vidas em risco, para viver em uma sociedade pacificada capaz de controlar democraticamente os atos de violência que vierem a ocorrer em seu território.

Esta concepção alternativa de Educação Policial, consubstanciada numa polícia com condições dignas de trabalho, voltada aos fundamentos e princípios constitucionais do Estado de Direito, baseado na dignidade da pessoa humana e da construção da cidadania, recoloca o conceito de segurança pública como um direito constitucional de todos os cidadãos. Para isso, é preciso que todos os órgãos estejam sintonizados e sintam-se como integrantes de um mesmo sistema e seus objetivos corporativos voltados para o mesmo fim. Integração firmada nos laços de solidariedade, cooperação, complementaridade e corresponsabilidade (SILVA, 2003; LIMA; PAULA, 2006).

Emergem forças sociais de resistência, novos movimentos sociais, a crítica aos processos sociais de construção da violência simbólica e das “representações sociais da insegurança”, e as concepções de uma Polícia Cidadã orientada para a mediação de conflitos, a prevenção e erradicação das formas de violência social; enfim, a elaboração de outro modelo de trabalho policial. Configuram-se algumas questões básicas: como criar uma alternativa, principalmente quando governos populares assumem o comando do controle social, das forças policiais? Como criar uma alternativa na qual possamos ter um processo civilizador de superação das formas de violência e de criação da cidadania? (SOARES, 2000; PINHEIRO, 2000; TAVARES-DOS-SANTOS, 2009).

Estamos diante da necessidade de uma construção institucional, de indução de projetos, de crítica teórica e de avaliação de experiências, para que se configurem as inúmeras possibilidades de um sistema de educação policial nos moldes da sociedade brasileira contemporânea e segundo os valores do Estado Democrático de Direito. Tais pistas inovadoras requerem a construção social de um ofício de polícia orientado pelo transculturalismo, pelo respeito à equidade e à dignidade humana. De modo geral, estamos em face de um processo de transições nas instituições de ensino policial. No horizonte da mundialização, outro modelo de educar as polícias configura-se possível, o que alimenta as esperanças de uma sociedade segura, livre e pacificada.

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Para que a vida siga adiante... As contribuições da Professora Valdemarina na concepção teórico-metodológica da Matriz

Curricular Nacional e a proposta de atualizaçãoBernadete Cordeiro1

Rose Mary Gimenez2

Resumo: Este texto é um breve registro das inúmeras contribuições da educadora Valdemarina Bidone de Azevedo e Souza, que faleceu no acidente ocorrido com o voo 3054 da TAM, na elaboração da Matriz Curricular Nacional (MCN). Destacam-se aqui os fundamentos conceituais e metodológicos inovadores e contemporâneos presentes, com maior ênfase, na primeira versão da MCN, em 2003, mas que serviram de base para as atualizações realizadas em 2005 e 2009 e para a futura versão que será lançada em breve. O artigo traz também as malhas curriculares propostas na nova versão da MCN. Além de um registro, “Para que a vida siga adiante...”, é uma homenagem lúdica e poética à bioquímica e educadora que, ao participar da criação de uma “matriz”, permitiu que a ideia original – a qual o nome do documento faz alusão – multiplicasse e possibilitasse uma concepção mais abrangente e dinâmica dos currículos que orientam as práticas formativas e as situações de trabalho dos profissionais da área de Segurança Pública.

Palavras-chave: Matriz Curricular Nacional. Fundamentos Teórico-Metodológicos. Currículo. Práticas Formativas. Segurança Pública.

Abstract: This text is a brief record of the many contributions of the educator Valdemarina Bidone de Azevedo e Souza, who died in the accident with the TAM flight 3054, during the preparation of the National Curriculum Matrix (CCM). One can highlight the innovative conceptual and methodological foundations and contemporary, with greater emphasis, in the first version of MCN in 2003, but that it provided the basis for updates in 2005 and 2009 and for the upcoming version that will be released soon. The paper also provides curriculum meshes proposed in the new version of MCN. In addition to a record, “For life to go forward ...”, is a playful and poetic tribute to biochemical and educator who, by participating in the creation of a “matrix “, allowed the original idea - which the name document alludes - had multiplied and had made possible a more comprehensive and dynamic design of curricula that guide training practices and working conditions of the professionals in the field of Public Safety.

Keywords: National Curriculum Matrix. Theorical-metodological fundamentals. Curriculum. Teaching practices. Public safety.

“Quem perdeu o trem da história por querer Saiu do juízo, sem saber Foi mais um covarde a se esconder Diante

de um novo mundo” (Beto Guedes)

1 Mestre em Educação pela Universidade de Brasília. Professora dos cursos virtuais de pós-graduação e graduação da Universidade Católica de Brasília. Apoio Pedagógico do Projeto de EAD da Senasp e Colaboradora do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV).

2 Mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná. Consultora da Secretaria Municipal de Segurança Pública de São José dos Pinhais e docente de Direitos Humanos, Diversidade e Cidadania da Escola Superior de Polícia Civil do Paraná e Guarda Municipal de Curitiba.

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A Matriz Curricular Nacional para a Formação dos Profissionais de Segurança Pública (MCN) (2003) foi elaborada no calor do primeiro ano do governo Lula com vistas a auxiliar a “constituição de um sistema educacional único para todas as polícias e outros órgãos de Segurança Pública (SUSP)”.

A palavra “matriz” remete às ideias de “criação” e “geração”, que norteiam uma concepção mais abrangente e dinâmica de currículo, o que significa propor instrumentos que permitam orientar as práticas formativas e as situações de trabalho em Segurança Pública, propiciando a unidade na diversidade, a partir do diálogo entre os eixos articuladores e as áreas temáticas. (BRASIL, 2003)

Instituído pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), do Ministério da Justiça, um grupo de trabalho, sob a consultoria pedagógica da professora Valdemarina, recebeu a seguinte missão: elaborar um referencial nacional para a formação em Segurança Pública, cujo conteúdo fosse construído a partir de discussões em várias instâncias e com o auxílio de profissionais policiais e consultores, para que representassem o pensamento da coletividade. Isto é, um documento curricular que criasse condições para que, nos diversos contextos formativos, fossem discutidos e implementados mecanismos que garantissem aos profissionais da área de segurança pública o acesso às oportunidades de uma permanente formação, privilegiando a relação teoria-prática e a articulação entre os diferentes saberes.

Este documento viria, então, substituir as “Bases Curriculares para a Formação dos Profissionais da Área de Segurança do Cidadão” (1998). Primeiro referencial curricular elaborado pela Senasp, após a Constituição Federal de 1988, com o propósito de auxiliar a homogeneização dos currículos dos cursos de formação e o planejamento curricular e de garantir a unidade de pensamento e ação a partir da inclusão de temas como: direitos humanos e polícia comunitária.

Contudo, a matriz precisava ser inovadora em seu tempo e contemplar as diferentes realidades existentes em nosso país. Assim, o grupo de trabalho, sob a consultoria da professora Valdemarina, foi buscar a concepção de currículo descrita nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), que rompia com a ideia de um arranjo linear de disciplinas, para relacioná-la a um projeto educativo tradutor das intenções pedagógicas das ações formativas que contemplasse a interdisciplinaridade.

Entende-se por currículo interdisciplinar um currículo orientado para a integração, para o desenvolvimento de relações entre as disciplinas e também dos conteúdos que se encontram nas fronteiras entre elas, aqueles que são objeto de atenção em várias disciplinas e que possibilitam tratar de questões mais vitais e conflituosas, que normalmente não podem ser tratadas dentro dos limites de uma única disciplina (PCN, 1996 apud BRASIL, 2003).

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Assim, objetivando a possibilidade de arranjos curriculares diferentes, a MCN trouxe dois componentes estruturantes: os eixos articuladores e as áreas temáticas, produtores de intocáveis relações a serem estabelecidas a partir deles e entre eles, que acentuam o critério de atualidade na elaboração dos currículos específicos e oportunizam o respeito às diversidades existentes no país, bem como a inclusão de padrões de qualidade na abordagem de pontos comuns que necessitam ser reforçados.

À orientação da construção de currículos, a partir de eixos articuladores e áreas temáticas, associam-se orientações para o desenvolvimento de capacidades gerais adquiridas progressivamente e de competências específicas necessárias para responder aos desafios sem precedentes das ações concretas do mundo do trabalho (BRASIL, 2003).

No entanto, ousar fora preciso! A partir de estudos e pesquisas realizadas em Instituições de Ensino de Segurança Pública, constatou-se que as visões simplificadoras, hiperespecializadas – frutos dos princípios reducionistas que ainda permeavam a concepção cultural policial – dificultavam o pensar de forma abrangente. Pela desvinculação de muitas áreas importantes para a busca de solução aos graves problemas da criminalidade, os fenômenos eram estudados de forma isolada, ignorando-se a complexidade deles.

Nesta perspectiva, era preciso pensar de outra forma o ensino e as pesquisas que vinham sendo realizados no contexto da segurança pública. Para a professora Valdemarina, consultora da Senasp, era fundamental buscar na Teoria da Complexidade, de Edgar Morin (MORIN, 2000), meios hábeis para a explicação e compreensão desta realidade, a fim de propor a implementação de políticas de forma prudente e inventiva, não se deixando influenciar por cegueiras deterministas.

Era um tempo de muitas inovações sendo introduzidas em todos os aspectos da segurança pública. A principal delas era a reflexão a partir das ideias como: incerteza inclusa em sistemas organizados, imprevisibilidade, interação com novas organizações, inovação, estabilidade provisória e regeneração permanente, palavras que a professora Valdemarina introduzia com tanta espontaneidade em diversos auditórios. Sua mais importante contribuição foi a metodologia utilizada para cativar plateias compenetradas e atentas, no entanto, desconfiadas da aplicação de conceitos que não se submetiam a mensurações quantitativas. Com firmeza e mansidão, entremeando momentos de reflexão aprofundada com sorrisos confiantes, fazia crer que, nos primeiros anos do século XXI, era possível tornar pública a complexidade da Segurança Pública.

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A MCN, com seus eixos articuladores e áreas temáticas, possibilitou abrir, aos poucos, um diálogo, utilizando-se de um método com potencial para revelar não só os fatos e consensos, mas também os aspectos constituintes das subjetividades, como a motivação, a esperança e a consciência de muitos profissionais de segurança pública que buscavam e continuam buscando construir competências emergentes da interação dinâmica entre características pessoais e aspectos contextuais.

A MCN tornou-se um instrumento impulsionador da reflexão e da implementação de práticas inovadoras. Para muitos, era necessário estar com a professora Valdemarina para acostumar-se com a nova concepção de ensino. Em certos casos, a resistência se apresentava em sua face mais ameaçadora, mas como a professora vivenciava o princípio dialógico em seu cotidiano, sabia transitar com leveza e segurança os períodos de desordem de ideias antagônicas ou concorrenciais, aguardando a formação de novas organizações transformadoras, transformando-se recursivamente nestas sínteses. Ela deixa-nos o exemplo de reconstrução permanente dos estudos, considerando novas hipóteses como referências da qualidade do ensino.

***

“Como se fora a brincadeira de roda, memórias! Jogo do trabalho na dança das mãos, macias! O suor dos corpos

na canção da vida, histórias! O suor da vida no calor de irmãos, magia!”

(Gonzaguinha)

O reconhecimento oficial, especificamente pela Senasp, da necessidade de criação de uma matriz consistente para propiciar um movimento de reflexão junto às instituições de Ensino de Segurança Pública, fazia parte do quadro de desenvolvimento de processos adequados ao ideário democrático. A relevância do referido documento é resultado da sua força inerente de vir a ser um instrumento impulsionador da integração das academias. O método de trabalho adotado competentemente pela professora Valdemarina, a mobilização integral do grupo de estudiosos, que com ela compartilhava momentos de produção intelectual, inspirados na pedagogia construtivista humanista, resultaram em uma experiência rica que tem proporcionado avanços no ensino de Segurança Pública.

***

“Sei, aquela lição da estrada.Sonhos que passaram por nós e são meu abrigo.Te conhecer foi saber o melhor.Na

alma dessa mulher, atrás da voz do cantor.” (Beto Guedes)

É na metodologia descrita na Matriz que reside a contribuição mais expressiva da professora Valdemarina. Alinhado aos princípios – preceitos que fundamentam a concepção das ações formativas dos profissionais da área de Segurança Pública – o referencial metodológico possibilita:

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• a compreensão do exercício da atividade de segurança pública como prática da cidadania;

• o posicionamento crítico, responsável e construtivo nas diferentes situações sociais;

• a percepção dos agentes transformadores da realidade social e histórica do país;

• o conhecimento e a valorização da diversidade que caracteriza a sociedade brasileira;

• o conhecimento e o domínio das diversas técnicas ao uso da força e da arma de fogo;

• o desenvolvimento do auto-conhecimento dos profissionais de segurança pública;

• a utilização de diferentes linguagens, fontes de informação e recursos tecnológicos que norteiam a atuação dos profissionais da área de segurança pública.

O referencial da MCN está fundamentado no paradigma que concebe a formação como um processo complexo e contínuo de desenvolvimento de competências que, por meio da integração de saberes, possibilita a formação de profissionais preparados para responder aos desafios e às exigências sociais, bem como compromissados com a sua trajetória profissional.

Na evolução educacional pretendida, o ensino é entendido como processo político complexo transpassado por competências e habilidades específicas e especializadas, visando à promoção da aprendizagem, à reconstrução do conhecimento e à apropriação crítica da cultura elaborada, pautadas em altos padrões de qualidade e nos princípios da ética. A aprendizagem envolve atividade socialmente organizada que implica na relação cognitivo-afetiva entre o sujeito que conhece e o objeto do conhecimento, pressupondo a construção de um novo conhecimento a partir da continuidade/ruptura com o conhecimento anterior (BRASIL, 2003).

Cabe destacar que se traçarmos uma linha de continuidade entre as Bases Curriculares e a Matriz Curricular Nacional acharemos dois pontos convergentes: a transversalidade dos direitos humanos e o desenvolvimento de competências.

A transversalidade curricular dá coerência interna e integra as ações formativas à filosofia da política vigente. Representa, ainda, uma relação necessária de subordinação resultante do comprometimento assumido face à autoridade que emana da proposta governamental em Segurança Pública, conferindo a necessidade de contextualização e de abrangência (BRASIL, 2003, s/p).

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Em relação à competência profissional, é possível entendê-la como “o conjunto formado por saberes, competências específicas, esquemas de ação, posicionamentos assumidos, habilidades, hábitos e atitudes necessários ao exercício das funções a serem desempenhadas” (MCN, 2003).

O esquema a seguir, presente no texto da MCN, foi criado pela professora Valdemarina para representar a integração entre os saberes presentes na construção da competência e da inteligência profissional.

Esquema 1 Integração entre os saberes presentes na construção da competência e da inteligência

profissional

Fonte: ALTET, Marguerite; MORIN, EdgarAdaptado por Valdemarina Azevedo (2003).

Segundo a professora Valdemarina, os saberes teóricos contidos nas áreas temáticas, inseridos em contexto mais amplo nas diferentes disciplinas e na cultura de segurança pública, são indissociáveis dos saberes práticos, que são originados das experiências cotidianas da profissão e adquiridos e reconstruídos em situações de trabalho, dos quais podemos distinguir “os saberes sobre a prática” (saberes procedimentais sobre o “como fazer”) e “os saberes da prática” (produto das ações que tiveram êxito e o saber “quando” e “onde” os saberes podem ser aplicados).

SABERES TEÓRICOS

SABERES PRÁTICOS

competência

“SABER ANALISAR CRITICAMENTE”

SABERINSTRUMENTAL

ExperiênciasProfissionais

Reconstruidasem situações de

trabalho

EIXOSARTICULADORES E ÁREAS TEMATICAS

DISCIPLINAS

contexto

SABERES SOBRE A PRÁTICA

SABERES DA PRÁTICA

“como fazer”

“quando e onde aplicar”

SABER SITUACIONAL

adaptação

competência na ação

discernimentodo impossivél e

do possível

elaboração de cenários

com consciência do inevitável e do desejável

COMPETÊNCIA E INTELIGÊNCIA PROFISSIONAL

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Este saber prático aponta para o “saber situacional”, pois articula os diferentes saberes na ação, gerando práticas profissionais que se desenvolvem no decorrer de experiências, o que permite ao profissional adaptar-se às situações e alcançar a competência na ação. Este “saber situacional” permite a seleção de instrumentos e ferramentas para agir no âmbito do cenário onde os saberes práticos estão presentes, possibilitando, assim, o desenvolvimento da competência “saber analisar criticamente”.

Segundo Valdemarina, “a articulação entre os saberes, as habilidades, os hábitos, as atitudes e os esquemas de ação geram competência” (BRASIL, 2003). Centrada no desenvolvimento de competências, a metodologia da MCN trazia, ainda, a necessidade de adoção de uma prática pedagógica que considerasse: a mobilização da aprendizagem, a desconstrução/reconstrução de conhecimento e a avaliação da própria produção pelo discente a partir da reflexão sobre a ação.

As contribuições destacadas não esgotam as inúmeras outras deixadas pela professora Valdemarina. Pelo contrário, elas possibilitam compreender o quanto estas influenciaram e ainda influenciam os currículos dos cursos de formação, a prática pedagógica e as situações de ensino, a qualidade das interações e a aprendizagem significativa.

***

“Roda mundo, roda gigante Roda moinho,roda pião O tempo rodou num instante Nas voltas do meu coração...”

(Chico Buarque)

O advento do Fundo Nacional de Segurança Pública e a implementação do Pronasci fortaleceram o estreitamento entre as ações de segurança pública e as ações de promoção de cidadania. Os investimentos realizados na área de segurança pública trouxeram novos desafios, exigindo mudanças na versão inicial da MCN. Para atender às necessidades evidenciadas nesse novo cenário, a consultoria pedagógica que sucedeu à professora Valdemarina, juntamente com um grupo de trabalho e em diálogo constante com participantes de todo o Brasil realizou, em 2005, a primeira revisão da MCN. Nessa revisão, foram agregados ao trabalho realizado pela Senasp outros dois documentos: as Diretrizes Pedagógicas para as Atividades Formativas dos Profissionais da Área de Segurança Pública – um conjunto de orientações para o planejamento, acompanhamento e avaliação das ações formativas – e a malha curricular3, um conjunto de disciplinas, e suas respectivas ementas, que congregam conteúdos conceituais, procedimentais e atitudinais, cujo objetivo está voltado para a garantia da unidade de pensamento e ação dos profissionais da área de Segurança Pública: policiais militares, policiais civis e bombeiros militares. A elaboração desse último documento mobilizou 105 profissionais que atuavam nas instituições de Segurança Pública de todo o país por meio da participação em grupos virtuais e presenciais.

3 Malha curricular é o termo utilizado para substituir a expressão “grade curricular”. Na palavra malha, está contida a representação das disciplinas dispostas sobre algo flexível e maleável que possibilita diversas articulações entre elas.

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A segunda revisão aconteceu em 2008 e foi apresentada oficialmente no II Encontro de Áreas Educativas para Segurança Pública, realizado em 2009, que reuniu em Brasília representantes das instituições de ensino de Segurança Pública do Brasil e dos demais países do Mercosul, bem como países convidados. Contudo, é importante destacar que essa segunda revisão teve como subsídio as contribuições advindas da série de seminários realizados em parceria com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, no período de 2005 a 2007. Esses seminários possibilitaram sistematizar:

• os fundamentos didático-metodológicos presentes na atual versão da Matriz;

• a discussão sobre as disciplinas da malha curricular;

• a transversalidade dos Direitos Humanos;

• as reflexões sobre a prática pedagógica e sobre o papel intencional do planejamento e execução das ações formativas.

As reflexões sobre a prática pedagógica, principalmente o incentivo para a utilização de metodologias e técnicas centradas no ensino ativo, fizeram com que a Senasp investisse em ações para a capacitação dos professores. Sendo assim, além do curso de Formação de Formadores, na modalidade a distância, a Senasp lançou a Trilha do Educador – um referencial para que os estados pudessem organizar, na modalidade presencial, ações formativas para os docentes pautadas na MCN.

Paralelo a essas inovações, a Senasp implementou a Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública – Renaesp, trazendo parcerias com universidades e centros de formação no Brasil e no âmbito do Mercosul. Os resultados dessas parcerias demonstraram a necessidade de promover mais uma vez modificações na MCN.

Assim, no período de abril a junho de 2010, a Senasp, por meio de uma consultoria especializada, realizou a avaliação da MCN, junto aos gestores, técnicos e professores das instituições de ensino na área de Segurança Pública de todo o país.

Os resultados apresentados sobre a avaliação foram agrupados em duas dimensões: educacional e estratégica. A dimensão educacional reuniu os aspectos relacionados às questões pedagógicas, que necessitavam ser ampliadas e revistas, e a dimensão estratégica abrangeu os desafios relacionados à gestão escolar.

Dimensão educacional:

• incluir o Bombeiro Militar, criando uma malha curricular específica;

• rever a malha curricular existente, modificando as disciplinas, de forma a atender as novas demandas, necessidades e exigências da atualidade;

• criar uma melhor definição para a carga horária das disciplinas.

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• rever a sistemática de avaliação;

• incluir novos títulos nas referências bibliográficas.

• A dimensão estratégica visa criar estratégias que possam:

• minimizar a resistência de atores envolvidos no processo;

• auxiliar as instituições na adaptação das orientações pedagógicas contidas na MCN;

• orientar o uso da estrutura física do ambiente de formação;

• orientar a capacitação continuada dos docentes e a sistemática de avaliação;

• predizer o status de implementação da MCN.

Cabe ressaltar que as dinâmicas dos eixos articuladores e das áreas temáticas, bem como a orientação pedagógica contida na MCN, foram elogiadas não devendo assim serem modificadas, mas atualizadas e fortalecidas.

A esses resultados foram somadas também as orientações contidas no relatório parcial do Programa de Construção de Padrões de Qualidade (PCPQ), realizado em 2010, que reúne informações sobre os Centros de Formação dos Profissionais da Área de Segurança Pública, localizados nos estados-sede da Copa e os dados do relatório da Análise Prossiográfica e Mapeamento de Competências da Polícia Civil, Polícia Militar e Corpos de Bombeiros realizada pela Senasp, por meio de consultoria especializada, no período de 2009 a 2010, com agentes e praças das referidas instituições.

No âmbito da própria Senasp, a avaliação da implementação da MCN apontou ainda a necessidade de a revisão abranger as discussões hoje realizadas no âmbito da América Latina, as recomendações da ONU para programas de treinamento voltados para segurança cidadã.

Cordeiro (2008) destaca que os discursos e as agendas propostas para a formação e capacitação dos profissionais da área de segurança pública, atualmente divulgadas, expressam cada vez mais a necessidade da abrangência dos seguintes pontos:

• reconhecimento das características da sociedade contemporânea e das diversas formas de violência e criminalidade encontradas nos espaços urbanos e rurais;

• compreensão das formas de organização do Estado Moderno e dos papéis das instituições de segurança pública, dos seus profissionais e da sociedade na construção de uma cultura de paz para a humanidade;

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• atuação a partir de metodologias que orientem o enfoque comunitário, a colaboração e a integração das ações de justiça e segurança;

• desenvolvimento de competências e habilidades que favoreçam um perfil profissional que seja capaz de: i) comunicar-se de forma efetiva; ii) relacionar-se com a comunidade; iii) mediar conflitos; iv) atuar proativamente pautado nos princípios dos Direitos Humanos; v) administrar o uso da força; vi) utilizar técnicas e tecnologias não letais; vii) gerenciar crises; viii) lidar com grupos vulneráveis; ix) lidar com a complexidade, o risco e a incerteza; x) utilizar tecnologias para planejar ações de prevenção; xi) investigar crimes e solucioná-los; xii) utilizar metodologias que possibilitem identificar problemas, bem como buscar, implementar e avaliar soluções (CORDEIRO, 2008).

Sendo assim, esses resultados inspiraram a necessidade de construção de uma nova versão MCN para que seu texto possa incluir os seguintes pontos:

• competências profissionais extraídas da Análise Prossiográfica e Mapeamento de Competências da Polícia Civil, Polícia Militar e Corpos de Bombeiros classificadas em três grandes grupos, tomando como base as dimensões do conhecimento: cognitivas, operativas e atitudinais;

• competências cognitivas: são competências que requerem o desenvolvimento do pensamento por meio da investigação e da organização do conhecimento. Elas habilitam o indivíduo a pensar de forma crítica e criativa, posicionar-se, comunicar-se e estar consciente de suas ações;

• competências operativas: são as competências que preveem a aplicação do conhecimento teórico em prática responsável, refletida e consciente;

• competências atitudinais: são competências que visam estimular a percepção da realidade, por meio do conhecimento e do desenvolvimento das potencialidades individuais: conscientização de sua pessoa e da interação com o grupo; capacidade de conviver em diferentes ambientes: familiar, profissional e social. (BRASIL, 2012)

• nova malha curricular – núcleo comum – elaborada a partir da análise profissiográfica e que orientará os currículos das polícias civis e militares, bem como a malha curricular elaborada, especificamente, para a formação do Bombeiro Militar. Todas com carga horária “recomendada” para as disciplinas;

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• novas ementas para as disciplinas e revisão das existentes;

• ampliação das referências bibliográficas com sugestão de novos títulos;

• fortalecimento da orientação pedagógica voltada para o desenvolvimento de competências por meio de metodologias e técnicas de ensino ativo.

Por ser um documento de abrangência nacional e exigir a construção de consenso, a metodologia utilizada no trabalho de revisão da MCN vem privilegiando a participação de diversos profissionais envolvidos no processo de formação dos profissionais da área de Segurança Pública, por meio de grupos de trabalhos (grupos consultivos e grupos avaliativos). Esses grupos funcionam como um “espaço plural e coletivo de socialização de saberes” e possibilitam a discussão e o fortalecimento das escolhas pedagógicas feitas pela Senasp em relação à formação do profissional da área de Segurança Pública. Sobre as quais cabe destacar:

• a opção por uma visão crítica da educação, comprometida com a concepção de que o profissional em formação é um ser que pensa, sente e age, situacionalmente, de modo que o currículo deve fortalecer a simbiose dos três eixos que, segundo Balestreri (1998), fundamentam a formação do policial: ético, técnico e legal;

• a abordagem curricular pautada no paradigma da complexidade que contemple a teoria e a prática articuladas pela inclusão da problematização, tendo as metodologias de ensino ativo como modelos de referência para gerar situações de aprendizagem que possibilitem a “transferência de conhecimento”, ou seja, a capacidade de aplicar conhecimentos prévios em novos contextos, com o objetivo de identificar similitudes e diferenças para agir na nova situação, gerando, portanto, adaptação a quaisquer situações inerentes às competências profissionais e a novas competências que se fizerem necessárias;

• a construção de “um modelo de segurança do cidadão”, que abranja políticas sociais e projetos sociais preventivos, protagonizados pela articulação de diferentes forças sociais: administrações públicas, associações, terceiro setor, escolas etc.;

• a ideia de que a implantação do currículo abranja uma organização pautada em eixos e áreas de aprendizagem, reunindo disciplinas afins que interagem e dependem umas das outras, consolidando uma prática pedagógica com visão global e interdisciplinar, favorecendo a construção do conhecimento e o desenvolvimento/aquisição de competências (BRASIL, 2012).

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A construção da nova MCN encontra-se em seu processo final. Essa última fase envolve a análise por profissionais que atuam na área educacional das instituições de ensino envolvidas com a formação do profissional da área de Segurança Pública das malhas curriculares e das ementas propostas pelos grupos de trabalhos.

Em um espaço virtual, os profissionais selecionados para participar desse processo discutirão e apresentarão as propostas de mudanças que julgarem necessárias. Todas as propostas serão analisadas pela consultoria, que redigirá a versão final. Estima-se que a nova MCN seja divulgada até julho de 2012.

Alinhadas às competências selecionadas do perfil profissiográfico, as malhas curriculares (Tabelas 1 e 2 ), propostas pelos grupos de trabalhos e ainda sob análise, se constituem de um núcleo comum de disciplinas, agrupadas por áreas temáticas, que congregam conteúdos conceituais, procedimentais e atitudinais relacionados à formação dos profissionais da área de Segurança Pública.

Tabela 1 Malha curricular para as ações formativas das polícias militares e civis (núcleo comum)

Áreas Temáticas da Matriz DISCIPLINAS Carga

Horária

I Sistemas, Institu-ições e Gestão

Estado, Segurança Pública e Complexidade Social 10h

Sistema de Segurança Pública no Brasil 10h

Fundamentos da Gestão Pública 10h

Fundamentos da Gestão Integrada e Comu-nitária 20h

Total 50h

II Violência, Crime e Controle Social

Abordagem Sócio-Psicológica da Violência e do Crime 20h

Criminologia Aplicada à Segurança Pública 20h

Análise de Cenários e Riscos 20h

Total 60h

III Conhecimento Jurídico

Fundamentos Jurídicos da Atividade Policial 30h

Total 30h

IVModalidades de Gestão de Conflitos e Eventos Críticos

Prevenção, Mediação e Resolução de Confli-tos 15h

Resolução de Problemas e Tomada de Decisão 10h

Gerenciamento Integrado de Crises e Desas-tres 10h

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Áreas Temáticas da Matriz DISCIPLINAS Carga

Horária

Total 65h

V

Valorização Profis-sional e Saúde do Trabalhador

Relações Humanas 15h

Saúde e Segurança Aplicada ao Trabalho 10h

Treinamento Físico Aplicado 120h

Total 145h

VI

Comunicação, Informação e Tecnologias em Segurança Pública

Língua e Comunicação 20h

Documentação Técnica 10h

Tecnologias e Sistemas Informatizados 10h

Gestão da Informação 10h

Inteligência Policial 10h

Total 60h

VII Cotidiano e Prática Reflexiva

Direitos Humanos 15h

Ética e Cidadania 15h

Diversidade Étnico-sóciocultural 10h

Qualidade em Serviço 10h

Vida Institucional 10h

Raciocínio Profissional 10h

Total 70h

VIIIFunções, Técnicas e Procedimentos em Segurança Pública

Estatística Aplicada 20h

Introdução à Análise Criminal 20h

Preservação e Valorização da Prova 10h

Atendimento Pré-Hospitalar 20h

Uso Diferenciado da Força 10h

Defesa Pessoal 40h

Abordagem 60h

Direção Defensiva 20h

Prevenção de Crimes: fundamentos, plane-jamento e implementação 10h

Total 210h

Carga Total 690h

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Tabela 2 Malha curricular para as ações formativas dos Bombeiros Militares (núcleo comum)

Áreas Temáticas da Matriz DISCIPLINAS Carga Horária

I Sistemas, Institu-içoes e Gestão

Sistema de Segurança Pública no Brasil 10h

Fundamentos da Gestão Pública 10h

História dos Bombeiros no mundo e no Brasil 5h

Total 25h

II Violência, Crime e Controle Social Psicologia das Emergências 15h

Total 15h

III Conhecimento Jurídico

Direito e Legislações Aplicadas na Ativi-dade de Bombeiros 30h

Normas e Regulamentos Institucionais 10h

Total 40h

IVModalidades de Gestão de Conflitos e Eventos Críticos

Sistema Nacional de Defesa Civil 10h

Gestão de Riscos 20h

Atuação de CBM diante de Desastres 20h

Total 50h

VValorização Profos-sional e Saúde do Trabalhador

Relações Humanas 120h

Saúde e Segurança Aplicada ao Trabalho 20h

Treinamento Físico Aplicado 20h

Total 180h

VI

Comunicação, Informação e Tecnologias em Segurança Pública

Língua e Comunicação 20h

Redação Técnica 10h

Telecomunicações 10h

Gestão da Informação 10h

Total 50h

VII Cotidiano e Prática Reflexiva

Ética e Cidadania 15h

Direitos Humanos 15h

Diversidade Cultural 10h

Qualidade em Serviço 10h

Estágio Operacional 30h

Proteção Ambiental 10h

Total 90h

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Áreas Temáticas da Matriz DISCIPLINAS Carga Horária

VIIIFunções, Técnicas e Procedimentos em Segurança Pública

Atendimento Pré-Hospitalar 30h

Prevenção e Salvamento Aquático 20h

Salvamento Terrestre 20h

Salvamento em Altura 20h

Sistema de Comando de Incidentes 30h

Ocorrências com Produtos Perigosos 30h

Prevenção e Perícia de Incêndio 20h

Combate a Incêndio 30h

Total 200h

Carga Total 650h

Elaborar um currículo não é montar um quebra-cabeça, mas sim lidar com as possibilidades trazidas pelos ricos movimentos dos grupos de trabalho, como um caleidoscópio. Contudo, a efetivação de uma proposta curricular exigirá “a congruência entre as intencionalidades contextuais expressas nos fatos do cotidiano (dimensão contextual); os aportes legais e conceituais (dimensão política) e as condições adequadas para a sua operacionalização no dia a dia (dimensão técnico-metodológica)” (MCN, 2012).

A vida segue adiante; “a história avança, não de modo frontal como um rio, mas com desvios que decorrem de inovações, criações internas, acontecimentos ou acidentes externos” (MORIN, 2000, p. 81); as contribuições da professora Valdemarina permanecem. Como registro, estão cristalizadas no documento da primeira versão da MCN, contudo, como fundamentação conceitual e metodológica, refazem-se na dimensão metodológica dos documentos que sucederam a sua consultoria e, principalmente, na intenção geradora de quem aplica, ajudando docentes e estudantes a assumirem conscientemente sua própria educação e a serem sujeitos na construção de um mundo melhor.

“Amigos a gente encontra O mundo não é só aqui Repare naquela estrada Que distância nos levará.”

(Dominguinhos)

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASAZEVEDO E SOUZA, Valdemarina Bidone de. Tornar-se autor do próprio projeto. In: GRILLO, Marlene;

MEDEIROS, Marilú. (Org.) A construção do conhecimento e sua mediação metodológica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998.

BRASIL. Ministério da Justiça. Secretaria Nacional de Segurança Pública. Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento de Pessoas. Matriz Curricular Nacional para Formação dos Profissionais de Segurança Pública, 2003.

BRASIL. Ministério da Justiça. Secretaria Nacional de Segurança Pública. Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento de Pessoas. Matriz Curricular em Movimento: Malha Curricular, 2006.

BRASIL. Ministério da Justiça. Secretaria Nacional de Segurança Pública. Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento de Pessoas. Matriz Curricular Nacional: versão revisada e ampliada, 2008.

BRASIL. Ministério da Justiça. Secretaria Nacional de Segurança Pública. Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento de Pessoas. Matriz Curricular Nacional: versão revisada e ampliada, 2012 (mimeo).

BRASIL. Ministério da Justiça. Secretaria Nacional de Segurança Pública. Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento de Pessoas. Análise Prossiográfica e Mapeamento de Competências da Polícia Civil, Polícia Militar e Corpos de Bombeiros, 2010. (mimeo).

BRASIL. Ministério da Justiça. Secretaria Nacional de Segurança Pública. Bases Curriculares para Profissionais da Área de Segurança do Cidadão. Brasília: Ministério da Justiça/Senasp, 1999.

CORDEIRO, Bernadete M. P. Estado da arte: estudo sobre as ideias de estudiosos, instituições nacionais e internacionais, bem como organismos governamentais e não governamentais, sobre a elaboração de uma agenda de temas e ações de treinamento “comuns” para diminuir as cifras de violência e de criminalidade na América Latina. Brasília: PNUD, 2008. (Projeto 04/29: relatório técnico)

CORDEIRO, Bernadete M. P.; SILVA, Suamy. S. Direitos humanos: referencial prático para docentes do ensino policial. 2. ed. Brasília: CICV, 2005.

MORIN, Edgar. O método 3: o conhecimento do conhecimento. Porto Alegre: Sulina, 2000.

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O profissionalismo na formação profissional do policial brasileiro: rupturas, permanências e desdobramentos

contemporâneosPaula Poncioni1

Resumo: O objetivo principal deste trabalho é analisar como o argumento do profissionalismo tem sido empregado na formação profissional do policial, buscando apreender as rupturas, as permanências e os desdobramentos contemporâneos para o incremento do profissionalismo do trabalho policial na sociedade brasileira. Para levar a efeito os objetivos propostos foi empreendido o exame da literatura especializada, nacional e internacional, sobre polícia, profissionalismo, violência, políticas públicas e democracia. Foi ainda realizada a análise dos currículos dos cursos de formação profissional desenvolvidos em academias de polícia, civil e militar e da documentação oficial – planos e programas – da Secretaria Nacional de Segurança Pública/Ministério da Justiça (Senasp/MJ) – particularmente aquela dirigida à área de formação e aperfeiçoamento profissional de policiais. O artigo está organizado do seguinte modo: além da introdução é apresentada, de forma resumida, a ideia de profissionalismo presente nas Ciências Sociais, tomando como principal referência o modelo analítico proposto por Freidson (1996; 1998), para, em seguida, apresentar a concepção de profissionalismo da polícia produzida no curso da história da profissionalização da polícia no mundo ocidental contemporâneo.

Palavras-chave: Profissionalismo. Formação Policial. Academias de Polícia. Matriz Curricular Nacional. Segurança Pública. Senasp/MJ.

Abstract: The main objective of this work is to analyze how the argument of professionalism has been used in training the police, seeking to understand the ruptures, continuities and contemporary developments to increase the professionalism of the police work in Brazilian society. To reach the proposed objectives was undertaken the examining the specialized national and international literature on police professionalism, violence, public policies and democracy. Was also performed the analysis the curricula of vocational training developed in police academies, military and civilian and official documentation - plans and programs - of the National Public Security Secretariat/Ministry of Justice (Senasp/MJ) - particularly that directed the area of education and training of police officers. The paper is organized as follows: in the introduction is presented in summary form, the idea of professionalism in the Social Sciences, taking as benchmark the analytical model proposed by Freidson (1996, 1998), to then present concept of police professionalism produced in the course of the history of professionalization of the police in the contemporary Western world.

Keywords: Professionalism. Police training. Academies of Police. National Curriculum Matrix. Public safety. Senasp/MJ.

1 Professora do Departamento de Política Social e Serviço Social Aplicado da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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1 INTRODUÇÃONo Brasil, há pelo menos duas décadas, a questão da (in)segurança

pública, traduzida em grande parte pelo aumento do crime violento nas grandes cidades do país, como também pela ineficácia das instituições tradicionais de controle do crime, em especial da polícia, vem mobilizando diferentes setores da sociedade civil e política, e mesmo da própria polícia na busca de soluções para os problemas relacionados ao assunto.

Desde então, criou-se uma pressão para ampliar a polícia e serviços judiciais e, particularmente, com respeito aos serviços da polícia, houve uma demanda constante em diferentes setores da sociedade brasileira para a reforma da estrutura e do funcionamento das organizações policiais, em decorrência principalmente do reconhecimento da baixa efetividade, associada a um padrão de atuação arbitrário e violento das polícias para o enfrentamento da questão.

Neste cenário, um dos temas que passa a fazer parte do debate público é a necessidade de incrementar o profissionalismo da polícia como um recurso para capacitá-la para o desempenho mais eficiente, mais responsável e mais efetivo na condução da ordem e da segurança pública na sociedade brasileira contemporânea.

Observa-se no período a intensificação de discussões e de iniciativas, com ênfases variadas acerca do tema, influenciadas por vários atores e agências, dentro e fora do governo, buscando influenciar a definição institucional do profissional de segurança pública, como também os rumos das políticas e dos planos de ação para o setor.

Sem a pretensão de esgotar o assunto, estão em disputa, desde então, diferentes definições acerca do problema da segurança pública, e em especial sobre o trabalho policial, que oscilam entre prevenção – com proeminência das ações sociais – e repressão – com destaque para o recrudescimento das práticas penais, por meio principalmente das ações “enérgicas” da polícia no “combate” ao crime para o enfrentamento da questão.

É apenas a partir de 2000 que se organiza no Estado uma representação sistemática e substantiva sobre o assunto, resultando no primeiro Plano Nacional de Segurança Pública – PNSP, seguido de dois outros planos – o Plano de Segurança Pública para o Brasil (2003) e o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania – PRONASCI (2007).

Na trajetória desses planos, têm prevalecido alguns relevantes princípios, segundo os quais a segurança pública é um direito do cidadão que deve ser assegurado pelas diferentes instituições que integram a área, e a educação é um dos principais pilares para o aperfeiçoamento técnico e gerencial e o estabelecimento e/ou aprofundamento do conteúdo democrático de práticas e rotinas dessas agências.

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Nesta direção, várias ações têm sido propostas no âmbito federal por meio da Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça (Senasp/MJ) para capacitar e aperfeiçoar os integrantes das organizações policiais – federal e estadual – com vistas ao alcance de um maior profissionalismo no exercício das atividades relacionadas ao controle da violência e da criminalidade no país.

É importante sinalizar que, no curso da história da polícia no mundo ocidental contemporâneo, há um movimento para o desenvolvimento do profissionalismo da polícia, que coloca a educação como uma importante ferramenta capaz de elevar a polícia a um padrão de excelência para desempenhar as funções inerentes ao seu mandato numa sociedade democrática.

Nesse processo, verificou-se a sedimentação de um tipo de modelo profissional, que mescla princípios militaristas2 e legalistas para a consecução do trabalho policial. Nesse modelo, a polícia espera por um crime a ser notificado por alguém para ativar seu trabalho, em resposta ao que é demandado como serviço, em uma perspectiva claramente reativa. Com o gradual aumento do crime violento na maior parte das grandes cidades, a adoção de um estilo militar de organização revela a tentativa de estruturar um arranjo organizacional que possa mobilizar os indivíduos para reagir, dentro de uma maneira aderente e disciplinada, a fim de responder imediatamente às situações apresentadas. O modelo de prontidão militar mostra-se como aquele capaz, por excelência, de controlar o crime de maneira supostamente mais eficiente pela polícia.

Somente na história recente, ocorre uma inflexão, com uma clara tendência ao abandono do ideal desse modelo profissional em favor de um tipo novo de profissionalismo, que enfatiza o serviço público, a discrição do policial informado por alto nível de educação e treinamento, e a busca de uma relação mais estreita entre a polícia e a comunidade. São exemplos deste tipo de profissionalismo, o modelo de “serviço” e o modelo de “polícia comunitária”, entre outros.

No Brasil, porém, ainda que se verifique mudanças nas polícias brasileiras, nos últimos anos, com a emergência de propostas de modelos profissionais alternativos para a gestão da segurança na contemporaneidade, poucas iniciativas lograram sucesso no sentido de implementar mudanças efetivas, em termos de metodologias práticas de intervenção, considerando o questionamento dos valores, das crenças, dos preconceitos e dos estereótipos do policial, sua visão de mundo. Isto é, a sua concepção acerca da realidade, de si mesmo, da natureza de seu trabalho e de suas atitudes em relação ao “mundo social” e ao próprio “mundo policial” persistem em um significativo número de estados brasileiros. Permanece existindo uma maneira de conceber o trabalho policial pautado fundamentalmente no que foi denominado em outro trabalho de “modelo policial profissional tradicional”3, com ênfase no “combate ao crime”, como a via preponderante para lidar com a questão da segurança pública. 2 O militarismo é aqui entendido tanto do ponto de vista das ideias e dos valores acerca da missão da polícia e as estratégias

operacionais utilizadas para a consecução de seus objetivos, como também, do ponto de vista da estrutura organizacional.3 O “modelo policial profissional tradicional” é caracterizado basicamente por um modelo profissional que emerge na polícia entre o

final do século XIX e a primeira metade do século XX pela combinação de dois outros modelos profissionais, o burocrático-militar e o de aplicação da lei. Consultar a respeito, Poncioni (2004).

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O objetivo principal deste trabalho é analisar como o argumento do profissionalismo tem sido empregado na formação profissional do policial, buscando apreender as rupturas, as permanências e os desdobramentos contemporâneos para o incremento do profissionalismo do trabalho policial na sociedade brasileira.

Para levar a efeito os objetivos propostos foi empreendido o exame da literatura especializada, nacional e internacional, sobre polícia, profissionalismo, violência, políticas públicas e democracia. Foi ainda realizada a análise dos currículos dos cursos de formação profissional desenvolvidos em academias de polícia, civil e militar4 e da documentação oficial (planos e programas) da Secretaria Nacional de Segurança Pública/ Ministério da Justiça (Senasp/MJ) – particularmente aquela dirigida à área de formação e ao aperfeiçoamento profissional de policiais.

O artigo está organizado do seguinte modo: além desta introdução é apresentada, de forma resumida, a ideia de profissionalismo presente nas Ciências Sociais, tomando como principal referência o modelo analítico proposto por Freidson (1996; 1998), para, em seguida, apresentar a concepção de profissionalismo da polícia produzida no curso da história da profissionalização da polícia no mundo ocidental contemporâneo. Na segunda seção, é analisado o modelo profissional de polícia predominante na formação profissional de policiais – civis e militares – nas academias de polícia e os desdobramentos contemporâneos para o incremento do profissionalismo na formação profissional da polícia brasileira. Na seção seguinte, são apresentadas as considerações finais do trabalho. Ao final do trabalho encontram-se as referências bibliográficas examinadas.

2 O PROFISSIONALISMO NA POLÍCIA: CONCEITOS E APLI-CAÇÕES

A literatura sobre o tema, nas Ciências Sociais, apresenta diversos sentidos e diferentes significados associados ao profissionalismo. Há, ainda, inúmeras perspectivas e desempenhos diversos no sentido do profissionalismo e, de acordo com os contextos nacionais e históricos concretos, esse processo adquire diferentes formas e variações. Em consequência, múltiplos usos e definições são referidos ao termo. 4 Utilizo-me, essencialmente, dos dados coletados na pesquisa realizada, durante o período de 1999 a 2002, para a minha tese

de doutorado: Tornar-se policial: a construção da identidade profissional do policial no Estado do Rio de Janeiro, defendida no Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, em 2004. Sirvo-me, igualmente, dos dados coletados no trabalho de campo realizado no período de 2005 a 2008, no âmbito da pesquisa: Um olhar sobre as políticas públicas na área de segurança por meio da formação profissional do policial (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – Faperj), junto às academias de polícia – civil e militar – do Estado do Rio de Janeiro. Ressalta-se que apesar da pesquisa de campo ter sido concentrada nas academias de polícia do Rio de Janeiro, vários aspectos verificados na formação profissional de policiais fluminenses podem ser estendidos à maioria das academias de polícia do país.

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Para Freidson (1998, p. 217), o profissionalismo é um modelo ideal-típico que representa um método de organização do desempenho do trabalho, cujo “princípio central é de que os membros de uma ocupação especializada controlam seu próprio trabalho”. No profissionalismo, é exatamente a definição do conteúdo do trabalho realizado, por parte dos membros da ocupação, o critério básico de controle ocupacional.

De acordo com o autor, o profissionalismo baseia-se na noção democrática de que os membros de uma profissão são capazes de controlarem a si próprios por meios coletivos, cooperativos, e de que, no caso de um trabalho complexo, aqueles que o realizam estão em melhor situação para assegurar que seja bem feito. Parte-se do pressuposto de que as pessoas, quando podem controlar seu próprio trabalho – e quando este, na medida em que é especializado, é complexo e desafiador – têm maior probabilidade de comprometer-se com o trabalho do que de alienar-se dele. Segundo os termos do modelo, os membros de uma profissão encontram valor e interesse intrínsecos no trabalho em si, o que os leva a querer realizá-lo bem. Além disso, formam uma espécie de comunidade no sentido de que interagem com base em interesses comuns solidamente defendidos, tanto na manutenção de sua situação profissional quanto na realização do trabalho que realizam. Deste modo, não se alienam nem do trabalho, nem das pessoas; tampouco se alienam da sociedade, na medida em que acreditam promover o bem-estar dos outros por meio do seu trabalho.

Para ele, o “profissionalismo” é um meio que estimula uma atividade complementar importante que é a inovação intelectual: o desenvolvimento de novos conhecimentos, competências e ideias, que não se restringem meramente ao desenvolvimento de novas formas de satisfazer as necessidades ou demandas percebidas de consumidores em um mercado, nem dos que controlam as organizações. Mais importante, por não precisar responder direta e imediatamente às demandas de outros, as profissões têm a possibilidade de buscar novos valores, técnicas, ideias e conhecimentos de um ponto de vista independente e, por essa razão, têm a virtude de poder ir além da situação vigente, afastando-se assim das opiniões herdadas para tornarem-se revolucionárias (FREIDSON, 1998, p. 226-227).

De acordo com o autor, as profissões podem ser definidas pelo fato de que seus membros são submetidos, em diferentes graus, à educação superior e ao conhecimento formal abstrato que ela transmite. Além disso, salienta a importância da capacidade da profissão exercer poder e ser uma forma de obter determinadas posições no mercado de trabalho.

Na concepção desse autor, é exatamente a combinação entre o treinamento do conhecimento formal e o credenciamento, isto é, os meios para validar profissões, que asseguram a elas um acesso exclusivo ao mercado de trabalho. O sistema de credenciamento, do qual fazem parte as universidades, as associações e o Estado, funciona como um mecanismo que inclui no mercado de trabalho os membros da profissão, excluindo aqueles que não possuem esta qualificação.

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Portanto, para o autor, uma profissão é sinônimo de ocupação, ou seja, diz respeito ao trabalho especializado pelo qual uma pessoa ganha a vida em uma economia de troca. No entanto, para ele, uma profissão não é simplesmente “qualquer” tipo de trabalho, mas é um tipo de trabalho que tem caráter esotérico, complexo e arbitrário. Além disso, o trabalho profissional é considerado particularmente importante para o bem-estar de indivíduos ou da sociedade em geral, e tem um valor tão especial que o dinheiro não pode servir de única medida: é também “boa obra”. E é a capacidade de realizar esse tipo especial de trabalho que distingue os chamados profissionais da maioria dos outros trabalhadores.

Certamente, a maneira como se usa o termo para designar um trabalho como profissional ou não, com base na escolha de alguns critérios em detrimento de outros, é uma questão arbitrária. Entretanto, o exame da literatura das ciências sociais sobre profissões revela que há uma base comum que fundamenta a ideia de profissionalismo.

De modo geral, vários elementos podem ser enfocados como constitutivos das profissões como: o alto padrão de seleção; o conhecimento formal, abstrato, de nível superior; o período prolongado de treinamento; um código de ética; o registro e a certificação das ocupações, e o consequente monopólio do mercado; a autonomia e o controle; o altruísmo e a dedicação por um ideal de serviço; o orgulho dos membros na profissão; o status publicamente reconhecido e o prestígio; a coesão e a homogeneidade dos grupos profissionais, concebidos como “comunidades homogêneas”; o mercado e o monopólio, entre os mais importantes.

Chama a atenção que, em grande parte do trabalho sociológico contemporâneo sobre profissões, depara-se com a incorporação de elementos diversos, por vezes contraditórios entre si, que se confundem nas obras de certos autores, se entrelaçam e se interpenetram na definição do conceito de “profissão”.

Como resultado, a ideia de profissão encerra, de acordo com a abordagem teórica, elementos distintos, com ênfase em traços e atributos diversos por meio dos quais uma “profissão” pode ser discriminada, sob o ponto de vista teórico e empírico.

Muito embora se possa encontrar múltiplas interpretações acerca dos critérios específicos que podem precisamente definir uma “profissão”, a quase totalidade dos estudos sociológicos sobre o tema tem enfatizado que o conhecimento formal, abstrato, de nível superior é um elemento indispensável para demarcar uma ocupação como “profissão”.

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Este conhecimento deve ser diretamente útil ao profissional e amplamente indisponível ou inacessível ao leigo. Tem de prover a estrutura teórica que informa os seus membros sobre conhecimentos, meios e técnicas necessários para fazer o trabalho da profissão. Nesta perspectiva, o termo “profissão” destina-se primordialmente àqueles que reconhecidamente possuem esse título, diferentemente daqueles que trabalham em atividades que não envolvem o conhecimento superior, que possuem, então, uma ocupação. A posse de um corpo de conhecimento profissional implica que somente os membros da profissão têm o monopólio deste conhecimento e, somente eles, podem tomar decisões sem pressões externas de clientes ou outros que não são membros da profissão.

Em decorrência disso, emerge outro relevante componente para definir uma “profissão”: a autonomia profissional. A autonomia profissional significa que apenas os membros da profissão estão em posição de avaliar o seu próprio trabalho, questionar ou avaliar a eficácia destas decisões. Apenas outros profissionais com níveis semelhantes de treinamento e competência podem exercer julgamentos profissionais que são fundamentados numa base específica de conhecimento. Como resultado, é fundamental no entendimento de uma “profissão”, que os melhores qualificados para julgar a competência profissional e conduta ética dos profissionais são os membros da mesma profissão, os chamados “pares”. Assim, a autonomia coloca a autorregulação como o método de primeira-ordem para regular seus membros. Além disso, a autonomia é fundamental à gênese de um efetivo código de ética, que fornece aos membros orientações para um desempenho apropriado no trabalho.

Nesta perspectiva, pode-se afirmar que são muitas as dificuldades para se atribuir à polícia um estatuto profissional adotando como referência os critérios desenvolvidos para definir uma “profissão” no âmbito das ciências sociais5. Por um lado, o trabalho policial desprovido de algumas características centrais do modelo de “profissão” desenvolvido sob a ótica do “profissionalismo”, não pode ser caracterizado por inteiro como “profissional”. Por outro lado, a polícia moderna, apesar de apresentar vários aspectos que podem ser referidos à burocracia legal-racional, apresenta outros que escapam por completo a esse modelo6.

O exame da literatura sociológica anglo-saxã a respeito da problemática do “profissionalismo da polícia” revela que não há um consenso entre os estudiosos acerca do estatuto profissional do trabalho da polícia e de seus praticantes. Aponta, ainda, que de acordo com o enfoque adotado são enfatizadas algumas dimensões

5 Para uma análise sobre as possibilidades e os limites para se atribuir um estatuto profissional à polícia consultar Poncioni (2004).6 Há que ressaltar que não se compartilha da ideia de que profissões e burocracias são dimensões auto- excludentes. Apesar

da estrutura de autoridade e das práticas concretas estruturadas por “formatos” e “procedimentos operacionais padrões”, características de uma burocracia racional-legal, uma profissão pode realizar seu trabalho desde que sejam salvaguardadas as condições que sustentam o “profissionalismo” como, por exemplo, a necessidade de arbítrio do profissional. Freidson (1996, p. 256) argumenta que vários estudos apontam que a estrutura de autoridade e as práticas concretas pelas quais se caracteriza a organização burocrática são modificadas em organizações dedicadas ao fornecimento de serviços profissionais. Segundo ele, encontra-se uma forma “híbrida” em seu lugar.

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principais para a análise da profissionalização da polícia – as funções, as estratégias, a organização, a retórica -, como também elementos distintos, com ênfases em traços e atributos diversos – conhecimento teórico, autonomia profissional, vocação etc. – por meio dos quais se delineia a polícia como “profissão”.

E, apesar de toda a variação entre os enfoques considerados para discutir a “profissão policial”, no conjunto de estudos examinados é consensual que o profissionalismo é um atributo da polícia moderna, e conota a explícita atenção dada à aquisição de qualidade no desempenho do trabalho policial.

É importante sinalizar que, no curso da história da polícia no mundo ocidental contemporâneo, há manifestadamente um movimento em direção ao profissionalismo da polícia, que supostamente produz uma polícia mais padronizada, sob os pressupostos de indicadores objetivos, concebidos como essenciais para moldar uma nova espécie de policial qualificado como “profissional”.

Nesta perspectiva, assiste-se a adoção de um modelo profissional para nortear as atividades relacionadas ao trabalho policial, a introdução do recrutamento de acordo com padrões especificados, a remuneração suficientemente alta para criar um serviço de carreira, o treinamento formal e a supervisão sistemática por oficiais superiores.

Além disso, observa-se, igualmente, que uma série de inovações tecnológicas foram colocadas a serviço da melhoria do trabalho policial, principalmente, nos grandes centros urbanos. Aos poucos, a nova polícia foi incorporando diversas iniciativas que a fizeram parecer e sentir mais “profissionalizada”, tais como a investigação criminal; os dispositivos técnicos de controle e vigilância, como o rádio e o patrulhamento motorizado; as teorias criminológicas etc.

O “modelo policial profissional” resultante das reformas da polícia que ocorrem no final do século XIX e durante a primeira metade do século XX – independentemente das perspectivas e dos desempenhos diversos no sentido do profissionalismo – sugere o entrelaçamento de dois modelos de polícia – o burocrático-militar e o de aplicação da lei (law enforcement).

Não se quer com isso ignorar que diferentes modelos profissionais são produzidos e orientam diferentes práticas policiais nas distintas etapas históricas de profissionalização da polícia, nos diversos contextos nacionais; ao contrário, reconhece-se que variados modelos são produzidos nesse processo de profissionalização, ao longo do século XX; no entanto, sublinha-se o predomínio de alguns elementos e dimensões presentes entre uma grande parte das polícias do mundo ocidental acerca de uma determinada concepção da missão, do mandato e da ação policial, que dão conteúdo ao “modelo profissional policial tradicional”.

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A organização da polícia moderna deve ser compreendida dentro do contexto da criação do Estado moderno, cuja questão primordial é regular e/ou mediar, sob o manto da legalidade e da racionalidade, os conflitos oriundos da nova ordem social. Em seu princípio jurídico, esse Estado moderno, é a forma institucionalizada do poder que substitui o arbítrio pela regra. Ele reclama para si o monopólio da violência legítima, devendo utilizá-la para garantir a segurança dos indivíduos. Sua violência é exercida segundo as leis, de maneira racional, formal e impessoal. Nesta perspectiva, a polícia se constitui num organismo burocratizado, para garantir sua “neutralidade” política com respeito ao Estado e aplicar a lei a todos os cidadãos indiscriminadamente.

A prevenção e a repressão, funções policiais tradicionais, nascem e se desenvolvem em função das exigências, cada vez mais prementes, de manter a ordem e a segurança públicas requeridas pela sociedade industrial moderna.

Com a criação da polícia metropolitana de Londres, em 1829 – chamada “nova” polícia – inaugura-se, pois, um novo tempo, no sentido da profissionalização e modernização das polícias, e se estabelece um modelo paradigmático de reforma entre as polícias – a moderna polícia burocrática.

Seguindo-se a esta reforma, ao longo do século XX, sob o abrigo de um extenso e profundo processo de burocratização, uma ampla agenda de reformas foi implementada por diferentes polícias, resultando em importantes mudanças na sua organização e no seu funcionamento.

Como assinala Manning (1977, p. 130), “avanços tecnológicos extraordinários em transporte, comunicação e ciência forense, durante o século XX, apresentaram sedutoras oportunidades para a polícia obter os símbolos de profissionalismo, se não a substância”.

Nesta perspectiva, é importante destacar o esforço empreendido para elevar o nível da educação policial com vistas a tornar os serviços da polícia mais profissionalizados nos países de democracia consolidada, particularmente no ocidente, onde ocorreram episódios graves de violência policial e comprometimento das instituições com a corrupção e o racismo.

Reiss (1992) argumenta que a burocratização da polícia assegurou, inicialmente, a neutralidade política e confiança legal da polícia, desenvolvendo um sistema hierárquico de comando e de controle. Esse sistema teve como consequência a neutralização do poder político de autoridades políticas e fez o policial leal ao comando, no lugar de grupos de interesses diversos. Ademais, em um grau significativo, a decisão do fazer cotidiano foi afastada da influência direta das autoridades políticas e do exercício arbitrário de poder pelo chefe7.

7 Embora o autor enfoque as consequências do processo de burocratização nos departamentos de polícia urbanos dos Estados Unidos, sua análise pode ser aplicada amplamente a outras polícias, pois, apesar das características próprias relacionadas às condições sócio-históricas em que foram criadas e se desenvolveram, e das diversas formas de burocracia daí resultantes – mais ou menos centralizada, mais ou menos legalista, mais ou menos militarizada, e mais ou menos profissional – a polícia tal como está organizada, no mundo ocidental, mostra-se organizacional e funcionalmente mais padronizada.

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Uma segunda consequência da burocratização, apontada pelo autor, é que conduziu a mudanças fundamentais na organização hierárquica do trabalho e mobilidade da mão de obra. Uma separação de atribuições, de equipe de auxiliares e linha profissional, em um comando hierarquicamente organizado, tornou-se uma característica dominante das polícias. Para ele, a burocratização teve seu maior efeito em recrutamento, seleção, e treinamento inicial, por um sistema de mérito baseado em teste de qualificação e um sistema de promoção de carreira.

Deste modo, portanto, é importante reconhecer que, em grande parte dos movimentos para reforma das polícias, a burocratização do aparelho policial é uma resposta inovadora para os problemas que precederam à sua montagem. De modo geral, sua implementação traz consigo a expectativa dos reformadores de torná-la mais disciplinada, menos discricionária nas suas operações, menos politizada e mais profissional. Acrescida de uma perspectiva legalista, a polícia ganha sua autoridade da lei, que define e limita o seu papel, provê clareza de propósito para a organização e um enfoque nítido para o treinamento. Nesta perspectiva, a polícia é compreendida como repositório da ação de aplicação da lei, ocupando um lugar imparcial e apolítico para o desempenho de suas funções junto a situações que estão relacionadas tão somente ao que é determinado pela lei. Usando a lei criminal como a fonte básica de sua legitimidade, a polícia focaliza o seu funcionamento para o controle do crime e prisão de criminosos. A sua meta principal é o controle do crime, e os principais meios utilizados são o uso da lei criminal para atemorizar e intimidar os ofensores.

Em decorrência do agravamento do crime violento na maior parte das grandes cidades dos países das democracias ocidentais, o discurso do “controle do crime” dá lugar gradualmente ao da “guerra contra o crime”, fortalecendo no imaginário do público e da polícia a ideia do perigo iminente e do imperativo de mobilização máxima de esforços para debelar aquilo que ocasiona tal situação.

Por conseguinte, embora a moderna burocracia policial tenha sido estabelecida em moldes civis, há manifestadamente na origem e no desenvolvimento do processo de profissionalismo da polícia, a predominância de um “modelo policial profissional” que enfatiza o comportamento profissional e legalista dos policiais, em um arranjo burocrático-militar que influencia, ainda hoje, a cultura, a filosofia de trabalho, a política administrativa, o treinamento, as operações táticas e estratégias, configurando a organização policial com fortes características de uma organização quase-militar. Como afirma Bittner (1990) um determinado modelo profissional de polícia – professional law-enforcement – cujas noções-chave são a aplicação da lei e o profissionalismo, é adotado com forte especialização na esfera de ação no combate ao crime.

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Assim, um dos dilemas colocados por esse modelo profissional consiste, justamente, no conflito entre o uso da discricionariedade policial para o atendimento a uma situação particular, e as demandas e pressões da burocracia policial para subordinar o trabalho policial às regras projetadas para manter a unidade da organização policial. O conflito apontado retrata o dualismo do trabalho policial entre os contatos diretos, que se dão com o público na prática policial cotidiana, e a disciplina do policial de acordo com a sua condição de representante da burocracia governamental.

O poder discricionário trata da autoridade conferida pela lei ao policial para intervir sobre determinados casos e sob certas condições com os quais está lidando, usualmente, recorrendo a um corpo de conhecimento que pode ser extraído de uma base científica, ou de conhecimento que é institucional por natureza, ou de acordo com o bom senso do policial individualmente.

Deste modo, pode-se apontar uma primeira importante consequência resultante da aplicação desse modelo. Para o membro da organização, coloca-se um jogo contraditório de expectativas. De um lado, dentro da organização, principalmente no período de treinamento, transmite-se a ideia do trabalho policial baseado essencialmente no controle do crime e no cumprimento da lei, com ênfase na importância de sua adesão às regras e aos procedimentos da organização para o controle do crime nos limites da lei. Além disso, neste contexto, ele experimenta uma enorme restrição com relação à tomada de decisão nas atividades concernentes ao dia a dia da organização. De outro, fora da organização, ele se depara com uma grande diversidade de situações com relação às quais tem de tomar constantemente decisões que não estão necessariamente de acordo com as diretrizes, procedimentos, ordens gerais, ou mesmo com os processos formais da legalidade, mas têm por objetivo fundamentalmente a aplicação eficiente de certas leis e regras para a manutenção da ordem, muito mais do que o respeito integral à legalidade ou às regras estabelecidas pela organização.

Precisamente porque o trabalho policial não se compõe apenas da estrita execução da lei, mas também requer o manejo de inúmeras e diversas situações com as quais o policial se defronta, as políticas e os procedimentos não podem descrever todas as situações possíveis que o policial encontra e, por conseguinte, é impossível desenvolver regras e procedimentos para prescrever a ação que ele desempenhará em um encontro com o seu público usuário, deixando, invariavelmente, o policial apenas com o seu bom senso para o guiar. Nesta perspectiva, pode-se destacar um grave problema que se relaciona com o não reconhecimento oficial do trabalho policial desenvolvido no exercício das atividades cotidianas pelos membros da organização, deixando as diretrizes para a tomada de decisão serem desenvolvidas informalmente.

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Visto que, para além dos “muros” da organização, grande parte do trabalho do policial não está visível e estabelecido nos regulamentos, não há critérios oficiais para o seu superior avaliá-lo e sancioná-lo positiva ou negativamente. Por não estar regulamentado, o policial não é recompensado pelo que faz fora da organização policial, mas pode ser punido pelos seus superiores pelo exercício de práticas que “escapam” às regras burocráticas, havendo uma tendência a “cobrir” essas práticas por parte dos subordinados, para evitar punições. Em decorrência disto, há o risco do policial agir somente quando “ordenado”, operando com a neutralidade burocrática, característica do tipo ideal burocrático, ou agir autonomamente, como é típico de uma ocupação “profissional”, contando, porém, somente com o seu bom senso, sem outros critérios que possam balizar a sua ação.

Vale lembrar que, se na maior parte das grandes organizações o poder de decisão sobre o modo como as tarefas devem ser realizadas aumenta na medida em que se eleva o nível hierárquico da estrutura organizacional, cabendo aos membros menos qualificados realizar as tarefas mais rotineiras, no interior da organização policial muitas decisões importantes são tomadas pelos policiais dos escalões mais baixos da estrutura hierárquica, geralmente o policial da linha de frente, que lida mais frequentemente com o público, usando amplamente o poder discricionário.

Neste sentido, diversos autores chamam a atenção para os riscos contidos no exercício do poder discricionário pelo policial que, por meio de pressupostos contidos na noção pessoal de direitos, pode cometer erros e abusos no tratamento dispensado ao público, baseando-se em critérios discriminatórios relativos à cor, ao gênero e à posição social do indivíduo na sociedade8.

Acrescente-se às consequências indesejáveis resultantes da rígida disciplina e hierarquia, do formalismo e da impessoalidade no interior da organização, o isolamento burocrático cujos efeitos para o trabalho policial não podem ser ignorados.

No modelo profissional em foco, o isolamento burocrático constitui-se numa estratégia para propiciar autonomia ao trabalho da polícia em face das demandas e pressões externas, com vistas à implementação de escolhas públicas imunes aos interesses de grupos particulares. Entretanto, estudos realizados sobre o exercício do trabalho policial, em diferentes contextos nacionais, revelam que os controles burocráticos mostraram-se formalísticos e insuficientes diante da estratégia de isolamento burocrático da polícia, revelando-a mesmo irreal, uma vez considerada a meta almejada, qual seja, implementar escolhas públicas livres das demandas e pressões dos interesses particulares e das forças políticas presentes na sociedade. Neste sentido, o que se obtém com essa estratégia é a supressão de alguns interesses em prol de outros, geralmente, daqueles com maior gama de recursos e que retêm maior poder de barganha. Evidencia-se, ainda, a debilidade dos controles burocráticos frente ao poder, cada vez mais sólido e vasto, proporcionado aos membros no interior da organização que, para além das áreas em que os interesses puramente funcionais determinam o sigilo, o “segredo oficial”, ocultam o seu conhecimento e a ação da crítica (WEBER, 1979, p. 269-270).8 Ver a respeito Reiss (1971; 1992); Manning (1977); Black, (1980); Menke et al. (1982); Reiner (1992; 1994).

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Destaca-se, também, que o isolamento da organização policial possibilita, além disso, um comportamento organizacional refratário ao controle externo, o que torna quase impossível qualquer interferência externa na condução de regras e procedimentos estipulados para o desenvolvimento do trabalho policial. Como consequência imediata, observa-se um vazio quanto ao controle social por parte do público em geral, acentuando ainda mais a insuficiência dos mecanismos de accountability das agências policiais. Deste modo, à baixa eficácia dos instrumentos de fiscalização efetiva da ação da polícia e responsabilização pública estatal quanto às formas usuais de supervisão entre os policiais, acrescenta-se, ademais, a quase total inexistência de um controle social por parte do público.

Como consequência do insulamento da polícia, destaca-se, ainda, a baixa eficácia para responder satisfatoriamente às demandas da sociedade e para enfrentar os desafios de produzir um bom resultado de sua ação, por falta de suporte da comunidade, em um contexto de complexidade e insegurança crescentes, como o da sociedade contemporânea.

Por fim, cabe ressaltar as consequências do modelo profissional no recrutamento, na formação e no treinamento profissional do policial, destacando-se, principalmente, o descompasso entre o conhecimento adquirido para o desempenho do trabalho policial nos bancos das academias e a realidade na qual se realiza o trabalho cotidiano da polícia.

O exame da literatura internacional sobre formação profissional do policial revela que, no modelo policial profissional em foco, o ensino e treinamento para policiais baseiam-se essencialmente no controle do crime e na aplicação da lei, com ênfase na importância da adesão dos policiais a regras e procedimentos da organização, negligenciando o enfoque da interação com o cidadão para o desenvolvimento das tarefas relacionadas à manutenção da ordem, que são demandadas cotidianamente à polícia, e que são desconsideradas, na sua quase totalidade, nos conteúdos programáticos dos cursos em questão. Nesse modelo, a formação profissional do policial é dirigida para a produção de um comportamento legalista dos policiais em um arranjo burocrático-militar que influencia a cultura, a filosofia de trabalho, a política administrativa, o treinamento, as operações, táticas e estratégias policiais.

Evidencia-se, portanto, a dificuldade dos cursos de formação profissional em abranger a amplitude das atribuições da polícia relacionada à realidade complexa e contingente do trabalho policial para a manutenção da ordem, prevenção e repressão do crime na sociedade contemporânea. Deste modo, porque o trabalho policial não consiste apenas no desenvolvimento de atividades relacionadas à estrita aplicação da lei, mas também se constitui de atividades diversas relacionadas à manutenção da ordem, executadas na maioria das vezes em condições instáveis, e exigindo o uso da discrição, a formação e o treinamento profissional fornecidos no interior da organização policial, quase sempre atados rigorosamente aos aspectos normativo-legais do trabalho, acabam sendo simplistas e irreais. Em consequência, quando os policiais iniciam a sua prática profissional, uma das primeiras coisas que apreendem é descartar o que foi ensinado na academia.

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A identificação de algumas das limitações acima referidas somada ao reconhecimento e ao esgotamento de um modelo profissional policial até então em vigor, que privilegiava um tipo de policiamento estruturado no patrulhamento aleatório e na reatividade, produziram crises consideráveis e inauguraram uma agenda de reformas. Nesta perspectiva, assistiu-se a adoção de novas e diferentes estratégias, que trouxeram ganhos adicionais em efetividade policial, ao lidar com as múltiplas e diferentes demandas apresentadas à organização.

Os estudos realizados principalmente nos EUA e no Canadá mostram que, embora não haja consenso acerca da correlação [positiva] entre o nível educacional e a melhora da performance policial é desejável que os diferentes níveis hierárquicos das organizações policiais recebam um nível de educação como meio para o desenvolvimento de um padrão de excelência no exercício profissional. Para tanto, é desejável que se consagre alguns anos para a educação policial com vistas à preparação (continuada) e à promoção, e, sobretudo, que os programas de educação sejam objetos de uma política formal.

Observa-se, além disso, que, principalmente nos países de língua inglesa, esta tarefa tem sido uma responsabilidade do Estado, partilhada com a sociedade política e civil organizada (parcerias com universidades e institutos de pesquisa) que produzem políticas, a partir de estudos.

No entanto, é apenas na história recente que um tipo novo de profissionalismo entre as polícias ocupou uma nova direção. A partir dos anos 1970, em diferentes contextos nacionais, mas especialmente nos EUA, uma nova pauta de reformas para a polícia é impulsionada pelas pressões contemporâneas relacionadas com a ineficiência da polícia para o desempenho tanto das atividades de controle do crime, quanto da prestação de serviço do tipo peace-keeping (manutenção da paz); constata-se com uma clara tendência ao abandono do ideal militar, em favor de um tipo novo de profissionalismo, que enfatiza o serviço público, a discrição do policial informado por alto nível de educação e treinamento e a ligação mais estreita entre a polícia e a comunidade.

Nos anos 1970, o “novo” profissionalismo da polícia foi interpretado em muitos modos diversos, sendo associado mais frequentemente com propostas para credenciar todos os policiais, entrada lateral, ênfase renovada na academia e no treinamento em serviço, contato com o cidadão aumentado, estratégias de patrulha descentralizadas (por exemplo, patrulha de impedimento, equipe policial), e unidades especializadas para controlar disputas entre cidadãos, problemas familiares, crimes sexuais, ou ofensas de rua violentas (YEAGER; BROWN, 1978, p. 275, grifo dos autores).

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Constata-se que as mudanças propostas para a polícia buscam alterar a posição do policial tanto na organização – moldada, no modelo quase-militar, pela observância aos rígidos parâmetros de disciplina e hierarquia e impessoalidade em geral e pela intransigente obediência às normas e aos procedimentos, negligenciando a discricionariedade do policial, dentre outros aspectos – quanto na redução da separação entre polícia e sociedade.

Pode-se observar, assim, que a concepção de “policiamento comunitário”, tão difundida em todo o mundo a partir dos anos 1980, nasce sob o signo de uma clara oposição ao modelo policial profissional, de caráter burocrático-militar, que não apenas não foi capaz de deter o contínuo mau procedimento da polícia – incluindo escândalos de corrupção, discriminação racial e outros abusos do poder – como propiciou o isolamento da organização, expresso principalmente na distância entre a polícia e a comunidade, e em consequência, na falta de respostas adequadas às demandas do público.

Para Skolnick e Bayley (2002, p. 19) existem quatro premissas fundamentais nesse tipo de modelo profissional policial: a) a organização da prevenção do crime tem como base a comunidade; b) a reorientação das atividades de patrulhamento para enfocar os serviços não emergenciais; c) o incremento da responsabilização das comunidades e da polícia local; e d) a descentralização do comando policial.

O “policiamento comunitário” baseia-se, pois, em uma nova abordagem de relacionamento da polícia com a sociedade, segundo a qual o público em parceria com a organização policial, exerce um papel mais ativo e coordenado na obtenção da segurança, a fim de que se possam identificar as causas e as soluções de problemas relacionados à ordem e à segurança pública na área onde esse serviço é prestado. Ou seja, o público é concebido como um coprodutor da segurança e da ordem, juntamente com a polícia.

Outra abordagem alternativa ao modelo profissional tradicional foi denominada “policiamento orientado para a solução do problema”. Nesta abordagem a pesquisa e a análise são enfatizadas, bem como a prevenção da criminalidade e o envolvimento de organizações públicas e privadas na redução dos problemas da comunidade.

Enquanto no modelo tradicional, um patrulheiro pode responder a repetidas chamadas para um determinado problema ou área de hot spot e lidar somente com cada incidente individual, no policiamento orientado para a solução do problema esse policial é incentivado a descobrir a causa do problema e chegar a formas de resolvê-lo. Mais do que isso, uma vez que um problema

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é identificado, os policiais devem trabalhar em estreita colaboração com os membros da comunidade para desenvolver uma solução, que pode incluir uma ampla gama de alternativas à prisão. Estas podem concentrar-se no autor, na comunidade, no ambiente ou na necessidade de algum tipo de mediação. Nesta abordagem, a criatividade e a discrição do policial para dar respostas às situações-problema são altamente valorizadas.

Como argumentam os autores:[a] polícia deveria desenvolver a capacidade de

diagnosticar as soluções a longo prazo para crimes recorrentes e problemas de perturbação da ordem, e ajudar na mobilização de recursos públicos e privados para esse fim. Isso significa que as polícias devem desenvolver uma habilidade para analisar os problemas sociais, trabalhar com outras pessoas para encontrar as soluções, escolher os enfoques mais viáveis e de menor custo, advogar vigorosamente a adição de programas desejados, e monitorar os esforços de cooperação (SKOLNICK; BAYLEY, 2002, p. 37).

De acordo, ainda, com Skolnick e Bayley (1986: 212), os “velhos” profissionais podem ser caracterizados como bem treinados em direito penal, uso de arma de fogo, investigação e procedimentos de interrogatório, que concebem seu trabalho sob uma perspectiva legalista, de execução da lei, não considerando as necessidades do público como uma preocupação principal do policiamento. Em contraste, os profissionais “novos” são descritos como comprometidos com um estilo mais orientado para o serviço, fundamentado na noção de que a polícia serve à comunidade e é responsável por isto.

Salienta-se, contudo, que este deslocamento do “velho” para o “novo” profissionalismo na polícia não é adotado com homogeneidade em suas premissas, como também não é generalizado, por razões distintas, para todos os países ocidentais.

Nos últimos anos, por exemplo, a polícia [principalmente a americana] tem sofrido, mudanças significativas que, provocadas pelo episódio de 11 de setembro 2001, apontam para a incorporação do militarismo, entendido em termos de “um conjunto de valores que dão ênfase ao uso de força e dominação como meios apropriados para resolver problemas, ao mesmo tempo em que enaltecem as ferramentas para realizar isto – poder militar, hardware e tecnologia” (Kraska, 1993 apud Kraska, 1999) no âmbito da segurança pública9.

9 No caso americano, Kraska aponta não apenas a militarização da polícia, como também para a police-ization do militar (Kraska, 1993 apud Kraska, 1999, p. 148).

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3 A FORMAÇÃO PROFISSIONAL DE POLICIAIS NAS ACADEM-IAS DE POLÍCIA E OS DESDOBRAMENTOS CONTEMPORÂNEOS PARA O INCREMENTO DO PROFISSIONALISMO

No Brasil, a questão da (in)segurança pública em face do aumento dramático da criminalidade e da violência no país, como também da baixa efetividade, associada a um padrão de atuação arbitrário e violento das polícias para o enfrentamento da questão, impeliram a emergência de uma agenda governamental para lidar com os referidos problemas

Destaca-se que o esforço no sentido de identificar e sistematizar temáticas, preocupações e práticas relacionadas à questão da segurança por parte do Estado brasileiro se deu a partir de 2000, no governo Fernando Henrique Cardoso (de 1995 a 1998 e de 1999 a 2002), impulsionando a criação do I Plano Nacional de Segurança Pública. O acúmulo de informações e experiências da execução de algumas ações deste Plano oportunizaram, com a mudança de governo, a (re)condução da agenda política na área, situando no centro das prioridades dos governos seguintes (primeiro e segundo governos Luis Inácio Lula da Silva, de 2003 a 2006 e de 2007 a 2010), e de maneira enfática, algumas alternativas para a segurança pública10, como, por exemplo, a capacitação e o aperfeiçoamento de policiais de recursos humanos das organizações policiais com vistas a estabelecer um novo modo de operar as atividades dirigidas à redução da violência e ao controle do crime na sociedade brasileira.

Nessa perspectiva, diversas ações foram implementadas, no âmbito federal, por meio da Senasp/MJ, destacando-se a criação da Matriz Curricular Nacional para o ensino policial, a criação da Rede de Ensino a Distância, o estabelecimento da Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública (Renaesp), a realização da Jornada Nacional de Educação em Direitos Humanos; a parceria com o Comitê da Cruz Vermelha Internacional para capacitar os operadores em direitos humanos, na integração das academias, entre outras iniciativas11.

No que diz respeito particularmente à educação policial, a Matriz Curricular Nacional, tem como objetivo principal,

ser um referencial teórico-metodológico para orientar as ações formativas dos profissionais da área de Segurança Pública – Polícia Militar, Polícia Civil e Bombeiros Militares – independentemente da instituição, nível ou modalidade de ensino que se espera atender. Seus eixos articuladores e áreas temáticas norteiam, hoje, os mais diversos programas

10 Para descrição e análise minuciosa dos planos de segurança pública editados pelos diferentes governos federais (governo FHC e primeiro e segundo governos Lula) consultar BOLETIM POLÍTICAS SOCIAIS − ACOMPANHAMENTO E ANÁLISE, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) (diversos números). Ver, ainda, reflexão sobre o processo de implementação dos planos nacionais de segurança pública, Soares (2007); Adorno (2009); Tavares dos Santos (2009b).

11 Consultar a respeito Relatório de Atividades Implantação do Sistema Único de Segurança, Senasp, 2003- 2005 (2007). Disponível em: http://www.dhnet.org.br/dados/relatorios/r_senasp/r_senasp_susp_2007.pdf. Acesso em: 16 fev. 2009.

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e projetos executados pela Secretaria Nacional de Segurança Pública – Senasp. (...) Espera-se que este documento seja uma ferramenta de gestão educacional e pedagógica, com ideias e sugestões que possam estimular o raciocínio estratégico-político e didático-educacional necessários à reflexão e ao desenvolvimento das ações formativas na área de Segurança Pública. Espera-se também que todo esse movimento chegue às salas de aula, transformando a ação pedagógica e contribuindo para a excelência da formação do profissional de Segurança Pública (SENASP, 2007)12.

A pesquisa realizada junto às academias de polícia civil e militar do Rio de Janeiro indica que, apesar da incorporação de algumas dessas iniciativas para a área de educação policial, persiste um caráter descontínuo e desarticulado das reformulações propostas para a capacitação e o aprimoramento dos recursos humanos da polícia e para a mudança nas práticas cotidianas da polícia; chama a atenção que, não obstante os esforços envidados pelas instituições encarregadas da formulação e da implementação das políticas públicas de segurança pública, seja na esfera federal (Senasp), seja na estadual (Instituto de Segurança Pública – ISP), não foi consolidado, até o momento, um projeto educacional capaz de colocar em obra valores que satisfizessem interesses de longo e duradouro espectro institucional e societário, vinculados à política de segurança pública.

O exame dos cursos de formação profissional da Polícia Civil do Rio de Janeiro (PCERJ) e da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) indica primeiramente que há uma significativa defasagem entre o que é proposto na Matriz e o que é desenvolvido nos cursos de formação e treinamento para policiais em ambas as organizações.

Nas duas organizações policiais, os tipos de conhecimentos provenientes dos currículos dos cursos de formação profissional do policial incluem várias dimensões de conhecimento da cultura organizacional, do conhecimento técnico básico e dos procedimentos rotineiros do “fazer profissional”, com ênfases diferenciadas para cada nível hierárquico, evidenciando, contudo, a dificuldade dos cursos de formação profissional básica em abranger a amplitude das atribuições da polícia relacionada à realidade complexa e contingente do trabalho policial para a manutenção da ordem, prevenção e repressão do crime na sociedade13.

A análise dos currículos dos cursos de formação profissional da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro (PCERJ) realizados na Academia Sylvio Terra (Acadepol) – autoridade policial (delegado de polícia) – e agentes policiais (agentes de polícia estadual de apoio técnico-científico – Engenheiro Policial de Telecomunicações,

12 Disponível em: http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJE9CFF814ITEMID0B0D11E3E70B40F38370FAE2C526C737PTBRIE.htm. Acesso em: 09 fev. 2009.13 Deve-se ressaltar que a dificuldade apontada não é uma particularidade da polícia carioca, e tampouco da polícia brasileira. O exame

da literatura internacional sobre formação e treinamento policial revela que os currículos dos cursos de formação profissional básica para policiais apresentam deficiências quanto ao preparo do policial para o desempenho das extensas atribuições relacionadas à manutenção da ordem. A esse respeito, consultar Poncioni (2004).

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Perito Legista, Perito Criminal, Papiloscopista Policial, Técnico Policial de Necropsia e Auxiliar Policial de Necropsia) e agentes de polícia estadual de investigação e prevenção criminais (Inspetor de Polícia, Oficial de Cartório Policial e Investigador Policial) – indica que a formação profissional básica entre essas carreiras apresenta certo equilíbrio entre os conteúdos programáticos e a carga horária dos cursos.

Os currículos dos cursos acima referidos revelam, ainda, uma expressiva preparação em direito penal, em investigação e procedimentos diversos relacionados à polícia judiciária; apresenta, no entanto, sérias deficiências na preparação do policial para a interação interpares e com o público. Por conseguinte, tal como está organizada, essa formação demonstra uma concepção do trabalho policial numa perspectiva exclusivamente legalista, sugerindo que as atividades desenvolvidas pelo policial civil restringem-se ao trato meramente técnico de execução plena da lei e negligencia a interação com o público como uma preocupação principal da prestação de serviço junto às diversas questões que emergem no cotidiano das delegacias de polícia que não se constituem necessariamente em problemas legais ou penais.

Merece atenção, além disso, o fato de que, ao mesmo tempo em que pode se observar iniciativas para o estabelecimento de uma maior qualidade do ensino na formação profissional na Acadepol, pode-se verificar certa fragilidade nas ferramentas já disponíveis no sistema de ensino e treinamento profissional da academia, para uma consequente realização e avaliação dos cursos e possíveis encaminhamentos na resolução dos problemas encontrados. Destaca-se como entraves ao bom funcionamento dos cursos de formação profissional a ausência de um corpo docente dedicado ao ensino e à supervisão dos estágios curriculares, aliada à baixa remuneração para o pagamento de professores que ministram aulas nos cursos.

Outra limitação refere-se à falta de regularidade na realização dos cursos de formação profissional para as distintas carreiras, haja vista que os mesmos constituem a segunda fase de concurso público para o preenchimento das vagas disponíveis na organização, bem como a periodicidade dos mesmos que, apesar de garantido por lei14, não tem sido integralmente respeitado, sob os auspícios de pressões e ingerências do governo do estado para “botar policiais nas delegacias”.

O exame dos currículos dos cursos de formação profissional da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) – oficiais e praças – mostra, primeiramente, que a formação profissional básica dos policiais militares, guarda uma profunda variação no que se refere aos conteúdos programáticos e à carga horária entre si, mantendo diferenças substanciais na concepção e no preparo dos indivíduos para exercerem a função policial, com nítida distinção entre aquele que é preparado para o planejamento e aquele que é preparado para execução.14 Trata-se da Lei n. 4.020, de 06 de dezembro de 2002, que, entre outras coisas, regula a realização dos cursos de formação profissional

com a obrigatoriedade do prazo de, no mínimo, seis meses para a execução dos cursos de formação profissional. (BRASIL. Lei n. 4.020, de 06 de dezembro de 2002).

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Ambos os cursos conferem ao futuro policial – oficial e praça – um perfil eminentemente dirigido para o policiamento geral ostensivo, com ênfase na preparação física do policial, sugerindo, assim uma concepção de controle do crime, na qual são exigidas força física e virilidade, em detrimento de outra noção, que enfoca a administração de conflitos e o relacionamento direto com o cidadão.

Chama a atenção, ainda, a predominância da formação jurídica encontrada, particularmente, no currículo do Curso de Formação de Oficiais Militares, denotando uma noção da atividade policial, que privilegia, de maneira acentuada, o uso da lei criminal para controle do crime, omitindo, em boa parte, a aplicação de conhecimentos e qualificação requeridos para a administração das variadas situações de cunho criminológico ou não, que demandam sistematicamente a intervenção policial.

No que diz respeito, particularmente, ao preparo profissional do policial militar para o desempenho das diferentes e conflitantes funções – função civil de policiamento e função militar de força auxiliar e reserva do Exército – pode-se inferir que, mais do que uma concepção militarizada acerca da missão da polícia e das estratégias operacionais utilizadas para a consecução de seus objetivos, a presença das ideias e valores do militarismo na polícia militar do Estado do Rio de Janeiro está mais nitidamente retratada na forma como a própria organização se relaciona com o policial. Igualmente, a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro não possui um corpo de docentes dedicado integralmente ao ensino. Os cursos oferecidos pela corporação contam com professores15 advindos da própria corporação, na ativa ou na reserva, e com instrutores externos à organização policial contratados temporariamente.

Os professores dos cursos de formação profissional oferecidos por ambas as organizações policiais são, majoritariamente, policiais advindos da própria corporação, os quais, além de acumularem a atividade docente com outras atividades próprias ao cargo prioritariamente exercido na corporação, não possuem necessariamente uma formação pedagógica adaptada à função. Acrescente-se a isso, que para os professores advindos da corporação não há remuneração pelo desenvolvimento da atividade de ensino. Para esses policiais há, de fato, um acréscimo na sua carga horária de trabalho; objetivamente, o maior bônus para esses policiais é a pontuação para progressão na carreira. Neste sentido, vale a pena observar, ainda, que a remuneração para os professores externos é baixa, tornando pouco atraente o ensino nos centros de ensino e treinamento, dificultando a afluência de professores qualificados e especialistas externos à instituição para a participação nos seus cursos de formação da instituição.

15 Apesar de, na polícia militar, ser usado o termo “instrutor” para designar o professor de uma disciplina, quando nos referirmos às duas corporações utilizaremos preferencialmente o termo “professor”.

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A ausência de um corpo docente, com dedicação integral para o desenvolvimento das atividades docentes, tem uma consequência imediata que se traduz na impossibilidade de priorizar a atividade de ensino, devido aos diversos encargos e às determinações derivadas do escalão superior, trazendo prejuízos ao pleno desenvolvimento dos cursos oferecidos pela corporação. Acrescente-se às deficiências de preparo nos cursos de formação profissional básica em ambas as organizações, a falta de regularidade para a realização dos cursos para o aprimoramento profissional ao longo da carreira do policial. Muito embora a mobilidade dentro da carreira policial, civil e militar, esteja sujeita à realização de cursos de aperfeiçoamento profissional, esses cursos nem sempre são oferecidos por razões diversas. Vale a pena ressaltar, ainda, que esses cursos, não alcançam a totalidade dos membros das referidas corporações16.

Verificam-se, pois, fragilidades comuns no processo de formação do futuro policial com relação às ferramentas necessárias – recursos humanos e materiais – para prover os meios necessários e as condições apropriadas para capacitar as organizações policiais com vistas a responderem satisfatoriamente às demandas da sociedade e enfrentarem os desafios da eficácia de suas ações em um contexto de complexidade e incertezas crescentes, como o da sociedade brasileira contemporânea.

A pesquisa realizada mostra que, nos últimos anos, ocorreu alguma mudança e mobilidade para o grupo ocupacional como um todo, em direção a um maior profissionalismo, com o incremento de alguns indicadores objetivos para o recrutamento, a formação e o treinamento policial. No entanto, pode-se verificar que, com relação especialmente às propostas voltadas para a reformulação da área de educação policial, às ações para o estabelecimento de uma maior qualidade do ensino e capacitação profissional de policiais, somam-se importantes deficiências nas ferramentas disponíveis para o sistema de ensino e treinamento profissional, como também uma consequente avaliação dos cursos e possíveis encaminhamentos na resolução dos problemas encontrados.

No período enfocado, pôde-se verificar que os cursos realizados nas academias de polícia – civil e militar – vêm sendo basicamente repetidos, com poucas mudanças no eixo da formação profissional, o que pode ser interpretado como um aspecto conservador das organizações, no que diz respeito aos conteúdos dos cursos, insinuando certa resistência às mudanças, haja vista que há uma profusão de propostas nas últimas duas décadas relacionadas à polícia preventiva e repressiva. É possível argumentar que as academias de polícia têm reunido nos seus currículos, diferentes modelos profissionais de polícia – tradicional (burocrático-militar e aplicação da lei) e novo (polícia comunitária

16 Este quadro tem sido paulatinamente alterado pela oferta de cursos diversos promovidos pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp/MJ), tais como os cursos de pós-graduação da Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública – Renaesp. No entanto, não há ainda avaliações com relação aos efeitos e aos impactos dos mesmos na carreira daqueles policiais que realizam os cursos.

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ou de proximidade e policiamento orientado para a solução de problemas) –, justapondo-os em uma espécie de bricolagem, que vem comprometendo o desempenho de um trabalho policial mais eficiente e responsável no controle do crime, pautado em um padrão de excelência e comportamento ético como sugerido, por exemplo, no profissionalismo de tipo “novo”.

O estudo desenvolvido evidencia, ainda, que, por um lado, há, entre as polícias civil e militar, uma enorme variação no conteúdo das disciplinas dos cursos, estrutura e extensão dos programas de formação profissional básica, resultando em perfis bastante distintos da formação profissional para o trato com as questões de segurança pública; por outro lado, existe muito pouca diferenciação no conteúdo simbólico sobre o “fazer” profissional do policial na sociedade brasileira contemporânea, pautado fundamentalmente na noção de “combate ao crime”, resultando em perfis de profissionais muito similares para o trato com as questões de segurança pública.

Como mencionado anteriormente foi somente em 2000 que a temática da segurança pública é colocada na agenda governamental como uma política de Estado, com desdobramentos para a implementação de uma política pública para a área. A partir deste momento, vem-se organizando no nível do Estado, uma representação sistemática e substantiva sobre o assunto, resultando em dois outros planos – o Plano de Segurança Pública para o Brasil (2003) e o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania – Pronasci (2007). Nos últimos anos, verifica-se que a Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça (Senasp/MJ)17, criada em 1998, teve seu protagonismo incrementado, agindo como indutora e articuladora das políticas públicas na área da segurança, exercendo a coordenação ao nível nacional para a implantação das mesmas.

Neste contexto, o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP)18 constituiu-se uma alavanca para a indução da reforma das polícias brasileiras ao buscar a cooperação entre as diferentes esferas de governo por meio do estabelecimento de metas e objetivos comuns entre os diversos órgãos de segurança pública, com vistas a priorizar o atendimento eficiente às demandas da sociedade e o impacto na redução da violência e da criminalidade.

Nesta direção, a Senasp estipulou que a implementação do SUSP seria realizada pela dedicação às ações convergentes de sete eixos estratégicos: gestão do conhecimento e informações criminais; formação e valorização profissional; gestão das organizações; programas de prevenção; estruturação e modernização da perícia; controle externo e participação social e programas de redução da violência.

17 O texto que versa sobre a competência da Senasp pode ser encontrado em: http://portal.mj.gov.br/main.asp?View={1BFF9F1B-2ECD-4A25-9976-661FB5A66624}&Team=&params=itemID={540715BB-1C9B-47D3-9549-9FA38E3E99FA};&UIPartUID={2868BA3C-1C72-4347-BE11-A26F70F4CB26}. Acesso em: 30 abr. 2009.

18 O Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) foi criado em 2003, para articular as ações na área da segurança pública e da Justiça Criminal, buscando a implantação de um sistema integrado entre as diferentes esferas de governo – federal, estadual e municipal –, propondo reformas significativas nas instituições policiais (modernização tecnológica, melhoria de infraestrutura e sistemas de gestão), com vistas à sua reorganização institucional e à valorização de seus profissionais. Por meio do SUSP, os governos estaduais e municipais passam a apresentar projetos, que após análise e aprovação pela Senasp podem ser apoiados com recursos financeiros do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP). Ver a respeito: Relatório de Atividades de Implantação do Sistema Único de Segurança Pública 2003-2006. (2007). Disponível em: http://www.dhnet.org.br/dados/relatorios/r_senasp/r_senasp_susp_2007.pdf. Acesso em: 16 fev. 2009.

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O Pronasci, pautado nos princípios do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), tem procurado dentre as metas propostas incrementar a colaboração entre a União, os estados e os municípios entre os vários órgãos de segurança pública. Um exemplo deste esforço é a extensão dos gabinetes de gestão integrada (GGIs) às secretarias de segurança dos estados e aos municípios, com o papel de atuar como instâncias de gestão estratégica da política de segurança pública nos mesmos.

Com relação à educação policial, o Pronasci mantém o foco na formação e na capacitação profissional de policiais, como uma importante dimensão para a consecução de seus objetivos. Nesta perspectiva, algumas iniciativas podem ser destacadas como a concessão de bolsas-formação para policiais civis e militares, a realização dos cursos de especialização promovidos pela Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública (Renaesp) em parceria com universidades públicas e privadas para profissionais da área e da sociedade civil organizada e os cursos de educação à distância por meio dos telecentros. Salienta-se, ainda, algumas ações como a realização de cursos de direitos humanos para policiais, dos fóruns, dos seminários, das mesas-redondas, entre outros, desenvolvidos em grande parte do território nacional19.

Entretanto, a despeito do desenvolvimento de experiências importantes na área da Segurança Pública, diversas análises têm salientado algumas fragilidades na gestão das políticas públicas na área, particularmente no que diz respeito aos recursos alocados para o SUSP, que vêm sendo sistematicamente reduzidos ao longo dos últimos anos, comprometendo assim suas atividades sob diferentes aspectos20. A análise do percurso das proposições e das realizações provenientes das políticas nacionais para a Segurança Pública, e em especial para a formação e o aperfeiçoamento profissional de policiais, traduz o caráter ambíguo com que a temática da segurança pública vem sendo tratada no país; persiste o caráter descontínuo e fragmentário do processo de formação profissional da polícia orientado, em grande parte, pela urgência de respostas imediatas às demandas e às pressões para maior segurança21.

Embora o argumento sobre a necessidade do profissionalismo da polícia esteja presente em diferentes discursos públicos, inclusive no da própria polícia, pôde-se constatar que, com raríssimas exceções, a ideia de profissionalismo na polícia não se encontra alinhada necessariamente a um tipo “novo” de profissionalismo; há uma frágil adesão das academias de polícia às diretrizes emanadas pelas políticas públicas dirigidas à formação profissional baseada em modelos alternativos ao modelo profissional policial tradicional.

19 Ver a respeito: http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJF4F53AB1PTBRNN.htm. Acesso em: 30 abr. 2009. 20 Para uma descrição e análise minuciosa dos planos de Segurança Pública editados pelos diferentes governos federais (governo

FHC e primeiro e segundo governos Lula) consultar BOLETIM POLÍTICAS SOCIAIS − ACOMPANHAMENTO E ANÁLISE, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) (diversos números). Ver, ainda, reflexão sobre o processo de implementação dos planos nacionais de Segurança Pública, Soares (2007); Adorno (2009); Tavares dos Santos (2009b).

21 Esta não é uma peculiaridade da polícia carioca, repetindo-se em grande parte dos estados da federação.

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Nesta perspectiva, pode-se inferir que a ideia do profissionalismo na polícia tem sido empregada frequentemente em resposta às pressões e às críticas feitas pelo “mundo exterior”, comumente pelo poder político, pela mídia e pelo público em geral com relação ao controle do crime; os policiais têm adotado uma retórica, que é fundamentalmente a retórica de legitimação, para si próprios e para o “outro”, das atividades que desenvolvem sob o atributo de “profissionalismo”; assim, lançam mão de padrões de comportamento, que possam satisfazer às demandas de diferentes grupos e que, em boa medida, coincidem com a concepção hegemônica dos grupos aos quais ela serve em um contexto sócio histórico determinado.

4 CONSIDERAÇÕES FINAISEste trabalho buscou refletir como a ideia de profissionalismo tem

sido empregada na formação profissional do policial, buscando-se apreender as rupturas, as permanências e os desdobramentos contemporâneos para o incremento do profissionalismo do trabalho policial na sociedade brasileira por meio da formação profissional desenvolvida nas academias de polícia. Para tanto, foi privilegiada a apresentação dos resultados obtidos na pesquisa bibliográfica realizada, envolvendo a literatura sobre polícia, profissionalismo, violência, políticas públicas e democracia e a documentação oficial da Secretaria Nacional de Segurança Pública – Ministério da Justiça (Senasp/MJ) referente às propostas para a área da educação policial. Utilizou-se, ainda, os dados coletados em duas pesquisas realizadas junto às polícias civil e militar, no Rio de Janeiro (PONCIONI, 2004; 2008).

Os estudos acima mencionados indicam primeiramente que, ao contrário do que aponta a Matriz Curricular Nacional para a Formação em Segurança Pública, os currículos dos cursos de formação profissional para os futuros policiais revelam uma ênfase excessiva no controle do crime, em uma estratégia exclusivamente reativa da polícia, e dirigida principalmente para o confronto, apontando deficiências, na área da atividade preventiva, com enfoque na negociação de conflitos e no relacionamento direto com o cidadão. Embora haja contemporaneamente propostas inovadoras para a área de segurança pública, e em especial para as ações da polícia na área, como a polícia comunitária ou de proximidade e o policiamento orientado para a solução de problemas, que conectam ações repressivas a ações preventivas “qualificadas”, a formação profissional do policial civil e militar desenvolvida nas academias de polícia examinadas, apesar de incorporar essas novas propostas, encontra-se identificada, fundamentalmente, com o controle do crime, com proeminência no “combate ao crime”, como um importante requisito para que o policial possa, “com sucesso”, realizar a árdua missão de “combater” o crime. A questão não é simples, mas é urgente que se busquem respostas para ela.

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Em países como o Brasil, que experimentaram regimes ditatoriais duradouros, o redirecionamento do mandato policial – do uso extensivo e arbitrário da força, típico nos regimes ditatoriais, para o uso controlado da força e da administração dos conflitos, característicos dos regimes democráticos – coloca hoje grandes desafios para o controle mais eficiente e responsável no controle do crime em uma sociedade democrática. Um desafio posto para aqueles envolvidos com a problemática da segurança pública no contexto das sociedades democráticas, e em especial daquelas cujo passado recente experimentaram longos períodos de exceção e arbítrio instaurados por Estados ditatoriais é: como converter as propostas de reforma policial, que apregoam a substituição de um modelo de polícia profissional, pautado fundamentalmente na força, com a perspectiva do “combate” ao crime, para outro baseado na prestação de serviços, baseada essencialmente na prevenção, em práticas policiais cotidianas?

Certamente, a organização dos planos de Segurança Pública constitui um cenário promissor para a reforma das polícias, insinuado por programas de âmbito federal e estadual, inclusive no que tange à perspectiva de formação profissional da polícia. Porém, apesar de alguns estados da federação se notabilizarem pelo investimento na melhoria da estrutura e funcionamento das organizações policiais, com forte ênfase no desenvolvimento das competências e das habilidades de seus quadros para o desempenho eficiente e eficaz das ações cotidianas, com vistas à prevenção e à repressão ao crime, perdura, ainda, em um significativo número de estados, uma maneira de conceber o trabalho policial fundamentalmente como “combate” ao crime, empregando-se frequentemente o uso extensivo de táticas e procedimentos de “guerra” nas práticas policiais cotidianas.

Verifica-se que, até o momento, não se estabeleceu um extenso debate sobre os modelos policiais profissionais e as estratégias necessárias à transmissão e à sedimentação de conhecimentos, valores e comportamentos para nortear uma ampla reforma na forma de atuação dos operadores de Segurança Pública, com vistas a incrementar um padrão de excelência e comportamento ético no exercício cotidiano do trabalho dos membros desse grupo ocupacional específico para o cumprimento do mandato policial na sociedade brasileira contemporânea.

Parece possível afirmar que, apesar dos esforços envidados pela Senasp, chama a atenção que, até o momento, não foi consolidada uma ampla agenda de reformas para a área de Segurança Pública e, em particular, um projeto educacional capaz de propiciar, não somente resultados palpáveis em face das demandas para uma política de policiamento, mas, além disso, atender as exigências de uma política de Segurança Pública. Neste cenário, o exame, o monitoramento e a avaliação dos cursos de formação profissional desenvolvidos nas academias de polícia se mostram particularmente relevantes para pensar a polícia no caso

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brasileiro, na medida em que a versão do profissionalismo usualmente empregado sugere contornos peculiares que insinuam obstáculos para o estabelecimento das bases de um “novo” profissionalismo capaz de nortear uma nova concepção do “fazer policial” para um desempenho mais eficaz, mais responsável e mais efetivo na condução da ordem e segurança públicas no contexto da sociedade brasileira contemporânea.

Constata-se que a formação profissional do policial considerada pelos países democráticos como uma etapa importante para o incremento da qualidade dos membros ocupacionais e para a qualidade do próprio trabalho policial na sociedade, de forma extensa, profunda e duradoura, ainda não conseguiu se consolidar como prioridade para a realização da Segurança Pública na sociedade brasileira contemporânea, por razões que precisam ser melhor estudadas.

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A Brigada Militar (e a formação do oficial) na contemporaneidade

Dani Rudnicki1

Resumo: Este artigo apresenta ideias sobre a Polícia Militar (PM) do Rio Grande do Sul e a formação dos seus líderes, os chamados “oficiais”, e busca apontar ainda como essa polícia se apresenta e se relaciona com outras instituições que participam do campo da segurança pública. Busca verificar como a PM forma seus oficiais e garante a reprodução de um modelo “histórico”, bem como apresenta as discussões e os debates que redundaram na adoção de novos critérios para ingresso na força (pioneiro no país, embora já adotado no estrangeiro), obrigando, teoricamente, à adoção de um novo modelo de ensino. A Brigada Militar, no que tange aos requisitos para seleção dos alunos-oficiais da APM, está na vanguarda das PMs brasileiras, tornando-se hoje referência. Entretanto, no cotidiano do ensino policial, verificado na Academia, continua sendo preservado um modelo tradicional, que pauta as academias de todo país e pouco se transformou – mesmo após a Constituição de 1988. Hoje os oficiais negam a possibilidade de discutir a unificação das polícias estaduais, a centralização ou não do modelo policial, a necessidade de manter a militarização e o paradigma de ensino policial. Entretanto, os oficiais da Brigada têm uma responsabilidade, junto com outros servidores públicos, com outros operadores do Direito e com a sociedade de (re)pensar o policiamento e a segurança.

Palavras-chave: Polícia Militar. Ensino policial. Academia de Polícia Militar. Oficiais.

Abstract: This paper presents ideas about the Military Police (MP) of Rio Grande do Sul and training of their leaders, the so called “official” and searchs still point out how this police shows itself and relates to other institutions involved in the field of public safety . It tries to verify how the way MP forms its officers and warrants the reproduction of a “historical” model, as well as presents the discussions and debates that culminated in the adoption of new criteria for joining the corporate force (the first in the country, although already adopted abroad), theoretically forcing the adoption of a new teaching model. The Military Police, regarding the requirements for selection of student officers of the MPA, is at the forefront of Brazilian MPs, today becoming reference. However , in the daily police instruction, checked in the Academy, still preserves a traditional model that guides the academies around the country and that have slightly changed - even after the 1988 Constitution. If today the officials deny the possibility of discussing the unification of the state police, the centralization or not of the police model, the need to maintain the militarization of the police education paradigm has little changed. But the new model is to be formed with people who care about these issues - and not fear them. It’s a matter of time because the officers of the Military Police have a responsibility, along with other public emploiers, with other operators of law and with the society: (re)consider policing and security .

Keywords: Military Police. Police training. Military Academy of Police. Officials.

1 Doutor em Sociologia. Professor do curso de graduação e mestrado em Direito do Centro Universitário Ritter dos Reis (Uniritter) – RS.

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1 INTRODUÇÃOEste artigo apresenta ideias sobre a Polícia Militar (PM) do Rio Grande

do Sul e a formação dos seus líderes, os chamados “oficiais”, e busca apontar ainda como essa polícia se apresenta e se relaciona com outras instituições que participam do campo da segurança pública2. Busca verificar como a PM forma seus oficiais e garante a reprodução de um modelo “histórico”, bem como apresenta as discussões e os debates que redundaram na adoção de novos critérios para ingresso na força (pioneiro no país, embora há muito adotado no estrangeiro), obrigando, teoricamente, à adoção de um novo modelo de ensino.

Essa polícia conta hoje com mais de 20 mil homens e é responsável pelas atividades de policiamento ostensivo no extremo sul do Brasil, sendo a única que possui nome próprio: Brigada Militar (BM). Esta denominação a diferencia de todas as outras e essa vontade de ser diversa é uma de suas características.

Ela considera sua história iniciada em 1837, vinculada indissociavelmente à segurança do Estado e, eis que o Rio Grande encontra-se na fronteira com a Argentina e o Uruguai, era uma instituição guerreira, voltada à defesa do país. Ela passa, somente após 1955, por um processo que fará com que, ao final dos anos 1960, apresente-se como força policial, voltada à garantia da segurança pública. Hoje, a Brigada, instituição estatal, é um serviço do qual o governo do Estado do Rio Grande do Sul se utiliza, junto com a Polícia Civil, quando precisa regular o convívio social e controlar seus cidadãos, para preservar a ordem, proteger os cidadãos, ou mesmo garantir o governo. Pelo policiamento ostensivo, ela pretende reduzir a criminalidade e, quando convocada, garante a segurança de manifestações, ou o fim de ocupações de órgãos públicos e ocupações de terras.

Junto a outras instituições estatais (Polícia Civil, Poder Judiciário, escolas) ou não (famílias, igrejas), ela atua no sentido de exercer controle social, organizar, regular e controlar a vida em sociedade, garantindo a ordem, a tranquilidade e a segurança pública, bem como no sentido de garantir a integridade física e moral das pessoas. Todavia, é somente dela e da Polícia Civil que se cobram resultados, como se fossem as únicas responsáveis pela segurança (pública), como se apenas elas exercessem atividades de controle social.

De toda forma, suas funções nem sempre são fáceis de determinar. Pode-se afirmar que, caminhando pelas ruas das cidades em seus uniformes, os brigadianos impõem segurança e tranquilidade, mas quando se voltam para preservar a paz social isso deixa de ser claro. A PM surge tanto como uma instituição democrática, quanto repressora (instrumento de quem detém o poder e a comanda).

2 Ele utiliza elementos colhidos para a realização da tese de doutorado intitulada “A formação social de oficiais da polícia militar: análise do caso da Academia da Brigada Militar do Rio Grande do Sul”, que teve como orientador o professor doutor José Vicente Tavares dos Santos e foi defendida em 2007, no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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Importa lembrar que a atividade de polícia, de fato, vira rotina apenas no ano de 1967, quando se extinguiu a Guarda Civil. Logo, quando, por meio do Decreto-lei n. 667, em 1969, o Governo Federal retirou a autonomia das polícias militares, buscando acabar com os “pequenos exércitos”, definindo como sua função o policiamento ostensivo (sob controle do Exército), a BM não necessitou de muito para se adaptar.

Há quem ache que aquela foi decisão desacertada e tenta preservar o militarismo até hoje (o Coronel Mendes, subcomandante e comandante, entre os anos de 2007 e 2008, surge como exemplo paradigmático desse grupo3). Mas eles esquecem que esse modelo está superado desde o fim da ditadura, em 1985, pelo processo de redemocratização acontecido, em especial, com o advento da Constituição de 1988, que reinstituiu, no país, o Estado Democrático de Direito.

Assim, indo e vindo, tem estado a BM, que assume importante papel em relação a muitos dos mais relevantes fatos da história do Rio Grande – e mesmo do país (“Legalidade”, em 1961, por exemplo). Em outra oportunidade, no ano de 1997, junto com as PMs de Minas Gerais, Pará, Bahia, Alagoas, São Paulo e Ceará, entre outras, teve a experiência de dividir-se no momento em que a maior parte dos policiais da corporação declarou-se em greve por melhores salários e condições de trabalho. Os policiais não apenas marcharam nos quartéis, mas caminharam nas ruas, em passeatas, gritando palavras de ordem. Reivindicaram, revoltaram-se, fizeram manifestações. As polícias militares, que não possuem sindicatos, mas associações, e não podem “cruzar os braços”, pararam. A greve aconteceu, com grande repercussão.

Nos seus momentos mais violentos, em Minas Gerais, o cabo Valério dos Santos Oliveira foi atingido por um tiro e morreu (EDWARD; BRASIL; VERANO, 1997). Em Fortaleza, o coronel Mauro Benevides, comandante da PM cearense foi ferido no ombro por uma “bala perdida” e 70 soldados acabaram sendo excluídos da corporação. Em Pernambuco, os líderes foram presos (FERNANDES, 1997).

Para José Murilo de Carvalho (1997), a diferença salarial entre os oficiais (com salários superiores aos de professores titulares de dedicação exclusiva de universidades federais) e os praças, que variava de 10 a até 20 vezes, foi uma das causas da revolta. “O abismo entre oficiais e praças que existia nas Forças Armadas passou a existir entre oficiais e praças das PMs”. Segundo o autor, somente a resolução dessa questão não resolveria o problema.

3 Durante os anos 2007 e 2008, quando comandante da BM, ele se impunha com um estilo operacional. Assim, na cerimônia de sua posse como líder maior da Brigada, dispensou a farda de gala e compareceu usando traje estilo “Rambo”; esquecendo da importância da inteligência policial na contemporaneidade, declarou que teria como lema três verbos: abordar, apreender e prender.

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O coronel Pereira (2006, p. 54; 196), da reserva da Brigada Militar, comandante da corporação no final do governo de Olívio Dutra (PT), declarou-se, em obra autobiográfica, contrário ao movimento. Embora considere a reivindicação salarial justa, entende que o fato tratou-se de crime militar, de grave indisciplina, que não trouxe vantagens, mas tão somente abalo da disciplina, ações criminosas, máculas nas instituições de segurança pública e desgaste geral, além de regras mais rígidas para punir os integrantes das polícias.

Como consequência, o comandante da PM do Mato Grosso do Sul chegou a afirmar que as PMs não seriam as mesmas após esse ano (CARVALHO, 1997). Entretanto, passados 13 anos, as PMs, ao invés de tentar entender o evento e evitar que novamente aconteça, parecem tentar fazer com que ele seja “apagado”.

Assim, apesar de esse fato marcar o ano e a história da Polícia Militar gaúcha, curiosamente, ou não, permanece ignorado na história oficial (ou oficiosa) da corporação. Nenhum artigo sobre ele pode ser lido na Revista Unidade ou nos livros que narram a cronologia dos acontecimentos brigadianos (ver, por exemplo, SIMÕES, 2002).

Quase simultaneamente, em 18 de agosto de 1997, a BM teve sua estrutura alterada por uma série de leis complementares, de números 10.990, 10.991, 10.992, 10.993, 10.996 e 11.000. Tais leis propunham, em seu conjunto, uma concepção geral de polícia, incorporando alguns princípios de descentralização e horizontalidade das decisões. Para isso, alteraram os planos de carreira, permitindo aos soldados chegarem ao posto de tenente (um oficial subalterno).

Antes que essas novas propostas de recrutamento e formação fossem implementadas, no governo Olívio Dutra (1999-2002), houve a experiência do “Programa de Ensino Integrado”, no qual 2.247 funcionários das polícias e demais órgãos estatais, vinculados à segurança pública, receberam, nos anos de 2000, 2001 e 2002, uma formação inicial única em convênio com a UFRGS4.

Sobre o governo de Olívio Dutra, cabe referir que, para muitos, correspondeu às expectativas de um projeto de esquerda, o auge de um esforço que vinha sendo implantado por meio da governança da prefeitura de Porto Alegre e de outras cidades gaúchas. Para outros, marcou um governo de “esquerdismo atrasado”, que inviabilizou o esforço do governo Antônio Britto em transformar o Rio Grande do Sul em um polo da indústria automobilística (ao não garantir a implantação de uma segunda montadora transnacional no estado).

Ainda há quem perceba, naquele período, o fim do PT como partido representativo dos interesses dos trabalhadores, consolidando-se a perspectiva weberiana de que a burocracia mantém seu poder, em detrimento de ideias transformadoras, ou que serviu para marcar os primeiros contatos do PT com grupos interessados na legalização do jogo de azar (bingos etc.).4 Foi também neste governo que se promoveram, como aconteceu durante os governos de Collares e Britto, seminários e palestras

em conjunto entre a Universidade e a Secretaria de Segurança Pública.

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O mandato foi caracterizado por intensos debates. José Paulo Bisol, Secretário da Justiça e da Segurança, antes juiz de Direito e desembargador, comentarista de tevê e senador, pessoa afeita à polêmica, comandou programas que geraram grande repercussão, positiva e negativamente. Tomou posições que redundaram em aplausos e críticas.

Instituiu, por exemplo, em 12 de agosto de 1999, a Portaria SJS n. 96, limitando o uso da arma de fogo e acusou, simultaneamente, a existência de focos “expressivos” de corrupção na Polícia Civil e “levíssimos” na Militar (CORREIO DO POVO, 2000). Também definiu a Justiça Penal e o Ministério Público como mentiras institucionais (ETCHICHURY, 2000).

Essas posições redundaram na criação, pela Assembleia Legislativa, de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para tratar da segurança pública no estado. Entre seus objetivos, apontados no relatório final (processo n. 20.353 0100, ALRS 018), aprovado em 14 de novembro de 2001, estão a análise da desestruturação do aparelho policial, fechamento de delegacias regionais, introdução da BM na Febem, emprego de técnicas ilícitas de espionagem (escuta telefônica), “banda podre” da Polícia, tortura (discrepâncias entre o discurso do ouvidor e do corregedor de polícia), relação entre o jogo do bicho, delegados, governo e o “Clube da Cidadania” (RIO GRANDE DO SUL, 2001, p. 2; 9).

Com a derrota de Tarso Genro, candidato do PT à sucessão de Olívio Dutra, a ideia de formação e treinamento integrados entre os órgãos de segurança foi abandonada, sem resistência ou oposição. A Brigada se adaptou à nova realidade que, na verdade, era a que se apresentara quatro anos antes – no governo Britto.

Em verdade, a corporação demonstrava que nada havia mudado naqueles anos, pois depois de seis dias de governo acontecia já a morte de cinco pessoas, provavelmente, criminosos. O Secretário da Justiça do Rio Grande do Sul, José Otávio Germano, dizia: “[o]s policias têm conseguido evitar roubos e assaltos em ações legais. Infelizmente ocorreram estas mortes, mas foi sempre em reação que os policiais atiraram. Prova disso é o policial ferido no confronto de ontem” (ZERO HORA, 2003, p. 28).

Entretanto, em julho, dois policiais militares foram informados de um assalto e relataram que, ao chegarem ao local, um carro arrancou em alta velocidade, após perseguição, o suspeito levou um tiro e morreu. Ele era professor de educação física e não havia realizado assalto algum; a família e amigos reagiram, a imprensa protestou e os policiais foram indiciados por homicídio5. A partir de então diminuiu a taxa de mortalidade de “bandidos”. Apesar desses fatos, o balanço final dos quase quatro anos em que dirigiu a secretaria da Segurança, José Otávio Germano repete o de sempre:

5 Disponível em: <http://www.sjs.rs.gov.br/portal/principal.php?action=imp_noticias&cod_noticia=3272>. Acesso em: 12 jun. 2005.

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Finalmente, mais importante do que nossas intenções e ações são os resultados concretos para a população. E estes são muito significativos. Hoje temos uma polícia mais presente, mais eficiente, mais ativa. E taxas mais baixas de homicídios, de latrocínios, de sequestros-relâmpagos: crimes que atentam contra a vida. A sociedade colabora mais ativamente na produção da segurança pública por meio de 342 conselhos pró-Segurança Pública. E as câmeras instaladas em vários pontos de Porto Alegre reduziram os furtos e roubos em 60%. (GERMANO, 2006, p. 21).

Interessante que o secretário que o substituiu, Enio Bacci, fazia declarações em sentido contrário, inclusive no que se refere ao ânimo de trabalho:

Há uma sensação de impunidade. Precisamos resgatar a confiança da sociedade nas ações policiais. Se tivermos uma ação contundente que dê resultados, isso vai ter um efeito psicológico maior do que prático. A sociedade tem de estar do nosso lado. Quando tivermos essa consciência de que é uma guerra civil, teremos de ter um lado. [...] Será o pior ano para a bandidagem no Rio Grande do Sul. (BACCI, 2006, p. 46).

Talvez por isso o discurso corrente na Brigada declara que a questão referente à Segurança Pública é assunto sério demais para ser determinado por leigos, devendo sempre haver uma perspectiva técnica, não de interesses políticos (o então novo secretário, na mesma oportunidade, declarava: “Sou político, mas técnico também”). Esse cenário mostra um pouco da BM e de como ela se envolve e é envolvida no campo da Segurança Pública do Rio Grande do Sul, cabe agora aprofundá-lo.

2 A BM E AS INSTITUIÇÕESA perspectiva de que uma instituição vinculada ao Estado possa

prescindir do entendimento com a política não se sustenta e para sintetizar a questão, basta uma única palavra: orçamento. Acrescenta-se à necessidade da sobrevivência financeira da instituição, outras, de naturezas objetivas e subjetivas, da população, de empresas, dos governantes, dos próprios brigadianos e da própria BM. Convênios das polícias com os conselhos comunitários pró-Segurança Pública (Consepros) vinculam a intervenção técnica à negociação com os anseios das pessoas. É, por exemplo, o que se percebe no auxílio de instituições financeiras à polícia, obrigando o compromisso de criar patrulhas dedicadas a circular em região na qual se localizam as agências bancárias.

Pereira (2006, p. 152) alerta que o “clube da gasolina” significa a privatização da polícia, ao impor um atendimento privilegiado aos que dele participam. As relações entre oficiais, políticos e instituições acabam por pautar

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a atuação policial. Não se pode esquecer que, no ápice da pirâmide de comando da corporação, está o governador do Estado, autoridade política, eleita. Essa a perspectiva da Lei Complementar n. 10.990/97, em seu artigo 2º, ao declarar que a Brigada está sob a autoridade suprema do Governador do Estado.

De forma explícita, a Lei determina ainda, no art. 8º, que o Comandante-Geral da Brigada seja nomeado pelo Governador do Estado, de quem depende e a quem está subordinado, não podendo, sob risco de perder a função, deixar de ouvir e acatar suas considerações ou ordens, mesmo que contrárias à técnica. O Major 16 considera isso errado:

Pafiadache [Comandante-Geral nos anos de 2003 e 2004] caiu porque queria comandar a Brigada Militar e não porque não quis integração. Quem manda na Brigada não é o Comandante, mas a política. Pafiadache queria trazer brigadianos de volta de gabinetes e outros locais, onde acumulam vantagens pessoais, e não conseguiu. A realidade é clara, transparente, a Brigada Militar não tem de ter partido, ela tem de ser imparcial, mas quem escolhe o Comandante da Brigada é o governador, que foi eleito, não vejo como fugir disso.

É óbvio que se o Comandante-Geral é escolhido por políticos, se ocupa a função em decorrência de decisão deles, sofrerá cobranças políticas e somente permanecerá com este status enquanto eles o permitirem. Pereira (2006, p. 83), que ocupou o cargo máximo da BM, explicita esta perspectiva: o Comandante-Geral faz política, eis que nomeado por políticos. Logo, o envolvimento com a política torna-se uma realidade da qual os brigadianos não podem escapar. A par desta realidade, ou de parte dela, um relativo consenso existe hoje na corporação, no sentido que, embora a política partidária divida, de modo prejudicial a instituição, a política, enquanto “arte de negociar”, fato que marca o cotidiano das pessoas, grupos e organizações, deve ser exercida em proveito da Brigada e da comunidade.

O Major 1 entende que, durante e após o governo Collares, iniciou-se um forte movimento de partidarização: “O último comandante da Brigada foi o Coronel Maciel, no governo Collares, quando não havia Secretaria de Segurança.”. A partir de então as pessoas sabem quem será o próximo comandante no momento em que se define o partido vencedor das eleições.

Entendendo que a partidarização aconteceu antes, um representante de Organização de Defesa dos Direitos Humanos declara:

6 Os nomes dos entrevistados serão preservados, exceto aqueles que foram entrevistados enquanto representantes de entidades classistas ou por ocuparem posição digna de nota; neste caso, foram comunicados e consentiram com a reprodução e identificação de suas falas.

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Historicamente, há muito tempo, ela vem-se partidarizando, os oficiais, um número expressivo, a partir de capitão ou major, vão se partidarizando, até por que aprendem, que a possibilidade de ascender a postos importantes passa pelo viés político. Isso refere-se também à democratização. Por que antes todos eram da Arena, desde pequeninos, com a redemocratização, claro que, com a alternância, oficiais passaram ao PMDB, outros ao PT, e isso tem transitado muito fortemente, alguns no PDT, isso interfere fortemente nas promoções.

Mas abandonou-se, na lógica policial militar gaúcha, um sentido maior de política, algo aceitável, e implementou-se a ingerência ideológica, vinculada a interesses que não os dos objetivos da corporação.

Existem pessoas que se envolveram, sob o ponto de vista político-partidário, agora o que não se pode confundir é que houve, em um determinado momento, uma evolução na Brigada, no sentido de que a Brigada entendesse, como entende hoje, perfeitamente, que a sua destinação, o seu emprego, a sua administração depende do poder político. Então, o que antigamente era fechado para nós, o mundo político, hoje é aberto, e deve ser aberto, senão eles, naquela casa ali [Assembleia Legislativa do Estado] fazem um monte de bobagem, se não nos conhecerem, eles que editam as leis (Coronel da Reserva 1, Presidente da AsofBM).

Não outra é a lição de Borges (1990, p. 49):Penso que a Brigada Militar deva olhar com mais

largueza e pensar em Política com “P” maiúsculo – pensar em política brigadiana –, onde deve ser olhado como um todo, visando sua eficiência profissional, em benefício da sociedade rio-grandense.

A hierarquia, a convicção, a disciplina, fazem com que os brigadianos reconheçam legitimidade no Comando:

Nós, dentro do aspecto disciplinar, nós sempre, e até de forma pessoal, por ser filha de um militar, eu sempre entendi o seguinte: o Comandante-Geral da Brigada é legítimo, por mais que tenha esse vínculo partidário hoje, que ele seja escolhido pelas concepções dele, se ele está na sigla do governo que ganhou (Capitã 1).

Também são políticas muitas das decisões que significam promoções e designações para ocupar determinadas funções – o que, além de oportunizar um trabalho sem riscos, desgastes, garantem um acréscimo salarial. Pereira (2006, p. 189) lembra que o deslocamento para outros poderes, para longe das atividades fins de polícia, pelas vantagens oferecidas, torna-se algo almejado.

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Por essas funções garantirem ainda agregar experiência ao currículo e capital social ao sujeito, elas ampliam as possibilidades de futuras promoções, gerando disputas e ressentimentos.

Até sou vista como trouxa, continuo aqui trabalhando, me esgotando, crescendo meus cabelos brancos, enquanto tem gente que por ser político está no momento certo, na hora certa, na frente da pessoas certas e é escolhido. Enquanto que eu estou aqui, no front, então tu nem és lembrado, nem visto, e isso é uma coisa da instituição. Impressionante. A gente dizia: “– Mas o que aquela criatura está fazendo lá?” E a gente conhece o perfil. E aí diz: “– Meu Deus!” Eu até não desejo mal, por que é mérito, eu não sei se é mérito dele, entende, por que ele entrou no jogo, é sem vergonhice de quem escolheu ele, não conseguiu se retirar um pouco do cenário, já que tem o poder de decisão, de alocar esses recursos humanos [...] (Capitã 1).

Dessa relação entre polícia e política nasce a percepção de que uma melhora do serviço prestado depende do saber como funciona a atividade de polícia, suas possibilidades e necessidades reais, além de interesse em permitir que ela aconteça sem interferências ideológicas, ou seja, como creem, por técnicos, especialistas.

A polícia vai evoluir se os governos resolverem investir na polícia, se os governos resolverem que segurança não é só discurso de campanha, segurança faz parte do dia a dia. Semana passada eu vi na televisão uma autoridade política falar sobre a pistola elétrica, que seria a arma ideal. [...] Um helicóptero, vários helicópteros, têm de estar à disposição para equipes fortemente armadas chegarem em determinado local. Tu falas na arma elétrica, mas tu não ofereces a cobertura que tem o policial que trabalha no Primeiro Mundo. Temos então de ter presença de pessoas que decidem mais forte no nosso meio. Não só olhando de longe, mas olhando a atividade como um todo, não só na visão macro, mas micro também (Major 1).

A Capitã 1 destaca que os esforços devem ser em prol da segurança da comunidade, nunca para obtenção de vantagens pessoais, promoções ou vantagens salariais, sempre evitando a partidarização. Mas, na verdade, ela reconhece que a realidade é outra, a Brigada, “está politizada, ela está partidarizada, para cunho pessoal”, provocando atraso ao desenvolvimento da corporação.

O desafio de estar na política sem se deixar levar por interesses partidários parece acompanhar a atualidade dos desafios da Brigada. De toda forma, os oficiais recorrem a contatos com representantes na Assembleia Legislativa, por meio de vínculos partidários ou suprapartidários. O ex-brigadiano e ex-deputado José Gomes da Silva Júnior (2004) destaca:

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Qual a importância que um deputado tem em ser amigo de um coronel ou de um soldado? Ele leva mais vantagem em ser amigo de um coronel. Por que um dia o coronel vai mandar uma viatura passar em frente da casa dele e o soldado não vai poder fazer isso.

Essa amizade, afirma, não permite que os deputados conheçam a corporação e, somando-se o fato de a Assembleia ser um órgão conservador, um retrato da sociedade, a situação da BM só muda no que pretende o oficialato, completa o ex-deputado.

A partidarização é fato percebido também por jornalistas, ou “vazado” à imprensa. O jornal Zero Hora (2004, p. 10), neste sentido, a matéria “Reaberta polêmica sobre promoções na Brigada”, informa descontentamento de oficiais com os critérios utilizados para promoções, que, de acordo com eles, seriam político-partidários. O texto permite verificar que o processo de partidarização não apenas existe, como está incorporado ao cotidiano da instituição, acontecendo em todos governos de vários partidos.

Na relação da corporação com a imprensa percebe-se temor, ódio, desejo de reconhecimento pelos seus méritos e interesse. O maniqueísmo, típico das instituições policiais militares ainda identifica os meios de comunicação social como um reduto de esquerda, de “comunistas”, pessoas vinculadas aos Direitos Humanos, preocupadas somente com o bem-estar dos “bandidos” e não com a segurança da comunidade, a integridade física dos policiais.

Os ataques eram ataques mesmo, a polícia era atacada mais do que os criminosos. A gente viu uma mudança geral com esse episódio do Tim Lopes, com o traficante. Depois da morte do jornalista Tim Lopes vieram reportagens enaltecendo o trabalho policial e quando surgem denúncias de corrupção mostram que são desvios de conduta sendo apurados e a sanção imposta, até mesmo a exclusão (Capitão 3).

Na tentativa de melhorar a intervenção da Brigada junto aos meios de comunicação social, de “promover a integração da corporação com os diversos segmentos da comunidade”, em 28 de agosto de 2001, publicou-se a Diretriz Geral n. 7, que definiu aspectos relativos à comunicação social na Brigada Militar. Foi definido nela que as atividades de comunicação serão orientadas e devem estar integradas ao Sistema de Comunicação Social do Governo do Estado e que a mensagem institucional sempre precisa conter o preceito constitucional: “Segurança Pública, dever do Estado, Direito e responsabilidade de todos”. Busca, entre outros:

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[...] desenvolver uma compreensão exata do relevante papel desempenhado pela Brigada Militar junto à comunidade, visando obter seu apoio e solidariedade; [...] concorrer para a perfeita integração entre a corporação e sua comunidade [...] Complementar e apoiar a atividade-fim, de maneira que sua atuação se efetive em um ambiente favorável e que a ação de cada policial-militar, além de facilitada, possa contar com a participação e o apoio dos cidadãos.

A Diretriz ressalta, ainda, que “Todos [os integrantes da corporação] são agentes de relações públicas” e, portanto, representam a Brigada, com as obrigações inerentes ao fato. Pede ainda atenção ao público interno.

Em 1994, um jornal da corporação, o Jornal Correio Brigadiano, surge, sucedendo informativos institucionais da Brigada Militar. Ele está vinculado à Associação Pró-Editoração à Segurança Pública (Apesp) e à Polost Editora7 e não possui vínculo formal com a Brigada ou o governo – ainda assim, ele se apresenta como sendo da Brigada. E, de fato, talvez o seja.

A linha editorial do jornal mensal, com tiragem de 25 mil exemplares, possui como foco a segurança pública no Rio Grande do Sul, destacando os executores da função policial, as questões institucionais das corporações e a expressão das entidades de classe. Ele procura fomentar a “integração cultural” e mantém o compromisso de informar imparcialmente, circular como mídia gratuita aos PMs e outros trabalhadores da área da segurança, abrir espaço aos órgãos de classe, bem como divulgar aos brigadianos os feitos dos colegas, na defesa do cidadão ou em suas vidas pessoais (como, por exemplo, anunciando formaturas em cursos de graduação).

É um jornal que ressalta praticamente apenas aspectos positivos da polícia gaúcha, realiza uma “crônica social”, apresenta notícias gerais sobre segurança, divulga campeonatos esportivos, a atuação da corporação e de seus servidores nos municípios gaúchos, além de anúncios. Oferece grande ênfase à divulgação da morte de policiais, em especial, quando em serviço.

Em 1997, uma exceção quando das manifestações dos PMs. Noticiou o fato sob o título geral de “Crise” e na edição do mês de julho foi taxativo:

A única experiência dos brigadianos com passeatas reivindicatórias era a da manutenção de ordem. Mas houve um dia – o de 17 de julho –, em que eles saíram às ruas com o mesmo discurso que escutaram anteriormente: melhores condições de vida para garantir a sobrevivência. Na frente do Piratini, não havia foices. Tampouco sinetas. Apenas apitos, fardas e um basta à miséria. Os cinco mil integrantes da Brigada Militar que ousaram sair às ruas mantendo a

7 Disponível em: <http://www.brigadiano.org.br/correio.htm>. Acesso em: 8 ago. 2005.

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disciplina, mas não deixando de demonstrar o desconforto, viveram momentos insólitos. Utilizaram, como bandeira de luta, o mesmo discurso dos que lutaram contra a repressão. E cantaram a mesma música que foi silenciada, na Ditadura Militar, pelo estampido dos revólveres. Os fotógrafos Emídio Pereira, da PM5, e Valmoci Vasconcellos, do Correio do Povo, registraram este momento que vai figurar em uma página da história da Brigada Militar antes da virada do século (CORREIO BRIGADIANO, 1997, p. 12).

E, em agosto de 2002, quando da morte do ex-secretário da segurança, José Eichemberg, publicou em sua capa o título: “Morre o último secretário de Segurança Pública do RS”, alusão ao descontentamento das polícias com o governo Olívio, com seu secretario de segurança. O título de seu editorial informava: “Tributo a um secretário de verdade” (CORREIO BRIGADIANO, 2002a). Acabou tendo sua edição recolhida e, na edição de setembro, noticiava que a anterior circulou parcialmente, tendo sido, por ordem do subcomandante, recolhido dos quartéis, eis que conteria material com publicidade eleitoral (CORREIO BRIGADIANO, 2002b).

Embora a BM receba espaço quantitativamente maior, a Polícia Civil, Susepe, Instituto Geral de Perícias e Detran também possuem atividades divulgadas. Estranhamente, ou não, informa a página da internet8:

Nosso lema é que estruturas não podem se integrar. No máximo se justapõem ou sobrepõem. A integração é um ato que só pode ocorrer, e por vontade própria, com as pessoas. Estruturar novas mídias com vistas a melhor integração dos quadros da segurança gaúcha é nossa principal meta.

Em outubro de 2005, a Lei Estadual n. 12.349 regulou aspectos concernentes ao ensino na Brigada Militar (revogando o decreto n. 19.931, de 1969). O art. 4º define como sendo princípios básicos do processo pedagógico na Brigada:

I – integração à educação nacional; II – valorização profissional e seleção pelo mérito; III – formação, aperfeiçoamento e qualificação continuada e progressiva; IV – avaliação integral, contínua e cumulativa; V – pluralismo pedagógico; VI – aperfeiçoamento constante dos padrões éticos, morais, culturais e de eficiência; VII – cientificidade da atividade de polícia ostensiva e de bombeiro; VIII – integração permanente com a sociedade; IX – preservação das tradições nacionais, regionais e policiais militares; X – educação integral; XI – internalização dos valores policiais militares.

8 Disponível em: <http://www.brigadiano.org.br/correio.htm>. Acesso em: 8 ago 2005.

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Para tanto, prevê que o ensino policial militar e o ensino médio realizar-se-á com obediência à Lei de Organização Básica da Corporação, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e do Sistema Estadual de Ensino, e garante a institucionalização do Colégio Tiradentes.

Art. 7º – A Brigada Militar, de forma adicional às modalidades policiais militares propriamente ditas, manterá o ensino de nível médio, preparatório à carreira policial militar, por intermédio do Centro de Ensino Médio e de unidades de ensino próprias, na forma da legislação pertinente, ressalvadas suas peculiaridades.

No que tange à relação com o Poder Judiciário, continua a perspectiva da mansuetude dos juízes (opinião compartilhada pela população brasileira). Há um entendimento de que os juízes não se empenham no “combate’ à criminalidade e de que este combate se limita à ação policial. No Rio Grande do Sul, a relação entre Polícia Militar e Poder Judiciário limita-se, em regra, a altercações como essas, mas a Lei Estadual n. 10.990/97 apresenta regulamentação minimamente questionável do ponto de vista legal e/ou institucional:

Artigo 87, § 2º. Se durante o processo em julgamento no foro civil houver perigo de vida para qualquer preso servidor militar, a autoridade policial-militar da localidade providenciará em entendimento com a autoridade judiciária, visando à guarda do foro ou Tribunal por força policial-militar, se for o caso.

Estranha porque a manutenção da ordem pública constitui função da Brigada e deve ocorrer não importa quem seja a pessoa a ser julgada, qual seja a situação ou local. Ainda que se fale em “entendimento”, o texto deixa antever uma possibilidade de a autoridade policial “administrar” um espaço que não seria de sua competência.

No que tange ao desejo do Ministério Público de desenvolver atividades investigatórias (o que já vem fazendo, ao constituir diversas “forças tarefas”), a BM a nada se opõe, pelo contrário. Os entrevistados dizem que todos devem investigar, livremente, que quanto mais instituições, mais órgãos investigarem, melhor para a Segurança Pública.

Acho que o poder investigativo do MP é positivo (...) o que vier pra beneficiar o cidadão, ótimo. Se o Ministério Público quer investigar, pode investigar. Investiga. (...) o Brasil é um país que, não sei se 5% dos crimes de autoria desconhecida são descobertos, não sei se chegam a 5%, mas tu chegas a países como o Japão, o próprio americano, que chega a 95%. E aí? Nós vamos então segurar que o MP não investigue? Deve investigar (Coronel da Reserva 1, Presidente da AsofBM).

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A minha função é prender bem, essa é minha função. Prender bem, compor um flagrante bem composto, para que não haja problemas. Eu tenho de botar o criminoso na cadeia. E o policial, se tem de fazer uma investigação, tem de fazer uma investigação bem feita. É preparado e formado para fazer isso. Se o Ministério Público tem hoje essa postura, que se prepare para isso. Se existe essa necessidade, se os governantes estão vendo que é necessário o Ministério Público entrar no processo, que entre para fazer bem feito e não que daqui a pouquinho estão a se colocar mais uma questão sem objetividade (Major 1).

Essa perspectiva foi expressa em nota publicada por três associações, a dos oficiais da Brigada Militar, a Beneficente Antonio Mendes Filho dos cabos e soldados da BM e a dos Sargentos e Subtenentes da BM (publicada em jornais gaúchos no dia 26 de maio de 2006 e no Correio Brigadiano, edição de junho de 2006, p. 3):

A ação ostensiva da Polícia Civil nas ruas é uma colaboração, embora ao atropelo do vigente modelo policial, que reforça a posição dos integrantes das polícias militares do Brasil pela adoção do ciclo completo de polícia (...).

Essas associações são uma alternativa à falta da possibilidade de organização em sindicatos. A Associação dos Oficiais da Brigada Militar (AsofBM) surge com os seguintes objetivos: representar os associados, defender seus legítimos interesses, promover o congraçamento social por meio de atividades culturais, sociais, esportivas e recreativas, concorrer para o engrandecimento da Brigada Militar, propiciar uma correta postura política por parte dos associados e representá-los judicial e extrajudicialmente (artigo 1º do Estatuto)9. Por ocasião da sua fundação, os precursores declararam:

Nós, oficiais da Brigada Militar — conscientes de que esse é o momento de preservarmos o que nos foi legado por nossos antepassados e de que algo deve ser feito para que, no futuro, não sejamos julgados por omissão — num gesto cívico e de desprendimento pessoal, alicerçado nos mais puros e nobres ideais, tomamos a iniciativa que propõe a criação de uma associação que venha a concorrer para o engrandecimento e a modernidade da Brigada Militar e o fortalecimento de seus integrantes.

No ano de 1990, durante o governo Pedro Simon, a Associação chamou os policiais militares para a segunda assembleia, ressaltando que “queremos o reconhecimento daqueles que dirigem os destinos de nosso Estado (...) reconhecimento expresso através de uma remuneração justa para vivermos com dignidade e decência”10. Ela acabou proibida de funcionar pelo governo.

9 Disponível em: <http://www.asofbm.com>. Acesso em: 28 fev. 2005.10 Disponível em: <http://www.asofbm.com>. Acesso em: 28 fev. 2005.

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Em reportagens de jornais da época, as autoridades do governo alertavam que aqueles que participassem da formação de uma entidade associativa e reivindicatória estariam cometendo crime militar e, com receio, os oficiais não se reuniram. A repressão, todavia, não se limitou a isso: alguns dos organizadores foram detidos e outros transferidos.

Mesmo obtendo reconhecimento judicial de sua legalidade, a AsofBM deixou de existir até 1994, quando, durante o governo Alceu Collares, com apoio do próprio Comandante-Geral da Brigada Militar, coronel João Vanderlan Rodrigues Vieira, foi reativada. Declarou ele: “cada vez mais se faz necessária uma entidade representativa dos oficiais”. Hoje, passados mais de 20 anos, a AsofBM continua preocupada com a questão salarial dos oficiais:

Veja, essa bolsa (de 600 ou 700 reais para os alunos-oficiais) nós aqui da Associação é que conseguimos, o governo não tinha lembrado, mas o maior perigo de que eles deixem a Academia é agora, é com essa turma, pois ela entrou ganhando um terço do que vai ganhar um delegado, eu estou vindo de uma reunião que tratou exatamente disso, é o projeto que está por entrar esses dias e neste projeto tem de deixar claro que o capitão tem de ganhar o mesmo salário do delegado de polícia, que nesse projeto, este anteprojeto, eles já aceitaram, tudo dentro do que se chama integração policial, vamos integrar agora no salário (Coronel da Reserva 1, Presidente da AsofBM).

O Clube Farrapos11 aparece como outro importante local no processo de socialização dos oficiais da Brigada Militar, tal como apontou a Professora 3. Fundado em 29 de março de 1944, conta, desde aquela época, com um Departamento de Tradições Gaúchas e, desde 1981, com um grupo de escoteiros, chamado “20 de Setembro” (data comemorativa da Revolução Farroupilha). Em 1982, adotou um hino, no qual relembra a glória e a honra do “chão farroupilha”, e clama “aos farrapos – heróis ancestrais”. No local, onde se cultuam as tradições gauchescas, também se realizam eventos como domingueiras, escolha das musas de verão, bailes de debutantes e festas, como a dos aniversariantes (que se repetem todo mês). Festival Queijos e Vinhos e Baile de Halloween completam o rol de atividades sociais.

A estrutura do clube em Porto Alegre inclui diversos salões e um pequeno hotel de trânsito. Uma colônia de férias, em Tramandaí, também encontra-se disponível aos associados. Destaque-se que as dependências da capital receberam, no ano de 2003, atividades relativas ao 3º Fórum Social Mundial — e que, no hotel, se hospedaram alguns dos palestrantes.

No âmbito esportivo predomina, por óbvio, o futebol, mas também há cancha de bocha e quadras de tênis, além de uma academia de musculação e ginástica, piscina e uma academia de tiro.11 Disponível em <http://www.farrapos.org.br/>. Acesso em: 28 fev 2005.

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Quanto à socialização dos soldados, cabe destacar a Associação Beneficente Antonio Mendes Filho, de cabos e soldados da BM, com origem em meados de 1954, quando, no Regimento Bento Gonçalves, foi criado o Grêmio dos Cabos e Soldados da Brigada Militar. Depois, no Quartel do Comando Geral, surgiu um movimento buscando a criação de um Grêmio Beneficente. Era o ano de 1962. Em diversas reuniões, soldados e cabos trataram de assuntos referentes à forma de contribuição por sócio e às cores da agremiação. Em abril daquele mesmo ano, trataram da escolha do Patrono e por decisão unânime da assembleia, a escolha recaiu sobre um oficial, o major Antônio Mendes Filho. Assim, no dia 15 de abril de 1962, na presença de sócios, do patrono e de autoridades da Brigada Militar, tomou posse a primeira diretoria.

Após um ano de atividades, trouxe-nos ao conhecimento o Sr. Major Mendes Filho, uma sugestão do Ilmo. Sr. Cel. Comandante Geral, referente a nossa agremiação a qual se restringia somente ao Quartel General, que seria de bom alvitre que o mesmo se estendesse a todas as unidades da Brigada Militar, em virtude das diversas agremiações existentes em cada unidade, unificando a classe, com sede em Porto Alegre, capital do estado, a sugestão foi aprovada por aclamação.12

A página da Associação13, no seu histórico, fala ainda da construção da sede e da nominata das diretorias que se sucedem. Não há referência, no histórico, ao movimento de 1997. Mas este é citado, em nota na página principal, que informa “[a]nistia para militares que reivindicaram melhor condição”, indicando que o presidente Lula sancionou lei que extingue as punições dos policiais e bombeiros militares que participaram da greve.

A ACASOL (Associação dos Cabos e Soldados), fundada em 1989, propunha uma radicalização na reivindicação dos direitos de cabos e soldados. Teve uma curta existência, eis que seus líderes foram primeiro transferidos e depois enquadrados em processos de expulsão. Ainda assim, teve importância, ao criticar as relações de hierarquia e ressonância ao eleger o já citado José Gomes da Silva, um de seus fundadores, vereador (em 1992, na cidade de Porto Alegre) e depois e a deputado estadual (1995/1998)14.

A vinculação da Brigada Militar com o Exército, respeitando o disposto no artigo 144, § 6º, da Constituição Federal, está expressa no artigo 156 do Estatuto (Lei n. 10.990), no qual se determina a aplicação do “Regulamento de Continências, Honra e Sinais de Respeito das Forças Armadas” e do “Regulamento de Administração do Exército”. Isso se verifica no cotidiano de aquartelamento da instituição, bem como na estrutura pautada pela disciplina e hierarquia.12 Disponível em: < http://www.abamf.com.br/historico.php>. Acesso em: 12 jan. 2010.13 Disponível em: < http://www.abamf.com.br/historico.php>. Acesso em: 12 jan. 2010.14 Disponível em: < http://www.al.rs.gov.br/anais/49/Deputados/zegomes/curriculo_gomes.htm>. Acesso em: 12 jan. 2010.

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Para garantir que tal aconteça, a Brigada recebe inspeções do Exército. Uma nota de serviço da PM-3, datada de 20 de fevereiro de 2006, explica como deve o comandante do quartel proceder quando tal acontece. Ela obriga a presença de todos os oficiais e alerta que o fardamento utilizado em suas rotinas operacionais e administrativas não deve ser substituído, cuidando-se para haver uniformidade de apresentação. Tampouco as atividades da unidade devem sofrer alterações, mas impõe-se evitar atividades que requeiram movimentação de pessoal e material.

Há previsão de uma sequência de eventos, quais sejam: a) recepção; b) apresentação dos oficiais; c) exposição do comandante; d) visita às dependências; e e) despedida no gabinete do comandante. A fala do comandante acontece em, no máximo, 40 minutos e aborda a estrutura organizacional, a articulação operacional, os planejamentos referentes à segurança pública, segurança integrada e defesa territorial, à moral da tropa, ao estado disciplinar, ao efetivo e à situação do material bélico (tipo e quantidade de armamento e munição).

Esse controle parte do desejo do Exército de conhecer a situação de “suas” forças auxiliares e inspecionar o respeito ao limite das forças das PMs. Na realidade, esse controle é pouco levado a sério pela Brigada, que busca a maior autonomia possível, longe de qualquer forma de intervenção.

A Brigada tinha, todos os anos, um plano de instrução. Mas, na prática, isso não acontecia. Era coisa do Exército, quando aparecia uma inspeção eles pediam para ver. Eu fiz um plano em 1992, eu criei um programa, para os tenentes fazerem com os pelotões e outro com os oficiais. Eles eram obrigados a ir para a sala de aula, eu dava parte dos caras que não iam. Nesta época, teve inspeção de um general, e ele perguntou para o comandante se a tropa fazia educação física e ele disse: “Sim, General”. Então o General perguntou se eles estavam bem fisicamente e ele respondeu: “Claro”. Mas isso é uma loucura, eu pensei, nunca vi alguém botar um calção, fazer um exercício, mas, no papel, tinha (Coronel da Reserva 2).

Se o Exército aparece como o interventor, algo ruim, a ideia de militarização surge como realidade positiva, desejável. A missão de enfrentar “marginais fortemente armados”, estar disposto à possibilidade de receber disparos, implica desafios e, avalia o Major 1:

na “(...) história de todas as tropas militares do mundo, que se prepararam (apenas com treinamentos), aproximaram o trabalho de uma realidade, não conseguiram obter resultados. É muito complicado numa atividade policial tu dizeres que eles estão bem preparados” (Major 1).

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Assim, para garantir um preparo capaz de fazer o soldado enfrentar desafios, testes psicológicos mostram-se insuficientes. Definir quais as pessoas que vão entrar em pânico ou não, se dará “branco” ou cumprirão a tarefa, é desafio enorme à formação militar objetiva.

Para ir para o campo de batalha, é muito difícil tu preparar alguém. Dizer assim: “Hoje vocês estão aqui na sala de aula”. Eu tenho dez policiais, vão ser futuros policiais, mas só vão sobreviver, daqui, cinco ou quatro. “Nós vamos preparar vocês para a morte”. Não existe, mas na atividade militar é que encontramos as questões mais voltadas para questões de combate mesmo. Eu vou te dizer, não existe no mundo, isso talvez as pessoas não saibam, colocar como eu estou te colocando, com certeza não existe no mundo preparação policial que prepare a pessoa para a morte (Major 1).

Logo, há convicção entre os oficiais de que a militarização é necessária e garantidora de uma polícia melhor, menos corrupta. O Coronel da Reserva 1 (presidente da AsofBM) reclama da confusão, ressaltando que as características militares existem dentro da corporação para que se tenha uma autofiscalização mais adequada, mais eficiente, e não “para exercer militarismo lá para a população”.

O Coronel da Reserva 1 retoma a importância de distinção entre as polícias militares e os exércitos. Este será tão mais eficiente quanto mais pessoas matar, preparado que é para “provocar baixas no inimigo”. E a polícia demonstra eficiência quanto mais gente salvar, mais patrimônio proteger.

É a mesma opinião do Major 1, para quem o militar serve para as questões de disciplina e hierarquia, de organização e de aquartelamento, bem como para um preparo especial: o do trabalho cotidiano, no qual a adrenalina gerada pela necessidade de tomar decisões provoca emoções com relação à segurança das pessoas e do próprio policial. Tanto que há, conforme ele, oficiais da Brigada que se formam e não se sentem bem na atividade de policiamento, preferem atividades administrativas, mais burocráticas, por causa do estresse resultante da urgência em tomar decisões difíceis, em momentos cruciais, momentos que colocam em risco também a carreira profissional.

Portanto, se na época de Academia o Major 1 não percebia a razão de ser do exercício de campo na campanha ou no mato, fazendo um trabalho de orientação, tendo que decidir o azimute (direção) e perseguir um objetivo, exercício comum em sua época de formação, hoje ele compreende o porquê de “algum trabalho mais militar”. E acrescenta: “[e]sse entender não significa concordar, digamos, observar vários modelos e ver qual se adapta melhor à atividade. E este modelo se adapta bem à atividade”.

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Eu vejo as polícias do mundo todo, por mais civis que sejam, tirando a ideia do militar, sempre tentando pegar um sistema militar para atingir determinados objetivos, que não são militares, são paramilitares, que se fardam, que daqui a pouco estão entrando em forma, está se fazendo um discurso, uma cobrança, como se fosse militar, porque querem aproximar do militar. Aquelas polícias que são completamente civis, elas procuram se espelhar no militar para se mostrar organizadas (Major 1).

No que tange à militarização, cumpre dizer que também é realidade desejada por muitos, eis que se beneficiam, por exemplo, de uma aposentadoria precoce. Algumas críticas se fazem acompanhar de elogios:

[i]nfelizmente nós temos algumas pessoas que comandaram a corporação, que tinham uma formação eminentemente militar e pouco policial, prestavam mais atenção ao coturno, à barba e ao cabelo e não tinha nenhuma formação para trabalhar com o público. Hoje precisam ter uma formação policial. A gente tem sempre dito, podemos continuar com hierarquia, disciplina e estrutura militar, mas não podemos continuar com a barbárie que há alguns anos existia nas corporações militares (Soldado 2, secretário-geral da Associação Beneficente de Cabos e Soldados).

Outras radicalizam, exclamando que a militarização da instituição serve positivamente apenas para os oficiais, que podem subjugar os inferiores, utilizá-los para tarefas domésticas, como fica expresso na fala do ex-deputado José Gomes da Silva Júnior (2004): “tinham umas casas ali na Aparício Borges, que tu eras encaminhado para lá. Os coronéis não faziam isso quando estavam de folga, eram preguiçosos, então mandavam os soldados, eles iam lá para fazer faxina”.

O militarismo é péssimo para nós, ele acaba com a nossa autoestima. Sempre tratam o policial diminuindo-o, depois não querem que ele seja drogado, entre em depressão ou que aconteça o mesmo que aconteceu com um policial colega nosso aqui na faculdade que se suicidou. Ou como outros vários que se suicidaram (Soldado apud RUDNICKI; ZAIDAN, 2004).

De toda forma, ainda que até mesmo alguns professores civis defendam uma postura militar: “o ensino deve ser adequado à realidade, deve ser militarizado” (Professora 1), a percepção geral mais corrente é de que mudanças estão em curso.

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Os jovens oficiais são hoje, para nós, Associação de Cabos e Soldados, exemplo de uma nova polícia. A relação entre soldados e oficiais é dada dentro do respeito entre quem comanda e quem é comandado, sem deixar de se ter uma amizade, sem deixar de se ter um tratamento entre as duas partes. Agora, os oficiais, com essa nova formação, têm facilitado as relações internas na caserna, se modernizado (Soldado 2, secretário-geral da Associação Beneficente de Cabos e Soldados).

A Professora 3 também percebe essas alterações, e as credita ao contato com as universidades.

Eles não tinham sempre clara a consciência disso, mas eles tinham um discurso claro de dizer que eles não são repressores, embora eles tenham de atuar na repressão do crime. A função exclusiva deles não é essa, e o caráter militar da Corporação é o que garante uma pureza, a redução da corrupção, a agilidade de direitos dentro da própria corporação, a não estarem sujeitos a participar de gangues fora de Brigada, que existiria uma possibilidade de controle e que a própria formação que a Brigada propicia, nos seus cursos, garantiria essa unicidade de atitude e de pensamento. E que eles estavam necessitando enriquecer com o discurso das ciências sociais.

No que tange à própria BM, inúmeras disputas, apesar do discurso de unidade, marcam o cotidiano. Assim como em outras organizações, há sempre a busca do consenso que constrói a posição institucional.

A Capitã 1 percebe e refuta essa incongruência ao se retirar de uma reunião na qual 70 pessoas, sendo apenas cinco do sexo feminino, discutiam a respeito do posicionamento da mulher dentro da Brigada. Ao ouvir que deveria ser obtida uma decisão consensual (lembrando do fato, na entrevista, ela ri), sai da sala, para demonstrar seu desagrado e não deixar de respeitar a hierarquia e a disciplina.

Ela lembra de outra reunião, em que foi dito que quem não estivesse satisfeito deveria passar no almoxarifado e pegar uma saia: “teve uma série de mal-estares, atritos até, graças a Deus, não chegamos ao nível disciplinar, mas houve atritos muito grandes. Falta de respeito, de toma lá dá cá” (Capitã 1).

Tais fatos demonstram o desejo de unidade, mas também a existência de divisões dentro da Brigada. A questão da mulher permite iniciar a análise desse ponto. Se, legalmente, por meio da citada articulação política, não partidária, as mulheres conquistaram igualdade dentro da BM, no cotidiano ainda existem postos a galgar.

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A ex-deputada Maria do Carmo, que apoiou na Assembleia Legislativa esse esforço, considera a Brigada muito conservadora e portadora de uma série de preconceitos. Acredita que a igualdade da mulher brigadiana dependa não apenas de leis, mas de que um dia o comando da BM tenha uma visão de gênero e permita a uma mulher chegar a Comandante.

Essa perspectiva é diferente da percebida pelo Coronel da Reserva 1, presidente da AsofBM. Para ele, a entrada tardia das mulheres na BM significou um aperfeiçoamento que permitiu superar a limitação que existia no início e persiste em outros estados brasileiros: a divisão em grupamentos masculinos e femininos. Na PM gaúcha, homens e mulheres atuam juntos, nas mesmas tarefas, podendo as oficiais ascender até o posto de Coronel.

A Capitã 1 discorda. E, embora considere a palavra “machismo” descabível para a situação da mulher na PM gaúcha, ela identifica a existência de discrepância no tratamento, lembrando que a discriminação é fato na sociedade brasileira contemporânea e repercute no mercado de trabalho. Ainda que as majores da primeira turma, pelo tempo de serviço, não cheguem a Tenente-Coronel, acredita que, de outras turmas, em breve, sairá uma Coronel. Ela, entretanto, não possui dúvidas sobre a qualidade da mulher oficial.

Se hoje tu perguntasse para muitos que comandaram essa instituição, se ele quisesse montar um staff, se ele ia escolher homens ou mulheres, eu te asseguro que muitos diriam assim: “Eu trocaria todo meu staff masculino por mulheres”. Pelo grau de comprometimento, pela responsabilidade, pela presteza, por uma série de características da mulher (Capitã 1).

As disputas, porém, não se restringem à guerra entre os sexos. Pereira (2006, p. 59) confessa o óbvio: como poucos podem ser coronéis, “você vira alvo de certos movimentos de colegas”; parece ser necessário eliminar adversários para se habilitar aos comandos mais importantes, de modo que a unidade termina também na luta por funções.

A perspectiva da existência de uma “família brigadiana” depende, pois, da superação desses traumas. Aparece não apenas como mostra de solidariedade entre os participantes da corporação, mas igualmente para garantir menos discriminação. Eles buscam essa companheira ou esse companheiro dentre os colegas de farda para evitar o estigma.

O estigma de brigadiano que eles têm, que é um estigma de um sujeito burro, truculento, desqualificado socialmente, que se não é de classe baixa, é menor, ser brigadiano não é bom, é pé de porco. Mesmo o oficial, tanto que eles fazem a sociabilidade deles lá no clube Farrapos, no clube dos oficiais, eles são relativamente segregados, os policiais o são.

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Eu comecei a fazer genealogia, o que não é filho de brigadiano, é sobrinho de brigadiano, ou é genro de brigadiano, porque eles casam entre si, aquilo vira uma comunidade. Os filhos namoram, conhece a irmã do colega, casa com ela, então quando tu vês, tem dois sogros brigadianos, o marido brigadiano, vai para o Farrapos. Namoram, dançam, se separam e aí quando se separam é uma droga, que está tudo ali na polícia, tem de conviver no trabalho, está submetido ao sogro (Professora 3).

O Tenente-Coronel 2 afirma:Nós tivemos ciclos bem identificados de famílias

brigadianas, mas penso que a gente tem mania de falar no estereótipo, penso que não seja uma tendência só da Brigada, o pai engenheiro tenta direcionar a família, como o advogado, o médico, na Brigada não é diferente.

Essa perspectiva é colocada em dúvida:No meu tempo, quando eu entrei, grande parte da

entrada para ser oficial, eram pessoas de família, já era uma tradição familiar quase, grande parte. Ou pessoas que já tinham ingressado na Brigada, em outros postos. Menos percentual de civis que por alguma razão entravam lá. Depois, com o tempo, isso mudou. Com o tempo passou a aparecer o que podemos chamar de vocação, vontade. (...) agora, com esta formação, como Capitão, é muito raro, pois (os filhos de PMS) foram impedidos de certa forma, pois vai ter de fazer o curso de Direito, não sei se vão conseguir e, se conseguir, ele entra para outra direção. Por isso não é de admirar que a grande maioria do que entrou não tenha se formado, o que de certa forma acontece nas universidades (Coronel da Reserva 3).

3 A FORMAÇÃO DOS OFICIAISA grande divisão que se percebe no cotidiano das polícias militares está

entre os operacionais, os “quentuchos”, os “de fé”, e os administrativos. Percebida em todas as polícias, esta divisão surge nos valores destacados pelos soldados da BM, quando os primeiros se confundem com a força, o esporte, a amizade e a lealdade, com o desejo de possuir uma arma e uma moto, em oposição ao administrativo, vinculado à fraqueza, à bebida, às drogas, ao serviço de escritório, à impossibilidade de fazer o “verdadeiro” trabalho policial.

Nas entrevistas, essa perspectiva também é clara. Os “operacionais” se orgulham do que fazem, enquanto os segundos se lembram que sem “logística” não haveria trabalho de rua. O Coronel da Reserva 2 modifica a lógica dessa discussão, ao definir que atividade de polícia divide-se em duas instâncias: operacional e

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gestão. Ao soldado, ao sargento e ao tenente cabe a instância operacional e aos postos superiores vincula-se a habilidade de gestão. Na difícil tarefa do “preparar para a morte”, ou conduzir para a ação, existe a discussão sobre o dever do oficial de acompanhar sua tropa, “subir o morro” junto com os subordinados.

Se encontra coronel da Brigada que diz que não é coronel de gabinete, quer dizer, o que ele gosta de fazer? Quer pegar quatro, cinco ou seis brigadianos e ir para cima do morro dar tiro, enquanto ele, coronel, tem uma outra missão, que é a gestão da organização, que não é aquela. Aquilo quem tem de fazer é o tenente, o sargento, o cabo. Na real, é o seguinte, ele chega a coronel e não sabe fazer outra coisa, senão aquilo (Coronel da Reserva 2).

Cabe ao oficial atuar desde gabinetes, como administrador, gerente de pessoal, delegando as funções de comando operacionais a sargentos. As missões, dependendo do grau de complexidade, devem ser, conforme análise do caso concreto, acompanhadas por oficiais, subalternos ou intermediários. Em um momento extraordinário, quando se tratar de ação que exija experiência, ou quando o acompanhamento significar o incentivo preciso para o trabalho, para preservar a disciplina, sem usar o autoritarismo, como aconteceu em Goiânia, no caso da remoção de entulho contaminado por Césio 136, cabe ao oficial superior estar na rua (SILVA, 1998, p. 134).

Mas é preciso considerar que, em uma sociedade machista, em um grupo que valoriza esse e outros valores semelhantes, a abdicação da atuação direta pode ser compreendida como sinal de fraqueza e incompetência, que se transmite a toda decisão tomada, ou seja, caso um oficial de alta patente deixe de ser percebido pela tropa como alguém apto ao comando, entendido esse como operacionalidade, pode deixar de ser respeitado e obedecido. Seu planejamento pode ser alterado, sob justificativa de que um “mero” administrador não conhece a realidade das ruas.

Apesar da argumentação, essa ideia não alcança a todos. Segundo o Capitão 3, “sempre atuei em companhia, em policiamento, não exerci função no Estado-maior, administração de fato. Minha administração é de pessoal e na linha de frente, no serviço de policiamento”. Também a Capitã 1 se percebe desta forma: “eu me vi assim, eu, uma oficial operacional, gosto do front, estou sempre na rua, gosto da Brigada, hoje, como bombeiro, mais ainda”.

No que tange à relação entre soldados e oficiais, a ética do policial militar ordena respeito ao superior e bom tratamento ao subordinado, apreciando seus atos com justiça (Lei Estadual n. 10.990/97, artigo 25, inciso VI). Essa perspectiva será reafirmada no artigo 29, VI, ao se impor a obrigação de tratar o subordinado dignamente e com urbanidade.

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A realidade, porém, é que os subordinados se percebem vigiados, controlados, humilhados e desrespeitados pelos superiores. A expressão “o oficial é o diabo do soldado” aparece como um ditado utilizado pelos próprios oficiais, para lembrar aos soldados de sua subordinação, impondo-lhes obediência cega, observância de leis e regulamentos, a tal ponto que os soldados reclamam.

Deve existir um livro para ensinar a torturar os soldados.

Eu já vi dois capitães pararem um soldado no pátio da faculdade para reclamar da farda de um soldado.

Como convivem oficiais e soldados? Na base da repressão.

Outro dia, um oficial disse um absurdo em matéria de Direito, puniu um colega por analogia, mas eu não podia dizer nada, sou só soldado. Soldado não pode saber mais que oficial (Soldados apud RUDNICKI; ZAIDAN, 2004).

Essa é a realidade percebida também por quem defende os Direitos Humanos.

Agora, se tratando desta antinomia, especialmente na estrutura interna da própria PM, na qual há uma separação imensa e brutal entre oficiais e praças. São mundos absolutamente diversos, onde a rotina é de ofender os Direitos Humanos dos próprios membros da PM. Aos praças, as sanções, até desproporcionais. Então, há esta situação grave de violação dos Direitos Humanos interna corporis. Quando a Polícia Militar se prepara para uma ação maior, geralmente esses praças se concentram no quartel 72 horas antes, sendo doutrinados a atacar, e os resultados são violência aos Direitos Humanos (Representante de Organização de Defesa dos Direitos Humanos).

A situação é observada, igualmente, por quem já deixou a corporação.

Essa relação dentro de Brigada Militar é muito difícil, não é uma relação fraterna, não é uma relação amigável. É uma relação truncada, onde os valores mais elementares dos seres humanos ainda são desrespeitados. Mesmo com todo avanço que aconteceu ao longo da promulgação da Constituição Federal, ou seja, ainda há subjugação do ser humano na caserna. Tanto que você vê aí esse caso dos coronéis (refere-se à briga entre oficiais superiores, divulgada pela imprensa na época da entrevista). Então imagina, se entre eles que são coronéis acontece isso, imagina de capitão para soldado, de coronel para soldado (ex-deputado José Gomes da SILVA JÚNIOR, 2004).

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O discurso entre a oficialidade, porém, é outro. Neste, a relação entre oficiais e soldados apresenta-se como tendo sofrido grande evolução, passando a ser tanto hierárquica quanto de camaradagem.

O Major 1 fala que o serviço exige que o policial seja mais especializado, aproximando soldado e oficial. Mas ele confirma a razão das afirmações dos soldados, ao acrescentar que os oficiais não são líderes, não dão exemplo, não vão ao enterro dos pais dos subordinados; não facilitam (no preparar a escala) o bico ou a viagem de fim-de-semana do soldado, concluindo que há razão para eles não gostarem dos oficiais. Essa percepção extrapola o âmbito da Brigada.

As lideranças da Brigada, com certeza, eu entendo, estão distantes da base. Os próprios oficiais da Brigada estão muito acima, distantes, das outras camadas que a Brigada têm e que devem ser valorizadas. A Brigada não é só de oficiais, é muito mais da própria base do que dos oficiais. [...] os Soldados ganham muito pouco, são muito pouco valorizados, e eles são a linha de frente (ex-deputada Maria do Carmo, 2004).

Nunca se cultuou nas instituições policiais uma formação intelectual de seus servidores voltada à reflexão sobre a sociedade e ao papel da polícia no âmbito da segurança, à institucionalização de uma polícia que atue com base na estatística criminal, na apropriação do conhecimento fornecido pela criminologia, psicologia forense e outras. Há quem radicalize e diga que nem mesmo os oficiais se preocupam com isso:

Todos oficiais diziam que a Brigada tinha de ter capacitação, mas nenhum na prática fazia, não era valorizado. (...). Não tem policial intelectual, ainda hoje a intelectualidade não é privilegiada, antes, quem era intelectual, era excluído do processo, afastado dos processos de promoções (Coronel da Reserva 2).

Todavia, mesmo na radicalização, há percepção do diferencial da Brigada em relação a outras PMs:

A questão, porém, se comparar a nossa Brigada com outros estados, a nossa oficialidade é uma das mais intelectualizadas. Todos saíram da APM e entraram em uma faculdade. A oficialidade da Brigada, a mais antiga, tem duas faculdades. Mas, na realidade, por considerar a atividade não complexa, como uma não profissão, as pessoas que fizeram esses cursos, nunca relacionaram esses cursos com suas atividades. Então eles têm uma intelectualidade geral, um é médico, outro advogado, mas aquilo não reverteu para o exercício da profissão (Coronel da Reserva 2).

A aparente contradição entre as duas afirmações explica-se na lição da Professora 3.

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São pessoas que não têm condições, por exemplo, de fazer bem mestrado. Eventualmente sim, pessoas que são formadas em boas universidades. Agora, a maioria estuda, como eles dizem, aqui e ali, pois à medida que eles são transferidos, eles têm de mudar de universidade, então eles estudam em cursos muito ruins e com uma continuidade comprometida por essas transferências.

A Professora 2 percebe ainda uma transformação.[a desvalorização da cultura na Brigada] Eu acho que

isso está mudando rapidamente. Eles vivem num mundo em que são muito solicitados, eles consultam internet, estão vislumbrando um outro horizonte, fora da carreira profissional, eu vejo assim. Alguns me pediram indicações de livros, muitos falavam que gostariam e, se tivessem oportunidade, iriam continuar os estudos, iriam procurar fazer uma pós-graduação. De capitão para cima, eles estão mudando bastante a visão. Já tem de ter o diploma de Direito, já vem com o terceiro grau.

Dentro dessa realidade, no Rio Grande do Sul, apesar de críticas eventuais, a BM conta com reconhecimento das comunidades.

A população recebe bem a polícia. O prestigio da PM ainda é grande, embora varie de local para local. No Vale dos Sinos, ela é bem recebida. Há falta de efetivos, até por isso a população valoriza, tudo que é mais difícil, mais raro, é mais apreciado. Tanto em Novo Hamburgo quanto em São Leopoldo, temos desvio de condutas, mas a regra da corporação é uma conduta retilínea (Capitão 2).

E não apenas as relações são amistosas, há uma compreensão por parte dos dirigentes da Brigada sobre a realidade dentro da qual ela opera.

Os tenentes-coronéis traziam uma boa reflexão sobre a sociedade, a desigualdade social, o problema. Eles tinham bem consciência de que são sempre os pobres que estão nos presídios, alguns trabalharam nos presídios e tinham bastante noção sobre as questões envolvidas na questão da hierarquia social. (...). Já nas turmas de capitães, havia, não dá pra dizer que predominasse, havia bastante consciência dos problemas em geral, mas havia uma boa parte dos alunos bastante conservadores, era difícil convencê-los do contrário (Professora 2).

Para se alcançar um posto de oficial, antigamente, quer fosse no Exército, quer fosse na Brigada Militar, bastava a pessoa se destacar quando da ocorrência de um movimento armado. Para suprir a escassez de batalhas, uma prova escrita passou a ser realizada: “[p]ara dar ao candidato praça melhores condições para enfrentar este exame, que o tornasse habilitado ao oficialato, com o tempo foi criado um

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curso preparatório, chamado Curso de Ensino, com aulas à noite” (BORGES, 1990, p 24). Assim, desde 1942, a Academia de Polícia Militar (APM) ocupa-se da (trans)formação de jovens gaúchos em oficiais da Brigada Militar.

Ao ensinar aos futuros comandantes como exercer suas atividades profissionais, a própria polícia determina, em parte, o futuro da corporação, o que, na “Canção do Cadete da Brigada Militar”, se expressa nos versos: “Sou o sol da esperança/ De um porvir com segurança”, bem como nos da “Canção da Academia de Polícia Militar”: “Já sorri-nos, alvorada,/ De um porvir mais promissor/ Do futuro da Brigada/ APM! És o penhor”15.

Na Academia, pois, o aluno, “Sendo jovem e vibrante”, encontra uma segunda mãe. Jovem em fase de formação é, em um primeiro momento, recrutado na tropa, como o foi o coronel Alberto Rosa Rodrigues (2006, p. 141) em 1943. Ele foi incorporado como soldado, como era chamado na época, do “papo roxo”16 e, em 1945, era promovido a cabo, no ano seguinte a sargento e, três anos depois, passava a ser aspirante a oficial. Cumpre destacar que isso tudo aconteceu graças a um sargento que, o vendo tocar na banda, disse:

Olha Rosa, se teu negócio é não dar serviço externo e nem fazer instrução diária, eu vou te propor o seguinte: tu vais passar a empregado aqui na Seção Administrativa e vais trabalhar comigo. E tem mais, tu vais estudar e fazer curso de cabos. Quem sabe um dia, dependendo do teu capricho, tu podes ser cabo ou até sargento da Brigada. Tu vais largar a banda de corneteiros hoje mesmo. E depois tem mais uma coisa, tu já pensaste no teu conceito para o futuro: PRETO, BRIGADIANO E CORNETEIRO? (RODRIGUES, 2006, p. 92, grifado no original).

O soldado esforçou-se e ultrapassou os limites que lhe foram traçados. Mas, depois dessa época de acasos e chances, a seleção dos futuros oficiais passou a ser profissionalizada, impondo requisitos cada vez maiores.

Na sequência, o aluno-oficial era, concomitantemente, aluno do atual Ensino Médio. Decidia cedo pelo ingresso na Brigada e recebia, junto com sua formação estudantil, preparo profissional. Depois, a corporação passou a recrutar egressos do Ensino Médio, que eram selecionados e recebiam, em regime de internato, formação exclusivamente profissional.

Importa destacar que, durante esse processo de formação do aluno-oficial, ele era considerado um praça especial, com acesso ao círculo de oficiais subalternos. Na hierarquia, já possuía, portanto, posição de relativo destaque. Logo, desde sua fundação, a Academia recebeu os maiores cuidados e respeitos da BM:15 A canção da APM, na realidade chamava-se “Canção do CIM”, a letra foi adaptada tendo em vista a modificação da designação da

Escola. A Canção do Cadete está sendo, agora, modificada, substituindo-se a expressão “aspirante” por “cadete”. Elas se diferenciam pelo fato de que a primeira pode ser cantada por todos os policiais da unidade e, a segunda, apenas pelos alunos-oficiais.

16 É o apelido vinculado ao uniforme que a Brigada utilizou do início do século XX até o ano de 1944. Era cáqui, como o do exército e, para se diferencar deste, possuía um detalhe azul na gola. Como este desbotava com o tempo, ficava roxo. Lembrava um papo roxo.

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o Comando Geral que nos convidou a assumir a Academia, e de pronto aceitamos, pois para nós, qualquer integrante da Brigada, em qualquer nível, nós temos uma predileção muito especial pela Academia, porque é o órgão de formação, a origem de todos os líderes, todos os chefes, todos os diretores da Brigada Militar, enquanto oficiais de carreira (Tenente-Coronel 2).

A Brigada valoriza muito a Academia porque a Academia representa para a corporação o núcleo. A base de todo processo de ensino, estudo da doutrina e de educação como um todo, é uma unidade de elite da corporação. A importância da Academia está no fato de que ela procura ter um projeto pedagógico. Procura, sempre procurou, ao longo da história, crescer e ela tem uma história de crescimento. Ela foi criada como uma escola simples, até chegar ao terceiro grau, ela tem um crescimento forte. Ela não trabalha só com a formação, como também a especialização. Ao longo da carreira do oficial, em algum momento da vida, ele volta à Academia para poder ter conhecimentos que lhe permitam progresso dentro da carreira. Além do que ela proporciona visões extra Estado, extra corporação, na medida em que ela aceita alunos de outras instituições, quer do Brasil, quer de fora do Brasil e proporciona a ida de oficiais nossos a outras instituições (Coronel da Reserva 3).

Para compreender como se processa, hoje, o ingresso do futuro oficial na Polícia Militar gaúcha, cabe relembrar que, de acordo com a Lei Estadual Complementar n. 10.990/97, artigo 14, na carreira, existem servidores militares de nível superior e de nível médio. Os de nível médio são os soldados, sargentos e tenentes, estes últimos ditos oficiais subalternos. Os de nível superior são chamados de oficiais intermediários e superiores, sendo eles, respectivamente, os capitães e, no grupo mais elevado, os majores, tenentes-coronéis e coronéis.

Os artigos 2º e 8º da Lei Complementar n. 10.992/97 definem o oficial da BM como um servidor militar estadual de nível superior, que exerce atividades de comando, chefia ou direção dos órgãos administrativos, de média e alta complexidade, da estrutura organizacional da Polícia Militar. A ele cabe o planejamento, a coordenação e o controle das atividades, na forma regulamentar, bem como o planejamento, a direção e a execução das atividades de ensino, pesquisa, instrução e treinamento, voltadas ao desenvolvimento da segurança pública no Rio Grande do Sul.

Os oficiais são policiais com formação de liderança, aptos ao gerenciamento das atividades de polícia; eles pensam as ações e acompanham sua execução; podem inclusive alterá-las, conforme aconteçam desdobramentos

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no momento da execução, relativas a variáveis impensadas nos planos. Mas, como polícia não é apenas “prender ladrão”, a eles cabe ainda possuir capacitação em Sociologia, Gerenciamento Organizacional e Relações Humanas, Didática, Estatística, Higiene, Primeiros Socorros, Administração e Direito.

Nós temos uma ficha de informações com 23 itens, características necessárias ao oficial. As principais são liderança, capacidade de iniciativa, pois ele tem, em determinados momentos, poder de decisão; o aspecto físico, até pelo acúmulo de atividades que ele desempenha, eu hoje tenho oito funções no quartel, então, chega um momento que tu tens de ter um plus emocional, físico. Eu acredito que um conhecimento técnico, um lastro técnico, até para poder transmitir, pois ele, como oficial, é comandante e precisa excelente relacionamento interpessoal para poder conviver com os universos com os quais ele convive (Capitã 1).

Essa perspectiva da força e do condicionamento físico surge mais como necessidade psicológica do que instrumento para fazer prevalecer a autoridade (em um momento no qual a tecnologia substitui a força física, em que a arma de fogo — e as não letais — “resolve” o que antes dependia de força bruta). Assim, reiteram-se as justificativas, ressaltando o aspecto emocional positivo proporcionado pela prática de exercícios.

A força física é necessária porque, em muitas operações, tu precisas da força física, muitas vezes te é exigido mais do que o normal e para isso tu precisas do preparo físico, a mente preparada, mas num corpo são. Então o trabalho físico é mais do que necessário (Coronel da Reserva 1, presidente da AsofBM).

Mas, na opinião do Capitão 3, existe predomínio da atividade administrativa no cotidiano do oficial da BM.

O oficial é um líder na parte operacional. Trabalha também na rua, diretamente com o público. Mas é mais administrador da corporação, um gerente, desde os coronéis que são os diretores mesmo, até os tenentes, os capitães, que hoje são praticamente nivelados, que são os gerentes de pessoal (Capitão 3).

Várias são as características do ser e da atuação dos oficiais, vinculadas às diversas tarefas que executam. Somente se fosse possível definir a função da polícia poder-se-ia também, facilmente, definir as funções dos oficiais desta polícia. Para Luiz Iponema (1983),

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[o]ficial de Polícia Militar é o ELEMENTO DE COMANDO; portanto, um componente de alto valor. O OFICIAL PM: colhe dados estatísticos; prevê; planeja; executa e faz executar; fiscaliza; comanda. (...). A sociedade espera do oficial PM: eficiência; dedicação; integridade; desprendimento; coragem; lealdade; espírito de justiça; cultura profissional. É no oficial PM que está depositada a fé pública, traduzida como a CONFIANÇA DO POVO. Significa que o povo deposita toda confiança no oficial PM. É para o oficial PM que converge toda a responsabilidade do dever policial-militar, perante a sociedade (grifos do autor).

Assim,[p]ela complexidade de sua formação o oficial PM

recebe formação, instrução a treinamento especial, cuidadosamente elaborado por oficiais capacitados e técnicos habilitados. A Brigada Militar deposita em seus oficiais a certeza do dever cumprido em prol da Segurança Pública do nosso Rio Grande do Sul (IPONEMA, 1983).

Acrescenta, igualmente, que, por ser oficial PM, cabe a ele servir de exemplo para a comunidade, expressando-se por meio de atitudes estudadas, postura elegante, caminhar marcial, tom de voz “comunicante” e ótima apresentação. O oficial é um “símbolo da tranquilidade” e, para preservar a coletividade social, possui “FÉ PÚBLICA” (IPONEMA, 1984, grifos do autor).

Essa exigência de tanto caráter e dignidade, porém, na opinião do Major 1, apesar de todo o discurso e hinos, aparece mais como exceção do que regra: “Os oficiais devem ser líderes, mas uns poucos nomes, na história da Brigada, abdicaram de cargos ou regalias, salários, pelo dever, pelos valores de um oficial”.

Com múltiplas atividades, os oficiais devem estar preparados para todas elas, sejam operacionais ou administrativas. Outro destaque surge para o relacionamento humano, eis que o oficial atua, diretamente, com seus subordinados e com o público de seus serviços, a população.

O oficial da Brigada tem de trabalhar, principalmente, a questão humanística, a questão de justiça, aquele sentimento de justiça, de cumprimento de leis, isso é o principal. E saber que o seu material de trabalho, entre aspas, é sempre um cidadão, seja ele da classe mais humilde ou daqueles “sabe com quem está falando?”, é sempre um cidadão, então nos parece que o fundamental é saber que tu estás tratando com uma pessoa humana, o fundamental é tu saberes que aquele cidadão que está na tua frente, tem de ser tratado como tu gostarias de ser tratado, para nós é o fundamental (Coronel da Reserva 1, presidente da AsofBM).

106 | Segurança, Justiça e Cidadania: Educação Policial

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Essa é uma situação extremamente complexa, eis que, em regra, o cidadão com quem o oficial se relaciona não é apenas uma pessoa, mas um sujeito em estado de choque, atingido por uma ação que fez com que chamasse o policial. É um cidadão fragilizado e/ou exaltado, em busca de “justiça”, pessoa com suas idiossincrasias, a quem o policial deve se dirigir, porém cujas expectativas, desejos e reações desconhece.

As situações nas quais atua são propícias à exacerbação de conflito. Uma preparação psicológica mostra-se, então, fundamental para propriamente agir. Entretanto, como em outras situações, o oficial precisa atuar in loco, sem preparo maior do que o obtido em instantes de observação e, se sorte tiver, informações fornecidas por soldados que estejam no local.

Seu contexto de atuação é bem diverso daquele vivido por outros profissionais. Imagine-se um psicólogo a clinicar no meio da rua, ou um advogado, promotor ou juiz, a decidir longe de seus livros, sem acesso à internet, fora de seus escritórios ou gabinetes, refrigerados no verão e aquecidos no inverno. Ao oficial cabe atuar, independentemente de possuir no momento e no local as condições adequadas, não podendo esperar que estas condições se realizem ou que o problema seja deslocado para ambiente e momento mais propícios.

Poder-se-á pensar, assim, uma formação adequada para garantir a segurança em um Estado Democrático de Direito, com fundamento nos princípios do Estado, para que os policiais se percebam como cidadãos, funcionários públicos, agentes criativos, seres humanos convivendo em sociedade e não meros cumpridores de atividades; em uma formação em que os líderes da Brigada sejam pessoas com capacidade e autonomia para enfrentar problemas, e preservar direitos e garantias dos cidadãos.

Duas grandes possibilidades surgem. A primeira, a partir da perspectiva da prevenção da criminalidade, de forma proativa, pedagógica, muitas vezes antes da ocorrência do delito — fato previsto na lógica policial-militar, eis que essa polícia define-se como ostensiva, apresenta-se como comunitária. Inclui, assim, a possibilidade de desenvolver unidades voltadas à inteligência policial, buscando, com o uso da estatística criminal, diminuir a taxa de ocorrências e ainda identificar quadrilhas e frustrar planos criminosos.

A outra possibilidade de formação consiste em preparar os policiais para o combate à criminalidade, treinar homens em técnicas de atuação nos cenários prováveis e no uso de armamentos potentes e modernos que lhes permitam interromper a ação criminosa ou perseguir o suspeito após o fato, criar unidades especializadas para atuar em casos especiais (sequestros, terrorismo etc.). Essa atuação reativa, com fundamento em modernas técnicas e com uso de equipamentos especiais, mostra, neste paradigma, que a polícia impede a impunidade das ações delituosas.

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Nos fatos cotidianos da Academia, pode-se perceber uma primeira aproximação a esses modelos, verificando-se qual a formação recebida.

A Academia serve para a formação do oficial da Brigada Militar: o líder para comandar a atividade policial militar. Eu diria que, enquanto eu estava na Academia, quando aluno, eu ficava me perguntando por que a formação militar da Academia de Polícia Militar? Eu perguntava “por quê?” E não encontrava resposta. Eram os exercícios de campanha, eram os exercícios de vivacidade, e no decorrer de minha carreira eu comecei a entender melhor todas as questões da formação do policial militar, principalmente ligadas à área militar (Major 1).

Na declaração do oficial percebe-se a semelhança entre o pensamento do egresso da APM e o de egressos de outras instituições de ensino: a insegurança, a desconfiança sobre o que aprende, sobre a utilidade do conhecimento adquirido, até reconhecimento, no final, de que o tempo de aprendizagem não significou um tempo perdido, mas um processo com uma lógica passível de apropriação e útil para o desempenho de uma profissão, com aspectos positivos e negativos.

Eu tenho lembranças sobre vários aspectos, vou falar primeiro dos negativos, o que talvez seja o maior aspecto negativo é que tu deixas uma parte de tua juventude lá dentro, os quatro anos que tu passas lá é em função do curso, tem período de férias, mas é dedicação exclusiva, é diuturno, aula de manhã e de tarde, serviço à noite às vezes. Aí, no outro dia, está com sono, dormindo, mas tem que puxar energia, força moral, principalmente, para seguir no curso com todas as atividades e tendo um desempenho satisfatório. Então é realmente muito puxado neste sentido (Capitão 2).

E também,[a]gora, os aspectos positivos, eu diria que são em maior

número que os aspectos negativos. Os aspectos positivos iniciam pela própria formação técnica profissional, uma coisa que se aprende lá dentro é não esmorecer diante das dificuldades, se aprende a lidar com a frustração (...). E o convívio com todos os meus amigos, meus colegas, meus colegas que se tornaram meus amigos, que são até hoje, e acho que vão ser para a vida inteira. E a profissão que nós, que tu acabas passando a exercer, e incorporar no teu ser, é a minha profissão, ser policial militar, poderei ter outras profissões no futuro, ser advogado, trabalhar no comércio, alguma coisa, mas a minha profissão é esta (Capitão 2).

108 | Segurança, Justiça e Cidadania: Educação Policial

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A perda da juventude acaba suplantada pela construção de uma nova personalidade, pela “incorporação no teu ser” de novos valores, pela constituição de um novo grupo de relações. Essa formação se incorpora ao homem que se percebe policial militar e acaba sendo como uma verdadeira nova “pele” do sujeito, com características que serão agregadas a uma nova forma de ser, a tal ponto que somente nela consegue se enxergar e se reconhecer17.

De toda forma, o oficial da Brigada apresenta-se como um homem comum, em busca de uma melhor qualificação profissional, de um futuro ativo. Não merece ser percebido como um super-homem, eis que se apresenta, como seria de se esperar, como uma pessoa marcada por aspectos positivos e negativos. É, em regra, um cidadão, militarizado, que trabalha para viver, para garantir o futuro de seu cônjuge e filhos. Conhecer o processo pelo qual ele se forma aparece como necessidade premente, pelo fato de a segurança pública representar, cada vez mais, questão básica para a qualidade de vida nas cidades e nos campos do país.

Logo, considerando a lição de que “[l]os problemas en la formación de los oficiales de policía y en su carrera representan un asunto básico para o porvenir de vigilar” (SANTOS, 2002), há necessidade de pensar essa formação no sentido de alterar o paradigma hoje dominante nas Academias (positivismo penal) para uma perspectiva crítica, que incorpore conhecimentos oriundos das Ciências Sociais, da Criminologia, da Psicologia e do Serviço Social. Para tal, importa sempre considerar que,

[e]m várias ocasiões, quando no cargo de Comandante-Geral da Brigada Militar, o Coronel Jerônimo Carlos Santos Braga afirmou em seus discursos que os policiais militares haviam aprendido a executar e não a pensar. Esta manifestação incômoda que mexe com os brios milicianos, expressa uma característica histórica da Brigada Militar que, por valorizar excessivamente a capacidade de realizar ações operativas, deixa de lado a posse das ideias referentes a seu trabalho, dificultando a consolidação do conhecimento que dá suporte ao exercício da polícia ostensiva (ROCHA, 1993).

E perceber, igualmente, que a grande diferença proposta pelas leis estaduais de 1997 refere-se ao ser tenente: antes era como tenente que ingressava o jovem na carreira de oficial; ser tenente era um começo. Agora, não mais. O jovem que pretende começar na carreira policial como oficial, aprovado em concurso público, o fará, hoje, no posto de capitão. Tenente será o praça que galga o posto máximo a si reservado. Deixará de ser início de carreira e passará a ser final, para o praça, que alcançará o título de oficial (ainda que adjetivado de “subalterno”).

17 Bourdieu (1997) talvez não tivesse exemplificado melhor o conceito de habitus.

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Parece buscar-se a promoção de um sistema “misto”, eis que, não tendo um tronco comum, para que o ingressante na mais baixa posição hierárquica possa chegar a comandar a força policial, permite-se que o mesmo chegue à posição de oficial, pertencente aos escalões superiores da organização policial. Evita-se o epíteto de preconceito em relação a quem ingressa como soldado, sem, todavia, permitir que alcance os verdadeiros cargos de comando da corporação.

A referência genérica à formação do oficial da Brigada Militar, utilizada neste trabalho, remete ao jovem que aspira a tornar-se, por meio de ingresso via concurso aberto à comunidade, oficial intermediário, ou seja, capitão. A Lei Estadual Complementar n. 10.992, de 18 de agosto de 1997 (artigo 2º, § 1º), dispõe que

[f]ica instituída a carreira dos Servidores Militares Estaduais de Nível Superior, estruturada através do Quadro de Oficiais de Estado Maior – QOEM e do Quadro de Oficiais Especialistas em Saúde – QOES.

§ 1º – A carreira dos Quadros de Oficiais, de que trata o caput deste Artigo, é constituída dos postos de Capitão, Major, Tenente-Coronel e Coronel.

Importa ressaltar que estes correspondem aos quatro níveis possíveis em uma carreira de delegado de Polícia Civil (de quarta à primeira classe). O artigo 3º da mesma lei complementa.

O ingresso no QOEM dar-se-á no posto de Capitão, por ato do Governador do Estado, após concluída a formação específica, através de aprovação no Curso Superior de Polícia Militar.

§ 1º – O ingresso no Curso Superior de Polícia Militar dar-se-á mediante concurso público de provas e títulos com exigência de diplomação no Curso de Ciências Jurídicas e Sociais.

§ 2º – Os aprovados no concurso público de que trata o parágrafo anterior, enquanto estiverem frequentando o Curso Superior de Polícia Militar, cujo prazo de duração não excederá a dois anos, serão considerados Alunos-Oficiais.

A partir da data de entrada em vigor dessa lei, então, para ingresso na APM, revoga-se o disposto pelo Decreto n. 37.536, de 8 de julho de 1997; norma promulgada 41 dias antes. Sobre esta, ressalte-se que renovava, como condição para ingresso na Brigada, com destino a Curso de Formação de Oficiais do Quadro de Oficiais de Polícia-Militar (artigo 3º, inciso I), entre outros critérios, ser do sexo masculino, ter idade inferior a 23 anos, ser solteiro, não possuir encargos de família e possuir o 2º grau completo ou equivalente.

Deixando clara a matéria, o artigo art. 6º, § 5º, da Lei Estadual n. 10.992, de 1997, declara que “O Curso Superior de Formação de Oficiais (CSFO/BM), com vigência anterior a esta lei, é equivalente e substituído pelo Curso Superior de Polícia Militar”.

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Agora aceita-se o ingresso tanto de homens quanto de mulheres, não havendo limitação no que tange à existência de encargos familiares, ter até 29 anos (se já for integrante da corporação não há limite de idade, conforme a Constituição Estadual, artigo 46, inciso II, e a Lei n. 12.307/2005, artigo 2º, parágrafo único), exigindo-se, em especial e obrigatoriamente, o título de bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais.

Na realidade não basta ser brasileiro e aprovado, aparecem, igualmente, como requisitos: possuir ilibada conduta pública e privada; estar quite com as obrigações eleitorais e militares; não ter sido isentado do serviço militar por incapacidade física definitiva; não ter sofrido condenação criminal com pena privativa de liberdade ou qualquer condenação incompatível com a função policial militar; não estar respondendo processo criminal; obter aprovação nos exames médico, físico, psicológico e intelectual, exigidos para inclusão, nomeação ou matrícula (artigo 10).

Essa situação marca profunda alteração no processo, desde o recrutamento, a seleção, o ingresso até o processo de formação dos oficiais da BM. Algumas questões, porém, ficam em aberto, como, por exemplo, o status atual do CSPM. Antes ele era equivalente a um curso superior, conforme o citado Parecer n. 726/81; agora, perante à nova exigência, deixa de sê-lo, em decorrência da significativa diminuição de horas-aula.

Poder-se-ia pensar na equivalência, agora, com um curso de pós-graduação. E, de fato, alguns movimentos podem ser percebidos nesse sentido, como a Lei Estadual n. 12.349, de 2005, que prevê, entre as modalidades de cursos que disponibilizará, o de especialização (artigo 6º, III) “que assegura, em nível de pós-graduação, a qualificação específica dos oficiais da carreira de nível superior”. Para resolver a questão prevê em seu artigo 11:

Art. 11 – Os cursos realizados em estabelecimentos de ensino policial militar por detentores de cargos de nível superior, constituem, para efeito universitário, cursos de pós-graduação, desde que atendida à legislação pertinente.

Daí o fato de o CAO (Curso de Aperfeiçoamento de Oficiais) estar acontecendo em parceria com instituições de ensino que possam legitimar o título dos oficiais. Todavia, o critério de licitação, realizada em alguns casos na forma de pregão eletrônico, levando em consideração apenas o requisito de valor, diminui o interesse de muitas instituições em participar, pois aquelas com professores menos qualificados apresentam propostas mais baratas, eis que sem compromisso com a qualidade. Todavia, a Brigada não parece se preocupar com o fato de receber diplomas de instituições de menor tradição, que são menos (ou nada) considerados no campo da educação.

Objetivamente, em relação a esses cursos, há de se atentar para o fato de serem marcos na formação do oficial, ao proporcionarem, em caso de aprovação, a progressão na carreira, primeiro para oficial superior e, ao final, para coronel.

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A Lei n. 10.992/97, no artigo 5º, § 1º, prevê que, para a promoção ao posto de major, o capitão deve ser aprovado no Curso Avançado de Administração Policial Militar (CAAPM) e que, para chegar a ocupar o posto de coronel, o tenente-coronel deve formar-se no Curso de Especialização em Políticas e Gestão de Segurança Pública (CEPGSP) (artigo 5º, § 2º).

O CAAPM vem, pois, a substituir o curso antes conhecido como CAO e o CEPGSP, o como CSPM (Curso Superior de Polícia Militar) (que é como se chama agora o antigo CFO – Curso de Formação de Oficiais). Sobre esses cursos superiores, Rocha (1993) faz uma crítica contundente, dizendo que, ao preparar egressos para diversos cargos operacionais e de comando, em muitas tarefas especializadas, inviabiliza a construção de um currículo mais individualizado, tornando a matéria ampla e difusa, muito distante da realidade dos alunos. E acrescenta:

Teoricamente, esses cursos funcionariam como um “divisor de águas” entre oficiais que ascenderiam ou não aos postos superiores da escala hierárquica. Na prática, isto não ocorre, pois quase a totalidade (senão a totalidade) dos pretendentes que chegam até eles adquirem a condição para o acesso. E não se credite isto ao nível de excelência (exigência) dos cursos, pois eles funcionam mais como “ritos de passagem” do que como desafios a serem vencidos. As próprias condições de inscrição não subsistem por muito tempo quando impedem o ingresso de pretendentes que não as possuem no grau exigido (ROCHA, 1993).

O oficial apresenta ainda outra crítica, mais preocupante:Uma outra perspectiva deste mesmo problema diz

respeito ao investimento do Estado na preparação do seu pessoal e a contrapartida destes na prestação de serviços. (...) Como a tendência recente vem apontando para o aumento da permanência nos postos inferiores da escala hierárquica (até capitão), depreende-se que deva ocorrer a diminuição do período de permanência na ativa após a realização do CSPM. (...) Esta não é uma questão isolada que pode ser tratada sem considerar a carreira do oficial, a necessidade de qualificação para os diversos cargos e funções, a estrutura organizacional da corporação aos fins do ensino (ROCHA, 1993).

Isso significa que o Estado investe muito na carreira de pessoas que pouco tempo permanecerão em seus cargos. Mesmo com as reformas promovidas, a realidade não se altera. Um oficial, ao longo da carreira, passa por três cursos de formação, durante não mais do que 30 anos. Assim, mais de 10% da carreira, aproximadamente quatro anos, são de formação (sem contar cursos de pequena duração); sendo que o último serve não mais do que para alcançar o último posto antes da aposentadoria.

Refletindo sobre a experiência de lecionar nesses cursos, a Professora 3 relata que a experiência foi “fantástica”:

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Eu cheguei a tomar um susto quando entrei na sala. Eu entrei na sala com o Costa (o coronel foi comandante da Academia e da própria Brigada), que ele era da Academia de Polícia. Foi uma loucura porque eles se levantaram e se perfilaram porque estava chegando um oficial superior. Eu estranhei desde o desenho da sala, porque eles tinham carteiras no formato de espinha de peixe, e cada um seu lugar. Eu senti, intui que tinha uma ordem ali, tinha um sentido hierárquico e estratégico, a organização da sala, eles diziam que era a estética do Costa, pois ele tinha inventado aquilo. Mas realmente, de qualquer lugar da sala que eu estivesse, eu enxergava o rosto de todos. E o que eles estavam fazendo.

Outra coisa que me chamava atenção, que dava um artigo, ou um conto, agora estou fazendo literatura, acho que vai dar um conto, pode ser mais rico, mais interessante, a lista de chamada tinha o nome das pessoas e, grifados, os nomes de guerra, eu chamava e eles respondiam pelo nome de guerra, levantavam e sentavam. Eu achava aquilo muito divertido. Imagina, eu acostumada a dar aulas para as Ciências Sociais, é um outro ethos, outro código de comunicação. Aí eu comecei a bagunçar um pouco isso, comecei a chamar as pessoas por outro nome que não o de guerra, foi o caos. Criou-se um desconforto, uma parcela ficou ofendida, se sentiu agredida, desqualificada, porque ser o Trindade significava alguma coisa, se não me engano o Trindade não, não era médico, o Trindade era advogado se não me engano, ser Trindade era uma coisa e ser fulano é outra e assim sucessivamente.

Aí se instalou um jogo de poder em que eles acionavam a masculinidade em oposição à minha feminilidade. Aí eles me chamavam de professorinha, fizeram charge de mim e botaram no mural, começaram a minha desqualificação a partir do gênero, por eu ser mulher, então, a autoridade ficava complicada. Aí, claro, eu aproveitei para trabalhar antropologicamente a coisa, e até o fato de não haver oficiais superiores mulheres na Brigada Militar na época.

O questionamento da Professora 1 refere-se à capacidade de os colegas, da corporação, lecionarem nos cursos. Para ela, apesar de possuírem, na Academia, disciplina de didática,

[a] maioria deles (policiais militares), quando convidados para ministrar determinadas matérias, possuem o controle do conteúdo, mas não da técnica de aprendizagem, do processo pedagógico. Essas são as incoerências dentro do ensino da Brigada.

A Brigada Militar na contemporaneidade | 113

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Quanto à vida na Academia, vale relatar que, no início da década de 60, conforme recorda o Coronel Bento Mathuzalém de Vasconcelos18, presidente da Turma 64 (referente ao ano de formatura: 1964), em março de 1961, a turma foi incluída na Brigada Militar. Ele inicia seu relato dizendo que esta foi a única turma do CFO a viver, na Academia, na época chamada CIM (Centro de Instrução Militar), dois episódios de grande repercussão política na recente história do país: a Legalidade e a Revolução de 31 de março. Participou também da alteração do papel da BM, que passou a ser responsável pelo policiamento preventivo ostensivo.

A turma contava com 82 “jovens idealistas [...] no melhor momento de suas vidas, no esplendor da juventude, com todos os sonhos e alegrias próprios desta fase da vida”. Eles acordavam com o toque de alvorada, às seis horas, e seguiam para o café. Depois tinham formatura geral e iniciava-se o expediente administrativo. Era o momento das aulas, das visitas médicas. Ao meio-dia, com o término das aulas da manhã, almoço; depois, “silêncio relativo” até às 13 horas e 30 minutos, quando havia nova formatura geral, seguida pelo reinício das aulas, que terminavam às 17 horas e 30 minutos. Às 19 horas e 30 minutos, deslocavam-se para o jantar e às 21 horas acontecia uma revista. Às 22 horas era declarado silêncio até o recomeço das atividades. Essa rotina, repetida durante os quatro anos do curso, em regime de tempo integral e internato, favorecia a disciplina e a hierarquia. Entretanto, apesar delas e da possibilidade de punição, o coronel lembra que alguns arriscavam-se a sair do quartel.

No primeiro ano, estudaram 20 matérias, sendo que todas possuíam professores militares, com exceção de português. Em regra, eram oficiais, mas dois aspirantes também lecionavam (“Ordem unida a pé” e “Maneabilidade”). Nos anos seguintes, a situação se repetia, sendo apenas o professor de português um “paisano”; afinal, o currículo compunha-se, em 90%, de disciplinas militares.

Destaque-se que, na disciplina de matemática, lecionada por um capitão, no primeiro ano, quase metade da turma foi reprovada, obrigando muitos a “dar baixa”. Assim, ao passarem para o segundo ano, a turma reduzira-se à quase metade do número de ingressantes. Aos sábados pela manhã, no refeitório, o coronel Aldo Ladeira Ribeiro proferia palestras sobre a história da Brigada. Os “trotes”, destaca, nunca foram violentos ou aviltantes e serviam para ambientar o grupo no CIM; além disso, havia formas de resistência: “Quando o ‘veterano’ era ‘mau’, consta que alguns ‘bichos’ ‘mijavam’ em suas marmitas.” (VASCONCELOS, 2005). Quanto a 1961 e 1964, o coronel revela, mas não explica, as contradições da participação da turma.

18 Disponível em: <http://www.asofbm.com>. Acesso em: 28 fev. 2005.

114 | Segurança, Justiça e Cidadania: Educação Policial

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Em agosto, com a renúncia do presidente Jânio Quadros, a turma se envolveu no Movimento pela Legalidade, liderado pelo governador Brizola e com a participação ampla de toda a Brigada.

Foi o nosso “batismo de fogo”. O portão “caiu” por volta das 16h do dia 26. Organizadamente, cavamos trincheiras e espaldões [...].

Em março [de 1964], a situação política agravou-se [...].

Muitos colegas foram presos e indiciados em IPM e Sindicância, acusados de subversão. Entre eles, os principais foram Celso – Ghelen – André – Ilmor e Brandeburski. [...].

O Bento, Guimarães e o Leão Caio fizeram parte do Batalhão Volante do CIM, que atuou por quase três meses na região do alto Uruguai, para “consolidar” a Revolução (VASCONCELOS, 2005).

Recorda-se, ainda, da forma de escolha do paraninfo e dos homenageados:

O paraninfo foi o governador Meneghetti, sem muita discussão, pois era vontade do Comando. Discutida foi a questão dos homenageados. A turma queria o Capitão Fernando Farias da Rosa, que não foi aceito por motivos políticos. O próprio Capitão Farias esteve em sala de aula e, agradecido, pediu que não insistíssemos. Assim, acabou sendo imposto o nome do Coronel Ernani Afonso Trein, Comandante do CIM (VASCONCELOS, 2005).

Na memória do coronel, os jovens alunos orgulhavam-se de pertencer à Brigada e daí a felicidade em participar dos desfiles de 7 e 20 de setembro, oportunidades de mostrar “todo o garbo e o brilho da tropa melhor preparada do Rio Grande”.

Tendo ingressado no CFO em 5 de fevereiro de 1970, para um curso de cinco anos em regime de internato, o futuro comandante da corporação, Pereira (2006, p. 31; 38), filho de brigadiano, relata:

O modelo de ensino aplicado na Escola, baseado no conceito de Skinner (estímulo-resposta), era compatível com os discursos de alguns superiores hierárquicos, como: “ou troteia ou sai da estrada”; “aqui tu só diz três coisas: sim, senhor; não, senhor; quero ir embora”; “não somos melhores, nem piores que ninguém, somos diferentes”. Essas frases levavam de roldão qualquer pensamento contrário, aliás, para que pensar o contrário?

A Brigada Militar na contemporaneidade | 115

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Nessa mesma década de 1970, os aspirantes a oficiais, Claiton Rui da Costa Portilho e João Baptista Mottini, fizeram, respectivamente, o texto e as ilustrações de uma história em quadrinhos intitulada “O Cadete da APM” (reproduzida em MEDINA, 1991, p. 75 e seguintes). Nela são retratadas as paradas, as aulas; um cotidiano não diferente daquele dos anos 1960. Em um diálogo, diz o narrador: “às nove e trinta, os cadetes fazem um intervalo nos estudos” e dois alunos falam:

- Bah tchê! Ainda bem que acabou aquela aula, já “tava” quase “bodeando”.

- Quase?! Tu já tava “babando” em cima do livro (MEDINA, 1991, p. 78).

Em outra passagem, vê-se um colega avisando outro de que haveria revista e que ele ficaria detido, pois seus cabelos estavam compridos, ao que ele retruca: “Não! Não vai dar nada. Eu já fiz o ‘pezinho’ e o auxiliar é meu camarada” (MEDINA, 1991, p. 76).

Esse era um cotidiano marcado pela vida em comum em uma instituição total, da quarta categoria, indicada por Goffman (1992, p. 17), ou seja, das “estabelecidas com a intenção de realizar de modo mais adequado alguma tarefa de trabalho, e que se justificam apenas por meio de tais fundamentos instrumentais: quartéis, navios, escolas internas”. A APM estabelece-se tanto como unidade militar quanto como instituição de ensino.

Enquanto quartel, assemelha-se a outros, pelo uso obrigatório da farda, pela disciplina, por se tratar de uma unidade na qual policiais militares vivem e cumprem missões, aprendem, para quando chegarem à tropa.

Quando a Academia era somente para formação de oficiais, nós tínhamos 160, 170, 200 alunos em formação a cada período. Entre os próprios alunos se treinavam as funções de comando (...) a nossa experiência, éramos todos alunos com o mesmo nível hierárquico, a mesma idade, a referência, quando se chegava na tropa se tinha muitas vezes o choque, o aspirante ali, com 19, 20, 21, 22 anos, comandava o homem com idade para ser pai dele. Como é que eu me coloco? Como é que eu me posiciono? Como é que eu trato? (Tenente-Coronel 1).

Diferencia-se deles, também, porque trata da missão de ensino, porque nela o combate não é real, mas simulado, porque a ação visa ao preparo para a atividade de policial militar. Também com as instituições de ensino superior a Academia possui semelhanças e diferenças, oriundas estas, em especial, do adjetivo “militar”. Não fosse isso, seria mais próxima de algumas instituições (públicas) pelas (poucas) condições oferecidas em relação a outras (privadas). Por outro lado, seria mais próxima de algumas instituições (privadas) que outras (públicas), pela menor qualificação acadêmica dos professores; mais próxima de

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alguns cursos (Direito) do que outros (Comunicação Social), pelas características das relações entre professores e alunos e opção dominante pelo processo de ensino-aprendizagem (conteúdo ou habilidades).

Os oficiais que por ela passaram recordam-se de que[a] impressão que eu tinha como aluno-oficial era que minha

formação era deficitária, mas depois, na prática, vi que minha formação era melhor que a esperada. A primeira impressão que eu tive quando cheguei na unidade, conversando com uns colegas, era que eu tinha esquecido tudo, não sabia mais nada, mas depois, a autoconfiança vai prevalecendo, a gente vai encontrando as dificuldades do caminho e vai conseguindo superá-las, então, a gente verifica que a base é bem forte, a formação é boa, a gente vai encontrando soluções (Capitão 3).

Os oficiais entrevistados valorizam o aprendido na Academia, que deve ser re-assimilado ao cotidiano de trabalho. Continua o Capitão 3:

Na minha formação como oficial tivemos excelentes instrutores, um currículo bem completo na Academia. Mas a gente só consegue assimilar de fato quando vai atuar. Vai fazer uma analogia entre a teoria e a aplicabilidade na prática e vai sedimentar esse conhecimento. Só o conhecimento teórico, hoje, talvez eu não soubesse que providências adotar, só por minha formação na Academia, mas como estás constantemente vivenciando na prática.

Tais posições são ratificadas pelo Capitão 2:A Academia deu parte dos fundamentos e a outra parte a

gente adquiriu com os oficiais mais antigos, nas abordagens feitas sobre os assuntos, os ensinamentos feitos por eles, com o convívio com os praças mais antigos, com a tua avaliação sobre a situação. Então, de todas essas influências aí, tu fazes um mix e busca uma solução, um resultado para uma nova situação, um problema que surgiu, que não foi visto na Academia, que não teve oportunidade. A coisa é, a atividade é muito dinâmica, então exige um aprendizado fora dos padrões acadêmicos brasileiros (Capitão 2).

Não outra é a lição do coronel Pereira (2006, p. 43), que declara ter ficado, ao chegar ao batalhão para o qual fora designado, durante sete dias sem praticamente sair do quartel, conhecendo a rotina, o serviço. “Era necessário, pois havia certa complexidade que a escola não ensina, a prática, que você somente aprende fazendo”.

A qualidade do ensino na APM aparece nas declarações, com discernimento, pois há elogios e críticas, mas, em especial, quando comparado com o ensino oferecido nas instituições superiores “civis”, adquire vantagem pela seriedade.

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Agora, o ensino, o grau de exigência, várias vezes eu pensava, pensava, mas um instrutor cobra mais do que outro, um professor exige mais do que o outro, um faz prova de uma maneira, outro de outra, e às vezes eu me perguntava se não tinha de ter um padrão sempre, a Academia tem um padrão de provas, mas um padrão de ensino não tinha. Agora, fazendo a universidade, eu vi que é pior, eu vi como o CFO até era bom (Capitão 2).

Mesmo disciplinas por vezes desconsideradas recebem elogios.No meu CFO tivemos duas cadeiras de Didática.

Tivemos de lecionar para a própria turma. Foi útil, meus professores foram oficiais. Uma, me lembro, foi uma Tenente, hoje Major (Capitão 3).

O Coronel da Reserva 1 compara explicitamente as duas instituições, ressaltando as vantagens da APM.

Eu acho fundamental a forma da Academia, bem mais, digamos, eu diria mais eficiente, porque, é claro, as universidades, até pelo excesso de alunos, é na base da cruzinha, as avaliações da Academia, via de regra, da maioria, tu tens de desenvolver o intelecto, tu tens de escrever, tu tens que demonstrar o teu conhecimento através da escrita ou então através da dissertação oral, o que dificilmente é feito nas faculdades normais de Direito. Então, isso, para mim, foi uma vantagem, eu tirei uma faculdade de Direito tranquila, eu estava em pleno serviço ativo, não atrapalhou em nada meu trabalho, mas pela facilidade que eu tive da Academia, entendeu, porque eu via que meus colegas civis, que eles tinham uma dificuldade imensa, porque eles não foram acostumados a raciocinar, a colocar no papel, a escrever, isso prejudica até o português. Eu passei quatro anos na Academia, aula de manhã e de tarde, fazendo a base do escrever, fazendo relatório, ou então dissertar. Aí tu pega uma faculdade e ela fica bem mais suave, mais doce.

Em relação à formação jurídica observam-se duas posições:Não senti falta de formação jurídica no curso da

Academia. Achei suficiente e tive bons professores, como tive também professores não tão bons assim. Foi suficiente, mas como as leis se modificam, e nós estamos na frente de nossos policiais, temos de estar permanentemente nos qualificando, quando existem algumas alterações em relação à lei, nós também estamos pesquisando, conversando, estamos nos qualificando. Não senti necessidade de aumentar, fazer Direito para aumentar minha condição (Major 1).

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As disciplinas jurídicas não são suficientes porque a gente tem lá Direito Penal, Direito Administrativo, o Penal não é completo, o Direito Administrativo dá uma noção, mas eu entendo o seguinte: o mundo é muito dinâmico, o conhecimento, a vida, a sociedade é muito dinâmica, então nós passamos, a corporação tem de interagir em todas as áreas. Na época em que eu fiz CFO, não existia na Brigada batalhão ambiental, fazendário [...] Direito Previdenciário e Trabalhista [...] Direito do Consumidor. No policiamento ostensivo, tem de ter conhecimento, [...] dar o encaminhamento, dar uma solução, nem que seja primária, para o caso. Agora, principalmente, os oficiais que vão trabalhar na parte administrativa, numa assessoria jurídica ou num departamento, têm de ter noção daquilo ali (Capitão 2).

Eles, todavia, não conseguem referenciar livros que os marquem na vida da Academia. O importante são as diretrizes gerais, as normas internas.

Eu tive um livro de um professor, Major Agostini, que diz assim: a polícia comunitária, humanitária, como é, a polícia humanitária, comunitária, era uma palavra ou autoritária, sabe? É uma tipologia, dá as várias visões da polícia, e ele me dava “Comunicação”, “Correspondência militar” era a disciplina [...]. Foi um livro bem interessante, eu até não me recordo o autor do livro, que não tinha a ver com aquela disciplina, ele recomendou pela forma como foi escrito, tinha alguns documentos oficiais ali dentro, mas principalmente pela mensagem (Capitã 1).

Em relação ao currículo pode-se colher uma crítica que não veio de um oficial, mas do ex-deputado José Gomes da Silva Júnior (2004), que recebeu formação de soldado.

Isso é muito interessante, as disciplinas do curso de formação, nenhuma delas estava voltada para os Direitos Humanos, para o Direito Constitucional ou o Direito Penal, nenhuma delas. O que tinha era Português, Trânsito, OTITE ou ODITE, era uma coisa assim, [...] e tinha uma disciplina que não era curricular, mas era muito aplicada, fazer faxina, era pela manhã e pela tarde, não era curricular, mas era praxe, capinar, limpar o banheiro [...]. Nenhuma delas estava voltada pra defesa da sociedade. Eram todas elas voltadas para defesa do Estado, para defesa do patrimônio. [...] mas o que mais me deixava furioso era essa tal de OTITE ou ODITE, você tinha que ir para o mato se orientar com bússola, descer de rapel, cavar buraco, era uma operação de guerra, de guerrilha, agora o que isso tem a ver com policiamento urbano?

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A Professora 3, representando o meio externo, comenta suas experiências no curso integrado.

Eles tinham de ser aprovados e hierarquizados. O negócio é que tínhamos de fazer eles irem até um nível mínimo admissível. Eu tive de flexibilizar em relação aos meus alunos de graduação. O nível mínimo esperado deles seria considerado insuficiente para um aluno da graduação da UFRGS. Inclusive alguns escreviam muito mal, gente...

A partir da avaliação também se pode perceber como era a integração entre os alunos.

Nenhum reclamou individualmente, mas reivindicaram coletivamente a melhoria [das notas] do trabalho. Eu disse: “Não tem problema”. Uma das turmas, que resolveu ao invés de trabalho final fazer prova, acho que rodaram todos, aí eu fiz um outro trabalho para que eles alcançassem a nota sete, que seria um quatro da minha graduação. Não se dedicavam, não liam. Metade não lia em espanhol, quando eu tentei o Howard Becker, Los extraños, era um problema, porque como eles estavam competindo, não tinha cooperação, né? Os trabalhos em grupo eram assim: eu faço um pedaço, tu outro e ele o outro, ou então eu faço o de Sociologia, tu o de Antropologia e ele o de Metodologia, a cooperação era assim. Era complicado (Professora 3).

Mas o Capitão 2 entende que: “a avaliação, eu acho que era suficiente, talvez pudesse ser um pouco mais forte, mas eu acho que estava de bom tamanho”. A razão para essa divergência pode estar nos paradigmas adotados. Nas universidades, privilegia-se a teoria, o acadêmico; na APM, o operacional.

A didática da Academia é voltada para o operacional, administração é secundário. Como deveria ser. Mas a carga da Brigada, como todo trabalho policial, pela nossa legislação, é bem burocrática, não que a formação seja deficitária nesse sentido, mas a prioridade é área operacional, no ensino também (Capitão 3).

Os objetivos de ensino diferenciam essas escolas policiais militares. Enquanto na universidade, mesmo nos cursos mais tradicionais e conservadores, há quase sempre espaço para discussão e questionamentos, na Academia há disciplina e hierarquia. Pode-se contestar, mas de pé, em posição de sentido, chamando de “senhor” e sendo chamado de “você”, sem ultrapassar os limites do respeito devido.

O significado de bons professores e alunos, nesses contextos, modifica-se completamente. Para uns, refere-se a repetir a lição, conhecer o assunto; para outros, duvidar do exposto e buscar novas possibilidades; para uns significa aprender a trabalhar em conjunto em busca do conhecimento; para outros, receber a melhor nota, a fim de garantir uma classificação que propicie um maior capital quando da designação de funções e cidades.

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Uma alteração significativa em torno de paradigmas reporta-se também ao ingresso de mulheres na APM. Isso aconteceu, como referido, a partir do ano de 1985, quando a Lei Estadual n. 7.977 criou a Companhia de Polícia Militar Feminina da Brigada. O ingresso de “fems” provocou alterações nas plantas dos imóveis, eis que agora urgiam dormitórios e banheiros para dois grupos de alunos.

O Coronel da Reserva 2 diz que “os quadros femininos que entraram a partir de 1989, essas mulheres, mesmo se submetendo, porque eram minoria, elas questionaram os modelos existentes”. A Capitã 1 lembra:

No cassino dos oficiais, eu entrei e mudou o perfil, primeiro porque eu tive de me posicionar; em alguns momentos houve um mal-estar, claro que houve, tanto para mim, que tive de me posicionar, inclusive para oficiais superiores, que esqueceram que eu estava presente. Eu disse: “O senhor falou o quê mesmo?” Para mostrar que eu estava ali. “E o senhor me dá licença, eu vou comunicar então, já que o senhor insiste em falar nesse assunto aqui, promíscuo, porque esse era um ambiente masculino, e não é mais”.

Como as alunas-oficiais ingressavam após estudo universitário, possibilitou-se um curso de formação diverso para oficiais femininos do curso para oficiais masculinos. A principal alteração referia-se ao tempo, já que ele tinha dois anos (a lei não o definia, apenas dizia que deveria ser de, no mínimo, nove meses, conforme o artigo 4º).

A carreira dessas oficiais estava limitada pela idade (elas poderiam permanecer no serviço ativo até os 53 anos de idade, de acordo com o parágrafo único do artigo 6º) e alcançar o posto de Capitão (artigo 2°, inciso II, parágrafo 3º). Quando essa situação se alterou, ações judiciais foram intentadas para determinar possibilidades e ordens nas promoções.

Quanto ao curso, diz a Capitã 1.Eu acho que quem sofreu mais foi a primeira turma

tendo em vista que teve uma quebra de paradigma, uma coisa assim, nova, os próprios oficiais masculinos da escola, da Academia não sabiam como tratar, os graus de exigência. Foram montando um perfil de exigência, como se tinha com os alunos-homens.

As disciplinas eram muito diferentes, pois a carga, da área de formação básica, digamos assim, de um nível superior [...] nós já tínhamos, tanto é que nosso curso é [de] dois anos e não de quatro, como da maioria dos oficiais masculinos [...] nós entrávamos direto para um curso de técnica de polícia.

E a convivência foi se estabelecendo...

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Sempre tivemos convívio com os alunos-oficiais da Academia, até porque lá é integrado, não existe coisa distinta. Tem um boletim que é lido para todos, tem atividades da faxina diária [...]. E isso era igual para todos. Na convivência entre os alunos masculinos e femininos, teve alguns atritos dentro da normalidade, da convivência, mais nada, tanto que muitas oficiais casaram com oficiais masculinos, pelo convívio, se conheceram ali na Academia, não teve um maior problema (Capitã 1).

A vida na tropa também transcorreu sem alterações e, das lembranças desse preparo inicial, fica a validade do modelo, a satisfação com o treinamento recebido na Academia.

Quando cheguei na tropa, não tive dificuldade, pelo contrário. Tanto é que, hoje, na Brigada, se exige curso superior, específico, bacharel em Direito. Eu acho que nosso curso, das três turmas de oficiais femininas, serviu para a Brigada alicerçar o que é hoje o curso de oficiais. Entra com o curso superior, faz um curso de dois anos, exatamente porque a pessoa já entra com um grau de maturidade diferenciada. Ele faz um curso de técnico de polícia e sai capitão diretamente. Então, veja bem, nós até dizemos que servimos de cobaia e deu certo [...]. Dois anos é tempo suficiente para aprender as disciplinas técnicas de ênfase em polícia, do Direito, as técnicas policiais militares de abordagem e do manuseio da arma e de relacionamento humano, que era uma coisa que nós já tínhamos (Capitã 1).

Também o Coronel da Reserva 2 refere-se ao curso feminino como uma etapa das alterações no masculino. Entretanto, nenhum documento permite verificar uma relação explícita entre eles. Com o Capitão 3, todavia, cabe destacar as dificuldades para quem quer “ser um triunfante/ aspirante a oficial”, dentre elas, em especial, a da moral, da honestidade, causa de muitas exclusões.

O fundamento moral básico da instituição policial é a honestidade. Isso deveria ser mais tratado na parte da inclusão do policial, no psicotécnico. Na Academia isso surgia no dia a dia. As virtudes do policial, entre elas a honestidade, a correção de atitude, a moralidade, isso no meio militar é muito exigido. E nos próprios exemplos, os colegas que vão ficando no meio do caminho, não conseguem se formar por pequenos desvios que poderiam ser amanhã grandes desvios. Um colega foi descoberto que havia furtado uns objetos e em 24 horas estava excluído, sem direito a recurso, nada. Foram sendo reprovados ou pedindo desligamento, até pelo ritmo forte, um que tinha problema de alcoolismo e, por livre e espontânea pressão, acabou pedindo desligamento, sabia que seria excluído. Alguns foram perdendo o ano por problemas de saúde, por questões disciplinares. De 90 vagas, se formaram 72, depois de quatro anos.

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Por isso, ao final, da Academia, como lembra o Coronel Vasconcelos (2005):É forçoso dizer que o forte espírito de corpo que reinava

na corporação fazia com que nós nos sentíssemos homens “diferenciados” em relação aos civis, (paisanos), aos quais nos colocávamos numa posição de “superioridade”.

Esses elementos permitem perceber que a APM forma o policial militar dentro de um contexto, não somente no cotidiano dos cursos, mas junto a instituições formadas em torno da Brigada, ou integradas por brigadianos. Afinal, os valores policiais-militares são transmitidos e apreendidos também na vivência do grupo, na vida em comum no clube, na colônia de férias, na leitura do jornal. Esses elementos facilitam a incorporação, a elaboração de “verdades comuns” ao grupo.

No compartilhar experiências, em especial durante o período de vida na Academia, o oficial desenvolve amizades, faz amigos no grau apresentado pelo Capitão 2. Essas amizades propiciam não apenas o desenvolvimento de espaços de socialização (associações e clubes), mas igualmente de um locus no qual os oficiais se reúnem a fim de discutir posições, reivindicar direitos e interesses.

4 CONCLUSÃOSe, no passado, os oficiais saíam dos bancos escolares e eram moldados

conforme o pensamento (militarizado) da BM, hoje eles ingressam após terem cursado a faculdade de Direito. Logo, já possuem concepções estabelecidas sobre o que seja a polícia, o Estado, a sociedade e as formas de estabelecer relações democráticas entre eles.

Assim, os alunos-oficiais propõem-se a (re)pensá-las (RUDNICKI, 2008a). Eles não podem, nem pretendem, simplesmente receber ensinamentos. Eles querem discuti-los. Sabem que não são soldados cuja missão determina que devam destruir o inimigo. Esse fato decorre de se exigir dos futuros oficiais gaúchos uma escolaridade mínima digna de quem possui funções das mais relevantes na ordem burocrática estatal.

Essa tem sido tendência mundial desde a década de 1960 para os integrantes, em todos os níveis, de várias polícias, que ainda não havia sido incorporada nem mesmo à oficialidade das PMs brasileiras. Agora que aqui se o faz, seria contrassenso exigir dos futuros oficiais submissão a modelos repressivos e autoritários.

O “modelo Mendes” está teoricamente superado. Esse é do tempo em que os jovens ingressavam na Brigada Militar e iam sendo, literalmente, forjados para atuarem como militares. Com esse perfil, e muitas promessas, o Coronel Mendes “tornou-se” herói – apresentado e apresentando-se como a solução para a insegurança pública, a salvação da população gaúcha. Entretanto, o mito do coronel esbarra na realidade. Durante os anos que definiram as linhas da segurança pública no estado (ainda que fosse “apenas” o comandante da Brigada e não o Secretário de Segurança), a situação pouco mudou, as taxas de criminalidade não se reduziram.

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É que ele não percebia a existência de “mão de obra de reserva” na criminalidade e propôs medidas inócuas. Não utilizava noções de criminologia que indicam a ineficácia de prender se há quem ocupe a posição deixada vaga pelos detidos. Logo, quando queria desviar a atenção da taxa de criminalidade crescente, investia contra os movimentos populares. Contra os professores em greve (que, argumentava, prejudicavam o tráfego), contra os sem-terra e quem mais ousasse protestar contra o governo estadual. O Coronel Mendes impunha à PM um papel já superado, de defesa do governo; ou seja, de uma polícia não defensora de todos, mas das autoridades, dos poderosos.

Um oficial descontente declarou: “ele quer aparecer demais e está tirando espaço dos comandantes de unidades” (IRION; COSTA, 2008). Nesta mesma reportagem, sobre os desdobramentos da “Marcha dos Sem”, realizada na véspera, apontava-se a percepção dos envolvidos, tanto PMs quanto manifestantes, no sentido de que o protesto se encaminhava para seu final, sem incidentes ou acidentes, até a chegada do Coronel Mendes, quando os ânimos se acirraram. A criminalidade no Rio Grande do Sul não diminuiu e a (falta de) segurança foi um dos temas prevalentes nas eleições municipais de 2008, na capital e interior. Se algo mudou, pode-se dizer que foi para pior19.

Mas as necessidades sociais relativas à polícia mudaram e pretender manter a APM como uma academia militar, quando a realidade não permanece a mesma, proporciona descontentamento. O perfil dos alunos-oficiais mudou e se é verdade que mudou a ponto de oficiais dizerem que se alterou um paradigma, pode-se afirmar que o futuro da Brigada está a se transformar, talvez no que ela mais preze, seu militarismo.

O ensino na APM ainda acontece em consonância com o modelo de escolas clássicas, exigindo dos alunos a plena adaptação ao objetivo da escola, qual seja, o de formar um oficial da Polícia Militar generalista, pessoa qualificada para atuar em toda e qualquer ocorrência com a qual se depare, em defesa da lei, de acordo com a hierarquia, a disciplina e as normativas.

O ensino ainda não prepara, não fornece habilidades; mas sim adestra, treina, mantém um padrão de disciplinarização voltado a formar um servidor que se encaixe na engrenagem, obediente e limitado: obediente à hierarquia e limitado pelas técnicas procedimentais estabelecidas em manuais e normas. A APM, assim, instrui profissionais de polícia sem autonomia, cujo treinamento limita-se a prepará-lo para adotar providências padronizadas. Propicia um treinamento no qual os alunos aprendem, para liderar homens em prol da segurança, a fazer faxina e, para se deslocarem, a entrar em forma e caminhar como um pelotão em direção ao combate.

19 Exceto, talvez, para o Coronel Mendes, que, após quase dois anos de trabalho (com postura truculenta), nos mais importantes cargos da corporação, recebeu aplausos da mídia com seu discurso populista e a nomeação para o cargo de juiz do Tribunal Militar estadual, ganhando os proventos devidos para ocupar função que ele denominaria, provavelmente, de burocrática, na qual a gravata, o terno, a toga, são vestimentas imprescindíveis.

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Porém, o jovem que hoje nela ingressa busca uma função criativa, adequada a seu perfil, uma função intelectual. Assim, na Academia, existe uma contradição com o próprio discurso da corporação, que declara desejar um novo perfil para seus integrantes. A BM clama por um policial autônomo, mas ensina na dependência e na hierarquia (no que este vocábulo possui de conotação negativa).

E, para os alunos-oficiais que ingressam de posse de um diploma de nível superior, isso, ao contrário do que era para jovens recém-saídos de escolas de nível médio, não é algo lógico, racional ou necessário. Eles possuem casa e família, sabem da necessidade de limpeza pessoal e colaboram com a faxina em seus lares. Não acham divertido andar a marchar gritando palavras de ordem. São juristas e querem, “simplesmente”, aprender a ser policiais. Conhecem seus direitos e os dos outros e almejam uma vida melhor, não aceitam desgastes que consideram inúteis.

Sua contratação impõe-se como necessidade de uma BM que pretende ser uma polícia que valoriza o trabalho intelectual e cuja atuação esteja baseada em técnicas de inteligência, informação, estatística criminal e resolução de conflitos por meio de procedimentos que garantam, ao máximo, a defesa da vida de vítimas, agressores e policiais. O processo de ensino-aprendizagem deve também respeitar tais princípios, ou seja, deve acontecer com fundamento na leitura, no estudo (da doutrina e de casos em que ela tenha sido aplicada), na simulação e na discussão dos exercícios realizados. Nesse contexto, tudo pode acontecer, inclusive as simulações, sem estresse, sem meses trancados no quartel, sem trotes e dias passados no campo sem alimentação ou comendo coelhos em exercícios de sobrevivência.

O treinamento policial precisa propiciar reflexão. Por exemplo, sobre o poder discricionário que os membros da corporação possuem e do qual se valerão nas ruas, visto como um poder necessário para a atuação do policial, que, apesar de levá-lo ao limite entre o legal e o ilegal, possibilita, no caso concreto, ponderar sobre a aplicação da norma. Para tanto necessita-se qualificar o servidor.

Nesse sentido, ainda que os cursos de Ciências Jurídicas continuem legalistas, conservadores em relação a suas tradições, a inclusão do aluno-oficial bacharel em Direito muito colabora, pois as faculdades, ainda quando apenas minimamente adaptadas às diretrizes do ensino jurídico, incluem, entre várias habilidades previstas para o egresso, o pensar a aplicação das normas jurídicas conforme a realidade social posta.

Para tanto, visto que as técnicas de inteligência precisam de mais poder discricionário, há necessidade de a PM gaúcha, a partir dessa mudança no perfil do ingressante, alterar, concomitantemente, a forma de relacionamento entre os seus integrantes e o modo de se reportar aos superiores sobre suas atividades, liberalizando a hierarquia, propiciando mais liberdade de ação a um homem que se pressupõe capaz de bem utilizar este espaço de ação.

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Não haveria razão para exigir um oficial com uma formação inicial de sete anos, não fosse para confiar em sua qualificação e atitudes. Aumentar a qualificação dos recrutados, ensinar como se organiza uma polícia no século XXI pouco serve se, após, são mantidos limites regulamentares dignos do século XVIII; se, depois de formados, os egressos da APM terão de concordar com os “mais antigos”, quando estes afirmarem que as regras administrativas impedem os ensinamentos teóricos de se transformar em realidade prática e que, portanto, mais útil é aprender na rua.

A permanente oposição às mudanças acontece no cotidiano da APM, na tentativa de manter valores de um outro tempo e também na exigência, paradoxal, de que os valores trazidos pela obrigatoriedade da formação universitária não sejam utilizados. Assim, a possibilidade de exclusão daqueles que, durante o curso questionam (ponderam) posições de superiores, apresentam dúvidas sobre procedimentos estabelecidos ou reclamam das instalações ou remuneração —, obstaculiza a abertura pretendida pela corporação com o ingresso de data venia (RUDNICKI, 2008a).

Buscar nas universidades a fonte para contrapor-se ao caráter fechado e rígido das organizações policiais, realizando uma reforma cultural que abandone valores machistas, voltados à perspectiva de preparo para conflitos físicos, em detrimento de novas posturas, voltadas à mediação e à busca de consenso por meio da argumentação e do uso de técnicas policiais menos agressivas, impõe-se à Brigada como alternativa para melhorar seus serviços, mas que exige alteração da estrutura organizacional mais profunda que a realizada em 1997.

Esta é causa de muitas discussões que estão a confrontar a relação entre os oficiais “tipo CFO” e os “tipo CSPM”. Os confrontos vêm acontecendo no dia a dia e de forma nem tão velada. O fato de ainda não serem maiores decorre do pequeno número de data venia, mas no futuro, quando os atuais comandantes forem deixando a corporação, substituídos por jovens oficiais, deverá se agravar pela divergência profunda entre o modelo de polícia e a visão de mundo proposta por cada grupo (RUDNICKI, 2008a).

O desprezo e o preconceito em relação aos novos futuros oficiais têm gerado turbulências. Sentimentos de medo e inveja de quem passou por um treinamento diverso e considera que os atuais não terão condições de atuar eficazmente. Temem, em uma operação, ficar desguarnecidos, à espera de um auxílio que dependa da análise de possibilidades legais e temem perder espaço para quem possui uma qualificação diferenciada. É o medo de que o outro seja um policial mais adequado à realidade da sociedade contemporânea; de um policial que se relaciona de modo diferente com cidadãos e subordinados, pautando esses contatos pelo diálogo e respeito às normas jurídicas do país.

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Apesar das dificuldades que resultaram no fato de que apenas 17 se formassem em uma turma com 26 alunos, o modelo de formação prossegue e as duas turmas seguintes formaram 53 alunos-oficiais. Simultaneamente, ainda resiste a corporação, por meio de mecanismos que buscam preservar antigas práticas e costumes. Os oficiais intermediários, sobretudo, mostram-se reticentes em relação ao novo modelo que, caracterizado pela exigência do título de bacharel em Direito para o ingresso na carreira de oficial, mostra-se em conformidade com a tendência mundial das polícias, no sentido de buscar uma maior qualificação de seus integrantes. Embora questionável a exigência de curso de Direito, a medida surge como capaz de produzir alterações positivas na Brigada Militar. A BM se mostra, nesse aspecto, aberta para o futuro.

Mas deve-se atentar à epígrafe deste trabalho. E como destacou Einstein, os preconceitos estão arraigados na cultura das pessoas. Assim, atente-se ao fato de que não foi a construção de uma nova polícia que motivou a exigência do título de bacharel, e sim a pretensão de equiparação salarial dos oficiais da Brigada com as demais carreiras jurídicas, entre as quais, em especial, a dos delegados de polícia. Isso, passados dez anos, não aconteceu. Apesar de receberem benefícios negados ao restante da população (dentre os quais o direito a uma aposentadoria precoce, privilégio dos militares), durante a formação e no início da carreira (durante oito anos, no mínimo, quando ocupam o posto de capitão), receberão primeiro bolsa e depois salário pouco dignos às suas responsabilidades.

Os alunos-oficiais e os novos oficiais possuem consciência disso e reclamam que a escolaridade solicitada não está de acordo com os salários pagos em outras carreiras. Logo, há de se promover mudanças salariais que tornem essa carreira atrativa ao mesmo nível dos demais operadores jurídicos empregados do Estado, sob risco de se receber tão somente alunos que fracassem em ascender a outras posições, sem chance de melhor qualificar os quadros policiais, sem alterar a perspectiva anti-intelectual da polícia.

Essa é questão que se tem demonstrado fator de risco para a continuidade do curso. O número de desistentes é grande em um primeiro momento e pode continuar durante as aulas, quando alunos, aprovados em concursos para outras funções públicas, são chamados a ocuparem cargos com muito melhor remuneração. Haveria, assim, de se repensar toda a lógica remuneratória das carreiras de juízes, promotores, defensores, algo hoje distante da realidade.

O enfrentamento dessas questões, porém, permitirá prover à sociedade gaúcha contemporânea uma polícia que deixe de se contentar com a prisão dos criminosos e passe a antecipar-se ao fato criminoso, em atitude conjunta com outros órgãos estatais, em particular com o sistema educacional, realizando verdadeira prevenção, configurada como um trabalho proativo, pedagógico – antes chamado de ostensivo, preventivo, agora, comunitário (sem esquecer, quando necessário, das atividades de investigação).

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A educação, então, assume papel relevante não apenas por garantir a própria perpetuação da Brigada; na APM se preparam os alunos-oficiais para confirmarem as expectativas que eles mesmos e a população constroem em torno do ser policial. Mas, se antes se buscava um “herói”, pessoa dotada de enorme força física, a quem bastava atitude, assimilável com um treinamento ou uma instrução, hoje se precisa de um técnico que saiba administrar programas que permitam trazer segurança a uma rua ou bairro, ou, por meio de informações e atividades de inteligência, identificar e coibir a criminalidade.

Para que se concretize um aumento do grau de abstração no pensamento dos profissionais dedicados à segurança pública, não se pode apenas propor uma captação de recrutas diversa da anterior. O processo de ensino-aprendizagem necessita também ser diferente. A militarização do ensino, vinculada a modelos tradicionais, nos quais o agente repete sem refletir, aprende a agir condicionado e é submetido a situações estressantes, deve ser substituído. Da mesma forma, é preciso ser abandonada a perspectiva simplificada de um mundo dual, em que se separam cidadãos e marginais, bons e maus, no qual à polícia cabe controlar os excluídos, os outsiders, os sujos, os párias, os desviantes.

A Brigada Militar está, no que tange aos requisitos para seleção dos alunos-oficiais da APM, na vanguarda das PMs brasileiras, tornando-se hoje referência. Entretanto, no cotidiano do ensino policial, verificado na Academia, continua sendo preservado um modelo tradicional que pauta as academias de todo país e pouco se transformou — mesmo após a Constituição de 1988.

Fala-se, entre os oficiais que hoje lideram a instituição, sobre uma nova polícia e clama-se por isso, mas parece que se pretende que isso aconteça com reformas pontuais, alterações que preservem a tradição da BM, sem se perceber que ela se relaciona com o governo e a sociedade e que sem repensar essas relações e mesmo suas tradições, nada se transformará de fato.

Se hoje os oficiais negam a possibilidade de discutir a unificação das polícias estaduais, a centralização ou não do modelo policial, a necessidade de manter a militarização, o paradigma de ensino policial pouco poderá ser transformado. Mas o novo modelo está a se formar com pessoas que se importam com esses temas — e não os temem. Irão enfrentá-los. É uma questão de tempo, pois os oficiais da Brigada têm uma responsabilidade, junto com outros servidores públicos, com outros operadores do Direito e com a sociedade: (re)pensar o policiamento e a segurança.

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Apontamentos de uma experiência de ensino policialRosimeri Aquino da Silva1

Resumo: Este trabalho analisa uma experiência pedagógica inovadora do ensino policial, no Estado do Rio Grande do Sul, ocorrida durante a gestão de Olívio Dutra no governo. A partir de fundamentação teórica do campo de Estudos do Currículo e de narrativas orais feitas pelos alunos policiais e pelos professores participantes dessa experiência, argumenta-se sobre aspectos tradicionais, críticos e identitários que envolvem a formação policial.

Palavras-chave: Ensino policial. Currículo. Identidade.

Abstract: This paper examines an innovative pedagogical experience in teaching police in Rio Grande do Sul occurred during the administration of Olivio Dutra in government. From the theoretical field of Curriculum Studies and oral narratives by the police students and by teachers who participated in this experience, we argue for the traditional, critical, and identity aspects involving police training.

Keywords: Police education. Curriculum. Identity.

1 Doutora em Educação, Socióloga, Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Integrante do GEERGE (Grupo de Estudos em Educação e Relações de Gênero) e GPVC (Grupo de Pesquisa Violência e Cidadania), ambos da mesma universidade.

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1 INTRODUÇÃOO ensino policial é uma questão social que importa? Qual ensino?

Qual educação policial? Como são tradicionalmente configurados os currículos de educação policial? Que relações os alunos-policiais estabelecem entre prática e teoria? Essas seriam dimensões conciliáveis? Na tentativa de responder a esses questionamentos, entre outros, esta análise se valerá da empiria constituída por avaliações feitas por alunos policiais em cursos de atualização a eles destinados, assim como se valerá de relatos de docentes desses cursos, e de fundamentação teórica oriunda do campo de estudos do currículo.

Diversas instituições policiais de ensino brasileiro vivenciaram, durante a década de 1990, inovações curriculares. Tratava-se de pedagogias inovadoras na medida em que tais experiências, além de buscarem mudanças nos conteúdos disciplinares, tinham como proposta estabelecer interlocuções entre o ensino policial, tradicionalmente restrito ao corporativismo institucional, e outros âmbitos da sociedade representados por universidades, movimentos sociais, organizações não governamentais, entre outros. O Curso de Atualização sobre Ações Básicas de Segurança Pública: O Uso da Força e da Arma de Fogo, ocorrido durante a gestão de Olívio Dutra no Rio Grande do Sul (1999-2002), foi parte dessas experiências2. Professores das próprias instituições policiais e professores oriundos de universidades trabalharam com as disciplinas: Abordagem Sociopsicológica da Violência, Saúde Mental, Desenvolvimento Humano e Social, Sociologia da Violência, Ofício de Polícia, Direitos Humanos, Ética e Cidadania, Estado e Segurança Pública. Integraram, ainda, o corpo docente, militantes de diversos movimentos sociais (negros, homossexuais, grupos de hip-hop, travestis e transexuais, mulheres, trabalhadores do MST). Em linhas gerais, essas disciplinas tinham como objetivo fundamental contribuir para uma reflexão teórica sobre o ofício policial.

Participaram do Curso de Atualização sobre Ações Básicas de Segurança Pública: O Uso da Força e da Arma de Fogo servidores oriundos de diversos segmentos da segurança pública, totalizando 142 turmas, com duração de 40 horas-aula3, distribuídas em 26 cidades do estado. Metade das horas-aula foi ministrada consoante à abordagem do campo humanístico supracitado e a outra metade, à realização de treinamento das ações básicas de segurança pública. As questões citadas no início deste texto constituíram parte das discussões que permearam as salas de aula do curso. No bojo das discussões, refletiu-se sobre qual seria o “melhor” currículo para a formação policial, sobre o distanciamento entre a ação policial propriamente dita (a denominada dimensão prática) e a teoria constituída nos planos curriculares. Debateu-se sobre condições de trabalho, assim como sobre o prazer do conhecimento oportunizado pela interlocução entre instituições de segurança pública e entre instituições voltadas para a construção de saberes, em uma clara referência à importância da universidade para a construção de novos modelos de polícia.

2 Para uma análise de maior amplitude sobre essa experiência pedagógica, ver Silva, 2010. 3 As cidades do Rio Grande do Sul (RS) contempladas pela experiência foram: Porto Alegre, Alvorada, Canoas, Santa Maria, Bento

Gonçalves, Gravataí, Bagé, Cachoeira do Sul, Santo Ângelo, Cruz Alta, Taquara, Pelotas, Rio Grande, Guaíba, Passo Fundo, Frederico Westphalen, Viamão, Gramado, Jaguarão, Camaquã, Canela, Vacaria, São Gabriel, São Borja, Osório, Novo Hamburgo.

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2 SOBRE O CURRÍCULOOs sentidos usuais atribuídos ao currículo versam notadamente sobre

planos de estudos e sobre grades de disciplinas com seus respectivos conteúdos (trabalhados em cada grau ou anos escolares de diferentes formações), com a indicação dos respectivos tempos destinados às disciplinas e expressados geralmente em horas/períodos. Nos programas de ensino, consta a relação de conteúdos correspondentes a cada disciplina do plano de estudos. Neles são indicados os objetivos, rendimentos, competências desejadas e atividades sugeridas, a saber, instruções didático-metodológicas para melhor desenvolvimento do programa. Esses são os usos e os sentidos comuns que conformam o que poderíamos denominar de “documentos do ensino”, sejam eles voltados para a escolarização infantil, juvenil e adulta, nos moldes tradicionais, sejam eles voltados para ofícios específicos, como o ensino policial, objeto desse trabalho.

O currículo tem sido recentemente interpretado a partir de três teorizações: tradicionais, críticas e pós-críticas. Essas teorizações distinguem-se pelos conceitos utilizados em suas definições sobre a realidade e sobre conhecimentos tidos como apropriados nas seleções curriculares: o que conhecer? o que ensinar? por que ensinar determinados conteúdos em detrimento de outros? As respostas a indagações como essas, assim como a própria elaboração de indagações, vão depender do paradigma teórico no qual elas se inscrevem.

Na vertente teórica tradicional, em linhas gerais, o argumento fundamental é o de que determinados conteúdos precisam ser transmitidos para a manutenção do ordenamento social. A vertente crítica apostaria mais no aspecto transformador do conhecimento, apontando dimensões ideológicas, reprodutoras da desigualdade social, da exploração entre as classes sociais que vêm, historicamente, configurando a educação. Em uma vertente pós-crítica (também denominada por alguns autores de pós-moderna e/ou pós-estruturalista), discutem-se relações de poder de uma forma ampliada, incluindo aspectos da dominação referentes à raça, à identidade, à etnia, ao gênero e à sexualidade. A teorização pós-estruturalista sobre o currículo também vai problematizar a “concepção ‘realista’ do conhecimento e da ‘verdade’, destacando, em oposição, seu caráter artificial e produzido” (SILVA, 2005). A teorização crítica e pós-crítica distinguem-se da teorização tradicional ao apontarem o currículo como uma construção social profundamente articulada aos poderes hegemônicos de uma dada sociedade.

Diversos estudiosos contemporâneos, críticos e pós-críticos, do campo do currículo (MOREIRA, 1996; SILVA, 2005; FORQUIN, 1996), são unânimes na afirmação de que o currículo é configurado nas relações de poder. Nessa concepção, são enfatizados também os aspectos produtivo, relacional e identitário que envolvem as produções curriculares. Ou seja, longe de se constituírem

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por conhecimentos pautados em uma neutralidade puramente científica e desinteressada, o currículo, os conhecimentos e os saberes que eles veiculam são fundamentais para a construção de sentidos, subjetividades, identidades, visões de mundo, entre outras, sempre em consonância com os poderes hegemônicos em uma dada sociedade. Historiadores, sociólogos, especialistas nos estudos sobre segurança pública são consensuais na compreensão de que as polícias brasileiras, em especial no âmbito de suas formações, talvez sejam as instituições que menos sofreram mudanças (BARREIRA, 2008; COSTA, 2005; MARIANO, 2001). O argumento fundamental é o de que persiste nessas instituições e, consequentemente, em suas escolas de formação, uma visão corporativa, herança de períodos ditatoriais e de exceção que mantém – não raras vezes de forma explícita – uma espécie de fosso intransponível entre polícia e sociedade civil.

Cabe também salientar que a educação policial, tanto a educação civil quanto a militar, caracteriza-se pela manutenção da hierarquia e da militarização, orientadas pelo “direito positivo e formalista, restando pouco espaço para disciplinas propriamente referentes ao ofício de polícia” (TAVARES-DOS-SANTOS, 2009, p. 104). Fazendo referência à formação comportamentalista e autoritária que vem caracterizando, historicamente, as instituições policiais, Guimarães argumenta: “é disponibilizado ao policial um pacote pronto e inquestionável, como se sua atividade fosse previsível, mecânica e pudesse ser enumerada em um manual a ser seguido rigorosamente. Daí decorre uma prática robotizada, caracterizada pela ausência do espaço crítico e de decisão” (GUIMARÃES, 2001, p. 103).

Pesquisas sobre a formação policial da atualidade (SENASP/ANPOCS4, 2010; TAVARES-DOS-SANTOS, 2001, ALBUQUERQUE, 2001) apontam para a permanência, nas academias de Polícia Militar, de uma espécie de currículo implícito que busca celebrar tempos passados de poder e de força quase que absolutos das polícias sobre o restante da sociedade. Soma-se a essa celebração identitária os efeitos de um sensacionalismo vindo dos canais de comunicação de massa que transformam “atos de violência extraordinária em violência ordinária, com exaltação do policial repressivo ou do policial herói, o que despreza toda a relevância social do ofício policial e, principalmente, as funções de prevenção da criminalidade, de investigação policial de ocorrências e de responsabilidade social dos policiais” (TAVARES-DOS-SANTOS, 2001, p. 30). Forquin, a partir de uma abordagem crítica, argumenta que o currículo também pode designar conteúdos não prescritos de forma oficial no programa. O currículo pode designar “ao custo de uma ampliação ainda maior de seu sentido, o ‘conteúdo latente’ do ensino ou da socialização escolar” (FORQUIN, 1996, p. 188), a saber, competências desejadas, disposições adquiridas, nas palavras desse autor, por “impregnação, familiarização ou inculcações difusas”. Assim, não causa estranhamento, por exemplo, a verificação de que esse grupo profissional seja percebido por vários setores da sociedade, como autoritário, arbitrário e violento. Tais comportamentos estariam “naturalizados” nos currículos implícitos de suas formações.

4 Ver Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública, SENASP/ANPOCS. Disponível em: <http://www.segurancacidada.org.br/>.

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Destaca-se, ainda, que tanto a perspectiva crítica quanto os estudos pós-críticos nos permitem visualizar, nas práticas curriculares destas instituições, uma ausência desse espaço crítico de que nos fala Silva (2005, p.16) ao argumentar, por exemplo, “que nenhuma teoria é neutra ou desinteressada, mas que está, inevitavelmente, implicada em relações de poder”. O contexto educacional supracitado inscreve-se, portanto, no que se convencionou chamar de teorias tradicionais do currículo. Nessa vertente, adota-se “mais facilmente o status quo, os conhecimentos e os saberes dominantes” (SILVA, 2005, p. 14). Compreende-se, assim, que conteúdos curriculares que visam a adaptação aos valores, aos comportamentos e às normas tradicionalmente tidas como aceitáveis e desejáveis vêm fundamentando a formação policial.

3 SOBRE A EXPERIÊNCIA DE UM CURRÍCULO AMPLIADOCada edição do Curso de Atualização sobre Ações Básicas de Segurança

Pública: O Uso da Força e da Arma de Fogo buscou fornecer uma instrumentalização teórica e prática, por meio da abordagem de temáticas afins, escritas em três grupos: Desenvolvimento Humano e Social, Fundamentação Teórica e Ações Básicas da Segurança Pública. Em relação à proposta do curso, o primeiro grupo temático voltava-se para o estudo das correlações entre as vivências profissionais e o desenvolvimento pessoal e social, visando à sensibilização dos policiais em relação aos princípios de solidariedade, cooperação, complementaridade e corresponsabilidade entre todos os servidores da Secretaria da Justiça e da Segurança – SJS/RS (Brigada Militar, Polícia Civil, Superintendência dos Serviços Penitenciários e Instituto Geral de Perícia).

No segundo grupo, Fundamentação Teórica, abordou-se o ofício de polícia no Estado Democrático de Direito, elementos de sociologia da violência, ética policial, normas internacionais de proteção dos Direitos Humanos sobre o uso da força e da arma de fogo, princípios gerais de Direitos Humanos e segurança no trabalho. No terceiro grupo temático, realizou-se revisão e atualização de técnicas e práticas policiais de acordo com a normatização e princípios de Direitos Humanos; reeducação da prática de tiro e de técnicas de segurança – fundamentos, decisão de tiro; abordagem a pessoas a pé e em veículos; algemação e condução; e medidas de autodefesa.

Pode-se afirmar, a partir dos dados colhidos, que a comunidade policial atendida nesse projeto pedagógico, reagiu de forma ambivalente à proposta do curso. As vozes ouvidas ora eram de queixas e desconfianças de todas as ordens — salário, hierarquia, precariedade das condições de trabalho, desprestígio e suposta perseguição da classe pela imprensa e pelo frequente desrespeito aos Direitos Humanos — ora eram de prazer pela liberdade de expressão, pela valorização do trabalho policial e pela qualificação dos professores, experimentados naquele

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ambiente de sala de aula. Tal compreensão foi registrada em fontes diversas: na monografia de Germano Ehrhardt (2002), na avaliação padrão, realizada pelo Departamento de Desenvolvimento de Recursos Humanos – SJS/RS e nas avaliações solicitadas pelos professores das disciplinas, que, por seu turno, também perceberam essas opiniões ambivalentes dos alunos em comentários espontâneos.

Ehrhardt, mediante questionário junto a alunos participantes do Curso Integrado do Uso da Força e da Arma de Fogo, no período de 2000 a 2002, em 26 cidades do estado, classificou as respostas5 em duas categorias: benefícios e preocupações. É possível verificar o cruzamento de pontos de vista dos entrevistados acerca dos objetivos, assim como de todo processo de realização dos cursos. Dentre os benefícios apontados pelos alunos policiais, destaca-se a integração das formas de trabalho entre os órgãos de segurança pública: Brigada Militar, Polícia Civil e a Superintendência dos Serviços Penitenciários (SUSEPE). Por meio dos cursos também foi possível, para algumas pessoas, segundo os policiais, desmistificar hierarquias, assim como obter uma visão mais realista das diversidades existentes nos diferentes órgãos e entre os servidores. Ou seja, foi possível questionar ações tradicionalmente respaldadas pelas posições hierárquicas que aparentemente não dariam aos agentes possibilidades de escolha ou exercício do livre arbítrio.

O autoconhecimento e o entendimento de diferentes realidades internas da instituição — privilégios, interesses por vezes conflitantes — poderiam contribuir, segundo os alunos policiais, para uma melhor disciplina do uso da força. Tais considerações sugerem um desconhecimento, por parte de alguns policiais, não só das prerrogativas de seu ofício, mas também da função da instituição segurança pública da qual são servidores. Nesse sentido, de acordo com suas avaliações, o curso foi esclarecedor: os conteúdos curriculares das disciplinas humanísticas promoveram estes espaços de debates e reflexões críticas acerca das instituições policiais. A disciplina Sociologia da Violência6, por exemplo, buscou oportunizar aos alunos policiais um entendimento mais aprofundado dos fenômenos da violência e da criminalidade, para além do senso comum, sensibilizando-os para uma ação mais voltada à promoção da cidadania plena e à prevenção da violência. Foram realizadas leituras acerca dos conceitos de violência e criminalidade, a partir de trabalhos feitos por especialistas da área. A disciplina promoveu trabalhos em grupos, discussões, análise de filmes, entre outras atividades. A disciplina Ofício de Polícia, Ofício de Estado: desafios à construção da segurança cidadã, por seu turno, buscou discutir os conceitos de democracia, cidadania e segurança pública, situando o papel da polícia na construção da ordem democrática, procurando analisar os ofícios dos institutos

5 Essas respostas foram obtidas por amostragem de um universo de 2.960 participantes, divididos em 148 turmas no período referido.6 Plano de Ensino das disciplinas Sociologia da Violência e Ofício de Polícia, Ofício de Estado: desafios à construção da segurança cidadã.

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policiais do Estado, visando à constituição de elementos e propostas para a construção da segurança cidadã. Para tanto, os alunos tiveram acesso às leituras de autores como Comparato (1989) e Muniz, et al. (1999), realizaram discussões e atividades escritas. Outras disciplinas, como Direitos Humanos e Movimentos Sociais, promoveram discussões polêmicas ao ministrarem temáticas acerca, por exemplo, do racismo, das desigualdades de gênero e das sexualidades desviantes da norma heterossexual, do aborto, das religiões.

Foi possível perceber, entretanto, que houve uma grande resistência, por parte de alunos policiais, a esse novo currículo. Essa resistência pode ser verificada em algumas posturas claramente hostis dos alunos frente ao estudo de temáticas consideradas inapropriadas para as suas formações, por exemplo: direitos humanos e estudos de gênero e de sexualidades. Por outro lado, outros alunos saudaram esses novos conteúdos, o que permite a avaliação de que o currículo é um campo de disputa, é um campo político, ele ocupa o “centro de um território contestado” (SILVA, 2005, p. 16). Também é possível afirmar que a ambivalência no acolhimento a esse novo currículo pode ser compreendida como uma espécie de ressonância das necessidades dos alunos policiais em garantir um espaço de discussão para suas experiências vividas. Um espaço nos currículos de formação policial.

É curioso observar que, embora algumas novas temáticas propostas pelos currículos, em especial as de cunho humanístico, tenham sido apontadas como benéficas por alguns alunos nas avaliações, os professores relatam que os debates sobre essas temáticas não ocorreram de forma tranquila ou consensual; pelo contrário, havia uma tensão subjacente aos debates. A tensão poderia ser provocada, como veremos no exemplo a seguir, tanto pela obrigatoriedade do uso da farda e da arma em sala de aula, quanto pela disputa de hierarquia de poder. A fim de atenuar o mal-estar causado por professores tidos como estranhos à instituição policial (afinal, em um ambiente fortemente corporativo pessoas de fora da instituição são vistas como estranhas, ou mesmo, como invasoras), uma professora relatou uma exitosa estratégia por ela utilizada:

Foi feito o convite, eles depositaram as armas no chão. Aquilo, para mim, foi altamente simbólico. Estava entre uma possibilidade de discussão num entre lugares, no meio, e as atenções estavam centralizadas em mim. Eu não tenho nenhuma familiaridade com armas, então quer dizer, era um foco de tensão... e estava disposto, colocado ali, era tudo aquilo que a gente queria discutir, o uso da arma de fogo e da força. Eu notei que eles compreenderam isso. Eles estavam brigando pela fala, não pela arma, pela força, ainda que a fala fosse violenta. Não era um tiro. Por mais insatisfeitos que estivessem, eles sabiam que o espaço da sala de aula estava proporcionando isto. Ali foi possível, foi um acontecimento.

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4 UM CURRÍCULO “TÉCNICO”A revisão e a atualização de técnicas e práticas policiais, trazidas

pelas disciplinas do grupo temático Ações Básicas da Segurança Pública, foram positivamente destacadas pelos alunos. Esses currículos ministraram conhecimentos relativos, por exemplo, à abordagem policial e ao conhecimento do equipamento, da mecânica ou do funcionamento adequado das armas de fogo. Do ponto de vista desses policiais, essas reciclagens periódicas poderiam contribuir para a diminuição do número de acidentes de trabalho. Vale observar que, na avaliação desses alunos, as disciplinas técnicas teriam proporcionado 100% de aproveitamento. Nessas disciplinas, eles tiveram aulas de tiro, de abordagem, de algemação, de entrada em edificações, de uso do armamento e de técnicas de atualização no uso da força. Cumpre argumentar que essa predisposição de uma maior aceitabilidade de conteúdos concentrados em questões técnicas na feitura propriamente dita, na realidade concreta, na ação, no colocar o pé no barro, como dizem alguns professores do ensino fundamental, não é um privilégio dos servidores da segurança pública. Profissionais de outras áreas como saúde e educação também se ressentem de um grande distanciamento, por eles percebido, entre teorizações de cunho filosófico e/ou sociológico e o dia a dia de suas experiências de trabalho. Assim, a denominada dimensão prática, a técnica, o “que fazer” concretamente é celebrado nas análises de seus respectivos ofícios.

Assinalando sempre o grande aproveitamento das aulas práticas, os alunos policiais recomendaram aos professores instrutores uma ênfase maior no estudo de situações inesperadas, por exemplo, quando o delinquente não obedece às ordens policiais. Foi questionado qual seria a ação mais adequada diante de uma desobediência ou o que fazer quando uma situação foge do controle. Da mesma forma, os alunos reivindicaram o estudo de situações simuladas de abordagem em matas, a menores infratores, a pedestres e a veículos. Além disso, solicitaram o aprofundamento em técnicas de imobilização, de aperfeiçoamento da defesa pessoal, de uso do bastão, de habilidades com o manuseio de pistolas, de uso e de prática do tiro, de flagrantes. Também exigiram estudos sobre a legalidade da prisão em flagrante, sobre o esclarecimento do Código Penal e do Estatuto da Criança e do Adolescente, sobre conhecimentos básicos em perícia, sobre a preservação do local do crime, sobre instruções referentes à tomada de pontos de drogas, sobre conhecimentos em drogas. Os materiais visuais como fotos ilustrativas e filmes, ao invés da veiculação de situações abstratas e distantes da “realidade local”, deveriam versar, por exemplo, sobre táticas policiais de resgate, e a posterior análise dos acontecimentos deveria ser feita pelos próprios alunos.

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Embora as disciplinas técnicas tenham sido amplamente elogiadas nas avaliações escritas, os relatos dos professores técnicos põem em evidência situações de resistência por parte de alguns alunos em relação aos conteúdos propostos. Policiais mais jovens e recém-ingressados na instituição também fizeram referência à oposição dos colegas com mais tempo de serviço frente às novas técnicas apresentadas no curso. Os alunos resistentes argumentaram que já as praticavam no seu dia a dia, ou seja, sabiam atirar, abordar e conter o elemento. Teria sido difícil convencê-los da necessidade do uso de técnicas atualizadas, assim como conduzi-los à reflexão sobre determinadas ações rotineiras e incorretas, frequentemente relatadas em piadinhas, tais como: atirar primeiro, perguntar depois; mandato de busca é pé na porta; já vou te dar os teus direitos! Alguns alunos policiais manifestaram preocupação com a postura desses colegas: aqueles que não aceitam que o mundo mudou deveriam ser os primeiros a realizar Cursos de Atualização. Ou seja, a aparente uniformidade que estaria presente nesses alunos, nessas disciplinas, mostrou-se conflitiva e divergente, apontando para o caráter ficcional dessa preponderância das técnicas frente às outras disciplinas.

5 UM CURRÍCULO “HUMANO”Questionamentos referentes às sociedades contemporâneas,

transformações tecnológicas, preconceitos, intolerâncias, desigualdades etc., temas estes abordados por meio de debates ocorridos, especialmente, nas disciplinas humanísticas, também foram destacados pelos alunos. Para ilustrar, tomemos o relato de uma professora7 sobre a fala de um aluno policial que trabalhava na instituição há mais de 15 anos e estava afastado dos bancos escolares há mais de 20. Ele disse sentir-se importante ao voltar para uma sala de aula. Tratava-se de uma oportunidade ímpar encontrar-se em um ambiente destinado, em sua opinião, somente aos jovens, aos universitários e aos doutores.

O curso também oportunizou uma reciclagem de conhecimentos sobre os fundamentos da segurança pública e da legislação vigente. Todos os ensinamentos ministrados, de acordo com alguns alunos, poderiam ser úteis, principalmente em benefício da comunidade, a qual terá uma polícia mais técnica e totalmente responsável, na medida em que, seguindo tais ensinamentos, a legislação seria mais bem aplicada. Foram tidos como esclarecedores, ao focalizar a relação entre a função do agente de segurança pública e a defesa da cidadania, os conhecimentos sobre outros significados dos Direitos Humanos, trazidos não pelo senso comum — Direitos Humanos são defensores de bandidos —, mas sim pela História. Dessa forma, os alunos puderam compreender que o significado dos Direitos Humanos não se restringe aos reconhecidos grupos da sociedade brasileira contemporânea.

7 Relato de entrevista de uma professora das Humanísticas (02.05.2006).

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Apesar de o curso ter trabalhado concomitantemente à confirmação e à reconstrução de alguns conceitos tradicionais acerca da função policial, houve muitos protestos quanto ao tratamento dado ao tema na sua relação com os Direitos Humanos. Certos alunos demonstraram-se hostis devido ao sentimento de que o seu profissionalismo, dedicação e conduta estariam em xeque — entendimento ratificado pelos professores. Há relatos de professores sobre reclames calorosos feitos por alunos em aula: “Eu, como policial, me sinto ofendido em relação ao que está sendo dito aqui, as pessoas não sabem o que é ir para casa com medo, a sociedade não reconhece o devido valor da polícia”8.

Outro policial afirmou: “Há uma visão por parte dos professores de que o policial não sabe discernir sobre o certo e o errado, que ele apenas cumpre ordens legais ou não, sem se preocupar com o que é justo”9.

O tempo dedicado, especialmente, para as aulas sobre técnicas de abordagem foi considerado insuficiente, já que elas seriam fundamentais no trabalho do policial. Eles verificaram que havia pouca munição para a instrução de tiro e insuficiência das horas-aulas dedicada a essa instrução. Também houve alguns reclames acerca do pouco tempo oferecido às disciplinas teóricas: ofício de polícia, sociologia da violência, desenvolvimento social e humano etc. Os alunos policiais argumentaram acerca da importância dos temas trabalhados nessas disciplinas e também sobre o fato de que elas poderiam ter sido mais bem aprofundadas por meio de uma duração de tempo maior.

Muitas questões conflitivas e constitutivas da rotina de trabalho foram tratadas rápida e superficialmente. Disse um aluno: “Em minha opinião, a carga horária das disciplinas humanas deveria ser aumentada, pois com esses conhecimentos o agente da autoridade compreenderia melhor o delinquente que, apesar de tudo, é um ser humano.”

Posturas ambivalentes e de clara oposição sobre a importância, a utilidade e a aplicabilidade dos conteúdos propostos pelas humanísticas foram amplamente verificadas. Na mesma medida em que elas foram saudadas, também foi afirmada a necessidade de menos Filosofia neste curso, assim como Sociologia e Psicologia. A doutrina, foi dito, deveria ter sido ministrada por pessoas oriundas do campo policial ou por pessoas mais identificadas com essa atividade. Além disso, ela ocupou um tempo excessivo, bem mais que a prática. Segundo eles, a Psicologia deveria ter sido difundida de outra maneira, chegando a ser sugerido, por exemplo, terapias de grupo.

De acordo com os alunos policiais, as aulas de Psicologia deveriam ser mais voltadas aos problemas dos policiais militares, diariamente sobrecarregados com os problemas alheios e anseios não atendidos. Um aluno afirmou:

8 Relato de professor entrevistado no dia 07.10.2003.9 Relato de professor entrevistado no dia 12.07.2004.

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Não foram abordadas as reais condições de trabalho dos policias, tanto psicológicas quanto sociais, falta um acompanhamento psicológico por parte dos integrantes da área da segurança. Poderia ser mais trabalhado o aspecto psicológico do policial, como o estresse, por exemplo, cujo alto nível não é reconhecido, nem avaliado pelo Estado.

A reivindicação de uma maior dedicação para as disciplinas técnicas, concomitante a uma diminuição do que foi nomeado por muitos alunos de lavagem cerebral foi uma constante. Manifestações desse conteúdo também se destacaram em diferentes avaliações dos cursos, inclusive aquelas feitas diretamente para os professores ministrantes das disciplinas humanas, na forma escrita ou oralmente, muitas vezes, em plena sala de aula. Um aluno considerou preocupante saber que muito do que se aprende funciona mais na teoria, já que na prática a realidade é outra. Todos sabem que muitas vezes se tem que agir em desvantagem e a teoria não é colocada, não funciona na prática. Os professores, de acordo com essas críticas, deveriam ser mais bem preparados, pois alguns instrutores, especialmente da parte teórica, pareciam nunca ter tido contato com a realidade do policiamento, na medida em que só utilizaram nas suas reflexões estatísticas, teorias abstratas, palavras difíceis, confusas e distantes do que realmente importa para o ofício da segurança pública. Nesse sentido, afirmou-se que faltava qualificação e experiência àquelas e àqueles professores das humanas, talvez considerados por esses avaliadores “demasiadamente humanos” para a experiência policial.

6 AULAS “DIDÁTICAS” E IMPORTANTESQuanto à didática e à metodologia do curso, os alunos manifestaram

elogios. A metodologia adotada despertou o interesse e desenvolveu uma unidade de pensamento e doutrina entre os profissionais da segurança pública. Além disso, os professores foram considerados de alto nível, em primeira instância, pelas suas titulações, em segunda, pelas suas capacidades em ministrar aulas, cujos temas estavam atualizados e relacionados com a realidade e o cotidiano dos profissionais de segurança pública. Sentindo-se valorizados, os alunos reivindicaram inclusive a presença de profissionais nunca outrora trazidos até eles, como sociólogos, promotores e juízes.

Por meio das discussões e análises apresentadas durante o curso, foi confirmado um maior entendimento de determinadas atitudes, tanto de policiais quanto de infratores. Os erros cometidos no cotidiano do policial foram discutidos, o que representou, para os alunos, uma preocupação da Secretaria da Justiça e Segurança – SJS/RS, considerada imprescindível para a elevação da autoestima do policial. As avaliações continham ainda o registro de um ambiente (de aula) percebido como descontraído, na medida em que se possibilitou uma

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aproximação de diferentes representantes das hierarquias, não só da Polícia Militar, mas também da Polícia Civil, do Sistema Penitenciário, do Instituto Geral de Perícias e de outros órgãos da SJS/RS: cabos, soldados, agentes penitenciários, inspetores, sargentos, capitães, delegados etc. Um aluno-policial afirmou que a presença em sala de aula do escalão superior é fundamental para que se conheçam as dificuldades dos subordinados.

Avaliando os conteúdos trazidos pela Sociologia da Violência, alguns alunos queixaram-se da utilização de materiais pedagógicos considerados por eles desatualizados. A própria história da criminalística de Porto Alegre utilizou como referência a década de 1980. O material de apoio deveria ser mais atualizado, principalmente no que diz respeito às estatísticas. Os filmes, documentários expostos, seguidos de debate, foram considerados ultrapassados e condizentes com “outras realidades”, especialmente o documentário de João Moreira Sales sobre violência no Rio de Janeiro. Por esses motivos, parte dos alunos entendeu que não se evoluiu em relação ao que já se tinha conhecimento, principalmente quanto aos aspectos abordados de ordem política e social, tendo em vista que essa é realidade do dia a dia do policial. A preocupação com as causas da violência e da criminalidade, demonstrada pelos professores teóricos (humanísticos) foi considerada excessiva e repetitiva:

Sabemos quais são as causas, porém necessitamos de mais conhecimento, mesmo que teórico, nas áreas de combate ao crime. O material didático trata muito dos deveres e obrigações dos aplicadores da lei e não coloca muita coisa sobre seus direitos.

As avaliações, é preciso reconhecer, possibilitaram que queixas e solicitações de diferentes ordens pudessem ser ditas e escritas pelos alunos policiais. Algumas não muito claras, como, por exemplo, as solicitações de que os professores/instrutores não deveriam estar envolvidos em atividades paralelas e de que eles deveriam dedicar-se exclusivamente às aulas para que os alunos fossem mais bem atendidos, proporcionando-lhes assim uma melhor aprendizagem e uma completa assimilação dos objetivos das disciplinas. Outras, no mínimo curiosas, como a solicitação de cursos de etiqueta, de como atender polidamente o público. A questão ambiental também foi lembrada, já que a temática da ecologia criminal e das técnicas eficientes de preservação a todas as formas de vida estariam na ordem do dia. Os alunos também se queixaram sobre o material de proteção que, de acordo com suas opiniões, deveria ser dado a cada indivíduo para seu uso pessoal e sobre a pouca execução de tiros com pistolas 38 e PT 40, nas aulas práticas, obviamente. Esses cursos possibilitariam a correção de pequenas falhas do cotidiano.

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Ao considerar esses aspectos, foi sugerida uma maior abrangência e extensão dos conteúdos programáticos, diminuindo a carga horária diária que, em alguns casos, ficava em torno de 12 horas (o que fazia com que as aulas se tornassem momentos extremamente cansativos, apesar de interessantes). A extensão das aulas, com menos concentração de horas diárias e em um maior número de dias, tornaria o curso mais produtivo, proveitoso e agradável.

Em oposição ao que foi afirmado em outras avaliações, para alguns alunos, faltou a presença de representantes de todos os setores da SJS/RS. Eles argumentaram que o número de vagas para colegas da Brigada Militar deveria ser maior, visto terem sido abertas somente poucas vagas por batalhão, atingindo assim um pequeno público. Também foi reivindicado que os cursos fossem facultativos, ou seja, que os alunos fossem convidados e não escalados, como ocorreu. O curso deveria atender a todos os servidores; as turmas deveriam ser mais mescladas, ou seja, inspetores, delegados, soldados, sargentos e oficiais deveriam também compô-las, haveria chance de troca de experiências e as ações seriam mais uniformes.

Poderia ter havido uma maior participação dos oficiais, a fim de acrescentarem algo a mais no conhecimento adquirido. Houve pouca participação de funcionários e chefes de serviço e investigação. Os superiores deveriam participar ao menos de uma [capacitação?].

Essas considerações certamente colidem com aquelas que saudaram a presença de uma diversidade de servidores na sala de aula. Pode-se entender que em algumas regiões a diversidade hierárquica da instituição se fez presente nas salas de aula, já em outras não.

A precariedade das condições de trabalho foi amplamente manifestada pelos alunos, não só nas avaliações, mas também em diversos momentos e lugares, nas salas de aula, nos corredores e em outros ambientes da instituição. A falta de materiais de apoio e de infraestrutura era uma queixa constante, inclusive apontada por alguns como uma dificuldade para que houvesse participação nos cursos. Tratam-se de duas queixas: a primeira referente às condições de trabalho, a segunda referente às dificuldades materiais impeditivas de busca de qualificação e atualização. É interessante perceber que ora eles se referiam à primeira, ora se referiam à segunda, quase que na mesma medida.

Também reclamavam da falta de armamento adequado, tanto para o treinamento, quanto para o uso diário, do não pagamento das horas de curso como horas de serviço, das despesas extras com alimentação e da menor remuneração durante o curso. Apesar de bom, eles alegaram que o curso fez com que muitos policiais se sentissem desmotivados e, além disso, desencorajou futuros alunos. O uso de tantas técnicas como as que foram ensinadas no curso se fazem necessárias; no entanto, é preciso preocupar-se em equipar quem

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estiver na linha de frente, para que esse possa exercer um trabalho eficaz. Para atender a essas demandas, os cursos deveriam disponibilizar transporte, alojamento e alimentação. De forma ambígua, também foi afirmado que os funcionários da segurança pública estão equipados, porém mal treinados e mal instruídos. Foi sugerido veementemente que, após os cursos, deveriam vir também melhorias nas condições de trabalho: novos equipamentos, viaturas e armamentos. Além disso, deveria haver menos burocracia nos procedimentos. A participação e a qualificação do profissional em cursos como esse deveriam contar para promoção na carreira. Esses comentários são pertinentes para se ter um conhecimento mais geral das reações dos policiais/estudantes, assim como

do contexto desse lugar pedagógico.

Como se pode perceber até o momento, os depoimentos ambivalentes são uma evidência constitutiva dessa experiência. Cabe ressaltar a importância atribuída pelos alunos policiais às informações fundamentadas em pesquisas acadêmicas, como por exemplo, a avaliação da sociedade brasileira acerca da segurança pública. Segundo eles, tais pesquisas poderiam ser “transmitidas” para outros colegas, em especial para aqueles atuantes na linha de frente, contribuindo assim para um tipo de ação policial de acordo com a legalidade e a realidade atual.

7 CONSIDERAÇÕES FINAISO ensino policial é uma questão social de fundamental importância.

Qual ensino? O ensino pautado em conhecimentos que objetivam discutir, redimensionar, repensar as configurações tradicionais dos currículos de educação policial, à luz das mutações e dos movimentos das sociedades contemporâneas. Currículos voltados à construção de outros modelos de polícia, afinados com pedagogias críticas e democráticas, opostas ao ensino arcaico que, apesar de muitas inovações, ainda se mantém. É necessário reconhecer, todavia, que qualquer projeto que vise transformar, constituir outras formas de atuação profissional, criar, criticar, abrir espaço para o novo, inventar, ir além do conhecido, passa, necessariamente, pelo enfrentamento de tradições, estranhamentos, desconfianças, “dogmas, culturas e mentalidades enraizadas há séculos” (MARIANO, 2001, p. 49). Esse contexto foi claramente delineado nas avaliações orais e escritas feitas sobre o Curso de Atualização sobre Ações Básicas de Segurança Pública: O Uso da Força e da Arma de Fogo. Ditos e escritos dos depoentes, alunos policiais e professores, contribuintes fundamentais para a feitura desse texto. Os relatos fizeram compreender, em primeiro lugar, que todo projeto curricular inovador vai encontrar resistências.

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O currículo não consiste em uma mera seleção de conteúdos, escolhidos de forma desinteressada e/ou de interesse puramente voltado ao progresso da ciência. Quando o professor seleciona determinados conteúdos, subjazem a ela concepções de mundo, interesses, relações de força, representações, significados, ideologias, busca de consensos e hegemonia. A escolha de conteúdos implica objetivos, metas que se pretendem alcançar, portanto, cabe o questionamento (sempre em aberto) sobre quais seriam as implicações de determinados conhecimentos.

Um currículo tradicional, embora proclame neutralidade, está fincado em uma tradição que opera com elementos instituídos, subjetivos, históricos e culturais. Cabe à tradição “organizar a experiência de forma a transmitir, além do conhecimento, um conjunto bem definido de valores” (SILVA, 2005, p. 53), valores tidos como permanentes e inabaláveis. Sempre foi assim, por que mudar? (questionou um aluno). Essa fala, assim como outras coletadas no trabalho de campo, permite compreender, a partir desse viés argumentativo, as resistências de alguns alunos policiais à implantação de currículos críticos e reflexivos, como o que foi proposto pelas disciplinas humanísticas. Ou seja, o rompimento com o lugar comum, a fratura do já conhecido e experimentado representava uma ameaça à tradição solidamente constituída e celebrada nessas instituições. Além disso, o conhecimento, os conteúdos trabalhados, no caso, conteúdos concernentes à formação policial, não podem ser pensados (argumentam estudiosos pós-estruturalistas) como exteriores às identidades, às subjetividades implicadas: “o conhecimento que constitui o currículo está inextricavelmente, centralmente, vitalmente, envolvido naquilo que somos, naquilo que nos tornamos” (SILVA, 2005 p. 15). A nova proposta curricular, crítica e reflexiva, e, em outros momentos, afinada com os debates pós-estruturalistas, provocou desconforto em alguns alunos policiais, talvez porque suas identidades de policiais, no que se refere especialmente às suas atuações, tenham sido colocadas em questionamento: por que o uso excessivo da força? qual o papel das polícias em uma sociedade democrática? a violência seria o único meio de resolução dos conflitos?

Os temas da raça, da etnia e das “sexualidades desviantes” ganharam destaque nessa proposta de ensino inovadora. Professores abordaram conteúdos sobre rituais, sobre datas comemorativas, sobre mitos que configuram identidades nacionais e regionais, apontando aspectos, nesses acontecimentos, que buscam privilegiar determinadas identidades sociais em detrimento de outras. Por meio da abordagem pós-estruturalista, professores questionaram as noções de “verdade”, de política, de família, de religião, argumentando sobre os estreitos laços entre o conhecimento que se constrói acerca dessas noções e as relações de poder que permeiam processos societários. Relativizar noções de “verdade”, demonstrar os inúmeros binarismos que configuram os currículos, e que sempre colocam

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alguns sujeitos em desvantagem a outros, se constituíram em experiências de ensino acolhidas e/ou estranhadas pelos alunos policias: humano/desumano; criança/adulto; normal/patológico; homem/mulher; bem/mal; branco/negro; heterossexual/homossexual; herói/bandido, entre outros.

A disjunção entre os conhecimentos teóricos trabalhados no curso e a prática do ofício policial é um aspecto destacável nas análises dos depoentes. Essa queixa não é algo que o campo acadêmico desconheça. Diferentes atores sociais, oriundos de outros setores como saúde e educação, também costumam fazer referência ao grande distanciamento, detectado por eles, entre a produção acadêmica (o que dizem especialistas, pesquisadores, intelectuais) e o dia a dia das atividades “reais” desses atores. A experiência “concretamente” vivida parece não encontrar ressonância nos textos acadêmicos. Sem entrar no debate sociológico e/ou filosófico de que esse é um falso dilema, talvez o mais importante, no caso em estudo, seja a inclusão nos currículos que se pretendam inovadores desses aspectos experienciais do ofício policial. Que se construam territórios pedagógicos nos quais a vivência, os conflitos, as vitórias, as dificuldades enfrentadas por esses profissionais encontrem espaço dialógico para a troca, para a discordância, para a visibilidade de seus saberes.

Os alunos policiais manifestaram o desejo de uma continuidade daquela experiência, o que pode parecer inicialmente uma espécie de articulação contraditória entre a desconfiança acerca dos “reais” objetivos, da utilidade e da validade do projeto educacional da SJS/RS e entre o prazer do conhecimento, do debate, da exposição de ideias, por ela proporcionado. Assim, apesar da quase “onipresença” das queixas em todos os momentos possíveis, muitos deles felicitaram essa iniciativa pedagógica, afirmando a necessidade de sua multiplicação e aprimoramento. Foi pedido aos professores para que todas as ideias e sugestões de melhorias fossem levadas às autoridades responsáveis pelo planejamento da Segurança Pública, para que esses se comprometessem em levar aos dirigentes dos órgãos de segurança os assuntos discutidos nas aulas, de uma forma construtiva e crítica. Foi solicitado que o governo continuasse oferecendo oportunidades como aquelas em todas as regiões do estado para o policial, a fim de que, tendo ele necessidade, houvesse à sua disposição um curso, para melhor orientá-lo em todos os aspectos e as áreas que estiverem diretamente ligadas à sua profissão. Também foi solicitado que esse tipo de curso se tornasse sistemático, mais frequente, contínuo, oportunizando o aperfeiçoamento também aos policiais de cidades menores, que dificilmente têm oportunidades como essas. O governo, como foi reivindicado, deveria oferecer treinamentos constantes para o policial estar sempre preparado para situações de risco, cuja lida é aprendida no dia a dia. Dever-se-ia implantar outros novos cursos nos mesmos moldes e desenvolvê-los anualmente com participação dos alunos em diversas etapas, básicas e avançadas. Que não se feche o ciclo de todos os conhecimentos e instruções; a repetição do curso é essencial.

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Formação policial e práticas institucionais das Delegacias da Mulher em Sergipe: entre a capacitação e a educação

continuada1

Maria Teresa Nobre2

Resumo: O artigo descreve e analisa duas experiências de formação policial realizadas em Sergipe, voltadas ao contingente policial das delegacias da mulher, em 2002. Trata-se de um relato de experiências pioneiras, enfatizando o contexto sociohistórico no qual, pela primeira vez em Sergipe, se problematizou e se viabilizou, por meio de programas de intervenção no campo da formação policial, o atendimento policial das DEAMs às mulheres em situação de violência. A discussão aqui apresentada é resultado da pesquisa realizada por meio do Concurso Nacional de Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública e Justiça Criminal, realizado pelo Ministério da Justiça/SENASP, em 2005. O artigo discute as especificidades das duas experiências, que se estabeleceram a partir de concepções diferenciadas sobre educação, modos de intervenção institucional e relação polícia-sociedade. A pesquisa identificou as singularidades, as contribuições/impasses de cada experiência à formação de policiais que lidam com violência de gênero e apontou algumas questões, problematizando os processos de formação policial em geral e de formação policial em particular, como política de enfrentamento à violência contra a mulher.

Palavras-chave: Delegacias da mulher. Formação policial. Violência contra a mulher.

Abstract: The article describes and analyzes two experiences of police training conducted in Sergipe , aimed at the police contingent of women’s police stations in 2002 . This is an account of pioneering experiences , emphasizing the socio-historical context in which , for the first time in Sergipe , is problematized and made possible through intervention programs in the field of police training, the police attention at DEAMs to women in situations of violence . The discussion presented here is the result of research conducted through the National Competition for Applied Research in Public Security and Criminal Justice , held by the Ministry of Justice / SENASP in 2005 . The article discusses the specifics of the two experiments , which were established from differentiated conceptions of education, institutional modes of intervention and the relationship between police and society. The research identified singularities , contributions / impasses of each experiment to training the police who deal with gender violence and pointed some issues, exploring the processes of police in general and particullally in training the police, as a political coping against violence against the woman .

Keywords: DEAM. Police training. Violence against woman.

1 Participaram da realização da pesquisa a Profa. Lianna de Melo Torres, do Departamento de Educação da UFS, a quem devemos muitas das reflexões políticas e pedagógicas aqui apresentadas, além das psicólogas: Ana Cristina Costa Araújo, Jacqueline Monte de Hollanda e Michele de Freitas Faria de Vasconcelos, às quais registramos nossos agradecimentos.

2 Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará e Professora Associada do Curso de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade Federal de Sergipe.

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1 INTRODUÇÃOEste artigo descreve e analisa duas experiências realizadas em Sergipe,

desenvolvidas junto a policiais civis (delegadas, agentes de polícia, investigadores) e técnicas lotados nas delegacias da mulher de Sergipe, que eram apenas duas delegacias à época da pesquisa realizada para o Ministério da Justiça, em 2005: uma em Aracaju, capital sergipana e outra em Itabaiana, no interior do estado. Tais experiências se constituíram como duas iniciativas pioneiras dirigidas à formação policial específica no trato da violência de gênero no estado: a primeira, desenvolvida pela Comissão de Direitos Humanos da Universidade Federal de Sergipe (CDH/UFS), formatada como Grupos de Discussão e Reflexão de Práticas Institucionais, realizada entre 2001 e 2002, e a segunda, pelo Ministério da Justiça em parceria com outra universidade federal de um estado vizinho, por meio de um grupo de estudos de gênero, formatada como Capacitação para Policiais que atuam com Mulheres em Situação de Violência, realizada em 2002. Ambas tiveram como objetivo geral contribuir para a formação dos quadros policiais, visando melhor qualidade no atendimento à população e maior resolutividade do serviço. Entretanto, algumas especificidades se verificam nas duas experiências, a partir de uma concepção diferenciada sobre educação, modos de intervenção institucional e relação polícia-sociedade. A pesquisa identificou essas singularidades e as contribuições/impasses de cada experiência à formação de policiais que lidam com violência de gênero e apontou algumas questões, problematizando os processos de formação policial, em geral, e de formação policial como política de enfrentamento à violência contra a mulher, em particular.

Passados dez anos da realização da pesquisa da qual deriva este artigo, muitas mudanças foram efetivadas no cenário das políticas públicas de enfrentamento à violência de gênero, objeto das delegacias de atendimento à mulher (DEAMs). Tais mudanças se verificam em âmbito nacional, no tocante a um programa de formação dos quadros policiais encampado pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) e a impactos produzidos nos modos de funcionamento institucional dessas delegacias decorrentes da Lei n. 11.340 (Lei Maria da Penha, de agosto de 2006), e também em âmbito local, pela expansão do número de DEAMs no Estado de Sergipe, pela renovação do contingente policial admitido sob concurso público e pela própria conformação de novos serviços de atendimento à mulher em situação de violência, que ainda não funcionam em rede, mas que se apresentam de modo diverso daquele que existia à época da pesquisa.

Desse modo, este artigo apresenta um relato de experiências pioneiras, enfatizando o contexto socio-histórico no qual, pela primeira vez em Sergipe, se problematizou e se viabilizou, por meio de programas de intervenção no campo da formação policial, o atendimento policial das DEAMs às mulheres em situação de violência. Assim, num primeiro momento apresentamos uma discussão sobre

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o cenário do funcionamento das DEAMs à época da realização da pesquisa, seus desafios e impasses, de algum modo hoje reconfigurados pela Lei Maria da Penha. Nesse contexto, apresentamos uma discussão que problematiza a questão da formação tomada como capacitação ou como educação permanente. A seguir, descrevemos o campo da pesquisa e as estratégicas metodológicas adotadas para inserção no campo, levantamento e análise dos dados, para depois descrevermos as experiências realizadas em Sergipe, entre 2001 e 2002, objeto da pesquisa que realizamos para o Ministério da Justiça e a avaliação feita pelos atores institucionais que participaram dos dois projetos. Por fim, tendo em vista as mudanças implantadas pela Lei Maria da Penha no funcionamento das DEAMs, faremos algumas considerações a respeito desse impacto em Sergipe, naquilo que se relaciona com o produto da pesquisa aqui apresentada.

2 DESAFIOS HISTÓRICOS DAS DELEGACIAS DA MULHER NO BRASIL: A FORMAÇÃO POLICIAL EM QUESTÃO

Apesar do avanço que representou a criação das delegacias da mulher na construção da cidadania das mulheres no Brasil, logo nos primeiros anos após sua implantação, passou-se a questionar a sua eficácia como locus privilegiado da política de segurança pública no combate à violência de gênero. Inúmeros estudos e pesquisas apontaram exaustivamente a deficiência do atendimento prestado por esse órgão e sua baixa resolutividade, que aliadas aos modos de funcionamento institucional dos juizados especiais criminais (JECRIMs), pautados em uma cultura jurídica tradicional, configuraram um quadro onde permaneceu a impunidade, sobretudo nos casos de violência doméstica. (SAFFIOTTI, s.d.; SANTOS, 1999; SILVA, 2001; DEBRET, 2002; CARRARA et al., 2002; MACHADO, 2002). Acrescenta-se a isso o sucateamento, o abandono e o distanciamento da missão para a qual foram criadas, a falta de infraestrutura básica para garantir boas condições de trabalho e de atendimento à população, e, principalmente, as práticas institucionais que ainda não guardam, substancialmente, diferenças em relação a muitas outras delegacias de polícia. As críticas dirigiam-se também à manutenção de preconceitos, à banalização da violência denunciada, ao lado de uma forte burocratização dos procedimentos policiais, nos quais muitas vezes, se perde o foco principal: o acolhimento à mulher que denuncia violência.

Desde a sua criação, constatou-se que a maioria das denúncias registradas nas DEAMs remete à violência praticada contra a mulher por pessoas da família (em geral pelo companheiro). Por isso, na grande maioria dos casos, a mulher usava a delegacia como uma instância mediadora do conflito privado, na expectativa de que a intervenção da autoridade policial pudesse propiciar uma conciliação com o agressor. Disso resultava, em parte, as inúmeras retiradas das queixas prestadas e a frustração profissional das agentes policias, por não levarem a cabo os processos que conduziriam à criminalização e punição do agressor.

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Essas práticas e as crenças que as sustentam, tanto referentes às violências sofridas pelas mulheres quanto aos modos de funcionamento das DEAMs, apontam três sentidos da categoria violência institucional: a) violência que ocorre na família como instituição e denunciada pelas mulheres; b) práticas que se desenvolvem nos serviços de atendimento – neste caso falamos na DEAM, mas poderíamos falar dos institutos médico-legais (IMLs), dos JECRIMs, dos hospitais etc. —, quando as mulheres a elas se dirigem em busca de ajuda, para reivindicar direitos e para registrar denúncias de violência: humilhações, constrangimentos, acusações de terem provocado o agressor, ao lado de atitudes que revelam uma banalização do sofrimento trazido pelas mulheres; c) as condições de trabalho policial presentes nessas delegacias especializadas: rotinas e procedimentos que implicam acúmulo de trabalho, elevado nível de insatisfação profissional, relações hierárquicas e de poder relacionadas ao desempenho da função policial marcadas pela pouca autonomia, baixos salários e falta de valorização profissional, precariedade dos recursos materiais etc.

As análises dessa problemática revelaram a complexidade que envolve a violência contra a mulher e o “despreparo” dos/as agentes policiais na identificação e compreensão do problema com os quais lidam cotidianamente, apontando a necessidade imperiosa da formação dos quadros policiais que atuam nas delegacias da mulher. De fato, segundo revela pesquisa realizada pela Senasp, em 2004, 38% dos funcionários dessas delegacias nunca havia passado por qualquer capacitação (BRASIL, 2004).

Ao analisarmos, à época da pesquisa, perspectivas que orientam experiências de formação policial para as DEAMs, identificamos duas concepções norteadoras: uma centrada numa formação de gênero, a qual, por si só, garantiria uma mudança nas práticas institucionais dessas delegacias de polícia (SAFFIOTTI, s.d.; AMARAL, 2002), e outra que acena a insuficiência dessa perspectiva para uma mudança nos modos de funcionamento desses órgãos, indicando a necessidade de uma análise mais profunda da organização policial e da cultura institucional que embasa as práticas dos/as agentes policiais que aí trabalham (SANTOS, 1999; NOBRE; TORRES; FARIAS, 2004; RIFIOTIS, 2004). Essa perspectiva de análise aponta a necessidade de pensar processos de formação policial no contexto mais amplo da educação e, em particular, da chamada “educação para a cidadania”.

No mundo moderno, a educação representa não só acesso ao conhecimento e à informação, mas também meio de integração da população à cidadania. Essa concepção está na base das reformas educacionais que instituíram a escola pública obrigatória, a partir da segunda metade do século XIX, nos países europeus e nos EUA. No Brasil, face às proporções da exclusão social existente, a “dimensão socializadora” da educação sempre foi uma das vertentes mais exploradas por grandes educadores no país. Certamente, por isso, o debate em

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torno da chamada “educação para a cidadania” está tão em evidência nas últimas décadas, como parte das ações de redemocratização do país, após a ditadura militar (NEVES, 2002). Entre essas iniciativas situam-se os cursos de direitos humanos para policiais, os fóruns permanentes de debate sobre essas temáticas disseminadas ao longo de todo o país e os cursos de Especialização em Gestão e Segurança Pública, oferecidos por inúmeras universidades.

Por outro lado, os programas formais, ligados aos currículos dos cursos de formação policial, estão se desenvolvendo em torno de uma matriz curricular definida pela Senasp, que se “propõe a ser um referencial nacional para as atividades de formação em Segurança Pública e tem como princípios os direitos humanos e a cidadania, a formação e a capacitação continuada, humana e profissional dos diferentes atores sociais”, buscando, enfim, a construção democrática de saberes e práticas renovados (BRASIL, 2005).

Além de terem a função de construir e/ou contribuir com uma nova formação policial, essas várias ações educativas na área da Segurança Pública fornecem elementos para entender as corporações policiais, os códigos, as crenças e os valores dessa cultura institucional e as formas como estes são incorporados/reproduzidos pelos seus quadros, nas relações com segmentos da sociedade, em particular com os grupos vulneráveis e em situação de conflito.

Entretanto, tanto em relação às experiências ligadas à educação formal quanto às demais que se encontram desvinculadas dos currículos acadêmicos da corporação policial e se caracterizam como intervenções que buscam a constituição de um novo modo de operar das organizações públicas, cabe indagar, como sugere Neves (2002): “É possível educar alguém para ser cidadão? São a cidadania e os direitos humanos conteúdos ‘formais’ que possam ser aprendidos como outras disciplinas em cursos de formação ou treinamentos? Pode-se dar consciência a alguém?” Diz ele:

[s]e na visão tradicional a educação é vista como um meio de transmissão de conhecimentos envolvendo, portanto, um processo de aprendizagem e de ampliação do conhecimento, a educação voltada para a cidadania, tal como a concebemos, é, antes de tudo, um processo de desnaturalização de crenças e valores e de redimensionamento de ideias e certezas incompatíveis com o exercício da cidadania – isso considerando a impossibilidade de se chegar a uma definição de cidadania que seja consensual. Ou seja, temos de pensar a educação tanto por seu lado positivo (da produção de conhecimento), quanto pelo seu lado negativo (de desnaturalização de ideias e práticas), que é quando a educação se torna um verdadeiro vetor de transformação social. Este duplo objetivo apenas é conseguido a partir de uma concepção

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dialógica da educação, onde a relação educador – educando termina por inviabilizar a transmissão mecânica e vazia de conteúdos instrucionais. Assim, não adianta falar de direitos humanos ao nível teórico se, na realidade dos policiais, eles parecem não ter pertinência; é na prática cotidiana e da reflexão sobre ela que pode nascer a preocupação com os direitos humanos (NEVES, 2002, p. 147).

A indagação do autor sugere a necessidade de superar a noção de educação como transmissão de conhecimentos e informações, e de acrescer a ela a concepção de educação como “exercício sistemático de reflexão de crenças e valores” (MENDONÇA FILHO, 2000) que orientam práticas sociais. Para que isso seja possível, faz-se necessária uma reinvenção da relação professor-aluno.

Especulando sobre as articulações do termo educar com as noções de nutrir, conduzir, instruir, preparar, vemos que este se mantém sempre atrelado a um sentido que remete à ideia de “prática destinada à preparação do indivíduo”. Pode-se também dizer que, modernamente, todo o conjunto de tensões constitutivas do termo varia, mantendo como centro a ideia de que um menos a se transformar em um mais. (...) Está claro que há então uma relação entre desiguais, entre um menor (que aprende) e um maior (que ensina). O desnível pode ser entre uma geração e outra ou entre uma classe social e outra ou ainda entre uma cultura e outra. O fato é que os modos modernos de conceber educação são todos desdobramentos deste tronco, e a discussão se mantém toda em torno dos conteúdos que devem ser transmitidos (valores morais, comportamentos básicos, habilidades específicas ou informações) e dos canais que são capazes de viabilizar sua transmissão (técnicas de eficácias pedagógicas) (MENDONÇA FILHO, 2000, p. 41).

Adotando as premissas dessa construção teórica, entendemos que a mudança das práticas policiais, almejada pela sociedade e por grande parte dos membros dessas corporações, tem sido efetivada no Brasil à medida que se estabelece lentamente um “controle” das ações policiais pela comunidade às quais elas se dirigem, e não apenas pela aquisição de conhecimentos teóricos e técnicos ministrados em cursos voltados à formação policial. Nesse sentido, canais de debate e discussão entre a polícia e a sociedade civil organizada começam a se abrir, o que têm permitido identificar parceiros e estabelecer alianças que possam contribuir para a implantação de novas políticas de segurança pública.

Qual o espaço capaz de garantir a reflexão sobre práticas policiais institucionalizadas, que têm se distanciado da missão para a qual as DEAMs foram criadas, negando às mulheres em situação de violência um atendimento diferenciado e especializado? Parece-nos que a resposta deve ser construída a partir da análise aprofundada de experiências que estão em desenvolvimento.

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3 O CAMPO DA PESQUISA E AS ESTRATÉGIAS METODOLÓGICAS ADOTADAS

Vinculada à Secretaria de Segurança Pública do Estado de Sergipe, a DEAM de Aracaju, criada em outubro de 1986, funcionou até 2004, como uma delegacia autônoma em relação às demais delegacias do município. Porém, em meados do segundo semestre de 2004, passou a integrar um Centro de Atendimento a Grupos Vulneráveis, composto por três delegacias especializadas, que têm como público: a) mulheres vítimas de violência doméstica e de violência sexual atendidas pela Delegacia Especial de Atendimento à Mulher; b) menores de 18 anos, vítimas de violência, atendidos, privativamente, pela Delegacia Especial de Atendimento à Criança e ao Adolescente; c) idosos, homossexuais e profissionais do sexo, portadores de necessidades especiais e qualquer pessoa vítima de discriminações em razão de raça, cor, etnia, religião e procedência nacional, atendidos pela Delegacia de Atendimento a Grupos Vulneráveis (SERGIPE, s.d.).

As atribuições de cada uma das unidades policiais que compõem o Centro de Atendimento a Grupos Vulneráveis foram definidas pela Portaria n. 037/2004 da Superintendência de Polícia Civil da Secretaria de Estado da Segurança Pública, como “registro e apuração de crimes e delitos”, infringidos aos três segmentos sociais acima citados (SERGIPE, 2004). A agregação das três delegacias especializadas num único complexo policial é justificada, no documento, pela finalidade de “garantir maior integração das ações na área da segurança pública, voltadas às demandas de uma população específica, excluída de direitos básicos e discriminada socialmente” (SERGIPE, s.d.).

O novo complexo policial incluía um Núcleo de Mediação de Conflitos, visando a um melhor atendimento da DEAM, sobretudo, no enfrentamento da violência doméstica3. De acordo com Marques e Teles (2004), a mediação pretende transcender o modelo punitivo para um modelo de justiça penal diferenciado, pautado no restabelecimento do diálogo, na negociação de interesses e na mediação de contendas, buscando a construção de relações solidárias entre as partes em conflito. Para que o instrumento da mediação seja eficaz, “é necessário qualificar os serviços prestados à população, ampliando os serviços de atendimento, tornando-os satisfatórios e hábeis na capacidade de resolver tais questões” (MARQUES; TELES, 2004, p. 50). Essa nova atribuição da DEAM implica, prioritariamente, no nosso modo de entender, viabilizar um programa específico de formação policial dos agentes lotados nesse complexo, aplicado à missão para a qual foi criado.

Essas mudanças de ordem organizacional e funcional verificadas na DEAM exigiram de nós um novo modo de inserção no campo da pesquisa e acercamento do nosso objeto de estudo. Desse modo, conhecer como tem sido pensada a formação dos quadros policiais lotados no Centro de Atendimento a Grupos Vulneráveis, em Aracaju, e em especial na DEAM, foi um objetivo que se

3 A formação desse novo desenho institucional e a ideia de criação do Núcleo de Mediação de Conflitos foi, em grande parte, influenciada pelos programas de formação policial aqui apresentados, objeto da nossa pesquisa. Com a Lei Maria da Penha, o Núcleo de Mediação de Conflitos mudou muito as suas práticas, não atendendo mais aos casos de violência doméstica. Retomaremos esta discussão adiante.

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agregou ao nosso projeto de pesquisa inicial, anteriormente assim definidos: a) conhecer as propostas educativas das duas agências formadoras responsáveis pelas experiências, enfocando os princípios, fundamentos, pressupostos e objetivos que embasaram os dois projetos; b) mapear os conteúdos programáticos, metodologia utilizada, recursos pedagógicos empregados e temas emergentes nos encontros com os/as alunos/as policiais; c) levantar dificuldades, limites, impasses e avanços na execução dos projetos; d) investigar o impacto que as duas experiências tiveram sobre a formação policial e, de modo particular, se houve consequências, a partir desses trabalhos, em termos de mudança das práticas institucionais das DEAMs; e) conhecer a avaliação que as duas agências formadoras, a corporação policial e os representantes de movimentos de mulheres fazem das experiências.

Assim, em virtude do novo contexto, a pesquisa realizada teve como objeto as duas experiências de formação policial situando-as dentro das mudanças que se encontravam em curso no âmbito da Segurança Pública em Sergipe, a partir da criação do Centro de Atendimento a Grupos Vulneráveis.

À época da realização da pesquisa a maioria dos profissionais lotados nas DEAMs de Sergipe havia concluído o Ensino Médio e muitos tinham nível superior, entre os quais se destacavam cursos de Direito e Serviço Social. O contingente era, como ainda hoje, formado predominantemente por mulheres, havendo também a presença de policiais do sexo masculino, sobretudo no trabalho externo e no setor de investigação. As delegadas e agentes policiais eram concursados, embora ainda existissem, naquele período, profissionais contratados, transferidos e/ou cedidos de outros órgãos.

Os policiais que participaram da pesquisa seguiram a mesma trajetória de formação profissional dos demais policiais civis: quando do seu ingresso na organização policial, se submeteram a um treinamento dado pela ACADEPOL (Academia de Polícia Civil), que contemplou, entre outros conteúdos, matérias de Direito Constitucional, Criminal e Penal, incluindo disciplinas obrigatórias sobre Direitos Humanos, Relações Humanas e Balística. Quando do ingresso da maioria deles, não havia programa de formação voltado às especificidades da função, sendo a atividade profissional aprendida por estratégias rotineiras junto aos/às policiais mais antigos/as e experientes. Com a criação do Centro de Atendimento a Grupos Vulneráveis, a oferta de outros cursos tornou-se mais frequente e outras temáticas passaram a fazer parte do processo: legislação específica de proteção à mulher, legislação de proteção a grupos vulneráveis, atendimento ao público, disciplinas com conteúdos das áreas de Sociologia, Psicologia, Ética, Informática e Português. Na opinião dos agentes policiais, a mudança possibilitou não só a ampliação e a melhoria do atendimento à população, com maior eficácia na resolução dos casos atendidos, mas também melhoria no processo de formação específica. Apesar de a frequência aos cursos/capacitações/treinamentos ter caráter compulsório, os agentes policiais alegavam interesse profissional/pessoal como motivação à participação dos mesmos.

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Os requisitos básicos necessários para o desempenho das funções policiais nas DEAMs, na opinião dos agentes, eram: “conhecimento da legislação”, “capacidade de entender a vítima”, “relacionar-se bem com o público” e “ser solidário”. Essa maneira de conceber o processo de formação centrado em habilidades e atitudes pessoais revela uma concepção que não valoriza suficientemente a perspectiva teórica, técnica e crítica que deveria fundamentar o exercício da função policial. Isso indica a necessidade de se pensar uma formação específica à missão para a qual as delegacias da mulher e o Centro de Atendimento a Grupos Vulneráveis foram criados.

A pesquisa foi desenvolvida por uma equipe de trabalho integrada por membros do GEPEC (Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Exclusão, Direitos Humanos e Cidadania) da Universidade Federal de Sergipe que participou de trabalhos sistemáticos voltados à formação policial entre 1999 e 2002: três docentes e duas técnicas. Na medida em que ouviu diversos atores sociais (professores universitários, policiais, representantes de movimento sociais e ONGs), a pesquisa teve caráter de continuidade de um trabalho anteriormente realizado pelo GEPEC, oportunizando a retomada e aprofundamento de um debate público em torno da função social das delegacias da mulher e do atendimento prestado pela segurança pública aos chamados grupos vulneráveis.

A pesquisa foi qualitativa, em função da própria natureza do objeto que nos propusemos investigar, constituído por um universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, “que não podem ser reduzidos à operacionalização das variáveis” (MYNAIO, 1994, p. 21-22) e atravessado por aspectos bastante complexos e multifacetados.

As metodologias qualitativas procuram “introduzir um rigor, que não o da precisão numérica, aos fenômenos que não são passíveis de serem estudados quantitativamente” (MARTINS; BICUDO, 1994, p. 27) e que necessitam ser considerados sob a perspectiva de uma abordagem mais abrangente e multidimensional. Assim, optamos por utilizar um conjunto de instrumentos que privilegiam a própria voz dos atores sociais, para, a partir delas, efetuar a análise dos dados, sem a pretensão de generalização dos resultados. Para tanto, realizamos entrevistas com delegadas e agentes policiais que participaram das duas experiências, com uma representante de movimentos de mulheres que participou da capacitação e com representantes das duas agências formadoras responsáveis pelas experiências. Os entrevistados totalizaram 18 sujeitos.

Ao lado das fontes orais, consultamos registros escritos sobre as experiências de formação policial nas DEAMs de Sergipe, de modo a permitir um entrecruzamento dos dados e possíveis significações diferenciadas dos mesmos fatos: relatórios da CDH/UFS sobre a experiência dos grupos de discussão, memórias das reuniões feitas com as agentes policiais na DEAM de Aracaju,

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material didático utilizado na capacitação, diários de campo disponibilizados pelos membros da CDH, que contém registros sobre as duas experiências e artigos publicados sobre a experiência da CDH junto às polícias militar e civil do Estado de Sergipe, descrita nas obras organizadas por Neves, Rique e Freitas (2002) e por Mendonça Filho (2004).

O maior desafio do trabalho consistiu, principalmente, na inserção da equipe no campo, onde algumas agentes policiais se apresentaram inicialmente reticentes a retomar uma discussão “antiga”, ou seja, relatar e avaliar experiências transcorridas há mais de três anos, num momento em que mudanças substanciais estavam sendo implantadas, referentes à estrutura organizacional, modos de funcionamento institucional e formação policial, com a criação do Centro de Atendimento a Grupos Vulneráveis.

Iniciamos o trabalho de campo entrevistando as delegadas, o que nos permitiu visualizar o contexto das mudanças estruturais e operacionais que envolvem as práticas da Delegacia da Mulher atualmente e sua relação com as experiências de formação policial atuais e anteriores. Foram entrevistadas três delegadas que participaram integral ou parcialmente da capacitação, sendo que uma delas também participou integralmente da experiência dos grupos de discussão e da capacitação. Todas as delegadas entrevistadas mostraram abertura à pesquisa. Essas entrevistas nos forneceram elementos que nos permitiram elaborar um roteiro para a abordagem das agentes policiais.

Uma dificuldade encontrada na coleta dos dados refere-se à ausência de alguns policiais que participaram das experiências, em virtude de aposentadoria ou transferência e, principalmente, pela rotatividade na lotação de policiais entre as delegacias. Contudo, na DEAM de Aracaju, como se mantém basicamente a mesma equipe de trabalho ao longo dos últimos anos, foi possível entrevistar oito das doze participantes dos grupos de discussão formados pela CDH/UFS. Todas essas policiais também participaram da capacitação oferecida pelo Ministério da Justiça.

As entrevistas com as agentes policiais foram realizadas na sede da Delegacia da Mulher de Aracaju, durante o horário de trabalho, sendo as funcionárias liberadas pela delegada, pelo tempo necessário à tomada dos depoimentos, que variou de 30 minutos a 1 hora. Após a explicitação dos objetivos da entrevista e o estabelecimento de um “contrato” de sigilo acerca da não identificação pessoal dos sujeitos, as questões foram respondidas num clima de cooperação, obtendo-se das pessoas autorização para gravação.

Em relação à experiência do Ministério da Justiça, que teve a participação de todos/as os/as policiais das DEAMs do Estado de Sergipe, encontramos maior dificuldade, pois muitos policiais da DEAM de Itabaiana sofreram rotatividade com as mudanças de delegadas naquela unidade policial, ocorridas nos três anos

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posteriores à capacitação. Além disso, alguns foram aposentados e outros se afastaram da polícia. Foi possível entrevistar um deles, que mesmo tendo prestado concurso para a Saúde Pública, deixando a carreira policial, contribuiu com seu depoimento. Em função desse quadro, optamos por aplicar um questionário a todos/as os/as funcionários/as das delegacias da mulher de Sergipe que se dispuseram a colaborar com a atividade, independentemente de terem ou não participado das experiências. Foram aplicados 49 questionários com questões abertas aos/às agentes policiais lotados nas DEAMs de Aracaju e Itabaiana, dos quais 18 foram devolvidos devidamente preenchidos.

As entrevistas com os membros das duas agências formadoras foram realizadas, respectivamente, no campus universitário em São Cristóvão/Sergipe e na Secretaria de Saúde de Lauro de Freitas (BA). Essas entrevistas foram semiabertas, com um roteiro norteador, havendo, no entanto, maior liberdade para acrescentar e desdobrar questões, uma vez que os sujeitos participaram com maior espontaneidade, interesse e abertura, ressaltando a importância de se avaliar o trabalho realizado por eles. A seleção dos sujeitos foi intencional e considerou o grau de participação dos mesmos na elaboração e na execução dos programas de formação policial, totalizando cinco entrevistados.

Em Salvador, foi realizada uma entrevista com a delegada titular da DEAM, que participou da experiência do Ministério da Justiça em Sergipe, como instrutora. A entrevista foi realizada na sede da Delegacia da Mulher, onde fizemos duas visitas. Além de coletar dados sobre esta experiência específica, a entrevista teve o objetivo de conhecer aspectos referentes à formação dos policiais e outros profissionais que lidam com violência de gênero na Bahia.

Por fim, foi realizada uma entrevista com uma representante dos movimentos de mulheres em Aracaju, que participou da capacitação. A entrevistada era membro da UBM (União Brasileira de Mulheres), da Casa Abrigo e do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher.

Todas as entrevistas foram transcritas na íntegra e submetidas a sucessivas escutas e leituras, por meio das quais foram identificados temas emergentes, escolhidos como unidades de registro (BARDIN, 1970). O mesmo mapeamento foi adotado em relação aos questionários, aos dados obtidos por meio das fontes documentais e outros registros: relatórios, artigos publicados, memórias de reuniões, diários de campo etc.

A partir desses mapeamentos, os dados passaram a ser agrupados de acordo com sua similaridade ou diferenciação, em referência às temáticas emergentes. A seguir foram classificados em categorias, estabelecidas segundo alguns princípios básicos, que implicam homogeneidade dos critérios de categorização, exaustividade e exclusividade entre elas (GOMES, 1994). Ao mesmo tempo, atentamos para a necessidade de considerar esses elementos em

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conjunto, na sua totalidade e em interrelação. Essa categorização permitiu maior visibilidade dos dados, revelando em que aspectos as informações, opiniões e imagens aproximam-se, distanciam-se ou contrapõem-se. Identificar os polos de tensão, oposição e semelhança entre os sujeitos, tanto num plano horizontal (policiais, professores, representantes de movimentos sociais e ONGs entre si), quanto verticalmente (nos atravessamentos entre essas categorias), revelou não apenas os consensos, mas também as contradições que permeiam as relações, ideias, imagens e percepções entre esses segmentos.

Foram definidas as seguintes categorias de análise, com base na análise temática realizada, que tiveram como eixo articulador a formação profissional dos policiais que trabalham com mulheres em situação de violência: a) inserção no campo e estratégias de articulação e implantação das experiências; b) pressupostos teóricos e metodológicos que embasam as experiências; c) formatação das ações: público atingido, carga horária, conteúdos programáticos, recursos metodológicos e temáticas emergentes; d) impactos das experiências sobre as práticas institucionais; e) avaliação da experiência: pela corporação policial, pelas agências formadoras, por representantes de movimentos sociais.

O procedimento de análise das entrevistas englobou sínteses dos relatos acerca de cada tema, destacando-se as semelhanças e as diferenças entre os vários discursos. As sínteses, que em alguns momentos aparecem como “falas reconstruídas” (ZANNELI, 1994), foram intercaladas com textos dos próprios sujeitos, na tentativa de preservar, ao máximo, a palavra do outro e o sentido atribuído aos temas abordados. Suas versões, independentemente da veracidade ou não das informações que fornecem, não são tomadas como o olhar de um indivíduo sobre uma experiência vivenciada, mas como significados produzidos e marcados pelo coletivo: crenças, valores, atitudes e projetos que norteiam as práticas sociais dos grupos que protagonizaram as duas experiências de formação policial realizadas nas DEAMs de Sergipe, num determinado contexto social e momento histórico.

Nesse sentido, os dados não revelam apenas aspectos explícitos das experiências e dos acontecimentos objetivos, mas aspectos implícitos nas práticas sociais retratadas pelos discursos dos informantes, das instituições e dos grupos dos quais fazem partem. Revelam também o jogo das relações mais amplas que constituem o campo social sobre o qual se desenvolveram as experiências de formação policial aqui analisadas.

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4 DISCUTINDO AS EXPERIÊNCIAS DE FORMAÇÃO POLICIAL EM SERGIPE: A CONSTRUÇÃO DOS PROJETOS E OS PRESSUPOSTOS POLÍTICOS E TEÓRICO-METODOLÓGICOS DAS INTERVENÇÕES

4.1 A experiência dos grupos de discussão e reflexão de práticas institucionais

Entre 1999 e 2002, a Comissão de Direitos Humanos da Universidade Federal de Sergipe realizou um trabalho de extensão universitária, caracterizado como pesquisa-intervenção, por meio do curso A Polícia como Protetora dos Direitos Humanos, do qual participaram policiais civis e militares. O curso foi realizado em convênio com a Secretaria de Segurança Pública do Estado de Sergipe, a ONG pernambucana GAJOP (Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares) e a Fapese (Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de Sergipe), com financiamento da Fundação Ford, atingindo cerca de 400 policiais militares e civis, com carga horária de 40 horas (COMISSÃO, 2002).

Após a realização de 17 turmas do curso, a avaliação feita pela CDH/UFS apontou para a conquista de um espaço de problematização da relação polícia e sociedade no âmbito das corporações. Embora tenha tido um conteúdo programático formal discutido com os alunos durante as aulas, segundo relatório e depoimentos de membros da CDH, o maior impacto do curso foi ter produzido a tematização do exercício da função policial, com ênfase nos problemas estruturais e de funcionamento interno das organizações policiais.

Desse modo, o formato de curso de extensão havia chegado a um impasse: se por um lado permitia o trânsito de informações e conhecimentos sobre a temática “a polícia como protetora dos direitos humanos”, por outro desencadeava a reflexão em torno dos problemas institucionais da própria polícia, o que impunha a necessidade de aprofundamento das questões levantadas, que, com o término do curso, não tinham continuidade. Surgiu então a proposta de modificar o formato do projeto anterior e a intervenção passou a ser caracterizada, não mais como cursos de direitos humanos para policiais, mas como grupos de discussão e reflexão de práticas institucionais. A proposta era que os grupos se reunissem sistematicamente nas duas corporações policiais, durante seis meses, em reuniões quinzenais, de modo a permitir uma discussão mais sistemática dos problemas institucionais evidenciados na primeira fase da experiência.

Nessa segunda fase, foram constituídos quatro grupos: três grupos na Polícia Militar (coronéis, oficiais e patrulhamento urbano); e um grupo na Polícia Civil (delegada e agentes de polícia judiciária da Delegacia da Mulher de Aracaju). Na DEAM, a expectativa institucional que se constituía como uma encomenda da delegada, era de que a intervenção ajudasse a “melhorar o atendimento à população”. Dessa forma, vislumbrou-se a possibilidade de construção de um espaço de debate sobre as práticas institucionais desenvolvidas na DEAM, em que seus servidores se dispusessem a repensá-las (FARIAS, 2002).

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Para que o trabalho na DEAM fosse viabilizado foram realizadas três reuniões de negociação/construção da proposta, na sede dessa delegacia, em Aracaju. As reuniões ocorreram durante o horário de trabalho, nos turnos da manhã e tarde, das quais participaram a delegada e todos/todas os/as agentes policiais, técnicas e investigadores lotados na unidade. Foi discutida a proposta de constituição dos grupos, a encomenda da delegada e as expectativas dos/das policiais frente ao trabalho. A CDH construiu, a partir daí, um primeiro mapeamento da natureza da intervenção, com levantamento das demandas iniciais, ficando a proposta a ser construída com o grupo, à medida que a experiência fosse se desenvolvendo, em termos de temáticas a serem discutidas e dinâmicas de funcionamento das reuniões, que totalizaram nove, durante seis meses. Foi colocado o critério de participação não compulsória dos agentes policiais. Deste modo, dos 26 policiais presentes nas reuniões iniciais, apenas 12 participaram sistematicamente da experiência, além da psicóloga e da Delegada Titular. Não houve participação de policiais do sexo masculino. Eventualmente houve a participação de dois delegados e uma delegada lotados em outras delegacias. Esse projeto de formação teve uma carga horária de 24 horas e as temáticas trabalhadas foram: a banalização da violência na sociedade brasileira e a violência contra a mulher; o atendimento às mulheres vítimas de violência e a especificidade do trabalho policial na DEAM; o lugar da DEAM na Polícia Civil; as demandas das mulheres em relação à DEAM e a sua função na mediação de conflitos; condições de trabalho e relações interpessoais na DEAM; relações de gênero na polícia; formação policial: percursos e dificuldades específicas para ação na DEAM; construção de um projeto de formação policial para a DEAM: aspectos político-educacionais e técnicos.

Segundo depoimentos de membros da CDH, a proposta dos grupos era “nova e ousada”, pois significava que “pessoas estranhas à organização queriam discutir e problematizar, com a polícia, os problemas da própria polícia”. Diferentemente da experiência dos cursos de direitos humanos, oferecidos anteriormente, a experiência dos grupos de discussão, tanto na Polícia Militar como na DEAM, representava uma “construção coletiva”:

Antes, se dava um curso e se discutia. Nos grupos, se discutia junto desde o início, se construía juntos um diagnóstico institucional, se fazia uma análise a partir do que os próprios policiais traziam e se propunha coisas novas. Foi interessante também para a equipe, nos permitiu conhecer melhor a cultura policial (membro da CDH).

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Ao mesmo tempo em que os policiais que “queriam uma polícia diferente e cidadã” viam nos grupos de discussão uma possibilidade de fazer alianças com representantes da sociedade, desencadeavam-se resistências institucionais. Tais resistências eram expressas em dificuldades para articular e manter o funcionamento das reuniões: ausência de participantes, dificuldade de local disponível para os encontros, disponibilidade de horário dos policiais, encontros com duração variável a depender da rotina institucional etc. (COMISSÃO, 2002). Segundo dizem membros da CDH, “os policiais demandavam aquele tipo de intervenção, mas as condições de suporte institucional eram muito limitadas”.

De acordo com depoimento de uma das delegadas da DEAM, muitas questões discutidas eram delicadas, “às vezes ficavam muito evidentes as lacunas e as limitações das policiais, tanto pessoais quanto profissionais, para o exercício da função”. Entretanto, uma das agentes policiais afirma:

A diferença que eu achei no trabalho da universidade foi justamente o tempo. Elas [docentes da CDH] vinham se dedicando aos poucos, elas vinham fazendo uma coisa contínua, entendeu? E foi a primeira vez que nós tivemos contato com uma entidade de fora que viu a gente assim. A gente não foi apenas informada que ia ter um curso dia tal, começa tal hora e termina tal hora, com tantos dias, aqui está a pasta, vai acontecer na Escola de Polícia. Era o trabalho feito continuamente, explorando a gente aos poucos, sabe como é? Era até uma hora de relaxamento que a gente podia falar um pouquinho da gente também e foi muito gratificante (agente policial).

Em relação aos pressupostos teóricos e metodológicos, também são evidenciadas diferenças entre as duas experiências quanto às concepções sobre o trabalho, ideias norteadoras e objetivos da ação. Vejamos:

O trabalho junto às polícias, incluindo a experiência na DEAM, é definido pela CDH como “uma modalidade de pesquisa-intervenção”, por meio da qual se buscava conhecer o campo e provocar uma análise coletiva do funcionamento institucional. A perspectiva que embasou a intervenção fundamentou-se nos princípios básicos da Análise Institucional (LOURAU, 1993), por meio da participação ativa das policiais nas discussões e temáticas propostas pelo próprio grupo (COMISSÃO, 2002).

A discussão estava centrada no exercício da função policial e nas práticas institucionais da Delegacia da Mulher como órgão da Polícia Civil, inserida numa cultura organizacional, na qual se reproduzem valores e crenças consolidados, observados, inclusive, em outras delegacias. Foi considerado, entretanto, as especificidades do público atendido e suas demandas singulares: mulheres em situação de violência e seus agressores.

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A gente pretendia levantar elementos políticos para o policial entender suas próprias condições de trabalho ou falta de condições e viabilizar uma discussão sobre a necessidade deles mesmos se organizarem para resolver esses problemas internos da polícia, as relações da policia com o governo do Estado, que interferem na prática dos policiais (membro da CDH).

O que se problematizava mesmo era o porquê das práticas policiais acontecerem daquele modo, naquela situação. Muitos policiais conhecem a legislação, às vezes eles têm a informação, mas agem contrariamente. Então a gente queria analisar isso, esse descompasso entre a informação e o conhecimento que eles já detêm e as práticas executadas (membro da CDH).

As diretrizes que nortearam o trabalho centraram-se em dois eixos: a) estimular a construção de uma prática de discussão, por meio da reflexão dos modos de funcionamento naturalizados nesse órgão e das práticas policiais, sobretudo com relação às formas de atendimento às mulheres que registram queixas na DEAM; b) estabelecer a possibilidade de um diálogo entre a polícia e a sociedade em que se discuta e se repense o exercício da função policial no atendimento das demandas específicas das mulheres que sofrem violência e sua relação com a construção da cidadania.

A CDH “se propôs como dispositivo de enunciação que objetivava analisar as questões sociais no plano institucional, entendido como plano abstrato das crenças e valores que se materializam nas organizações sociais” (COMISSÃO, 2002, p. 4). A discussão acerca dos direitos humanos, em geral, e dos direitos das mulheres, em particular, foi centrada no âmbito das ações do Estado, isto é, no modo de execução das funções públicas, em que não se enfatizava as práticas individuais dos agentes, mas o modo como uma determinada cultura policial era reproduzida e naturalizada no espaço específico da DEAM.

Nessa perspectiva, a estratégia metodológica deu ênfase à discussão crítica sobre o cotidiano da atividade policial, numa proposta aberta, na qual não havia temas definidos a priori, sendo estes sugeridos pelas próprias agentes policiais, a cada encontro, para a reunião seguinte. Nessa proposta o enfoque de gênero estava contemplado, embora contido numa perspectiva mais ampla de formação em direitos humanos e cidadania, permitindo uma maior aproximação com a complexidade da Segurança Pública. Procurava-se, também, valorizar o trabalho das policiais e a função social da DEAM como mediadora de conflitos, dentro de uma perspectiva mais democrática de segurança pública, que extrapola a tarefa investigativa e repressora da polícia.

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Os recursos utilizados (músicas, dramatizações, estudos de caso, relatos de pesquisa etc.), foram mobilizados como recursos auxiliares na condução do trabalho e não como procedimentos técnicos para a obtenção imediata de resultados definidos. Buscava-se quebrar os lugares postos da relação de poder professor X aluno para então problematizar as questões e permitir outras falas diferenciadas (COMISSÃO, 2002).

Além dos recursos técnicos, foi utilizada a observação livre do funcionamento da delegacia, com registro etnográfico em diário de campo, cujos dados abasteciam a intervenção, se constituindo como material de discussão das reuniões (FARIAS, 2002). As policiais fazem referência a essa postura metodológica, anunciada por Lourau (2003) como “análise em situação”:

Se alguém vê você fazendo seu trabalho e vai criticar de uma forma construtiva, você já vai começar a enxergar os erros, então foi isso que elas mostraram para a gente, sem apontar os erros, mas mostrando como melhorar, informando sobre a situação da mulher que sofre violência (...). Elas chegavam e observavam as policias trabalhando estressadas, então discutiam como tratar o próximo caso, mostravam como as mulheres chegavam deprimidas e a gente ia melhorando (agente policial).

4.2 A experiência da capacitação para policiais que atuam com mulheres em situação de violência

Com o objetivo de conhecer e analisar criticamente as condições de funcionamento das DEAMs ao longo de todo o território nacional, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher/SEDIM, em parceria com o Ministério da Justiça/Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) realizou, em 2000, uma ampla pesquisa que atingiu 78% das 370 DEAMs então existentes no país. A pesquisa intitulada Condições de Funcionamento das Delegacias Especializadas no Atendimento às Mulheres investigou, entre outros aspectos, a infraestrutura, condições de trabalho policial e formação do contingente lotado nesses órgãos. A pesquisa apontou a precariedade de funcionamento das DEAMs, enfatizando a urgência de capacitação específica de seus agentes policiais e técnicas, cuja carência representava o maior entrave ao funcionamento desse órgão em todo o país, que se expressava, sobretudo, na baixa qualidade do atendimento prestado às mulheres vítimas de violência e no atendimento insatisfatório de suas demandas específicas (SILVA, 2001).

Decidiu-se, então, pela execução de um programa de formação policial, estruturado como capacitação, que atingisse todas as delegacias da mulher ao longo do território nacional. Buscou-se parcerias com ONGs e universidades para pensar a elaboração de um projeto. O treinamento de agentes multiplicadores para execução do curso nos estados e municípios foi realizado pela organização não governamental CEPIA (Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação), no Rio de Janeiro.

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O programa da capacitação inseriu-se, portanto, num projeto mais amplo, a partir de uma iniciativa do Ministério da Justiça, em parceria com outras instituições. A capacitação foi realizada durante uma semana, com uma carga horária de 4 horas de aula durante cinco dias, totalizando 20 horas, e teve a participação compulsória de todos os policiais lotados na Delegacia da Mulher do Estado, 46 agentes policiais (28 do sexo feminino e 18 do sexo masculino), duas delegadas e uma assistente social. Contou também com a participação eventual de um policial da Divisão de Ensino da ACADEPOL; uma funcionária do Instituto Médico Legal (IML); uma assistente social da Casa Abrigo (em implantação); três membros da CDH/UFS e de movimentos sociais. Teve como conteúdo programático os seguintes temas: Panorama da Violência no Brasil: a violência urbana, violência doméstica e de gênero; Saúde e Direitos Reprodutivos e a Interface com a Violência; Violência como uma Questão de Saúde Pública; Legislação de Proteção à Mulher no Campo do Direito Civil e Direito Penal; a Convenção de Belém do Pará; Aspectos Jurídicos da Lei n. 9.099/95; a criação dos JECRIMs; a punição aos agressores; formação de redes de apoio à mulher que sofre violência (aspectos médicos, assistenciais, jurídicos, educacionais etc.); elaboração de propostas e encaminhamentos.

Um mês antes da capacitação, foi convocada uma reunião com várias entidades que trabalham com gênero em Sergipe, pela Secretaria de Estado da Segurança Pública para discutir a sua realização. Estavam presentes representantes das seguintes instituições: Caritas, Bem-me-quer (ONG), OAB/Centro de Defesa da Cidadania da Mulher, Conselho Municipal de Direitos da Mulher, Fórum de Direitos Humanos, Comissão de Direitos Humanos da UFS, Fórum de Mulheres e União Brasileira de Mulheres (UBM).

O programa da capacitação já estava elaborado para ser aplicado, não sendo possível alteração no seu conteúdo. Foram convidados professores das universidades locais para ministrar as aulas; quadros da Polícia Civil e representantes dos movimentos de mulheres foram também convidados para participar de atividades de mesas-redondas e na abertura do evento, ao lado de outras autoridades. De acordo com a coordenadora da capacitação, houve a possibilidade de articular vários parceiros locais, de modo que as condições institucionais necessárias ao sucesso da experiência foram garantidas, sobretudo em relação à liberação dos/das funcionários/as. Algumas delegadas, porém, apontaram problemas no modo como a experiência foi executada:

Eu acho é que a gente precisa ser ouvido nesse processo, pensar junto, porque senão vai ser aquele mesmo erro: a polícia sempre achou que sabia fazer polícia e nunca ouviu ninguém, agora um grupo de fora acha que sabe fazer e não nos ouve, então eu acho que é ruim, acho que eles deviam nos ouvir, mesmo que se por acaso em algum momento nós falarmos alguma coisa que seja equivocada, é o processo

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de discussão que vai construir alguma coisa. (...) Quando o grupo que propõe, diz que ouviu a instituição, ele se legitima junto à própria instituição, até com os próprios participantes. (...) A polícia pode não ter condições de formular, mas a gente conhece o que está fazendo, então a gente pode oferecer os elementos para quem possa fazer, para quem possa formular. Então tem que haver uma troca. A sociedade não pode pensar esses cursos e propor capacitação sem ouvir a polícia (delegada).

Os critérios utilizados para pensar os projetos de capacitação de policiais das DEAMs são construídos em torno de uma metodologia específica de gênero, montada em parceria com núcleos de saúde pública de três universidades brasileiras: a UFBA (Universidade Federal da Bahia), a UFRGS (Universidade Federal do Rio do Sul) e a UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), de acordo com depoimento da coordenadora da capacitação em Sergipe:

O eixo norteador da proposta está assentado na necessidade de capacitação específica dos/as policiais e técnicos/as que lidam com violência de gênero e na ampliação dos serviços das DEAMs, desdobrando-se na formação de redes de atendimento integral às mulheres em situação de violência, como parte de uma política pública de combate à violência contra a mulher.

As ideias norteadoras da intervenção estão ancoradas em dois pressupostos: a) capacitar os agentes públicos no trato da violência contra a mulher, para uma melhor operacionalização das ações das DEAMs; b) estimular a criação de uma rede de atendimento integral que se desdobre em ações de outras instituições (serviços assistenciais e jurídicos).

A capacitação pretendeu identificar os avanços conquistados pelas DEAMs e os impasses que impedem um melhor desempenho no atendimento e no acolhimento das mulheres. O foco da ação estava voltado para a necessidade de intervir sobre as práticas dos policiais no atendimento às mulheres que procuram as DEAMs, a partir do levantamento das dificuldades enunciadas pelos agentes policiais referentes ao trabalho que executam. Identificava-se ainda a necessidade de repensar os preconceitos e discriminações dos próprios policiais no atendimento às mulheres, como ilustra o depoimento abaixo:

E aí uma coisa importante nessas capacitações que eu tenho coordenado é a dificuldade que os policiais têm de serem capacitados pra saber atender bem essas mulheres, independente da raça, da cor, da religião ou da idade. Esses policiais foram criados numa sociedade patriarcal, que é machista, que é preconceituosa, que é racista também, e às vezes eles não se dão conta disso e isso se reproduz num péssimo atendimento (coordenadora da capacitação).

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Em relação às estratégias metodológicas, a capacitação privilegiou a transmissão de um conteúdo programático, com enfoque de gênero, abordando as principais temáticas voltadas ao trabalho policial no atendimento às mulheres em situação de violência. O programa repetiu os mesmos conteúdos programáticos em todos os estados brasileiros, mas, segundo depoimento da coordenadora, quanto maior o envolvimento de instrutores e profissionais locais, maior a possibilidade de viabilizar a formação da rede, contemplando outros serviços de atendimento à mulher. Nessa perspectiva não só os policiais deveriam ser contemplados na formação, mas membros de outras instituições, como o pessoal das casas abrigo e da rede de saúde pública.

A experiência do grupo de estudos de gênero que coordenou o trabalho tem revelado que há ações isoladas ou incipientes de várias instituições no atendimento das mulheres vítimas de violência, que se configuram como uma rede informal. A perspectiva da capacitação é de contribuir para a articulação dessas várias entidades de modo que a rede possa ser tecida e formalizada para oferecer um atendimento integral e integrado às mulheres.

As capacitações utilizam como recursos metodológicos workshops, palestras, aulas-debate e mesas redondas. Na ocasião, são distribuídos materiais de apoio, em forma de caderno, contendo os textos referentes ao conteúdo programático com temas trabalhados para que possam ser consultados posteriormente pelos participantes, caso desejem se aprofundar.

Frequentemente há participação de instrutores convidados de outros estados para abordar algumas temáticas: em Sergipe houve a participação da delegada da DEAM de Salvador e de um magistrado de um dos juizados especiais criminais de Pernambuco. De acordo com depoimentos dos policiais, ambos contribuíram com o relato de experiências bem-sucedidas no campo do atendimento policial às mulheres vítimas de violência e na aplicação da Lei n. 9.099/95, respectivamente. Contudo, alguns policiais se referiram ao grande volume de informações, à quantidade de participantes e à necessidade de um maior conhecimento da realidade local por parte dos instrutores. Alguns consideraram o conteúdo muito teórico e pouco aplicável.

Os temas eram interessantes, mas foi como eu falei para você, ficou teórico demais, tudo saiu correto, as ideias interessantes, mas não estava aproximado com a realidade que a gente estava vivendo, com a nossa cultura. (...) Até o pessoal falava: “isso aí é falando, na prática é diferente, na prática não dá para fazer assim”. Então de repente não dá para fazer assim mesmo, como seria o melhor, o ideal. Então o professor era bom, mas ele tinha dificuldade em contextualizar aquela informação na nossa realidade. Então faltou um pouco essa ponte aí, um bate-papo face a face com o policial, ir lá conversar na própria delegacia, ver como

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é que é um dia de trabalho lá. Precisaria muito desse contato mais aproximado, fazer uma busca de campo primeiro para saberem como são as queixas, o dia do policial civil lá na Delegacia da Mulher, daqui de Sergipe especificamente. Porque tem as diferenças, a Delegacia da Mulher de Itabaiana é diferente da daqui de Aracaju, são culturas diferentes. Geralmente a delegacia funciona de acordo com o ritmo que a delegada impõe, então diverge muito, às vezes, de uma delegacia para outra ou mesmo dentro de uma mesma delegacia, quando muda a delegada (agente policial).

Eu acho que toda tentativa e esforço no sentido de melhorar a atividade como um todo das instituições públicas, eu acho válida; eu só acho que a frequência e o pensar em cursos, a carga horária, as matérias a serem tratadas, que sirvam de modo prático. Se um curso diz respeito à delegacia ou à policia, que seja dada uma conotação prática para que aquilo sirva de alguma experiência para ser colocada em prática. Eu acho que isso é importante, as instituições de fora são ótimas, mas seria bom que sempre tivessem um contato com a realidade da instituição para que o curso não fosse muito abstrato à realidade das pessoas que vivenciam os problemas no dia a dia (delegada).

5 OS IMPACTOS DAS EXPERIÊNCIAS SOBRE AS PRÁTICAS DAS DELEGACIAS DA MULHER E A AVALIAÇÃO DAS EXPERIÊN-CIAS PELOS ATORES INSTITUCIONAIS

Na perspectiva dos policiais, o impacto das duas experiências se reflete principalmente nos modos de atendimento à população. Essa mudança segue duas direções: uma no sentido de modificar a visão que eles/elas próprios/as tinham do trabalho policial na DEAM como um lugar desprestigiado dentro da Polícia Civil; e outra, no sentido de um novo entendimento dos/as próprios/as policiais sobre a função das DEAMs, levando-as a pensar no espaço policial não apenas como lugar de punição ao agressor, mas como espaço educativo junto à mulher que sofre violência. Essa reflexão contribuiu para superar a visão estereotipada da mulher que denuncia, mas não pretende a criminalização do agressor e apontou a necessidade de encaminhá-la para outros espaços de assistência, dentro da própria delegacia ou para outras instituições.

Na época eu percebi que eles conversaram muito e houve muita polêmica sobre muitas coisas que foram colocadas, mas digamos que o que eu percebi logo depois da capacitação é que gerou uma atitude positiva, eles começarem a questionar. Porque quando você acha que sua verdade é absoluta e as coisas têm que continuar

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do jeito que sempre foram, você não para pra pensar o que seria ideal e eu acho que o ponto positivo após aquela capacitação, apesar de talvez na mente deles ter desvanecido tudo que foi falado em pouco tempo, mas no mínimo gerou neles um questionamento do que seria ideal no funcionamento da delegacia. Acredito que a sensibilidade das pessoas que fizeram o curso mudou. O cuidado do escrivão, do homem, mudou, talvez ele nunca tivesse se apercebido disso, o porquê da mulher, da menina vítima de estupro se sentir muito mais à vontade sendo ouvida por uma mulher e não por um homem. E ele começou a perceber o porquê das coisas, talvez a coisa mais válida que eu tenha percebido foi isso: existe sempre como melhorar o atendimento, principalmente numa matéria tão delicada como as relações familiares (uma delegada).

Por outro lado, houve uma sensibilização em relação à necessidade de buscar parcerias com outros órgãos para que o atendimento à mulher vítima de violência não se encerre na DEAM, mas se desdobre em outras ações que possam oferecer soluções mais consequentes e de longo alcance, sem o caráter paliativo que muitas vezes representa a ação policial diante da complexidade do problema, sobretudo nos casos de violência doméstica.

A percepção da DEAM como espaço de mediação, de orientação e de cuidado, segundo depoimentos das delegadas, e a necessidade de criação de uma rede de apoio que preste um atendimento integrado e integral (policial, jurídico, médico, psicológico, social) às mulheres em situação de violência foram as contribuições mais significativas das duas experiências. Isso, segundo depoimentos de algumas, teria influenciado a busca por novos modelos de funcionamento, que se materializou no projeto do Centro de Atendimento a Grupos Vulneráveis.

Toda a ideia da criação do Centro de Atendimento a Grupos Vulneráveis começou com essas experiências da UFS e do pessoal da Bahia, que nos fizeram fomentar que tinha que mudar alguma coisa em termo de ambiente e nos procedimentos. Porque, quando você procura uma delegacia o que você quer é providência e se a gente não consegue sequer atender à providência que você solicitou, a gente não está conseguindo fazer nada. Mas não bastava estar com os procedimentos em dia, a gente tem que ter qualidade de trabalho e de atendimento e fomos evoluindo. (...) Para coibir a violência doméstica não basta apenas a atuação da delegacia, é fundamental o envolvimento com redes de parceria, com ONGs, outras políticas públicas do governo destinadas a esta questão. Hoje o nosso desafio é institucionalizar essas parcerias. (...) A postura das delegadas também contribuiu pra isso e as policiais passaram a ver que essa interação era fundamental para a evolução das atividades realizadas (uma delegada).

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Segundo as policiais, a mudança do formato da DEAM e sua vinculação a um complexo policial, localizado no mesmo espaço físico, com uma coordenação unificada e com setores comuns, garantiu melhores condições de trabalho e tem produzido um aumento no nível de satisfação e valorização profissional, embora se registre um acúmulo e sobrecarga das atividades sobre o contingente policial. O novo modelo de atendimento tem aumentado o número de queixas e proporcionado maior visibilidade na mídia, facilitando o acesso da população ao Centro. Há ainda, segundo esses depoimentos, uma maior preocupação com a qualidade do atendimento e com um maior acolhimento às mulheres. Esses avanços são entendidos como “não fazer a vítima esperar” e “na pouca reincidência de casos, após as audiências de mediação”.

Ficou mais completo, a gente hoje sabe que vai começar e vai terminar bem, a gente não deixa a coisa no meio do caminho, a gente não faz um BO como antes. Por exemplo, chegava uma criança vitimada de alguma violência, a gente fazia aquele registro porque no caso ela morava no bairro Santa Maria e a gente não tinha como chegar e dizer “ah não vou atender porque é criança, tem que ser na Delegacia de Menores”. Você ficava tão sensibilizada que você registrava o BO, mas tinha que mandar o serviço ser acabado na Delegacia de Menores. E hoje não, chega aqui, a gente toma providência e vai até o final e antes não era assim. Então hoje é gratificante por isso, porque a gente vê nosso serviço fluir, a gente não deixa a coisa pela metade como era antes (agente policial)

O nosso nível de qualidade melhorou muito e tudo começou quando passamos a pensar a temática da mulher, porque até então se fazia as coisas por senso de responsabilidade, por compromisso. Foi fundamental a intervenção tanto da universidade quanto a intervenção da Secretaria Nacional dos Direitos da Mulher, quando efetuou aquele curso aqui. Ainda há um pouco de intolerância dos policiais com relação à desistência da vítima, em relação à retirada da queixa, mas eu acredito que ela está muito mais suave e menos explícita (uma delegada).

Um policial que participou apenas da Capacitação e é da DEAM de Itabaiana, no interior do estado de Sergipe, apresenta um ponto de vista diferente:

Olhe eu acredito que acerca de posturas dos policiais não houve tantas mudanças não. Talvez acerca da concepção do que é o serviço na Delegacia da Mulher, do que é um serviço especializado na Delegacia da Mulher, talvez melhorou essa concepção, essa consciência desse serviço. Agora, acerca das posturas fica um pouco difícil, porque até por conta da estrutura que não é adequada e para você mudar sem ter uma estrutura, sem ter um apoio

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do governo. E isso não houve, deram um curso e acabou aí, não houve um incentivo, uma continuidade, é aquela coisa: você tem aquele curso, mas eu sinto que é como se fosse mais uma aula sobre aquele tema ali. (agente policial)4.

Na avaliação das experiências, as especificidades de cada uma são evidenciadas apenas em relação à metodologia: o grupo de discussão é percebido pelas agentes policiais como inserido no cotidiano institucional, sem conteúdos definidos a priori pela equipe da CDH, mas “negociados” com os participantes, o que é valorizado mais positivamente em relação à capacitação, que apresentou um programa já elaborado, com uma pauta definida de temas a serem discutidos, “sem uma pesquisa dirigida às necessidades locais”.

Outra diferença evidenciada diz respeito à continuidade das experiências: a primeira é percebida como uma presença constante durante seis meses, e a segunda, concentrada em uma semana, embora ambas tenham contemplado a mesma carga horária. Evidenciam-se também especificidades na abordagem das policiais: a experiência da capacitação trabalhou com aulas-debate, em uma situação formal e “distante da realidade cotidiana”; a experiência dos grupos de discussão e reflexão utilizou como recurso, algumas vezes, a própria prática institucional. Por outro lado, na capacitação houve melhores condições de infraestrutura e não se verificou, explicitamente, o que os membros da CDH chamam de “resistências institucionais” ao desenvolvimento da proposta.

A visibilidade que a experiência da capacitação obteve junto à corporação policial, à mídia e aos movimentos sociais foi significativamente maior do que a experiência da CDH, que ficou circunscrita a um pequeno grupo de policias da DEAM de Aracaju. Outro aspecto positivo ressaltado em relação à capacitação foi a possibilidade de conhecer experiências de outros estados, por meio da participação de instrutores convidados de Pernambuco e da Bahia.

Outros pontos positivos das duas experiências são evidenciados, sobretudo no que se refere à relação da polícia com a sociedade: ambas promoveram uma abertura ao diálogo entre esses dois segmentos, contribuindo para pensar criticamente a função das DEAMs. O “diálogo com outras instituições, com pessoas que vêm de fora e abrem um espaço de expressão e reflexão” é valorizado por quase todas as policiais entrevistadas, incluindo as delegadas. Desse modo, ambas as experiências foram, no geral, positivas: em um nível mais imediato, sensibilizaram o contingente policial para a especificidade do trabalho nas DEAMs e para a necessidade de um maior acolhimento às mulheres vítimas de violência; em um nível mais amplo, as experiências contribuíram com a ideia de criação do Centro de Atendimento a Grupos Vulneráveis. A falta de continuidade das experiências é apontada como aspecto negativo, principalmente em relação à capacitação. 4 As mudanças implantadas na DEAM de Aracaju, com a criação do Centro de Atendimento a Grupos Vulneráveis, não foram extensivas

às demais DEAMs do estado, que continuam operando no modelo anterior como delegacias especializadas, mas autônomas dentro da estrutura da Secretaria de Estado da Segurança Pública.

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Passemos agora à perspectiva de análise das agências formadoras: os membros da Comissão de Direitos Humanos da UFS, ao contrário dos policiais, apontam as limitações dos cursos ou da experiência dos grupos de discussão, em termos de impactos sobre as práticas, capazes de produzir mudanças substanciais nos modos de operar das organizações policiais. Para eles, essas mudanças são decorrentes de muitos fatores interligados, tais como: conjuntura da segurança pública em nível nacional e local, ascensão de alguns quadros policiais aos cargos de maior hierarquia dentro das corporações, organização da própria categoria na busca de solução para os problemas institucionais das organizações policiais etc. Dentro desse contexto, a CDH se vê como estimuladora da criação de um espaço público de tematização dessas questões e uma interlocutora na relação polícia-sociedade:

Eu não poderia estar pensando só a experiência do grupo, eu teria que estar considerando várias outras coisas de uma dimensão mais ampla do que propriamente a experiência. A experiência entra no meio, no miolo, no movimento de várias outras coisas: a educação para cidadania que vem dentro de uma política nacional de direitos humanos, de direitos da mulher, a polícia como um dos temas dessa política enfim... Então o grupo entrava no meio disso, só que querendo outras coisas que não uma mera transmissão mecânica de coisas. O grupo queria, por exemplo, que um policial começasse a poder se permitir problematizar a relação dele com a sociedade. Eu não tenho como avaliar isso pelo lado da relação concreta do policial com o cidadão, mas eu guardo assim, de recordação, de memória, algumas reflexões de algumas pessoas que estavam no grupo que se permitiram pensar coisas. Então pelo fato de eu ter testemunhado esses exercícios de crítica e autocrítica eu acho que a experiência do grupo acaba tendo uma repercussão indireta... Se aquele policial continua oprimindo as pessoas, pelo menos eu sei que aquele policial construiu reflexões críticas sobre isso, não é mais um comportamento automático (membro da CDH).

Entretanto, em termos de impacto, a avaliação da CDH aponta as limitações do trabalho realizado no que diz respeito a mudanças das práticas institucionais. Nesse sentido, o grupo considera que sua contribuição foi problematizar as relações polícia-sociedade e estimular o debate, pelos próprios policiais, das questões institucionais.

É difícil avaliar essas coisas porque as polícias são instituições muito complexas. Dentro da própria polícia têm grupos, têm posições diversas, têm pessoas que têm posições diferentes, que têm interesses diferentes e nossa experiência não atingiu a totalidade da polícia, a gente atingiu um grupo. E como não era obrigatório, obviamente quem

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se aproximou dos grupos foram pessoas que se sentiam atraídas pela temática. As transformações que possam estar ocorrendo na polícia dependem agora da posição que essas pessoas possam vir a ocupar dentro da corporação policial. Por exemplo, a gente estava conversando com uma delegada e ela falando que o rearranjo institucional que está havendo na Delegacia da Mulher teve muito a ver com o trabalho que nós fizemos lá. Então, isso tem a ver com o trabalho que é feito, mas também com a ascensão dessas pessoas dentro da corporação e essa ascensão na corporação é uma coisa muito aleatória que depende muito da relação de forças, dos grupos internos. Ao mesmo tempo, essas pessoas que se aproximaram dos grupos, muitas delas já tinham uma posição formada com relação aos direitos humanos. Os cursos que nós demos, os grupos que formamos, na verdade foram uma forma dessa pessoa reforçar essas ideias, criar interlocução com a universidade, de se conhecer um pouco melhor entre eles, de começar entre eles mesmos, saber que tem uma postura mais profissional na polícia, menos violenta, menos truculenta etc. Então nisso você permite a criação de alianças dentro da corporação. Agora o curso em si, os grupos, propiciaram espaço, mas em relação a mudanças de práticas, eu não sei, eu sou um pouco cético (membro da CDH).

Na avaliação da CDH, a experiência desenvolvida junto às polícias do Estado, tanto na primeira fase (cursos de direitos humanos para policiais) quanto na segunda (grupos de discussão e reflexão das práticas policiais) representou uma expansão do debate público sobre o exercício da função policial. Nesse sentido, o trabalho desenvolvido na DEAM remete sempre a um trabalho mais amplo, não circunscrito a essa unidade policial, mas ao conjunto da Polícia Civil e Militar.

Sobre a experiência na DEAM, são enfatizadas a importância da reflexão feita sobre a especificidade do trabalho policial nessa delegacia e sobre o descompasso entre as representações e demandas das policiais e das vítimas em torno da função da DEAM, apontando a necessidade de se repensar o papel da polícia para além de sua função repressora e punitiva. É valorizada, também, a expressão do desejo das policiais de realizar um bom trabalho, de melhorar a imagem do policial e sua credibilidade social, e de buscar soluções mais eficazes para o atendimento às mulheres vítimas de violência. Avalia-se também positivamente a presença da delegada em quase todas as reuniões do grupo, contribuindo para o aprofundamento das discussões e para a busca de soluções.

Um dos frutos da experiência do grupo de discussão foi a construção coletiva de um projeto de formação policial para as DEAMs, elaborado pela equipe da CDH e pelas policiais. Entretanto, não houve recursos financeiros nem para a execução desse projeto nem para a continuidade do trabalho que vinha sendo desenvolvido. A interrupção do processo é apontada como o aspecto mais negativo da experiência.

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Na avaliação da coordenadora da capacitação, o grande ganho da experiência foi a possibilidade do intercâmbio entre os estados de Sergipe e Bahia, e “pela primeira vez realizar um trabalho voltado à melhoria do atendimento, por meio da criação de um espaço de discussão”. Isso permitiu aprofundar o debate em torno da função de uma delegacia especializada no atendimento à mulher vítima de violência, buscando alternativas para suas demandas. “Os policiais puderam colocar as dificuldades do trabalho, sem serem criticados”. Foi sugerido pelos agentes que o curso fosse estendido aos policiais militares e de outras delegacias, e que a carga horária fosse ampliada.

Como aspecto negativo foi apontada a falta de infraestrutura dada pela Secretaria de Segurança, em termos de local adequado e qualidade do coffee break oferecido. Outro ponto considerado negativo foi que a capacitação não atingiu um dos seus objetivos: a formação da rede de atendimento. Foi ressaltada também, como limitação da proposta, a impossibilidade de atender às demandas dos policiais:

Evidente que tem uma série de demandas dos policiais que um curso desses não dá conta, como foi falado muito na avaliação: um curso de balística, curso de informática, melhoria da infraestrutura como mais viaturas, melhoria do salário. Bahia e Sergipe pagam muito mal aos policiais (coordenadora da capacitação).

Na avaliação também são pontuadas limitações acerca da experiência, em termos de impactos sobre as práticas policiais. Segundo sua análise o formato de capacitação adotado não possibilita o acompanhamento de ações posteriores e seus desdobramentos.

Infelizmente eu não tenho esse dado de avaliação porque o ideal realmente é que se tivesse feito uma avaliação de impacto, mas o projeto nacional não previu isso imediatamente, embora, atualmente eu estou fazendo uma consultoria para o Ministério da Justiça e nós estamos montando realmente o projeto de avaliação nesses estados que passaram por essas capacitações. Mas imediatamente eu não tive notícias, assim objetivas, em relação a isso. Eu não apliquei um questionário seis meses depois, um ano depois, eu não tenho esse dado. Parte-se do pressuposto que se melhorou, mas como também tem uma alta rotatividade nas delegacias, mudam os policiais, que é outra coisa que vai muito à revelia deles, então assim, eu não tenho as devoluções se melhorou ou se piorou. Eu acredito, pela minha experiência, que melhorou. Piorar eu acho difícil, ou pelo menos estagnou (...). Eu acho que depois a rede não conseguiu ser formada, até deixei alguns contatos pra que o pessoal da delegacia lá pudesse fazer contato aqui com Salvador, e até eu soube que depois a delegada

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titular de lá veio aqui, participou de alguns eventos, mas eu acredito que a rede ainda está pra se fazer lá. Não tenho tido notícias de que tenha prosseguido aquele potencial que a gente começou (coordenadora da capacitação).

Do ponto de vista do movimento de mulheres, que participou apenas da capacitação, esta produziu impacto sobre as práticas de atendimento, em termos de melhoria no acolhimento às mulheres. Mas assinala que mudanças mais significativas se devem a fatores mais amplos e complexos, vinculados à cultura policial já consolidada.

Então eu vejo o seguinte: primeiro melhorou o acolhimento [com a criação do Centro de Atendimento a Grupos Vulneráveis]. Porque o acolhimento nunca foi uma preocupação das delegacias, sejam elas as delegacias convencionais ou as especializadas (...). Se você me perguntar se na Delegacia da Mulher o atendimento a grupos vulneráveis hoje contempla o que pensam os movimentos sociais eu digo que não, falta muito, mas nós estamos tentando fazer juntos também. (...) Mas eu me preocupo, porque a pessoa fez um curso desses, será que ela tá preparada para essa nova forma de ver a violência, de acolher, sem que ela tivesse tido condições de absorver mesmo, absorver rompendo paradigmas e desconstruindo o que ela tinha acumulado de entendimento sobre as coisas, de visão sobre o mundo, de visão sobre a mulher, de visão sobre a violência contra a mulher? Ou assim, você agregou, ao que já era cultural desses profissionais, um pequeno conhecimento? Você agregou, mas no momento que ela precise de uma tomada de decisão, ela vai fazer um resgate que vem toda a carga cultural acumulada. Porque é uma cultura, quando colocam aquele uniforme, eles já assumem superioridade... O que está por trás daquilo tudo? Então não é um curso que vai formar ou que vai desconstruir. O que nós precisamos antes é de construir essa nova mentalidade (membro da UBM).

Nesse sentido, foi ressaltada a importância do diálogo entre policiais, movimentos sociais, universidade e “todos que tinham interesse em discutir o assunto”. Foi apontada como limite da capacitação a falta de continuidade da experiência, uma vez que os movimentos de mulheres entendem que esse modelo de formação não é uma estratégia eficaz para a mudança da cultura policial.

Agora para mim o grande entrave ainda é que nós temos necessidade de continuar isso, o que fazer, então? Os cursos não têm efeito de mudar a cultura policial, porque são esporádicos, não tem conexão um curso com o outro e não tem uma periodicidade (membro da UBM).

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6 (RE)PENSANDO AS EXPERIÊNCIAS DE FORMAÇÃOEmbora embrionárias, considerando o curto período de tempo em que

ocorreram e a baixa carga horária das duas experiências, é necessário considerar que os programas de formação policial aqui analisados estão inseridos dentro de propostas de trabalho mais amplas que as duas agências formadoras possuem, com experiências significativas em educação para a cidadania: junto à polícia (no caso da CDH/UFS) e junto aos movimentos sociais, especialmente de mulheres (no caso do Ministério da Justiça).

A contribuição das experiências para a formação policial e o impacto que tiveram sobre as práticas policiais se mostram vinculados à abertura de um espaço de diálogo, crítica e reflexão entre a polícia e a sociedade, e não apenas aos conteúdos instrucionais trabalhados. Observam-se, nesse sentido, ênfases diferenciadas: enquanto a ênfase da capacitação recaiu sobre a transmissão de conteúdos e informação, a dos grupos de discussão incidiu sobre a reflexão das práticas policiais cotidianas.

O grande impacto das experiências parece estar relacionado à contribuição que ambas deram na elaboração da proposta de criação do Centro de Atendimento a Grupos Vulneráveis, que se assenta em dois pilares centrais: a mediação de conflitos e o atendimento integrado e em rede às mulheres e demais grupos vulneráveis e em situação de risco, elaborado por um grupo de delegadas e delegados de carreira, quase todos recém-concursados. Nesse sentido, podemos dizer que as contribuições dadas se refletiram prioritariamente num nível hierárquico superior, embora os agentes policiais possam ter sido sensibilizados para mudanças, direta ou indiretamente.

A criação do Centro de Atendimento a Grupos Vulneráveis, contudo, dependeu de inúmeros fatores vinculados à conjuntura local da Polícia Civil, tais como: a contratação de delegados/as novos/as por meio de concurso público, quase todos/as sem inserção anterior na polícia e com uma visão mais democrática de Segurança Pública (entre os quais foram escolhidas as atuais delegadas titulares das DEAMs do estado); a organização desse grupo para fazer frente a práticas consideradas violadoras de direitos humanos e ilegais dentro da corporação; e a articulação com quadros policiais antigos e em ascensão, que dentro da Polícia Civil já tinham ideias e práticas diferenciadas. Além disso, houve mudança na conjuntura em nível nacional, no âmbito das políticas de Segurança Pública. Desse modo, consideramos que as experiências realizadas com os grupos de discussão e a capacitação, desenvolvidos respectivamente pela CDH/UFS e pelo Ministério da Justiça, somam-se a esse contexto de mudanças, no qual as agências formadoras são vistas pelos policiais como parceiras na construção de novas propostas de funcionamento para a DEAM.

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O projeto que criou o Centro de Atendimento a Grupos Vulneráveis aponta a necessidade de “formação de agentes públicos aptos tecnicamente para lidar com as diferenças existentes no espaço social” (SERGIPE, s.d.). O texto reconhece que essas unidades policiais, embora tenham por missão o atendimento à população específica, “não possuem, em seu quadro de pessoal, profissionais preparados para o trato de tais demandas”.

Desse modo, se reafirma a necessidade de formação específica para os quadros policiais, pois como revela a experiência de duas décadas das DEAMs, não basta a criação de novos espaços policias para que se assegurem bom atendimento, conquista de cidadania, proteção às mulheres e garantia de direitos. Nesse sentido, recorremos a um depoimento de Paulo Freire, que relata uma experiência feita por ele na formação de educadores, que poderia ser utilizada como desafio em projetos de formação policial e que deixamos como sugestão a ser pensada:

Em primeiro lugar, vocês deveriam partir para uma compreensão da formação, enquanto permanente e não de uma formação que se dá hoje e acabou. O chute inicial, pra mim, teria que ser feito desde o começo, casando a prática com a teoria (...). Pessoas só se formam fazendo e participando ativamente do seu próprio processo de formação (...). A gente vai observando como é que eles trabalham e é corrigindo os erros que eles se formarão. Os próprios educandos devem ser convidados a assumir um papel importante na formação deles, e esse é um papel político (...). E vocês vão dando a teoria do processo, na medida em que o cara vai experimentando-se na prática, entende? (...) Agora, a partir daí a formação continua, no que eu chamo de seminários de avaliação da prática. Quer dizer, cada semana, fim de semana, reúne os educandos e avaliam o que foi feito naquela semana, faz a crítica com eles da sua própria prática (...). Muita gente ainda pensa que a melhor maneira de formar gente é manter 30 caras dentro de uma sala e passar um mês dando conferência. Pra mim não é, é expor você à prática e fazer a análise da prática com você, e na análise da prática nunca ultrapassar a teoria da prática que foi vivida. Eu quero dizer o seguinte: eu só tenho que analisar teoricamente aquele pedaço da prática que foi vivido, tenho que ser paciente e esperar para o dia seguinte, onde vai haver uma ultrapassagem. Aí eu ultrapasso com a teoria também (FREIRE, 1985).

Adotando essa concepção de “formação permanente” na qual o próprio educando deve ser implicado, acreditamos que cursos específicos, para atender necessidades emergenciais, não garantem um processo de formação que torne possível aos agentes policiais o enfrentamento do problema social e cultural da violência contra as mulheres, capaz de garantir um atendimento especializado

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e diferenciado dentro da Polícia Civil. Projetos verticalizados, com conteúdos programáticos e metodologia unificada em nível nacional, como a capacitação aqui analisada, também não parecem atingir o cerne da questão. Por outro lado, a experiência dos grupos de discussão é uma proposta inovadora, mas como não teve continuidade, não há elementos suficientes para analisar seu alcance e eficácia.

Uma proposta de “formação permanente” deveria estar articulada em torno de uma concepção clara sobre as questões centrais dos problemas vividos pelo cotidiano das DEAMs, para fomentar uma atitude problematizadora dos profissionais em relação às práticas institucionais vigentes. É sobre o exercício do fazer cotidiano e sobre a reflexão dessas práticas institucionais que a teoria deve ser discutida, como sugere Freire (1985). Essa, porém, é uma perspectiva antes política do que técnica e implica, necessariamente, repensar a função social das delegacias da mulher.

7 CONSIDERAÇÕES FINAISApós dez anos da realização da pesquisa aqui apresentada e das

experiências de formação policial que foram objeto da nossa investigação, fazem-se necessárias algumas considerações que atualizem as discussões anteriores.

Atualmente o principal parâmetro de avaliação do funcionamento das DEAMs recai sobre a aplicação da Lei n. 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha, e a implantação das mudanças que ela prescreve, tanto no campo policial, quanto no judiciário. No que diz respeito à experiência sergipana, particularmente referente à DEAM de Aracaju, a nova legislação sancionada em 7 de agosto de 2006, pelo Presidente da República, que dispõe sobre a violência doméstica e familiar, modificou substancialmente a experiência que vinha sendo realizada a partir de 2004, com a implantação do Núcleo de Mediação de Conflitos.

Como já dito acima, a construção do Centro de Atendimento a Grupos Vulneráveis e a criação desse núcleo foram os principais impactos produzidos pelas experiências de formação policial que analisamos na pesquisa da qual trata este artigo. Como assinalamos anteriormente, a consolidação desse projeto estava vinculada não apenas às experiências de formação policial sob a responsabilidade das agências formadoras, mas a muitos outros fatores externos ao Centro de Atendimento a Grupos Vulneráveis e à própria DEAM, relacionando-se diretamente às políticas estaduais e nacionais de segurança pública, e ao funcionamento organizacional e institucional da Polícia Civil em Sergipe. As possibilidades de sucesso dessa experiência pareciam estar ligadas, sobretudo, ao diálogo entre a polícia e representantes da sociedade civil organizada, por meio dos movimentos sociais e, em especial, do movimento feminista e de outros grupos de mulheres, que pudessem efetivamente estabelecer um controle social sobre as ações policiais executadas nessa unidade policial, em especial, pelo Núcleo de Mediação de Conflitos.

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Como é sabido, em relação às medidas cabíveis à polícia, determina a nova legislação que cabe à autoridade policial, no atendimento à mulher em situação de violência, tomar uma série de medidas protetivas de urgência, adotando procedimentos imediatos de cuidados e proteção à mulher em situação de risco e à sua família, como, por exemplo, encaminhá-la para serviços médicos, acompanhá-la à sua residência para retirar seus pertences sem necessidade de autorização judicial, disponibilizar transporte para encaminhá-la à Casa Abrigo ou outro local seguro.

Sendo feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial adotar todas as providências legais referentes ao encaminhamento do caso à Justiça, tomando a termo a representação da mulher denunciante, se apresentada, para cada caso em que tenha sido registrado boletim de ocorrência. Com essa medida, a reclamante não poderá mais desistir da denúncia, a não ser na presença do juiz, em audiência especialmente marcada para este fim. As unidades policiais deverão instaurar inquérito policial, ouvir a reclamante, o agressor e as testemunhas, a fim de colher as provas a serem encaminhadas à Justiça. Poderão ainda efetuar a prisão em flagrante do agressor. Desse modo, a lei restitui às DEAMs e às demais unidades policiais que prestarem atendimento às mulheres em situação de violência, como atividades prioritárias, o exercício das atribuições de investigação e repressão que competem à Polícia Judiciária. Entretanto, tais medidas restringem sobremaneira as possibilidades de renegociação, conciliação e mediação de conflitos que caracterizou o trabalho das DEAMs ao longo de duas décadas, sendo essa a maior demanda das mulheres que pretendiam com a sua denúncia reduzir ou abolir a violência doméstica, sem a pretensão de criminalizar seus maridos ou companheiros.

É inegável que se faz necessário pensar no problema da impunidade aos crimes de violência doméstica. Mas, se em alguns casos é de fato preciso aplicar penalidades duras para atos bárbaros, rotinizados ou banalizados de violência doméstica, capazes de aniquilar, destruir e provocar danos profundos e irreparáveis a mulheres e crianças, em muitos outros se faz necessária a adoção de formas diferenciadas de enfrentamento, capazes de coibir a violência, reparar os danos sofridos e atender ao agressor. Há ainda outros casos em que a interrupção da violência não passa necessariamente pela criminalização do seu autor, como revela o desejo da maioria das denunciantes que procuram as DEAMs. Parece-me que a Lei n. 11.340 se aplica ao primeiro caso, mas enfraquece as possibilidades de resolução dos demais, sobretudo dos últimos, nos quais as DEAMs desempenhavam um importante papel.

Por outro lado, o enfrentamento da violência de gênero além de exigir ações pontuais e uma política pública abrangente — que envolva a ação articulada de várias instituições, como determinam a Constituição Brasileira de 1988 e a

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Convenção de Belém do Pará de 1994 —, passa por um processo mais amplo de desnaturalização da violência na sociedade brasileira e de ressignificação das representações sociais da punição como vingança, consolidadas inclusive dentro das organizações sociais responsáveis pela execução das políticas públicas nessa área. O que nos parece necessário pensar é a necessidade de uma reflexão acerca da cultura policial e jurídica que ancoram as práticas institucionais dos órgãos responsáveis pelo enfrentamento da violência doméstica e familiar, aos quais cabe a aplicação da nova lei, uma vez que valores e crenças consolidados nessas culturas acerca da violência de gênero e, em especial, das violências que ocorrem na família, não são efetivamente mudados por força de lei. Nesse sentido, pensar a formação do contingente policial e dos operadores do Direito que lidam com essa matéria torna-se uma necessidade imperiosa.

No caso da violência doméstica, além da complexidade que envolve o processo subjetivo de sua desarticulação, por implicar uma mudança profunda de crenças, valores e atitudes, modos de sentir, perceber e agir, há o fato de as políticas de segurança pública encontrarem-se materializadas quase exclusivamente por meio da polícia e da Justiça, duas instituições que historicamente têm sido refratárias a um diálogo com a sociedade e à participação social no controle sobre suas práticas. Desse ponto de vista, o judiciário tem sido mais hermético às mudanças almejadas e apontadas pela sociedade do que as polícias, que, em decorrência dos graves e crescentes problemas que envolvem a execução da sua função pública, diretamente ligada ao trato com a população, mostram-se mais abertas ao diálogo com representantes da sociedade civil organizada e a reformas, demandadas, inclusive, por uma parte significativa de seus membros.

Em se tratando da violência doméstica, pensamos que é preciso, cada vez mais, conhecer e compreender os mecanismos pelos quais o poder se exerce e se mantém nas relações entre homens e mulheres, identificando os valores, as crenças e as “lógicas” que estas utilizam quando permanecem nas relações violentas, e, sobretudo, seus movimentos de ruptura, que se configuram como produção de contra-dominação. Fortalecer suas resistências ativas por meio das redes comunitárias que já existem (entre vizinhas, parentes, amigos, associações de bairros, grupos de mulheres, clubes de mães etc.), mas, principalmente, promover o enfrentamento da violência de gênero na esfera pública, viabilizando condições de suporte institucional para a constituição de redes formais que articulem a assistência policial, jurídica, social e de saúde, são medidas capazes de garantir soluções estruturais à violência de gênero, com efeitos mais profundos e duradouros. A experiência histórica de enfrentamento da violência, em suas múltiplas formas, tem mostrado que esses efeitos não são garantidos, por si só, por meio de medidas legais e procedimentos burocráticos, tais como a instituição de normas, sanções e a punição aos agressores.

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Para concluir, retomamos a questão da função social das delegacias da mulher. Os impasses, dilemas e desafios que fazem o cotidiano dessas unidades policiais estão, em parte, relacionados ao fato de que as atividades nelas desenvolvidas extrapolam as ações de investigação que levariam à criminalização dos agressores, sobretudo, nos casos de violência doméstica. Falta aos policiais comprometidos com as funções educativas e preventivas das DEAMs, um reconhecimento institucional e social-comunitário dessas formas de operar. Essa falta de reconhecimento os impede de se identificar como “autênticos policiais” ao desenvolvê-las. Essa não identificação e valorização profissional que os órgãos do sistema de segurança pública fazem e os próprios policiais sentem em relação às atividades que executam dependem, em parte, de como as ações desenvolvidas nessas unidades policiais são avaliadas.

Pensamos que dois caminhos podem nortear essa reflexão. O primeiro consiste em avaliar a ação das DEAMs a partir da noção de produtividade: seria, então, o número de agressores acusados judicialmente e condenados criminalmente que indicaria uma política bem-sucedida de redução ou contenção da violência de gênero materializada pelas DEAMs. Adotar as categorias de criminalização e punição como pontos centrais desta análise levaria à conclusão da falência dessa política pública, uma vez que os números de casos encaminhados à Justiça pelas DEAMs, com julgamento e punição do agressor, são ínfimos. Esta, na minha maneira de ver, seria uma conclusão estreita: embora haja consenso entre pesquisadores e militantes feministas em torno da necessidade imperiosa de mudar os modos de funcionamento das DEAMs, há também outro consenso referente ao reconhecimento do papel histórico das DEAMs em selar o fim do silêncio, dar visibilidade à questão da violência contra as mulheres, contribuir para garantir legitimidade à sua desnaturalização e politizá-la no espaço público, o que representa um grande avanço na construção da cidadania das mulheres.

O segundo caminho seria avaliá-la a partir da ótica das mulheres. Para as mulheres denunciantes que mantêm a sociedade conjugal ou para aquelas que a dissolveram, mas mantêm vínculos afetivos com o agressor, o “sucesso” dessa política se mede pela possibilidade de publicização de um conflito muitas vezes cronificado, num espaço que extrapola a esfera do lar e das relações familiares, no qual o fenômeno da violência é “julgado” a partir de outra ordem e racionalidade. As mulheres esperam que esse espaço lhes garanta proteção e direitos, lhes permita negociar interesses e que a intermediação da autoridade policial viabilize a resolução dos conflitos que vivem e o fim da violência. Nessa perspectiva de análise, os baixos índices de casos encaminhados à Justiça expressam não a falência de um “projeto emancipador” das mulheres, mas a existência de um outro nível de resolutividade dos casos recebidos pelas DEAMs, que não é o da lógica da produção de resultados numericamente quantificados.

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Privilegiando o segundo viés, avaliamos que as DEAMs se caracterizaram não apenas como um espaço de resistência institucional das mulheres contra a violência, mas como um espaço de resistência dos policiais lotados nessas unidades frente à “lógica da produção” do trabalho policial. Diante do crescente quadro de insegurança que assola a sociedade brasileira, a produtividade de uma delegacia de polícia é medida pelo Estado e mesmo pela população em função dos resultados que apresenta: números crescentes de ocorrências registradas e termos circunstanciados lavrados, inquéritos instaurados e enviados à Justiça, flagrantes executados, mandatos de busca e apreensão realizados, prisões efetuadas. Vinte anos de funcionamento das DEAMs, porém, mostram que a eficiência e eficácia dessas unidades policiais deve ser pautada em outros critérios, condizentes com as demandas das mulheres que as procuram e com o trabalho realizado por seus profissionais, buscando atendê-las.

A experiência que estava sendo implantada na DEAM de Aracaju, que durante dois anos adotou o instrumento jurídico de mediação de conflitos segundo critérios bem determinados5, diferenciando-se da conciliação e da arbitragem, por meio de um trabalho de qualificação de mediadores para esse fim específico, se caracterizou como espaço de resistência de delegadas e agentes policiais que pensaram a polícia sob outros moldes e que protagonizaram práticas institucionais diferenciadas nessa unidade policial. Essas práticas diferenciadas não tiveram, porém, em virtude do pouco tempo da experimentação, a potência de se tornarem, de fato, institucionalizadas. Elas provocaram fissuras, rachaduras, fendas, capazes de inverter momentânea e circunstancialmente lógicas cristalizadas de funcionamento institucional.

Consideramos, por fim, que mudanças nos modos de operar da polícia estão limitadas pela própria razão de ser de uma organização social que, ao lado das Forças Armadas, da Justiça e do sistema prisional, formam o circuito do poder repressor do Estado. Desse circuito repressivo nenhuma delegacia de polícia pode escapar, seja ela especializada ou distrital, embora seja possível aos policiais que nelas desenvolvem seu trabalho, resistir. 5 São esses os seguintes critérios citados por Marques e Teles (2005) que nortearam a ação do Núcleo de Mediação de Conflitos na

DEAM de Aracaju: a) a intervenção judicial não é suficiente para a resolução dos conflitos e inibição da violência doméstica. Desse modo, as DEAMs como órgãos intermediários entre a população e a Justiça, devem interferir na redução da violência doméstica, considerando que a eficácia da mediação de conflitos está relacionada à possibilidade de despertar nos casais a importância da regulação das relações familiares, por meio do ressurgimento da comunicação e do diálogo, capazes de reforçar o exercício da cidadania, uma vez que confere aos próprios protagonistas o poder de elaborar os preceitos e as regras que passarão a reger suas relações cotidianas; b) são elementos necessários para que a mediação possa atingir os objetivos pretendidos: a formação do mediador, a definição formal de suas atribuições e das rotinas a serem seguidas e o monitoramento das mediações com fins de aferição da sua efetividade e eficácia; c) o foco prioritário de qualquer iniciativa de resolução de conflitos familiares deve ser a segurança das mulheres, o seu fortalecimento individual, o que supõe a recuperação da sua autonomia e capacidade de autodeterminação, comprometidas pela relação violenta. Por isso, não basta mediar o conflito, mas fazer do aparelho policial uma porta de entrada para outros serviços na área da saúde, assistência social, profissionalização etc.; d) o tratamento ao agressor deve ser feito por meio de instrumentos que o auxiliem a compreender a gravidade da sua conduta, as causas que desencadearam o seu comportamento e a possibilidade de mudança. Assim, se faz necessário um acompanhamento posterior em que se pesquise a observância ou quebra do pacto celebrado durante a audiência de mediação. A aferição da eficácia resolutiva do método deve ser feita por meio de visitas periódicas a fim de se verificar o cumprimento do acordo pactuado, a necessidade de repactuação e o levantamento de dados referentes à reincidência; e) a mediação de conflitos só se aplica aos casos que envolvem os chamados “direitos disponíveis”, mas, mesmo os tendo como objeto, está excluída nas seguintes situações: i) quando vislumbrada uma grande desproporção de poder entre as partes, sobretudo de ordem econômica, capaz de inviabilizar a consecução de acordos satisfatórios para ambas; ii) quando há cronicidade da violência; iii) se o conflito possuir uma importância que supera os atos violentos em si mesmos, ou seja, quando a convivência litigiosa é necessária para manter a relação afetiva do casal.

Formação policial e práticas institucionais das Delegacias da Mulher em Sergipe | 183

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INSTRUÇÕES PARA SUBMISSÃO DE ARTIGOS

1 DA PUBLICAÇÃOOs números de Segurança, Justiça e Cidadania podem ser temáticos ou

se relacionarem a questões mais gerais agregadas em um volume aberto. Caso o volume possua um tema de referência, as chamadas para submissão de artigos serão destinadas a captar textos relacionados especificamente ao tema escolhido do número do periódico a ser publicado.

Os trabalhos publicados nessa Revista não precisam ser inéditos.

2 DO FORMATOOs artigos deverão ser escritos em português, gravados em formato

Word ou em editores de texto compatíveis com softwares de código aberto, obedecendo as regras expressas pela ABNT em suas normas, NBR 6023:2002, para referências; NBR 10520:2002, para citações; NBR 6024:2003, para numeração das seções; NBR 6028:2003, para elaboração de resumo; as Normas de Apresentação Tabular editadas pelo IBGE, para gráficos e tabelas; e a ortografia prevista pelo Decreto n. 6.583/2008, com no máximo 30 e no mínimo 20 páginas incluídas notas de rodapé e bibliografia, seguindo o padrão abaixo descrito:

Tamanho: A4

Margens: 2,5 cm

Espaço entrelinhas: 1,5

Fonte: Times New Roman, tamanho 12.

3 DAS PARTES DO TEXTO 3.1 Apresentar resumo em português e inglês com pelo menos três palavras-chave. 3.2 Ilustrações deverão ser vetorizadas e enviadas em formato .pdf, com resolução de 300dpi, ou em arquivo Illustrator. 3.3 Tabelas, quadros e gráficos deverão ter extensão .xls ou outro for-mato compatível com softwares de código aberto. 3.4 Fotos deverão vir em formato .jpeg, com resolução de 300dpi. 3.5 Os créditos do autor, indicando a titulação e a profissão que exerce, deverão vir em nota de rodapé na primeira página do artigo.

4 DAS CITAÇÕES E REFERÊNCIAS 4.1 Citações e referências a obras e autores deverão vir inseridas no corpo do texto, seguindo o sistema autor-data como exemplificado.

Instruções para submissão de artigos | 187

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4.1.1 Um autor

(POLLAN, 2006, p. 65)

4.1.2 Dois autores

(PARKER; ROY, 2001, p. 304)

4.1.3 Três autores

(CECATO; LEAL; RÜDIGER, 2009)

4.1.4 Mais de três autores

(FREIRE et al., 2008, p. 112)

4.1.5 Com o uso da expressão apud (citado por, conforme)

(VIANNA, 1986, p. 172 apud SEGATTO, 1985, p. 214-215) 4.2 As referências bibliográficas virão ao final do texto, seguindo o sistema alfabético como exemplificado.

4.2.1 Livros

4.2.1.1 Um autor

WOOLDRIDGE, Jeffrey M. Econometric analysis of cross section and panel data. Londres: MIT, 2001.

4.2.1.2 Dois autores

CANO, Ignácio; SANTOS, Nilton. Violência letal, renda e desigualdade no Brasil. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2001.

4.2.1.3 Três autores

CECATO, Maria Aurea Baroni; LEAL, Mônia Clarissa Henning; RÜDIGER, Dorothée Susanne (Org.). Trabalho, constituição e cidadania: reflexões acerca do papel do constitucionalismo na ordem democrática. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2009.

4.2.1.4 Mais de três autores (colocar o nome do primeiro autor seguido da expressão et al.)

KELLY, John D. et al. Anthropology and Global Countinsurgency. Chicago: University of Chicago Press, 2010.

4.2.1.5 Editor, tradutor ou organizador

BATITUCCI, Eduardo C.; CRUZ, Marcus Vinícius. (Org.). Homicídios no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2007.

4.2.2 Capítulos, artigos ou outras partes de livroANDRADE, Mônica V.; LISBOA, Marcos B. Desesperança de vida:

homicídio em Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo no Período 1981/97. In: HENRIQUES, Ricardo. (Org.). Desigualdade e pobreza no Brasil. Rio de Janeiro:

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IPEA, 2000. p. 347-384.

4.2.3 Livros publicados eletronicamente

KURLAND, Philip B.; LERNER, Ralph. (Ed.). The Founders’ Constituition. Chicago: University of Chicago Press, 1987. Disponível em: <http://press-pubs.uchicago.edu/founders/>. Acesso em: 28 fev. 2010.

4.2.4 Teses ou dissertações

NÓBREGA JÚNIOR, José M. P. da. Os homicídios no Brasil, no Nordeste e em Pernambuco: dinâmica, relações de causalidade e políticas públicas. Tese. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2010. 4.3 Artigos

4.3.1 Artigo em revista impressa

MERTON, Robert K. Social structure and anomie. American Economic Review, v. 3, n. 5, p. 672-682, 1938.

4.3.2 Artigo em revista eletrônica

SILVA, Francisco M.; SILVA, Kelly R. S. da. O novo modelo de segurança pública no Rio de Janeiro: violação ou garantia de direitos humanos nas favelas cariocas?. Pós – Revista Brasiliense de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Brasília, n. 11, p. 38-62, dez. 2012. Disponível em: <http://seer.bce.unb.br/index.php/revistapos/>. Acesso em: 14 ago. 2013. 4.4 Trabalhos apresentados em congressos

GRIZA, Aida; HAGEN, Acácia M. M. Trajetórias de autores e vítimas de homicídios em uma área de Porto Alegre em 2005. In: ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS, XIII, 2007, Caxambu, Minas Gerais. Anais... Caxambu: Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Ciências Sociais, 21-24 de outubro 2007. 4.5 Bases de dados, programas, mensagens eletrônicas e outros documentos de acesso exclusivo em meio eletrônico

INSTITUTO DE ESTUDOS DO TRABALHO E SOCIEDADE (IETS). Indicadores PNAD 1992-2007. Notas explicativas. Rio de Janeiro, 2007. Disponível em: <http://www.iets.org.br/rubrique.php3?id_rubrique=94>. Acesso em: 14 jul. 2009.

5 DAS RESPONSABILIDADES E GARANTIAS DO AUTOROs autores receberão gratuitamente cinco exemplares do número da

revista na qual seu artigo será publicado.

O conteúdo do artigo é de responsabilidade do autor.

Não será devida qualquer remuneração, de nenhuma natureza, pela publicação de artigos em Segurança, Justiça e Cidadania.

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