wittgenstein e a gramática do significado

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por Profº Cláudio Ferreira Costa - UFRN 2005Filosofia / Filosofia da Linguagem

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1 Filosofia da linguagem, Wittgenstein prof. Claudio F. Costa /UFRN-PPGFIL

WITTGENSTEIN EA GRAMTICA DO SIGNIFICADO

_________Claudio F. Costa

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WITTGENSTEIN E A GRAMTICA DO SIGNIFICADO

Claudio F. CostaProfessor de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Obra editada pela Servgrfica Natal RN 2005.

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Servgrfica oficina de editorao - Avenida Galvo Bueno, 232, Natal, RN. Digitao: Nelson Machado Lima Diagramao: Eliane Rodrigues da Silva Correo de texto: Mnica Gicea Carvalho Lins.

Dados de catalogao e publicao (CIP - Brasil): Costa, Claudio F. Claudio Ferreira Costa Wittgenstein e a Gramtica do Significado/Claudio F. Costa,Natal,RN: Servgrfica, 2005. VI 132 1. Filosofia 2. Filosofia da linguagem 3. Wittgenstein _______________________________________________________

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Ao professor Raul Landin

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SUMRIO1. Introduo: filosofia como terapia e como protocincia, p. 6 2. O significado como funo do uso, p. 14 3. Jogos de linguagem, p. 19 4. Regras como relaes criteriais, p. 27 5. Regras e gramtica, p. 36 6. Seguir uma regra, p. 42 7. Formas de vida, p. 51 8. A indeterminao das expresses, p. 56 9. Linguagem e significado, p. 73 10. Concluso, p. 81 Bibliografia, p. 84 Apndice (Glossrio), p. 89

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CAPTULO I

INTRODUO Pode-se tambm dar o nome de filosofia ao que possvel antes de todas as novas descobertas e invenes (PI 126) 1 . Wittgenstein no pretendeu, em sua ltima filosofia, desenvolver uma teoria do significado. Nem mesmo tinha ele a inteno de fazer simples filosofia da linguagem. Como bem o compreendeu K. T. Fann, Wittgenstein foi um pensador profundamente intuitivo, cujo impulso filosfico era de natureza obsessional e quase mstica 2 . A estariam as razes do seu estilo oracular e epigramtico, bem como da forma no-argumentativa e completamente assistemtica de seus escritos, que seriam melhor compreendidos como um esforo de confisso e persuaso, tal como o foram antes dele os de Pascal, Kierkegaard e Agostinho 3 . Estes mesmos traos de personalidade talvez tenham igualmente contribudo para condicionar a sua prpria concepo de filosofia. Para Wittgenstein, a filosofia deveria ser feita em grand stile, pois tratava-se de uma atividade teraputica libertadora do esprito humano, voltada para ajudar pessoas que como ele prprio se achassem atormentadas por perplexidades filosficas. Em semelhantes circunstncias, torna-se compreensvel que a linguagem e a teoria do significado no devessem interess-lo, a no ser como

Sobre as abreviaes feitas em referncias a obras de Wittgenstein, consultar o glossrio no final do livro. 2 Ver K. T. Fann, Wittgensteins Conception of Philosophy, cap. X. Fann lembra, a propsito da atitude de Wittgenstein para com a filosofia, que este, pouco antes de sua morte, lembrou a um amigo a inscrio de Bach em seu Pequeno Livro para rgo: Para a glria do mais alto Deus, e que por meio disso meu prximo possa ser beneficiado!. E apontando para a prpria pilha dos seus manuscritos disse: Isto o que eu gostaria de ter sido capaz de dizer do meu prprio trabalho (p. 108). 3 Cf. K. T. Fann, ibid. p. 105.1

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um meio para atingir um fim, que seria o de desfazer as perplexidades filosficas que a se enraizassem. As caractersticas acima delineadas no so suficientes para impedir-nos de procurar nos escritos de Wittgenstein o esboo de um teoria geral da linguagem e do significado. Um esforo nesta direo foi feito por J. T. Richardson em The Grammar of Justification. Neste livro o autor argumenta a favor de uma teoria do significado em moldes construtivistas, que poderia ser encontrada latente na ltima filosofia de Wittgenstein, embora admitindo faltar a ela um desenvolvimento adequado 4 . A teoria do significado de que falava Richardson, revela-se extraordinariamente abrangente, apesar de vaga e fragmentria. Ela comea por produzir abstraes do mais elevado grau de generalidade, buscando ento torn-las intuitivamente plausveis pela descrio alusiva e elptica de uma variedade de casos particulares o que Gilbert Ryle certa vez chamou de mtodo dos provadores de ch. Ganha-se assim generalidade o que geralmente perdido em nitidez e objetividade. A idia de se procurar uma teoria do significado e da linguagem na filosofia de Wittgenstein detm-se, contudo, diante de um obstculo mais srio: a concepo que ele prprio mantinha da filosofia como uma atividade no-teortica. Para afastarmos esta dificuldade, introduziremos, com objetivos reconstrutivos e alheios s prprias intenes de Wittgenstein, uma distino entre duas espcies de filosofia, supondo depender da personalidade e das aptides especficas de cada filsofo o seu desenvolvimento em uma ou em outra direo. Esta ciso de finalidades permite que sejam introduzidos dois modos opostos de se conceber a filosofia: a) a sua concepo como um mtodo ou atividade teraputica (Wittgenstein), b) a sua concepo como teoria protocientfica, ou seja, como uma especulao heurstica que se pretende antecipadora do conhecimento cientfico (incluindo a talvez parte do que Wittgenstein chamava de metafsica ou enfermidade filosfica). No nego que h outros entendimentos possveis para a filosofia, mas para nossa reconstruo bastaro esses dois.

Cf. J. T. Richardson, The Grammar of Justification, (1974), pp. 45, 75, 78 e introduo. A idia, contudo, bem mais antiga. Ela j havia sido sugerida por Paul Feyerabend em um artigo de 1955, que assinalava a possibilidade no reconhecida por Wittgenstein de que a sua filosofia contivesse uma teoria construtivista do significado em nvel metalingstico, que seria constituda por jogos de linguagem filosficos (Feyerabend, Wittgensteins Philosophical Investigations, in Pitcher, Wittgenstein, The Philosophical Investigations).

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Elucidaremos a seguir, separadamente, cada um desses modos de se conceber a filosofia, com o objetivo de mostrar que eles, longe de se oporem, seriam complementares, no devendo ser isoladamente concebveis. A concepo da filosofia como um mtodo ou atividade teraputica foi a mais explicitamente defendida por Wittgenstein. Ela pressupe uma outra, que ele geralmente chamava de metafsica (TLP, 6.53, BB, p.35), e que aqui designaremos pelo nome de filosofia como enfermidade, considerando-a parte da filosofia como teoria (protocincia). A filosofia como enfermidade, para Wittgenstein, seria originada pelo impulso sentido pelo metafsico de investir contra as fronteiras da linguagem (PI 119). Dessa investida inglria resultam, para Wittgenstein, as contuses do entendimento: confuses, enganos, perplexidades, mal-entendidos, absurdos e iluses que constituem a maior parte de nossa filosofia tradicional. Estas confuses, que como gostaramos de chamar as contuses do entendimento, ainda poderiam ser divididas em duas espcies: os pseudoproblemas filosficos e as inteis tentativas para resolv-los, que ao fim no passariam de pseudo-solues. Por exemplo: a prova da existncia do mundo externo apresentada por G. E. Moore em Proof of an external world, seria interpretada por Wittgenstein como uma espcie de pseudosoluo para um pseudoproblema o problema da realidade. Para Wittgenstein, os males filosficos s poderiam ser curados pela nova filosofia teraputica por ele praticada. A misso dessa nova filosofia no seria a de resolver, mas sim a de dissolver os pseudoproblemas e pseudosolues da filosofia como enfermidade, mostrando que eles no passavam de ilusrios castelos de areia fundados sobre um entendimento errneo do trabalho de nossa linguagem (PI 118). Wittgenstein, porm, no parece ter julgado necessrio separar rigorosamente a filosofia como enfermidade da filosofia como terapia. Em sua obra, elas coexistem como se fossem as duas faces de uma mesma moeda. Para ele, a tendncia a correr de encontro s fronteiras da linguagem faz parte da natureza profunda dos seres humanos, e seria mesmo de se supor necessrio que o filsofo, para chegar a adotar a atitude teraputica frente a uma dificuldade, tenha antes, ao menos vivenciado a atitude metafsica 5 . Eis como Wittgenstein resume sua concepo de filosofia como atividade teraputica: Era certo dizer que nossas consideraes no poderiam ser cientficas (...). E no devemos construir nenhuma espcie de teoria. No deve haver nada de hipottico em nossas consideraes. Toda elucidao deve desaparecer e ser substituda apenas por descrio. Essa descrio recebe a5

Ver Fann, ibid. p. 28.

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sua luz, isto , a sua finalidade, dos problemas filosficos. Tais problemas no so para Wittgenstein empricos, mas resolvveis pela observao cuidadosa do trabalho de nossa linguagem e apesar do impulso para mal compreend-lo. Eles no so empricos no sentido de que as suas respostas no dependem do acmulo de novas informaes, mas da combinao do que sempre foi sabido. A filosofia, diz ele, uma batalha contra o enfeitiamento do nosso entendimento pelos meios de nossa linguagem (PI 109). A julgar por tais passagens a filosofia deve, para Wittgenstein, ser pensada, no como teoria, mas como um mtodo teraputico; uma investigao conceitual de cunho puramente descritivo (Z 458; PI 124). Ela deve reorganizar uma desorganizao aparentemente gratuita do que sempre foi dito e sabido, para assim desfazer os ns do pensamento (Z 452). Para ns, a espcie de concepo bipolar da filosofia geralmente sustentada por Wittgenstein justifica-se apenas como uma particular convenincia metodolgica. Generaliz-la para, alm disso, parece conduzirnos prximos contradio. Wittgenstein pareceu ter tomado este caminho ao escrever no Tractatus Lgico-Philosophicus que suas prprias proposies tericas no poderiam ser ditas, pois eram destitudas de sentido (TLP 6.54, 7), o que parece tornar aquela obra, se no contraditria, ao menos retoricamente perversa 6 . Nas Investigaes Filosficas esse negativismo teortico foi apenas atenuado: sendo as proposies de sua filosofia teraputica simples reorganizao do que j sabemos, elas devem ser consideradas lugares comuns destitudos de contedo informativo (PI. 128). Isso, contudo, no parece verdadeiro para a filosofia em geral e nem sequer para os escritos de Wittgenstein, pois estes so argumentativos, mesmo que os seus argumentos apaream de forma metafrica e elusiva, e os resultados so por vezes profundamente contra-intuitivos e distantes de uma exposio de lugares comuns, como o caso do argumento da linguagem privada, do qual resulta que no podemos nos referir a nossos estados mentais internos como sensaes e emoes por meio da linguagem natural. 7 A segunda concepo, que por razes metodolgicas gostaramos de opor concepo teraputica de Wittgenstein, aquela que v na filosofia uma espcie de saber especulativo antecipador do conhecimento cientfico uma protocincia. Ela foi admiravelmente descrita na seguinte passagem de J. L. Austin: Na histria da investigao humana, a filosofia ocupa o lugar do sol inicial central, seminal e tumultuoso; de tempos em tempos, ele abandona uma6

Ver a introduo de Russell ao Tractatus Lgico-Philosophicus. Ver tambm a defesa de Max Black em Language and Philosophy - Studies in Method, p. 149 e segs. 7 Ver, por exemplo, a calorosa discusso entre Wittgenstein e Popper, tal como foi relatada na Autobiografia Intelectual deste ltimo (p. 131, trad. Brasileira).

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parte de si prprio a fim de que assuma o estgio de cincia, como planeta, frio e perfeitamente regularizado, progredindo rapidamente para um distante estgio final. Isso aconteceu h muito tempo, no nascimento da matemtica, e repetiu-se quando nasceu a fsica; no ltimo sculo testemunhamos o mesmo processo lentamente e de modo quase imperceptvel, no nascimento da lgica matemtica, atravs dos esforos conjuntos dos filsofos e matemticos. No ser possvel que o prximo sculo possa assistir ao nascimento, atravs dos esforos conjuntos dos filsofos, gramticos e outros estudiosos da linguagem, de uma verdadeira e compreensiva cincia da linguagem? Ento ns deveremos livrar-nos de mais uma parte da filosofia do nico modo que ns poderemos sempre livrar-nos da filosofia: por alarmo-nos a um andar superior 8 . Esta ser a concepo metodologicamente adotada nesse livro. Como no seria aqui o lugar mais apropriado para uma defesa argumentada de sua validade, apresentaremos em seguida uma interpretao concisa e inevitavelmente dogmtica de tudo o que a passagem de Austin nos parece sugerir. Assim sendo, o leitor dever considerar o que diremos mais como um conjunto de suposies instrumentalmente teis a uma melhor compreenso de certos aspectos do pensamento de Wittgenstein, do que uma tentativa mais sria de convenc-lo de sua validade. Eis como poderamos interpretar a concepo acima apresentada. A filosofia tem lugar onde a cincia ainda no se pode reconhecer como cincia. Se designarmos pelo nome de espao epistemolgico o conjunto formado pelo discurso terico de uma cincia aliado ao seu mtodo, seu objeto especfico etc., podemos dizer que a filosofia no tem um espao epistemolgico prprio. Ela apenas marca o lugar dos espaos epistemolgicos ainda no preenchidos por alguma espcie de conhecimento cientfico, os quais ainda no puderam ser apropriados pela cincia, quer pela falta de uma apropriada metodologia de investigao, quer pela ausncia de um adequado reconhecimento de seu objeto. A filosofia como protocincia, como Austin sugere, poderia ocupar tanto o lugar de uma cincia emprica como no-emprica. No caso das cincias empricas, pode-se conceber que em uma poca na qual as descobertas do eltron e dos elementos qumicos eram impensveis, o tomo de Leucipo e Demcrito e a teoria dos quatro elementos de Herclito fossem, em um aspecto, remotas antecipaes especulativas do tomo de J. J. Tompson e do sistema peridico de Mendeleev. De forma semelhante, oCit. In Mats Furberg; Saying and Meaning - a main theme in J. L. Austins Philosophy, p. 48.8

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Tratado das Paixes da Alma de Descartes, poderia ser facilmente considerado um precursor introspeccionista da moderna psicologia das emoes. Justamente pelo fato de cincias empricas como a fsica, a qumica e em parte a psicologia, j se terem firmado no horizonte do conhecimento, especulaes filosficas daquela espcie, se realizadas hoje, nos pareceriam em maior ou menor medida anacrnicas e despropositadas. Eis porque no mais parece possvel uma psicologia introspeccionista, ou a espcie de cosmologia totalizadora que marcou os primrdios da filosofia ocidental. Quanto s cincias ditas no-empricas, estas tambm teriam ao seu modo se diferenciado da unidade sincrtica que compunha a filosofia em seus primrdios. Sabemos que certas confuses da lgica clssica foram dissolvidas pelo advento da lgica simblica, e que a prpria matemtica parece ter sido em seus primrdios em certa medida confundida com um saber emprico, tal como o professado pelas cincias naturais. Em semelhante estado parece encontrar-se tambm a filosofia da linguagem, em cujos limites se desenvolveu o pensamento de Wittgenstein. A doutrina dos universais anunciada na obra de Plato, por exemplo, seria uma tentativa de solucionar uma espcie de problema para a qual Wittgenstein parece ter indicado ao menos uma nova perspectiva de soluo 9 . Contudo, quando a soluo definitiva de um problema como este tiver sido alcanada, ela no dever mais pertencer filosofia, mas talvez a algo como a cincia da linguagem profetizada por Austin uma cincia no-emprica. Nossa ltima concepo de filosofia, por conseguinte, admite a existncia de teorias filosficas. Embora o que denominamos teoria em tal caso no devam ser mais que esboos especulativos, fragmentos hipostasiados, construes vagas e provisrias. As duas concepes de filosofia que terminamos de expor o mtodo teraputico e a teoria ou protocincia so, a nosso ver, complementares, fazendo parte de um todo nico. Eis como poderamos estabelecer a relao que haveria entre elas. Em primeiro lugar, a filosofia como protocincia parece quase necessariamente conter em si mesma a filosofia como enfermidade ou violao das fronteiras da linguagem. Afinal, se a filosofia se projeta no espao epistemolgico ainda no ocupado pelo discurso cientfico (o qual poder algum dia ser ocupado por sistemas ou jogos de linguagem

Ver, por exemplo, o ensaio de Rendford Bambrough: Universals and family resemblances, in Pitcher (ed.), The Philosophy of Wittgenstein.

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cientficos que ainda no se fazem presentes 10 ), ela ainda no possui uma linguagem apropriada para o que tenta dizer. Como resultado, o discurso filosfico poderia muito facilmente emergir de alguma espcie de violao dos limites da linguagem (jogos de linguagem) efetivamente existentes; caso em que os pseudoproblemas e pseudo-solues no mais necessitariam ser considerados vazios e gratuitos, mas formas defeituosas de se colocar problemas e solues reais. Se assim o considerarmos, as confuses filosficas s sero completamente desfeitas por ocasio do surgimento de alguma espcie de conhecimento cientfico que venha a tomar seu lugar. Do ponto de vista da evoluo do conhecimento, porm, antes que confuses filosficas sejam dissolvidas luz de alguma espcie de conhecimento cientfico, possvel que ao chegarmos mais perto da possibilidade desse conhecimento, sejamos capazes de desfazer, ao menos parcialmente (e com parciais recadas, j que no se trata de um desenvolvimento homogneo e contnuo) as confuses dos sistemas anteriores. Exemplos disso seriam, no campo do conhecimento emprico, a psicologia de William James em comparao com a de Descartes, e no campo da investigao conceitual, as Investigaes Filosficas em comparao com o Tractatus. Algo semelhante parece ocorrer com relao prpria filosofia como terapia praticada por Wittgenstein. Podemos sugerir que ela s capaz de desfazer as confuses do filsofo porque traz consigo a pressuposio tcita de uma teoria capaz de oferecer respostas mais apropriadas para os problemas reais que se encontravam ocultos por trs dessas confuses. O pseudoproblema de se saber qual a essncia necessria da linguagem, por exemplo, seria uma forma mal colocada da questo: Qual a espcie de unidade que a linguagem apresenta?, que versa sobre um problema real. Wittgenstein s pode ter a pretenso de desfazer o falso problema da essncia nica da linguagem porque, com sua metfora das semelhanas de famlia entre jogos de linguagem (ver cap. IX), j sugere nossa intuio o esboo de uma resposta para o problema real. Sob este ponto de vista, a prpria filosofia como terapia praticada por Wittgenstein, s se torna possvel porque se faz acompanhar de uma especulao terica aproximativa acerca da natureza da linguagem e do significado. Ela traz implcito um esforo involuntrio rumo ao estabelecimento de alguma espcie de cincia da linguagem, que deveria constituir-se de jogos de linguagem metalingsticos.Consideraremos os jogos de linguagem como sistemas de regras capazes de determinar o uso de expresses, extendendo-os s regras (leis) que estabelecem o espao epistemolgico de uma cincia. Ver cap. III.10

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Se aceitarmos a argumentao acima, deveremos concluir que a filosofia como terapia pressupe a filosofia como teoria (protocincia). A primeira delas s se tornou possvel para Wittgenstein porque j havia, subjacente sua nova maneira de filosofar, toda uma sorte de pressupostos tericos acerca do significado e da linguagem. Em Wittgenstein, teoria e terapia se sobrepem e se complementam. Seus escritos podem ser considerados como compostos de uma poro positiva - a teoria - que se encontra infusoriamente difundida em uma vasta poro negativa ou crtica - a filosofia como terapia. A poro positiva seria formada principalmente pelo esboo de uma nova teoria do significado e da linguagem. A poro negativa consiste na crtica aos pressupostos do Tractatus, s concepes causais e ideativas do significado, possibilidade de uma linguagem privada, filosofia do senso comum, e assim por diante. Nosso objetivo neste livro ser o de oferecer uma interpretao para alguns dos principais aspectos da poro terica da ltima filosofia de Wittgenstein, nomeadamente, sua teoria da linguagem e do significado. Por causa disso, no nos ocuparemos da poro teraputica de sua obra, a menos quando isso parecer necessrio adequada avaliao dos aspectos tericos.

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CAPITULO II

O SIGNIFICADO COMO FUNO DO USO. Cada signo tomado em si mesmo parece morto. O que lhe d vida? No uso ele vive. Tem ento a viva respirao em si? Ou o uso seu sopro vital? (PI 432). Poderamos, para efeito de clareza, resumir o que Wittgenstein tinha a dizer sobre o significado em uma frmula elementar, ainda que imperfeita: O significado de uma expresso 11 pode ser considerado como seu uso conforme as regras de jogos de linguagem radicados em uma forma de vida. Para que esta definio possa ser corretamente avaliada, faz-se necessria uma elucidao dos seus conceitos-chave, que so os de uso, regra, jogos de linguagem e formas de vida, alm de outros a eles relacionados, como os de critrio, semelhanas de famlia etc. Os captulos que se seguem sero dedicados ao estudo de tais conceitos, buscando reuni-los em um sistema que constitua uma concepo geral da linguagem, da qual parecem decorrer naturalmente as concluses semnticas de Wittgenstein. Comearemos, neste captulo, com a discusso do conceito mais elementar e indeterminado dentre eles: o conceito de uso. A ltima fase do pensamento filosfico de Wittgenstein j foi distinguida por nomes como funcionalismo, construtivismo, contextualismo, operacionalismo ou instrumentalismo 12 . A nfase no aspecto funcional se v justificada pelo fato de aps o Tractatus Wittgenstein ter se voltado para a investigao da linguagem sob o ponto de vista do seu necessrio desdobramento na ao, mais que do ponto de vista de sua estruturaUtilizaremos o termo expresso de maneira a abranger tanto palavras isoladas como frases ou sentenas. 12 Ver S. Ullmann, Semntica, pp. 134-6. Ver tambm Feyerabend, ibid. p. 122.11

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assertiva. A lngua, escreveu Wittgenstein, um instrumento e seus conceitos so instrumentos (PI 489; BB p.67). Se observarmos o que as pessoas efetivamente fazem com as palavras, veremos que elas se assemelham a ferramentas: H um martelo, uma tenaz, um serrote, uma chave de parafusos, um frasco de cola, pregos e parafusos; e as funes das palavras so to diversas quanto as funes destes objetos (PI 11; BB p.67, PG 31). A adoo de uma perspectiva funcionalista ou instrumentalista por parte de Wittgenstein deve ter-se originado de uma constatao simples, mas fundamental: s podemos nos certificar do significado de uma palavra pela observao do seu uso. Suponhamos, escreveu ele, que eu mande uma pessoa fazer compras dando a ela um pedao de papel onde est escrito cinco mas vermelhas. A pessoa leva o papel ao comerciante e este abre um caixote no qual est escrito maas; procura numa tabela de cores pela palavra vermelho, ao lado da qual est o modelo da cor. A seguir ele anuncia a srie dos numerais at a palavra cinco, e a cada numeral retira do caixote uma maa da cor do modelo (Cf. PI 1). Como sabemos que o comerciante conhece o significado das palavras vermelho, maa, e cinco? A resposta que ele conhece o significado dessas palavras porque soube us-las corretamente e agiu em conformidade com o seu uso. Assim, a investigao do significado voltou-se em Wittgenstein para uma observao efetiva de nossas atividades discursivas. O significado de uma palavra s ser esclarecido pela observao do que o ser humano faz com ela 13 , assim como s compreenderemos para que serve uma ferramenta pela observao de como ela usada. Wittgenstein, no obstante, fez muito mais do que apenas colocar em relevo o aspecto funcional da linguagem, ou sugerir a vinculao entre o estabelecimento do significado e a observao do uso. Ele foi mais alm, a ponto de anunciar vigorosamente o que poderamos qualificar como uma definio funcionalista do significado: o uso da palavra na linguagem seu significado (PG 23; BB p.69). Ou, como aparece na mais conhecida passagem das Investigaes Filosficas: Para uma grande classe de casos embora no para todos em que empregamos a palavra significado, ela pode ser definida assim: o significado de uma palavra seu uso na linguagem (PI 43).

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Cf. Ullmann, op. Cit. , p.134.

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Esta obscura e enigmtica afirmao j levou intrpretes desavisados s mais contraditrias concluses 14 , boa parte das quais tendo consistido, ao que parece, em subestimar a unidade do pensamento de Wittgenstein, tentando interpretar a passagem isoladamente em relao ao contexto de sua obra. Entre os erros cometidos na interpretao da passagem citada, existem dois que nos podem ser particularmente ilustrativos. O primeiro consiste em pensar que Wittgenstein, ao escrever que o significado o uso para uma grande classe de casos, mas no para todos, havia mostrado hesitao em generalizar sua mxima, por ter reconhecido a existncia de notrias excees 15 . Esta concluso, porm, no se faz necessria. Wittgenstein nuncaEm uma leitura retrospectiva do que disseram os intrpretes sobre esta questo fundamental, as passagens que compem a ltima fase do pensamento de Wittgenstein tendem a aparentar-se a um mao de cartas que podem ser agrupadas de muitas e diferentes maneiras: para Pitcher (The Philosophy of Wittgenstein, p. 253), Wittgenstein errou ao identificar o significado ao uso, mas seu erro no teve maiores conseqncias, uma vez que na prtica (e.g., PI 1) ele divorciava estas duas noes. Para C. Rardwick (Language Learning in Wittgensteins Philosophy, pp. 42-3), essa foi uma tentativa prematura de restaurar um desacreditado e radical nominalismo. J para K. T. Fann (Wittgensteins Conception of Philosophy, pp. 102-3), Wittgenstein jamais quis dizer que o significado fosse de fato o uso, e nosso erro consiste em interpretar literalmente o que no passa de simples exortao retrica. Para R. J. Fogelin (Wittgenstein, p.108), Wittgenstein realmente identificou o significado ao uso, mas no tinha qualquer teoria articulada em mente, enquanto que, para James Bogen (Wittgensteins Philosophy of Language, pp. 201, 204, 206), no h em Wittgenstein qualquer evidncia textual de que o uso de uma palavra ou sentena seja o seu papel em um jogo de linguagem, ou que esta ltima seja constituda de jogos de linguagem, como queriam Malcon, Rhees e Pitcher. 15 Os exemplos destas excees, contudo, podem aparentemente ser interpretados como demonstraes de um mau entendimento ou de uma m aplicao do que Wittgenstein sugeriu. George Pitcher, em The Philosophy of Wittgenstein (1964), inventariou algumas delas. Podemos, escreveu Pitcher, imaginar coisas que tem significado, mas no tem uso, como nuvens negras no horizonte ou pegadas na neve. Alm disso, perfeitamente possvel conhecer o significado de uma palavra sem conhecer seu uso, como no caso de algum dizer-nos que ultus significa vingana em latim - pois neste caso, embora saibamos o significado da palavra , no temos idia de como e quando us-la. Tambm pode acontecer, escreveu Pitcher, que conheamos o uso de uma palavra, mas no o seu significado, como nos casos de amen e do signo Q. E. D., o que no os torna destitudos de sentido. Identicamente, os nomes prprios tambm tm uso, mas no significado (Cf. op. Cit., pp. 251-2). Os exemplos acima podem, no entanto, ser facilmente refutados. Nuvens negras no horizonte poderiam ser usadas como critrio (ver cap. IV) ao servir como prenncio para uma tempestade, juntamente com aes a serem efetuadas, etc. Contudo, nada nos impede de considerar como uma espcie de uso, qualquer espcie de atividade que se faa determinar por signos. Quando aprendemos o significado de uma palavra como ultus, somos j capazes de dar-lhe um certo uso, mesmo que no seja aquele uso especfico que14

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parece ter estado a ponto de sugerir a existncia de classes de palavras para as quais o significado no pudesse ser considerado, de uma forma ou de outra, como seu uso. O que ele quis dizer na passagem citada , como pensamos, de fato, que o significado de toda palavra o seu uso na linguagem. Apenas que, sendo significado uma palavra da linguagem, ela pode ter, como as demais, uma variedade de diferentes usos. Como conseqncia, a frase limitadora para uma grande classe de casos, embora no para todos no designa casos de palavras. O que a frase na verdade designa so aqueles casos de uso da palavra significado (que aparece entre aspas no texto) nos quais ela no diz respeito ao uso de palavras ( 16 ). Para que isso seja correto, o conceito de uso dever ser aqui entendido de um modo muito amplo, abrangendo tanto o uso da expresso por parte do falante, como tambm se uso por parte do ouvinte que a compreende (ver o caso de nuvens negras no horizonte na nota 14). O segundo erro de interpretao mais elementar. Ele consiste em fazer uma interpretao tout court da identificao entre uso e significado proposta por Wittgenstein, concluindo da que o ltimo defendia alguma espcie de nominalismo estremado. Neste caso, porm, seria demasiado fcil opor-lhe uma objeo esmagadora: se fosse simplesmente assim, algum poderia escolher uma palavra qualquer de nossa linguagem e fazer dela um uso completamente absurdo. Cairamos, assim, em uma situao paradoxal, na qual qualquer palavra poderia ser usada no lugar de qualquer outra, de maneira a adquirir o seu significado, o que esvaziaria a prpria noo de significado uma situao de catstrofe semntica que j havia sido humoristicamente aludida por Lewis Carol em um conhecido dilogo entre Alice e Humpty-Dumpty. Quando percebe que caiu em contradio, HumptyDumpty encerra a discusso com um argumento irrespondvel: Quando eu uso uma palavra, ela significa o que eu quero que signifique e nada mais. Porque, adiciona ele, a questo saber quem o chefe. O erro de interpretao que conduz objeo acima, consiste em no perceber que Wittgenstein nunca teria se referido ao uso arbitrrio de palavras,ela teria dentro do contexto gramatical do latim (esta parcela do significado poder ser aprendida mais tarde). Quem sabe utilizar signos como amen e Q. E. D., sabe o que eles significam, independentemente de conhecer ou no o seu significado em suas lnguas de origem, pelo mesmo motivo pelo qual no necessrio que ningum saiba o significado de Abat-jour, et-cetera e necrofilia em suas lnguas originais para conhecer seu significado (uso) na nossa. Alm disso, nada nos impede de pensar, como fazia Wittgenstein (PI 40, 79), que os nomes prprios so significativos, dando-lhes lugar em um jogo de linguagem apropriado (ver 3.12). 16 Segundo H. R. Finch (Wittgenstein - The Later Philosophy, p.33 e segs.), os dois casos mais importantes nos quais a palavra significado no diz respeito ao uso so o significado como fisionomia (PI 568) e o significado como inteno (PI 689, 693).

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mas sim ao seu uso correto, que o uso em conformidade com regras; - o nico virtualmente capaz de ser significativo. Daqui por diante, portanto, qualquer pergunta relativa ao uso dever ser complementada com outra relativa s regras que o determinam. Podemos neste ponto aproveitar para fazer uma importante constatao: se, como sugerimos, o significado de uma expresso seu uso determinado por regras, ento, uma descrio das regras que determinam o uso da expresso pode servir como forma de explicao de seu significado. Imaginese, por exemplo, o caso do seguinte signo indicador de direo: . O significado deste signo, para quem o observa, pode ser considerado como consistindo em seu uso segundo regras como a seguinte: Sempre que nos deparamos com o signo , devemos desviar nosso olhar para sua ponta. Esta descrio contribui para mostrar-nos como usar o signo indicador de direo, servindo assim ao menos como parte da explicao do seu significado. A explicao acima obviamente parcial, tornando-se facilmente sujeita a objees se no pensarmos na seta indicadora de direo como um signo cujo uso pode ser determinado por conjuntos de regras diversos em diferentes circunstncias. Gostaramos, pois, de concluir a discusso deste captulo, com a sugesto de que o aparente carter arbitrrio da identificao entre significado e uso, s poderia ser finalmente resgatado pelo estabelecimento de uma gramtica constituda pelos possveis conjuntos ou sistemas de regras capazes de determin-lo. Estes sistemas ou complexos de regras so o que Wittgenstein geralmente chamou de jogos de linguagem.

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CAPTULO III

JOGOS DE LINGUAGEM Digamos que o significado de uma pea seja seu papel no jogo... (PI 563). O conceito central da ltima fase do pensamento filosfico de Wittgenstein o de jogo de linguagem. Uma linguagem, em seu funcionamento, comparvel a um jogo com seus participantes, peas, regras, operaes e clculos estratgicos. Os jogos de linguagem j foram definidos por Wittgenstein como sistemas completos de comunicao humana (BB. P.81), ou espcies de uso de palavras e frases (PI 23). J na opinio de intrpretes eles foram adequadamente considerados como atividades discursivas 17 , sistemas de regras ou convenes 18 , ou ainda, atividades envolvendo o emprego de signos, das quais so constitudas as regras que determinam o significado desses signos 19 . O conceito de jogo de linguagem, porm, extremamente diversificado e fluido, podendo uma linguagem natural como a nossa ser considerada como uma nebulosa massa de linguagem (BB p.81) composta de um imensuravelmente complexo entrelaado de jogos de linguagem. Por isso, mais proveitoso do que discutir sua definio, ser seguir o fio de uma classificao que os caracterize. De uma maneira artificial, mas esclarecedora, poderamos classificar os jogos de linguagem apresentados por Wittgenstein em duas espcies gerais. A primeira a dos jogos de linguagem que so modos de usar signos mais simples do que aqueles com os quais usamos signos na linguagem17 18

G. Pitcher, The Philosophy of Wittgenstein, p. 239. J. T. E. Richardson, The Grammar of Justification, p. 74. 19 J. T. E. Richardson, Ibid. p. 75.

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altamente complexa de nosso cotidiano (BB p.17). J a segunda espcie, a dos jogos de linguagem efetivamente utilizados na linguagem natural e que so segmentos desta. Tais jogos podem geralmente ser chamados de compostos (Cf. PI 23), podendo ser decompostos em jogos de linguagem mais simples, segmentos mais elementares da linguagem. Os jogos de linguagem simples podem ser introduzidos atravs de um exemplo paradigmtico. Wittgenstein, ao que consta, fez uma tentativa frustrada de estabelecer uma ordem dos jogos de linguagem fundamentais na parte I do Brown Book 20 . Os primeiros a aparecer so os jogos de dar ordens e obedec-las (BB p. 77 e segs., PI 23), que foram os que ele mais se preocupou em descrever, sendo possivelmente as mais distintivas dentre as formas fundamentais de comunicao humana. O mais conhecido destes jogos de comando, que como preferimos denomin-los, uma linguagem na qual um construtor A d ordens ao seu auxiliar B (BB p. 77, PI 2). Eis como Wittgenstein o descreveu no incio das Investigaes Filosficas: (I) A linguagem deve servir para a comunicao entre o construtor A e seu ajudante B. A constri um edifcio com o material apropriado: tijolos, colunas, tbuas e vigas. B passa-lhe o material na medida em que A dele necessita. Para esta finalidade, eles usam uma linguagem constituda das palavras: tijolos, colunas, tbuas, vigas. A grita estas palavras: - B traz os objetos que aprendeu a trazer ao ouvir este chamado. - Conceba isso como uma linguagem totalmente primitiva (PI 2). Eis a o modelo em microcosmo de uma linguagem como a nossa. O exemplo mostra que um jogo de linguagem um sistema de comunicao formado por signos, regras, usurios e o contexto dos fenmenos (aes, situaes) circundantes. Ele deve incluir tanto a dimenso sinttica da linguagem, como sua dimenso pragmtica. Chamarei de jogo de linguagem, escreveu Wittgenstein, ao todo, consistindo da linguagem e das aes por ela envolvidas (PI 7). A dimenso sinttica constituda de regras formais, podendo incluir as que aprendemos em nossa gramtica escolar. A existncia dessas regras torna-se evidente quando Wittgenstein descreve extenses do jogo de comando (I) apresentado acima, nas quais o construtor pede ao seu ajudante Cinco tbuas (BB p. 79) ou Segundo, coluna; primeiro, tbua (BB p. 83).20

Segundo H. L. Finch, Wittgenstein - The Later Philosophy, p. 81.

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As regras formais no admitiriam nesses casos a formao de frases como Colunas, segundo ou Tbuas dois. A dimenso pragmtica, por sua vez, constituda pelo que chamaremos de regras prticas, as quais tm a especial funo de associar expresses a condies empricas (circunstncias, comportamentos e atividades humanas) capazes de validar seu uso 21 . Pode-se supor, por exemplo, que no jogo (I) o grito Tijolo! proferido por A, sirva de critrio para a regra segundo a qual Sempre que A gritar Tijolo!, B deve levar uma pedra de certo formato at ele. Regras como essa tm um particular interesse semntico, j que enquanto regras como as de nossa gramtica escolar podem servir indiferenciadamente a muitos jogos de linguagem diferentes, as ltimas servem apenas a este jogo de linguagem particular, o que permite individualizarmos o uso da expresso em um particular sistema de regras. A simplicidade do jogo de linguagem (I) no o torna, porm, alguma coisa distinta de nossa prpria linguagem: ele pode efetivamente existir, como parte do verdadeiro dilogo entre um construtor e seu ajudante. S que neste caso, muitos outros jogos de linguagem so adicionados a ele, de maneira a torn-lo aparentemente inseparvel dos demais. Com efeito, este simples jogo de comando pode admitir uma infinidade de adies e variantes, consideradas por Wittgenstein como jogos de linguagem distintos: (II) O construtor A realiza combinaes de signos como Tbua aqui, Coluna ali, etc., quando quer que B leve o material de construo at determinado lugar. Quando A pronuncia essas frases, ele as faz acompanhar de um gesto indicador do lugar onde quer que B deposite a pedra, fazendo este gesto parte do jogo (BB p. 80). (III) A d ordens mltiplas como Tbua, coluna, tijolos (BB p. 83). (IV) A indica a ordem na qual B deve trazer o material, fazendo uso de ordinais como: Segundo, coluna; primeiro, tbua; terceiro, tijolo! (BB p.83). (V) A faz uso de cardinais como Cinco tbuas, Dois tijolos (BB p.79). (VI) Podemos imaginar ainda um jogo de linguagem que consista na combinao de toldos estes jogos (assim como (IV) contm (I) e (III). Neste jogo, seriam possveis frases como Primeiro, cinco tbuas ali; segundo, uma coluna; terceiro, dois tijolos.

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Ver a distino entre regras prticas e formais apresentada no captulo IV.

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A seqncia de exemplos acima apresentada, parece tornar evidente que os jogos de linguagem mais simples podem ser conjugados de maneira a construir toda uma linguagem como a nossa, ou ento, de maneira inversa, que nossa linguagem possa ser dividida ou decomposta (PI 48,60) nestes jogos de linguagem mais simples. Os mesmos exemplos tambm evidenciam o fato de que esta diviso ou decomposio da linguagem pode ser feita de muitas maneiras distintas (PI 48), pois os jogos de linguagem tem as propriedades de a) se sobreporem parcialmente, compartilhando de certas regras em comum (como (III) e (IV); Cf. PI 66), e b) se inclurem uns aos outros, de modo que um contenha todas as regras de outros, alm de outras que lhe sejam exclusivas (como (IV) e (III); Cf. z 648). Assim, o estudo dos jogos de linguagem simples pode servir ao objetivo de elucidar a natureza de nossa prpria linguagem; pois eles no se encontram necessariamente separados por uma interrupo dos nossos jogos de linguagem mais complexos: Ns vemos que possvel construir as formas mais complicadas a partir das mais primitivas pela adio gradual de novas formas (BB p. 17). Os jogos de linguagem mais simples entram em nossa linguagem como peas em um jogo de armar, e dela no costumam diferir essencialmente. Eles nos so teis porque, estando postados do seu interior, no somos geralmente capazes de ter uma viso de conjunto da linguagem. Assim, eles podem nos servir como modelos teis para o reconhecimento de suas estruturas, do mesmo modo que o estudo dos sistemas de trocas primitivos e simplificados pode ser til ao economista para o conhecimento de sua matria. Neste ponto, duas questes podem ser levantadas acerca do que foi dito. A primeira : qual a vantagem existente no apelo a um conceito de dimenses to variveis? A resposta parece ser de que ele serve em Wittgenstein a uma estratgia heurstica na deteco de semelhanas e diferenas nos modos de uso (significado) de uma mesma expresso. Esta resposta decorre do seguinte raciocnio: se, 1) uma mesma expresso, como vimos nos exemplos acima, pode ser usada em vrios jogos de linguagem diversos e, 2) o significado de uma expresso, como j sugerimos, pode ser considerado como determinado pelas regras do jogo de linguagem no qual ela for usada, ento podemos concluir que 3) o significado de uma expresso pode variar ou mesmo alterarse completamente, de acordo com o jogo no qual ela estiver sendo usada. Assim sendo, possvel que os jogos de linguagem nos sejam teis nos casos em que queiramos evidenciar uma variao ou nuance no uso da expresso. Se, por exemplo, pretendssemos colocar mostra uma suposta nuance no uso de uma palavra no jogo (IV) para distingui-la de seu uso em (V), ser til consider-los como dois jogos distintos, para em seguida op-los

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entre si. Neste caso, no ser de qualquer valia descrevermos (VI) como um jogo de linguagem. Mas podemos imaginar tambm que o que pretendemos no seja distinguir uma variao fina, mas uma variao mais grosseira entre o uso da mesma expresso em (VI) e seu uso em um jogo (VII). Neste caso, no haver vantagem em subdividirmos (VI) em jogos como (IV) e (V). O que Wittgenstein considera como jogo de linguagem na maioria das vezes parece depender simplesmente da vantagem heurstica circunstancial de uma diviso da linguagem que permita desfazer certas confuses filosficas causadas pela assimilao dos diferentes usos de uma mesma expresso (PI 90). A segunda questo seria a de se saber se todo e qualquer fragmento arbitrariamente escolhido do sistema de regras de nossa linguagem chamado por Wittgenstein de gramtica pode ser considerado como um jogo de linguagem. Eis como pensamos que poderia ser respondida esta questo: o que confere unidade a um conjunto de regras de maneira a torn-lo um jogo de linguagem o fato de que ele permite a formao de expresses com um quantum particular de significado; o que poderamos chamar de movimentos completos no jogo. Estes movimentos so aes inteligveis entre os participantes de uma linguagem que partilham de uma mesma forma de vida (diviso do mundo instituda em um agrupamento social) (ver cap. VII). Como ilustrao, podemos imaginar que em um jogo de xadrez, encontrssemos uma regra segundo a qual devssemos girar a pea trs vezes antes de fazer um lance com ela (PI 567). No perceberamos, disse Wittgenstein, a graa (Witz) dessa prescrio, e faramos suposies sobre sua finalidade como instrumento de ao (PI 567). Algo semelhante poderia resultar se fundssemos arbitrariamente algumas regras do jogo de damas com outras do jogo de xadrez os movimentos permitidos ento perderiam certamente sua finalidade para ns. Da mesma forma, se assimilssemos parte das regras do jogo (I) a regras do jogo (II), de maneira que o ajudante apenas tomasse o objeto nas mos, olhasse para o local indicado pelo construtor, e ento o deixasse cair, poderamos ser levados a observar: esta no uma ao inteligvel em nossa forma de vida, no obstante ser possvel imaginar formas de vida nas quais isso poderia ser um movimento significativo em um jogo de linguagem. Ns chamamos alguma coisa de jogo de linguagem, escreveu Wittgenstein, quando ela desempenha algum papel na vida humana 22 . 3.112 Com base nos textos de Wittgenstein, poderamos subdividir didaticamente os jogos de linguagem mais simples em trs formas22

Wittgenstein; Notes for lectures on, private experience and sense data, 177, in H. Morick; Introduction to Philosophy of Mind (1970).

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intrinsecamente relacionadas: os jogos de linguagem infantis, primitivos e artificiais. Os primeiros so as formas de linguagem com as quais a criana comea a fazer uso das palavras (BB p. 17; PI 7). Wittgenstein advertiu, porm, que no recorria a tais jogos com o objetivo de fazer psicologia infantil (Z 412), mas sim esclarecer o significado das expresses atravs do estudo dos modos como poderamos t-las aprendido. Semelhante exame permite um maior esclarecimento do significado porque no uso adulto de uma expresso, os vrios modos de sua aplicao costumam integrar-se uns aos outros de maneira complexa. J, quando buscamos decompor as etapas do aprendizado de uma expresso, isso nos permite individualizar com mais clareza seus modos de iniciais e primitivos, ao disp-los em sua ordem de aparecimento o que levar a uma melhor tomada de conscincia do papel desempenhado pela expresso em nossa linguagem adulta. A segunda forma pela qual Wittgenstein se referia aos jogos de linguagem simples era como o estudo de formas primitivas de linguagem (BB p. 17) ou o completo sistema de comunicao de uma tribo em um primitivo estado da sociedade (BB p. 81) 23 . Tambm aqui Wittgenstein advertiu que no pretendia fazer algo como uma histria natural da linguagem (PI p. 230), mas to somente inventar linguagem primitivas fictcias, com o objetivo de esclarecer a nossa (BB p.81; pp. 93-4, 100, 102-3, 110) o que possvel na medida em que a se encontram verses mais fundamentais e distintas do uso de expresses como as nossas. Por fim, embora Wittgenstein assim no os tenha denominado, poderamos falar de jogos de linguagem artificiais, deliberadamente inventados com o propsito de opor contraste nossa linguagem (BB p.28). So eles jogos de linguagem absurdos, como o jogo da linguagem privada 24 , ou jogos de linguagem pertencentes a formas de vida 25 que nos sejam estranhas. Tais jogos de linguagem pem a nu as confuses derivadasWittgenstein foi provavelmente influenciado pela leitura do ensaio de Bronislaw Malinowski, O significado em liguagens primitivas (publicado em 1923, como suplemento de O significado do Significado, de Ogden e Richards). Neste ensaio, Malinowski ocupouse em descrever o que poderamos chamar de um jogo de linguagem primitivo, praticado pelos pescadores nativos de Nova guin. Seu objetivo era mostrar que uma linguagem primitiva um instrumento de ao no qual o significado das palavras depende em elevado grau do contexto (p.303), s se tornando compreensvel quando visto contra o pano de fundo dos hbitos da psicologia tribal, seu comportamento, comrcio, cerimoniais religiosos etc. (p.309). Wittgenstein percebeu, mais do que Malinowski, a dimenso universal de semelhantes constataes. 24 Wittgenstein; Notes for lectures on private experience and sense data, 169, in H. Morick; Introduction to Philosophy of Mind (1970). 25 Para uma elucidao desta noo, ver cap. VII.23

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da assimilao de diferentes usos de uma mesma expresso, mostrando a impossibilidade de compreendermos jogos de linguagem essencialmente constitudos por elas (PI 90). Estes jogos como outros jogos de linguagem simples cumprem primeiramente com um objetivo teraputico: Sempre que ns construmos linguagens ideais, no com o objetivo de substituir nossa linguagem ordinria por elas; mas precisamente para remover algum problema causado na mente de algum por ter pensado que alcanou o entendimento do uso preciso de uma palavra comum. Eis porque nosso mtodo no meramente o de enumerar as utilizaes atuais das palavras, mas inventar deliberadamente novos usos, alguns deles devido sua absurda aparncia (BB p.28). Assim, em Wittgenstein os jogos de linguagem simples servem principalmente como objeto de comparao, que por meio de semelhanas e diferenas, lanam luz sobre as confuses dos filsofos com relao sutileza da aplicao de expresses nos jogos mais complexos de nossa linguagem ordinria: Quando olhamos para estas formas simples de linguagem, a nvoa mental que parecia ensombrecer nosso uso ordinrio da linguagem desaparece (BB p. 17). Os jogos de linguagem altamente complexos ou compostos so os que constituem unidades mais amplas de nossa linguagem (as quais chamaremos tambm de formas de linguagem ou suas regies) sendo, certamente, muito mais difceis de serem descritos. Eles podem, tanto quanto os outros, estabelecer relaes, por meio de regras, entre a expresso e um grande nmero de coisas ou eventos, tais como as palavras e as aes do falante e de um suposto ouvinte no presente, passado e futuro, e a dependncia entre as circunstncias perceptveis da situao presente, passada e futura e a aplicao da expresso 26 . Wittgenstein apenas mencionava estes jogos, quase sem procurar descrev-los ou classific-los. Contudo, uma lista deles nos sugere que devam cobrir todos os usos possveis da linguagem. De acordo com uma classificao tradicional, os usos ou funes da linguagem podem ser divididos em trs categorias gerais: os usos informativo, expressivo e diretivo 27 , sendo muitos deles mistos, com participao predominante de uma ou outra categoria. O uso informativo, mais caracterstico da exposio cientfica, serve para comunicar informaes, afirmar a verdade ou falsidade de proposies, expor argumentos etc. O uso26 27

Cf. Stegmuller, W.; A Filosofia Contempornea, p. 451. Cf. Copi, I. M..; Introduction to Logic, p.45 e segs.

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expressivo, mais caracterstico da linguagem potica, serve para suscitar emoes e sentimentos. E o uso diretivo, mais caracterstico dos comandos, pedidos... serve para produzir ou prevenir a ao 28 . Os jogos de nossa linguagem cotidiana incluem-se, como subdivises, em todas as trs categorias acima apresentadas. Entre os exemplos de uso predominantemente diretivo esto obedecer e dar ordens, pedir, agradecer, maldizer, saudar, orar (PI 23), fazer definies ostensivas (PI 27, BB p.83) e explic-las (PI II, p.217) etc. Entre os que servem a um uso predominantemente expressivo esto recitar poesias, representar teatro, cantar uma cantiga de roda, fazer uma anedota (PI 23) etc. Por fim, entre os jogos de linguagem predominantemente assertivos esto apresentar os resultados de um experimento por meio de tabelas e diagramas, expor uma hiptese e provla, descrever um objeto (ver PI 23); recordar-se de desejos passados (PI 654-6), descrever objetos fsicos e impresses sensoriais (PI II, p.180), jogos de linguagem inventados como modelos de teorias filosficas como a teoria das descries de Russel tal como foi interpretada no Tractatus (PI 60), ou as explicaes sobre os nomes apresentadas no Teeteto de Plato (PI 48,64). Ainda uma classe de jogos de linguagem predominantemente assertivos (que abrange muitos dos j mencionados, seriam os jogos de conhecimento (knowing games) 29 estudados por Wittgenstein em Sobre a Certeza, que apresentam importncia epistemolgica. Os jogos de conhecimento poderiam ser melhor exemplificados pelo jogo da histria (OC 85), pelo jogo da dvida (OC 115), pelas linguagens da fsica, qumica e aritmtica (OC 447,169), pelo jogo dos nomes prprios (OC 579,628), pela linguagem das cores (colour language) 30 , etc., que juntos contribuem para formar o nosso quadro do mundo (concepo da realidade) (OC 95).

Uma outra maneira mais genrica de se dividir a linguagem pela distino sugerida por J. L. Austin entre proferimentos constatativos, que podem ser verdadeiros e falsos, e proferimentos performativos, que realizam uma ao e podem ser bem ou mal sucedidos. 29 Ver T. Morawetz, Wittgenstein & Knowledge, caps. III e IV. 30 L. Wittgenstein, Remarks on Colour (1978). A prtica de atomizao ou decomposio de jogos de linguagem complexos com o objetivo de distinguir variaes no uso de uma expresso bem exemplificada neste pequeno livro. A linguagem das cores dividida em jogos mais simples como informar se um certo corpo mais luminoso que outro (RC I,1), que aparentado com os de estabelecer relaes entre a luminosidade de certas gradaes de cor (RC I, 1), apontar para um amarelo avermelhado (ou branco, azul e marrom) (RC III, 30), apontar para (uma cor) mais avermelhada que outra (RC III, 30), ou menos avermelhada que outra (RC III, 30), jogos de linguagem com conceitos de cores saturadas (RC III, 15), etc.,etc.

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28

CAPTULO IV

REGRAS COMO RELAES CRITERIAIS Os critrios, i.e., aquilo que d s nossas palavras seus significados comuns. (BB p. 57). Como j foi sugerido, os jogos de linguagem so sistemas de regras capazes de determinar o uso de suas expresses. Assim sendo, a compreenso da noo de regra torna-se fundamental para o entendimento do que Wittgenstein tinha a dizer. Neste e nos dois prximos captulos, procuraremos elucidar a noo de regra, da qual at agora pressupomos apenas um entendimento intuitivo. Para melhor caracterizarmos a noo de regra em Wittgenstein, dividiremos nossa abordagem em trs pontos de vista distintos: a) do ponto de vista dos objetos aos quais elas se aplicam; b) do ponto de vista de sua relao com os sistemas de regras que constituem a gramtica; c) do ponto de vista do sujeito que as aplica. Neste captulo, comearemos investigando as regras do ponto de vista dos objetos ou entidades (coisas, eventos) as quais elas so aplicadas, o que nos conduzir diretamente noo fundamental de critrio (Kriterium). Antes de comearmos, porm, algumas definies e distines conceptuais visando uma maior unificao terminolgica parecem fazer-se necessrias. Elas sero um tanto vagas, mas podero revelar-se teis se ao final se demonstrarem capazes de abrir lugar a uma compreenso mais consistente do que Wittgenstein buscava transmitir. Chamaremos primeiramente de signo a qualquer entidade (coisa, evento) que represente outra. Chamaremos, por sua vez, de fenmeno a qualquer entidade capaz de estimular nossos sentidos. Por contexto

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entenderemos um conjunto de entidades (coisas, eventos) relacionadas de certa maneira, com a condio de que essas entidades e a maneira como elas se relacionam sejam reconhecidas pela comunidade lingstica 31 . Supomos que as entidades de um contexto sejam de duas espcies: coisas e eventos. Como coisas, elas se acham espacialmente relacionadas entre si, formando o que chamaremos de contextos de situao. Como eventos, elas se acham relacionadas entre si por uma seqncia temporal, formando o que poderamos chamar de contexto de ao. Tanto os contextos de situao como os de ao podem se apresentar, por sua vez, sob duas formas gerais: como contextos de representao e como contextos de fenmenos. Como contexto de representao, consideraremos os conjuntos de signos relacionados de certa maneira cuja funo pode ser considerada como essencialmente lingstica, na medida em que serve comunicao e expresso. As entidades de tal contexto podem ser tomadas como signos, recebendo nomes distintos como palavras, smbolos, expresses, frases, ou mesmo serem chamadas de imagens, idias, pensamentos, representaes, etc. Em contraposio ao contexto de representao, chamaremos de contexto de fenmenos aos conjuntos de fenmenos relacionados de certa maneira, os quais so essencialmente caracterizados por servirem, no como signos representacionais, mas como fenmenos, i.e., como estmulos sensoriais relacionados s necessidades e disposies prprias de certa forma de vida (ver cap. VII). Os contextos de fenmenos envolvem entidades empricas independentes da vontade do sujeito, tais como os objetos do mundo externo, ou ento, fenmenos mentais como ser capaz, ver, acreditar, pensar, desejar (Z 38, 471) ou esperar (PI 583). As entidades desses contextos tm funo lingstica (comunicacional, expressiva) secundria, acessria, ou mesmo acidental. A noo de contexto de fenmenos deve aqui tomar o lugar de certas aplicaes de termos como aes ou atividades(OC 284,431), circunstncias (PI 539,164), situaes, (PI 337, 591-2), comportamentos (BB p.24), ambientes (PI 250), meios, etc., que tem, para Wittgenstein, um papel necessrio linguagem humana, apesar de complementar. Para que as distines acima recebam validade operacional, devemos comear com uma observao elementar que, por isso mesmo, parece ter sido muito pouco considerada: uma regra pode ser definida, em sua estrutura,

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Esta uma verso algo modificada da definio de Ogden e Richards.

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como uma relao de natureza prescritiva mantida entre duas espcies de entidades 32 , as quais chamaremos de termos ou componentes. Um ligeiro exame das expresses de regra que constituem a gramtica dos jogos de linguagem (ver cap. V) suficiente para convencer-nos disso. As regras que constituem os jogos de linguagem, como j tivemos ocasio de observar, podem ser minimamente de dois tipos: formais e prticas. Estamos agora em condies de definir melhor o que pretendamos dizer com isso. Regras formais, no sentido em que estamos considerando, so aquelas que estabelecem relaes prescritivas entre entidades (signos) pertencentes a contextos de representao (por exemplo: relaes apenas entre palavras, frases, idias, etc). Para que uma regra seja sinttica, ela deve ser aplicada somente a um contexto de representaes, abstraindo-se os contextos de fenmenos que possam t-la tornado necessria. Este caso pode ser exemplificado por regras como as de nossa gramtica escolar, como no caso daquela que afirma que verbos transitivos necessitam de complemento. Basta que saibamos que quebrar um verbo transitivo para que possamos aplicar esta regra a uma frase como O menino quebrou... (cujas entidades pertencem obviamente a uma contexto de representaes), fazendonos concluir que se trata de uma frase incompleta (uma concluso que tambm se coloca em um contexto de representao). A regra aqui aplicada a contextos de representaes, independentemente do fato de sabermos aplicar a frase a contextos de fenmenos ou mesmo entendermos o que ela significa. No somente as regras de nossa gramtica escolar, mas tambm outras de maior interesse para Wittgenstein, as regras de sua gramtica profunda 33 , tambm podem desempenhar uma funo sinttica, sempre que se aplicam somente a contextos de representaes. Podemos, por exemplo, aplicar uma regra da gramtica profunda afirmando que Um mesmo lugar no pode ser simultaneamente ocupado por duas cores (BB p. 56) para mostrar a incorreo da frase Este ponto agora azul e vermelho, e isso independentemente de sabermos ou no reconhecer em um contexto de fenmenos cores como o azul e o vermelho. Quanto s regras prticas, podemos dividi-las em duas espcies: as regras que usualmente chamamos de prticas e as regras que poderamosEste , coincidentemente, o modo como P. M. S. Hacker definiu, em Insight and Illusion, a relao criterial (criterial relation ou C-relation), p. 285. 33 As quais so regras particularizadas para determinado(s) jogo(s) de linguagem, formando a parcela especfica de sua gramtica. Por essa mesma especificidade localizadora, essas regras so as que mais propriamente mereceriam o ttulo de semnticas. (ver cap. IX).32

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qualificar como exclusivamente prticas. As regras exclusivamente prticas so as que estabelecem relaes prescritivas entre entidades (fenmenos) pertencentes a contextos de fenmenos. No caso de sermos guiados por um atalho no campo, por exemplo, podemos estar seguindo uma regra que estabelece uma relao prescritiva entre o caminho que vemos diante de ns (o qual pertence a um contexto de fenmenos) e a direo de nossos passos (que tambm pertence a um contexto de fenmenos). Por exercer-se somente em um contexto de fenmenos, esta regra poderia ser chamada de exclusivamente prtica, apresentando certamente escassa importncia do ponto de vista da linguagem. H, finalmente, um terceiro tipo misto de regra, situado a meio caminho entre as regras formais e as regras exclusivamente prticas. Estas regras apresentam extraordinria importncia para o tema deste captulo. Gostaramos de cham-las aqui simplesmente pelo nome de regras prticas. As regras prticas so as que estabelecem relaes prescritivas entre entidades (fenmenos) pertencentes a contextos de fenmenos e entidades (signos) pertencentes a contextos de representaes. Como uma regra uma relao prescritiva entre um termo antecedente e um termo conseqente 34 , para o caso das regras prticas que relacionam entre si contextos de fenmenos e de representaes, podemos ter aqui duas possibilidades: a) o componente antecedente pertence a um contexto de fenmenos, mantendo uma relao prescritiva com o termo conseqente, pertencente a um contexto de representaes; b) o termo antecedente pertence a um contexto de representaes, mantendo uma relao prescritiva com o componente conseqente, pertencente a um contexto de fenmenos. A principal vantagem das idias que acabamos de expor, como veremos, consiste no fato delas permitirem que uma noo freqentemente usada por Wittgenstein, a de critrio, seja incorporada gramtica dos jogosEssas denominaes precisam ser aqui intuitivamente aceitas, j que servem como um artifcio expositivo que nos permite passar ao largo de uma discusso direta da questo: que espcie de relao criterial? Uma das fontes iniciais dessa discusso, foi o artigo de Roger Abbrington, On Wittgensteins use of the term criterion, no qual o critrio definitrio era interpretado como fonte de uma relao de implicao lgica. Mais tarde, Antony Kenny em seu artigo Criterion, sugeriu que a relao criterial, embora no sendo necessariamente de implicao, deveria constituir-se em alguma espcie de evidncia no indutiva. Posteriormente, Gordon Baker, em seu importante artigo, Criteria: a new foundation for semantics, veio a considerar a relao criterial como mais fraca que uma implicao e mais forte que uma confirmao indutiva (p.158), sugerindo que ela devesse ser explorada por meio de lgicas multivaluadas ou modais (p.167, op. cit., publ. In Ratio 16, 1974).34

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de linguagem, e assim teoria da linguagem como um todo, incluindo suas decorrncias semnticas 35 . Ao que parece, poderamos definir os critrios como componentes ou termos antecedentes de regras especficas para determinados jogos de linguagem, as quais no so compartilhadas com a maioria dos outros jogos 36 . Estas regras, chamadas por Wittgenstein de fundamentos (grounds) dos jogos de linguagem (OC 110, 204, 559), so tambm chamadas de relaes criteriais, podendo ser expressas por proposies metodolgicas (Cf. OC 318). Poderamos sugerir que, para o que um intrprete como George Pitcher chamou de jogos de linguagem impuros 37 ou seja, aqueles que contm necessariamente regras prticas que os identifiquem em sua especificidade prpria (e.g., os jogos de comando), - os critrios so termos antecedentes das regras prticas que os fundamentam. J, para o que Pitcher chamou de jogos de linguagem puros - menos comuns e sempre dependentes dos anteriores (e.g., demonstrar teoremas e realizar clculos abstratos), que conteriam apenas regras formais, - os critrios so, como signos, termos antecedentes de regras formais que os fundamentam 38 .A possibilidade de uma semntica fundamentada na noo de critrio foi primeiramente aventada por Gordon Baker em uma tese doutoral no publicada The Logic of Vagueness), sendo posteriormente retomada por P. M. S. Hacker no ltimo captulo de Insight and Illusion (1972) e pelo prprio Baker em Criteria: a new foundation for semantics (1974). Sua insuficincia, em parte reconhecida no ltimo ensaio de Baker, consistia em no ter permitido clarificar suficientemente a conexo do conceito de critrio com outros conceitos tcnicos como semelhanas de famlia, jogos de linguagem e formas de vida (p.187). Esta dificuldade foi parcialmente superada na interpretao de Richardson (The Grammar of Justification, cap. V). Richardson considerou os critrios como regras determinadoras do significado (Cf. p. 115, op. cit) em jogos de linguagem: Tais convenes lingsticas determinando as condies sob as quais uma palavra pode ser justificadamente aplicada (ascribed), so regras que constituem o jogo de linguagem com aquela palavra (p. 126, op. cit.). Na verdade, os critrios no so regras, mas seus termos antecedentes. 36 Por exemplo: a regra (pragmtica) do jogo de comando (I), segundo a qual Quando A grita Tbua!, B deve trazer-lhe certo objeto, pertence especificamente a este jogo (razo pela qual dizemos pertencer a uma gramtica profunda (PI 664). J uma regra (sinttica) da gramtica escolar (ou gramtica superficial) que demonstre a incorreo da frase Tbuas dois no jogo de comando (V) (ver 3.11) inespecfica, pois pode ser aplicada a uma multiplicidade de jogos de linguagem, no servindo para fundamentar (particularizar) um jogo de linguagem simples. 37 G. Pitcher, The Philosophy of Wittgenstein, p. 247-8. 38 Estes jogos de linguagem puros seriam aparentemente o que Feyerabend chamou de jogos de linguagem metalingsticos (ver nota em 1.1), pois teriam com objeto a prpria linguagem, tal como se d com o que chamamos de teoria da linguagem.35

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Os critrios que so, como entidades em contextos de fenmenos, termos antecedentes de regras prticas do tipo a na fundamentao de jogos de linguagem impuros, so os que foram geralmente como critrios de evidncia para o estabelecimento de concluses no contexto de representaes de um jogo de conhecimento. Veja-se, por exemplo, o critrio ttil para algum poder dizer que seu dedo tocou em seu olho: O critrio para que meu dedo tenha tocado meu olho deveria ser somente que eu tivesse uma particular sensao que poderia fazer-me dizer que eu estava tocando meu olho, mesmo se eu no tivesse evidncia visual para isso, e mesmo se, olhando para um espelho, eu visse meu dedo tocando, no meu olho, mas digamos, minha testa (BB p.51). Embora estes casos tenham sido os mais freqentemente considerados por Wittgenstein, eles no esgotam as aplicaes da noo de critrio. Os critrios podem ser tambm termos antecedentes de regras do tipo b, como signos em contextos de representaes (PI 182, 239). Uma regra como a j mencionada para o jogo de comando (I), por exemplo, pode ser considerada como uma relao criterial na qual o grito Tbua!, que pertence a um contexto de representaes, serve como critrio para a realizao de uma ao em um contexto de fenmenos. As relaes criteriais prticas dos tipos a e b, que fundamentam jogos de linguagem impuros, so importantes porque tem a propriedade fundamental de vincular a linguagem ao mundo em que vivemos. Porque o mundo, na medida em que for constitudo por contextos com fenmenos identificveis como componentes de regras, torna-se deste modo parte constituinte da linguagem, que serve comunicao e expresso; razo pela qual dizemos que a gramtica determina a estrutura, diviso e limites do mundo, tal como ns o concebemos ( 39 ). Por fim, algumas passagens das Investigaes Filosficas sugerem que tambm termos antecedentes de regras formais possam ser tratados como critrios (PI 182, 344, 377, 542), os quais poderiam fundamentar jogos de linguagem puros. Estes termos antecedentes, porm, parecem ser critrios secundrios. Pois, como observou Wittgenstein, uma tabela decorada pode servir de critrio em uma regra sinttica, mas a prpria tabela, como tal, s confivel na medida em que tiver como critrio ltimo, entidades de contextos de fenmenos a partir das quais ela foi estabelecida (PI 265).

39

Cf. D. Pole; The Later Philosophy of Wittgenstein, p. 54.

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4.32 Wittgenstein ops noo de critrio o que ele chamou de sintoma. Ao que parece, os sintomas poderiam ser considerados como termos conseqentes de relaes criteriais. Assim sendo, enquanto a presena de critrios costuma ser capaz de proporcionar evidncia conclusiva com base em alguma forma de relao no-indutiva (ver nota em 4.2), o mesmo no ocorre com os sintomas. Estes ltimos, seriam capazes de proporcionar apenas uma evidncia indutiva daquilo que critrio: Deixe-nos introduzir dois termos antitticos, de modo a evitar certas confuses elementares: para a questo Como voc sabe que alguma coisa o caso?, ns s vezes respondemos fornecendo critrios, outras sintomas. Se a cincia mdica chama de angina uma inflamao causada por um bacilo e ns perguntamos em um caso particular Porque voc diz que este homem teve angina? ento a resposta Eu encontrei tal e tal bacilo em seu sangue d-nos o critrio definitrio de angina. Se, por outro lado, a resposta fosse Sua garganta est inflamada, isso deve dar-nos um sintoma de angina. Eu chamo de sintoma um fenmeno do qual a experincia nos ensina que tem coincidido de um modo ou de outro, com o fenmeno que nosso critrio definitrio (BB pp.24-5). Por outro lado, devemos tambm notar que, para Wittgenstein, esses dois conceitos so fluidos, no havendo uma fronteira ntida a separ-los. Em diferentes ocasies, uma mesma entidade poder oscilar, tanto elevando-se categoria de critrio quanto sendo rebaixada a um sintoma (PI 354, Z 466). Isto ocorre, ao nosso ver, porque critrios e sintomas no existem como entidades isoladas. Eles quase sempre existem como entidades que, multiplamente relacionadas em contextos, so capazes de estabelecer intrincados sistemas de relaes (ver BB. p. 61-4). Por exemplo: Blue Book (p. 23-4), Wittgenstein aludiu a possibilidade de que o ato de uma pessoa colocar a mo no queixo pudesse ser critrio para concluirmos que ela sente dor de dentes. Contudo, podem existir ocasies nas quais a constatao deste fato no sirva de critrio para dor de dentes, como no caso em que a pessoa est apenas fingindo (PI 244, 249; Z 571). Neste ltimo caso, estamos apenas diante de um sintoma. Ora, o que faz com que o fato de algum por a mo no queixo seja por vezes critrio e por vezes apenas sintoma para dor de dentes, so as entidades relacionadas de uma certa maneira e que constituem o contexto circundante. Assim, se uma pessoa encontra-se na sala de esperas de um consultrio dentrio, franze a testa e geme de dor, este contexto complementar adicionado ao fato de que ela pe a mo no queixo pode tornar seu gesto um critrio capaz de fornecer evidncia conclusiva para que possamos afirmar que

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ela tem dor de dentes. Por outro lado, se a mesma pessoa pusesse a mo no queixo ao escutar uma msica em uma sala de concertos, isso seria simples e, no caso, irrelevante sintoma. 4.33 Junto questo gramatical h, por fim, uma questo semntica. A caracterstica mais importante da relao criterial, tomada como regra gramatical fundamentadora de um jogo de linguagem que, segundo Wittgenstein, os critrios determinam o significado: parte da gramtica da palavra cadeira, que com ela ns possamos dizer sentar-se em uma cadeira, e parte da gramtica da palavra significado que com ela ns possamos dizer explicao do significado; do mesmo modo, explicar meu critrio para outra pessoa ter dor de dente dar uma explicao que concerne ao significado da expresso dor de dente (BB p. 24). Os critrios que determinam o significado, na medida em que estabelecem os modos de aplicao especficos de uma expresso nos jogos de linguagem em que ela pode participar 40 , tem o papel fundamental de permitir que situemos uma expresso no contexto de um jogo de linguagem especfico, ao relacion-la convencionalmente com ele, determinando assim sua aplicao, uso ou significado no jogo. Melhor analisando, poderamos admitir aqui dois casos diferentes: um para o receptor ou ouvinte, que deve compreender uma expresso proferida em um contexto, e outro para o emissor ou falante, que deve encontrar a expresso adequada a um determinado contexto. O primeiro caso seria aquele no qual, como receptores ou ouvintes, queremos identificar o jogo de linguagem (sistema de regras) em que a expresso est sendo usada. Neste caso, a existncia de contextos de qualquer espcie a envolver a expresso, estabelece certos critrios, que identificamos como termos de regras capazes de fundamentar um particular jogo de linguagem. E quando somos capazes de estabelecer o jogo de linguagem no qual a expresso est sendo usada, isso equivale a determinar seu significado. O segundo caso, seria aquele no qual, como emissores ou falantes, usamos a linguagem ativamente. Neste caso, para que nossas expresses tenham determinado uso, devemos formul-las de tal maneira que os contextos adjacentes forneam os critrios necessrios para a fundamentaoNos captulos VIII e IX, veremos como uma mesma expresso pode ser usada com significados diferentes em uma diversidade de jogos de linguagem com semelhanas de famlia entre si.40

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de seu uso no jogo de linguagem pretendido. Caso contrrio, no poderamos tornar nossas expresses compreensveis a um suposto ouvinte. Quando as relaes criteriais que fundamentam um jogo de linguagem forem estabelecidas somente entre contextos de representaes, estaremos usando (ou localizando) a expresso em jogos de linguagem puros. J, quando as mesmas relaes forem estabelecidas entre contextos de representaes e contextos de fenmenos, teremos os casos de jogos de linguagem impuros que envolvem regras prticas, tal como acontece na praxis de nossa fala cotidiana.

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CAPTULO V

REGRAS E GRAMTICA Toda proposio emprica pode servir como uma regra, se ela for fixada como pea imvel de um mecanismo, de tal forma que a totalidade da representao gira ao seu redor tornando-a parte de um sistema de coordenadas independentes dos fatos. (RFM VII 74).

Neste captulo iremos estudar, de maneira geral, as regras sob o ponto de vista de suas funes nos sistemas de regras gramaticais que so os jogos de linguagem. As regras da gramtica podem entrar em um jogo de linguagem das mais variadas maneiras (Cf. PI 53), como atesta a seguinte passagem das Investigaes Filosficas: A regra pode ser um auxlio no ensino do jogo. comunicada quele que aprende e sua aplicao exercitada. Ou um instrumento do prprio jogo. Ou, uma regra no encontra emprego nem no ensino nem no prprio jogo, no vindo indicada no catlogo das regras. Aprende-se o jogo observando como os outros jogam (PI 54). Nesta passagem como em outras (Z 294, PG 73) so exemplificadas, embora no explicitamente distinguidas, o que poderamos chamar de duas funes gerais que as regras podem ter com relao aos jogos de linguagem.

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Gostaramos de cham-las aqui de funo constitutiva e funo regulativa 41 , correspondendo aproximadamente ao que Wittgenstein chamou de regras essenciais e inessenciais. A diferena entre uma regra a qual atribumos funo constitutiva e uma regra a qual atribumos funo regulativa, pode ser comparada diferena que existe entre as regras de um jogo de xadrez e as regras que constituem o regulamento determinador da ordem e do papel das partidas em um campeonato de xadrez. Ambos os conjuntos de regras tm algo a ver com o jogo. Apenas que as regras regulativas so exteriores ao jogo, enquanto as regras constitutivas so interiores a ele. O que dissemos, porm, no deve ser interpretado como se as regras com funo regulativa em relao a um jogo de linguagem particular, devessem subsistir em um espao agramatical exterior ao dos jogos de linguagem. Ao que parece, podem haver aqui dois casos. No primeiro, as regras regulativas so admitidas como responsveis por movimentos especiais em um jogo de linguagem, como o caso do movimento de justificao em um jogo de conhecimento. A deciso por sorteio de quem receber as peas brancas no incio da partida de xadrez, por exemplo, poderia virtualmente ser considerada como uma regra regulativa que participa deste jogo na qualidade de produtora de um movimento especial (inessencial) (PI 563-7). No segundo caso, as regras regulativas so mais independentes, sendo melhor consider-las como pertencentes a um outro jogo de linguagem, que no momento no est em questo as regras deste segundo jogo so aplicadas ao primeiro, desempenhando em relao a este papel que aparentemente poderia ser chamado de metalingstico. O campeonato ou torneio de xadrez, por exemplo, pode ele prprio ser considerado como uma espcie de jogo, cujas regras englobam, de certa maneira, os jogos de xadrez que a ocorrem. Tais regras, se consideradas com relao ao prprio torneio de xadrez (tomado como jogo), sero tidas, naturalmente, como regras constitutivas. Se, por outro lado, elas forem consideradas com relao a um jogo particular de xadrez ocorrido durante o torneio, sero chamadas regulativas. O que dissemos justifica o emprego do termo funo: uma mesma regra pode exercer, ora uma funo constitutiva, ora uma funo regulativa, dependendo do jogo de linguagem que estivermos considerando no momento. Por fim, devemos observar tambm que os exemplos acima sugerem a existncia de fronteiras imprecisas (broad borderlines) (ver 8.21) entre as regras constitutivas e as regras regulativas, bem como entre as regras tidas41

As expresses regulativa e constitutiva so empregadas aqui independentemente do sentido a elas atribudo por J. R. Searle (Cf. What is a Speech act?, p.41).-

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como movimentos especiais de um jogo de linguagem e as regras tidas como movimentos de um outro jogo de linguagem, metalingstico em relao quele (escolhemos como pertencentes a um outro jogo, aquelas regras regulativas que nos parecem fazer parte de um conjunto particularmente distinto e independente). Feitas estas consideraes gerais, poderemos melhor caracterizar as distines acima, pela exposies de alguns casos adicionais. Uma regra tem funo regulativa quando ela no faz parte do processo do jogo de linguagem em questo 42 . Podemos t-las em uma diversidade de casos como: (I) Regras que servem para auxiliar algum no aprendizado do jogo (PI 54). (II) Regras usadas para definir um jogo como: Xadrez um jogo governado por tais e tais regras 43 . (III) regras que so invocadas para solucionar uma disputa entre os jogadores, como as que so usadas para a justificao de um movimento em um jogo de conhecimento (OC 163; ver 3.12). (IV) Regras de questionamento (OC 315), que fundamentam o movimento de colocar em dvida ou mesmo um particular jogo da dvida (game of doubt; OC 115,126). Elas servem para: 1) colocar em dvida a validade de certos movimentos em um jogo de linguagem, tomando como base justificatria, as regras fundamentadoras destes jogos, ou 2) colocar em dvida os prprios jogos de linguagem, tomando como base justificatria as regras fundamentadoras de outros jogos de linguagem existentes (ou supostamente existentes, no caso da dvida terica em filosofia), capazes de relativizar os fundamentos dos primeiros, ao transform-los em movimentos circunstanciais destes ltimos ( 44 ).Ver Friedrich Waismann, The Principles of Linguistic Philosophy, cap. III. Nossa classificao essencialmente baseada no trabalho de Waismann. De acordo com G. P. Baker, em Verehrung und Verkehrung: Waismann and Wittgestein (publ. in Wittgenstein: Sources and Perspectives), aquele importante livro foi originalmente planejado como uma tentativa de realizar uma exposio sistemtica do pensamento de Wittgenstein para o crculo de Viena, tendo para isso contado com a colaborao pessoal do prprio Wittgenstein at 1936, ano da morte de Schlick. O carter sistematizador do trabalho de Waismann, torna-o particularmente importante aos nossos propsitos. 43 Cf. Ibid, p. 130-1. 44 Para ilustrar esta possibilidade, no prevista por Wittgenstein, imagine-se, por exemplo, uma tribo primitiva na qual as pessoas acreditam que podem ir a lua enquanto dormem (OC 106), que seus reis sejam deuses, ou que tenham o poder de provocar chuva (OC 92,132). Tais crenas, eles as justificam por meio de certas regras (expressveis em proposies), que fundamentam o conjunto mitolgico de seus jogos de conhecimento: a42

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(V) As regras de uma teoria da linguagem, tal como a esboada em Wittgenstein, que, ao nvel de jogos de linguagem metalingstico, busca estabelecer os princpios gerais da estrutura e do funcionamento de qualquer linguagem. Uma regra tem funo constitutiva, por sua vez, quando seu uso faz parte do processo do jogo de linguagem como tal (como, por exemplo, nos casos em que a regra um instrumento de ao (Cf. citao PI 53)). So a elas que nos referimos no captulo anterior como regras metodolgicas ou fundamentadoras dos jogos de linguagem. Tanto as regras constitutivas quanto as regras regulativas de um jogo de linguagem podem ser tambm divididas, pela maneira como atuam, em duas espcies: I) quando o jogo se processa envolvendo a regra; II) quando o jogo se processa em concordncia com a regra (Cf. BB pp. 12-13). Expondo em maiores detalhes, podemos dizer que: (I) No primeiro caso, que ocorre quando o processo ou o movimento do jogo envolve a regra, o uso da regra incorporado como signo explcito no interior do jogo. Ou, nas palavras de Wittgenstein: o smbolo da regra faz parte do clculo (BB p. 13, grifo nosso).

sua pintura do mundo (OC 95). Se quisermos contentar suas crenas, poderemos talvez recorrer a jogos de conhecimento como os da fsica, psicologia, antropologia, etc., que so fundamentados por regras (leis) que constituem nossa prpria pintura cientfica do mundo. Com estes jogos, seramos capazes de mostrar que no possvel flutuar no espao sem oxignio (OC 92), e , mais, que suas crenas so motivadas por tais e tais circunstncias culturais, sociais, econmicas, etc. Se assim o fizssemos, poderamos em princpio relativizar sua pintura do ainda mundo ao tornar as regras que a fundamentam explicveis como movimentos circunstanciais a serem fundamentados por nossa prpria pintura cientfica do mundo. Em On Certainty, Wittgenstein pretendeu mostrar que uma freqente confuso filosfica, consiste em se colocar em dvida certas regras fundamentadoras de um jogo de linguagem, sem ter para isso um fundamento justificador substitutivo em outro jogo - o que conduz a uma dvida ilegtima ou infundada (e.g., a dvida cartesiana se tomada como fonte de um ceticismo prtico); o mesmo se dava quando se pe em dvida certas regras fundamentadoras de um jogo de linguagem tomando como base outras de suas prprias regras, o que conduz apenas a uma dvida ridcula (e.g., no jogo da histria, a dvida de que Napoleo tenha de fato existido (OC 185)), pois est ltima denota uma m compreenso do sistema de regras constitui o jogo.

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Para ilustrar a definio acima, podemos recorrer a um jogo de linguagem semelhante aos j apresentados, no qual A entrega a B a seguinte tbua (Cf. BB p.95, PG 141):

A B C D

A d ordens para B, proferindo sentenas com o ac, acadd, cada, etc. B olha para a seta correspondente a cada letra, movendo-se em seguida em conformidade com elas, assim: ac acadd cada

A tbua que A entrega a B assim incorporada ao processo do jogo como configurao explcita de uma regra composta,ou, nas palavras de Wittgenstein, como expresses de uma regra (BB p. 95). Em nossa linguagem, estas expresses de regra tambm podem aparecer, no geralmente como tabelas, mas como proposies que expressam regras. (II) No segundo caso, muito mais comum, que ocorre quando o processo ou movimento do jogo se d em concordncia com uma regra (BB pp. 12-13), a regra usada sem que venha explicitada por smbolos pertencentes ao jogo. Para ilustrar esta ltima definio, imagine-se agora que a correspondncia entre as letras e os movimentos do jogo de linguagem apresentado acima seja, com a prtica, decorada por B, de maneira que ele passe a prescindir totalmente da tabela. Neste caso, o jogo deixou de ser jogado envolvendo uma regra, passando a ser jogado em concordncia com ela, pois a regra deixou de vir representada por sua expresso de regra (tabela). Contudo, a expresso de regra poder novamente ser suscitada se, por exemplo, surgirem dvidas sobre o procedimento e A pedir a B que este desenhe a tabela, ou que demonstre conhec-la, movendo-se segundo as ordens a, b, c, d (movimentos que podem expressar a regra).

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Quando aprendemos uma linguagem, freqente que iniciemos com jogos de linguagem que envolvem regras. Com a prtica, porm, passamos a prescindir deles, agindo em concordncia com regras de cuja aplicao deixamos de ter uma clara conscincia.

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CAPTULO VI

SEGUIR UMA REGRA A origem e a forma primitiva do jogo de linguagem uma reao; s sobre ela podem crescer as formas mais complicadas. Quero dizer - a linguagem um refinamento, no princpio era a ao (O p.63). Neste captulo, iremos estudar as regras com relao aos sujeitos que as seguem. No basta que algo possa ser representado como uma regra para que desempenhe tal funo. Qualquer um de ns pode inventar uma proposio prescritiva que tenha a estrutura formal de uma regra. Contudo, isso no ser suficiente para torn-la expresso de uma regra capaz de orientar as aes humanas. Para que tal acontea, parece antes de tudo necessrio que ela exera uma papel definido entre os seres humanos: necessrio que estes a sigam como uma regra. S assim ela poder cumprir o papel especfico que lhe ser destinado no jogo de linguagem: o de fundamento determinador da ao lingstica 45 .No captulo IV, quando estudamos o que poderamos chamar de estrutura das regras, pressupnhamos que o leitor j tivesse um conhecimento intuitivo do que seguir uma regra. Pois s no caso de j ter seguido regras, poderia ele reconhecer a estrutura descrita como adequada, do mesmo modo que s podemos dizer que uma pea pertence ao mecanismo no caso de j t-lo posto em funcionamento (PI 270-1). Uma vez que no captulo IV j elucidamos a estrutura das regras, iremos agora utilizar-nos daquelas aquisies com o objetivo de trazer uma tomada de conscincia mais efetiva do que fazamos intuitivamente ao seguir regras, esclarecendo isso ao nvel da linguagem verbal. No h, como possa parecer, um crculo lgico (PI 208) no qual se explica a estrutura da regra com base em sua aplicao e vice-versa. Pois seguir uma regra , em cada caso, usado em nveis discursivos (jogos de linguagem ) diferentes.45

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Em seus comentrios sobre a gramtica do conceito de regra (ver RFM VI e VII, PI 143-243, Z 276-330), Wittgenstein descreveu um grande nmero de caractersticas, atributos ou traos constitutivos (em ltima anlise, critrios de reconhecimento) da ao de seguir uma regra. Nenhuma dessas caractersticas, tomada isoladamente, parece suficiente para garantirnos que uma regra est sendo seguida, e nem todas so necessrias para que isso acontea. Isto parece suceder-se dessa maneira porque existem vrios modos diferentes de se seguir uma regra, todos eles aparentados entre si pelo que Wittgenstein chamou de semelhanas de famlia (ver cap. VIII). O que apresentaremos a seguir ser apenas um esboo fracionado e algo disperso, no qual figuram as caractersticas que nos parecem mais representativas. A mais evidente caracterstica de uma regra, considerada em sua relao com aqueles que a seguem, que uma regra alguma coisa que guia uma atividade 46 . Esta caracterstica no serve, porm, como definio do que h de essencial no conceito de seguir uma regra. Ela no uma caracterstica suficiente, j que podemos ser guiados sem estarmos seguindo qualquer regra. Pois ser guiado um conceito que apresenta uma variedade de aplicaes, muitas das quais incompatveis com a atividade de seguir uma regra. A seguinte passagem das Investigaes Filosficas pode servir para ilustrar o que estamos dizendo: Voc est em um ptio de jogos, com os olhos vendados, e algum o conduz pela mo, ora esquerda, ora direita; voc deve estar preparado para receber um puxo em sua mo, e deve tambm cuidar-se para no cair a um puxo inesperado. Ou ento: voc guiado violentamente pela mo, para onde no quer ir; fora. Ou: ao danar um parceiro o guia; voc faz-se a si mesmo to receptivo quanto possvel, maneira a adivinhar sua inteno e obedecer a mais leve presso. Ou: algum o guia em um passeio; vocs vo conversando; onde ele vai, voc vai tambm. Ou: voc segue por um atalho no campo, deixa-se guiar por ele (PI 172). Se somos violentamente carregados para onde no queremos ir, no estamos seguindo regra alguma. Mas se um atalho no campo nos guia, provvel que sim. Para que algo seja designado como uma regra, necessrio que outros atributos sejam adicionados ao de ser simplesmente alguma coisa que guia uma atividade.

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F. Waismann, The Principles of Linguistic Philosophy, p. 132.

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Outra caracterstica do conceito de seguir uma regra que este anlogo obedincia de uma ordem, comando (PI 206, 212) ou intimao (RFM VII 47-9, 61). Isto serve para colocar em relevo o aspecto normativo das regras. Podemos dar ordens para homens, ou, em certos casos, para animais domsticos. Mas dificilmente poderamos dizer que uma borboleta atrada pela luz acede a um comando, ou que os movimentos das estrelas so regidos por comandos 47 . E a razo disso que a palavra comando s adquire sentido quando usada dentro de uma certa atmosfera que a vincule sociedade humana e s relaes sociais (Z 350). Eis porque, se transferirmos a ao de seguir uma ordem para organismos muito pouco aparentados aos seres humanos, como os insetos, ou matria inanimada, uma forma peculiar de incerteza aparece 48 . Regras so comandos, e comandos so normas que s ganham inteligibilidade se sua origem e aplicao forem inerentes a nossa forma de vida humana. Outro trao que distingue a regra como comando que no temos liberdade para no segui-las: Quando algum que eu temo me d uma ordem,agirei rapidamente com toda a segurana e a falta de razes no me perturbar (PI 212). Quando sigo a regra no escolho. Sigo a regra cegamente (PI 219). De algum modo isso acontece sempre e ao fim independentemente de ns mesmos porque quaisquer que sejam nossos comportamentos, atividades e manifestaes lingsticas, somos determinados por regras. O fato das regras de um modo ou de outro equivalerem a comandos, parece uma caracterstica necessrio ao seu seguimento. Mas seguramente no suficiente para caracterizar a atividade de seguir uma regra. Afinal, existem comandos que no so regras: uma ordem pode ser dada a uma pessoa uma nica vez, ao passo que uma regra no poderia ser seguida por uma nica pessoa uma nica vez na vida (PI 199). Seguir uma regra tem, para Wittgenstein, estreita afinidade com os conceitos de regularidade, uniformidade e fazer o mesmo (PI 207-8, RFM VI 43), o que no acontece com o conceito de comando. Alm do mais, um comando pressupe