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  • 8/12/2019 Willian Gass

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    4A crtica ficcional

    [...] hay apenas una escrituraRoland Barthes

    Los gneros literarios dependen menos de los textos,que del modo en que estos son ledos

    Jorge Luis Borges

    4.1.

    Alguns antecedentes no contexto latino-americano

    A questo da crtica ficcional, tal como aparece na obra de Bolao, pode serincluda em um campo mais amplo: aquele da literatura sobre a prpria literatura e oque tem sido denominado nos estudos literrios como literatura metaficcional.William Gass, por exemplo, usa o conceito de metafico em um ensaio de 1970

    intituladoPhilosophy and the form of fiction, para caracterizar a obra de escritoresamericanos dos anos 60 como John Barth, Raymond Federman e Donald Barthelme.Ao descartar conceitos como antifico ou anti-romanesco, Gass afirmava que estesautores no s subvertiam as convenes narrativas do romance, mas tambmdiscutiam de maneira explcita o ato de experimentao narrativa enquanto orealizavam. A metafico ento seria definida como a fico acerca da fico ou afico com autoconscincia que reflete sobre sua prpria natureza, seus modos de

    produo e seus efeitos sobre o leitor.Apesar de ser bastante usado, sobre tudo a partir dos anos setenta e oitenta para

    caracterizar as denominadas literaturas ps-modernas, o termo continua sendopolmico e tm sido discutido por diversos autores e crticos que, por sua vez, temproposto suas prprias definies como Linda Hutcheon (narcissistic fiction),

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    Raymond Federman (surfiction) ou Robert Scholes (self-reflexive fiction) (Engler,2004)1.

    Alguns dos rasgos que caracterizam este tipo de literatura encontram-se na obrade Bolao e outros autores latino-americanos contemporneos, como a tematizaodo processo da escrita, o questionamento sobre sua prpria condio e possibilidades,a equivalncia entre linguagem e realidade, o uso de personagens histricos em suasfices, a exigncia de competncias narrativas no-habituais, assim como diversasexpresses de autoconscincia narrativa

    No contexto da literatura latino-americana, como o apresentava Haroldo de

    Campos (1976) em seu conhecido ensaio, Ruptura dos Gneros na Literatura Latino- Americana, j encontramos indcios desse gesto metaficcional e metaliterario2 emtextos de Machado de Assis como Memrias pstumas de Brs Cubas (1881),Quincas Borba (1891) e Dom Casmurro (1899), obras que se afastam da estrutura doromance tradicional e estabelecem um jogo crtico e irnico permanente entre autor eleitor. Trata-se de obras que rompem ironicamente o pacto ficcional maneiraAntiilusionista de Sterne, pondo em evidencia o prprio processo da escrita e ocarter de artefato ficcional da obra literria.

    Ainda que existissem antecedentes do denominado romance de tese comoCana (1902) do brasileiro Graa Aranha ou antes inclusive com Amalia (1851-1855) do argentino Jos Mrmol, romances em que participa certa natureza do ensaioe que evidenciam a interiorizao do narrar, ou seja, a reflexo paralela narrao,ser a partir dos anos trinta e quarenta do sculo XX, quando se consolida nas obrasnarrativas latino-americanas a reflexo sobre os artifcios da escrita e a mistura entreteoria e fico, primeiro na obra do escritor argentino Macedonio Fernndez e depois

    na obra de Jorge Luis Borges.

    1 Sobre o tema da metafico ver por exemplo: Hutcheon (1984, 1991), Federman (1993). Para LindaHutcheon, a metafico [...] es una ficcin que incluye en s misma un comentario sobre su propiaidentidad narrativa y/o lingstica (1984, 1) (traduo minha).2 Uso o conceito de metaliteratura para referir-me a um tipo de literatura que reflete permanentementesobre seus prprios processos de produo e recepo, que tem como temtica central o processo daescrita assim como a vida de escritores, leitores, crticos, editores, e que incorpora a crtica e a teorialiterria em seus textos. O gesto metaliterrio geralmente faz parte das denominadas escriturasmetaficcionais.

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    Macedonio um dos precursores latino-americanos mais significativos dessemovimento de literatura autoconsciente e da indiferenciao entre gneros como o

    ensaio e o romance. No contexto dos movimentos de vanguarda surgidos nasprimeiras dcadas do sculo XX em vrios pases da Amrica Latina, a obra deMacedonio um marco central em relao autoreflexo e autoconscincia narrativa,assim como incorporao do pensamento terico dentro da fico e o uso derecursos ficcionais nos ensaios tericos e crticos.

    Da mesma forma que em romances como Museo de la novela de la eterna (editada postumamente em 1967), que Macedonio comearia a escrever nos anos

    trinta, ou Adriana Buenos Aires (editada postumamente em 1974) possvel constatara ingerencia masiva del ensayo (Camblong, 2001, 36), e em toda sua narrativa semisturam postulados filosficos e sobre teoria da arte e do romance, assim mesmo emseus ensaios crticos e tericos com freqncia interfere a fico, o narrativo e opotico. Desde seus primeiros textos, como No toda es vigilia la de los ojos abiertos (1928) aparecem notas de rodap, parntesis e digresses que quebram a continuidadedo texto de forma freqentemente humorstica. Esse gesto de ruptura, de reflexopermanente e de autoconscincia narrativa se far mais programtico em seus textosposteriores como o prprio Museo de la novela de la eterna.

    O mais destacado da produo literria de Macedonio ser precisamente essainter-relao permanente e simultnea em textos que no respeitam fronteirasgenricas entre a atividade criadora e o gesto teorizador. Uma atitude que seenquadra no gesto vanguardista de ruptura com as convenes tradicionais doromance e que se contrape s tendncias realistas que dominavam o panoramaliterrio do momento.

    Borges continua alguns dos caminhos abertos por Macedonio. Para o autor deFicciones e a Historia universal de la infamia [...] no h praticamente diferenaentre ensaio e literatura de imaginao (Campos, 1976, 298). Assim comoMacedonio pretendia em todo momento mostrar-lhe ao leitor (de forma irnica ehumorstica) que o que lia era um artifcio ficcional e no uma contemplao doviver, com a obra de Borges a literatura se vira totalmente sobre si mesma, suasreferncias j no se encontram em uma suposta realidade objetiva, mas nas prprias

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    realidade e fico, [...] la posibilidad de existencia de la ficcin en la realidad, laposibilidad de enunciarla y su proceso: sus condiciones, desarrollo y transformacin

    (Ludmer, 1977, 11).A prpria reflexo sobre as possibilidades da escrita e o jogo entre a realidade e

    a fico, simbolizado no tpico recorrente do livro dentro do livro, so aspectoscentrais na obra de Onetti, assim como em romances fundamentais da narrativalatino-americana comoCien aos de soledad (1967) de Garca Mrquez.

    Especificamente para o tema que me interessa, em autores como Lezama Limae como Julio Cortzar cada um desde registros diversos, um mais barroco e erudito,

    o outro desde um registro mais casual e humorstico encontramos essa mistura degneros como o ensaio, a poesia, o romance e o pensamento crtico e filosfico que seinter-relacionam para construir obras complexas como Rayuela (1963) ouParadiso (1966).

    O prprio Lezama Lima afirmava que para chegar a seu romanceParadiso,teria sido necessrio passar por seus ensaios e sua poesia. Em sua obra, o ensaio e areflexo filosfica e mstica no se separam de sua atividade criadora em poesia eromance. Assim como o monumental relato de aprendizagem de Jos Cemi, constri-se misturando ao mesmo tempo narrativa, poesia e reflexes filosficas e msticas,em uma estratgia que no se rege pelos limites tradicionais entre gneros, Lezamausa esta estratgia ficcional em seus ensaios, onde a metfora, geralmente escura eretorcida, desloca a argumentao racionalista.

    Um romance como Rayuela (1963) de Julio Cortzar qui o exemploparadigmtico na Amrica Latina de obra que usa sua prpria escrita como temacentral, alem de incorporar, a travs do personagem de Morelli, a anlise terica e

    crtica sobre a prpria literatura. Os apontamentos de Morelli, por exemplo,configuram toda uma teoria da arte do romance dentro do prprio romance.

    Desde outra perspectiva e mudando o lugar de enunciao, que passa de umpersonagem ficcional ao prprio autor, o gesto crtico-ficcional de Cortzar sertambm evidente em livros como La vuelta al da en ochenta mundos (1967) e ltimo round (1969), que antecipam, a maioria das vezes em um registro

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    humorstico, alguns dos caminhos que tomar a narrativa contempornea latino-americana ao realizar uma mistura particular de crtica, fico e autobiografia.

    O movimento que incorpora nas obras a reflexo crtica sobre a prprialiteratura pode tambm ser rastreado na poesia latino-americana, como o apresentaHaroldo de Campos (1979), em uma tradio que inclui poetas como Oswald deAndrade, Carlos Drummond de Andrade, Joo Cabral de Melo Neto, VicenteHuidobro, Octavio Paz e Nicanor Parra. Autores de uma linha potica caracterizadapor ser poema sobre e/ou contra o poema. Seja de forma pardica e humorstica,como em Oswald de Andrade e Nicanor Parra ou de forma grave como em Cabral ou

    Paz, o poema latino-americano tambm evidencia esse gesto autoconsciente de buscareflexiva sobre o prprio poema e o ato de fazer poesia.

    A partir dos anos oitenta, aproximadamente, e sobre tudo desde os anos noventaat o presente, o gesto metaficcional e a mistura de gneros tomam propores detendncia ampla na Amrica Latina e possvel encontr-lo de forma diferenciada emescritores representativos de vrios pases: Roberto Bolao no Chile, SilvianoSantiago, Sergio SantAnna, Joca Reiners Terron, Adriana Lisboa e Nuno Ramos noBrasil, Ricardo Piglia, Sergio Chefjec e Elvio Gandolfo na Argentina, Sergio Pitol noMxico, Fredy Tllez, R. H. Moreno Duran, Rodrigo Parra Sandoval e Hctor AbadFaciolince na Colmbia, so alguns nomes significativos entre uma gama ampla deescritores e escritoras que usam alguns dos recursos metaficcionais e metaliterriosem suas obras, entre eles a incluso do pensamento terico e crtico sobre a prprialiteratura e a mistura de gneros como o ensaio e a autobiografia.

    Por outro lado, esta tendncia no exclusiva de autores latino-americanos. possvel encontr-la em obras de escritores contemporneos de outras latitudes como

    o espanhol Enrique Vila-Matas em livros como Historia abreviada de la literatura porttil (1985), e Bartleby & Co. (2000) ou do ingls Julian Barnes emEl loro deFlaubert (1984), livros que se situam entre a fico, a autobiografia, o ensaio e ahistria literria.

    Embora seu tema no seja principalmente a literatura e o literrio, esta misturade gneros aparece tambm em obras contemporneas como as do alemo W.G.Sebald que combina elementos da crnica, da autobiografia, da fico e do ensaio em

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    livros comoOs anis de Saturno (1999) e Austerlitz(2001); ou as do italiano ClaudioMagris, que usa formas do ensaio, a narrao e a autobiografia em livros como

    Danbio (1986) e Microcosmos (1997). Isto nos leva a pensar que se trata de ummovimento mais amplo relacionado com mudanas em diversos campos estticos edo conhecimento, movimento que pretende ser abordado na presente pesquisa.

    Para escritores contemporneos latino-americanos, como os mencionadosanteriormente, o mundo da literatura se torna o tema central de suas obras. A reflexocrtica sobre o prprio processo de criao literria, assim como questes tericasrelacionadas com a literatura aparecem de um modo geral, seja a travs de seus

    personagens ficcionais (que costumam ser tambm escritores, poetas ou crticos) oude maneira direta em textos que no traam limites evidentes entre a crtica, a fico ea autobiografia.

    neste contexto amplo onde podemos inserir a crtica ficcional que aparece naobra de Bolao. Como foi analisado no segundo captulo deste ensaio, muitos dostextos crticos de Bolao no se diferenciam formalmente de alguns de seus escritosficcionais. Em seus ltimos livros de contos (Putas asesinas e El gaucho insufrible) possvel perceber uma inteno de Bolao por colocar textos com aparncia de crticano mesmo nvel de seus relatos ficcionais sem nenhuma marca de diferenciao.

    Igncio Echevarra lhe d continuidade a este gesto na edio pstuma deElsecreto del mal (2007), colocando relatos, alguns deles claramente autobiogrficos,no mesmo nvel de discursos como Derivas de la pesada e Sevilla me mata. Assimcomo seus textos crticos com freqncia tm aspecto de fico, do mesmo modo freqente achar ao longo de sua obra ficcional, tanto em sua narrativa como em suapoesia, uma forma particular de crtica literria.

    Embora gestos de autoconscincia narrativa e a tematizao do prprio ato daescrita apaream desde seus primeiros romances ( Amberes, Consejos...) a partir de La literatura nazi en Amrica onde se evidencia de maneira mais ntida a questo dacrtica ficcional na obra de Bolao. Quais so as principais caractersticas deste tipode crtica ficcional?

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    4.2.

    A crtica ficcional na obra de Bolao

    Desde meu ponto de vista a crtica e a teoria literria nas fices de Bolaopode se apresentar de trs formas diferentes, embora relacionadas entre si: 1) umaespcie deetnografia do campo literrio; 2) a exposio de teorias, idias e opiniescrticas que realizam seus personagens ficcionais; e 3) um tipo de texto que mistura aautobiografia com a critica e a fico.

    4.2.1.

    A etnografia do campo literrio

    Entendo para propsitos do texto o conceito de etnografia como a descrioanaltica dos costumes e tradies de um grupo especfico. Neste caso em particular,daquelas pessoas que se dedicam ou que atuam de algum modo no campo daliteratura: criadores, crticos, editores, tradutores, leitores. Desde uma perspectivageral, a obra de Bolao pode ser vista como uma tentativa por descrever esse mundo,especialmente no contexto latino-americano desde os anos 70 at o presente.Romances como Los detectives salvajes, Amuleto, La literatura nazi en Amrica,Estrella distante, Nocturno de Chile, 2666 , assim como muitos de seus relatos, tratamprecisamente das condies do campo literrio latino-americano (e tambm europeuno caso de2666 ) nesses anos. O crtico mexicano Domnguez Michael afirma, porexemplo, que [c]on una versin anotada [de Los detectives salvajes] se podra

    reconstruir casi a la perfeccin el mapa literario de Mxico en los aos setenta(Domnguez, 2008, 77).

    Como vamos antes a obra de Bolao pode ser interpretada como a encenaodo ato potico, mas tambm como a encenao, algumas vezes de forma sria, outrasem forma de pardia, de todos os elementos que conformam o campo literrio, e nos as condies de criao: a vida dos artistas, seus conflitos ntimos e seus conflitoscom outros artistas, suas respectivas poticas e cnones, mas tambm as relaes dos

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    artistas com editores, diretores de revistas, jornalistas culturais, funcionrios pblicos,meios de comunicao, leitores, etc.

    As biografias de artistas em Bolao, sejam ou no apcrifas, ou tomando aforma daautofico, incorporam-se a este movimento de descrio e reviso docampo literrio e luta pelo cnone que realizam os escritores. Um movimento que possvel encontrar tambm em outros autores latino-americanos contemporneoscomo Silviano Santiago que escreve sobre a passagem de Artaud pelo Mxico emViagem ao Mxico(1995) e sobre a vida suposta de Graciliano Ramos ao sair dapriso em seu romanceEm liberdade (1981); Ana Miranda que usa a Gregrio Matos

    como personagem ficcional em Boca do inferno(1989), e ao poeta Augusto dosAnjos n A ltima quimera (1995); e Fernando Vallejo com suas biografias ficcionaisdos poetas Jos Asuncin Silva, Almas en pena, chapolas negras (1995) e de PorfirioBarba-Jacob,El mensajero (1984). Como afirma Celina Manzoni, esta seria [...] otrainflexin del movimiento tendiente a desarticular un canon agotado, y por el cual unanueva sensibilidad reinterpreta formas menospreciadas, o a veces directamentedesconocidas (Manzoni, 2005, 30-31).

    Se La literatura nazi en Amrica, por exemplo, brinca com a forma de umaantologia e a construo de um cnone imaginrio do continente americanoparodiando o tom e o estilo de um manual de historia literria, Nocturno de Chile nosapresenta em detalhe a voz, a vida e os conflitos ticos que se escondem por trs deum crtico literrio chileno que contribui decididamente na construo desse cnone. La parte de los crticos, tpico romance de campo acadmico, freqente sobre tudo nomundo anglo-saxo contemporneo (um exemplo deste tipo de narrativa El mundoes un pauelo (1996) de David Lodge), retrata os pormenores da crtica, seus

    processos de escrita e pesquisa, as viagens e encontros em seminrios e congressosacadmicos, a forma em que se fabricam as alianas e os conflitos entre os grupos decrticos com diferentes posturas interpretativas, assim como a amizade e o amor quesurge entre eles.

    Em contos comoSensini, de Llamadas telefnicas, descreve-se a luta deescritores desconhecidos, ou ainda pouco reconhecidos pelo mercado, para conseguirseu sustento econmico atravs da escrita, os truques aos quais recorrem os escritores

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    parecem uma espcie de gnero policial-literrio (similar tal vez ao que usaraUmberto Eco em romances comoO nome da rosa e O Pndulo de Foucault ).

    Este recurso intriga detetivesca contribui sem dvida a ampliar o crculo deleitores de Bolao que ultrapassa os tradicionais e no to amplos leitores de umtpico autorcult . A questo policial, de procura e tentativa por resolver um enigma(embora esse enigma geralmente nunca se resolva), assim como a conjuno com aquesto do mal e da perverso d obra de Bolao uma caracterstica diferente emrelao, por exemplo, com outras obras contemporneas nas quais o literrio aparecetambm como tema central e condutor das narrativas mas atravs basicamente da

    descrio do prprio processo de criao da obra (estava pensando em um romancecomo Berkeley em Bellaggio (2002) de Joo Gilberto Noll).

    Mas este fato no invalida o argumento central de que grande parte da obra deBolao funciona como um exerccio de descrio e reviso crtica do campo literriolatino-americano das ltimas dcadas do sculo XX. Bolao no escreve livros decrtica maneira de Octavio Paz, Carlos Fuentes ou Mario Vargas Llosa, mas grande parte de sua prpria obra ficcional, especialmente a partir de La literatura nazien Amrica, que se pode ver como um exerccio de crtica e reviso dofuncionamento do campo literrio na Amrica Latina e estes escritores-crticos (Paz,Fuentes e Vargas Llosa) passam a formar parte desse mundo crtico-ficcionalbolaniano.

    Em Bolao no existe essa independncia entre a crtica e a fico quecaracteriza a escritores-crticos como Fuentes ou Vargas Llosa. Os textos de Bolao,como afirma Celina Manzoni, [...] evitan esa separacin, casi universalmenteestablecida, para hacer coincidir el momento de la crtica con el de la ficcin, sea en

    el interior de los propios textos, sea en la simultaneidad de ambos movimientos(Manzoni, 2005, 33-34). neste sentido que Bolao se aproxima do gesto de Piglia,de Vila-Matas, de Silviano Santiago ou dos ltimos textos de Sergio Pitol.

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    4.2.2.

    A teoria e a crtica dos personagens ficcionais

    Em tom quase sempre irnico, e s vezes sarcstico, s vezes demolidor, oucomo conjeturas sobre o futuro, uma forma particular de teoria e de crtica literriaaparece de forma constante em boca dos personagens ficcionais de Bolao. Comovamos suas histrias esto habitadas por poetas, escritores, editores, leitorescompulsivos e professores de literatura. Assim no estranho que um tipo de crticaliterria tambm faa parte integral das histrias e se manifeste atravs de dilogos ou

    de pensamentos dos personagens.Joaquim Font, por exemplo, uma das vozes da segunda parte de Los detectives

    salvajes, elabora suas prprias teorias literrias na clnica de sade mental Elreposo, situada na periferia da Cidade do Mxico, onde se encontra internado. Entreoutros achados tericos, Joaquim faz uma classificao das obras literrias segundoos estados de nimo do possvel leitor:

    Hay una literatura para cuando ests aburrido. Abunda. Hay una literatura paracuando ests calmado. sta es la mejor literatura, creo yo. Tambin hay unaliteratura para cuando ests triste. Y hay una literatura para cuando ests alegre.Hay una literatura para cuando ests vido de conocimiento. Y hay unaliteratura para cuando ests desesperado (LDS, 201).

    A ltima classificao corresponde, segundo Font, literatura realizada porArturo Belano e Ulises Lima, os poetas protagonistas do romance ealter ego doprprio Bolao e seu amigo, o poeta mexicano Mario Santiago. Aqui, tal como emsuas intervenes crticas analisada no captulo anterior, Bolao parece deixar algumaspistas sobre sua obra nas elaboraes tericas e na crtica literria que realizam seuspersonagens ficcionais. De qualquer modo no h que interpretar todas as opinies dospersonagens como reflexo direto do pensamento critico de Bolao. Os argumentos eopinies tericas e criticas sobre obras particulares e sobre a literatura em geral,aparecem na fala de diversos personagens e apresentam diversas perspectivas, sendoimpossvel identificar de forma evidente o pensamento do autor com o de seuspersonagens. Em Bolao no h um Morelli como em Rayuela de Cortzar ou um

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    Emilio Renzi como nos textos de Piglia, isto , personagens que parecem centralizar opensamento critico do autor funcionando como umalter ego critico e terico na

    narrativa. No caso de Bolao predominam a multiplicidade de perspectivas, diversasvozes tericas e crticas que se enfrentam em um campo cheio de tenses e conflitosentre diversos modos de entender e exercer a prtica literria.

    Em um determinado momento do romance Amuleto, sua protagonista, a poetauruguaia Auxilio Lacouture, autodenominada me da poesia mexicana, narra umahistria que segundo ela lhe teria contado Jos Emilio Pacheco. Pacheco teria dito quese Rubn Dario no houvesse morrido to jovem, poderia ter conhecido a Huidobro,

    da mesma forma em que Ezra Pound conheceu a Yeats. Se esse encontro tivesseacontecido, conjetura Auxilio,

    Daro hubiera aprendido ms, y hubiera sido capaz de poner fin al modernismo einiciar algo nuevo que no hubiera sido la vanguardia pero s una cosa cercana ala vanguardia, digamos una isla entre el modernismo y la vanguardia, una islaque ahora llamamos la isla inexistente [...] y el propio Huidobro tras su fructferoencuentro con Daro hubiera sido capaz de fundar una vanguardia ms vigorosaan, una vanguardia que ahora llamamos la vanguardia inexistente y que dehaber existido nos hubiera hecho distintos, nos hubiera cambiado la vida (A, 57-

    58).

    Este outro exemplo do tipo de critica que realizam os personagens bolanianos.Argumentos relativos a possibilidades imaginarias na historia da literatura latino-americana. O tpico: o que tivesse acontecido se...? Em seu discurso Derivas de la pesada Bolao se pergunta de forma irnica:

    Qu hubiera pasado si Piglia, en vez de enamorarse de Arlt, se hubiera

    enamorado de Gombrowicz? [...] Por qu Piglia no se dedic a publicitar labuena nueva gombrowicziana o no se especializ en Juan Emar, ese escritorchileno similar al monumento al soldado desconocido? (EP, 27).

    Cinco anos depois, no ano 2007, Piglia recupera este ponto do discursobolaniano em sua conferncia da Ctedra Roberto Bolao da universidade DiegoPortales de Santiago. Usando precisamente a figura de Gombrowicz como eixodiscursivo para analisar a questo do escritor como leitor, Piglia prope esta idiacomo um modo de definir a perspectiva da obra de Bolao. Para Piglia um escritor no

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    modo em que l e observa o mundo estaria para Piglia em sintonia com o olhar deGombrowicz.

    No caso deste tipo de crtica proftica, parece-me que Bolao experimenta com ognero da fico cientifica, embora, como no caso do gnero policial, o transformapara seus propsitos particulares. Se fossem sistematizados estes comentriospossivelmente teramos um interessante livro de crtica e teoria literria de ficocientifica que poderia ser to absurdo e contraditrio como revelador. Em todo caso o

    procedimento funciona como um pequeno mecanismo explosivo na imaginao doleitor que faz com que ele reflita sobre as possibilidades de re-articulao de umcnone e finalmente sobre seu carter construdo.

    A crtica futurista e proftica aparece tambm nas listas que Auxilio elabora nomesmo romance (A, 133 e ss.) nas quais a qualidade de autores e obras parece estarmedida por aquilo que lhes espera no futuro: ser lido em todos os tneis das cidadeslatino-americanas em 2045 (Borges e Csar Vallejo); tornar-se um poeta massivo em2045 (Huidobro); ver toda sua obra levada ao cinema no ano 2102 (Arlt); ter umaesttua em uma praa do Chile em 2059 (Nicanor Parra) o no Mxico em 2020(Octavio Paz); perder a sua ltima leitora em 2100 (Alejandra Pizarnik).

    Parece-me que o modo crtico-ficcional de Bolao no um modo anti-ilusionista (como era no caso de Machado de Assis, herdeiro de Sterne) seno ummodo que mistura o comentrio esttico srio, geralmente na forma de conjeturas,possibilidades e apostas profticas, com a parodia e a ironia. Este tipo de apostascannicas, embora algumas paream absurdas ou humorsticas, fazem parte do jogo

    crtico-ficcional de Bolao e representam uma tentativa por re-articular o cnone,recuperar certas poticas e desprezar outras em um gesto que comum encontrar maisgeralmente entre os escritores que entre os crticos, como afirma Celina Manzoni(2005). Deste modo Bolao prope uma critica parcial, apaixonada, burlesca etambm poltica.

    Neste tipo de crtica ficcional aparece o gesto do escritor como crtico, doestrategista no campo literrio, mais preocupado por estabelecer um cnone e derrubar

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    outros e por incorporar seu nome a uma determinada famlia de escritores que elemesmo define a partir de seu gosto e eleies estticas. Certos nomes que se deslizam

    nas listas de autores elaboradas por Bolao parecem deslocar a formao de umcnone regido por certas caractersticas comuns, em direo aos caprichos literrios doautor (como Alice Sheldon, por exemplo, ou Phillip K. Dick) evidenciando umapreferncia particular, precisamente a fico cientifica que o diferencia dos cnonesliterrios tradicionais, especialmente dos latino-americanos, nos quais no existe umatradio forte deste tipo de literatura. E no comum que os escritorescultos seinteressem por ela.

    A citao de nomes de escritores e escritoras comum na obra de Bolao. Esteprocedimento constri uma cadeia de possveis influncias mas, sobre tudo, depreferncias e escolhas que o prprio escritor revela e expressa publicamente em umgesto crtico que se realiza de forma simultnea ao processo de criao artstica.Tambm sua poesia se incorpora a este movimento de leitura. Um bom exemplo opoemaUn paseo por la literatura, incluido em seu livroTres (2000), e definido porAlejandro Zambra como uma extravagante serie de instantneas cuyo temaprobablemente sea la promiscua cohabitacin de autores y lecturas en la cabeza delescritor (Zambra, 2002, 187). No poema um personagem chamado Bolao visita aAlonso de Ercilla, rene-se com Gabriela Mistral em uma aldeia africana, tem umaffaire com Anas Nin e Carson McCullers e trabalha para Mark Twain em um casoestrenho: salvar a vida de um homem sem rosto. Tambm a obra potica de Bolao seconstri, com freqncia, a partir de suas leituras, homenagens e comentriosimaginativos sobre escritores e poetas, assim como em sonos e pesadelos nos quais aliteratura e o literrio parecem sinalizar caminhos onricos.

    No entanto, tambm no caso de sua poesia no se trata do tradicional poema-critico, quer dizer, do poema que se questiona a si mesmo sobre a essncia do poetizar,ou melhor, seria outra inflexo desse movimento. Estamos com Bolao na presena dopoema que fala de outros poetas, do poema que reflete sobre uma determinada poesia:a chilena ou a latino-americana, especialmente, o poema-leitura, o poema-homenagem. Trata-se como afirma Pere Gimferrer no prlogo a Los perrosromnticos de palabra que, reflejndose a s misma, refleja al lector y al acto de leer

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    (Gimferrer, 2000, 10). Neste sentido voltamos perspectiva proposta por Piglia doescritor como leitor para entender a obra de Bolao.

    4.2.3.

    Autobiografia, crtica e fico

    O ultimo dos caminhos que quero mencionar est representado em relatos comoCarnet de baile, Encuentros con Enrique Lihn e Sabios de Sodoma, textos por outro

    lado muito parecidos com aqueles que encontramos reunidos emEntre parntesis.Estes textos se caracterizam por estarem construdos por meio de uma mistura entreautobiografia, uma espcie de crtica ou comentrios de leituras e fico.

    1. Mi madre nos lea a Neruda en Quilpu, en Cauquenes, en Los ngeles. 2.Un nico libro:Veinte poemas de amor y una cancin desesperada (PA, 207). AssimcomeaCarnet de baile, do livroPutas asesinas. Escrito em forma autobiogrfica otexto descreve a relao primeiro apaixonada, e depois conflitiva, entre o narrador dorelato e a obra de Neruda. Essa histria literria vai-se misturando histria de vida donarrador: histria de formao literria e histria de coragem juvenil, relacionada comseu papel na resistncia durante os primeiros dias da ditadura militar no Chile. Aliteratura funciona neste texto, como catalisador e fio condutor da narrativa, como emquase toda a obra de Bolao.

    O texto desenha o trajeto de leitura do narrador Bolao, comeando com Nerudae depois passando por Vallejo, Huidobro, Borges, De Rokha, Girondo, at chegar aNicanor Parra que ser para o Bolao maduro, uma das influencias mais marcantes

    (seno a principal). O contraponto entre Neruda e Parra, onerudiano e o parriano,serve para estruturar a histria de vida do narrador, seu passado familiar, suaspreferncias literrias, sua militncia poltica. Assim seus avs seriam nerudianos enel paisaje y en la laboriosa lentitud ou o prprio Bolao ao mencionar suaparticipao na construo do socialismo na poca de Allende seria parriano en laingenuidad.

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    A crtica aparece novamente como identificao com alguns autores e suavalorao a partir das preferncias literrias e as atitudes do poeta ou escritor. Assim,

    por exemplo, o narrador menciona a Sophie Podolski ressaltando que se suicidou aos21 anos e que s publicou um livro (e no diz nada mais sobre ela) ou a GermainNouveau do qual nos conta que se fazia chamar Humilis, que era amigo de Rimbaud,que publicou um livro de poemas em 1910 e que passou os ltimos anos de sua vidacomo mendigo morando nas portas das igrejas (e no diz nada mais sobre ele). Oescritor como leitor e crtico no est preocupado por descrever ou analisar a obradestes poetas seno em revelar suas leituras ou estabelecer uma certa identificao

    com os autores e com sua vida e deste modo incorporar-se a uma certa tradio oufamlia literria.

    No mesmo relato,Carnet de Baile, Bolao escreve:

    59. Preguntas para antes de dormir. Por qu a Neruda no le gustaba Kafka? Porqu a Neruda no le gustaba Rilke? Por qu a Neruda no le gustaba De Rokha?60. Barbuse le gustaba? Todo hace pensar que s. Y Shlojov. Y Alberti. YOctavio Paz. Extraa compaa para viajar por el purgatorio. 61. Pero tambin legustaba luard, que escriba poemas de amor. 62. Si Neruda hubiera sido

    cocainmano, heroinmano, si lo hubiera matado un cascote en el Madrid sitiadodel 36, si hubiera sido amante de Lorca y se hubiera suicidado tras la muerte deste, otra sera la historia (PA, 215).

    Da mesma forma que nas intervenes crticas, nestes textos crtico-ficcionais serepetem dois aspectos centrais. Por um lado, a importncia das leituras do escritor e o juzo valorativo de Bolao a partir dessas preferncias literrias, e por outro, a relaovida-obra. evidente a valorao positiva de Bolao de autores que tiveram uma vidana intemprie ou um destino trgico. O juzo de Neruda se realiza, ou melhor, insinua-se a partir de suas preferncias literrias e das opes de vida do poeta: se Nerudativesse sido cocainmano, ou se suicidado, outra seria a histria. Mas, como seria essaoutra histria? A reflexo de Bolao geralmente influenciada pelo mito romntico doescritor e do artista deixa mais perguntas que respostas.

    Encuentros con Enrique Linh tambm est escrito em tom autobiogrfico.Comea quando o narrador, chamado Roberto Bolao, volta a casa depois de estar naVenezuela em 1999 (ano em que o Bolao biogrfico recebe o Premio Rmulo

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    Gallegos em Caracas) mas o que se conta um sono ou um pesadelo que fazreferncia ao poeta Enrique Lihn mas tambm ao campo da literatura chilena, mais

    especificamente da poesia chilena. No meio do texto sabemos coisas da biografia donarrador: que morou em Gerona em 1981 ou 1982 poca em que comeou aintercambiar cartas com Lihn e uma poca deintemprie na qual o jovem escritor notinha nada nem ningum como apoio. Disse o narrador:

    [no hay] amigos, ni mucho menos maestros, ni hay nadie que te tienda la mano,las publicaciones, los premios, las becas son para los otros [...] Estaba en lainopia [...] Nadie me conoca y yo no estaba dispuesto ni a dar ni a pedir cuartel(PA, 218).

    Aparece neste texto novamente a auto-figurao do escritor como um guerreirosolitrio em luta permanente contra o sistema. Ao mesmo tempo em que descreve eanalisa sua situao particular, faz uma generalizao sobre o funcionamento docampo: Esto les pasa a todos los escritores jvenes (PA, 218), disse o narrador dorelato. Assim, de sua experincia como escritor passa a uma anlise geral do campoliterrio, especialmente das condies para a produo e publicao das obras. Sua

    vida torna-se um estudo de caso para compreender e denunciar as condies querodeiam o ofcio de escritor latino-americano.

    comum encontrar nas reflexes crtico-ficcionais dos escritores latino-americanos referncias no s prpria tradio literria e aos artifcios narrativos,mas tambm s relaes do escritor com o mercado e outras instituies literrias.Algo que aparece, por exemplo, de forma freqente na obra de Bolao e de escritoresbrasileiros como Sergio SantAnna e Rubem Fonseca. Como afirma Edu Otsuka:

    [A]o passo que no plano internacional a metalinguagem quase sempre estvoltada para aspetos estritamente literrios (a tradio literria, as maneiras denarrar e suas conseqncias, os artifcios narrativos), no Brasil as questes dizemrespeito principalmente ao mercado e s condies de produo e divulgao daobra (ou a eficcia poltica da escrita) (apud , Dvila Gonalves, 2005, 83).

    Esta caracterstica particular poderia diferenciar a metafico latino-americanada que se realiza em outras partes do mundo. Contudo, tambm me parece que marcauma diferena dentro da prpria tradio regional da Amrica Latina. A importncia

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    que alcana a reflexo metaliterria sobre questes relativas ao mercado e ascondies atuais de produo e divulgao das obras, da forma central que se v por

    exemplo na obra de Bolao, no algo predominante em autores que praticaram antesa metafico como Borges ou Cortzar, nos quais o central era a reflexo sobre oprprio texto, a tradio literria e a escrita.

    Se, como afirma Raymond Federman (1993), a fico ps-moderna se afasta docompromisso social e poltico caracterstico da literatura existencialista, voltando-separa o campo da esttica, no caso dos escritores latino-americanos como Bolao,Piglia ou Santiago, o gesto metaficcional no significa abandonar completamente o

    questionamento poltico, embora o assumam de maneira distinta da tradicionalliteratura engajada.

    A questo aparece em seus romances relacionada principalmente com asditaduras militares na regio, a violncia urbana e as conseqncias do capitalismo nospases latino-americanos atravs da problematizao e novas leituras da historiaoficial. Neste sentido, estas literaturas no abandonam totalmente a forte tradio decompromisso poltico da literatura latino-americana, embora incorporem as estratgiasmetaficcionais em suas propostas narrativas.

    Voltando ao textoEncuentros con Enrique Lihn, podemos ver que boa parte delese refere s cartas que Lihn lhe envia a Bolao e em seus comentrios sobre os queseriam os seis tigres da poesia chilena do ano 2000: Bertoni, Maquieira, GonzaloMuoz, Martnez, Rodrigo Lira e o prprio Bolao. Atravs da sano do mestreBolao se incorpora a uma famlia de poetas com os quais se sente identificado, apesarde que o destino do grupo, tal como Bolao o relata, seja desolador. Os poetasparecem se perder em destinos trgicos ou poticos: viver como hippie na beira do

    mar, dedicar-se bebida, perder-se no Mxico (mas no como o cnsul de Lowryseno como executivo de publicidade) ou suicidar-se.

    Aps estas referencias ao campo literrio chileno o conto adquire um cartermais narrativo no qual se descreve propriamente o encontro na casa de Lihn. Umanarrao que por momentos tem ares fantsticos, associados ao onrico, estratgiacomum nos textos de Bolao que lhe permite perfurar o contorno do real sem cairtotalmente no gnero do fantstico ou do real-maravilhoso.

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    Pouco antes do fim do relato, para explicar a excitao dos indivduos na festaem casa de Enrique Lihn voltamos s referencias livrescas, como se o mundo da

    literatura no fosse somente um tema seno referente central para explicar o mundo eo comportamento dos indivduos. Diz o narrador:

    [...] slo vea desconocidos que coman o beban y que, sobre todo, se movan demesa en mesa, de reservado en reservado, o de una punta a otra de la barra, todospresa de una excitacin febril, como se lea en las novelas de la primera mitaddel siglo XX (PA, 223-224).

    Antes que tentar aprofundar na descrio e caractersticas de certos personagens,

    Bolao recorre a referencias literrias em outro gesto tpico da literatura que se voltasobre si mesma. Os referentes j no se encontram em uma realidade exterior ou naexplorao da mente dos personagens, mas na prpria esfera de signos da literatura.

    Sabios de Sodoma um bom exemplo de texto bolaniano que atravs de diversosmecanismos discursivos cria um espao derealidade-fico que gera constantementeumefeito do real ou efeito de verdade na sua literatura. Esses mecanismos discursivosbolanianos so: o uso intensivo do discurso conjetural; a citao de outras fontes

    escritas; a condio verificvel de seus relatos; a reflexo metaliterria; e a presenade um narrador-personagem de nome Roberto Bolao ou Bolao ou simplesmente B.que guarda traos biogrficos semelhantes com os do autor.

    Sabios de Sodoma comea com um narrador na primeira pessoa que escrevesobre a visita do escritor V.S. Naipaul a Buenos Aires em 1972. O narrador vcaminhar a Naipaul pelas ruas de Buenos Aires e ao observ-lo pensa no que significao peso de uma obra: [...] el peso de la obra, eso es algo sobre lo que tendremos quevolver, el peso y el orgullo de una obra, el peso y la responsabilidad de una obra(ESM, 50). O relato se interrompe na segunda pgina e no seguinte pargrafo onarrador nos conta que h anos tinha pensado em escrever um conto intituladoSabiosde Sodoma sobre a visita de Naipaul a Buenos Aires para escrever uma crnica sobreEva Pern (publicada em espanhol em 1983 pela editora Seix Barral).

    A explicao rompe o pacto ficcional em um claro gesto de autoconscincianarrativa e nos devolve ao espao do autobiogrfico e da crtica: para o narrador,Naipaul um escritor admirvel. O texto continua com as explicaes de como o

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    escritor no conseguiu escrever esse conto, mas ao mesmo tempo v descrevendo suaestrutura imaginaria ao passo que menciona detalhes da crnica escrita por Naipaul,

    criando um clima de indeterminao no qual difcil distinguir a fico da explicaodo narrador autobiogrfico e do textoreal escrito por Naipaul.

    Como em outros relatos de Bolao, no caso deSabios de Sodoma, estamos anteum narrador que duvida o tempo todo, que no est seguro de que o que est contandoaconteceu assim ou no. O narrador no sabe (ou finge que no sabe) se o que contafaz parte de seu prprio texto ou da crnica de Naipaul: En su texto o tal vez en micuento, el vrtigo que acomete a Naipaul es cada vez mayor (PA, 55), escreve. No

    relato abundam frases que comeam com expresses comocreio e talvez. Emcontraste com um narrador onisciente que sabe tudo, que nunca duvida do que conta efacilmente nos instala na esfera do pacto ficcional, os narradores vacilantes de Bolaotransmitem uma sensao de maior realismo. Como afirma Susan Sontag, [l]a vozvulnerable, que duda de s misma, es ms atractiva y parece ms confiable [...] Laobjetividad es sospechosa: se cree falsa o fra (Sontag, 2007, 30). O que pareceinicialmente a falta do narrador (que esquea alguns detalhes, embora lembre comsuspeitosa preciso muitos outros; que duvide sobre se o que est contando aconteceuou no emrealidade, que se contradiga) torna-se um artifcio que nos coloca, comoleitores, mais prximos do espao do real.

    Embora a estratgia de Bolao nos faz duvidar sobre o carter ficcional do quelemos, ao mesmo tempo ele coloca em evidncia os prprios mecanismos daconstruo discursiva em um jogo que estabelece e rompe permanentemente o pactoficcional.

    Alm do autor deUna casa para Mr. Biswas, outros escritores so citados no

    relato: Borges, Bioy Casares e Rodrigo Fresn. Os dois primeiros como personagensque se encontram com Naipaul em Buenos Aires, o ltimo como personagem queconversa com o narrador sobre a crnica de Naipaul. A constante citao de nomes deescritores e escritoras, a presena de personagens reais em seus relatos, o jogopermanente com o verificvel, neste caso a visita de Naipaul a Buenos Aires em 1972,assim como certos momentos e acontecimentos histricos que Bolao escolhe para

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    situar suas narraes colocam seus textos em um espao indeterminado entre a ficoe a realidade.

    Em conjunto com estas estratgias, como vamos no caso deCarnet de Baile ede Encuentros con Enrique Lihn, situa-se a opo por colocar em seus textos umnarrador-personagem com nome e traos semelhantes aos do Bolao biogrfico.Embora no se trate efetivamente de uma aposta autobiogrfica no sentido de contardesde um ponto de vista retrospectivo o processo de formao de uma personalidade.

    Este aspecto unido crtica e ao carter auto-reflexivo que atravessa sua obra, aouso do discurso conjetural, assim como a condio verificvel de seus textos,

    contribuem para gerar esse carter hbrido da escrita bolaniana.Comentando o romance de Javier Cercas,Soldados de Salamina, Bolao afirma

    que um romance que [...] juega con el hibridaje, con el relato real [...] con lanovela histrica, con la narrativa hiperobjetiva, sin importarle traicionar cada vez quele conviene esos mismos presupuestos genricos (EP, 178). E falando de Bartleby &Co., de Vila Matas, diz que [...] tal vez estamos ante una novela del siglo XXI, esdecir una novela hbrida, que recoge lo mejor del cuento y del periodismo y la crnicay el diario de vida (EP, 287). A obra de Bolao, como a destes escritores, incorpora-se a uma certa tradio contempornea de romances hbridos3 que se constroemmediante uma mistura de diversos gneros e perspectivas narrativas que experimentamo tempo todo com as fronteiras entre o real e o ficcional, criando um espao no qualtudo literatura.

    4.3.

    Crtica e fico ou tudo literatura

    Literatura sobre a prpria literatura, fico que se escreve como historia literria,crtica ficcional, mistura de gneros: de onde vem e a que obedece este procedimentoesttico usado por Bolao e por outros escritores contemporneos? Parece-me que

    3 Para uma discusso em detalhe sobre a literatura hbrida no contexto espanhol contemporneo verMartn-Estudillo e Bagu Qulez (2008).

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    vrias respostas e linhas de anlise so possveis para responder a estas perguntas.Como vamos ao inicio deste captulo, dentro da prpria tradio literria podemos

    encontrar mltiplos antecedentes de obras que misturam diversos gneros e queincluem um tipo de reflexo sobre a prpria literatura, assim como narrativas que temcomo tema central o processo da escrita atravs de seus personagens ficcionais.

    A possibilidade de incluir a crtica na fico, a anlise sobre o prprio ato daescrita assim como a criao de um espao autnomo na obra de arte situado entre oreal e o ficcional, encontra seu principal ponto de partida noQuixote, como matrizoriginal do romance moderno. Como afirma Luiz Costa Lima: O espao do ficcional

    em Cervantes supe a atualizao do exerccio crtico no prprio ato de criao. Paratanto, lhe capital o recurso do distanciamento, a capacidade de o autor ver-se de forado que relata (Costa Lima, 1986, 58).

    Dom Quixote aparece tambm como a marca do fim de uma forma de interpretara realidade: a episteme renascentista analisada por Foucault em As palavras e ascoisas. Se at o final do sculo XVI a interpretao da realidade estava baseada naidia da semelhana e a representao se dava como repetio, teatro da vida ouespelho do mundo, [...] com suas voltas e reviravoltas, as aventuras de Dom Quixotetraam o limite: nelas terminam os jogos antigos da semelhana e dos signos; nelas jse travam novas relaes (Foucault, 2002, 63).

    Dom Quixote em seu intento desesperado de demonstrar a verdade dos livros decavalaria termina por evidenciar de forma tragicmica que as palavras j nocorrespondem s coisas, que os signos (legveis) no so semelhantes aos seres(visveis). Entre a primeira e a segunda parte do romance, Dom Quixote assumeplenamente sua realidade que feita somente de linguagem, as palavras acabam de

    fechar-se em sua natureza de signos. Por isso Dom Quixote, para Foucault, aprimeira das obras modernas, pois a que a linguagem rompe seu velho parentescocom as coisas para entrar na soberania da literatura.

    As mudanas nos diversos regimenes de representao desde o renascimento ato modernismo e o alto modernismo foram abandonando as referncias externas para,por um lado, deixar em evidncia o prprio processo de representao, e por outro,fazer da prpria linguagem artstica o campo privilegiado da arte. A partir do alto

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    modernismo, a semelhana deixa seu lugar central para asimilitude, onde no existedicotomia entre original e cpia. A obra de arte no se remete mais a uma realidade

    exterior, mas a representaes anteriores, em um mundo serial onde no hhierarquias: o mundo do simulacro. Abandonando a pretenso de ser uma cpia darealidade, a arte busca seu prprio desenvolvimento a partir de outros signos, a partirda prpria literatura, criando um mundo autnomo que no se remete,necessariamente, a uma determinada realidade exterior.

    Uma das conseqncias desse movimento de auto-referencialidade aincorporao da reflexo sobre a prpria literatura no interior das obras ficcionais. O

    poema-crtico de Mallarm um momento inaugural desta tendncia moderna. Afico se torna metfora de seu prprio desenvolvimento narrativo. A literatura sevolta sobre si mesma, suas referncias j no se encontram em uma suposta realidadeobjetiva, mas nas prprias representaes literrias. Como afirma Barthes, [...]provavelmente com os primeiros abalos da boa conscincia burguesa, a literaturacomeou a sentir-se dupla: ao mesmo tempo objeto e olhar sobre esse objeto, fala efala dessa fala, literatura-objeto e metaliteratura (Barthes, 1970, 28).

    Na medida que o texto literrio deixa de estar subordinado a um sentido presenteno mundo antes da escrita, como era ainda no romantismo e no realismo no sculoXIX, a literatura vai se tornando a explicao de si mesma. No incio oquestionamento sobre a prpria literatura costuma aparecer a travs de caracteresficcionais, como na obra de Joyce, Kafka, Celine, Mann, Proust ou Faulkner, masprogressivamente a reflexo sobre as prprias possibilidades e limites do literrio e daescrita, manifesta-se a travs da escrita mesma, como no caso extremo da trilogianovelstica de Beckett, Molloy(1951), Malone morre (1951) eO inominvel(1953),

    onde a prpria linguagem que se fratura, fragmenta-se e parece chegar a seu limiteexpressivo.

    Bolao, tal como tenho tentado apresentar nestas pginas estaria vinculado aeste gesto metaliterrio atravs de suas mquinas narrativas vistas como espaosamplos de descrio e reflexo em torno do literrio, assim como atravs de seuscaracteres ficcionais, mas tambm na medida em que faz coincidir os momentos da

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    criao e da crtica criando um espao que experimenta com as esferas do real e doficcional.

    Alm de pertencer a uma determinada tradio literria moderna, essaindiferenciao entre fico, crtica e histria literria pode estar relacionada comalgumas mudanas no campo do conhecimento cientifico e social. Pensoparticularmente em dois aspectos: a recuperao doeu e da subjetividade e aproblematizao da linguagem.

    Atualmente se reconhece que o conhecimento da realidade absolutaindependente de qualquer cognio no existe para o ser humano. Por essa razo

    impossvel alcanar objetividade no sentido de um acesso direto aos objetos oufatos, sem nenhuma mediao. O que podemos fazer estabelecer intersubjetividadesbaseadas no paralelismo de nossas estruturas, operaes e domnios cognitivos eexigir a formao de esferas consensuais. Como conseqncia, a verdade nosentido absoluto humanamente impossvel.

    O conhecimento cientfico depende necessariamente do sujeito. Suaobjetividade e intersubjetividade no so funes de sua adaptao realidade,seno produtos da homogeneidade cultural dos cientistas que chegaram a umconsenso em relao a determinadas categorias destinadas a julgar as construesconsideradas cientficas e que outros indivduos socializam no mesmo sentido.

    Essa necessria subjetividade do conhecimento e da realidade objetivadesestabiliza o lugar e a distncia existente entre objeto e sujeito, confundindo asfronteiras do que, no contexto literrio, seria a realidade e a fico. Se, em sentidoestrito, no h uma realidade objetiva fora da percepo subjetiva, a distncia entre acritica e a historia literria e a fico se encurta ou pelo menos se faz um pouco

    difusa, o que permite jogos de lado e lado: tanto a incorporao da crtica e da histrialiterria na fico como uma certa ficcionalizao ou jogo ficcional de parte dosestudos literrios, como pode ser observado em obras como as de Blanchot ouBarthes, e tambm em teses acadmicas que atualmente incorporam registros dedirio, dilogos ou passagens ficcionais, ou inclusive a apresentao de romances econtos como trabalhos acadmicos na rea de literatura.

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    Por outro lado, sem certas marcas explcitas de gnero (como o subttuloromance, a explicao na contracapa de que se trata de um manual de escritores

    imaginrios ou a incluso do livro em uma determinada srie ficcional e no deensaio ou de teoria literria) que acompanham a publicao de livros como Laliteratura nazi en Amrica, Formas breves, El ltimo lector ou Em liberdade, estestextos poderiam colocar-se nas estantes de histria ou de manuais literrios, e umleitor desavisado bem poderia interpret-los como livros de crtica ou de histrialiterria.

    No caso especfico de La literatura nazi en Amrica de Bolao, sem a indicao

    que aparece na contracapa do livro, pelo menos na edio da Biblioteca Breve de SeixBarral, talvez o leitor no pudesse estabelecer de imediato que se trata de um romanceou de um livro de carter ficcional. Nesse sentido, Derrida se pergunta: Pode-seidentificar um trabalho de arte, de qualquer tipo, mas especialmente um trabalho dearte discursivo, se ele no sustentar a marca de um gnero, se ele no sinalizar oumencionar isto de algum modo? (Derrida, 1992, 229) (traduo minha).

    Figura 2 Capa e contracapa de La literatura nazi en Amrica , Editora Seix Barral

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    Por outro lado, a linguagem deixou de ser representacional, o que seria a base

    de uma transmisso exata das mensagens, um veculo para comunicar alguma coisaque estava fora: o objeto da cincia. Atualmente a linguagem se compreende de outramaneira, j no representa o mundo, seno que o constitui, o cria. Sua funoprimordial no transmitir mensagens de um lugar a outro, mas construir a realidade.

    Por este caminho a nova cincia se aproxima do romance que tem conservado,em sua vertente mais afastada do realismo, a idia da linguagem como geradora darealidade romanesca. A cincia, especialmente a cincia social contempornea

    comea a construir-se ela mesma como uma histria, como uma narrao, como umromance. Trata-se de toda uma virada epistemolgica nas cincias sociais e humanasque se caracteriza em parte por um certo retorno do autor e da subjetividade e oreconhecimento do carter discursivo do conhecimento. O que contribui a debilitar asfronteiras entre os discursos cientficos e os ficcionais. Finalmente do que se trata de linguagem e escrita.

    Neste sentido podemos afirmar que, embora este tipo de texto crtico-ficcionalque experimenta com as fronteiras entre o real e o ficcional no seja um fenmenointeiramente novo na histria da literatura, sim parecem ser diferentes as condies deproduo e de recepo destas obras na atualidade. Condies como as que acabamosde enumerar que se interelacionam ademais com o mundo dosimulacro quehabitamos, saturado de imagens de televiso, Internet e outros meios massivos decomunicao.

    Assim, o realismo mgico e maravilhoso dos anos 60 e 70, estaria sendosubstitudo atualmente por umrealismo virtual resultado de uma sobre-exposio de

    imagens e simulaes produzidas pelos meios massivos de comunicao e as novastecnologias, que levam a questionar a noo derealidade, sua natureza discursiva econstruda e por tanto a possibilidade de manipul-la. Como afirma Jorge Fornet:[...] la realidad puede ser suplantada por su virtualidad. Inversamente, el mundo quenos rodea puede ser ledo como una ficcin (Fornet, 2005, 19). Essa possibilidade demanipular a realidade est na base de certo esprito deconspirao, seja poltica ou

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    literria, que aparece com freqncia em textos recentes de Bolao, Piglia e Vila-Matas e tambm de escritores americanos como Don Delillo e Paul Auster.

    A problematizao da noo de realidade pode explicar tambm tanto aproduo como a recepo particular na atualidade de textos que se movimentam nasfronteiras entre os gneros: mistura de fico, ensaio, crtica literria e de gnerosdocumentais como dirios, cartas e crnicas. De igual maneira ajuda a entender aestratgia daautofico, textos onde o autorreal aparece dentro da narrativa comonarrador e/ou personagem, efetuando uma dramatizao de si mesmo, mas deixandomarcas evidentes de relao com sua biografia. Exemplos deste tipo de textos so

    relatos de Bolao comoCarnet de Baile e Encuentros con Enrique Lihn, analisadosneste captulo, assim como as obras de Fernando Vallejo, alguns dos textos de CsarAira e os ltimos romances de Joo Gilberto Noll, Lord (2004) e Berkeley em Bellagio(2002)4.

    O fenmeno pode tambm ser identificado em formas hbridas de outrasexpresses artsticas, como no cinema contemporneo. Penso em filmes quemanipulam permanentemente as perspectivas narrativas, incorporam personagensreais atuais ou do passado e misturam diversos registros: imagens ao vivo edepoimentos, argumentao acadmica, fragmentao, tcnicas de videoclipe epublicidade,collage e vdeo arte, como no filmeUn tigre de papel (2007) do diretorcolombiano Luis Ospina.

    Por um lado se questiona a supostaautenticidade do documentrio,reconhecendo plenamente que o que se pretendia documental tambm um textoimpuro e arbitrrio que depende da mediao da subjetividade. Estes filmes procurampor em evidencia o prprio processo de representao e o papel do diretor e da

    perspectiva narrativa na construo do filme (como na filmografia de EduardoCoutinho no Brasil). Por outro lado, filmes que se apresentam como ficcionais usamestratgias prprias de representao do documentrio procurando constantementecriar umefeito de verdade em suas narrativas.

    4 Para uma discusso em detalhe do conceito deautofico e o retorno do autor na narrativa latino-americana contempornea, ver Klinger (2007). Sobre o giro autobiogrfico na literatura argentinaatual, ver Giordano (2008).

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    Em alguns casos fazendo uma reviso de acontecimentos centrais da histriasocial e poltica latino-americana, estas formas narrativas atuais, tanto na literatura

    como no cinema, questionam o estatuto do real e do fictcio desestabilizando oscritrios de verdade nicos, revelando tambm o carter de construo discursiva emanipulvel da realidade e propiciando uma leitura e recepo mais atenta e crtica.

    Creio que tambm este, pelo menos, um dos caminhos nos quais pode serentendido o aporte poltico da literatura de Bolao, seu poder de desestabilizao erelativizao dos discursos assim como a inquietao que gera a leitura de suas obrasao confrontar de forma permanente e, a partir deste registro particular de realidade-

    fico questes como o mal e a violncia, tanto a violncia associada s ditadurasmilitares latino-americanas, como a violncia associada s conseqncias docapitalismo que se evidenciam nos assassinatos de mulheres de Cidade Juarez,retratados em uma obra monumental como2666 .

    Como veremos no prximo captulo precisamente a coragem que deve ter oescritor para enfrentar-se a estes perigos uma das caractersticas que Bolao maisvaloriza para julgar a umverdadeiro escritor e para definir o que seria umaverdadeira literatura.

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