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WEIL, Eric. A educação enquanto problema do nosso tempo. In: POMBO, Olga. Quatro textos excêntricos. Lisboa: Relógio D'água, 2000.

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Page 1: WEIL, Eric

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A EDUCAÇÃO ENQUANTO PROBLEMADO NOSSO-TEMP01-

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o mínimo que se pode dizer é que os problemas contem-porâneosrelativosà educaçãotêm sido fastidiosamenterepi-sados.Todas as pessoas sensatasreflectem intensamente,oupelo menos consagrammuito do seu tempo, a questõesrela-tivas ao ensino superior,secundárioe elementar,à educaçãodestinada às crianças, aos adolescentese adultos, às naçõesbárbarase civilizadas,aos cidadãose estados de todo o tipo,aos membrosdas assembleiaslegislativas,aos administrado-res, aos quadros sindicais et caetera2.Além disso, existemassociações privadas, Ministérios da Educação, encontros,simpósios que se ocupam destas questões; há a UNESCO;há os defensores dos sagrados valores nacionais. Que maishaverá ainda para dizer sobre um assunto a propósito doqual, se a probabilidadeestatísticaé válida neste domínio,játudo deve ter sido dito e redito muitas e muitas vezes?

I É-nos grato recordar que uma primeira versão da tradução deste texto foi en-saiada por Paulo Dias, aluno finalista da licenciatura em Ensino da Matemática daFCUL no ano lectivo de 1996/97. (N.T.)

2 Em latim no original. (N.T.)

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Contudo, talvez seja possível fazer ainda uma observaçãoem favor da oportunidade de retomar, uma vez mais, estaquestão. A experiência adquirida em numerosos domíniosindica que uma questão não se toma necessariamentemaisclara por ter sido discutida em toda a parte e por muito tem-po. Pelo contrário, quap9:.Qq debate se prolonga ao longo de .

um certo número de anos, constata-se com frequência quehá inúmeras receitas que são propostasmas que, muitas ve-zes, se deixa de saber quais os problemas que essas respos-tas era suposto resolverem. Sem sermos exageradamentepessimistas, poderíamos pensar que foi exactamente issoque nos aconteceu- e não apenasno domínioda educação.Uma vez mais, as árvores teriam encoberto a floresta. Nu-ma situação tão desagradável como esta, o melhor é sempreregressar à atitude do perfeito ingénuo e, como o velho ma-rechal Foch, perguntar: mas afinal, de que se trata?

De que se trata na educação? O século XIX tinha umaresposta: a educação é a instrução. Bem entendido, a ins-trução não era sempre suficiente. Para lá do ideal da purainstrução, em países como a Inglaterra, a Fral1çae a Ale-manha,subsistiaum outro ideal.O gentleman3, o homemdo mundo, der edle Charakter4 (ou ainda - e a alternati-va é significaiiva - der grosse Manll 5)não podiam ser re-sultado da instrução. E mesmo quando se exigia instrução(o que nem sempre acontecia) essa não era a condição pré-via principal. Em todo o caso, para as massas, os «ThreeR'S»6eram considerados suficientes. De facto, eram mais

3 Em inglês no original. (N.T.)

4 Em alemão no original. (N. T.)5 Em alemão no original. (N.T.)

6 Em inglês no original, Os Three R"s são a leitura. a escrita e a aritmética, isto é,as três bases do ensino primário. Cf. os objectivos da escola de Jules Ferry: ler,escrever e calcular.

A Educação Enquanto Problema do Nosso Tempo 57

do que suficientes. Não porque se pensasse que o homemvulgar pudesse dispensá-Ios, mas porque não havia nemuma oferta suficiente deste tipo de instrução nem mesmouma suficiente procura.

Creio no entanto que não deveríamos abandonar comdemasiada ligeireza o ideal da educação pela instrução. In-.~"~,felizmente, para uma grande parte da humanidade contem-porânea este ideal ainda permanece um ideal. É certo que,nos países ocidentais, praticamente toda a população é ins-truída. Também é certo que, por vezes, somos tentados aconfessar que nem por isso a marcha do mundo se tomoumais harmoniosa ou as pessoas de convívio mais fácil.'Mas os homens que, no decurso do século XIX - e tam- .

bém do século XVIII, para dar a cada um o que lhe é de-vido - insistiram na necessidade da educação popular,nunca acreditaram que a instrução fosse um fim em si mes-ma. O que pensaram e ensinaram foi que os analfabetos se-riam sempre seres violentos, incapazes de compreender osseus próprios interesses racionais, que não teriam oportu-nidades reais, que nunca poderiam ser membros úteis, epor consequência prósperos, numa sociedade moderna, in-dustrial e racional. Eles não admitiriam nunca algo que,hoje em dia, é por todo o lado proclamado como uma ver-dade histórica evidente, a saber, que durante as épocas poreles audaciosamente designadas como idade das trevas eidade bárbara, todas as coisas estavam bem ordenadas, ca-da homemno seu lugarnatural,cada instituiçãocumprin-do um papel cordato e satisfatório.

Por outro lado, esses homens também nunca afirmaramque a instrução fosse capaz de satisfazer todas as nossasnecessidades: a instrução era uma condição necessária,mas não suficiente. Condição de quê? Do aparecimento deum homem novo, capaz e desejoso de desempenhar o seu

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papel na sociedade moderna, preparado e apto para julgartodos os problemas inerentes à vida da comunidade a quepertence, satisfeito com a sua posição porque conscienteda dignidade inerente e da necessidade social do seu traba-lho, convencido do carácter racional da ordem existente,

. ..mas detenninado a melhorar essa ordem e a~slJ,a.posiçãonela. Operários, camponeses, membros das classes médiase superiores compreenderiam que ninguém pode resistir aoprogresso, que a mudança é inevitável. Mudança essa quedevia efectuar::se- pelo menos a longo prazo - no inte-resse de todos. Só homens instruídos seriam trabalhadorescompetentes, só trabalhadores competentes seriam capazesde destruir a resistência produzida pelos reaccionários nãoesclarecidos. Todos, do mais elevado ao mais baixo da es-cala social, deviam colaborar nesse grande projecto que ti-nha por nome: progresso. E, nesse sentido, cada um deviaconsiderar-se como um operário. A instrução era o meio; oprogresso, o fim.

II

Entretanto, tomou-se moda deixar de acreditar no pro-gresso. Porquê? É uma questão difícil à qual, de momento,não tentaremos responder. Mas talvez possamos chamar aatenção para o facto de, entre aqueles que maldizem o pro-gresso, poucos serem os que estão dispostos a deixar levaresse seu desprezo pelo progresso ao ponto de recusarem oscontributos que este proporciona às comodidades da vida.Sem dúvida que a electricidade, a água canalizada, a pos-sibilidade de viajar ou de visitar museus, de passear nasruas sem o perigo de nos cair na cabeça o conteúdo de to-da a espécie de recipientes domésticos, a certeza de se en-

A Educação Enquanto Problema do Nosso Tempo 59

contrar aquilo de que se necessita, ou que simplesmente sedeseja, em locais detenninados - nenhuma destas como-didades conduz à felicidade, no sentido mais profundo (oumais elevado) do termo. No entanto, estes pequenos nadascolocam-nos na situação daquele homem rico que dizia

'.~ que o dinheironão tomava o homeJ;Il.feliz, mas que s.,óquem tivesse dinheiro em abundância estava em condiçõesde escolher a infelicidade preferida.

O facto, em toda a sua simplicidade, é que ninguém querrenunciar ao progresso, ao simples e vil progresso mate-rial. Ora, pelo contrário, coloca-se hoje o problema de sa-ber como fazer chegar o progresso a todos os que dele nãobeneficiam ainda. Por consequência, a instrução continua aser uma das tarefas essenciais do nosso tempo: as pessoassão pobres porque não têm instrução, porque não conhe-cem os meios e os recursos de uma sociedade moderna, in-dustrial e racional e, por outro lado, é porque são pobresque têm falta desses meios. Aquilo que as nossas comuni-dades ocidentais conquistaram nas três ou quatro últimasgerações tem que ser alcançado pelo resto da humanidade.As comunidades que ficaram para trás pretendem benefi-ciar dos frutos da tecnologia moderna e o preço que vão terque pagar para lá chegar é a aquisição, muítas vezes à re-velia das suas próprias tradições, das capacidades e do sa-ber necessários para edificar uma indústria, formar operá-rios, engenheiros, professores de ciências, administrado-res, funcionários. Para obter os mesmos resultados, essascomunidades vão ter que modificar, talvez mesmo mudarradicalmente, as suas concepções e os seus valores funda-mentais, exactamente como nós o tivemos que fazer. Semdúvida que, pela nossa parte, teremos também que melho-rar o nosso próprio sistema de instrução, espalhar o saberainda mais longe, elevando ao mesmo tempo o nível geral,

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60 Eric Weil A Educação Enquanto Problema do Nosso Tempo 61

produzir cada vez mais e mais técnicos, administradores eespecialistas em todos os domínios. O progresso nuncatem fim porque, uma vez aceite como tal, a ideia de um fimdo progresso toma-se uma contradição nos seus própriostennos. Tanto os povos atrasados como os avançados terão

~ -. necessidade,por..mais.algum tempo, sempre-de mais emais instrução pela simples razão de que uns e outros que-rem sempre mais e mais frutos do progresso. Pode essequerer ser incorrecto. Mas o facto é que o querem. Podemos povos estar prontos a proclamar que há valores mais'iin:':'portantes que os valores do progresso. Mas isso não signi-fica que estejam prontos a pensar que esses valores supe-riores os obriguem a rejeitar os menos elevados.

Se, portanto, a instrução é uma necessidade, o problemadesaparece. É certo que as dificuldades continuam. Massão de ordem meramente técnica. Sabemos perfeitamenteo que é necessário fazer se quisennos realmente resolvê--Ias. Falta quem ensine; os alunos e os pais nem sempre es-colhem as especialidades socialmente mais úteis; às vezes,recusam mesmo categoricamente a aquisição da pouca ins-trução elementar a que a lei obriga. Porém, se uma socie-dade decidisse realmente modificar este estado de coisas,seria perfeitamente capaz de o fazer. Dai bons salários e te-reis bons mestres. Podemos talvez ficar por aqui, uma vezque os nossos dirigentes sociais e políticos parece teremjácomeçado a compreender este ponto.

Uma única coisa poderia vir ainda perturbar-nos. É cer-to que se realizou aquilo que os apóstolos da educação po-pular - de uma educação popular sempre mais elevada -profetizaram. As nações que primeiro compreenderam es-sa mensagem deram realmente passos de gigante na estra-da do progresso e os novos aderentes obviamente tambémcompreenderam a lição. Tornámo-nos calculadores civili-

zados, seres racionais com plena consciência dos nossosinteresses pessoais, com uma vida muito melhor do que ados nossos antepassados. Temos hoje acesso a bens e pra-zeres de que os antigos não podiam sequer suspeitar. So-mos admitidos, ou melhor, cordialmente convidados, paratodas "aquelas manifestações ,de,espírito e da alma que, ~ -dantes, eram privilégio do gentleman7, do homem de bem,do gebildete Mensch 8.É forçoso reconhecer que hoje istosó é verdadenas nações avançadas.Mas é mais do que pro-vável que esta situação venha a prevalecer em toda a partenum futuro não muito afastado. Grande número de sereshumanos estão esfomeados, não têm tempo para si pró-prios, não conhecem os meios e as comodidades da vidamoderna. Mas a fracção da humanidade que dispõe dessesbens é já relativamente importante e não há dúvida que osrestantes acabarão por obter os mesmos benefícios. Deuma maneira geral, o progresso é um facto e irá continuar.O tempo consagrado aos lazeres ocupará uma parte cadavez maior na vida humana. Pode-se pois dizer que a ins-trução conduziu à liberdade, se entendennos por liberdadea possibilidadedada ao homem de fazer o que quer, na me-dida em que isso não interfira com a liberdade do seu vizi-nho, sendo que o nosso homem pode dispor do seu temposem que, para isso, tenha que renunciar aos bens destemundo e à parte que lhe cabe no produto social. Os após-tolos do progresso tinhanLnlzão.

Então, o que é que nos pode ainda perturbar? Muito sim-plesmente, o facto de tennos obtido o que nos prometerame desejámos e o facto de, mesmo assim, não estarmos ain-da completamente satisfeitos com os resultados. Podemos

7 Em inglês no original. (N.T.)8 Em alemão no original. (N.T.)

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comer quantos bolos quisermos, mas eis que, ou já não so-mos as crianças que fomos outrora, ou o bolo já não tem omesmo sabor. Não que o queiramos desperdiçar.Recordamo-nos muito bem do tempo em que não nos po-díamos satisfazer sequer com pão duro. Mas vejamos: co-

' !11.~csempre bolos ..de pastelaria? Sempre..cie. -pastelaria?Ainda que o bolo seja cada dia melhor e que nos dêem fa-tias cada vez maiores, ainda que seja bom ter bolos paracomer, parece que já nada nos satisfaz.

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Podemos porventura chamar tédio a isto. Normalmente,considera-se o tédio com um olhar desaprovador. Se al-guém se queixa de tédio não o tomamos muito a sério. Quese ocupe, dizemos nós de bom grado, que faça alguma coi-sa para sair do seu tédio. Mas, se uma civilização inteirafor atingida pelo tédio, este pode tomar-se uma coisa efec-tivamente séria até porque, nesse caso, não existiria nin-guém para dizer aos outros porque razão se aborreciam e oque seria necessário fazer para remediar a situação. Se, ob-tido-ludo o que razoavelmente se pode desejar, as pessoasestão ainda insatisfeitas e se todo o mundo partilha do mes-mo sentimento de insatisfação, pode então desencadear-seo recurso a coisas não razoáveis. Estamos todos certamen-te de acordo num ponto, a saber: que a violência é o únicoverdadeiro passatempo.

Ora, é exactamente isto que parece estar a produzir-senas sociedades mais avançadas do nosso tempo, se bemque, por agora, numa escala reduzida. Nos E.D.A., há jo-vens brilhantes e bem-educados que torturam e matammendigos nas praças públicas para se divertirem; na

A Educação Enquanto Problema do Nosso Tempo 63

D.R.S.S., há filhos e filhas de dignatários que roubam pa-ra tirar aquilo de que não têm qualquer necessidade. Poroutro lado, o tédio pode engendrar uma espécie de violên-cia que se vira contra o próprio. Homens de prósperos ne-gócios e funcionários com êxito nas suas carreirassuicidam-se, ou.tentam a morfina, o sexo, o álcool, as.reli-giões estranhas. Procura-se por vezes uma explicação paraeste facto no excesso de trabalho e na fadiga nervosa. Mas,longe de refutar a nossa tese, esta explicação vem antesconfirmá-Ia: por que Ôutrarazão um homem que tem tudoaquilo de que necessita se deixaria cair numa tal situaçãosenão porque, sem a droga do excesso de trabalho, se ar-risca a morrer de tédio? O fenómeno não tende a diminuirde importância. Podem tomar-se mais raros os crimes crá-pulas cometidos com violência, as tentativas ilegais de ad-quirir bens legais. Mas a violência desinteressada, aquelaque é, ela mesma, o seu próprio fim, quer seja dirigida con-tra os outros quer contra si mesmo, está a espalhar-se cadavez mais. A percentagem não é a mesma em todo o lado e,aqui e além, as tradições servem de dique. Mas servir dedique é uma ocupação fastidiosa, particularmente quandoos diques estão a desaparecer e os construtores de diquessão cada vez mais raros.

A situação é inquietante. A sociedade pode esforçar-se,muitas vezes com êxito, para fazer compreender ao poten-cial criminoso - digamos, ao criminoso em...geral- queas vias legais conducentes à abundância são mais seguras;que é do seu próprio interesse conduzir-se de forma a nãodesencadear sobre si a violência defensiva da sociedade.Mas o interesse particular tem muito poucas hipóteses deprevalecer sobre o tédio que nasce da insatisfação de um in-teresse satisfeito. O interesse pessoal tomou-se desinteres-sante (o que, em grande parte, poderá explicar a moda lite-

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rária que vê na violência desinteressada a verdadeira reali-zação da vida humana). Devemos, por consequência, tentarcompreender a natureza deste tédio e perguntarmo-nos seele não está, de alguma maneira, ligado à educação.

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Se fosse necessário reduzir os fins da educação a um só,este seria o de, precisamente, dar ao homem a oportunida-de de levar uma vida que o satisfaça (enquanto ser racio-nal, isto é, na condição de que cada um procure a sua pró-pria satisfação sem impedir o seu vizinho de fazer outrotanto). A educação surge assim como uma questão de opor-tunidade. Mas «oportunidade» é um termo ambíguo nestecontexto. Os educadores antigos queriam atingir precisa-mente este fim - e no entanto fomos confrontados com oproblema do tédio precisamente porque essas pretensõesobtiveram êxito. Muitos são os que têm a oportunidade deconstruir uma vida satisfatória se se entende por isso quenenhum obstáculo exterior os impede. Mas são poucosaqueles que têm a oportunidade de aproveitar esta oportu-nidade. A razão é evidente: se quisermos construir para nóspróprios uma vida boa, devemos ser nós próprios aconstruí-Ia, segundo os nossos próprios planos; devemosser o arquitecto da nossa própria_casa,_nãopodemos con-tactar especialistas para nos fazerem o trabalho. Se um vi-zinho nos pretendesse vender ou alugar a sua casa, atémesmo se nos quisesse oferecê-Ia, ela seria sempre feita aoseu gosto, não ao nosso, e, como tal, não nos agradaria.

Ora, aqui, a instrução não nos pode ajudar. Sem ela -não é demais repeti-Io- não existiriam materiais de cons-trução, nem tempo, nem vontade de construir. Mas, viver

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A Educação Enquanto Problema do Nosso Tempo 65

sobre um amontoado de tijolos e de vigas, rodeado de to-das as espécies de utensílios e de máquinas, sem a menorideia do que se vai fazer com esses materiais, é igualmen-te desagradável. A instrução diz-nos como proceder parafazermos o trabalho, mas não nos indica como será a obrafinal. Podemosjogar com a.spedras e a argamassa m~~.t_Ql!levamos o jogo de tal modo a sério que, por medo incons-ciente de ter que reconhecer que se trata de um jogo, nosesgotamos nesse trabalho ou rapidamente descobrimosquese trata de um jogo e, nesse caso, somos tentados ã regozi-jarmo-nos com isso. Uma guerra, uma revolução, uma ca-tástrofe maior podém então aparecer como preferíveis à- .simples continuação das coisas tais como estão, uma vezque estas se tomaram absolutamente desprovidas de inte-resse. E não se veja nesta.comparação uma invenção fan-tasiosa. Pensemos quanto os terrores e os pânicos da nossaépoca contêm de desejos reprimidos e antecipações deli-ciosas (não confessados mas inconscientes); observemos aforma como, em tempo de guerra e violência, diminui acurva dos casos de doenças mentais, provavelmente por-que se passa enfim qualquer coisa que interrompe a me-diocridade da vida.

Por consequência, para além da instrução e acima dela,há lugar para a educação. Não que os antigos educadoresestivessem errados. Simplesmente, esqueceram-se de umfacto: porque pensavam sempre nos males que oprimiam agrande maioria dos seus contemporâneos, não reflectiramnaquilo que podia dar significado, valor e sentido à sua vi-da. Porque eles próprios certamente levavam uma vidasensata, partiam compreensivelmente do pressuposto deque os outros, aqueles que não tinham a mínima oportuni-dade de conduzir a sua própria vida, teriam feito comoelesse lhes tivesse sido permitido imitá-Ios. Desse modo, não

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deram o devido valor àquilo que os seus alunos mais te-riam necessitado caso fossem livres: o conhecimento doque poderiam fazer com a sua liberdade. Acreditavam queesse saber emergiria naturalmente em cada um. Não pen-saram nunca que é possível ficar paralisado por se ter de-

. c._JDasiado tempo li}'..reà sua disposição. . _ .

Está hoje fora de dúvida que os planos e projectos dosantigos educadores se modificaram. Mas, no entanto, con-tinuamos a proceder em conformidade com as orientaçõesque eles traçaram. Inventámos novos estímulos para in-centivar a aprendizagem; introduzimos métodos sofistica-dos para estudar; abrimos ao público lugares onde cada umpode escolher livremente a sua alimentação numa lista ri-ca de ofertas. Mas, a cozinha está no andar inferior e osclientes nunca aí vão (a menos, bem entendido, que quei-ram tomar-se cozinheiros), porque nunca são convidados avisitar a cozinha, ou sequer informados dos procedimentosculinários. Os clientes aprendem assim a avaliar - diga-mos, a distinguir - uma alimentação boa, média ou má.Mas não aprendem a cozinhar um prato ou a descobrir osseus desejos mais pessoais em matéria de cozinha. São--lhes oferecidas todas as espécies de ideais, de maneiras deviver, de filosofias, de sistemas jurídicos e poiíticos, de ta-belas de valores. Mas, ao fim de um certo tempo, todos es-ses pratos maravilhosos parecem ter o mesmo sabor - ocliente perde o apetite e fica entediado.

Pode parecer «natural» dizer que o remédio consiste eminstruir os homens no uso da sua liberdade. A resposta énatural para nós, velhos mestres e bons alunos de mestresainda mais velhos. Mas é uma resposta supremamente ri-dícula: é que não se pode instruir ninguém no uso da liber-dade. Tudo o que a instrução pode fazer é tomar a liberda-de possível. Poderíamos então dizer que nos cabe tomar a

A Educação Enquanto Problema do Nosso Tempo 67

liberdade razoável e, nesse caso, que deveríamos encontraros meios para levar aqueles que educamos a pensar por suaprópria conta nos dois sentidos que esta expressão possui:por sua própria conta, porque terão de ser eles a construiro seu próprio pensamento e porque, para eles, pensar deveter um-sentido.eonãoapenas cOtlstitun:um valor comeJicia-lizável.

Será que isto se pode fazer? A tarefa não é impossível.Ela exige a educação, qualquer coisa de radicalmente dife-rente da instrução. Uma educação que não seria positivamas negativa, que não mostraria onde reside o sentido masonde ele não pode estar. Uma educação que obrigaria cadaum a admitir a sua perplexidade, o seu tédio, o seu deses-pero - não a confessá-Iospublicamente a uma autoridadeou a um especialista, mas a-confessar a si mesmo que estáà procura de qualquer coisa que não tem e que deseja maisdo que tudo no mundo. Não há uma impossibilidade ine-rente a esta tarefa, nem para o educador, nem para o aluno.É claro que não é tarefa fácil. Mas, se fosse fácil, não va-leria a pena ser uma tarefa. Embora, num primeiro mo-mento, a utilidade social do indivíduo pudesse diminuir, asociedade moderna poderia tomar-se mais eficiente se per-mitisse a irradicação da insegurança fundamental e da vio-lência escondida que a caracterizam. As tensões sociais einternacionais poderiam diminuir. À humanidade poderiaser revelado algo que ela quase esqueceu, a saber, que opensamento é em si mesmo uma grande e bela coisa, que osentimento é nobre quando não é adulterado pelo senti-mentalismo e pelo desejo de posse e que, quando ousamosolhá-Io, o mundo é belo.

Que não se pense que isto pode ser atingido sem a ins-trução. Nada nas páginas precedentes deveria permitir pen-sar que a instrução é destituída de valor e que a educação

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é possível sem ela. A instrução é necessária para que a so-ciedade possa progredir e oferecer mais oportunidades deaceder à liberdade e de um maior número de pessoas delafazer uso. Só a instrução pode dar a experiência da verda-de objectiva, o respeito pela universalidade dos direitos,dos deveres.e dos .valores, a modéstia intelectual, .elemen-tos que são indispensáveis se se pretende que a liberdadenão permita criar uma situação na qual se tornaria de novoactual aquilo que o velho Hobbes pensava da natureza hu-mana, bem -âssim como 'as receitas que propunha. É umfacto - e um facto pouco agradável- que nascemos ego-cêntricos, violentos, egoístas e que só a instrução nos do-mínios do conhecimento e das boas maneiras, nos trans-forma em seres humanos, quer dizer, em seres cuja vidanão consiste apenas na luta pela sobrevivência, mas que,legitimamente, procuram libertar-se dos constrangimentosque a natureza humana e todas as outras espécies de vio-lência natural exercem sobre eles. Porém, uma vez ganha abatalha da instrução, o problema de uma educação para aliberdade adquire estatuto de primeiro plano.

Não estamos perante um problema novo. Se ele nos pa-rece como pouco familiar é simplesmente porque as cir-cunstâncias se modificaram desde a época em que surgiupela primeira vez. Formulado do ponto de vista do histo-riador, o nosso problema é o problema central da filosofiagrega. Que procuraram filósofos como Sócrates, Platão eAristóteles, senão um conteúdo para a vida do homem li-vre, do homem que nâo estava constrangido a trabalhar pa-ra viver ou a combater a natureza com as suas própriasmãos? O que é penoso para nós é que os Gregos tinham es-cravos e nós temos máquinas. Quer dizer, aquilo que, notempo dos Gregos, era um problema para uma pequena eli-te, transformou-se - ou vai transformar-se em breve -

A Educação Enquanto Problema do Nosso Tempo 69

num problema para todo o género humano. É imposssívelaceitar as soluções gregas que pressupõem condições quejá não existem e que nunca mais se poderão voltar a dar.Mas, aquilo que os Gregos tentaram talvez nos possa aju-dar na nossa procura. Eles perceberam de forma muito cla-ra que os.homens.livres {}uese esquivam às responsabili-dades que a liberdade implica não poderão jamais ser feli-zes nem continuar livres. E nisto não se enganaram. A Gré-cia chegou ao fim - e não foi um fim feliz - porquequem não está em condições de assumir a sua liberdadetem necessidade de um mestre. Todas as comunidades quepõem a eficácia acima de tudo e consideram a liberdadecomo um brinquedo acabam por ficar submetidas a ummestre. A instrução e o progresso material são condiçõesprévias indispensáveis. Quando as transformamos numfim, é muito possível que se não destruam por si mesmas.Mas podem ser destruídas pelo tédio e pelo desespero. En-quanto o progresso não tiver reduzido as diferenças exis-tentes entre os níveis de vida de comunidades avançadas eatrasadas, enquanto houver tarefas urgentes que tenhamque ser realizadas por intermédio de avanços técnicos, deinstrução positiva, de organização racional, o perigo nãoestá iminente. Mas, por mais impressionantes que sejam,os perigos mais graves não são necessariamente as fricçõese os conflitos internacionais. O perigo futuro poderátraduzir-se numa ameaça muito maior: o perigo de uma hu-manidade liberta da necessidade e do constrangimento ex-terior mas impreparada para dar conteúdo à sua liberdaõe.Neste sentido, não seria exagerado afirmar que não existenenhum problema mais importante, mais urgente, que o daeducação. E os nossos sucessores podem vir a ser incapa-zes de o resolver se demorarmos demasiado tempo e se,desde já, não reflectirmos suficientemente sobre esse pro-

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blema. Podem mesmo vir a ser incapazes de ver o proble-ma e de tomar consciência daquilo que já vem mal de trás- exactamente da mesma maneira que a filosofia grega,nos seus últimos momentos, deixou de procurar uma res-posta válida para todos os homens livres e para toda a co-

--munidade de homens-livres e apenas procurou--encontrarconsolação para os raros indivíduos que continuaram apensar que tudo tinha acabado mal. Ela renunciou assim aperceber que era possível, ou teria sido possível, encpntrarum remédio. - --

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