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CONSTRUÇÕES COM SE APASSIVADOR E INDETERMINADOR: NO PORTUGUÊS DO BRASIL E NO PORTUGUÊS EUROPEU Edson Ferreira Martins Orientadora: Professora Doutora Maria João Marçalo Co-orientador: Professor Doutor Paulo Osório Dissertação de Doutoramento em Linguística, apresentada à

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Edson Ferreira Martins

5

Construções com se apassivador e indeterminador:

no português do brasil e no português europeu

Edson Ferreira Martins

Orientadora: Professora Doutora Maria João Marçalo

Co-orientador: Professor Doutor Paulo Osório

Dissertação de Doutoramento em Linguística, apresentada à Universidade de Évora

Évora

2011

Construções com se apassivador e indeterminador:

no português do brasil e no português europeu

Edson Ferreira Martins

Orientadora: Professora Doutora Maria João Marçalo

Co-orientador: Professor Doutor Paulo Osório

Dissertação de Doutoramento em Linguística, apresentada à Universidade de Évora

Évora

2011

in memoriam:

Ao Professor Mario Roberto Zágari,

a quem devo

minha iniciação à pesquisa linguística,

o amor aos estudos,

a paixão pela linguagem.

AGRADECIMENTOS

Nenhum homem é uma ilha, muito embora a realização de um trabalho extenso como este, não raro, me tenha obrigado a mergulhos solitários “por mares nunca dantes navegados”. Às pessoas que, de algum modo, me apoiaram a realizar esta pesquisa, eu gostaria de agradecer de coração.

À minha orientadora, a Professora Maria João Marçalo, sou grato por ter-me aberto as portas da Universidade de Évora, bem como por ter dividido comigo seus conhecimentos quanto aos aspectos sintáticos do português.

Ao meu co-orientador, o Professor Paulo Osório, agradeço por compartilhar comigo seus conhecimentos sobre a pesquisa histórica em língua portuguesa, pelos incentivos constantes, e, principalmente, por ter se dedicado à orientação deste trabalho com uma atenção admirável.

À Professora Maria do Céu Fonseca, pelas incontáveis “boleias” que gentilmente me deu no deslocamento entre a capital e o Alentejo, encontros que, indiretamente, proporcionaram a oportunidade para que me desse pequenas grandes aulas particulares sobre os usos do Português Europeu e sobre a tradição gramatical portuguesa, assunto de sua especialidade.

Aos demais professores do Departamento de Línguas e Literaturas da UE, e também aos muitos funcionários de diversos setores desta Universidade, que sempre me ajudaram a resolver questões burocráticas, facilitando meu acesso a informações e serviços, desde o dia em que, literalmente, pus os pés na bonita e pequena Évora.

À Universidade Federal de Viçosa, pela licença concedida, que me possibilitou a dedicação exclusiva à execução do projeto. Aos colegas (professores e funcionários) do Departamento de Letras da UFV, também meu muito obrigado. Em especial, devo agradecer à Professora Ana Maria Barcelos pela revisão que me fez do Abstract, e à Professora Luciana Ávila, por ter me ajudado no acesso ao acervo bibliográfico disponível na Universidade Federal de Minas Gerais.

Ao Professor Mauro Baltazar, mestre inspirador quando de minha chegada ao Departamento de Letras da UFV, que, com sua sabedoria e humildade costumeiras, aceitou revisar o texto final, limando aqui e ali certos torneios obscuros e evitando que muitas falhas persistissem. As que ainda houver, naturalmente, são de minha inteira responsabilidade.

À Maria do Carmo, devo o auxílio prestado na editoração do texto, quando me ajudou a desvendar certas funções labirínticas do Microsoft Word.

Ao Programa Alban, Programa de Bolsas de Alto Nível da União Europeia para a América Latina, pelo apoio financeiro concedido por meio da bolsa nº E07D400415BR.

Aos novos amigos feitos em Lisboa, sou eternamente grato a Maria Libânia Rebelo, pela hospitalidade com que me recebeu, além dos socorros emergenciais prestados nas inúmeras consultas ao acervo bibliográfico da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; a Mario e Tonká, Paulo Barroso, Katia Bernardon, Lúcio e Renata, pelo companheirismo muitas vezes vivenciado. A Francesco, Daniela, Arianna, Grazia, André, Alfredo e Luis, por terem dividido comigo em Florença um pouco de suas vidas e de sua língua. Grazie di tutto, ragazzi!

À Professora e grande amiga Neiva Ferreira Pinto, entusiasta de que eu realizasse o curso na Europa, onde poderia ampliar minha formação profissional e humanística, satisfazendo com o prazer dos olhos o conhecimento haurido nos livros, tenho de agradecer pela presença constante em minha formação intelectual, iniciada pelo nosso feliz encontro no outono de 1999 na Universidade Federal de Juiz de Fora. Como se não bastasse ter acompanhado o desenvolvimento deste trabalho, desde o momento de sua formulação ainda como projeto de pesquisa, a Professora Neiva, em meio a suas ocupações, ainda encontrou tempo para uma leitura criteriosa da versão final do texto, de que resultaram melhorias significativas.

À Professora Cândida Georgopoulos sou grato por seus ensinamentos, que me possibilitaram, entre outras competências, compreender, de forma harmoniosa, a interdependência que existe entre língua literária e língua comum; a análise empreendida dos fragmentos literários de Mario de Andrade e Monteiro Lobato guarda reminiscências de seus ensinamentos de Estilística do português.

A Nilson Ribas, André Faria, Gerson Roani, Ângelo Assis, Roberta Franco, Cristiane Cataldi, Joelma Siqueira, Odemir Baeta, Ana Paula Rocha, Matosalém Vilarino, Nilson Adauto, Heliane Miscali, Apolino, Thalita Andrade, Lucas Fonseca, que, da outra margem do Atlântico, não deixaram que o banzo me dominasse, me acalentando com palavras nos momentos em que a saudade da terra teimava romanticamente em fincar.

À Lívia, que, para além de amor e boas risadas, me auxiliou em inúmeras tarefas na edição final das partes que compõem este trabalho.

A quem nos dá a vida é difícil agradecer. A meus pais, ‘Seu’ Ferreira e Dona Helena; e a meus irmãos, Eder e Jaqueline, agradeço por compreenderem minha ausência e por fazerem meus sonhos terem mais sentido.

Construções com se apassivador e indeterminador:

no Português do Brasil e no Português Europeu

No presente trabalho, realizamos um estudo sobre a sintaxe histórica da língua portuguesa, focalizando as construções com se apassivador/indeterminador. Partindo de uma concepção de língua histórica, considerada em sua dimensão sociolinguística (COSERIU, 1979a; LABOV, 1972, 1982), analisamos a situação de variação e mudança linguística por que passam tais construções na gramática do português arcaico. Para tanto, utilizamos quatro corpora, representativos da prosa literária e não literária do português dos séculos XIII, XIV, XV e XVI. Paralelamente ao estudo linguístico deste sintaticismo no referido período, esboçamos também um estudo historiográfico recuperando as reflexões dedicadas ao tema das construções com se pelas tradições gramaticais portuguesa e brasileira, bem como pelos estudos filológicos e linguístico-históricos.

Se-passive and se-impersonal constructions:

in Brazilian and European Portuguese

In  this paper, we carry out  a  study  on  Portuguese historical  syntax, focusing on the  se constructions. Based on a conception of  historical  language, considered in its sociolinguistic dimension (COSERIU, 1979a; LABOV,  1972, 1982),  we analyze linguistic variation and  change  which these constructions undergo in  the grammar of  Old Portuguese.  We used four corpora, representative of literary and non literary Portuguese prose of the of  13th, 14th,  15th  and  16th centuries.  Parallel  to the syntactic study, we  also outline  a  study  recovering the reflections  on the theme  of  the se constructions by Brazilian and Portuguese grammatical tradition, as well as by the philological and historical linguistic studies.

SUMÁRIO

ÍNDICE DE TABELAS11

ÍNDICE DE GRÁFICOS12

ÍNDICE DE QUADROS12

LISTA DE ABREVIATURAS13

INTRODUÇÃO15

CAPÍTULO 1 - A Mudança Linguística: do Fato Observado ao Problema Teórico18

1.1 O Nascimento da Filologia: a Percepção da Mudança 20

1.2 A Genealogia das Línguas e o Parentesco Interlinguístico 24

1.3 A Etimologia “Histórica” 34

1.4 Os Historicismos no Século XIX 35

1.4.1 A Formação do Método Histórico-Comparativo 37

1.4.2 O Naturalismo de Schleicher46

1.4.3 Os Neogramáticos48

1.5 A Teoria Saussuriana 56

1.5.1 Saussure ou um Momento de Crise 56

1.5.2 O Rigor Metodológico e a Defesa da Sincronia 59

1.6 Estruturalismo e Mudança 64

1.6.1 Mudança e Teleologia: a Posição de Jakobson70

1.6.2 Mudança e Economia: a Proposta de Martinet 74

1.6.3 O Dilema do Estruturalismo Diacrônico 80

1.7 Eugênio Coseriu: a Mudança como Problema 84

1.7.1 Do Falso ao Verdadeiro Problema da Mudança 87

1.7.2 A Reconciliação entre Sistema e Movimento96

1.8 O Resgate da História Promovido pela Sociolinguística 103

1.8.1 A Busca dos Fundamentos Empíricos para o Estabelecimento de uma

Teoria da Mudança 106

CAPÍTULO 2 - Sincronia e Diacronia no Estudo das Construções com se115

2.1 A Perspectiva Sincrônica (I): A Tradição Gramatical Portuguesa –

de Fernão de Oliveira a Manuel Botelho 116

2.2 A Perspectiva Diacrônica 131

2.2.1 A Contribuição dos Estudos Filológicos 131

2.2.2 As Gramáticas Históricas 143

2.2.3 Os Estudos em Linguística Histórica 155

2.3 A Perspectiva Sincrônica (II) 171

2.3.1 Ecos do Pronome se na Prosa Literária do PB171

2.3.2 Gramáticos d'aquém e d'além-Mar após a “Crise” Diacrônica 178

2.3.2.1 A Tradição Gramatical Brasileira 178

2.3.2.2 A Tradição Gramatical Portuguesa 189

CAPÍTULO 3 - Princípios Metodológicos da Pesquisa201

3.1 Constituição e Caracterização dos Corpora202

3.2 Tratamento dos Corpora 211

CAPÍTULO 4 - As Construções com se no Português Arcaico 215

4.1 Nota sobre as Variantes Ortográficas no Período Arcaico: o Caso do Clítico 215

4.2 A Opcionalidade do Complemento Prepositivo nas Passivas Pronominais224

4.2.1 Papéis Semânticos sob o Rótulo “Agente da Passiva” 225

4.2.2 A Omissão do Complemento Prepositivo229

4.2.3 A Presença do Complemento Prepositivo232

4.2.3.1 SPreps com a Preposição per 232

4.2.3.2 SPreps com a Preposição por 233

4.2.3.3 SPreps com a Preposição de 235

4.2.3.4 SPreps com a Preposição com 236

4.2.3.5 Casos Particulares239

4.2.4 Sobre a Questão da Vernacularidade do Complemento Prepositivo241

4.3 A Ordem de Constituintes nas Passivas Pronominais245

4.3.1 O Sujeito245

4.3.1.1 Realização Sintática do Sujeito 252

4.3.2 O Complemento Prepositivo256

4.3.3 O Clítico259

4.4 Variação e Mudança Linguísticas nas Construções com se Apassivador/

Indeterminador268

4.4.1 A Reinterpretação Semântica do Clítico269

4.4.2 Os Casos de Concordância Verbal Facultativa 277

4.4.3 Os Casos de Hipercorreção281

CONSIDERAÇÕES FINAIS284

BIBLIOGRAFIA289

ANEXOS303

Anexo I - Textos representativos do Século XIII309

Anexo II - Textos representativos do Século XIV 420

Anexo III - Textos representativos do Século XV552

Anexo IV - Textos representativos do Século XVI696

Anexo V - Texto representativo do século XX763

ÍNDICE DE TABELAS

Tabela 1 - Variação ortográfica para a representação do clítico por período de tempo no português arcaico217

Tabela 2 - Distribuição temporal das formas ortográficas para o clítico nas passivas pronominais por tipo de texto219

Tabela 3 - Tipo semântico do sintagma que forma o complemento prepositivo por período de tempo no português arcaico228

Tabela 4 - Tipo de preposição que encabeça o complemento prepositivo nas passivas pronominais232

Tabela 5 - Distribuição temporal das ocorrências de complementos prepositivos em passivas pronominais no português arcaico243

Tabela 6 - Ordem dos constituintes nas passivas pronominais com complemento prepositivo expresso246

Tabela 7 - Ordem dos constituintes nas passivas pronominais sem complemento prepositivo expresso247

Tabela 8 - Realização sintática do sujeito por período de tempo nas passivas pronominais253

Tabela 9 - Posição do complemento prepositivo nas passivas pronominais com sujeito foneticamente não realizado257

Tabela 10 - Posição do clítico em relação ao verbo nas passivas pronominais no português arcaico259

Tabela 11 - Posição do clítico em relação ao advérbio negativo nas passivas pronominais no português arcaico263

Tabela 12 - Distribuição das formas inovadoras e conservadoras com sujeito em número plural nos corpora dos séculos XV e XVI274

ÍNDICE DE GRÁFICOS

Gráfico 1 - Distribuição temporal das formas gráficas do clítico por tipo de texto no português arcaico220

Gráfico 2 - Posição do clítico em relação ao verbo por século nas passivas pronominais261

Gráfico 3 - Distribuição das formas inovadoras e conservadoras com sujeito em número plural nos corpora dos séculos XV e XVI275

ÍNDICE DE QUADROS

Quadro 1 - Conjunto de textos que compõem o corpus do século XIII209

Quadro 2 - Conjunto de textos que compõem o corpus do século XIV210

Quadro 3 - Conjunto de textos que compõem o corpus do século XV210

Quadro 4 - Conjunto de textos que compõem o corpus do século XVI211

LISTA DE ABREVIATURAS

CA = Crónica de Afonso X

CRB = Chronica dos Reis de Bisnaga

CP = Castelo Perigoso

DCS = Dos Costumes de Santarém

DPCA = Documentos Portugueses da Chancelaria de D. Afonso III

FG= Foros de Garvão

FRA = Foro Real de Afonso X

LEBCTS = Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela

PL = Prosa Literária

PnL = Prosa não Literária

TA = Testamento de D. Afonso II

TNGNP = Textos Notariais da Galiza e do Noroeste de Portugal

TN = Textos Notariais

TNOx = Textos Notariais do Arquivo de Textos do Português Antigo

TP = Tempos dos Preitos

“O passado é um imenso pedregal que muitos gostariam de percorrer como se de uma auto-estrada se tratasse, enquanto outros, pacientemente, vão de pedra em pedra, e as levantam, porque precisam de saber o que há por baixo delas. Às vezes saem-lhes lacraus ou escolopendras, grossas roscas brancas ou crisálidas a ponto, mas não é impossível que, ao menos uma vez, apareça um elefante [...]”

José Saramago (2008: 29)

‘È inutile’, soggiunse [il maestro vetraio], ‘non abbiamo più la saggezza degli antichi, è finita l'epoca dei giganti!’

‘Siamo nani’, ammise Guglielmo, ‘ma nani che stanno sulle spale di quei giganti, e nella nostra pochezza riusciamo talora a vedere più lontano di loro sull'orizzonte.’

Umberto Eco (1985: 94)

INTRODUÇÃO

“Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas.”

João Guimarães Rosa (1978: 312)

Numa pesquisa anterior, dedicando-nos à análise das construções tradicionalmente denominadas de voz passiva pronominal ou sintética em português, a partir da análise de um corpus de língua escrita do Português Brasileiro (doravante PB) do século XX, encetamos um estudo sociolinguístico das construções com se. Nesse estudo, pudemos atestar a situação de variação linguística que envolvia a gramática destas construções no PB.

A literatura disponível sobre o tema (SAID ALI, 1919; NARO, 1976; NUNES, 1990) sinalizava, entretanto, para a questão como um caso de mudança linguística em curso na sintaxe do português, que começaria a ser percebido em meados do século XVI. As limitações com as quais lidamos nesse estudo preliminar, motivadas sobretudo pelo recorte sincrônico que operamos na língua, pouco permitiram aprofundar sobre o fato da mudança em questão, de maneira que saímos dali com a certeza de maiores perguntas.

A presente Dissertação pretende tentar responder a tais questionamentos. Com o propósito específico de realizar um estudo histórico-linguístico das construções com se na gramática do português, a pesquisa se desenvolve norteada pelos seguintes objetivos: (i) fazer um “mapeamento” do estatuto sintático-semântico das construções com se apassivador e indeterminador, ao longo dos séculos que compreendem o período arcaico da língua (cf. a proposta periodológica de Mattos e Silva, 2008a), a partir das teorias modernas sobre a mudança, como as desenvolvidas por Coseriu (1979a), Weinreich, Labov, Herzog (2006) e Labov (1972); (ii) compreender como a gramaticografia de língua portuguesa, a filologia e os estudos histórico-linguísticos construíram a teorização sobre esse sintaticismo; (iii) contribuir para o melhor conhecimento da língua portuguesa, a partir de uma concepção de língua entendida em termos coserianos como real e histórica (COSERIU: 1979a: 94).

No capítulo 1, refletimos sobre o fato da mudança linguística, advogando pela necessidade de sua inserção como parte essencial de uma teoria geral da linguagem. Para tanto, apresentamos uma visão historiográfica sobre como os estudos linguísticos, da Antiguidade à contemporaneidade, dialogaram com a observação, em princípio factual, de que as línguas naturalmente se modificam na linha do tempo.

No capítulo 2, analisamos como descrições linguísticas provenientes de diferentes opções teóricas buscaram interpretar a forma e o funcionamento dos constituintes oracionais presentes nas construções com se apassivador/indeterminador em português, dividindo tais estudos em dois âmbitos que denominamos de perspectiva sincrônica e perspectiva diacrônica. Conforme veremos, o surgimento dos estudos filológicos nas últimas décadas do século XIX trará impactos indeléveis na forma com que os trabalhos posteriores de orientação sincrônica se referirão à “questão do se” (MONTEIRO, 1994).

No capítulo 3, expomos as bases metodológicas da pesquisa, explicitando as motivações para a delimitação cronológica que adotamos, a constituição e caracterização dos corpora que representam parte da documentação remanescente do português arcaico, bem como a maneira pela qual efetivamente fizemos o tratamento linguístico dos dados coletados, a partir do referencial teórico utilizado.

Finalmente, no capítulo 4, apresentamos o estudo histórico-linguístico das construções com se na gramática do português arcaico. Analisamos detidamente a sintaxe dessas construções considerando a dinâmica de seu funcionamento sincrônico, sem perder de vista o viés diacrônico inquirido, com base na proposta coseriana de que sistema e movimento são noções complementares, e não excludentes (COSERIU, 1979a: 228-9). A partir dos exemplos coletados, e dialogando com os estudos anteriores, refletimos sobre o modo pelo qual o estudo das construções com se constitui-se como um caso de mudança linguística na história do português.

Nas considerações finais, fazemos um balanço dos resultados obtidos pela presente pesquisa em face da agenda atual seguida pelos estudos linguístico-históricos do português. Em virtude do numeroso conjunto de textos analisados, optamos por apresentar os anexos no formato de CD-ROM (vide contracapa).

CAPÍTULO 1

A MUDANÇA LINGUÍSTICA:

DO FATO OBSERVADO AO PROBLEMA TEÓRICO

“[...] uma nova teoria, por mais particular que seja seu âmbito de aplicação, nunca ou quase nunca é um mero incremento ao que já é conhecido. Sua assimilação requer a reconstrução da teoria precedente e a reavaliação dos fatos anteriores.”

Thomas Kuhn (2005: 26)

Embora hoje em dia seja consensual a afirmação de que a linguística como ciência moderna, fundamentada essencialmente sob o empirismo e a construção de modelos teóricos, tem seu início na virada dos séculos XVIII e XIX com os estudos histórico-comparativos, a percepção de que a língua é um objeto mutável, isto é, provido de história, é de data bem anterior. De fato, situar o nascimento da linguística como um deus ex machina no início do novecentos, fazendo tabula rasa das contribuições dos estudos da linguagem feitos desde a Antiguidade, equivaleria a desconsiderar o próprio fazer histórico da ciência linguística, senão o da própria história como desenvolvimento contínuo (CÂMARA JR., 1975a).

Antes de mais nada, esclarecemos que nosso enfoque recairá sobre momentos que julgamos mais importantes dessa história, construída aproximadamente nos últimos três milênios. Neste sentido, não desejamos propriamente fazer um esboço linear e exaustivo dos períodos históricos e seus respectivos autores, como é comum observar nos manuais de história da linguística. Neste capítulo, pretendemos, de fato, acompanhar, através da evolução do pensamento linguístico, os caminhos trilhados para que a mudança linguística, passando de um mero fato perceptível pelos (nossos) antigos, tenha vindo a constituir-se na contemporaneidade como um topos teórico, ou, noutras palavras, como um problema, no sentido coseriano do termo (COSERIU, 1979a).

Para compreender o presente, por vezes, é preciso conhecer o passado. Da viagem que empreendemos a outros tempos, dos mais remotos à contemporaneidade, resultam as questões epistemológicas envolvendo a mudança linguística, apresentadas no desenrolar do presente capítulo. Enquanto costurávamos os fios da história, tivemos sempre em mente a perspectiva defendida por Sylvain Auroux, para quem

Todo conhecimento é uma realidade histórica, sendo que seu modo de existência real não é a atemporalidade ideal da ordem lógica do desfraldamento do verdadeiro, mas a temporalidade ramificada da constituição cotidiana do saber. Porque é limitado, o ato de saber possui, por definição, uma espessura temporal, um horizonte de retrospecção, assim como um horizonte de projeção. O saber (as instâncias que o fazem trabalhar) não destrói seu passado como se crê erroneamente com freqüência; ele o organiza, o escolhe, o esquece, o imagina ou o idealiza, do mesmo modo que antecipa seu futuro sonhando-o enquanto o constrói. Sem memória e sem projeto, simplesmente não há saber (AUROUX, 1992: 11-12).

1.1 O Nascimento da Filologia: a Percepção da Mudança

Duas tradições culturais distintas da Antiguidade nos dão testemunhos de reflexões sobre os estudos da linguagem: a oriental, por meio dos trabalhos dos hindus; e a ocidental, através da cultura grega, mais tarde greco-latina, por força da helenização do Império Romano e da transmissão desse saber gramatical à Idade Média.

Sobre a primeira, os estudos mais antigos legados são do século IV a.C. Trata-se do Nirukta/[Explanação], atribuído a Yāska, cuja “explanação” incidia sobre as palavras do Rigveda/[Veda dos hinos], o primeiro dos quatro vedas do Hinduísmo. Pelo que sabemos, a linguística da Índia não teve uma orientação histórica. Seja como for, numa certa medida, vemos nos estudiosos hindus o embrião de uma preocupação filológica, uma vez que o Nirukta destinava-se ao esclarecimento de um texto que já estava se tornando obscuro, isto é, que era sentido por seus usuários como um uso linguístico diacrônico. Ainda nesse século, o gramático Pānini daria um impulso ao estudo normativo da gramática do sânscrito nas Sutras, mais tarde difundidas (supostamente no século II a.C.) pelo Mahābhāsya/[Grande Comentário], de Pantañjali.

A história do Ocidente encarregar-se-ia, no entanto, de demarcar uma filiação imorredoura com outra tradição cultural, a grega (mais tarde assimilada com certo grau de criatividade pelos romanos), o que determinaria de forma significativa os caminhos a serem trilhados nos estudos sobre a natureza da linguagem humana. Por seu turno, a linguística hindu desenvolver-se-ia autonomamente em relação ao que se produzia na cultura ocidental, a quem os trabalhos dos sanscritistas ficariam ignotos por bastante tempo, até a “descoberta” do sânscrito no fim do século XVIII.

Dentro do conjunto de saberes legados ao Ocidente pela cultura grega, os helenos não foram nada indiferentes à preocupação com a questão da linguagem. Conforme já advertimos, não é nosso interesse aqui recobrir nem cronológica, nem detalhadamente as tão férteis quanto antagônicas posições defendidas pelos poetas e filósofos gregos sobre a natureza da linguagem, mais tarde acrescidas dos apontamentos de filólogos e gramáticos. As indagações dos sofistas, retomadas pelos diálogos platônicos dedicados ao tema, como sucede no Crátilo, que versa sobre a relação entre o mundo real e os nomes, donde a especulação de se conhecer se a linguagem é natural ou fruto de uma convenção, tocando, enfim, nos domínios da origem da linguagem e da etimologia; a teoria aristotélica das partes do discurso; as teorias gramaticais de Dionísio da Trácia e de Apolônio Díscolo são apenas exemplos, entre os mais importantes, dos estudos empreendidos pelos pensadores gregos.

Se os hindus haviam se preocupado com a explicação de seus textos sagrados antigos, situação semelhante ocorrerá com os gregos, que verão, no curso das transformações sociais e políticas da Hélade, a necessidade de se fazer a exegese dos textos literários arcaicos. Nesse trabalho filológico, ganham relevo as epopeias atribuídas a Homero, datadas entre o século IX e VIII a.C. No princípio, prevaleceu na literatura grega a transmissão oral dos textos. Trechos da Ilíada e da Odisséia podiam ser ouvidos em ocasiões festivas, recitados pelos aedos e rapsodos. Posteriormente, a julgar pelo testemunho de Xenófanes, passaram a ser aprendidos nas escolas, fazendo de Homero o “educador da Grécia”, como viria a lhe chamar Platão.

Mas, se quisermos observar mais especificamente o desenvolvimento de uma preocupação sistemática com o estudo filológico desses textos na cultura grega, temos de nos centrar no período helenístico. O sucesso imperialista das campanhas de Alexandre Magno criara as condições materiais para a construção da grande biblioteca de Alexandria. O acervo dessa biblioteca, a mais rica da Antiguidade, compreendia obras que iam das ciências desenvolvidas pelos gregos (dentre elas, a medicina, a aritmética, a geometria, a astronomia) às obras literárias. É nesse momento que os filólogos alexandrinos estabelecem os cânones literários segundo os gêneros cultivados pela literatura grega. É deles a divisão dos poemas homéricos, que herdamos, em livros de vinte e quatro cantos cada um, cifra sugerida pelo número total das letras do alfabeto grego.

A escola alexandrina era continuadora dos estudos feitos pelos estoicos, mas, diferentemente destes (que se dedicaram à temática aristotélica das partes do discurso), interessavam-se preferencialmente em desenvolver estudos literários a linguísticos, pondo a si próprios a tarefa da investigação que visasse o estabelecimento dos mais antigos documentos literários gregos. Aristarco de Samotrácia, um dos curadores da referida biblioteca, torna-se o modelo do filólogo consciente de seu ofício, dedicando-se exaustivamente à crítica do texto homérico. Mas “o educador da Grécia” fornecera indiretamente bem mais que arte literária com seus textos. No que se refere ao componente linguístico destas obras, o texto homérico tinha sido escrito numa língua heterogênea, literária e artificial, que deixava entrever na sua própria tessitura a confluência de variações diatópicas e diacrônicas. Mais tarde, os filólogos alexandrinos encontraram ali variedades linguísticas diferentes do ponto de vista geográfico e, naturalmente, do ponto de vista diacrônico, pelos aproximadamente seis séculos que distanciavam a “língua homérica” da koiné da época helenística.

Dos escritos filológicos hindus, embora anteriores aos dos gregos, ficaria a Europa sem notícia até o Romantismo, quando o gosto do clássico — reavivado em séculos anteriores pelo Renascentismo, e estendido até o Neoclassicismo — será substituído pelo estudo de outras culturas, tidas como exóticas ao olhar eurocêntrico, como é o caso da cultura da Índia Antiga. Assim, coube à filologia grega abrir à tradição ocidental, com base no conhecimento acumulado até aquele momento, uma perspectiva incipiente ao estudo histórico das línguas.

Não há, ainda, no legado greco-latino, nenhuma formulação consistente sobre estudos diacrônicos. De fato, os filólogos alexandrinos, ao manifestarem a preocupação com a fixação e a transmissão dos textos gregos antigos, obrigatoriamente se posicionaram frente à mutabilidade como um traço que afetava a constituição e a existência históricas do letos, embora estivessem mais interessados na estaticidade que na modificação, através da estabilização e preservação do cânone literário. Trabalhando sobre textos compostos em diversas fases dos dialetos gregos, os filólogos alexandrinos desenvolveram com um grau de exigência bastante convincente uma crítica textual (PEREIRA, 2006) que será importante, de algum modo, para o desenvolvimento a posteriori dos métodos de pesquisa em filologia e linguística histórica.

1.2 A Genealogia das Línguas e o Parentesco Interlinguístico

Os estudos que, de alguma forma, contribuíram para o entendimento das línguas como realidades históricas voltam à cena na Idade Média sob o tema da origem da linguagem. No entanto, seria enganoso pensar que o conhecimento acumulado sobre o estudo histórico das línguas na época medieval foi obra de um conjunto de pensadores, que tenham refletido de forma sistemática sobre as questões históricas. Na verdade, antes da formação do método histórico-comparativo por Rask, Bopp e Grimm, os estudos de classificação das línguas por meios históricos nasceram de trabalhos de um ou outro autor, que não foram retomados por seus contemporâneos e seguidores, pois, naquele período,

o peso das pesquisas linguísticas estava colocado na descrição e a análise dos idiomas, no desenvolvimento da teoria sincrônica, nas questões pedagógicas ou noutras de caráter prático e, finalmente, no que podemos em sentido amplo chamar “filosofia da linguagem”, i.e., teorias gerais sobre a importância e função da linguagem na vida humana (ROBINS, 1979: 119).

Quando nos referimos acima à Idade Média, melhor seria dizer que falamos de dois autores, situados em momentos bem distintos da época medieval: Isidoro de Sevilha (circa 562 - 636) e Dante Alighieri (1265 - 1321).

No caso de Isidoro, o autor faz algumas observações sobre a origem e a diversidade das línguas no capítulo intitulado De Linguis, Gentibus, Regnis, Militia, Civibus, Affinitatibus, que abre o livro IX das suas monumentais Isidori Etymologiarum. Com o fortalecimento do cristianismo, aceito como religião oficial do Império Romano desde Constantino, e a consequente institucionalização do catolicismo, já nos inícios da Idade Média o hebraico desfrutava de uma condição de certa relevância como língua, ao lado do latim e do grego. Se as duas línguas “pagãs” eram importantes pela cultura humanística que encerravam, Santo Isidoro de Sevilha se encarrega de canonizar a tríade linguística, venerando o hebraico como a própria língua divina, falada no Paraíso: “Tres sunt autem linguae sacrae: Hebraea, Graeca, Latina, quae toto orbe maxime excellunt. His enim tribus linguis super crucem Domini a Pilato fuit causa eius scripta”.

Na opinião de Carvalhão Buescu (1969), há mesmo um afastamento do dogmatismo absoluto da versão genesíaca do mito adâmico da criação da linguagem, quando o teólogo se preocupa em problematizar a questão a partir de uma diferença proposta entre a língua que Deus teria usado para se comunicar com o homem (o hebraico) e uma outra, uma linguagem espiritual, usada apenas pelos espíritos e pelos anjos. Entretanto, há um equívoco nesta interpretação, porque o próprio texto de Isidoro ressalta que “non quod angelorum aliquae linguae sint, sed hoc per exaggerationem dicitur”. Seja como for, permance inalterada a precedência do hebreu como a primeira língua humana, vista nesta ótica como dádiva divina ao homem.

É de se notar que Isidoro esboça fazer também uma análise histórica e dialetológica de outros idiomas. Primeiro do grego, classificado por ele como “inter ceteras gentium clarior”, e dividido em cinco variedades diatópicas: koiné, ática, dórica, jônica e eólia. Quando trata do latim, o autor expõe com mais clareza o desenvolvimento histórico deste idioma, reconhecendo nas variedades que denomina, respectivamente, de prisca, latina, romana e mixta as fases de evolução da história romana. Em seguida, Isidoro aponta ver semelhanças entre o sírio, o caldeu e o hebreu, mas seu juízo sobre a questão para nesse ponto.

Em outro espaço, em outro tempo, em que pese a forte influência da teologia cristã ainda dominante em sua época, escreve Dante. Para além dos méritos que se lhe apontam como grande literato no contexto do trecento italiano, a historiografia linguística contemporânea reconhece nele um dialetólogo avant la lettre (WALTER, 1996). Suas reflexões sobre a linguagem, não raras vezes presentes em suas obras, avultam como tema principal no De vulgari eloquentia. Escrito em latim, quando o idioma dos romanos fazia as vezes de língua das ciências em detrimento das línguas nacionais dos estados europeus, o autor inaugura o primeiro estudo histórico comparado de línguas europeias. Através da análise de certas semelhanças lexicais, Dante distingue três famílias (a germânica, a latina e a grega). Mas seu mérito vai ainda além disso, ao ligar o nascimento dos diferentes vernáculos europeus às diferenciações dialetais do latim e ao conjecturar que todas devem ter como origem uma mesma língua-mãe.

As reflexões sobre a origem da linguagem em Dante são orientadas de um lado pelo tratamento aristotélico (acrescido dos comentários tomísticos) do tema do homem como animal rationale; e de outro, pelo pensamento cristão sobre a origem e criação do mundo, expressos na narrativa bíblica genesíaca. Ainda que guardando, fundamentalmente, a marca do cristianismo medieval, as opiniões de Dante reinterpretam a tradição judaico-cristã com apontamentos originais sobre a natureza da linguagem humana, abordando a seu modo, entre outras questões, o problema histórico da origem da linguagem. De uma parte, defende a ideia de que Deus criou uma “certam formam locutionis” (em que o adjetivo latino qualifica esta forma locutionis como certa, isto é, precisa), com a qual capacitou o homem de se expressar, negando tal faculdade aos anjos e aos outros animais: “apenas ao homem foi concedido o dom da fala”. Assim, para Dante, o primeiro ser humano a falar teria sido Adão, e não Eva, como estabelece a sagrada escritura; o autor conjectura até mesmo que a primeira palavra do homo loquens teria sido “Deus”. Doutra, busca versar sobre a importância de se defender as qualidades expressivas do volgare, em comparação com o latim. Neste ponto, o autor põe em evidência o que modernamente designaríamos como a natureza social do uso linguístico, ao dimensionar os limites de aprendizagem e de utilização entre dois tipos de registro coexistentes à sua época: a língua natural (il volgare), isto é, a língua popular, aprendida desde o berço; e a língua artificial (o latim); exemplificando essa relação a partir do bilinguismo típico que condicionava a expressão intelectual dos escritores mais ou menos contemporâneos do autor da Divina Comédia.

A visão da origem da linguagem na época de Dante, que perduraria grosso modo até a virada do século XVIII para o XIX, era oriunda da versão judaico-cristã cujo trecho, embora bastante conhecido, transcrevo abaixo. Trata-se da célebre narrativa da construção da torre de Babel, ou “turris confusionis”, como a interpreta Alighieri, segundo a qual a língua do povo eleito — a língua adâmica, mais tarde a língua de Heber, descendente de Sem — gozava da condição de primeira e única a ser falada sobre a terra, até a “confusão” interlinguística promovida por Javé como castigo à soberba e à estultícia humana:

E era a terra de uma mesma língua e de uma mesma fala. E aconteceu que, partindo eles do oriente, acharam um vale, na terra de Sinear; e habitaram ali. E disseram uns aos outros: Eia, façamos tijolos e queimemo-los bem. E foi-lhes o tijolo por pedra, e o betume por cal. E disseram: Eia, edifiquemos nós uma cidade e uma torre, cujo cume toque nos céus, e façamo-nos um nome, para que não sejamos espalhados sobre a face de toda a terra. Então desceu o Senhor, para ver a cidade e a torre que os filhos dos homens edificavam; E disse: Eis que o povo é um, e todos têm uma mesma língua; e isto é o que começam a fazer; e agora não haverá restrição para tudo o que eles intentarem fazer. Eia, desçamos, e confundamos ali a sua língua, para que não entenda um a língua do outro. Assim o senhor os espalhou dali, sobre a face de toda a terra; e cessaram de edificar a cidade. Por isso se chamou o seu nome Babel, porquanto ali confundiu o Senhor a língua de toda a terra, e dali os espalhou o Senhor sobre a face de toda a terra. (Gênesis, 11)

O gênio de Dante, observador arguto, não se contenta em adotar literalmente a visão bíblica, mas acrescenta uma interpretação notável e bastante original: a de que o castigo divino da multiplicação das línguas não seria uma babelização absoluta, isto é, de indivíduo para indivíduo; Javé impôs a pena aos homens, adotando um critério segundo o qual os homens-pecadores que sujavam suas mãos com a construção da ignominiosa torre preservariam entre si a mesma língua, desde que fossem “oficiais do mesmo ofício”. Assim, teria nascido uma língua dos arquitetos; outra dos que preparavam as pedras a serem empilhadas; nasceria, outra ainda, a língua dos simples trabalhadores. O comentário de Dante, mais uma vez, demonstra sua compreensão da relação estreita entre fatores sociais e linguísticos, desta vez orientados para os condicionamentos impostos pela estratificação social do uso linguístico relacionados àquilo que abordagens modernas como as da dialetologia e da sociolinguística chamariam de variável profissão.

No Renascimento, a influência da tradição teológica continua a se fazer presente na doutrina gramatical europeia, ainda que certos autores passem a produzir suas reflexões diante do conflito do teológico com o empírico, “divididos entre o dogma e um posicionamento marcadamente crítico” (BUESCU, 1984: 188). A necessidade de afirmação política das variedades linguísticas faladas pelos Estados europeus, que passariam a ter o status de línguas nacionais (em detrimento do latim), trazia consigo uma preocupação histórica, na medida em que os autores das primeiras gramáticas dos vernáculos estavam interessados em demonstrar que tais variedades, usadas até então mormente para as conversações informais, eram tão belas e ricas para a expressão do pensamento como o idioma legado pelos romanos. Esta troca do “meio de expressão” é muito importante, e trará impactos consideráveis na forma de se entender a mudança linguística. Encarar os vernáculos como línguas ao lado e não mais abaixo do latim implicava a necessidade de reconhecer em profundidade a sua constituição histórica, tanto no que se refere às condições particulares de mudança destas línguas, quanto às condições gerais de mutabilidade que afetam os idiomas:

Os autores portugueses do século XVI e XVII rejeitam a compreensão das mudanças enquanto corrupção da língua, considerando a mutabilidade como uma característica de todas as línguas, tanto as nacionais, como as clássicas: «E e manifesto que as linguas Grega e Latina primeiro foram grosseiras: e os homẽs as poserão na perfeição q agora tem» (Oliveira, Quarto capitolo, A4-4v). As mudanças deixam de ser apreciadas negativamente como corrupções características das línguas vulgares, distintas de um latim imutável e «gramatical». A nova compreensão das mudanças é resultado da apologia da língua materna (KOSSARIK, 2002: 24-25).

Na busca de reconstruir a história das línguas e da linguagem, Isidoro de Sevilha é a fonte direta onde, via de regra, os gramáticos renascentistas vão buscar o argumento de autoridade. Nesse contexto, crescem as especulações renascentistas sobre a origem da linguagem, sempre com as opiniões acerca da ancestralidade absoluta recaindo no hebreu. É o caso das obras De originibus seu de Hibraicae linguae et gentis antiquitate, atque variarum linguarum affinitate, escrita em 1538, de autoria do francês G. Postel; e De ratione communi omnium linguarum et litterarum commentarius, esta datada de 1548, do erudito suíço Theodor Buchman. Dois anos antes, o italiano Pier Francesco Giambullari, em Il Gello, defendia categoricamente a origem do florentino como descendente direto do etrusco, que, por sua vez, remontaria ao hebreu (KRISTEVA, 1969).

Quanto aos autores que inauguram a tradição gramatical em língua portuguesa, tanto Fernão de Oliveira quanto João de Barros abordam a questão. O segundo, no seu Diálogo em Louvor da nóssa Linguágem (1540), faz o seguinte comentário, que só poderia provir de um espírito vivaz e irrequieto, típico do conflito intelectual que acometia o homem renascentista, com um olho na tradição e outro na “transgressão”:

Os Hebreos, por serem os primeiros a quem Deus quis communicár a criaçám do mundo, afirmam que a lingua do nósso primeiro pádre Adám foi hebrea, aquélla em que Mousés escreveu os livros da lei. Os Gregos quérem que seja a caldea, porque nésta linguágem confessou Habrám a Deus, e dizem que a língua hebrea nam é máis que caldeu corrumpido. Quál destas seja a verdáde é contenda de tam gráves barões, a nós nam é liçito afirmár.

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

E disto tomarás ô que máis quadrár ao teu intendimento, levando por guia as autoridádes da Sagráda Escritura.

A ideia de que o hebreu era a primeira língua a partir da qual derivavam todas as demais aparece mais uma vez em Joseph Scaliger (1540-1609), um erudito francês, profundo conhecedor das sociedades do antigo mediterrâneo. De acordo com Robins (1979), ele distinguiu onze famílias de línguas (entre elas quatro maiores que correspodem às atuais famílias românica, grega, germânica e eslava). No final do século XVII é a vez do sueco Georg Stiernhielm (1598-1672) fortalecer a tese monogenética partindo do hebraico, embora seu compatriota e contemporâneo Andreas Jäger (? - 1730) agisse com mais cautela no De Lingua Vetustissima Europae. É digno de nota que, na opinião de Jäger, tenha existido uma língua hipoteticamente falada na região do Cáucaso, que se estendeu pela Europa gerando línguas “filhas”, que produziram, por sua vez, o que hoje se reconhece como o persa, o grego, o celta, o gótico, e as línguas românicas, eslavas e germânicas, não conservando nenhum rastro ou sinal da língua materna.

No começo do século XVIII, os estudos comparativos vão tomando mais consistência entre os estudiosos. Além do já citado trabalho de Jäger, em 1702, J. Ludolf (1624-1704) defende que a comparação interlinguística parta de critérios rigorosos, observando-se primeiro as semelhanças gramaticais, para só depois se analisar o léxico, mesmo assim apenas parcialmente, naquela parcela do vocabulário considerada mais segura, como é o caso dos nomes dados às partes do corpo.

Em 1710 é a vez do filósofo alemão Leibniz (1646-1716) afirmar que a primeira língua falada pelo homem não pode ter sua fonte encontrada em nenhuma língua histórica conhecida, uma vez que, para ele, todas derivam de uma protolíngua. Para Leibniz, a hipótese monogenética continua válida, mas o hebreu deve ser visto como apenas mais uma língua, pertencente à família arábica. O autor propõe uma distinção entre duas grandes ramificações a partir da língua original: o jafetista e o aramaico. Leibniz era um grande entusiasta do estudo das línguas em geral, persuadindo a corte russa de Pedro, o Grande, a promover o estudo das línguas não europeias do império russo. Chegou mesmo a intencionar criar um alfabeto universal, baseado no latino, para transliterar os sistemas de escrita de todas as outras línguas.

Com o interesse da imperatriz Catarina II, sucessora de Pedro, são elaboradas entre 1786 e 1789 as grandes súmulas do conhecimento acumulado sobre a diversidade linguística até ali. O Linguarum Totius Orbis Vocabularia Comparativa, organizado pelo naturalista alemão Peter Pallas era composto de lista de palavras comparadas em duzentas línguas. Outra obra congênere é o Mithridates, do lexicógrafo germanista Johann Adelung (1732-1806), publicado em 1806 e 1817, que estendia a comparação ao número de quinhentas línguas, justamente no momento em que os estudos históricos iniciariam uma nova e importante etapa.

1.3 A Etimologia “Histórica”

Os estudos de comparação entre línguas proporcionaram à linguística dita pré-moderna uma via significativa para a abordagem da língua como um objeto histórico. Além desse tipo de estudo, deve-se mencionar o tratado etimológico do francês Ettiene Guichard, em que o autor recupera o estudo da etimologia, que desde a Antiguidade Clássica fora objeto de interesse dos gregos, sobretudo dos estoicos.

A defesa estoica incidia na ideia de que os nomes foram criados naturalmente, isto é, eram representações conceptuais das verdades (étymon); sob esse ponto de vista, cabia à etimologia verificar a concordância entre a palavra e o objeto denominado através das verdades reveladas pelos nomes.

Em Guichard, não é mais essa preocupação dialética que está em discussão, mas antes a defesa de uma etimologia influenciada por uma visão histórica e orientada para a origem das línguas. Assim, em A Harmonia Etimológica do Hebraico, Sírio, Grego, Latim, Francês, Italiano, Espanhol, Alemão, Flamengo e Inglês (1606), o autor revela seu interesse histórico pelo parentesco interlinguístico, utilizando uma metodologia que, aos olhos do linguista moderno, pareceria algo ingênua. Guichard pretendia provar a derivação do grego, do latim e das línguas nacionais europeias face ao hebraico por meio de mudanças na ordem das letras das palavras nesta última língua. Como se sabe, diferentemente daqueles idiomas, o hebraico é escrito da direita para a esquerda. Este sentido cursivo “anormal” motivou o autor a estabelecer modificações nas palavras hebraicas por meio de adições, subtrações e inversões de letras, a fim de comprovar sua hipótese derivativa. Não obstante as limitações que tal método possa ter, em relação ao procedimento investigativo empreendido por Guichard, vale a pena trazer à tona a reflexão sempre equilibrada de Mattoso Câmara Jr.:

embora muito simples estes pontos de vista, eram eles significativos porque, dessa maneira, uma nova abordagem à linguagem pouco a pouco tomava corpo: o estudo histórico da linguagem, pelo qual o homem chegaria à linguística propriamente dita (CÂMARA JR., 1975a: 26).

1.4 Os Historicismos no Século XIX

A busca de uma concepção de língua como um objeto histórico teve um desenvolvimento sem igual no desenrolar de todo o século XIX, época em que as ciências tiveram como marca fundamental o historicismo. É nesse contexto que florescerão obras que darão ênfase à abordagem histórica sobre os objetos de estudo. A título de exemplo, podemos citar a obra que, pelo propósito e pela influência que teve, por si só bastaria para se compreender a importância dada pelas ciências do século XIX ao método histórico: On the origin of the species by means of natural selection, de Charles Darwin. No campo filosófico, vemos a influência do logicismo de Hegel e, mais tarde, do positivismo de Augusto Comte. Quanto aos estudos linguísticos, de acordo com Pedersen (1962), o século XIX pode ser dividido em dois períodos importantes: o primeiro, que começa com Rask e Bopp em 1814 e 1816, e termina com Schleicher (1861-2), cujo método põe em relevo a comparação das formas gramaticais entre diversas línguas; o segundo, que começa por volta de 1870, com os estudos da escola denominada neogramática, que ressalta metodologicamente a importância das leis fonéticas para a compreensão da mudança nas línguas.

No desenrolar desse século, assistiremos a um momento decisivo na busca de fundar a linguística como um saber autônomo em relação às outras ciências. As especulações sobre a a história das línguas trarão, por sua vez, um grande número de discussões, que acabarão por fornecer as condições para o desenvolvimento de modelos teóricos explicativos para a mudança linguística.

Os estudos linguísticos atravessarão o século sob a influência daqueles autores, ora se aproximando, ora se afastando deles, a depender do ponto de vista sobre a “evolução” linguística (mais ou menos biologizante; mais ou menos psicologizante), ponto que lhes interessava compreender em particular. Devido a essa profusão de postulações teóricas, que não apresentam uma mesma visão de desenvolvimento histórico das línguas, no que se refere ao século XIX, é mais prudente falar na coexistência de historicismos, no plural, como propomos nas seções seguintes.

1.4.1 A Formação do Método Histórico-Comparativo

Embora nos refiramos ao século XIX como marcadamente historicista, devemos situar mais precisamente no desenvolvimento da segunda metade do século XVIII o momento em que se observa uma emulação às investigações históricas. A explicação sobre a origem da linguagem, posta em voga no século XVIII como problema filosófico, será motivo das especulações de dois filósofos franceses, Éttiene Condillac (1715-1780) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). O primeiro, influenciado pela tradição racionalista-empirista, aborda o tema no seu Essai sur l'origine des connoissances humaines (1746); o segundo, precursor dos ideais românticos, trata da questão no Discours sur l'origine et les fondements de l'inégalité parmis les hommes (1755). Como bem demonstra Robins, ainda que partindo de pontos de vista diferentes — enfocando, respectivamente e grosso modo, razão e sentimento — os dois filósofos têm opiniões muito semelhantes quanto à criação da linguagem.

O interesse pelo tema parece realmente ter sido consistente, a julgar pelo concurso promovido em 1769 — pouco depois das publicações de Condillac e Rousseau, portanto — pela Academia Prussiana. Seria concedido um prêmio ao melhor trabalho que buscasse responder se o homem teria conseguido desenvolver sozinho (leia-se, sem intervenção divina) a linguagem até aquele momento da história; e, em caso afirmativo, como ele o teria feito.

O premiado foi o filósofo alemão Johann Herder (1744-1803). Sua defesa incidia em dois pontos fundamentais: a linguagem não teve uma origem sobre-humana ou divina, mas animal; a linguagem e o pensamento se desenvolveram paralelamente (contrapondo-se à longa tradição, desde Aristóteles, que admitia a precedência do pensamento em relação à linguagem).

Em vias de se começar o movimento romântico e diante dos condicionamentos políticos dos Estados europeus à época, as ideias de Herder, ao fortalecerem o nacionalismo (cada nação possui uma individualidade de fala) foram acolhidas com entusiasmo. Kristeva (1969: 271-2) considera que Herder, nas suas Idées sur la philosophie de l'histoire de l'humanité (1784-1791), foi pioneiro na tentativa de uma formulação global do historicismo. O fundo ideológico a que acabamos de aludir pode ser percebido neste trecho exemplar do historiador francês Edgar Quinet (1803-1875), na introdução que faz à obra supracitada de Herder. O autor compara a sociedade (povos, cidades) à linguagem (voz, palavra), numa prosa de sabor poético:

Cada povo que cai no abismo é um acento da sua voz; cada cidade é apenas uma palavra interrompida, uma imagem quebrada, um verso inacabado desse poema eterno que o tempo se encarrega de desenrolar. Ouvem este imenso discurso que roda e cresce com os séculos, e que, sempre retomado e sempre suspenso, deixa cada geração na incerteza da fala que se vai seguir? Tem, como os discursos humanos, os seus circunlóquios, as suas exclamações de cólera, os seus movimentos e os seus repousos...

No plano dos estudos linguísticos, será imediata a adesão à ruptura no pensamento científico. Se nos séculos anteriores os gramáticos de Port-Royal e os Enciclopedistas insistiram, respectivamente, em buscar a lógica da natureza sensível e a confirmação da influência das circunstâncias materiais (clima, governo) na linguagem, e a sua obediência aos princípios da lógica do juízo; e se tivemos, ainda, a preferência dada à ordenação sintática pelos gramáticos do século XVIII, por sua vez, no século XIX, a maior parte das pesquisas linguísticas buscará demonstrar que, à semelhança da evolução da sociedade, a linguagem também tem uma evolução. Daí surge a proposição da linguística do novecentos à comparação exaustiva das línguas europeias entre si, que culminará com o refinamento no interesse pela elaboração da genealogia das línguas e o seu agrupamento em famílias.

Quem se propusesse naquela altura a teorizar sobre a genealogia das línguas, teria de levar em consideração a questão da origem da língua primeira, bem como as reflexões sobre o parentesco interlinguístico que tinham sido feitas até aquele momento, sobretudo por Isidoro e Dante, conforme vimos. Duas tarefas fundamentais se imporiam, então, como agenda para os estudos linguísticos da época: a contestação consistente da versão bíblica sobre a criação da linguagem e a diversificação das línguas; a definição de qual teria sido, de fato, a língua primeira da humanidade. Para alcançar seus propósitos, os pesquisadores deveriam partir de um método dedutivo, isto é, deveriam responder à questão por meio de conhecimentos empíricos, com base no estudo contrastivo dos textos produzidos em diversos momentos da história dessas línguas.

No plano científico, o conhecimento advindo das postulações darwinistas sobre a evolução da espécie humana proporcionaria as condições suficientes para que as ciências pudessem especular sobre seus objetos de estudo de forma mais empírica. Com o avanço no conhecimento da história do homem, progride também o conhecimento sobre a origem da linguagem. As explicações dadas pelas ciências reduzem a confiança nos ensinamentos religiosos, no caso em questão a crença judaico-cristã propagada em nossa cultura maiormente pelo catolicismo.

A “descoberta” do sânscrito foi, de uma só vez, o impulso fundamental para a contestação da tese da precedência da língua adâmica e o mote para o desenvolvimento das pesquisas em linguística do novecentos, sobretudo as da linguística histórico-comparativista. Foi condição sine qua non, podemos dizê-lo também, para o fortalecimento da concepção de língua como um objeto de natureza histórica — embora o conceito de evolução ainda fosse compreendido sob a influência das ciências naturais —, possibilitando, inclusive, a formulação das observações dos autores do período sobre a questão da mudança linguística.

Na virada dos séculos, aumenta o conhecimento da antiga língua dos Vedas, atraindo o interesse dos estudiosos. A tradução das obras literárias indianas permite a William Jones perceber um parentesco entre o sânscrito, o grego, o latim e as línguas germânicas. Numa conferência que marcou época, lida na Royal Asiatic Society de Calcutá, ele declarava que a semelhança lexical e gramatical entre essas línguas não poderia ser fruto do mero acaso. A formação desta Sociedade Asiática na Índia, bem como a criação de um círculo parisiense que reunia vários intelectuais — entre eles o erudito alemão Friedrich von Schlegel — demonstram a importância dada ao novo material de estudo oferecido pela “esquecida” língua indiana. No despontar do século XIX, em 1808, surge desse último autor o primeiro grande livro que chamou a atenção dos estudiosos europeus para a língua e a cultura hindus. Trata-se da obra Über die Sprache und Weisheit der Indier/[Sobre a língua e a filosofia dos hindus], em que aparecerá de forma inaugural a expressão “gramática comparativa” como uma ideia de comparação sistemática entre as línguas. Schelegel, porém, mais interessado em difundir a filosofia e a cultura da Índia — motivado pelo ideal romântico de oposição ao legado cultural greco-latino —, acabará por deixar para outro autor a fundação do estudo comparativo das línguas propriamente dito.

De fato, como resultado das investigações comparativistas, surge, já em 1814, a obra do dinamarquês Rasmus Rask (1787-1832) chamada Undersogelse om det gamle Nordiske eller Islandske Sprongs Oprindelse/[Investigação sobre a origem do antigo nórdico ou da língua islandesa]. Pedersen (1962: 248) classifica-a como “a comparative Indo-European grammar in embryo”. Ao estabelecer o parentesco entre o gótico, o eslavo, o lituano, o latim e o grego, Rask insiste na importância das comparações gramaticais, em vez de se apoiar em palavras cuja concordância é incerta, que podem ser o resultado de empréstimos entre povos. O trabalho permitiu a Rask, o primeiro autor de uma gramática indo-europeia comparada, descobrir a primeira lei fonética, a mutação germânica (correlação entre p e t iniciais latinos com f e p germânicos, p. ex., pater tres > faθir priz). Para Câmara Jr. (1975a: 32), Rask anteviu a ideia estruturalista da morfofonêmica ao explicar certas alternâncias vocálicas no islandês como devidas à proximidade entre a vogal da raiz e a vogal da terminação dos vocábulos. E o linguista e historiador brasileiro não é o único a apontar os contributos do que se chamará mais tarde “linguística descritiva” em oposição a “linguística histórica”. Também Kristeva (1969: 277-279), apoiando-se na crítica de Hjemslev, observa que, embora se trate de um autor ambientado no século XIX,

o objetivo teórico de Rask não era histórico. Espírito lógico e sistematizante, pertencia mais à época dos enciclopedistas do que à dos românticos, que ele detestava. A hipótese de uma descendência histórica das línguas não lhe interessava. [...] Embora se inspirasse nas descobertas das ciências naturais e considerasse, como se fazia frequentemente no século XIX, que a língua era um organismo, Rask dedicava-se mais a classificar as línguas como o faziam os linguistas do século XVIII, ou como Lineu em botânica, do que a descobrir o seu desenvolvimento histórico, como Darwin em Zoologia.

Assim, conclui a autora que, não obstante ter uma obra dedicada à filologia nórdica, a história dessas línguas em sentido estreito, ou das línguas em geral, não interessa a Rask, mas antes o sistema linguístico e a sua estrutura; e que sua linguística não é genética, mas sim tipológica. Noutras palavras, e em síntese, Rask “não é historicista, mas comparativista.” Sobre o que não há dúvida, no dizer de Câmara Jr. (1975a: 32), com Rask a linguística tem seu verdadeiro início. Ao seu lado, como fundadores do método comparativo, figuram dois outros autores, a saber, Franz Bopp e Jacob Grimm.

Após tomar contato com os trabalhos sanscritistas do grupo parisiense, vem a lume em 1816 o memorial de Franz Bopp (1791-1867), intitulado Conjugationssystem/[Sobre o sistema de conjugação da língua sânscrita, comparado com o das línguas grega, latina, persa e germânica]. Nele, o autor esclarece quais os objetivos do método recém-criado pela linguística:

Devemos conhecer antes de tudo o mais o sistema do antigo indiano, percorrer, comparando-as, as conjugações do grego, do latim, do germânico e do persa; assim aperceber-nos-emos da sua identidade; ao mesmo tempo, reconheceremos a destruição progressiva e gradual do organismo linguístico simples e observaremos a tendência para a sua substituição por agrupamentos mecânicos, donde resultou uma aparência de organismo novo, quando os elementos desses grupos deixaram de ser reconhecidos.

Bopp se ocupou de preencher a lacuna deixada por Rask quanto à incorporação do sânscrito e do persa no grupo de línguas comparadas. Seu trabalho trouxe importantes contribuições a partir do estudo da morfologia (flexão verbal), ao passo que demonstra, para Perdersen (1962: 256), uma completa falta de compreensão das transformações fonéticas.

Diferentemente dos seus predecessores do século XVIII, que investigaram a origem da linguagem com base em premissas filosóficas, Bopp apoia sua investigação apenas em bases linguísticas, buscando reconstituir a origem das formas gramaticais, como, por exemplo, o faz ao atribuir a parte final das formas verbais latinas de imperfeito em -ba- e de futuro em -bo- à raiz do sânscrito bhu; é de se notar, ainda, neste exemplo a correlação cronológica natural de influência da língua mais antiga (sânscrito) a outra desenvolvida a posteriori (latim). Em princípio, Bopp chegou mesmo a pensar poder encontrar no sânscrito a “origem comum” das línguas, isto é, seu ancestral original, embora mais tarde — como a sua tentativa de comparar as línguas caucasiana, indonésia, melanésia e polinésia com as indo-europeias o deixa entrever — tenha entendido que tal idioma é também parte das modificações da hipotética língua-mãe, buscada com afinco por ele e seus contemporâneos. Afastando-se do idealismo místico e metafísico do romantismo alemão (à maneira de Herder), Bopp busca imprimir ao estudo da linguagem uma base positiva presente na própria substância da língua: a frase presente no prefácio da outra relevante obra sua, a Gramática Comparativa (1833), pela semelhança de formulação com a que finaliza o Cours saussuriano, parece antecipar e, ao mesmo tempo, influenciar o genebrino: “As línguas de que esta obra trata são estudadas por si mesmas, isto é, como objecto, e não como meio de conhecimento.”

Pedersen (1962) considera o Undersoguelse de Rask em muitos aspectos mais maduro e completo que o livro de Bopp; não obstante isso, observa que, com o estudo exaustivo do sânscrito e a incorporação desta língua no rol da família indo-europeia, Bopp trouxe um estímulo mais forte à investigação futura, representando uma verdadeira transformação epistemológica, motivo pelo qual “o pequeno ensaio de Bopp, por conseguinte, pode ser considerado como o verdadeiro começo daquilo a que chamamos a linguística comparada.” Também pensa assim Câmara Jr. (1975a), segundo o qual o estudo comparativo das línguas feito por Bopp foi decisivo para estabelecer como ciência real a abordagem histórica da linguagem. Com efeito, diversos autores aplicaram o método de análise criado por Bopp e aperfeiçoado por Grimm a outras línguas: Burnouf (1801-1852), ao iraniano; Dobrovsky (1753-1829), às línguas eslavas; Curtius (1814-1896), ao grego; Benfey (1809-1881), ao egípcio; Zeuss (1806-1856), ao céltico; e Diez (1794-1876), às línguas românicas.

À semelhança de Schlegel quanto ao seu entusiasmo pelo Romantismo, Jacob Grimm irá estudar detalhadamente a família germânica. Grimm inicia seus estudos em Direito, depois passa a interessar-se pela poesia germânica da Idade Média, para enfim se dedicar ao estudo das línguas. Contemporâneo de Franz Bopp, observou o tratamento superficial que Rask e o próprio Bopp deram às línguas germânicas e tomou a si a tarefa de escrever-lhes uma gramática comparada, tarefa desempenhada na Deustche Grammatik/[Gramática Alemã], com primeira edição de 1819:

A linguística comparada do princípio do século torna-se histórica, ao passar por Bopp, na medida em que este demonstra o parentesco genético das línguas descendentes uma da outra e remontantes a uma mesma origem, mas sobretudo com Grimm, [...] que abandona a tese do parentesco e se dedica ao estudo cronológico de uma só língua: uma cronologia seguida minuciosamente, passo a passo, que faltava aos comparatistas e que funda definitivamente a linguística em bases exactas (KRISTEVA, 1969: 287).

Enquanto Bopp, ao estabelecer o parentesco entre as línguas, utilizara textos de diferentes épocas — sânscrito anterior a 1000 a.C.; grego dos séculos IX ou VIII a.C.; latim dos séculos V ou IV a.C.; germânico do século IV d.C; eslavo do século IX d.C —, Grimm se servirá de dados do germânico distribuídos em sequência por quatorze séculos (FARACO, 2005: 135). Pedersen salienta que entre a primeira e a segunda edições da sua Gramática Alemã (1822), o conhecimento da obra de Rask será fundamental para os estudos de Grimm sobre a mudança fonética. Partindo de exemplos contidos em Rask, e acrescentando outros de sua própria observação, Grimm busca, agora, interpretar a existência de correspondências fonéticas sistemáticas entre as línguas como resultado de mutações no tempo. Aqui reside sua contribuição mais significativa ao estudo da mudança linguística, dada a relevância de seus estudos sobre a fonética histórica germânica, que lhe permitiram, em particular, a formulação da lei da mudança consonantal, sistematização que ficou reconhecida como a Lei de Grimm.

1.4.2 O Naturalismo de Schleicher

Embora não encontremos nas investigações do alemão Augusto Schleicher (1821-1868) uma reflexão particular sobre a questão da mudança linguística, é necessário determo-nos em sua obra um momento por conta da influência de seu pensamento no desenrolar do século XIX.

Se em Rask, Bopp e Grimm vimos o esforço por estabelecer os princípios da ciência linguística a partir dos estudos filológicos, em Schleicher veremos a tentativa de situá-la no âmbito das ciências naturais, opondo-a à filologia, que ele via como um ramo da história.

Não apenas linguista, mas também um botânico, notadamente influenciado pelo evolucionismo darwinista e pela filosofia hegeliana, o autor desenvolve um novo tipo de abordagem histórica para a linguagem fortemente ancorado em uma explanação metafísica da evolução linguística, um historicismo naturalista .

A ideia de linguagem como um organismo natural não é estranha aos linguistas do novecentos. Bopp já dissera que as línguas deviam ser consideradas como objetos orgânicos naturais que crescem de acordo com leis definidas (ROBINS, 1979). Mas, em Schleicher, ela não funciona apenas como uma metáfora ou formulação vaga, mas ganha uma defesa teórica consistente ancorada no ponto de vista de que as línguas têm uma vida própria, independente da vontade de seus falantes, assemelhando-se aos organismos da natureza, que nascem, crescem e morrem. É o que se depreende do seu livro A Teoria de Darwin e a Linguagem, de 1863, publicado sintomaticamente quatro anos após A origem das espécies, daquele autor. De sua autoria, a formulação da teoria da árvore genealógica das línguas (Stammbaumtheorie), muito difundida na época, propunha que as ramificações (línguas-filhas) deveriam ascender a um tronco comum (língua-mãe) às línguas indo-europeias. A ontologia linguística de Schleicher não para no sânscrito como último estágio documentado da “primeira língua”, mas busca ainda estágios anteriores.

O objetivismo linguístico do autor, que o levou a considerar a língua como um organismo submetido às leis biológicas, fez dele um dos pioneiros da linguística geral que sucederia à linguística histórica (KRISTEVA, 1969: 293). Câmara Jr. (1975a: 54) chega mesmo a afirmar que é impossível traçar a história da linguística sem um exposição cuidadosa das ideias de Schleicher. Para Robins (1979), seu Compendium der vergleichenden Grammatik der indogermanischen Sprachen/[Compêndio de gramática comparada da línguas indo-germânicas] sistematiza, em forma de manual, todo o saber acumulado até a época sobre a linguística histórica e comparada.

Sem negar os méritos apontados pelos historiadores citados, devemos observar que, ao promover a relação, nos termos em que é proposta, entre linguística e biologia, a visão epistemológica de Schleicher coloca-o diante de um paradoxo: ao querer fazer da linguística uma ciência autônoma, acaba por manter a subserviência dos estudos linguísticos influenciados por uma metodologia importada de outra ciência, cujo objeto de estudo é claramente diverso (ver a seção 1.7). A orientação darwinista de Schleicher, neste sentido, mais obscurece que elucida o horizonte de pesquisa sobre a natureza da mudança linguística. O fortalecimento da visão naturalista de língua levará a investigação linguística para rumos tortuosos, para não dizer aporéticos. Assim, vemos um dos primeiros e mais representativos autores, posteriores a Schleicher, a formular nos seguintes termos uma opinião sobre a mudança: “na evolução do uso da língua, a finalidade desempenha o mesmo papel que Darwin atribui na evolução da natureza orgânica: a utilidade maior ou menor das formas criadas é determinante para a conservação ou desaparecimento das mesmas” (PAUL, 1966: 40). Contrariamente a essa visão — e com quem concordamos — apropriadamente observa Coseriu (1979: 166) que nos fenômenos da natureza corresponde, sem dúvida, a busca por uma necessidade exterior, isto é, uma causalidade; nos fenômenos culturais, por outro lado, corresponde a busca por uma necessidade interior, ou seja, uma finalidade.

1.4.3 Os Neogramáticos

A linguística do século XIX, ao preterir a abordagem logicizante do século anterior, buscou centrar-se no estudo das evoluções da sociedade, das instituições, dos seres vivos, bem como da linguagem. No âmbito da linguística, como vimos, pelo impacto que trouxe aos estudos filológicos, a obra de Bopp é inaugural. Por outro lado, a passagem das reflexões sobre as “origens” das línguas para a descrição exata da história de uma língua é um ponto que separa as perspectivas, respectivamente, de Bopp e Grimm. A adjetivação da descrição como exata não é algo banal, mas aponta para uma guinada no rumo dos estudos históricos prenunciada por Grimm, e que, impulsionada no plano filosófico pelo positivismo de Augusto Comte (1789-1857), será desenvolvida pelos neogramáticos. Da linguística comparada, com suas especulações por vezes metafísicas sobre a origem da linguagem, passa-se a uma linguística histórica, um “histocismo positivo” na expressão de Kristeva (1969: 296).

Na opinião de Pedersen (1962), a guinada historicista a que nos referimos, embora já possa ser sentida tanto em Grimm quanto em Diez (xxxx), se dá por volta de 1870. Cronologicamente esta data é significativa, pois o desenvolvimento da ideologia positivista de Comte — o seu Curso de Filosofia Positiva é publicado entre 1830 e 1842 — influenciará a formação do pensamento sobre as ciências humanas na segunda metade do oitocentos, e assim impulsionará a linguística na busca de sua autonomia, até mesmo em relação ao caráter marcadamente filológico do século XIX.

A filosofia positivista de Comte considera a evolução, entendida no sentido do vir-a-ser, como lei fundamental dos fenômenos empíricos, isto é, dos fatos naturais e dos fatos culturais. Negando qualquer modo de explicação possível além dos que se baseiam no estudo das relações de sucessão e simultaneidade entre os fenômenos, Comte propõe que os fatos só são cognoscíveis pela única experiência válida, a dos sentidos. Acreditando na marcha evolutiva dos métodos filosóficos, faz a defesa calorosa da utilização dos métodos das ciências naturais no estudo dos fenômenos sociais, passo final no progresso científico para se chegar, então, “a um estado fixo e homogêneo” que restabeleceria a ordem social. A escolha do nome dessa ciência dos fatos sociais deixa por si entrever as influências entre as ciências mais abstratas e as mais concretas na expansão projetada:

Agora que o espírito humano fundou a física celeste, a física terrestre, quer mecânica, quer química, e a física orgânica, quer vegetal, quer animal, resta-lhe terminar o sistema das ciências de observação fundando a física social. Tal é hoje sob vários aspectos capitais, a maior e mais instante necessidade da nossa inteligência. Tal é, ouso mesmo dizê-lo, o primeiro fim deste curso, o seu fim especial.

Posta nestes termos qual seja a ciência, temos, enfim, o seu propósito científico: “o caráter fundamental da filosofia positiva é olhar todos os fenômenos como sujeitos a leis naturais invariáveis, cuja descoberta precisa e a redução ao menor número possível são o fim de todos os nossos esforços [...].”

Nesse contexto de afirmação do positivismo, e apoiando-se no conhecimento acumulado sobre as línguas indo-europeias — fruto dos trabalhos dos comparativistas — o movimento dos neogramáticos, um grupo de linguistas ligados à Universidade de Leipzig, coloca a linguística histórica pela primeira vez em um caminho científico.

Os princípios do movimento foram desenvolvidos no desenrolar da década de 1870, mas toma-se tradicionalmente o ano de 1878 como a data de início. Com efeito, nesse ano, aparece o primeiro volume da revista Morphologische Untersuchungen/[Investigações Morfológicas], editada por Hermann Osthoff (1847-1907) e Karl Brugmann (1849-1919), cujo prefácio ficou conhecido como o manifesto neogramático. Nesse texto inaugural, os autores criticam a concepção naturalista de língua, defendendo, por outro lado, “uma orientação psicológica subjetivista na interpretação dos fenômenos de mudança (a língua existe no indivíduo e as mudanças se originam nele)” (FARACO, 2005: 140).

Contrapondo-se à disparidade de opiniões dos seus predecessores imediatos sobre a mudança fonética, os neogramáticos criticavam-lhes o considerar como resultado de exceções fortuitas as irregularidades observadas na mudança sonora. Além disso, os neogramáticos não se contentarão apenas em estudar a língua nos seus períodos mais remotos, como os primeiros comparativistas, mas desejarão estudar as línguas observando seu processo de desenvolvimento atual (PEDERSEN, 1962: 244). Pondo a fonética no centro de interesse da linguística, partirão do princípio de que a mudança linguística deve ter uma ordem e, desta forma, ser reduzível a uma investigação sistemática (BYNON, 1981: 44). Concentram, então, suas atenções no estudo das mudanças sonoras, defendendo que elas ocorriam num processo de regularidade absoluta, isto é, sem admitir exceções. Tal perspectiva, levou a escola neogramática a postular a existência de leis fonéticas, aplicáveis cegamente a todos os casos de mudança. As “exceções” apontariam para uma falha do investigador (há o princípio; deve-se encontrá-lo), ou para explicação para a não aplicação da regra (de natureza fonética) por causa de uma analogia (de natureza gramatical). Com isso, os autores aderiam a uma visão modularista dos níveis de organização da linguagem, pois, dessa maneira, o nível fonético era visto como autônomo em relação ao gramatical, o que equivale dizer que poderiam ser formuladas regras fonológicas que prescindissem da morfologia ou da sintaxe ou da semântica.

Avaliando as suas ideias, podemos perceber realmente a influência do pensamento positivista. Dessa forma se pode entender que a escola neogramática tenha proposto a conceituação das leis fonéticas, compreendidas como um princípio mecanicista e universalizante de aplicação cega e sem exceções; leis que, podemos dizê-lo, aparecem como necessárias, qual as leis das diversas ciências físicas apontadas por Comte. Coseriu (1979: 155) entende que o sonho positivista de descobrir as supostas “leis” da linguagem (ou das línguas) e de transformar a linguística numa “ciência das leis”, análoga às ciências físicas, é um resíduo da concepção das línguas como “organismos naturais”. Neste sentido, a crítica que faziam a Schleicher se torna inconsistente, porquanto os neogramáticos também adotem, mesmo que sem o perceberem, uma visão naturalista de língua.

Do mesmo modo, a influência do positivismo histórico sobre a escola neogramática pode também ser percebida nos Prinzipien der Sprachgeschichte/[Princípios fundamentais de história da língua], de Hermann Paul (1846-1921). Esta obra, publicada em 1880, é tida como a elaboração mais refinada do pensamento neogramático. Nela, Paul propõe dividir as ciências históricas em ciências naturais e ciências culturais. No estudo destas, dá relevância ao elemento psíquico e à psicologia, que define como “a base mais nobre de todas as ciências culturais tomadas no seu sentido mais elevado” para a compreensão do “movimento (entenda-se 'evolução') cultural”. Assim, para Paul, o método de pesquisa linguística deve se preocupar tanto com as forças psíquicas quanto com as forças físicas; nesta última parte, reconhece a importância das ciências da natureza: “É portanto preciso haver, junto da psicologia, também o conhecimento das leis segundo as quais se movem os fatores físicos da cultura. As ciências naturais e a matemática são uma base necessária das ciências culturais.”

Preocupado com a afirmação dos estudos linguísticos como uma ciência independente, propõe uma “ciência dos princípios”, entendendo com isso que “os resultados gerais devem ser aplicados a todas as línguas e a todos os graus de evolução das mesmas, e até mesmo aos começos da língua.” Apoia-se, então, apenas em duas ciências: a psicologia e a fisiologia, e da última mesmo só de algumas partes. Se Comte vislumbrara a necessidade de preencher seu projeto holístico de ciência com o estudo dos fenômenos sociais, sintonizado com aquele autor e com seu tempo, Paul afirma que a linguística é, entre todas as ciências históricas, a mais capaz de fornecer resultados seguros e exatos.

Quanto ao modelo de historicismo de seus predecessores, Paul observa que a gramática histórico-comparativa optou por fazer exaustivamente descrição, ainda que comparando vários momentos diferentes na história das línguas. À maneira de Osthoff e Brugmann, critica, então, a falta de poder explicativo do comparativismo, que não buscou efetivamente as causas da mudança:

Por comparação, chegamos à conclusão de que se realizaram transformações, podemos mesmo descobrir uma certa regularidade nas relações mútuas, mas por este processo não chegamos a ser esclarecidos sobre o verdadeiro caráter das transformações realizadas. A relação causal permanece um mistério, enquanto tomamos em conta só estas abstracções como se resultassem umas das outras (PAUL, 1966: 34).

Buscando implementar pela primeira vez uma teoria interpretativa da mudança, Paul chega a formular ideias bastante inovadoras como a da atividade da fala como verdadeira causa da mudança. Percebendo a língua como uma recriação constante, reelaborada nas interações verbais quotidianas, Paul acentua o caráter subjetivo da mudança, que, para ele, sempre começa no indivíduo.

Em resumo,podemos notar nos neogramáticos um avanço significativo em relação a Rask, Bopp e Grimm quando à postura explicativa em relação à mudança. Em que pese a busca em vão das causas naturais da mudança, a perspectiva adotada pelos junggramatiker trouxe à tona a preocupação com a explicação da mudança, um questão tão fundamental para o estudo das línguas quanto a da sua sistematicidade.

Por outro lado, não foram poucas as críticas ao modelo, desde o seu surgimento. Da psicologia individual de Paul discordava veementemente o filósofo alemão Wilhelm Wundt, que era defensor de uma psicologia coletiva ou étnica, interessado em psicologia da linguagem. Mas o ponto em que os neogramáticos foram mais criticados se refere à afirmação categórica advogada pelas leis fonéticas. Dentre os que se dedicaram a relativizar o caráter absoluto das leis neogramáticas, destaca-se o nome do austríaco Hugo Schuchardt (1842-1927). Para ele, raciocinar sobre a mudança como que governada por uma lei externa ao falante é um equívoco, porquanto os usuários de uma língua estão permanentemente formulando processos analógicos que interferem nos rumos da mudança em si. Com isso, Schuchardt admitia a possibilidade de um som mudar em mais de uma direção de acordo com o tipo de analogia criada e adotada pelos falantes.

De outra parte, a crítica partiu dos estudos dialectológicos, na esteira dos trabalhos pioneiros do germanista Georg Wenker (1852-1911) e, principalmente, do suíço Jules Gillierón (1845-1926), autor do Atlas Linguístico da França. Dando relevância às experiências sócio-históricas das comunidades de fala, a dialectologia acabou por provar que a regularidade da mudança é, na verdade, relativa: a sua difusão ocorre de modo não uniforme, seja no interior da língua (a mudança nunca alcança instantaneamente todas as palavras em processo de mudança), seja nos diferentes grupos de falantes (a mudança nunca atinge todo o grupo geográfico ou social em que a língua é usada). Em outras palavras, em franca oposição à lição neogramática, os dialetólogos mostraram que a mudança sonora pode se dar de forma diferente de uma palavra para outra.

1.5 A Teoria Saussuriana

Avaliando as ideias de Saussure, Culler (1979) propõe que a importância do pensamento saussuriano deve ser medida em três âmbitos: i) as relações entre Saussure e seus antecessores, sobretudo os autores do século XIX; ii) as relações entre as teorias saussurianas da linguagem e as correntes de pensamento fora dos domínios da linguística; iii) as relações entre Saussure e as escolas linguísticas que sofreram diretamente a sua influência. Assim, conclui o autor que o genebrino “transformou o que poderia de outra maneira ser uma disciplina recôndita e especializada numa presença intelectual de vulto e num modelo para outras disciplinas das 'ciências humanas' (CULLER, 1979: 45).

De nossa parte, pelo interesse específico do tema deste capítulo, interessa-nos avaliar o que se aponta em (i) e em (iii) acima, focalizando a abordagem saussuriana sobre a mudança linguística. Nessa perspectiva, entre as frutíferas ideias propostas na sua obra, daremos ênfase à dicotomia que, nas palavras do próprio Saussure, separa de forma absoluta o estudo sincrônico do estudo diacrônico.

1.5.1 Saussure ou um Momento de Crise

“Saussure ocupa um lugar de destaque na história da linguística pelos muitos e indubitáveis valores de sua doutrina, bem como por representar nela um momento de crise.” É assim que Coseriu (1979: 221), um dos críticos da obra saussuriana, avalia o legado do linguista suíço. A expressão coseriana — momento de crise — encontra pleno sentido se observarmos que a própria biografia de Ferdinand de Saussure (1857-1913) se nos apresenta hoje (com a comodidade de se olhar para o passado, para a tradição) com uma boa dose de coerência interna. Talvez aí resida em parte o “anonimato” da sua obra, enquanto se pense nela não como as aulas proferidas, mas como o livro que não foi.

Nascido numa família com forte tradição nos estudos das ciências naturais — o pai mesmo era naturalista —, em 1875, Saussure ingressa no curso de Física e Química da Universidade de Genebra. Mas já desenvolvera até ali um interesse pelo estudo das línguas: aos 15 anos já conhecia o grego, o latim, o alemão e o inglês, sob os ensinamentos do filólogo Adolphe Pictet. Certamente, a paixão pelos estudos da linguagem era o que lhe motivava o ânimo, pois rompe com o curso iniciado em Genebra e um ano depois já se encontra na Universidade de Leipzig.

Naquele momento, não haveria lugar melhor para alguém interessado em estudar linguística do que a Alemanha e Leipzig. Seu ingresso nesse centro investigativo coincide com a ascensão da escola neogramática. Em dezembro de 1878, Saussure publica Mémoire sur le système primitif des voyelles dans les langues indo-européennes. Nesta obra do ainda estudante Saussure, pode-se perceber um olho no passado e outro no futuro: o tema é inspirado no comparativismo, mas o problema da reconstituição fonética é colocado sob uma perspectiva sistemática (CARVALHO, 1980: 23). Pouco tempo depois, naquela instituição, o autor defenderia sua tese de doutoramento intitulada De l'employ du génitif absolu en sanscrit.

Após lecionar um tempo em Paris, Saussure regressa a Genebra, onde a partir de 1906 se torna o responsável pela cadeira de linguística geral. Numa série de três cursos sucessivos, entre 1907 e 1911, expõe em ensinamentos orais o que, após a sua morte, seria compilado por seus discípulos em 1916 com o nome de Cours de Linguistique Générale (doravante CLG ou simplesmente Cours).

A crise saussuriana, que é também uma crise epistemológica da linguística, acompanhou-o durante o seu próprio amadurecimento como professor em Genebra, como revela a sua carta a Antoine Meillet, escrita em janeiro de 1894. Referindo-se a um artigo que finalizara, em tom de desabafo, Saussure confessa:

[...] mas eu estou aborrecido com tudo isso, e com a dificuldade geral de escrever sequer dez linhas sensatas a respeito de assuntos linguísticos. Por longo tempo estive, acima de tudo, preocupado com a classificação lógica dos fatos linguísticos e com a classificação dos pontos de vista a partir dos quais nós os tratamos; e eu estou cada vez mais consciente da imensa quantidade de trabalho que seria necessário para mostrar ao linguista o que ele está fazendo... A total inadequação da terminologia corrente, a necessidade de reformá-la e, para fazê-lo, de demonstrar que espécie de objeto é a linguagem, continuamente deteriora meu prazer pela filologia, embora eu não tenha nenhum desejo mais caro que o de ser obrigado a refletir sobre a natureza da linguagem em geral. Isto me levará, contra minha vontade, a um livro no qual explicarei, sem entusiasmo nem paixão, por que não há um único termo em linguística que tenha qualquer significado para mim.

Como sabemos, tal livro nunca veio a ser escrito. De seu próprio punho, nada nos legou o autor, como nos revela o prefácio dos editores do Cours, Charles Bally e Albert Sechehaye:

Après la mort du maître, nous espérions trouver dans ses manuscrits [...] l’image fidèle ou du moins suffisante de ces géniales leçons. Grand fut notre déception [...]; F. de Saussure détruisait à mesure les brouillons hâtifs où il traçait au jour le jour l’esquisse de son exposé! (SAUSSURE, 1997: 7-8)

A opinião de Meillet, também ele um discípulo do suíço, ajuda-nos a entender a situação inusitada de um teórico com ideias tão férteis como Saussure. Segundo ele, as aulas do mestre não raro apresentavam-se como um pensamento em atividade, que era elaborado e formulado no exato momento em que era emitido (CÂMARA JR., 1975a: 105).

1.5.2 O Rigor Metodológico e a Defesa da Sincronia

Dadas as condições de composição do Cours, por vezes a redação torna a argumentação repetitiva e até mesmo a relação das partes parece padecer de alguma desordem. Isso não afeta, no entanto, o entendimento da teoria