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Tópicos Especiais em Literatura I – 2015.1 Walter Benjamin, narrador e experiência – trechos selecionados para discussão. BENJAMIN, Walter. “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p.197-22 1.

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Walter Benjamin: narrador e experincia trechos selecionados para discusso.

Tpicos Especiais em Literatura I 2015.1Walter Benjamin, narrador e experincia trechos selecionados para discusso.BENJAMIN, Walter. O narrador: consideraes sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e tcnica, arte e poltica: ensaios sobre literatura e histria da cultura. So Paulo: Brasiliense, 1994, p.197-22 1.

So cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se pede num grupo que algum narre alguma coisa, o embarao se generaliza. como se estivssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienvel: a faculdade de intercambiar experincias. (p. 197-198)Uma das causas desse fenmeno bvia: as aes da experincia esto em baixa, e tudo indica que continuaro caindo at que seu valor desaparea de todo. Basta olharmos um jornal para percebermos que seu nvel est mais baixo que nunca, e que da noite para o dia no somente a imagem do mundo exterior, mas tambm a do mundo tico sofreram transformaes que antes no julgaramos possveis. (p. 198)

Narrativa ou contao? Narrador ou storyteller?A experincia que passa de pessoa a pessoa a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores so as que menos se distinguem das histrias orais contadas pelos inmeros narradores annimos. Entre estes, existem dois grupos, que se interpenetram de mltiplas maneiras. A figura do narrador s se torna plenamente tangvel se temos presentes esses dois grupos. "Quem viaja tem muito que contar", diz o povo, e com isso imagina o narrador como algum que vem de longe. Mas tambm escutamos com prazer o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu pas e que conhece suas histrias e tradies. Se quisermos concretizar esses dois grupos atravs dos seus representantes arcaicos, podemos dizer que um exemplificado pelo campons sedentrio, e outro pelo marinheiro comerciante.(p. 198-199).Campons sedentrio e marinheiro comercianteEla tem sempre em si, s vezes de forma latente, uma dimenso utilitria. Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugesto prtica, seja num provrbio ou numa norma de vida - de qualquer maneira, o narrador um homem que sabe dar conselhos. Mas, se "dar conselhos" parece hoje algo de antiquado, porque as experincias esto deixando de ser comunicveis. Em conseqncia, no podemos dar conselhos nem a ns mesmos nem aos outros. Aconselhar menos responder a uma pergunta que fazer uma sugesto sobre a continuao de uma histria que est sendo narrada. Para obter essa sugesto, necessrio primeiro saber narrar a histria (sem contar que um homem s receptivo a um conselho na medida em que verbaliza a sua situao). O conselho tecido na substncia viva da existncia tem um nome: sabedoria. A arte de narrar est definhando porque a sabedoria - o lado pico da verdade - est em extino. Porm esse processo vem de longe. Nada seria mais tolo que ver nele um "sintoma de decadncia" ou uma caracterstica "moderna". Na realidade, esse processo, que expulsa gradualmente a narrativa da esfera do discurso vivo e ao mesmo tempo d uma nova beleza ao que est desaparecendo, tem se desenvolvido concomitantemente com toda uma evoluo secular das foras produtivas. (p. 200-201).Natureza da verdadeira narrativa, para BenjaminO primeiro indcio da evoluo que vai culminar na morte da narrativa o surgimento do romance no incio do perodo moderno. O que separa o romance da narrativa (e da epopia no sentido estrito) que ele est essencialmente vinculado ao livro. A difuso do romance s se torna possvel com a inveno da imprensa. A tradio oral, patrimnio da poesia pica tem uma natureza fundamentalmente distinta da que caracteriza o romance. O que distingue o romance de todas as outras formas de prosa - contos de fada, lendas e mesmo novelas - que ele nem procede da tradio oral nem a alimenta. Ele se distingue, especialmente, da narrativa. O narrador retira da experincia o que ele conta: sua prpria experincia ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas experincia dos seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance o indivduo isolado, que no pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupaes mais importantes e que no recebe conselhos nem sabe d-los. Escrever um romance significa, na descrio de uma vida humana, levar o incomensurvel a seus ltimos limites. Na riqueza dessa vida e na descrio dessa riqueza, o romance anuncia a profunda perplexidade de quem a vive. (p. 201)A morte da narrativa/contaoCada manh recebemos notcias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histrias surpreendentes. A razo que os fatos j nos chegam acompanhados de explicaes. Em outras palavras: quase nada do que acontece est a servio da narrativa, e quase tudo est a servio da informao. Metade da arte narrativa est em evitar explicaes. Nisso Leskov magistral. (Pensemos em textos como A fraude, ou A guia branca). O extraordinrio e o miraculoso so narrados com a maior exatido, mas o contexto psicolgico da ao no imposto ao leitor. Ele livre para interpretar a histria como quiser, e com isso o episdio narrado atinge uma amplitude que no existe na informao.(p. 203)Informao x experinciaA informao s tem valor no momento em que nova. Ela s vive nesse momento, precisa entregar-se inteiramente a ele e sem perda de tempo tem que se explicar nele. Muito diferente a narrativa. Ela no se entrega. Ela conserva suas foras e depois de muito tempo ainda capaz de se desenvolver. (p. 204)Informao x experinciaNada facilita mais a memorizao das narrativas que aquela sbria conciso que as salva da anlise psicolgica. Quanto maior a naturalidade com que o narrador renuncia s sutilezas psicolgicas, mais facilmente a histria se gravar na memria do ouvinte, mais completamente ela se assimilar sua prpria experincia e mais irresistivelmente ele ceder inclinao de recont-la um dia. Esse processo de assimilao se d em camadas muito profundas e exige um estado de distenso que se torna cada vez mais raro. Se o sono o ponto mais alto da distenso fsica, o tdio o ponto mais alto da distenso psquica. O tdio o pssaro de sonho que choca os ovos da experincia. O menor sussurro nas folhagens o assusta. Seus ninhos - as atividades intimamente associadas ao tdio j se extinguiram na cidade e esto em vias de extino no campo. Com isso, desaparece o dom de ouvir, e desaparece a comunidade dos ouvintes. Contar histrias sempre foi a arte de cont-las de novo, e ela se perde quando as histrias no so mais conservadas. Ela se perde porque ningum mais fia ou tece enquanto ouve a histria. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que ouvido. Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele escuta as histrias de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narr-las. Assim se teceu a rede em que est guardado o dom narrativo. E assim essa rede se desfaz hoje por todos os lados, depois de ter sido tecida, h milnios, em torno das mais antigas formas de trabalho manual. (p. 204-205)O fazer da contao/narraoO homem de hoje no cultiva o que no pode ser abreviado." Com efeito, o homem conseguiu abreviar at a narrativa. Assistimos em nossos dias ao nascimento da short story, que se emancipou da tradio oral e no mais permite essa lenta superposio de camadas finas e translcidas, que representa a melhor imagem do processo pelo qual a narrativa perfeita vem luz do dia, como coroamento das vrias camadas constitudas pelas narraes sucessivas. (p. 206)O conto moderno e o fim da contao de histriasQuem escuta uma histria est em companhia do narrador; mesmo quem a l partilha dessa companhia. Mas o leitor de um romance solitrio. Mais solitrio que qualquer outro leitor (pois mesmo quem l um poema est disposto a declam-lo em voz alta para um ouvinte ocasional). Nessa solido, o leitor do romance se apodera ciosamente da matria de sua leitura. Quer transform-la em coisa sua, devor-la, de certo modo. Sim, ele destri, devora a substncia lida, como o fogo devora lenha na lareira. A tenso que atravessa o romance se assemelha muito corrente de ar que alimenta e reanima a chama. (p. 213)() o romance no significativo por descrever pedagogicamente um destino alheio, mas porque esse destino alheio, graas chama que o consome, pode dar-nos o calor que no podemos encontrar em nosso prprio destino. O que seduz o leitor no romance a esperana de aquecer sua vida gelada com a morte descrita no livro. (p. 214)Romance e solidoNo seria sua tarefa trabalhar a matria-prima da experincia - a sua e a dos outros - transformando-a num produto slido, til e nico? Talvez se tenha uma noo mais clara desse processo atravs do provrbio, concebido como uma espcie de ideograma de uma narrativa. Podemos dizer que os provrbios so runas de antigas narrativas, nas quais a moral da histria abraa um acontecimento, como a hera abraa um muro. (p. 221)Assim definido, o narrador figura entre os mestres e os sbios. Ele sabe dar conselhos: no para alguns casos, como o provrbio, mas para muitos casos, como o sbio. Pois pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que no inclui apenas a prpria experincia, mas em grande parte a experincia alheia. O narrador assimila sua substncia mais ntima aquilo que sabe por ouvir dizer). Seu dom poder contar sua vida; sua dignidade cont-la inteira. O narrador o homem que poderia deixar a luz tnue de sua narrao consumir completamente a mecha de sua vida. Da a atmosfera incomparvel que circunda o narrador, em Leskov como em Hauff, em Poe como em Stevenson. O narrador a figura na qual o justo se encontra consigo mesmo. (p. 221)O trabalho do narrador