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Walter Benjamin Não Pode Ser Mais Um Fetiche Cultural

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WALTER BENJAMIN NO PODE SER MAIS UM FETICHE CULTURALCategoria:EntrevistasPublicado: Segunda, 26 Janeiro 2015 21:00Escrito porPaulo Carvalh

Para Jeanne Marie Gagnebin, uma das mais reconhecidas e admiradas pesquisadoras da obra de Walter Benjamin, deveramos resistir tentao de transformar os escritos do pensador alemo em mais um fetiche, em mais um bem cultural circulando em um sistema de consumismo cego, de mera acumulao, cuja lgica esvaziada foi justamente o alvo de um pensamento essencialmente questionador, crtico e subversivo. Gagnebin conversou com o Pernambuco sobre o seu mais recente livro,Limiar, aura e rememorao: ensaios sobre Walter Benjamin, publicado pela Editora 34, em que aborda temas centrais em Benjamin tais como a escrita, a morte, a transmisso, a ateno e a disperso, o messianismo e a experincia histrica na modernidade.De origem sua, mas residente no Brasil desde 1978, Gagnebin faz parte de uma tradio de estudos benjaminianos brasileiros, reconhecida inclusive na Alemanha, cuja densidade afirma o dever de tambm tentar nos ler e nos criticar, para alm de conhecer os demais comentadores de Benjamin. Na entrevista, a pesquisadora critica duramente a produo acadmica voltada exclusivamente para Currculo Lattes e reafirma o papel central dos professores no despertar intelectual dos novos acadmicos. Gagnebin autora dentre outros deWalter Benjamin: os cacos da histria(Brasiliense, 1982),Histria e narrao em Walter Benjamin(Perspectiva, 1994),Sete aulas sobre linguagem, memria e histria(Imago, 1997) eLembrar escrever esquecer(Editora 34, 2006).No texto Esttica e experincia histrica em Walter Benjamin a senhora fala sobre o risco de reduzir o filsofo a belos livros de Walter Benjamin.Gostaria que a senhora comentasse sobre como o mercado editorial de lngua portuguesa trata o pensamento benjaminiano hoje.Ainda temos muitos problemas em torno das tradues? H comentaristas que a senhora gostaria de ver traduzidos com mais urgncia? (Acompanhando as notas do seu livro penso ter algumas indicaes para essa resposta...) Algumas tradues j editadas precisam ser refeitas ou revisadas?So muitas questes juntas! As obras de Walter Benjamin demoraram a cair no domnio pblico porque ele morreu durante a Segunda Guerra: so 70 anos de prazo depois da morte, neste caso. At o fim de 2010, a Editora Suhrkamp, em Frankfurt, detinha os direitos autorais sobre obra e tradues, exigindo que todas obras de Benjamin fossem traduzidas segundo e seguindo a ordem dasGesammelte Schriftendessa editora (Escritos reunidos no so Obras completas porque muita coisa se perdeu e talvez possa ser encontrada ainda!). Isso complicou muito as tradues. Em Portugal, Joo Barrento traduziu muitos desses volumes, republicados hoje na Editora Autntica.So boas tradues, mas seguem essa ordem imposta pela Editora Suhrkamp, que no necessariamente a mais sensata. A partir de janeiro de 2011, temos um boom de tradues de W. Benjamin no Brasil. De maneira desconectada, repetindo textos, muitas vezes. estranho que no se consiga chegar a um acordo, mas esse um problema maior: o de uma discusso intelectual maior entre os vrios pesquisadores e tradutores de Benjamin. Pessoalmente, tento ajudar na edio crtica empreendida pela Editora 34. O prximo volume deve trazer textos ligados filosofia da histria, com notas crticas. A Editora Brasiliense est tentando reeditar os trs volumes pioneiros publicados nos anos 80 com revises. Infelizmente, at agora, me parece que essa reviso poderia ter ficado mais cuidadosa.Pessoalmente, gostaria muito de ver uma traduo literria bonita tanto daInfncia em Berlim por volta de 1900como do primeiro esboo desse texto, aCrnica berlinense. E tambm daCorrespondnciade Benjamin, mas isso demora muito.Devemos cuidar para no cair nem no extremo do valor mercadolgico de obras conhecidas (h, por exemplo, duas edies recentes da segunda verso, finalmente reencontrada no arquivo Max Horkheimer, do ensaio sobre A obra de arte na poca de sua reprodutibilidade tcnica, me parece demais!) nem no outro extremo: a erudio pela erudio. imprescindvel tentar sempre fazer tradues anotadas que indicam o contexto poltico e histrico dos textos. Em suma: tentar no transformar Benjamin em mais um fetiche cultural, mas cuidar do aspecto questionador, inquieto, sim, subversivo do seu pensamento. Todo seu pensamento lutou contra essa fetichizao da cultura e da escrita.Em relao aos comentadores. Primeiro, acho que devemos, no Brasil, cuidar de ler melhor a ns mesmos: h j uma tradio benjaminiana brasileira, reconhecida at na Alemanha, deveramos tentar nos ler e nos criticar (cordialmente, mas nos criticar sim) mais. No meu ltimo livro, cito vrias obras de referncia em alemo, bem verdade. A no sei se devemos traduzi-las... Ou insistir para que mais estudiosos estudem alemo e possam ler toda essa literatura em alemo! Agora, o volumeWalter Benjamin, Memria, organizado por Uwe Steiner para o centenrio de Benjamin em 1992 , poderia ser bem traduzido com seus ensaios quase clssicos de grandes comentadores.Espero que ainda neste ano saia, pela Editora 34, a traduo de um belo livro sobre W. Benjamin do poeta catalo Vicente Valero:Experincia e Pobreza. Walter Benjamin em Ibiza.Em 2012, numa fala sua aqui no Recife, achei interessante com a senhora criticava algumas apropriaes que fazemos de conceitos de Benjamin. A senhora falava sobre a noo, achatada, que se costuma ter do conceito de melancolia em Benjamin. Tambm comentou o nosso uso do termo povo, que no levaria em conta a ambiguidade desta palavra. Pareceu-me que a sensibilidade benjaminiana por vezes estava um tanto distante de ns, os brasileiros, ou, ns, os falantes de lngua portuguesa. A pergunta que fao : o que significa pensar Benjamin no contexto social, poltico, cultural brasileiro de hoje? O que seria exatamente na abordagem de temas histricos e artsticos brasileiros oferecer ao pensamento de Benjamin o mesmo tratamento que seu pensamento oferecia s runas do seu tempo?Essa questo, no fundo, no diz somente respeito apropriao, para retomar sua palavra, da obra e dos conceitos de Benjamin, mas uma questo hermenutica muito mais ampla. Ela se coloca cada vez que lemos ou estudamos textos escritos numa outra poca e, igualmente, como voc ressalta, em outra lngua, porquese pensade maneira diferente segundo as lnguas que se fala... Por exemplo, se pensa diferente se voc tem trs gneros (masculino, feminino, neutro) ou dois (masculino, feminino) ou nenhum. Ou se se fala do ser segundo a modalidade de ser e de estar, ou somente deseinou dtre. Cada lngua tem seus pressupostos metafsicos... e, tambm, histricos. A palavra Volk(povo) em alemo no pode ser usada mais de maneira inocente depois do nazismo e de ter ainda, na memria auditiva e afetiva, a voz de Hitler.Agora, essas consideraes podem at se estender a falas e textos da mesma lngua e da mesma poca. A filosofia pode nos ajudar a tomar sempre um certo recuo em relao ao uso dos conceitos, tambm das metforas ou simplesmente das palavras comuns. um cuidado interpretativo e crtico porque as nossas palavras no so simplesmente instrumentos, mas carregam junto associaes histricas e semnticas (sem falar das inconscientes!) e vises do mundo como diziam os Romnticos alemes.Ento, desculpe, mas no tenho certeza que devemos hoje, no Brasil, ter o mesmo tratamento em relao a temas artsticos ou histricos que Benjamin. Parece-me difcil, justamente porque to diferente. O que podemos, sim, reter de sua reflexo a ateno pelas aes e expresses dos oprimidos, para usar uma palavra dele, isto , expresses de resistncia, de busca de outros caminhos, de esperana de outros mundos, tambm de desesperana. E a desconfiana em relao ao modelo atual, impositivo, de sucesso e de felicidade a qualquer preo, num sistema de consumismo cego e de explorao cada vez maior. Essas exigncias so do pensamento de esquerda em geral. Benjamin tambm tem uma ateno singular pelo detalhe e pela espessura material da linguagem; ele mostra igualmente uma grande desconfiana em relao s construes totalizantes, mesmo dialticas... Esse lado filolgico seu me parece geralmente pouco valorizado e merece ser ressaltado, porque vai contra uma pressa e uma voracidade muitas vezes confundidas com brilhantismo intelectual.Confesso que foi muitssimo deleitoso ler o comentrio da senhora sobre a imagem de Jeff Wall. Pergunto se a senhora gostaria de comentar algum outro trabalho contemporneo em que enxerga aberturas para uma aproximao benjaminiana. Gostaria de falar um pouco da sua relao com a produo artstica contempornea?Costumo falar para meus alunos que na discusso/briga entre Adorno e Benjamin sobre a perda da aura e a funo utpica ou alienante do cinema, ambos podem nos ajudar: Adorno para entender o que a indstria cultural que reina soberana na nossa sociedade; e Benjamin para entender as tentativas de prticas culturais e artsticas contemporneas que se caracterizam muito mais pela experimentao do que pela criao de uma obra acabada e singular. Penso notadamente em todas as prticas como instalaes, performances, atividades teatrais ou circenses ou cinematogrficas ldicas e efmeras. A partir notadamente de suas reflexes sobre o teatro pico de Brecht, mas tambm sobre o teatro de crianas proletrias (que ele conheceu a partir de sua amiga Asja Lacis), Benjamin tentou pensar mais em termos de ordenao experimental (Versuchanordnung) do que em termos mais clssicos de obra de arte (Kunstwerk).Isso certamente nos ajuda a pensar as prticas artsticas contemporneas que no podem mais ser lidas somente luz de uma esttica do belo e do sublime, mas que tambm apontam para algo como exerccios de alteridade e de transformao.Pessoalmente, no sou especialista nem em artes plsticas nem em cinema. Gosto muito de um cineasta chins, j bastante famoso apesar da juventude, Jia Zhangke (indico um livro recente de Walter Salles e Jean-Michel Frodon,O mundo de Jia Zhangke, CosacNaify, 2014). Quando vejo seus filmes, rodados geralmente com cmera digital, geis, ternos e cruis, sinto um ar de famlia com Benjamin. um cinema documentrio e de fico, fala de pessoas comuns, annimas, do conflito entre a tradio milenar e a modernidade acelerada, do campo que desparece e das megacidades, falam da tradio que vai desparecendo, mas que continua pesando como chumbo (como em Kafka), da memria afetiva e corporal, de tentativas de solidariedade, de tentativas de sobrevivncia, de linhas de fuga que s vezes do certo, na maioria das vezes no do. So filmes ternos e contundentes sem grandes efeitos nem grandes discursos (da talvez a importncia de uma cmera mais leve). H neles um gesto de ateno e de esperana triste que me lembra os textos e tambm a situao histrica de Benjamin, essa catstrofe que muda de semblante, mas que continua sob o manto da normalidade. A construo histrica dedicada memria dos sem nomes (Dem Gedchtinis der Namenlosen ist die historische Konstruktion geweiht. Walter Benjamin,Gesammelte Schriften I-3, p. 1243, Suhrkamp Verlag, Frankfurt/Main, 1974) diz Benjamin; talvez essa frase tambm possa definir prticas artsticas como o cinema de Jia Zhangke.Mais perto de ns, claro, tambm penso num filme comoCabra marcado para morrerde Eduardo Coutinho, um grande filme sobre lutas, memria e transmisso, tentativas de soterrar essas lutas e essa memria.No texto sobre Limiar: entre a vida e a morte, a senhora fala a respeito da digresso (pensar por desvio), um pensamento em que se abandone a soberania do sujeito do pensar, e que possa, enfim, pensar devagar. O que significa pensar devagar no contexto da academia brasileira hoje? Se os pesquisadores e professores so pressionados por certa lgica produtivista, a quem restou o papel de pensar devagar, hoje, no Brasil?Pois , ficamos todos escravos doscurriculaLattes e da contabilidade da Capes. Pode-se entender que essas avaliaes todas tiveram origem numa tentativa de reduzir algumas prticas de malandragem e de picaretagem na vida acadmica. No sei se o conseguiram. Agora, tambm participam do produtivismo e da acelerao que caracterizam o capitalismo concorrencial. Em termos marxistas clssicos, o triunfo do valor de troca sobre o de uso (para que tantas revistas, tantos artigos, at tantos livros que ningum l, mas que contam pontos na carreira de algum?). A cincia se tonou uma indstria, uma empresa, umBetriebcomo j diziam Adorno e Horkheimer nas primeiras pginas daDialtica do Esclarecimento.Em termos de ensino no Brasil, uma vantagem consiste no fato que, graas ao CV Lattes, h uma certa transparncia sobre a vida acadmica das pessoas. Mas uma transparncia opaca, porque no diz respeito nem qualidade dos textos escritos nem qualidade do ensino, a meu ver fundamental na atuao de um professor. Temos cada vez mais pesquisadores bastante restritos na sua temtica (o que permite especializao, certamente, mas no necessariamente comunicao e transmisso dos saberes adquiridos) e cada vez menos professores felizes em ensinar, que saibam entusiasmar seus alunos e, ao mesmo tempo, exigir deles um esforo de questionamento e de aprofundamento. Ora, me parece que disso que o ensino brasileiro mais precisa desde o ensino fundamental at a ps-graduao: a alegria e a exigncia no ensino e no aprendizado.Sei que posso fazer essas crticas porque sou uma velha professora respeitada, em particular graas ao seu CV Lattes! Agora, para mim, o ensino da filosofia deveria ousar resistir a essa acumulao e a essa pressa, justamente porque busca, crtica, proposta e inventividade, porque no sabe com certeza aonde vai, aonde ologospode nos levar como diz Scrates. H vrios anos escrevi um pequeno texto sobre isso, acho que saiu na internet sob o ttulo o mtodos desviante que insiste nessa pacincia da filosofia, um conceito emprestado tanto a Hegel (a pacincia do conceito) como a Lyotard. Justamente porque o pensamento filosfico no se esgota na comprovao de sua utilidade, mas tateia para tambm pensar aquilo que ainda no foi pensado, que espera por ser reconhecido e conhecido, por sernomeado, ele no pode- nem deve, me parece - obedecer a essa presso sem critic-la. Se tiver que obedecer, quando um jovem colega presta concurso, por exemplo, que o faa para salvar sua pele, mas no confunda essa atitude com atitude cientfica! Falo da filosofia, mas imagino que literatura e outras disciplinas ditas de cincias humanas tambm poderiam concordar com essa crtica. E tambm das cincias ditas hard.H alguns anos, o psicanalista Renato Mezan publicou um artigo na Folha de So Paulo, intitulado O fetiche da quantidade1, no qual conta como, em 1994, um professor de Princeton, Andrew Wiles, conseguiu, mais de trs sculos depois de sua formulao, demonstrar um teorema de um matemtico francs, o thorme de Fermat, cuja demonstrao tinha ficado perdida. A universidade de Princeton ofereceu ao pesquisador tanto tempo quanto precisava para se consagrar exclusivamente a esta pesquisa. Ele encontrou a soluo depois de sete anos... Sem artigo nem relatrio intermedirios, portanto!Ser que no mais possvel escrever um belo livro (vamos dizer em seis ou sete anos) porque deve-se redigir trs artigos por ano ou mesmo por semestre? E que no se possa perder tempo com uma classe at os alunos todos despertarem e comear a pensar por si mesmos? No preciso saber de filosofia ou de literatura para saber o quanto a errncia e a perda de tempo so imprescindveis para inventividade no pensar.A senhora faz uma crtica dura a Agamben, na nota da pgina 55. Fala que a aproximao entre a noo de mera vida e vida nua pode ter sido apressada. Essa relao angular no principal projeto de Agamben, que o seu Homo sacer. Essa oposio j foi discutida anteriormente? A senhora gostaria de se estender um pouco mais sobre essa crtica?Queira desculpar, mas acho minha crtica uma observao filolgica bem educada, nenhuma crtica to dura assim. E completo dizendo que aprecio muito o pensamento de Giorgio Agamben, em particular toda discusso sobre poder e excluso noHomo sacer. Agora, Agamben cita muitas fontes, de Heidegger a Benjamin passando por Carl Schmitt ou Foucault, sem falar em sua erudio teolgica e filosfica mais ampla. Ento, muitas vezes, alguns conceitos devem ser retificados, o que tento fazer ao distinguir o conceito de mera vida em Benjamin (blosses Leben) do contexto da bio-poltica. Aqui no Brasil, pouca gente ousa simplesmente questionar os textos de Agamben. Ele mereceria uma leitura mais crtica. Por exemplo, na Alemanha, Sigrid Weigel (no livroDie Kreatur, das Heilige, die Bilder, Fischer Verlag, 2008) ou na Frana Georges Didi-Huberman (no livroSurvivance des lucioles, Editions de Minuit, 2009) tm crticas muito mais virulentas!A centralidade da escrita no pensamento filosfico um dos temas que atravessa vrios textos, e mais centralmente Do conceito de Darstellung em Walter Benjamin (ou verdade e beleza). Essa perspectiva coloca o pensamento filosfico muito prximo da poesia, como tambm aproxima a poesia da filosofia. Isso parece soar muito intimidador para quem est comeando a escrever, ou tem um projeto de uma tese acadmica pela frente, no ? Gostaria de falar da sua experincia pessoal com a escrita?Mais uma questo que se desdobra em muitas! As relaes entre poesia ou literatura e filosofia so estreitas e complicadas desde de incio, desde que Plato nomeia um outro gnero delogos, de discurso, de filosofia em oposio s outras prticas discursivas de sua poca, como a poesia de Homero e a retrica. Essa oposio difcil porque pressupe uma fora argumentativa e lgica que consiga convencer pelo reconhecimento da verdade, em oposio fora da beleza potica e retrica. Ao mesmo tempo, Plato por assim dizer inventa um novo gnero literrio, odilogo, mesmo que seja um dilogo filosfico, ele tambm lana mo da beleza literria e de histrias mticas para convencer seu interlocutor, no caminho comum da busca do conhecimento. Mesma ambiguidade em relao escrita: se ele parece conden-la (na Carta VII e no fim doFedro), ele no entanto um dos maiores escritores que j existiu e nos deixou uma obra escrita osDilogos, justamente maravilhosa.Acho que um preconceito filosfico comum pensar que a filosofia no trabalha com estilo ou gnero literrio, mas que seria um discurso transparente que diz a verdade. H vrios gneros literrios na filosofia, inconfundveis entre si, e sempre ligados quilo que tentam dizer: dilogo, tratado, ensaio, meditao, discurso metodolgico, sistema...No so somente os escritores (literrios) que do importncia sua escrita no sentido de um cuidado com palavras, metforas, msica ou ritmo do texto. Vejam como escrevem um Srgio Buarque de Holanda ou um Gilberto Freyre, o estilo no nunca indiferente, nem a apresentao dos problemas neutra. Justamente porque nossa linguagem e mais ainda nossa escrita limitada, simplesmente porque nunca consegue realmente dizer o real, devemos cuidar dela cada vez mais, explorar seus recursos e seus limites.No acho isso intimidante, pelo contrrio: tira dos ombros dos pesquisadores a fantasia de ter que alcanaro nico verdadeiroatravs das suas palavras. A limitao da linguagem e da escrita obriga a inventar cada vez mais palavras, mais figuras, mais argumentos, mais textos para dizer melhor. Se tivssemos uma linguagem perfeita, no precisaramos mais nem falar nem escrever!Tive na minha infncia um aprendizado das palavras e da escrita (com meu pai, acho, nem consigo lembrar) que desde do incio era ligado beleza (da poesia) e comunicao. Tive sorte porque nunca percebi na escrita esse instrumento de disciplina e de opresso que um aprendizado mais tradicional pode significar. Leitura e livros foram momentos de descoberta da amplitude do mundo. Ento, sempre gostei de escrever, acho que muitos gostariam muito mais de escrever se houvesse esse aprendizado da linguagem, da escrita, da leitura como um aprendizado da mltipla beleza do mundo e de sua possvel traduo em palavras.A senhora acompanha a produo do pesquisador Jonathan Crary? Em seuSuspenses da percepo: ateno, espetculo e cultura(2013) ele observa, em oposio a Benjamin, que a distrao moderna no seria uma ruptura com tipos estveis e naturais de percepo contnua (p. 74), mas um efeito da tentativa de produzir estados no distrados em sujeitos. Ainda que Benjamin tenha sugerido que disrupo inerente ao choque e distrao traz a possibilidade de novos modos de percepo ( p. 74), o mesmo Benjamin, segundo Crary, sempre pressupunha uma dualidade fundamental, em que a contemplao absorta, purificada dos estmulos excessivos da modernidade, era o outro termo. (p. 74) Para Crary distrao e concentrao no se estabelecem como polos opostos, mas como um continuum no qual as duas fluem incessantemente de uma para outra, como parte de um campo social em que os mesmos imperativos e foras incitam ambas.Penso que na pgina 110 deLimiar, aura e rememoraoa senhora atinge Crary em cheio ao afirmar que o impulso ldico e mimtico no seria definido como uma falta de ateno, mas sim como outro desempenho da ateno. A senhora concorda com essa leitura?Caro Paulo, concordo, sim, com sua leitura..., mas lhe confesso que no conheo Jonathan Crary, nunca li nenhuma linha dele. Portanto, agradeo muito pela indicao, mas no posso responder mais a respeito!Quando se deu seu primeiro contato com Benjamin? Gostaria de falar sobre essas primeiras leituras? Quais as passagens de Benjamin continuam hoje enigmticas e centrais para a senhora?O primeiro texto de W. Benjamin que li foram as teses Sobre o conceito de histria, ltimo escrito de Benjamin datado de 1939/1940.. Isso foi num curso de alemo medieval, em Genebra, nos anos 1970. Benjamin foi redescoberto pela esquerda, em particular pelo movimento estudantil, nestes anos justamente porque ele era um pensador ligado a Marx, mas no dogmtico, nunca foi do Partido Comunista, j tinha percebido os problemas do stalinismo quando foi a Moscou visitar sua amiga Asja Lacis. Ele tinha uma concepo materialista (como ele dizia) da histria, mas ele questionou profundamente a crena dogmtica no progresso, to importante e to paralisante (segundo ele) na social-democracia e nos partidos comunistas ortodoxos. A vitria do nazismo exigia outra reflexo que essa f cega no progresso, essa viso determinista da histria.No rastro do movimento estudantil e das crticas crescentes aos partidos comunistas oficiais (em particular depois do sufoco da primavera tcheca em agosto de 1968 pelas tropas da Unio Sovitica), um pensador como Benjamin ajudava (e ainda ajuda!) a pensar histria e historiografia em oposio historiografia dominante, isto , dos dominadores, sem, no entanto, cair num falso otimismo progressista.O professor de lngua e literatura alem medieval, Karl Bertau, estava escrevendo uma obra de historiografia da Idade Mdia, justamente. Lemos muitos tericos de esquerda, principalmente Walter Benjamin, nos perguntando sobre essa atividade: como o historiador do presente escreve e reescreve a histria do passado? Em vista de que futuro? Com que tipo de lembrana? Qual a memria, qual a transmisso que sustenta sua escrita? Questes candentes at hoje e que so tambm altamente polticas como percebemos, por exemplo, com o relatrio da Comisso Nacional da Verdade e a discusso desse documento.Continuo achando as teses um texto fantstico, mas difcil. Participei doBenjamin-Handbuch(Metzler Verlag, 2006)com um ensaio sobre as teses, a convite de colegas alemes, mas no sei se compreendi realmente esse texto fulgurante e obscuro, que, alis, Benjamin nunca pensou em publicar tal qual, era muito mais um esboo que escreveu para si mesmo, no limiar da Segunda Guerra, antes de desistir de viver. Tambm outros textos, comoA origem do drama barroco alemo, tambm continuam um pedreira para mim, apesar de vrias leituras.Esse meu ltimo livro uma tentativa de esclarecimento e de questionamento depois de vrios anos de estudo e ensino. Ele tambm significa para mim uma homenagem a todos que, aqui no Brasil, tentam lembrar o passado, cuidar da memria dos mortos e desaparecidos, e afirmar que a histria pode ser outra.