wagner schwartz: “falar do que eu vejo. falar...

18
performatus.net 1 Inhumas, ano 6, n. 19, jan. 2018 ISSN 2316-8102 Wagner Schwartz: “Falar do Que Eu Vejo. Falar do Que o Outro Me Fala. Falar do Que Pode Ser Falado” 1 Tales Frey Wagner Schwartz, La Bête . Performance realizada na cidade de Campinas, São Paulo, Brasil, durante a Ocupação Wagner Schwartz, na Bienal Sesc de Dança. Setembro de 2015. Fotografia de Caroline Moraes O mais engraçado é o seguinte: eu não tenho tanto prazer em brincar com os Bichos; o meu prazer é de ver os outros brincarem com eles. 2 Lygia Clark afirmou tal frase em 1960, correspondendo justamente ao ano em que a sua série Bichos foi pela primeira vez exposta com os seguintes títulos: Invertebrado, Ponta, Desfolhado, Articulado, Articulado Duplo, Metamorfose I, Prisma, Metamorfose II, Vegetal, Constelação, Contrário I, 1 Citação extraída do texto Piranha (2011), de Wagner Schwartz. 2 CLARK, Lygia. “Do Ritual”. In: FUNDACIÓ ANTONI TÀPIES DE BARCELONE [et al.]. Lygia Clark : Catálogo. Curadores: Manuel J. Borba-Villel [et al.]. Paris: Reúnion des Musées Nationaux, 1998, p. 123.

Upload: phungthuan

Post on 09-Nov-2018

221 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

performatus.net

1

Inhumas, ano 6, n. 19, jan. 2018

ISSN 2316-8102

Wagner Schwartz: “Falar do Que Eu Vejo. Falar do

Que o Outro Me Fala. Falar do Que Pode Ser Falado”1

Tales Frey

Wagner Schwartz, La Bête. Performance realizada na cidade de Campinas, São Paulo, Brasil,

durante a Ocupação Wagner Schwartz, na Bienal Sesc de Dança. Setembro de 2015. Fotografia de Caroline Moraes

O mais engraçado é o seguinte: eu não tenho tanto prazer em brincar com os Bichos; o meu prazer é de ver os outros brincarem com eles.2

Lygia Clark afirmou tal frase em 1960, correspondendo justamente ao

ano em que a sua série Bichos foi pela primeira vez exposta com os seguintes

títulos: Invertebrado, Ponta, Desfolhado, Articulado, Articulado Duplo,

Metamorfose I, Prisma, Metamorfose II, Vegetal, Constelação, Contrário I,

1 Citação extraída do texto Piranha (2011), de Wagner Schwartz. 2 CLARK, Lygia. “Do Ritual”. In: FUNDACIÓ ANTONI TÀPIES DE BARCELONE [et al.]. Lygia Clark: Catálogo. Curadores: Manuel J. Borba-Villel [et al.]. Paris: Reúnion des Musées Nationaux, 1998, p. 123.

performatus.net

2

Cidade, Contrário II, Vazado I, Vazado II e Sobre o Redondo. Na época, talvez ela

não tenha previsto que alguém pudesse “brincar” com os seus Bichos como

Wagner Schwartz escolheu fazer, criando uma intertextualidade, onde não só

“brinca” com um dos seus Bichos, mas “torna-se” um (ou vários) deles durante

o tempo estipulado para a sua ação acontecer.

Como uma homenagem ao trabalho de Lygia Clark, o prazer da

brincadeira – sugerido pela própria artista em diversas de suas obras – está

completamente presente na performance de Schwartz, que coloca pessoas em

contato direto, mencionando (ainda que não intencionalmente) a trajetória de

Clark, através da qual a bidimensionalidade da pintura foi expandida à

tridimensionalidade cinética – algo que vemos nos Bichos e não apenas – até ela

chegar, primeiramente, à fase sensorial intermediada pelo objeto – em que o

mesmo permaneceu por algum tempo indispensável para possibilitar que corpos

experimentassem sensações táteis – até que, posteriormente, Lygia permitisse

a incorporação dos próprios objetos, oferecendo ao corpo “o objeto de sua

própria sensação”3. E Wagner cita indiretamente isso tudo na sua performance.

Doze anos depois de Lygia Clark criar os Bichos e dizer que tem mais

prazer em ver as outras pessoas brincarem com eles, nasceu, em 1972, Wagner

Schwartz, um profissional das artes do corpo que, em 2005, escolheu fazer da

sua própria massa corpórea uma obra manipulável como as muitas de Clark,

com foco específico na sua tão renomada série Bichos. La Bête [O Bicho], título

em francês dado por Schwartz, não vem como um mero estrangeirismo pelo fato

de o artista viver em Paris, além de São Paulo; ele nos direciona para a relação

da artista com o contexto da França também, país onde Lygia Clark viveu entre

1950 e 1952 e, depois, entre 1970 e 1975, estudando com Fernand Léger, Árpád

Szenes e Isaac Dobrinsky na sua primeira vivência no território francês e

lecionando artes na Faculté d’Arts Plastiques St. Charles, na Sorbonne, na sua

segunda permanência na capital do mundo francófono.

3 Ibidem, p. 247

performatus.net

3

Wagner Schwartz, La Bête. Performance realizada na Galeria Olido, em São Paulo, Brasil,

durante o Festival Contemporâneo de Dança. Novembro de 2015. Frames do registro em vídeo da performance feito por Osmar Zampieri

Os Bichos de Lygia Clark têm possibilidades múltiplas de formas e

movimentos (que parecem ilimitados) e são estruturas constituídas por placas

metálicas em alumínio com dobradiças que, para a própria artista, trazem a

ideia de uma espinha dorsal, algo que possivelmente motivou Wagner a usar

uma pequena réplica de um dos Bichos de Clark para moldar formas diversas

diante de sua audiência e, em seguida, convocar o público a fazer o mesmo com

o seu corpo, como se fosse ele também um bicho que, embora seja de carne e

osso, expõe-se desumanizado, pois apresenta-se – ainda que metaforicamente

– como uma peça escultórica manejável, exatamente como as peças da série de

Clark, as quais adquirem formas diversas apenas se houver participação ativa

dos(as) espectadores(as).

Evidentemente um corpo (distinto de um objeto de Clark) carrega em si a

sua subjetividade e isso é imprescindível; não é possível vermos um humano

performatus.net

4

sem deduzirmos a sua interioridade, e talvez esse seja o ponto que gerou tantos

posicionamentos encoleirados a partir da apresentação da performance de

Schwartz no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, durante a 35ª Mostra

Panorama de Arte Brasileira, em 2017.

Embora praticamente todas as pessoas que criticaram negativamente o

trabalho só tenham acessado pequenos trechos do mesmo através da internet,

ou seja, onde o corpo é apenas uma criatura eletrônica vista de maneira

bidimensional, ao testemunharem, a partir de suas telas (celulares,

computadores etc.), a ação do artista “desumanizado” como uma escultura

interativa, tomados pelo ódio, discursavam em recusa a essa não-humanidade

do corpo exposto para ser manuseado como tal e, assim, evidenciavam muitas

vezes opiniões completamente desumanas para, contraditoriamente,

defenderem humanos vistos como criaturas indefesas e vítimas de alguma

barbaridade.

O nome do artista Wagner Schwartz tornou-se midiático e passou a ser

conhecido para além do circuito das artes por conta dessa recente apresentação

de La Bête e de toda a polêmica criada no meio desse obscurantismo notório

que o Brasil vem atravessando. O fato de estar nu e ter esse mesmo corpo

tocado por uma criança no MAM/SP e por três crianças na apresentação feita em

agosto/2017 no Goethe-Institut durante o festival IC Encontro de Artes (ainda

que fosse nos seus pés e mãos e da maneira mais lúdica possível, com

consentimento de adultos responsáveis por elas), a ocorrência foi o estopim

para que uma massa exaltada se manifestasse on-line e distorcesse a ação,

reinterpretando-a a partir de pontos de vista pessoais. Foram, então, viralizadas

as convicções mais radicais, com exacerbado sentimento de orgulho e

presunção, que consideraram tal episódio como um atentado “à moral e aos

bons costumes”, ignorando que um corpo nu não necessariamente é um corpo

sexualizado e que a veste não é um manto sagrado que blinda um corpo tido

meramente como um objeto de desejo (ou desejante) do prazer carnal. Um corpo

nu pode ser simplesmente um corpo nu e não categoricamente um corpo

erotizado.

performatus.net

5

La Bête ultrapassa as análises simplórias em sua mais absoluta

singeleza, onde um corpo, sem adornos ou indumentos, apenas acompanhado

da pequena réplica de um dos Bichos, funciona como âmago da obra, revelando

muito mais o(a) participante que o próprio performer sujeitado à manipulação,

pois além das ingênuas e/ou afáveis participações, o corpo de Wagner,

apresentado de forma passiva, pode acabar por experimentar mediações sádicas

(agressivas de forma física e/ou psicológica), e as reações públicas pautadas na

sua apresentação sob intermédio de pequenos fragmentos de vídeos são

também reflexos dessa ideia, porque revelam mais quem examina e analisa do

que quem é avaliado. Qualquer forma de intervenção erigida na ação (ao vivo ou

não) nos faz refletir sobre quem está no poder e sobre como cada participante

faz uso dessa condição. Mas quem de fato está no poder quando o que se sente

em posse do domínio é justamente o verdadeiro alvo de análise? As relações são

mútuas e aniquilam as posições bem definidas. Nesse sentido, todos estão

igualmente ocupando o lugar da ponderação e o do objeto de análise, havendo

um nível alargado do desfazimento das barreiras entre obra e audiência (seja ela

presencial ou não), e todo o ambiente é acionado, pois todo o ambiente passa a

ser a obra ou eco da mesma.

Talvez como uma referência ao Bicho de Bolso (1966) de Lygia Clark, mas

sobretudo como uma autorreferência ao La Bête, Wagner elaborou o trabalho

em vídeo intitulado Bicho (2005), através do qual vemos as suas mãos

manipularem um pequeno boneco de pano similar a um vodu, correspondendo a

uma versão reduzida de si. Esse vídeo – em que vemos a meditativa ação

acontecer em tempo real – pertence à instalação Placebo (2005), que além

do Bicho, conta com outros vídeos: Filtro, Chá de Freud, Carnaval e Uberlândia,

sendo todos realizados no mesmo ano.

A instalação direciona o nosso olhar para aquilo que Rosalind Krauss

denomina “condição pós-mídia”, em que as especificidades dos dispositivos

encontram-se contaminadas, não sendo mais possível avaliarmos os segmentos

correspondentes a cada uma das mídias de forma purista ao considerarmos os

contextos de cada uma delas de maneira autônoma, pois “elas vão agora se

performatus.net

6

misturar livremente” 4 . Trata-se de pensarmos a conjuntura derivada da

condição agregadora da mídia proposta, desde o suporte para os vídeos, da

câmera que os filmou, do projetor que lhes atribui o movimento, incluindo a

posição do público apanhada entre a fonte da luz atrás dela e a imagem

projetada diante de seus olhos5.

Wagner Schwartz, frames do vídeo Bicho, 2005

Com indubitável ironia, na descrição da sua instalação Placebo, Schwartz

usa uma frase que possivelmente escutou de alguém que assistiu ao seu

trabalho: “se soubesse que viríamos aqui para ver TV, eu teria ficado em casa”6.

Tal pensamento denota a não compreensão da coparticipação de diferentes

linguagens artísticas em uma mesma expressão, onde não deve haver

hierarquias, e a performance ou a dança ou qualquer outra forma de expressão

que, por convenção aconteceria ao vivo, pode sim miscigenar-se com o vídeo e

4 Ibidem. 5 KRAUSS, Rosalind. A Voyage on the North Sea: Art in the Age of the Post-medium Condition. Londres: Thames & Hudson, 1999, p. 12. Tradução livre a partir do inglês de Tales Frey. 6 Ibidem, p. 24.

performatus.net

7

apresentar-se sob intermédios, convergindo-se em arranjos distintos também

passíveis de questionamentos sobre suas novas configurações, seja como

videodança ou como videoperformance. Esse último gênero quiçá seja a melhor

definição do que Wagner expõe, já que “na medida em que não existe a

interatividade com o público, com a audiência, ou com o outro, a interatividade

do corpo do artista é produzida no enfrentamento com a própria câmera de

vídeo”7, o que poderia conformar-se na videoperformance, mesmo em casos

como o do vídeo Uberlândia, o qual trata-se de um registro de uma performance

realizada na cidade mineira que dá título à criação.

Wagner Schwartz, frames do vídeo Cleópatra, 2007

O recurso do vídeo como meio da comunicação artística foi alvo de

especulação em outros trabalhos do artista, como vemos em Cleópatra (2007),

obra em que uma performer convidada, Ligia Manuela Lewis, dubla a canção

“The First Time Ever I Saw Your Face” (1969), de Roberta Flack, durante mais de

cinco minutos sem piscar seus olhos. Logo nos primeiros segundos do vídeo, ela

levanta as pálpebras antes cerradas para nos encarar, olhando fixamente para

7 SCHWARTZ, Wagner. Sinopse de Placebo. Ver o texto em: <https://www.wagnerschwartz.com/placebo>. Acessado em 22 de dezembro de 2017.

performatus.net

8

nós observadores(as) que assistimos à sua imagem virtualizada, mediada pela

tela do ecrã ou da projeção. Somos fatalmente seduzidos para entrarmos no

jogo de também mantermos os nossos olhos abertos todo o tempo para

tentarmos flagrar algum momento de deslize em que ela pudesse rapidamente

fechar os seus olhos, mas isso não acontece e ela os mantém tranquilamente

abertos do começo ao fim da sua atuação. Segundo a descrição do trabalho,

“Cleópatra é a versão humana de um avatar. Nesse vídeo, ela é programada para

simular emoções virtuais”8, o que confirma o aspecto robótico – e nem por isso

não-humano – da imagem que nos atrai.

Wagner Schwartz, Piranha. Performance realizada na cidade de Campinas, São Paulo, Brasil,

durante a Ocupação Wagner Schwartz, na Bienal Sesc de Dança. Setembro de 2015. Fotografia de Caroline Moraes

Na sua obra Piranha (2009/2012), olhando quase que constantemente

para o alto e sacudindo o seu corpo por um tempo dilatado, sob um único foco

de luz sem que haja um filtro de cor evidente, em pé sobre o palco, Wagner inicia

uma movimentação vibrátil com os seus pés quase inabaláveis no mesmo lugar

do início ao fim do espetáculo, sofrendo pequenas oscilações quando há algum

8 MELLO, Christine. Extremidades do Vídeo. São Paulo: Editora Senac de São Paulo, 2008, p. 144.

performatus.net

9

desequilíbrio gerado pelos seus espasmos, mesclando a agitação corporal

voluntária com a involuntária.

A imagem ultrapassa a trivial noção de dança, que pressupõe uma

sucessão de movimentos coreografados, e poderia roçar até mesmo com a

escultura cinética em sua componente visual, desde os mobiles dançantes de

Alexander Calder, em suas movimentações em torno de um mesmo eixo, até a

irrepetibilidade de Ascension (2005), de Anish Kapoor. Mas é principalmente o

corpo, com as suas micropolíticas, que direciona o espetáculo de Wagner à

expressão artística da performance. É o corpo como suporte do argumento, mas

também veículo. E, se quisermos categorizar a qual gênero artístico a obra

pertence (o que não tem nenhuma necessidade), a performance talvez seja o

mais apropriado no sentido em que é uma expressão que rejeita rótulos e o

caráter híbrido toa recursivo, podendo então uma dança (sem uma coreografia

convencional), combinada com a literatura e com o vídeo, não ser nem dança

nem teatro nem vídeo e, talvez, nem mesmo performance, sendo simplesmente

algo que desmantela categorias fixas.

Esse trabalho evoca o solipsismo filosófico e, provavelmente, está

pautado em experiências pessoais do próprio artista que não estão

completamente explícitas, mas podem ser deduzidas a partir de signos expostos

de forma poética e não como provas circunstanciais, sendo todas interpretadas

de maneiras múltiplas e tangenciadas aos dilemas humanos como a morte, a

crença (ou não) na transcendência da alma e, também, o amor e as frustrações

decorrentes de tal sentimento.

Apreendemos, a partir das sensações partilhadas, dessemelhantes

conclusões sobre o que nos é mostrado. Apesar de não experienciarmos o

mesmo estado físico e mental e um possível transe que Wagner testa em si ao

sacudir seu corpo até o seu limite, permanecemos entorpecidos, quase

hipnotizados, vendo um ser que se agita ao som de ruídos que retomam

estrondos de aparatos tecnológicos inconstantes desde quando o artista passa a

ser visto no palco até o fim da obra. Intuímos, no vai e vem da sua fisicalidade,

uma relação sexual ardente ou somente um espectro que contextualiza as

relações “líquido-modernas” da era digital, inseridas “numa cultura consumista

performatus.net

10

como a nossa, que favorece o produto pronto para uso imediato, o prazer

passageiro, a satisfação instantânea”9. Talvez, possamos ainda perceber uma

ascendência espiritual ou apenas uma ansiedade exagerada que toma conta de

um indivíduo, como simplesmente podemos, também, imaginar um peixe fora

d’água tanto no sentido literal como conotativo da expressão.

Antes de o corpo de Wagner ser revelado já no palco, há uma narrativa

poética (uma espécie de videopoema) que surge em forma de legenda, sendo a

argumentação por vezes cética, por vezes melancólica além de descrente, por

vezes também sem nenhuma confiança no amor. Nenhuma? “Estamos tão

tristes quanto todos.” 10 Não há nenhum texto falado, nenhuma voz

pronunciada; tudo que acessamos desse texto é por meio da própria palavra

escrita. As palavras são postas como imagens. Antes de vermos o corpo do

artista a vibrar incessantemente, permanecemos no escuro, onde a palavra

vinda da luz da projeção nos retira, por vezes, do ambiente sombrio, mas a

dureza de cada expressão, ainda que sob a camuflagem da poesia, revela-nos o

breu. E Wagner nos relembra em seu texto que “a palavra não é inteligível”, nós

a compreendemos quando “ela se encontra com um objeto”11 . O clima é tão

niilista quanto o que vemos no filme O Cavalo de Turim (2012), de Béla Tarr,

onde a insistência na repetição reforça o confinamento solitário dos indivíduos e

dá imagem ao que entendemos pelo “eterno retorno” nietzschiano. Com o

apagar do único feixe de luz, com o qual intuímos o fim, também percebemos a

escuridão inicial já experienciada, ou seja, um imaginável recomeço.

Transobjeto, espetáculo de 2004, que foi remontado dez anos depois, em

2014, tem início com a entrada abrupta de Schwartz pela esquerda alta do palco

até parar na esquerda baixa, onde há três arcos amarelos semelhantes a

bambolês. Ele se posiciona exatamente dentro de um deles, vestido com um

traje feito de esteira de praia. Podemos conjeturar que não há nenhum

indumento além da palha a ocultar o seu corpo. Com movimentos sutis de sua

9 BAUMAM, Zigmunt. Amor Líquido: Sobre a Fragil idade dos Laços Humanos. Trad. de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, p. 21. 10 SCHWARTZ, Wagner. Piranha. Ver o texto em: <https://www.wagnerschwartz.com/piranha-portugues>. Acessado em 22 de dezembro de 2017. 11 Ibidem.

performatus.net

11

cabeça, ele olha cada pessoa da plateia até que, repentinamente, levanta o seu

braço esquerdo a segurar uma pedra, o que, como uma agulha de diamante que

toca o vinil, funciona como o apertar da tecla play e dá início à música “If You

Hold a Stone” (1971), de Caetano Veloso, composta durante o seu exílio na

Inglaterra. Wagner permanece parado com seu braço esquerdo suspenso a

segurar a tal pedra até que o primeiro refrão da música se encerra. Ele, então, se

posiciona no interior de um segundo arco, onde executa a ação de pegar um

bobe de cabelo com o auxílio de um par de hashi – aqueles pauzinhos usados

como talheres em países do extremo oriente – e faz disso um binóculo, com o

qual olha para a mão que segura a pedra e pronuncia: “objeto relacional de Lygia

Clark”. Posicionado no terceiro arco amarelo, a ação da pedra é refeita e o traje,

ao ser por ele suspenso, revela um tecido vermelho almofadado com a legenda

“Incorporo a Revolta”, fazendo alusão aos parangolés de Hélio Oiticica, bem

como o Seja Marginal, Seja Herói (1968), em que Oiticica propunha transgressão

aos costumes e valores conservadores e burgueses.

Wagner Schwartz, Transobjeto. Espetáculo realizado no programa Rumos Dança Itaú

Cultural, em São Paulo, Brasil. Março de 2004. Fotografia de Gil Grossi

performatus.net

12

Entre as movimentações subsequentes e as demonstrações das variadas

relações entre o seu corpo e os demais objetos que estão sobre o palco, sob o

som de um metrônomo que indica um andamento musical regular, no caso um

andamento de samba, Wagner dá sentidos múltiplos a um tecido vermelho, que

funciona como uma gigantesca fita para amarrar o seu corpo apresentado em

formas contorcidas e, posteriormente, como um delicado vestido de gala. De

forma agressiva, estraçalha, em sequência e com as suas próprias mãos,

algumas frutas (manga, maracujá, melancia, abacaxi e laranja) para diluir o

sumo de cada uma delas em um vinho branco francês ali disposto para

composição de drinks tropicais. Wagner os bebe suavemente em suas

respectivas taças ao som de “London, London” (1971), de Caetano Veloso,

concluindo essa sequência de bebidas com uma água de coco. O desfecho do

espetáculo se dá debaixo de um guarda-sol aberto, onde o performer fuma

glamourosamente um cigarro ao som de “Tropicália” (1968).

Wagner Schwartz, Transobjeto. Espetáculo realizado no programa Rumos Dança Itaú Cultural,

em São Paulo, Brasil. Março de 2004. Fotografia de Gil Grossi

Trans é um elemento linguístico que exprime muitos significados, dentre

eles: “além de”, “para além de”, “em troca de”, “ao través”, “para trás”,

performatus.net

13

“através” etc. E Wagner especula as inúmeras possibilidades que a partícula

“trans” pode gerar em combinação com diferentes objetos, sugerindo a

transformação, a transexualidade, a transgressão, a transmídia, a

transdisciplinaridade, o transbordamento, a transposição, o transpassar e etc.,

ao fazer uso de referências tão claras e tão inteligentemente combinadas entre

si.

Embora haja humor em um trabalho que retoma um movimento de

ruptura como foi o Tropicalismo, o contexto tenebroso de repressão vinculado ao

Golpe Militar de 1964 da história do Brasil está inevitavelmente atrelado ao

enredo e, nesse sentido, Transobjeto, de Schwartz, consolida-se como uma obra

completamente atual, pois assistimos hoje a um enorme retrocesso no cenário

político brasileiro que acaba por nos direcionar a essa época em que a metáfora

era estratégia quase obrigatória para as(os) artistas driblarem a censura.

Infelizmente, ainda que tratando-se de supostos “casos isolados”, esse

retrocesso está sendo repetido e com bastante amplitude. Basta atentarmo-nos

aos exemplos todos ocorridos em 2017, como o cancelamento da

exposição Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, no

Santander Cultural em Porto Alegre; a injusta prisão temporária de Maikon

Kempinski em Brasília, ao apresentar a sua performance DNA do Dan, na praça

do Museu da República em Brasília; a apreensão do quadro de Alessandra Cunha

no MARCO – Museu de Arte Contemporânea do Mato Grosso do Sul; a

interrupção, por policiais militares, da peça teatral Blitz – O Império que Nunca

Dorme, do grupo Trupe Olho da Rua em Santos-SP; a presença de menores de

dezoito anos vetada na exposição “Histórias da Sexualidade” no MASP, em São

Paulo (algo que felizmente foi revisto); a proibição do espetáculo O Evangelho

Segundo Jesus, Rainha do Céu – da encenadora Natália Mallo, com a atriz

Renata Carvalho – de ser apresentado no SESC de Jundiaí (mas que obteve,

depois, uma decisão favorável pelo Tribunal de Justiça de São Paulo); e o próprio

caso de Wagner Schwartz ao apresentar La Bête no Museu de Arte Moderna em

São Paulo. Certamente, esses são os casos que ganharam algum holofote

midiático, mas outras censuras aconteceram e, talvez, não viraram manchete.

performatus.net

14

Mal Secreto, obra iniciada em 2015, embora tenha sido já apresentada

em algumas circunstâncias, é um projeto em construção e que tem a memória

como abordagem poética. Sobre uma cadeira, com um álbum fotográfico nas

mãos, ao virar cada uma das páginas, Wagner Schwartz divide as suas

sensações e notas acerca de cada imagem. Vemos cada uma delas projetadas ao

fundo do palco por trás dele enquanto acompanhamos a sua descrição. Mais

uma vez, o tempo, o corpo e a sua relação com o mundo são alvos de análise na

sua criação.

Wagner Schwartz, Mal Secreto. Leitura realizada na cidade de Campinas, São Paulo, Brasil,

durante a Ocupação Wagner Schwartz, na Bienal Sesc de Dança. Setembro de 2015. Fotografia de Caroline Moraes

TALES FREY: Ao observar a sua poética visual através da sua trajetória,

tenho imensa curiosidade de saber como funciona o seu processo criativo.

Alguns e algumas artistas partem do que eu gosto de nomear como “raciocínio

visual”, ou seja, reflexões sobre vários conceitos (históricos, filosóficos etc.) que

acontecem através de uma compreensão súbita (insight) em forma de imagem e

que não deve ser confundida com uma “inspiração intuitiva”. Outros(as) artistas

colocam conceitos em prática até que o resultado estético emerja como

consequência disso. Claro que existem muitos procedimentos e todas as

metodologias são válidas e, muitas vezes, são completamente pessoais e

intransferíveis. Como funciona a sua metodologia? Caso não tenha um processo

performatus.net

15

específico de criação, queria que explicitasse um caso (ou mais de um) que

julgue o processo coerente com o resultado alcançado.

WAGNER SCHWARTZ: É interessante o conceito que você criou e

nomeou como “raciocínio visual”. Poderia dizer que é a partir dele que encontro

os primeiros traços de minhas performances, vídeos e textos; no entanto,

gostaria de chamar esse procedimento de conexão. Mas uma conexão acontece

através de uma metodologia ou de uma relação entre os objetos e eu? Quando

você fala que um projeto criativo pode vir a ser pessoal e intransferível, acredito

que esta seja a chance de se aproximar do trabalho de alguns artistas. Daqui

onde estou, imagino que uma metodologia se pareça com algo como acordar às

sete e meia da manhã, ler as notícias do dia, responder e-mails, fazer exercícios,

ir para o atelier/estúdio e estudar alguns conceitos para ver o que deles

extrairíamos, (pausa), durante toda a vida. A palavra “metodologia” me assusta

porque ela tem esse sentido para mim. Eu vivo fazendo, os objetos também.

Não consigo reduzir a consciência estética de minhas performances, vídeos e

textos a um “processo criativo”. Eu tento acordar cedo. No verão é possível. No

inverno, se houver necessidade. Escrever, por exemplo, é uma necessidade.

Emily Dickinson, minha poetisa favorita, escreveu:

This is my letter to the World That never wrote to Me— The simple News that Nature told— With tender Majesty Her Message is committed To Hands I cannot see— For love of Her—Sweet—countrymen— Judge tenderly—of Me12

Em um momento específico, alguma coisa torna-se urgente para ser

coreografada, visualizada, escrita. Aguardo que essa urgência desapareça. 12 “Esta é minha carta para o mundo / Que nunca escreveu para mim / Simples novas que a Natureza / Contou com terna nobreza // Sua mensagem, eu a confio / A mãos que nunca vou ver / Por causa dela — gente minha — / Julgai-me com bem querer”. Tradução a partir do inglês de Aíla de Oliveira Gomes em Emily Dickinson - Uma Centena de Poemas. São Paulo: Editora T. A. Queiroz, 1985.

performatus.net

16

Quando ela não está mais à vista, começo a elaborar o que deixou para trás. As

imagens do pensamento tomam forma, conectando-se a outros eventos, a

novos objetos – já não mais àqueles de onde surgiram. A raiva está latente,

agora ela pode ser escrita, performada, estruturada. O tempo libera. O tempo

libera o “eu”. Conexões vão sendo feitas, até que a forma do pensamento

apareça na dança, na performance, no vídeo, na escrita. A edição vem mais

tarde. Não existe um gesto neutro em que tudo pode ser incorporado. Não há

uma câmera obediente que permite que tudo possa ser fotografado. Não há

uma folha branca em que tudo pode ser escrito. A criação é feita em conjunto

com os objetos. As coisas já estão em movimento, vistas, escritas. Basta dar

tempo para que umas se conectem às outras. E sempre no corpo, esta casa

aberta para leituras onde ilimitados temas de importância estão disponíveis, ora

sendo criados, revisitados; evoluem. É verdade que os objetos que ganham vida

a partir das conexões têm uma relação muito forte com a escrita: a oração, o

corte, a musicalidade. E, talvez, a musicalidade seja a prática mais atuante – ela

me aproxima das coisas do mundo, encobrindo uma certa timidez. Nesses

encontros, Caetano Veloso me apresentou Lygia Clark. Cocteau Twins me

apresentou Miriam Cahn. Erik Satie me apresentou Henri Michaux. Cartola me

apresentou Hélio Oiticica. Morton Feldman me apresentou Paul Pagk. The

Velvet Underground me apresentou Andy Warhol. Gil Scott-Heron me

apresentou Malick Sidibé. Arvo Pärt me apresentou Anselm Kiefer. Philip Glass

me apresentou Louise Bourgeois. Tom Zé me apresentou Flávio de Carvalho.

Wendy Carlos me apresentou Pierre Huyghe. Brian Eno me apresentou Philippe

Parreno. Terry Riley me apresentou Néle Azevedo. Os Mutantes me

apresentaram Lenora de Barros. Laurie Anderson me apresentou Laurie

Anderson.

Talvez a introdução de Mal Secreto – uma peça, performance e/ou ensaio

fotográfico, ainda em construção – possa fazer ressoar a sua pergunta.

Nolwenn convida Stéphane e eu para fazermos uma viagem com seu filho, Saul, e seu companheiro, Julien. Ela está interessada na compra de uma casa, no meio de uma floresta, e nos pede alguns conselhos. Nos encontramos pela manhã do

performatus.net

17

dia seguinte. Dentro do carro, escutamos Nolwenn falar sobre seus projetos enquanto o rádio, sintonizado em uma estação de música contemporânea, preenche os espaços vazios entre um pensamento e outro. Pouco a pouco, nos desconectamos da paisagem caótica e dissonante do centro de Paris. Chegamos. Registro aquilo que não vejo todos os dias. Falamos sobre a beleza e os perigos do exílio voluntário. Segundo Nolwenn, essa casa pode sempre ser útil nos feriados. Ao fim da visita, pegamos a estrada. O rádio é quem fala. À noite, em minha casa, descarrego as imagens. Elas se revelam habitadas pelos caprichos de um tempo em suspensão. Entre os objetos e as pessoas capturadas, um movimento contemplativo começa a se esboçar. Durmo tarde e, às cinco horas da manhã, abro os olhos e o computador. As aparições me perturbam: elas desejam encontrar o seu lugar no mesmo mundo do qual faço parte. Esse processo persiste durante todos os dias de uma semana. Os nomes nas imagens tornam-se dispensáveis. A casa e a floresta já não existem no passado. Mal Secreto acontece assim, do nada.

TALES FREY: Julgo o seu trabalho “brando” no que entendemos por

oposto ao que muitos avaliam como “polêmico” e o considero como possível de

ser partilhado para diferentes públicos e idades sem nenhum problema. Vejo um

exagero na forma como muitas pessoas assimilaram a participação de crianças

na sua obra La Bête e, inclusive, noto muitas reações que denotam uma forma

de agir pautada na mais pura má-fé quando tentam afirmar que a peça pode ser

nociva para menores de idade. Como você pondera a sua intenção artística e a

recepção da mesma por parte do público no contexto do Brasil e em outros

contextos onde mostrou seu trabalho?

WAGNER SCHWARTZ: Em cada uma de minhas criações, o efeito da

migração, da figura do estrangeiro, do corpo como matéria, da tradução é

palpável. Meu trabalho é direcionado àqueles que frequentam galerias, museus,

teatros e pode, também, encontrar um diálogo com os curiosos, como muitas

vezes já aconteceu. Nunca fui afrontado pelo público presente em qualquer uma

de minhas performances, peças ou instalações. A máxima reação foi o abandono

de algumas pessoas em uma apresentação ou outra, antes que essas

chegassem ao fim – fato que é absolutamente compreensível.

performatus.net

18

É preciso ressaltar, no entanto, que as pessoas que você cita em sua

pergunta, aquelas que atacaram La Bête, não são as mesmas que conhecem a

performance, seu contexto ou a mim. Deste modo, prefiro não problematizar a

atitude de cada uma nesse momento, assim como não entendi quando, de um

dia para o outro, elas se tornaram especialistas em história da arte.

As pessoas que se aproximam de meus trabalhos geralmente estão

interessadas sobre o que em cada um deles é complexificado. A minha intenção

artística é criar contextos para que as questões que perseguem ou expandem a

condição humana sejam observadas, discutidas. E, dentro ou fora do Brasil, a

recepção tende sempre a ser motivadora.

PARA CITAR ESTE TEXTO

FREY, Tales. “Wagner Schwartz: ‘Falar do Que Eu Vejo. Falar do Que o

Outro Me Fala. Falar do Que Pode Ser Falado’”. eRevista Performatus,

Inhumas, ano 6, n. 19, jan. 2018. ISSN: 2316-8102.

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Da Mata

© 2018 eRevista Performatus e o autor