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VOZES E VISÕES Nina Rizzi Georges Seurat (1859-1891), Au Divan japonais, 1887-88, conté crayon and gouache on paper (Private Collection).

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Page 1: VOZES E VISÕES - germinaliteratura.com.br · unhas compridas, cabelos desgrenhados, riso e pés descalços. mas ele não se vai ... Pierre Auguste Renoir (francês, 1841-1919), viveu

VOZES E VISÕES Nina Rizzi

Georges Seurat (1859-1891), Au Divan japonais, 1887-88, conté crayon and gouache on paper (Private Collection).

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[foi comprar açúcar/ levou mais de vinte anos// um dia voltou/ pôs o pacote sobre a mesa/ sentou-se/ acendeu o cigarro/ e perguntou – o café/ vai demorar?

verídico, líria porto]

caminhante noturno

passeei por barbacena

longos minutos. vinte talvez

ela insiste dizer que foram anos. vinte

com certeza.

eu tava caminhano,

era 'inda claro quando saí

mas em dia de solstício

daí que logo escurece.

quando da noite

algo morre algo nasce em mim

(minha filha, pobrezinha, achava d'eu

ser o lobisome)

em verdade só me perco um tanto

normal. nada de alzaimer

ou essas coisas de maluco de que trata o

patrão. normal

há quem tenha medo da noite

mas ela não é má

"só escura. questão de textura"

e tantos anos de feijão com arroz

co'a mesma maria

dá uma vontade de andar só...

ah, barbacena num é assim

tão bonita nem tão feia

quanto dizem os caras que faz a teoria

num sei como lá cheguei

nem sabia que era tão perto do armazém

não deu vontade de ficar

mas matuto que é matuto

num pode recusar um bom

café com queijo

eles falavam naquele linguajar

tudo esquisito como o do patrão

eu ouvia. fazia poesia

acho que gostaram de mim

que pediro pr'eu fica

- olha, num posso não, seu dotô

que maria tá me esperando co'açúcar.

passei na venda

comprei o açúcar

e já logo tava em casa

maria me oiô c'uma cara toda amarrada

tinha já uns cabelos brancos

que antes num via oiado

mas disso nada falei

que mulher é tudo vaidosa.

botei o açúcar na mesa

pr'ela pô pó pá cuá

- e aí, muié: esse café sai ou num sai?

só mais uns vinte minutinhos...

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caderno de receitas da maria

tiramissú

ingredientes

- 6 gemas

- ½ xícara (chá) de açúcar

- 1 pitada de sal

- 450g de requeijão firme

- 2 xícaras (chá) de café frio e forte

- 30 biscoitos champagne com açúcar fino

- 1 colher (chá) de baunilha

- 2 colheres (sopa) de licor de cacau

- 100g de chocolate meio amargo raspado

modo de preparo

- bata as gemas, o açúcar, sal e a baunilha bastante, até ficar bem macio

- acrescente o requeijão e bata até ficar cremoso e firme

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- em um prato fundo coloque o café e o licor, molhando rapidamente parte dos biscoitos

nessa mistura

- forre o fundo e as laterais de 6 xícaras (chá) com biscoitos

- despeje a mistura de queijo e o chocolate ralado

- molhe os biscoitos restantes, arranje-os em pé nas laterais das xícaras e coloque o

restante da mistura para firmá-los

- por cima coloque o restante do chocolate

- gele por 4 horas antes de servir

rendimento: porção para 6 pessoas

noite de outono, 1958

ele estava jogado na sala. tinha os sapatos sujos. bem em cima do sofá recém-lavado.

eu só finjo que ligo. ah, que importância lá isso tem depois de tantos anos. tornei-me

ranzinza, deveras. isso é o que não posso suportar: o que sou junto dele. violências

físicas e verbais já também não me aborrecem. é de mim que não gosto. e se dele não

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posso desistir, desisto de mim. caminho por entre os móveis como um fantasma. as

receitas e o preparo das delícias, apesar de serem pra ele, me fazem sentir um pouco

mais viva.

pode ser que aqueles escritos não passassem de asneiras e parvices; podia ser mero

ciúme do tempo que despendia em detrimento dele; quem sabe o seu ego, já que é

poeta. ah, isso não nego, um grande poeta-menor. aliás, foi o que primeiro me

encantou nele. ele dizia que gostava do que eu escrevia, mas após casamento e filhos,

seu discurso era de que a mulher estava "destinada" ao mundo do lar e da

maternidade. Se ele soubesse que ainda escrevo! sinto-me tão ousada, mesmo sendo

este um exercício tão solitário.escondidas dentre as receitas, acima de quaisquer

suspeitas, ficam essas letras tão tortas, meu escapismo. antes do casamento eu escrevia

mais, mas ele me fazia parecer tão ridícula que acabei deixando a pena. até ter essa

idéia-goiabada.

ele está demorando. não me sinto culpada por ter desejado que ele não voltasse. ainda

se ele fumasse, fosse comprar cigarros e nunca mais... mas que sonhos podem

alimentar mulheres em condições como a minha?

[...]

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petit gateau

ingredientes

- 250 g de chocolate meio amargo em pedaços

- 1 xícara pequena de café frio

- 1 e 1/4 de xícara (chá) de margarina ou manteiga

- 5 gemas

- 5 ovos

- 3/4 de xícara (chá) de açúcar

- 3/4 de xícara (chá) de farinha de trigo

- sorvete de creme para acompanhar

modo de preparo

- unte com margarina 12 forminhas com 7cm de diâmetro e reserve

- pré-aqueça o forno a 270º C. numa tigela refratária apoiada sobre uma panela com

água bem quente, sem ferver, derreta o chocolate e a manteiga, mexendo delicadamente

- adicione o café e misture novamente

- em outra tigela grande, misture as gemas com os ovos e o açúcar. junte o café com o

chocolate derretido e a farinha aos poucos, mexendo bem

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- distribua a massa nas forminhas. asse por 7 minutos

- desenforme e sirva com sorvete de creme

rendimento: 4 porções

[...]

o verão se foi e ele não voltou. será que terei enfim a liberdade? e se partisse com as

crianças? de certo morreríamos de fome. quem daria emprego a uma mulher

abandonada pelo marido? pior, que fugiu. é melhor esperar.

[...]

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capuccino gelado

ingredientes

- 400g de cappuccino

- 500ml de água gelada

- 500ml de leite gelado

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- cubos de gelo

modo de preparo

- misture em um liquidificador o cappuccino, a água e o leite

- bata por aproximadamente 1 minuto

- acrescente cubos de gelo e sirva

rendimento: 8 xícaras de 200ml

[...]

tantos anos que ele se foi... sinto um pouco mais de poesia em meus dias. mesmo longe

de livros, como os que lia escondida na época da escola. é o cotidiano, o balanço das

folhas. minha filha que terminou o curso ginasial.

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se o pai aqui estivesse certamente ela não teria avançado tanto. a educação dada às

mulheres é restrita a poucas letras e contas, e os hábitos de leitura reservados aos

romances selecionados por eles, os homens.

ela também não sente sua falta. achava que ele era um monstro, quando à noite voltava

bêbado da rua. Os outros mal se lembram dele.

ah, hoje começo o curso de cerâmica que sonhei toda a vida. farei com um grupo de

mulheres da comunidade. elas também vivem muito bem sem o que chamam “pares”.

[...]

bolo de banana com café e castanha picada

ingredientes

- 7 bananas

- 3 xícaras de farinha de rosca

- 3 xícaras de açúcar

- 5 ovos

- 1 xícara de óleo

- 1 colher (sopa) de café em pó

- 1 colher (sopa) de fermento

- 100g de castanha picada

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modo de preparo

- bater no liquidificador as bananas, os ovos e o óleo

- misturar com os demais ingredientes, acrescentando por último o fermento e a

castanha picada

- levar ao forno (temperatura média) para assar em uma forma untada c/ manteiga e

farinha de rosca por 40 minutos

[...]

ele voltou. vinte anos se passaram. está mais velho, mais acabado e com uns olhos

tristes, meio mortos. parece que esteve no famoso hospício de barbacena. apesar de

tudo, tenho pena. sei de coisas atrozes que fazem com os internos. nossa filha quer

travar uma luta antimanicomial.

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ele botou o açúcar na mesa. teve a estapafúrdia de perguntar se o café iria demorar.

ah, mas esses anos sem ele me fez tão bem que não tripudiei. também ele parece tão

perdido, vago, evasivo. achei melhor agir como se nada tivesse acontecido.

depois... depois vou embora. os tempos são outros agora. as crianças estão grandes e

posso me sustentar vendendo artesanato, quem sabe, meus quitutes.

espero não voltar nunca mais. terei coragem, ou ao cruzar os olhos com os dele vai me

pesar essa moral imprestável e machista?

ah, estou tão cansada... vou coar o café...

irish cofee

ingredientes

- 2 colheres (chá) de açúcar cristal

- 200 ml de café forte

- 150 ml de uísque de boa qualidade

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- 2 colheres (sopa) de chantilly

modo de preparo

- escalde dois copos com água bem quente e seque-os

- coloque 1 colher (chá) de açúcar em cada copo

- acrescente o whisky e complete com café

- misture até dissolver o açúcar

- acrescente 1 colher de creme de chantilly cuidadosamente

em cada copo e sirva sem mexer

rendimento: duas porções

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barcarola-goiabada

a gente escorregava pela casa e eu não ouvia

que a rotina era uma parede

descascada. o meu benzinho parecia existir

aqui. não em mim, além

os talheres e o armário de cozinha e a mesa

com cadeiras e essas coisas,

essas coisas que a gente não teve. às vezes

a gente parecia feliz ou embriagados. dizia frontal

- vem cá, mulher.

parecia bom quando o meu benzinho gostava

os meus cabelos brancos e apagava

a luz e os lábios na hora de dormir.

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primeira anotação-goiabada

desculpa, amor, marido,

essa maresia sobre a mobília.

eu vou fechar os olhos, tá?

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goiabada-cascão

gosto do jeito dele de não me olhar quando cozinho,

de não se importar enquanto limpo os vômitos, as cinzas, seus restos.

até mesmo quando olha os seios ou as pernas das moças pela janela.

mas bom mesmo, gosto mesmo, das vezes que ele desaparece

e posso dormir, ser eu mesma, sozinha ou não, mulher.

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segunda anotação-goiabada

não fique bravo, fui à bodega comprar orégano pra sua salada.

você sempre fica tão bravo quando não tem orégano na sua salada.

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goiabada pra um livro de marianina

os homens tocam, esquartejam.

tocam

por que é um dia bom.

elas, em ânsia de dizer,

calam.

como o silêncio que tange o sino,

panelas, ovários.

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3ª anotação-goiabada

mil perdões, amor.

abra a porta, a rua é escura e os bandidos me riem as malas feito baús jogados.

por amor, juro, não digo mais

- não gosto que me marque assim em vias públicas.

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samba-goibada em ré sustenido pra folclorista

sobre a ponte metálica, de madeira, dos ingleses,

eu chorei o teu nome, mentira.

não era a espada, corajosa, mas os beijos, larva, desgraçada.

eu ardi.

a sua figura que me atravessou a noite lenta,

carvão sobre a minha faculdade mais nobre.

triste é ter tempo, gasto no vago, pra tanto mais, suas misérias,

que a luta de classes.

ninguém chega ser dois nessas andanças.

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tweenty seven inch nails, guava jelly

arranquei um naco do meu dedo

enquanto pensava que ele podia subir as escadas, gritar

sangue junto à enorme unha encardida

ardume

os dedos, círculos. meu riso de matilda.

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cauterização-goiabada

pior é quando ele esquece

e aparece

- dói o útero, sabe?

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goiabada em calda

tudo o que mo atraia agora o repele

unhas compridas, cabelos desgrenhados, riso e pés descalços.

mas ele não se vai

acostumou-se à sujeira da casa, ao lixo da sacada

e essas vizinhas quase nuas, gostosas.

se enraivece, dispara sobre mim sua língua

- chuva.

não tivesse me arrancado as saias de crioula, também me acostumado,

faria agora mesmo uma dança-de-descer-o-sol

- é meu terreiro, meu terreiro!

e me virava exú.

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ária pra contralto em mi bemol

o fogo que me escorre do lábio, senhor?

a tua mão.

a que me tira o boldo e o gengibre.

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vingança-goiabada

nunca fui tua, amor.

menti só pra você

me comer.

*

N.B.: Todas as imagens são de propagandas antigas, encontradas na internet. A coleção “Guia de la buena esposa”, são folhetos paraguaios de 1953.

POST-SCRIPTUM

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A MULHER LÊ. E ESCREVE!*

Pierre-Auguste Renoir (1841-1919). Woman Reading, 1875-1876. Oil on canvas, Musée d’Orsay, Paris.

Pierre Auguste Renoir (francês, 1841-1919), viveu numa época de grandes

transformações: as Revoluções Liberais de 1848; a Europa terminara de conquistar o

globo; surge uma literatura de denúncia, o naturalismo; são inventados telégrafo,

telefone, cinematógrafo, avião; Pierre e Marie-Curie descobrem o rádio. E Paris é um

núcleo trepidante intelectual da época. A pintura, até então com regras inflexíveis, se

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libera para captar vida, luz, calor e alegria contidas na fugacidade do momento. Essa é a

maior qualidade de Renoir, retratar, de forma inesquecível, momentos banais da vida,

num estilo luminoso e pessoal, capaz de cumprir a função que ele mesmo determinara

para a obra de arte: “Uma obra de arte, deve pegar e prender a pessoa, envolvê-la

totalmente e carregá-la para longe”.

À primeira vista, Renoir pode parecer um tanto conservador, restringindo em

suas telas a mulher ao ser pacato, demasiado sensível e jovem, conservando o máximo

da aparência burguesa, tradicional, já que todas - ou quase - mulheres de sua obra se

limitam a tranquilos passeios em jardins parisienses, piqueniques em bosques,

festividades caseiras, ou ainda às atividades domésticas como o cuidado com os filhos,

rodeadas de flores. Outras lêem em casa ou em jardins. Pode parecer mesmo muito

conservador, até um retrocesso, tendo em vista as produções dos outros impressionistas.

Mas não se engane, não o é.

Renoir explora a sensualidade da mulher. Talvez esta limitação ao cotidiano

simples pareça aborrecida e sedentária, repetitiva, entretanto, na época da composição,

tais atividades eram profundamente “feministas” e os homens apreciavam, mesmo que

inconscientemente. Assim, Renoir transmite para a eternidade esse conceito secular,

obsoleto nos dias atuais.

E assim é A Mulher lendo, a obra de Renoir se destaca por sua sutileza, precisão,

colorido e luminosidade, adquirindo um equilíbrio cromático raro, deixando a cor fluir

rapidamente, permeando toda a composição. Aqui, face e cabelo são um turbilhão de

laranja e ocre rosado, contra o malva do fundo e o vestido escuro - inabitual para uma

moça virgem da época como sugere sua face e lábios.

Por que tanta elegância e, na roupa, o retraimento de cores? Talvez Renoir

quisesse transmitir uma revolta social. Por trás da frivolidade da cena, esconde-se uma

mulher que lê, uma mulher com desejos sexuais, cuja pureza é uma camada superficial

da verdadeira mulher. A mulher que se negou ao seu “destino natural” do lar e da

criação dos filhos e a educação restrita a poucas letras e contas e aos hábitos de leitura

reservados aos romances selecionados pela família e pela Igreja.

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No Brasil, é na segunda metade do século XIX que vimos florescer uma série de

publicações feitas, idealizadas, financiadas e distribuídas por mulheres. Uma verdadeira

rede de trocas, colaborações, protagonismos – ainda que só de mulheres, pequena e/ou

rara - que incentivavam o fazer literário e permitia um exercício novo, arriscado, mas

palpitante para elas: o de publicar opiniões. Muitas ainda sob pseudônimos, como

aponta Virginia Woolf, ora de proteção contra possíveis críticas e reprimendas. Afinal,

porque uma mulher tem de se meter com o ofício da pena?

A escrita implicava uma situação de atividade para além do “destino natural” da

mulher que encontrava escape nos caudalosos diários e nos mosaicos formados pelos

cadernos-goiabada, nos dizeres de Lygia Fagundes Telles, que mesclavam receitas de

culinária e a impressões sobre o mundo e a vida pessoal, além dos primeiros exercícios

literários como a poesia.

Até pouco tempo a escrita permitida para uma mulher, significava um solitário

exercício onde ela, ou poucos eleitos de suas relações, formavam um diminuto ou

inexistente círculo de leitores. Escrever e publicar esses escritos, portanto, já era uma

forma de ousadia.

E é isso o que fazem hoje inúmeras escritoras: vão além do caderno-goiabada,

das continhas e do fardo de que a mulher só se realiza na maternidade. Contudo,

novamente, não se engane: não é por serem mulheres que escrevem de um modo

“açucarado”, emitem opiniões, metem o bedelho, dão pitaco, bradam contra ou a favor –

não importa -, são combativas, em uma luta cotidiana por direitos, para ter opinião –

seja qual for -, enfim, pela liberdade. Elas dizem o que as move, o que querem e o que

as cerceia. E querem ser ouvidas, ou melhor, lidas. E é pela liberdade que expõe suas

múltiplas vozes em poéticas diversas em textos que vão além da questão de gênero e se

inscrevem no campo da Literatura; e se não é a literatura feminina ou masculina, se não

sabem poeta ou poetisa, a poesia e a literatura sabem.

* Adaptado de RIZZI, Nina. Posfácio, In: FERNANDES, Hercília (org.). Maria Clara

- universos Femininos. Várias Autoras. São Paulo: LivroPronto, 2010.

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Nina Rizzi (São Paulo/SP, 1983). Escritora, vive atualmente em Fortaleza/CE. Formada em Artes Dramáticas e História, especialista em Arte-educação e mestranda em Letras. Participa de diversas antologias, revistas e suplementos literários. Arrisca-se em traduções do espanhol e francês e em videopoemas. É uma das escritoras suicidas [www.escritorassuicidas.com.br]. Lançou em 2012 tambores pra n'zinga, pelo selo Orpheu/ Ed. Multifoco. Edita a Revista Ellenismos — Diálogos com a Arte [http://http://ellenismos.com], e escreve seus textos literários no quandos [http://ninaarizzi.blogspot.com].

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