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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO) CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE PRIMEIRA VERSÃO ANO V, Nº209 SETEMBRO - PORTO VELHO, 2006 Volume XVII Setembro/Dezembro ISSN 1517-5421 EDITOR NILSON SANTOS CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL - Geografia MIGUEL NENEVÉ - Letras VALDEMIR MIOTELLO - Filosofia Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows” deverão ser encaminhados para e-mail: [email protected] CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO TIRAGEM 150 EXEMPLARES EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA ISSN 1517-5421 lathé biosa 209 UMA FEITICEIRA NO SÉCULO XX Nilza Meneses PRIMEIRA VERSÃO

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO

ANO V, Nº209 SETEMBRO - PORTO VELHO, 2006 Volume XVII Setembro/Dezembro

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia FABÍOLA LINS CALDAS - História

JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL - Geografia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO - Filosofia

Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for

Windows” deverão ser encaminhados para e-mail:

[email protected]

CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 150 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 209

UMA FEITICEIRA NO SÉCULO XX

Nilza Meneses

PRIMEIRA VERSÃO

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UMA FEITICEIRA NO SÉCULO XX Nilza Meneses [email protected]

Uma feiticeira no século XX traz a história da Josepha. Sua figura é deslocada, mas suas práticas naturais, feitas pela sua própria natureza, cujo sentido é

dado pela necessidade (Michelet, 1992).

O processo criminal contra Josefa Alves Correa pelo crime de feitiçaria ou bruxaria no ano de 1927 chamou a atenção por ser inusitado. Ele é atemporal

descontextualizado ao primeiro olhar e por isso mereceu esse estudo que nos proporciona penetrar um pouco no imaginário da cidade de Porto Velho no início do

século XX.

A justiça dos tempos modernos, somente em casos muito claros aborda a questão mística de frente. Muitas vezes, informações ligadas ao sobrenatural

chegam aos processos, mas são ignoradas, como pode ser observado em autos em que vítimas ou testemunhas fazem alusões ao mundo espiritual. As informações

são registradas nos depoimentos, porém não levadas em conta para o julgamento do processo.

As questões espirituais são tratadas como detalhes sem importância. Entre a justiça e a fé existe uma linha divisória e, mesmo assim, encontramos Cristo

crucificado, de braços abertos enfeitando a maior parte das salas de júri e plenários dos Tribunais, principais salas de visitas dirigidas ao povo.

Da observação de processos judiciais, entre os anos de 1912 a 1980, encontramos somente cinco casos nos quais o sobrenatural se apresentou de forma

explícita. Em outros casos em que aparecem informações sobre o assunto, elas são filtradas percebendo-se com o passar do tempo um maior distanciamento dos

julgadores nos fatos ligados com o além. Em alguns processos, testemunhas ou partes fazem alusão à “macumba”, justificando ou atribuindo alguma atitude como

fora do seu controle, como sobrenatural, porém não são levadas em consideração pelos julgadores.

O processo de Josepha é uma exceção. Nele a questão da feitiçaria e da bruxaria é o assunto principal motivador do processo que está dividido em duas

fases: a do inquérito policial e a da instrução em juízo. Após a argumentação da defesa, e alegações finais do Promotor de Justiça, foi proferida sentença pelo Juiz de

Direito e, ao final, o acórdão do Superior Tribunal de Justiça de Manaus.

Pelo seu tempo e espaço acabamos por pensar que o processo dela é apenas uma ficção, e vamos acabar por perceber que realmente sua figura foi uma

ficção construída por ela e por um grupo de pessoas que transitavam pela energia do desconhecido, do sobrenatural.

As histórias sobre mulheres queimadas em fogueiras ou enforcadas povoam o imaginário popular. Mulheres horrendas voando em vassouras, conhecedoras

de particularidades da alma humana; seres capazes de entrar em contato com o sobrenatural, espaço delimitado pela cultura judaico-cristã como inacessível aos

comuns.

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Sobre bruxaria e feitiçaria medieval, conforme observa Robert Mandrou em Magistrados e Feiticeiros na França do Século XVII, a história é escrita a partir

de peças e fragmentos e esboçam uma imagem global, citando como trabalho que melhor apreende todo o assunto o Malleus Maleficarum de Jacques Sprenger. Ao

abordar a posição da justiça sobre o assunto no século XVI e XVII, observa as divergências e como essa herança foi sendo transmitida (Mandrou, 1979).

Estar em contato com a espiritualidade, buscar alternativas de uma vida mais harmoniosa no planeta terra é estar voltado ao espaço denominado místico,

em que algumas características utilizadas de forma muitas vezes lúdica podem ser classificadas como feitiçaria, sendo essa classificação um conceito que sofre de

diversas interpretações (Nogueira, 1991).

O tempo de caça às bruxas que parece tão distante não foi desfeito com um passe de mágica, não foi desfeito como uma feitiçaria. Observam-se, ainda

hoje, outras formas de julgamento e de castigos impostos a pessoas que fogem ao que é considerado normal. De modo geral, diz-se que essas práticas hoje são

aceitas, muito embora exista ainda um dispositivo no Código Penal Brasileiro em vigor condenando a prática com outros nomes, como charlatanismo e curandeirismo,

encaixando-se algumas modalidades, se denunciadas pelas vítimas, de qualquer forma com vestimentas de fraude e observando a necessidade da existência de uma

vítima para efetuar a denúncia e a materialidade do crime.

As definições para práticas outrora consideradas bruxaria podem oferecer outros entendimentos. Aquilo que foi considerado bruxaria até o início do século

XVIII hoje é praticado como magia, como alternativas, interação com a natureza e, conforme afirma Rose Marie Muraro, na apresentação do livro O Martelo das

Feiticeiras, hoje a prática da bruxaria é um reinserção do feminino na História. As bruxas hoje são apenas figuras exóticas. Para algumas mulheres, ser bruxa nos dias

atuais tem características lúdicas ou até mesmo de luta feminina. Ser bruxa é ter poder, conhecimento, coragem. Uma bruxinha não é uma bonequinha, tem algo mais

que um corpinho bonito.

Conforme frisado por Muraro, o século XX trouxe outro entendimento sobre bruxaria. De modo geral, aos poucos foram minimizadas as marcas da

inquisição, sendo, hoje, apenas fatos que fazem parte da história. A própria forma lúdica como é colocada a questão da bruxaria hoje minimiza seus reais contornos,

embora permaneça no imaginário popular como no falar de Cervantes: “Yo no creo en las brujas, pero que las hay, hay”.

Apesar da mudança do ponto de vista, mulheres, ou mesmo homens que assumem postura de bruxos, são no mínimo consideradas pessoas exóticas,

diferentes, portanto, embora de maneira lúdica, não deixam de ser excluídas. Causam curiosidade, são consultados, procurados, lidos, mas não deixam de ser

punidos. Situar alguém à margem é uma arma, uma forma de punição desse tempo.

Embora tenha existido o século XIX para separar o século XIII do XX, no pensamento popular mantiveram-se firmes crenças e preconceitos religiosos. Cem

anos não foram suficientes para mudar o pensamento humano e o entendimento de poder queimar uma “bruxa”. Para cada momento histórico, fazendo uso das

armas disponíveis, elas sempre foram punidas.

Josepha, foi processada e julgada pela justiça (formas de punição do seu tempo). Em que pese não ser o mesmo tempo, de serem outras as

formas de punição, não quer dizer que também não tenham sido injustas e humilhantes. Acusada por feitiçaria foi denunciada (art. 157 do Código Penal da

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República), pela prática de um sortilégio em que buscava respostas para situações as quais o mundo prático não proporcionava leituras.

A instrução do processo, composto de denúncia, despachos, depoimentos e, por fim, uma sentença, oferece uma visão do pensamento das pessoas e da

justiça naquele momento. Proporcionam os documentos, observações quanto à situação da cidade que surgiu no começo do século com ares de modernidade, mas

que, ao final da década de 20 oferecia aspectos de uma cidade de far west, após a invasão e abandono.

Da análise do processo criminal, autuado após denúncia do Promotor de Justiça com base nos levantamentos feitos pelo Inquérito Policial, Josepha era uma

dessas mulheres que possuía intimidades com o mundo do sobrenatural. Seu crime materialmente foi o de ter colocado uma cebola cortada em cruz debaixo da axila

do cadáver de um homem a fim de descobrir quem o teria levado à morte através de feitiçaria. Seu crime possível seria o de assassinar o feiticeiro ou feiticeira que

teria enfeitiçado o defunto.

Ainda dentro da análise utilizada por Rose Mary Muraro sobre as questões estruturais utilizadas para enquadrar a feitiçaria, quanto às condições necessárias

para a bruxaria, os métodos pelos quais se qualificam a feitiçaria e as medidas judiciais a serem tomadas, observamos que, no caso específico de Josefa essas

orientações foram seguidas utilizando-se o promotor de justiça de raciocínio medieval na condução do processo.

Ser acusada por feitiçaria ou bruxaria no século XX é algo inusitado. Não obstante o Código Penal prescrevesse pena a práticas mágicas, e ainda estivesse

impregnada nas pessoas do senso comum a prática de séculos passados, no século da modernidade, aos homens da lei, já não se permitia tal comportamento ou

entendimento por conta da concepção republicana que primava pela separação da Igreja do Estado.

O comportamento do Delegado de Polícia e do Promotor de Justiça apresenta-se como de homens leigos, movidos por crenças ou por algum fato que não se

mostrou claro no processo, ou ainda por algum subjetivismo, por isso este trabalho se propõe a resgatar essas falas para buscar seus significados ao tempo e lugar

em que ocorreram.

A FEITICEIRA, SEU TEMPO E ESPAÇO

Quando me deparei com o processo de Josepha, foram muitas as inquietações e perguntas. Após o primeiro momento, tomada pela curiosidade por ter

encontrado um processo de feitiçaria, vieram indagações sobre as razões de ter sido uma mulher acusada por tal prática em pleno século XX.

Josefa Correia ficou conhecida como Zefa Cebola em face do processo criminal sofrido. Ela foi acusada como feiticeira num tempo em que já não se

acreditava existir feiticeiras, no entanto, na sua voz, reconhecemos tantas feiticeiras. Josepha é uma peça documental. Um processo de menos de 100 páginas, datado

do ano de 1927, na então vila de Porto Velho, que, na época, era composta do que sobrou do fracasso da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré.

Busquei na memória as imagens que me foram transmitidas pela vida das mulheres chamadas de bruxas. Tentei imaginar Josefa, uma mulher de 40 anos,

qualificada como paraibana, viúva, avó e procurei formatar sua aparência. Seria gorda, envelhecida e nariguda ou baixinha, pretinha, magrinha, sem dentes com a

pele castigada pelo sol como cabe a uma nordestina sofrida e viajada.

A voz de Josefa vem grafada pela mão do escrivão, ditada pelo delegado e pelo juiz. O advogado e o promotor de justiça parecem estar mais

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preocupados com suas próprias convicções religiosas ou algum outro motivo que estaria escondido no cotidiano da pequena vila; talvez a má fama de Josepha ou a

concorrência profissional dela com outras pessoas que exerciam a mesma função, ou seja, benzedeira ou curandeira.

Cabe aqui também a observação de que a atividade policial, às vezes, vai além da prisão de eventuais criminosos, tem pretensão maior, serve também para

o exercício de amplo controle social (Fausto, 2000). O fato de ser Josepha pessoa que gozava de prestígio ou de má fama na pequena vila era natural que o delegado

estivesse informado desses comentários e a instauração do processo ocorreu em razão de todo um clima já existente. Ela gozava de fama, boa e ruim. Suas

atividades, ao mesmo tempo em que ajudavam aos crédulos, incomodavam aos incrédulos.

Todas as testemunhas foram inquiridas sobre a má reputação de Josepha. As testemunhas não foram contundentes nos seus depoimentos. O diz que diz

que havia pelo bairro acabou ficando apenas como “fofocas”. Buscou o delegado demonstrar que esta perturbava a ordem da pequena vila, contudo no processo tudo

acabou sendo registrado como fofocas de cidade pequena ou de pessoas do mesmo meio.

Percebe-se que Josepha realmente era uma figura popular e que teve como função na sociedade do lugar o papel de benzedeira, rezadeira, enfim era uma

mulher pública. O que existe de concreto sobre ela é o processo criminal que aqui vamos trabalhar. Observamos em conversas informais com antigos adeptos do

Terreiro de Santa Bárbara, da qual faziam parte pessoas citadas no processo, como Jovita e Esperança Rita que na memória dos antigos membros da comunidade ela

é lembrada como uma pessoa que tinha poderes sobrenaturais.

Fica claro que o juiz ao proferir a sentença, fê-lo dentro da lei, fazendo uso da razão, no entanto, durante o desenrolar do procedimento percebe-se muito

mais emoções, questículas pessoais e crenças nas atitudes das testemunhas e de outras autoridades envolvidas que tentaremos desvendar relendo as peças do

processo e tentando saber mais sobre essa mulher que ainda é lembrada pelas histórias dos antigos.

As pessoas que fizeram parte do processo de Josepha possuem características curiosas. Jovita era adepta do terreiro de mãe Esperança Rita, a primeira e

mais famosa representante da religião afro no lugar. Comumente, pessoas praticantes da religião afro são identificadas como feiticeiros, e encontramos uma denúncia

de feitiçaria contra uma mulher, ao que tudo indica não praticamente de candomblé ou umbanda e que tinha como principais testemunhas contra ela, os praticantes

do candomblé.

Isso não descaracteriza Josepha enquanto feiticeira, até mesmo porque o perfil dela está enquadrado nas práticas de feitiçaria européia, e serve para

observarmos como os descendentes de negros, praticantes de religião de origem africana, possuíam entendimento preconceituoso com outras práticas, aos seus olhos

diferentes.

Vale observar as características pessoais das testemunhas. A exemplo de Josepha, que era paraibana, viúva, exercendo a profissão de serviços domésticos,

analfabeta, com 48 anos de idade, também Adriana era paraibana, exercendo a função de serviços domésticos, analfabeta, com 42 anos de idade e ainda Jovita que

também era analfabeta, natural do Maranhão, de serviços domésticos e tinha 47 anos de idade. Alexandrina, a viúva de Manuel, qualificada como solteira,

tinha 38 anos, analfabeta e natural de Minas Gerais. As três mulheres envolvidas diretamente no fato possuem muitas identificações, quanto à idade,

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profissão e condição social.

Antonio e Joaquim eram empregados da Prefeitura. Antonio estava diretamente ligado ao fato. Ele era o coveiro e amante de Adriana e foi a pedido dela

que retirou a cebola da axila de Manuel, impedindo, assim, a consumação do intento de Josepha que era de fazer morrer o feiticeiro que o teria enfeitiçado, isto é,

fazer justiça.

José Octavio e Julio eram empregados da Empresa Madeira- Mamoré. Eram mais jovens, possuíam entre 22 e 36 anos, foram ouvidos apenas na fase

policial, seus depoimentos foram dispensados em juízo. Em juízo, foram ouvidas apenas as mulheres, todas analfabetas e com a mesma faixa etária. Entre os homens,

apenas o coveiro foi novamente inquirido e as testemunhas cujos depoimentos tinham contradição e traziam dúvidas quanto ao depoimento do coveiro deixaram de

ter importância e foram ignorados. Ao ser interrogada, na polícia ela declarou seu nome, idade, origem, estado civil e profissão. Vivia no bairro Favela, que ficava nas

proximidades do Mocambo onde morava Dona Esperança Rita e a irmandade religiosa de Santa Bárbara local onde funcionava o terreiro de práticas mina-nagô que

tem uma importante trajetória na história de Porto Velho (Lima, 2000. Menezes, 1999).

Vale dizer que as décadas de 20, 30, 40, 50 e 60, alcançando os anos 70, as práticas religiosas umbandistas, foram consideradas como bastante presentes

em Porto Velho com a intensa atividade do terreiro de Santa Bárbara, assim como de outros terreiros, de outras práticas e outras tradições ou nações. Isso pode ser

observado no trabalho de Marco Antonio Teixeira, A Macumba em Porto Velho, estudo que apresenta a diversidade de casas e práticas cultuadas (Teixeira, 1994).

Usamos o termo “umbandistas” de forma generalizada. As práticas religiosas do Terreiro de Santa Bárbara e seus sucessores são de tradição mina-nagô

(Lima, 2000).

Os nomes que figuram entre as testemunhas de acusação são familiares. Fazem parte dos nomes encontrados entre os conhecidos de Dona Esperança Rita,

que era a líder religiosa do terreiro de Santa Bárbara no Bairro do Mocambo (Menezes, 1999). A própria Esperança Rita é citada no processo por uma testemunha

como possível sabedora dos dotes bruxísticos de Josepha.

Interessante observar que pessoas ligadas à Esperança Rita adeptos, freqüentadores ou conhecidos do terreiro de Santa Bárbara, portanto, no linguajar

comum, macumbeiros, podendo ser reconhecidos como feiticeiros, embora não afirmem, dizem que o povo dizia que Josepha era feiticeira. A ré reconhece-se como

benzedeira, rezadeira, assume o aprendizado e relacionamento com a magia, embora negue a sua prática para o mal, alegando que fazia uso apenas para ajudar

pessoas.

Apesar de não ter sido condenada, Josepha viu-se processada. Teve que comentar sobre atitudes pessoais de sua vida e ficou exposta nas audiências

públicas como uma feiticeira que enterrava criancinhas no quintal de casa para depois usar os ossos para fazer malefícios. Ela acabou, no imaginário da época,

envolvida nas artimanhas da magia, deparou-se com o ditado: o feitiço virou contra a feiticeira.

A partir do fato ocorrido com Josepha, podemos adentrar a outras particularidades dos acontecimentos religiosos na cidade de Porto Velho naquele

período.

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Desde o ano de 1914, é registrada a presença da “Macumba” em Porto Velho com a instalação do Terreiro de Santa Bárbara no bairro do Mocambo,

ocorrendo sisões entre os adeptos, tendo por conseqüência ocorrido o surgimento de outras casas (Lima, 2000), no entanto vamos observar que as práticas utilizadas

por Josepha se chocavam com as da casa de umbanda. Os adeptos do terreiro consideravam-na uma feiticeira e isso vamos poder perceber de forma clara ao

separarmos as práticas de feitiçaria européia da religião de origem afro.

E importante falarmos sobre o local do fato. No ano de 1927, a então Vila de Porto Velho era uma cidade abandonada após a decadência da borracha.

Era uma cidade que podemos imaginar como pós-guerra, pós-vendaval, casa depois da festa. Todos os que tiveram condições; os que puderam, partiram,

regressaram à origem. Sem os interesses econômicos da década anterior, a cidade tinha precária assistência médica e pouca era também a assistência da Igreja.

Porto Velho surgiu no ano de 1907 com a construção da ferrovia. Antes era apenas um porto, um ponto onde algumas imagens podem remeter até um

pequeno grupo vivendo provisoriamente. Surgiu em função da movimentação da ferrovia com bairros próprios para funcionários e trabalhadores da empresa e,

conseqüentemente, com vilas (Favela, Mocambo, Triângulo) que foram surgindo com a massa dos excluídos, desempregados, aventureiros e que assim permaneceu

até os anos 30 com a nacionalização da ferrovia que, mais tarde nos anos 40 foi escolhida como a capital do Território Federal do Guaporé.

Durante oito décadas, esteve ligada à cidade de Guajará-Mirim, que até 1943 pertencia ao Mato Grosso, pela linha férrea e a Humaitá no Amazonas pelo rio

Madeira. A vila de Porto Velho pertencia à época do fato ao Estado do Amazonas. Quando da criação do território parte de terras do Mato Grosso e parte do Amazonas

formaram o Território Federal do Guaporé, mais tarde território Federal de Rondônia e, por fim, no ano de 1982, criou-se o Estado de Rondônia.

Nos primeiros anos do século XX, quando da construção da estrada de ferro, o Estado ofereceu uma estrutura bastante presente, criando um atendimento

judiciário com atendimento à população. Com o declínio da borracha, essa estrutura enfraqueceu. Ao final da década de 20, a Comarca de Santo Antonio do Rio

Madeira transfere-se para Guajará-mirim. A então vila de Porto Velho conta com o atendimento judiciário, sendo prestado pelo juiz da Comarca de Humaitá distante

dois dias em viagem de barco.

Conforme relatam os viajantes do período descrevem a vila viveu de forma muito intensa os seus primeiros tempos:

Porto Velho, então uma pequena vila, se viu da noite para o dia invadida por uma avalanche negra, que se exprimia num idioma incompreensível para os

nativos. Vinham em busca do trabalho que lhes havia oferecido os agentes da companhia que os contratara em suas ilhas (Prado, p. 166).

Com a decadência da exploração da borracha e a falta de interesse das autoridades a vila acaba por oferecer uma imagem deprimente:

Uma avalancha ruidosa de mulheres de vida airada invadira aquela zona, onde igualmente acamparam e até 1920 foram vistas, notando-se entre elas as

representantes das colônias as quais, em companhia de outros membros da família, ao perderam seus chefes, haviam sofrido as dolorosas contingências a que então

o mau destino as arrastara, depois de inúteis tentativas de obter passagem para regressar aos antigos lares e que, voltando do porto desiludidas e vencidas,

acabavam por aderir à bacanal desenfreada a que a desgraça as lançara irremediavelmente. (Prado, p. 167)

Após essa imagem, a vila chegou ao final dos anos vinte como um lugar abandonado, um local de desesperança, propício para o surgimento da

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figura da feiticeira (Michelet, 1992).

Vale lembrar que o bairro onde viviam algumas das testemunhas e a ré, denominado Bairro Favela, era vizinho ao Bairro Mocambo. Os dois bairros eram

locais que abrigavam a classe trabalhadora, os pobres e desempregados. O processo informa que tanto a ré Josefa como Esperança Rita moravam no bairro da Favela.

Conforme outros estudos realizados, Dona Esperança residia no bairro do Mocambo próximo ao bairro Favela. Possivelmente, as informações do processo são em face

de os dois bairros ficarem próximos e, por isso, foram confundidos, ou de que tanto um como outro pudessem ser Favela e Mocambo em razão da característica dos

seus habitantes. Essa confusão também foi percebida em historiadores regionais que, ao informar sobre o bairro do Mocambo referem-se como sendo o bairro Favela,

talvez pelas mesmas observações, quanto à proximidade e característica dos moradores (Menezes, 1999).

Dentro desse contexto, viviam trabalhadores da borracha, desempregados, viúvas e órfãos, aqueles que ficaram, que não puderam retornar à origem. Com

a queda da borracha ocorreu o desinteresse econômico e político, ficando a região que compreendia os vales do Madeira e Mamoré em abandono, vindo a receber o

contingente de trabalhadores na década de 40 quando houve o segundo ciclo da borracha.

LEITURA DAS PEÇAS DO PROCESSO

O historiador Gustav Henningsen, ao escrever El abogado de las brujas, definiu a bruxaria como um crime impossível, sendo o papel da bruxa fictício, o que

Laura de Mello e Souza explica dizendo que, assim, a existência das bruxas aparece quando elas são perseguidas, sendo a imagem estereotipada criada pelos

caçadores de bruxas no corpo dos processos e, ao comentar a mudança dos discursos após o século XVIII na Europa, citando Ladurie, comenta que, mesmo após a

racionalização do aparelho judiciário, idéias antigas ainda permaneceram, sendo comum em campos e aldeias a perseguição contra possíveis feiticeiros (Souza, 1995).

Robert Mandrou, em Magistrados e Feiticeiros na França do século XVII, questiona o comportamento dos julgadores nos casos de feitiçaria e busca

respostas para a mudança ocorrida no século XVIII, observando que:

A delimitação exata que desqualifica o crime e o reduz pouco a pouco a simples delito cometido por escroques, charlatães ou ledores de boa sorte, fez-se

lentamente, penosamente mesmo: na primeira metade do século XVIII, muitos polígrafos eruditos discutem ainda sobre todas as questões, pilhando Lancre, Boguet e

Bodin, para demonstrar o erro dos magistrados; todavia, os falsos feiticeiros, charlatães e envenenadores, últimos herdeiros dos partidários de satã, não representam

mais do que os traços diluídos de uma antiga tradição definitivamente renegada pela magistratura (Mandrou, 1979).

Passando-se à época moderna, outras leituras levam ao entendimento de que a perseguição é feita contra a cultura popular, contra as tradições populares,

como forma de expropriar esses saberes, uma luta entre a cultura erudita e a popular (Souza, 1995).

Essas observações encaixam-se perfeitamente no caso de Josepha. De certa maneira, ela foi prejudicada, sua imagem real foi abafada pela erudição. O

raciocínio moderno do juiz vem colocar uma pedra por sobre a história. Para a razão, Josepha foi insignificante, seu crime impossível de ser, no entanto, no imaginário

popular sua existência ficou registrada.

Observamos que, ao perguntar aos mais velhos da comunidade de Santa Bárbara, Josepha é lembrada como uma pessoa que possuía poderes.

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Sobre ela contam-se histórias. Na memória dos adeptos do terreiro de Santa Bárbara, que ouviram falar por suas tias e avós, Josepha era uma mulher de poderes

extraordinários.

Na condução do processo, poderiam as autoridades ter dirigido os depoimentos de Josepha, pois ela era analfabeta. Poderíamos ainda lembrar as

observações feitas por Boris Fausto em Crime e Cotidiano, sobre os procedimentos jurídicos quando diz que a voz do acusado no processo é uma voz limitada ou

suprimida, (Fausto, 2001). Porém, nos dois momentos, em que foi inquirida, sua fala não apresenta insegurança. Seu depoimento no inquérito policial é mais longo,

em juízo parece mais contida. Ela se assume enquanto o que disseram que era, não nega ter feito aquela prática e reconhece que sabia o que estava fazendo. Nega

sua condição de feiticeira, mas tem consciência de sua condição de conhecedora de práticas mágicas, o que assume sem culpas ou medos. Principalmente medo, não

se percebe aquele frio que corre a espinha dos réus em frente do delegado ou juiz. Não nega sua fé como ocorre às vezes com pessoas que fazem uso de práticas

mágico-fetichistas com medo do preconceito.

Josefa, ao contestar o depoimento de uma testemunha, defende-se da pecha de feiticeira, alegando que suas práticas buscavam apenas fazer o bem. A sua

fala é de quem sabia o que estava fazendo. Suas atividades, inclusive atendendo a pessoas importantes da comunidade, são apresentadas de forma muito natural. Em

parte do depoimento afirma:

que contestava o depoimento da testemunha na parte que diz que Adriana estava na casa do defunto; que de facto colocou a cebolla não para efeito de

feitiçaria, mas para descobrir quem fizera mal a Manoel dos Santos ou Manoel Peias, porque a cebolla tem essa virtude de tirar maus habitos, descobrir factos ruins, e

foi nessa intenção que ella collocou essa cebolla; que nunca fez isto e só agora o fez porque tem filhos e deseja o bem para todas as pessoas; que tem tratado muitos

doentes aqui como, em casa do Snr Manoel ......, Julião Ruiz e em Manaos, como em Rio Branco tem muitas pessoas que conhecem a denunciada, não como

feiticeira...

Ela era analfabeta conforme consta da qualificação, mas a sua fala vem apossada das tantas vozes que a precederam. E apoderados da sua fala, do que ela

teria afirmado na delegacia e em juízo está grafado: “pela ré foi dito que ella tem tratado os doentes com hervas, capim santo, capitim, mucuracá, etc”.

Essas práticas faziam parte da natureza da mulher. Nascer fada e ser transformada em feiticeira é tendência própria da mulher e seu temperamento

(Michelet, 1992).

É da própria natureza feminina a relação com as práticas mágicas, e Josepha tinha clara essa natureza da feiticeira de Michelet. Sua fala deixa transparecer

suas práticas e aprendizados sem culpas ou medos. Pensamos que na hora de grafar as palavras de Josepha, elas tenham passado pelo filtro seletivo do juiz, pelas

interdições (Foucault, 1999), mas, mesmo assim, vem naturalmente quando ela diz:

...que de facto colocou a cebolla não para efeito de feitiçaria, mas para descobrir quem fizera mal a Manoel dos Santos ou Manoel Veras, porque a cebolla

tem essa virtude de tirar maus habitos, descobrir factos ruins, e foi nessa intenção que ella collocou essa cebolla; que nunca fez isto e só agora o fez porque

tem filhos e deseja o bem para todas as pessoas; que tem tratado muitos doentes aqui...

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Quando da denúncia, o Promotor Público baseou-se no relatório do Delegado de Polícia e nos depoimentos obtidos no inquérito policial. O crime de

Josepha capitulado no artigo 157 do Código Penal da República, assim dizia:

Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usando talismãs e cartomancias, para despertar sentimentos de ódio ou amor, incultar curas de moléstias

curáveis ou incuráveis, enfim, para fascinar ou subjugar a credulidade pública: Penas – de prisão celular por um a seis meses e multa de 100 a 500.000 (réis).

Josepha praticara sua magia fazendo uso de uma cebola, utensílio muito utilizado em práticas mágicas. Buscou um resultado, o de devolver a energia

recebida, ou seja, faria morrer quem tivesse matado por feitiço a Manoel. Portanto, de acordo com o previsto na lei, não há dúvida de que ela estava perfeitamente

enquadrada no possível crime e mais havia por finalidade com a sua ação a consumação de um outro crime: o de matar a pessoa que teria enfeitiçado Manoel. Assim,

havia toda uma trama envolvendo tanto Josepha como Adriana e Jovita que passaram a interagir com a história fazendo parte da provocação da energia a que tudo se

propunha.

Para acusar Josepha, o Promotor de Justiça apega-se às palavras de Jovita que era membro de uma casa religiosa, de práticas também consideradas

mágicas, o Terreiro de Santa Bárbara. Jovita é quem afirma que:

Quando por occasião da inhumação de Manoel dos Santos, Jovita Rodrigues, que presenceara as manobras da feiticeira, solicitou ao coveiro de nome

Antonio Gomes de Souza, para que retirasse a referida cebola do ataúde. Antonio attendeu á solicitação de Jovita e descendo á cova, abriu o caixão, retirando debaixo

do braço do cadaver, a alludida cebola.

Também e Jovita quem informa que: “... o povo diz que a ré é bruxeia ou feiticeira, mas ella testemunha não sabe quem disse”.

A testemunha Adriana parece ser nos autos a pessoa mais interessada em prejudicar Josefa, parece até a pessoa que poderia ser prejudicada, caso a cebola

surtisse os efeitos propostos pela ré. Ela é quem informa da má fama da ré e das pessoas que falavam que esta era feiticeira:

...que não sabe se a Ré faz feitiçaria, que certa gente da favella tem medo da ré, isso a testemunha sabe é por intermedio da Senhora Esperança Rita, de

Juvita Rodrigues e outras pessoas residentes na favella, nesta Cidade.

Essas pessoas citadas, como Esperança Rita e Jovita Rodrigues, eram pessoas conhecidas na vila. Esperança Rita foi a primeira “mãe de santo”, foi quem

trouxe de Codó no Maranhão para o lugar o primeiro terreiro, denominado Recreio de Iemanjá e, após, Santa Bárbara, de tradição Mina Nagô que funcionava na vila

desde o ano de 1916 (Lima, 2000). Jovita era também adepta do referido terreiro, portanto acusar alguém por práticas mágicas não parece razoável. Poderia estar

havendo rivalidades, intrigas, entre uma casa e outra, no caso a de Dona Esperança Rita que era a líder espiritual do Terreiro Santa Bárbara, e Josepha que, apesar de

não estabelecida ou reconhecida enquanto líder espiritual era conhecida e reconhecida enquanto pessoa que praticava magias e, conforme ela mesma afirma em seu

depoimento, aprendera na cidade de Manaus.

Quanto à acusação de feitiçaria, o terreiro de Dona Esperança Rita também foi alvo de acusações e perseguido, conforme informa um colaborador

em trabalho de pesquisa sobre o bairro do Mocambo:

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A Dona Esperança tinha uma força enorme. Quando o barracão era aqui, eu tive a oportunidade de ver uma cena. O delegado, na época, mandou uns

policiais para acabar com o terreiro, pois foi muito perseguido o povo do terreiro, alegavam feitiçaria, nunca conseguiu nada, mas reclamavam. (Chicorote. In: Com

feitiço e com Fetiche. Nilza Menezes. UFPE. 1999).

Chicorote, alcunha pela qual era conhecido Francisco Bezerra, narra ainda fatos ocorridos atribuídos a Dona Esperança, como o desaparecimento do Tenente

Fernando, um militar que havia ofendido a mãe de santo e o terreiro e também o caso dos militares que queriam fazer parar o batuque e que foram possuídos por

“entidades”, acabando por desmaiar de tanto dançar (Menezes, 1999).

Atitudes como essas também são consideradas mágicas, portanto as pessoas que se disseram incomodadas com as atitudes de Josepha também poderiam

ser enquadradas como feiticeiros.

Nenhuma prova concreta, nenhum depoimento categórico afirmando ter visto ou de alguém que tenha sido lesado por Josepha, foi apresentada no

processo. O único crime real contra ela era o fato de haver colocado uma cebola debaixo da axila do defunto com o intuito de se descobrir quem o havia enfeitiçado e

levado à morte.

Uma observação do advogado de Josepha deve ser levada em conta. Ele diz que os atos praticados pela ré eram sem importância, que ninguém, nem

mesmo o defunto, deu importância à cebola colocada em sua axila. Isso não é verdade, uma vez que as pessoas tanto se incomodaram que provocaram a instauração

do processo. Se realmente não tivessem sentido nenhum incômodo ou medo, não teriam dado importância. Tanto Adriana como Jovita, pelas atitudes tomadas,

inclusive pedindo ao coveiro para retirar a cebola, demonstram que sentiram algum receio.

Foram apenas algumas poucas pessoas envolvidas no processo, mas, passados oitenta anos, na comunidade de Santa Bárbara, sua figura é lembrada como

aquela que possuía poderes sobrenaturais. Não há dúvida de que as pessoas envolvidas diretamente, como Jovita, Adriana e o coveiro Antonio, temiam os poderes de

Josepha uma vez que tomaram a providência de denunciar e de retirar a cebola, acreditando que seria descoberto o criminoso, o feiticeiro que havia enfeitiçado e

levado à morte aquele homem. É interessante observar que as pessoas envolvidas em denunciar e providenciar a retirada da cebola eram ligadas a um terreiro, uma

casa onde se praticava uma religião afro. Interessante também o fato de que Adriana, ao que tudo indica amiga ou bem conhecida de Jovita, foi quem mais ficou

apavorada com o ato praticado por Josepha. Não teria ela feito trabalhos ou pedido trabalhos contra o defunto? Tanto Adriana e Jovita ficaram incomodadas. Elas

fizeram o possível para a magia não se completar. Jovita era do terreiro de candomblé de Dona Esperança Rita, e quem sabe, talvez tenha Adriana usado os serviços

da casa.

Se levarmos em consideração a finalidade da prática, ela se cumpriu. Josepha, ao colocar a cebola na axila do defunto, fê-lo dizendo que, assim que a

cebola fosse inchando, a pessoa que tivesse causado mal a ele também incharia e morreria como ele, inchado. Podemos acreditar que Adriana, desesperada, tenha

procurado as pessoas do terreiro e o coveiro para que a cebola fosse retirada e, assim, a pessoa que tivesse feito mal a Veras não viria a sofrer. Conforme

declarações do coveiro, foram Adriana e Jovita quem o convenceram a praticar o ato. O interesse delas leva-nos a pensar que poderiam elas conhecer a

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pessoa que tinha enfeitiçado o falecido. Talvez a própria Adriana, tenha feito ou desejado coisas ruins ao falecido.

A testemunha Octavio, na fase policial, diz ter visto Antonio retirar a cebola e colocar no bolso. Antonio diz ter jogado fora, que retirara a cebola a pedido de

Adriana, que em todos os momentos teve a orientação e acompanhamento de Jovita. A cebola, objeto do crime, desapareceu. Teria Antonio entregado a cebola a

Adriana e Jovita para que desmanchassem o feitiço?

As relações que envolviam essas pessoas não aparecem no transcorrer do processo, mas todas elas estavam ligadas de alguma forma. Mesmo levando em

consideração que na então pequena vila, ao ocorrer uma morte, todas as pessoas poderiam interessar-se e ter curiosidade em ver, até porque a morte causa

comoção; e pessoas que nem mesmo conhecem o de cujus, costumam visitar, participar do velório e até mesmo envolver-se por solidariedade com a família do morto.

A observação de Rimbaud é lembrada: “As feiticeiras jamais falam tudo que sabem e que nós ignoramos”. Nenhuma das testemunhas falou tudo que sabia.

Era difícil fazer certas afirmações, até porque “a condição da feiticeira é fictícia, é uma criação mental, passa a existir a partir do momento em que se fala sobre elas,

proliferam...” (apud: Souza, 1995).

Não é só Josepha a ré do processo, a feiticeira. Todas as mulheres envolvidas são suspeitas, todas praticavam, de alguma forma, a magia. Esperança Rita,

citada como sendo pessoa que conhecia os poderes maléficos da ré, era uma mãe de santo, a mais famosa do lugar, ocupou o cargo de primeira líder de práticas

afros na localidade, permanece viva na memória dos adeptos depois de duas gerações.

Adriana diz que ficou impressionada com a prática de Josepha. Tenta dar a entender um sentimento de preocupação, mas porque estaria ela preocupada,

que interesse tinha nos desdobramentos, saberia ela quem era a pessoa que poderia vir a sofrer, caso surtisse efeito a magia de Josepha?

Tanto o Delegado que autuou o inquérito policial como o Promotor de Justiça que ofereceu denúncia queriam provar que Josepha era uma pessoa maléfica

à sociedade da vila, portadora de poderes sobrenaturais e de má índole. Eles possuíam o entendimento colocado por Mandrou ao observar os elementos constitutivos

que levava no século XVI a histeria da caça às feiticeiras:

....baseava-se em crença cristã e estava fundada ao mesmo tempo sobre a tradição eclesiástica e sobre os inumeráveis exemplos de uma jurisprudência

sem falhas; uma experiência visível, oferecida a todos, do processo judiciário que implica consenso fácil e todos os participantes, juízes, testemunhas e acusados;

enfim e sobretudo sentenças e confissões, fogueiras confiscos, representando o julgamento de Deus e dos homens, a apresentar o melhor testemunho em favor do

crime.

Buscaram demonstrar que Josepha causava pânico, que as pessoas tinham medo dela e que não possuía conduta cristã. A esse respeito ouvimos outras

histórias sobre Josepha. Ela tinha a fama de ser possuidora de poderes, tendo, segundo pessoas que dela ouviram falar sido dito de que apenas com o toque das

mãos teria levado à morte uma mulher da qual não gostava. As testemunhas que fazem referência à energia do mal, do feitiço, do sobrenatural de Josepha fazem

relação de que quem sabia dos poderes de Josepha era Dona Esperança Rita. Para efeito de entendimento geral e é importante repetir que mãe Esperança

também era uma feiticeira, era a mãe de santo do terreiro de Santa Bárbara, e sobre ela pesa o caso da morte do tenente Fernando, episódio ocorrido em

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face de ter este furado os tambores do terreiro e mãe Esperança lançou sobre ele inúmeras ameaças e pragas, tendo este desaparecido misteriosamente na mata.

Não seria isso também feitiço? È uma pergunta que se faz, embora sem querer entrar no mérito de ter sido realmente mãe Esperança quem provocou o

desaparecimento do tenente, até porque existem outras versões sobre o assunto, e não é esse o nosso objeto de pesquisa.

Assim como sobre Josepha pesava a acusação ou mexericos de alguns ensandecidos, na maioria, pertencentes a outro grupo religioso da mesma linha,

também sobre Dona Esperança Rita muito se falou na vila, sendo também perseguida em alguns momentos (Menezes, 1999).

Poderiam ser apenas rixas entre terreiros, embora, como dito, não conste que Josepha fosse dona de terreiro ou coisa do gênero. Como ela mesma afirma

efetuava tratamentos espirituais, fazia garrafadas, praticava, como observou o Promotor de Justiça, “manobras”. Suas práticas, ainda conforme Michelet, tinham como

finalidade encontrar respostas e enganar os males. Josepha como feiticeira tomou forma no tempo da desesperança, vivendo em uma cidade pequena, uma vila,

abandonada no meio da floresta amazônica.

Em face dos comentários de populares ou de possíveis rixas de terreiros, é certo que Josepha realmente, embora para pequena parcela da população e de

forma lúdica, era detentora de poderes sobrenaturais.

Pela classificação de Laura de Mello e Souza, de que feiticeira é alguém que busca fazer o bem, sendo assim, Josepha era uma feiticeira (Souza, 1995). Ela

afirma que queria apenas ajudar as pessoas, fazia uso de práticas aprendidas frente às dificuldades e momentos difíceis da vida. A morte é um desses momentos com

o qual mantemos uma relação durante toda a vida e que nunca estamos preparados.

O processo de Josepha não é único no período, muito embora seja onde a questão foi colocada de forma mais explícita. Na Comarca de Santo Antonio, na

mesma década, encontramos processos em que o sobrenatural é colocado em questão. Em uma demanda entre dois comerciantes por questões econômicas, o

incêndio de uma padaria é atribuído a práticas de bruxaria.

Há também, do mesmo período, o caso da jovem que mantinha um relacionamento com um espanhol e que, em sessão espírita, o fato teria sido informado

pelas “entidades”, acabando por tumultuar o processo e ser o réu absolvido.

O caso da mulher de nome Delfina que, presa na cadeia pública de Guajará-Mirim no ano de 1931, denunciou o carcereiro por assédio sexual. Após as

investigações, levou-se a acreditar que a ré era uma lunática obsedada envolvida em práticas mágicas, portanto pessoa a quem não se deveria dar crédito. O inquérito

foi arquivado, e a ré continuou presa.

Quer dizer que, no período, acusar alguém por práticas mágicas, alegar que uma mulher era feiticeira ou lunática poderia ser uma forma de justificar atos

contra esta, e, por fim, alegar que esse tipo de fenômeno era de atribuição da psiquiatria, e não do juízo.

A linguagem utilizada até o final da década de 20 é bruxedos, feitiços. A partir das décadas de 50 e 60, observa-se mudança da linguagem nos processos ao

fazer referência às questões místicas: a palavras bruxaria ou feitiçaria são substituídas por macumba ou espiritismo.

Os contatos de aprendizado de Josepha eram com as mulheres de Manaus, onde diz ter aprendido algumas práticas como a da cebola com outras

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mulheres que traziam na natureza a essência de feiticeiras como Josepha. Ela deixa transparecer a sua essência ao falar das suas práticas de maneira natural, seus

aprendizados, suas intenções. Possivelmente, Josepha não fosse adepta do candomblé como as testemunhas Jovita ou esperança Rita que a consideravam uma

feiticeira, mas as práticas de todos tinham os mesmos fins. No terreiro de Esperança Rita também se faziam curas com banhos de ervas e outras práticas nas

chamadas mesas de cura (Lima, 2000).

Voltamos a recordar Rimbaud, quando se refere a uma feiticeira diz: “que nunca nos contaria o que ela sabe e que nós ignoramos”. O que mais teria

Josepha para nos contar que não conseguiram o juiz, o promotor e o delegado extrair da sua fala?

Segundo informações de pessoas que dela ouviram falar, Josepha era possuidora de poderes sobrenaturais; era pessoa capaz de matar com apenas um

toque de mão. Todo o desenrolar do processo deixa transparecer que, na Vila Josepha, era conhecida por seus poderes e práticas e que, digamos, sua fama, era de

conhecimento da pequena população do lugar.

Conforme definições antropológicas trazidas por Laura de Mello e Souza, “feiticeira é aquela que invoca forças maléficas e trabalha com elas e a bruxa é

aquela que representa o próprio mal” (Souza, 1999). Assim, Josepha era uma feiticeira realmente, ela buscava, invocava forças do além para conseguir efeitos

mágicos.

Robert Mandrou define o feiticeiro como sendo uma criatura do Diabo através do pacto e diz que aquele que, na condição de mágico, conhece os segredos

da natureza, as propriedades ocultas das plantas, dos metais e das pedras e que pode também produzir fenômenos admiráveis não é um feiticeiro, uma vez que ele

não tem firmado o pacto com o Diabo renunciando a Deus. Para Mandou, a magia natural é diferenciada da magia adquirida.

Muito embora ele diferencie pela prática e não pela designação, entendemos que, assim como Robert Mandrou, Laura de Mello e Souza entende que

existem dois lados na feitiçaria.

Em alguns momentos do processo foram usados termos como bruxedos, bruxaria, mas, ao final, acabamos por acreditar que Josepha era realmente uma

feiticeira, uma mulher que pela sua natureza e pelas contingências, aprendera a transitar pelo mundo mágico (Michelet, 1992) como forma de preencher as falhas da

razão.

Pela extensão do processo que sofreu percebemos que ela foi inventada. O seu crime foi inventado dentro do próprio espaço da feitiçaria por pessoas que

transitavam entre o mundo da razão e da emoção e tanto incomodou que o seu ato tomou a proporção de um processo judicial. Havia um clima propício à atitude da

justiça. Do que se observa das falas das testemunhas ela era pessoa conhecida na pequena vila onde todas as pessoas se conheciam e tudo era comentado de boca a

boca.

Vale perguntar qual era a percepção de Josepha sobre os fatos e a realidade local ou ainda sobre questões de bruxaria ou feitiçaria. Possivelmente

nenhuma. Para ela, pessoa movida por fé cristã, ser feiticeira ou bruxa era abominável, suas práticas, no seu entender não são de feitiçaria ou bruxaria, são

apenas aprendizados dos quais se lança mão em momento de necessidade.

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A definição de que a feiticeira é alguém que pratica atos mágicos, que mantém uma ligação com o sobrenatural fazendo contatos com o sobrenatural ou

de que uma bruxa seria alguém que emana o próprio mal, não eram questões do entendimento dela. Praticar atos mágicos era como, no entender de Michelet, algo

exatamente ligado à sua natureza, que fora aprendendo por necessidade de sobrevivência e relacionamento de uma camada chamada cultura popular, que quer dizer

pertencer às classes subalternas ou excluídas.

Josepfa fazia parte dessa classe, a subalterna-excluída. Era uma senhora, viúva, nordestina que trabalhava como empregada doméstica numa pequena vila,

onde as oportunidades de trabalho eram bastante escassas. Aprender a fazer chás, banhos, simpatias era uma necessidade diária. Repassar e doar esses

conhecimentos e práticas era uma atitude natural. Eles sempre foram assim transmitidos. Até mesmo beneficiar-se ou obter recompensas acabam por serem

compreensíveis em razão da condição de necessidade da então ré.

Quanto a sua percepção dos fatos, vale observar que ela era uma pessoa pertencente a um grupo excluído da sociedade, marginalizado pela condição

social. Sua compreensão da estrutura do Estado era deformada e buscava com seus conhecimentos resolver seus próprios problemas. Para ela, Manuel havia falecido

em razão de feitiçaria e possivelmente, dentro desse espaço lúdico das práticas com as quais convivia, sendo ela conhecedora das pessoas e suas atividades, talvez

até tenha ouvido ou percebido algum comportamento por parte de Adriana e Jovita e por isso sabia que este tinha sofrido de interesse por parte delas de que viesse a

adoecer, sofrer e até mesmo a morrer. Manoel de Veras era amasiado com Alexandrina, Adriana era amásia do coveiro Antonio. Josepha e Jovita eram viúvas.

Todas as pessoas estavam envolvidas em relações liberais. Parece que havia entre Adriana e Jovita uma amizade, e, sendo Jovita praticante do Terreiro de

Umbanda de Dona Esperança Rita, poderia ela, a pedido de Adriana ter feito um “trabalhinho” para que Manuel viesse a sofrer e até mesmo a morrer uma vez que

preferiu unir-se a outra mulher. Josepha era amiga da mulher de Manuel e sabendo das possíveis atitudes de Adriana, resolveu ajudar do outro lado. Talvez Josepha

até soubesse de muito mais, e não tenha dito.

Rimbaud nos previniu contra elas alertando que elas jamais diriam tudo que sabem. É interessante observar que o pavor de Adriana e de Jovita era de que o

feiticeiro que havia enfeitiçado Manuel pudesse vir a morrer. Com a retirada da cebola acreditou-se ter interferido no resultado. O medo foi tanto que superou o medo

das conseqüências de tirar a cebola da axila do defunto. Seriam as conseqüências da consumação da magia maiores que a conseqüência de violar o cadáver? Vale

perguntar o porquê de tanto interesse em impedir o resultado, e vale lembrar não só para Josepha, mas também para Adriana, Jovita e o coveiro Antonio a alerta feita

por Rimbaud, de que uma feiticeira jamais noz diz tudo que sabe. Eles também não disseram tudo que sabiam. Antonio, o coveiro, foi um instrumento na mão das

duas feiticeiras, Adriana e Jovita. Foi a pedido delas que executou o trabalho de retirada da cebola, por certo gostava muito de Adriana, que talvez gostasse de

Manuel.

A questão que deu origem ao processo foi o fato de, por acreditar que Manuel houvesse morrido por feitiço ter feito fez com que Josepha tentasse descobrir

o autor do crime, praticando outro crime do qual foi acusada.

Um fato não observado é o de que Josepha teria dito que, colocando a cebola na axila do defunto, o autor da feitiçaria iria aparecer, uma vez que,

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assim que o defunto baixasse a sepultura e a cebola inchasse, também morreria quem o teria matado. Seria esse o medo de Adriana que o tempo todo esteve

incomodada com o risco?

Quanto à questão de diferenças entre feiticeira e bruxa, o que certamente não fizesse parte do entendimento de Josepha, e até porque afirmou em juízo

que não era uma feiticeira, vez que apenas fazia remédios benzia e trabalhava para o bem, devemos lembrar que essa conceituação de bruxaria e feitiçaria não era do

entendimento de Josepha. Ela não possuía esse entendimento conceitual e sobre ele encontramos algumas divergências.

Para Laura de Mello e Souza, a feiticeira lida com o sobrenatural, a bruxa emana o mal (Souza, 1995). Para Carlos Roberto Figueiredo Nogueira existem

controvérsias quanto à distinção (Nogueira, 1991). Para entendimento dos atos de Josepha, tomamos por base o conceito de Laura de Mello e Souza, e classificamos

Josepha como uma feiticeira, uma vez que ela lidava com o sobrenatural. Não era ela mesma a fazer o mal, mas sabia como fazer com que essa energia fosse

movimentada. Josepha era uma feiticeira que se encaixa naquela descrita por Michelet tanto por suas práticas como por suas necessidades.

Tomamos a bruxa como aquela mulher que, fazendo uso de elementos masculinos como a liberdade de ir e vir através de uma vassoura, do chapéu, do

nariz másculo, assumia o papel do homem frente a uma sociedade machista. A feiticeira de Michelet, ou ainda segundo a diferença oportunizada por Laura de Mello e

Souza, é aquela que busca uma ligação com o espiritual e que trouxe esse dom dentro da sua natureza feminina (Souza, 1995). Portanto, ser feiticeira é algo

feminino, mas de resistência. A mulher cumpre o seu papel de forma natural, por isso Josepha, que não sabia a diferença entre feiticeira e bruxa, negava sua condição

de feiticeira, porque para ela essa palavra tinha significado de bruxa. Mas, sem dúvida Josepha era como tantas mulheres do seu tempo, de antes e depois dela, uma

feiticeira.

A palavra bruxedo é usada no processo diversas vezes. As perguntas do delegado, do promotor e do juiz buscam enquadrar Josepha enquanto feiticeira e

bruxa. Misturam os conceitos e acabam por cair num crime impossível. Josepha não era uma bruxa, mas uma feiticeira e nem ela sabia disso.

As idéias, o pensamento de Josepha por meio dos autos é pouco conhecido. Pouco se sabe dela, afora suas informações de praxe no interrogatório, e as

perguntas respondidas nos depoimentos na polícia e em juízo passam pelo processo de filtragem normal nesses procedimentos, em que a pessoa é inquirida e a

autoridade dita ao escrivão as palavras do interrogado procurando manter um padrão de linguagem, de forma organizada e resumida. Josepha reconhece-se enquanto

pessoa que buscava relacionar-se com o mundo espiritual e que fora aprendendo com outras mulheres as suas práticas.

Ela só respondeu ao que perguntaram, na única vez em que pediu a palavra foi para contestar o depoimento de uma testemunha, o que demonstra que era

corajosa. De qualquer forma, ela oferece todas as informações que queriam dela. Não nega suas práticas, embora não se reconheça como feiticeira em face do seu

entendimento sobre o significado da palavra. Nega que tenha praticado magia negra, como o fato de usar ossinhos de crianças para praticar sortilégios. Ela está

negando sua condição de bruxa, diz não ser feiticeira, até porque para ela a palavra tinha outro significado, não considerava como feitiçaria o fato de lidar com o

mundo espiritual, preparar remédios e pequenos truques.

Nossa definição de feiticeira, a partir das observações de Michelet, é lúdica, natural, desprovida de culpas ou pecados. Quando Josepha diz que

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praticava alguns atos, mas que não era feiticeira, colocou o seu pensamento sobre o peso que essa palavra tinha para ela. Ela era alguém que, como entendia

Michelet, por sua própria natureza, possuía poderes sobrenaturais, conhecimento e dom para lidar com os espíritos. Como entendeu Gustav Heinegssen a sua

condição de bruxa foi criada pela imaginação das pessoas envolvidas no crime e de uma posição incômoda da justiça que poderia ser apenas o de assustar Josepha,

que não gozava de boa fama ou incomodava um grupo, o do terreiro de Santa Bárbara.

É interessante observar como pessoas que exercem certas práticas têm sobre elas olhar preconceituoso. Seria Josepha realmente uma pessoa cujas práticas

não eram lícitas ou suas atividades concorriam com outras pessoas, como Dona Esperança Rita, reconhecida e respeitada pelas autoridades locais. No terreiro de Dona

Esperança também se registra práticas de cura e tratamento das pessoas, assim como rituais de Mina, de origem afro (Lima, 2000), no entanto as práticas de Josepha

são entendidas como feitiçaria, coisas ruins. Conforme estudos já realizados, Dona Esperança também sofreu perseguições da Igreja e da polícia, não tendo nenhum

fato tomado as proporções do crime de Josepha, o que justificamos pelo fato de a Mãe Esperança Rita ter melhor trânsito com pessoas da elite social, tendo uma

prática mais próxima das pajelanças amazônicas, além da sua submissão, mantendo em seu espaço religioso uma capela, realizando festas e ofertando parte da renda

à Igreja Católica (Menezes, 1999).

Josepha possuía uma tradição dentro das concepções européias de feitiçaria, diferenciadas das práticas trazidas da África. Na tradição das religiões afro e

afro-brasileiro são os orixás e as entidades espirituais quem executam os trabalhos; na tradição européia, o papel da bruxa é exercido pela pessoa que com suas

“manobras”, como definiu o delegado e o promotor de justiça, busca um resultado. Foi essa característica na sua prática que faz pesar sobre ela o olhar de Jovita.

Conforme sua fala sobre o entendimento ou conhecimento de Dona Esperança Rita que era quem sabia sobre as práticas de Josepha, podemos entender como de

pessoa que concorria com o terreiro dela ou de pessoa a qual ela considerava não preparada para trabalhos espirituais por não pertencer a um grupo ou comunidade

onde são aplicados os ensinamentos.

Josepha usava seus conhecimentos como forma de sobrevivência, de relacionar-se e até mesmo de existir. Colocar seus poderes e conhecimentos ao dispor

dos outros vinha da sua própria natureza de interagir-se com o mundo a sua volta. Tirar proveito financeiro, ou moral ou até mesmo afirmar-se nas relações sociais

eram conseqüências naturais, era uma mulher, definida na feiticeira de Michelet, que buscava enganar os males.

Materialmente, o crime de Josepha foi o fato de ter colocado a cebola na axila do defunto: como frisou o advogado, o fato era sem importância, uma atitude

cientificamente sem nenhuma conseqüência. Somente a crendice popular, a ignorância, poderia incomodar-se com a atitude. Para o promotor de justiça, as pessoas

que tiveram conhecimento do fato acharam deram a entender nos seus depoimentos no processo judicial que acharam estranho colocar uma cebola debaixo do braço

de um defunto e manifestaram curiosidade. Há no promotor de justiça a preocupação em punir Josepha, e, em razão do descabimento do processo naquele momento,

resta-nos questionar os motivos que estariam influenciando para que isso ocorresse. Até que ponto as práticas de Josepha incomodavam realmente às pessoas, ou

quais as convicções religiosas e formação cultural do delegado e do promotor de justiça.

A função dessa feiticeira na vila seria o de resolver males físicos e da alma. Josepha, assim como o benzedor João Roiz Palha, citado por Laura de

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Mello e Souza em O Diabo na Terra de Santa Cruz, assume práticas como algo que aprendera, que vira sendo feito pelos mais velhos e, assim, passou a praticar

(Souza, 2000). As tradições dessas práticas são repassadas oralmente dos mais velhos para os mais novos. Pelos depoimentos de Josepha, percebe-se foi sua forma

de aprendizado.

Uma das questões da luta contra as feiticeiras foi a luta da ciência para se afirmar. A ciência questionava o espaço ocupado pelo saber popular, buscando

destruir a figura da feiticeira que durante mil anos foi o único médico do povo (Michelet, 1992). Josepha, fazendo uso de “manobras” como definiu o delegado, tentou

dar uma resposta que era de competência médica, que embora tenha atestado que Manoel faleceu em conseqüência de tétano, pode não ter deixado as pessoas

próximas satisfeitas. Ela tentou ainda ocupar o local do delegado, o de fazer justiça, ela tinha por finalidade castigar aquele ou aquela que teria causado a morte de

Manoel, e esse era o papel da polícia. O delegado agiu movido pela sua concepção cristã, era essa sua consciência. Ocorreu a denúncia, ele que, possivelmente, já

conhecia a fama de Josepha não hesitou em instaurar o procedimento, mas ainda temos outra leitura para a sua atitude. A atitude de Josepha era a de punir o

criminoso, papel de responsabilidade do delegado e ele pode ter-se sentido usurpado no seu papel pela feiticeira que oferecia a possibilidade de solucionar por meio

da magia, aquilo que ele não tinha meios para solucionar.

OBSERVAÇÕES FINAIS

Vivendo no século XX, Josepha com suas práticas e sua postura foi, sem dúvida, uma feiticeira. Ao negar essa condição, ela estava negando não sua função,

mas o peso da palavra.

Na verdade, ela negou ser bruxa ou feiticeira porque a preocupação era demonstrar que não praticava o mal. Fazer morrer a quem tinha feito alguém

morrer é a lei do retorno, função natural exercida por adeptos do mundo sobrenatural. Não é a pessoa quem faz, ela apenas organiza isso para a espiritualidade. É

função da feiticeira estabelecer a relação com o mundo espiritual, inclusive fazendo pedidos, intercedendo junto aos espíritos para que eles ajam no mundo dos vivos

fazendo justiças, punindo injustiças e realizando desejos.

As práticas, ou, como chamou o promotor de justiça nos autos, as “manobras” de Josepha são típicas da feiticeira de Michelet. Suas práticas são uma

herança natural herdada pelas mulheres. Suas relações com o mundo lhe oportunizaram esses conhecimentos, e suas necessidades imediatas levaram-na a colocá-las

em prática.

Num mundo onde as pessoas desejam mal aos outros, é natural que a natureza lhe devolva aquilo que ele praticou. Não é a feiticeira, aqui Josepha, quem

iria matar o feiticeiro que matou Manoel, mas a própria energia provocada pelo feiticeiro que matou Manoel voltaria fazendo justiça. A morte de Manoel, prematura,

injustificada para as pessoas próximas a ele, apesar de atestada pelo médico como tétano, conforme relatório do Delegado de Polícia, precisava ser vingada, Josepha

tinha a pretensão de dar respostas às falhas da estrutura da vila. O atendimento médico precário encontrava pela via do feitiço uma forma de castigar a um pretenso

feiticeiro, ou feiticeira, que teria praticado um crime. Dentro desse espaço de Josepha, Adriana Jovita e de tantos outros que acabam por estar de alguma

forma ou em algum momento excluídos, a solução é o estabelecimento de uma espécie de Estado paralelo. Tomam para si a necessidade de encontrar

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soluções médicas, policiais e de justiça.

Sem uma resposta prática às angústias, a possibilidade de ver a maldade do mundo ser devolvida é o que proporciona essas atitudes, e Josepha sem dúvida

foi movida pela necessidade de dar sentido (Michelet, 1992) aos acontecimentos num lugar cheio da desesperança, após o declínio econômico, vivendo no abandono.

A feiticeira da vila de Porto Velho, no século XX, não era diferente da feiticeira de Michelet nem das feiticeiras medievais. Sua existência foi criada pela

necessidade de dar sentido aos acontecimentos e ainda por mentalidades diversas construídas por continuidades, reproduzindo o pensamento de um grupo de

pessoas em um tempo e lugar.

BIBLIOGRAFIA BAROJA, Julio Caro. Las brujas y su mundo. Madrid: Aliança Editorial, 1966. DARNTON, Robert. O Grande Massacre dos Gatos. Rio de Janeiro: Graal, 1984. FAUSTO, Boris. Crime e Cotidiano. São Paulo: Edusp, 2001. FOUCAULT, Michel. Eu, Pierre Riviere que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão. Rio de Janeiro: Graal, 2000. ____________________A Ordem do Discurso. São Paulo: Loyola, 1996. GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. ___________________História Noturna. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. ___________________Mitos, Emblemas, Sinas. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. LIMA, Marta Valeria. Barracão de Santa Bárbara em Porto Velho-RO: mudanças e transformações das práticas rituais. Dissertação de mestrado do Programa Departamento de Antropologia Cultural da UFPE. Recife, 2000. Mandrou, Robert. Magistrados e Feiticeiros na França do século XVIII. São Paulo: Perspectiva, 1979. MENEZES. Nilza. Com feitiço e com fetiche. Recife/Porto Velho UFPE/UNIR, 1999. PRADO, Eduardo Barro. Eu vi o Amazonas. Departamento de Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1952. SOUZA, Laura de Mello. A Feitiçaria na Europa Moderna. São Paulo: Ática, 1995. ____________________ Inferno Atlântico. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. ____________________ O Diabo na Terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. MICHELET, Jules. A Feiticeira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992. ____________. A Mulher. São Paulo: Martins Fontes, 1995. MONTERO, Paula. Magia e Pensamento Mágico. São Paulo: Ática, 1990. Mallleus Maleficarum. O Martelo das Feiticeiras. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997. NOGUEIRA, Carlos Roberto F. Bruxaria e História. São Paulo: Ática, 1991. SILVA, Eduardo. Dom Oba II D’África, o Príncipe do Povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO

ANO IV, Nº210 OUTUBRO - PORTO VELHO, 2006 Volume XVII Setembro/Dezembro

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia FABÍOLA LINS CALDAS - História

JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL - Geografia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO - Filosofia

Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for

Windows” deverão ser encaminhados para e-mail:

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EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 210

SISTEMA NACIONAL DE AVALIAÇÃO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR – SINAES

Edilson Santos da Costa

Hipólito Ferreira de Alencar

José Américo dos Santos

Alessandra C. S. M. Dias

PRIMEIRA VERSÃO

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SISTEMA NACIONAL DE AVALIAÇÃO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR – SINAES1

Edilson Santos da Costa2

Hipólito Ferreira de Alencar3

José Américo dos Santos4

Alessandra C. S. M. Dias5

RESUMO

Este artigo apresenta uma síntese do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior – SINAES, instituído pela Lei 10.861/04. Trata-se de uma revisão bibliográfica - documental, redigida a partir da análise da legislação pertinente e de documentos do Ministério da Educação, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira e da Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior. Após breve histórico das iniciativas de avaliação da educação superior implementadas no Brasil desde a década de 70, o artigo apresenta os pontos principais dos instrumentos do SINAES, expondo sua importância para a formação de um referencial apto a subsidiar a tomada de decisões do Estado para a garantia da qualidade no processo ensino/aprendizagem. Por tratar-se de sistema em fase de implantação, não se tem a confirmação de sua eficiência. No entanto, a julgar pelas bases sobre as quais está constituído, verificam-se grandes possibilidades de sucesso.

PALAVRAS-CHAVE

SINAES. Avaliação. Educação Superior.

1. INTRODUÇÃO

Buscando sintetizar os conceitos e procedimentos envolvidos no novo sistema destinado à avaliação da educação superior no Brasil, realizou-se uma

pesquisa documental acerca do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior – SINAES, instituído pela Lei 10.861/04.

O tema, ainda incipiente, não se encontra comentado em livros, sendo poucos e de difícil acesso os exemplares dos documentos produzidos pelos órgãos

afins. Assim, para a produção do texto recorreu-se à leitura dessas fontes por meio eletrônico, acessando-as através dos sites da Comissão Nacional de Avaliação da

1 Artigo apresentado para fins de obtenção do título de Especialista em Metodologia do Ensino Superior, pela Faculdade São Lucas, Porto Velho-RO, em maio de

2006. Aprovado em Banca Examinadora multidisciplinar no dia 22/07/2006. 2 Bacharel em Direito; [email protected]

3 Bacharel em Direito; [email protected]

4 Bacharel em Direito; [email protected]

5 Pedagoga, Orientadora do Trabalho, Especialista em Metodologia do Ensino Superior pela Universidade Federal de Rondônia - UNIR, Mestranda em

Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente UNIR, Coordenadora da Comissão Própria de Avaliação da Faculdade São Lucas. – [email protected]

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Educação Superior – CONAES, no endereço http://portal.mec.gov.br/conaes/ e do Instituto Nacional de Ensino e Pesquisa – INEP, http://www.inep.gov.br/ além das

leis e portarias pertinentes.

Pela novidade do assunto e pela extensão de seus documentos, busca-se com o artigo oferecer à comunidade acadêmica um resumo das fases do SINAES,

com a respectiva legislação.

Para tanto, o texto inicia discorrendo sobre um breve histórico da avaliação da educação superior no Brasil desde as primeiras iniciativas - nos anos 70 -,

comentando sobre o Programa de Avaliação da Reforma Universitária – PARU, o Grupo Executivo para a Reformulação do Ensino Superior – GERES, chegando ao

primeiro grande programa de avaliação do ensino superior: o PAIUB – Programa de Avaliação Institucional das Universidades Brasileiras, finalizando essa primeira

parte com comentários sobre o ENC – Exame Nacional de Cursos.

Superada essa fase histórica, é apresentado o tema central, o SINAES, iniciando com sua previsão na Lei 9.394/96, Lei de Diretrizes e Base da Educação

(LDB), seguida de seu conceito, da legislação pertinente e da dinâmica de seu desenvolvimento. Continuando a explanação são apresentadas as particularidades do

novo sistema de avaliação: a Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior – CONAES, o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE, a

Avaliação Institucional, em suas fases interna e externa, finalizando com a Avaliação de Cursos de Graduação e os procedimentos finais, necessários à formação do

referencial da instituição avaliada.

Espera-se ter alcançado o fim almejado, oferecendo subsídio à compreensão desse novo sistema de avaliação que tem por escopo a busca e manutenção da

qualidade no processo de ensino/aprendizagem nas instituições de ensino superior.

2. BREVE HISTÓRICO DOS SISTEMAS DE AVALIAÇÃO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR NO BRASIL

A qualidade do ensino está vinculada aos investimentos, seja em recursos humanos ou materiais, realizados na área da educação em todos os seus níveis. O

Estado, aos poucos, tem entendido que as somas direcionadas a esse campo somente poderão surtir o desejado efeito se forem compreendidas as reais circunstâncias

em que se encontram as escolas brasileiras com seus professores e alunos, aliados à sua estrutura física e seus recursos didáticos.

Assim é que, há algumas décadas, começou-se a despertar para a necessidade de se obter esse quadro real, a fim de que o erário não fosse consumido com

iniciativas paliativas. Esse pensamento teve início na década de 70, quando a CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, inspirada no

modelo americano, instituiu a avaliação externa para os programas de pós-graduação, tendo as primeiras avaliações ocorrido no ano de 1977.

Em seguida, em 1982, instituições ligadas ao Ensino Superior, a exemplo da Associação Nacional de Docentes – ANDES, do Conselho de Reitores das

Universidades Brasileiras – CRUB e da Associação Nacional dos Diretores de Instituições Federais de Ensino Superior – ANDIFES, entre outras iniciaram uma discussão

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que expunha a necessidade de uma avaliação da educação superior que englobasse o ensino, a pesquisa e a extensão. Um processo avaliativo contínuo, que

contasse com a participação de toda a comunidade universitária, levando em conta o papel social da universidade.

Ao mesmo tempo o Estado buscava mudanças no ensino superior, uma revisão das diretrizes firmadas pela Lei 5540/68 que fixava as normas de

organização e funcionamento daquele nível de ensino. Nesse intento, em 1983 o MEC instituiu o PARU – Programa de Avaliação da Reforma Universitária que consistia

em um estudo da realidade das universidades a fim de subsidiar o Conselho Federal de Ensino a modificar a legislação então vigente. O programa, no entanto não

obteve apoio político e foi desativado em 1984, sem maiores resultados.

Findo o período dos governos militares, em 1985, teve início uma nova política para a educação. O Governo constituiu a CNRES – Comissão Nacional para

Reformulação da Educação Superior e, no ano seguinte, em desdobramento dessa iniciativa, instituiu o GERES – Grupo Executivo para a Reformulação do Ensino

Superior, cujo objetivo era, entre outros, controlar e definir instâncias para o sistema. Nessa nova proposta havia uma melhor articulação, utilização de indicadores de

eficiência e avaliação de cursos de graduação por especialistas, sendo que os resultados obtidos orientavam a gestão dos recursos.

Com a edição da Constituição de 1988, novos rumos foram cobrados para o ensino superior, impulsionados pelas disposições dos seus artigos 206, inciso VII

e 209, que instituem como princípio constitucional a garantia de ensino de qualidade, nas esferas pública e privada, além do artigo 37 e seus incisos, que relacionam

os princípios basilares da Administração Pública: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, impondo assim tais normas às entidades públicas de

ensino superior.

Assim, em 1989 e 1993 o MEC promoveu seminários sobre avaliação institucional, ouvindo organizações estrangeiras. Em seguida, no mesmo ano de 1993 a

ANDIFES constituiu um grupo para a elaboração de uma proposta de avaliação, tendo esses estudos resultados na elaboração do primeiro grande programa de

avaliação do ensino superior: o PAIUB – Programa de Avaliação Institucional das Universidades Brasileiras.

2.1 O PAIUB

Neste programa de avaliação a educação era entendida como um bem público. O PAIUB tinha como características principais a conscientização dos

segmentos envolvidos da necessidade de avaliar, portanto era de adesão voluntária. Buscava a auto-crítica para proporcionar a almejada qualidade do ensino superior.

Não tinha caráter punitivo. Instituía um ranqueamento das instituições.

Na apresentação do programa o MEC observou que o PAIUB procurava considerar:

"os diversos aspectos indissociáveis das múltiplas atividades-fim e das atividades-meio necessárias à sua realização, isto é, cada uma das dimensões-ensino, produção acadêmica, extensão e gestão em suas interações, interfaces e interdisciplinaridade" (MEC/SESU apud Lopes, 1999, p. 1).

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Eram estabelecidas três fases centrais para o processo a ser desenvolvido em cada universidade: Avaliação Interna, realizada pela instituição, com a

participação de todas as instâncias e segmentos da comunidade universitária; Avaliação Externa, realizada por comissão integrada por pessoas de reconhecida

experiência em educação superior, e, ainda, por pessoas com elevado reconhecimento em suas respectivas áreas de atuação; e Reavaliação, etapa que propunha a

consolidação dos resultados da avaliação interna (auto-avaliação), da externa e da discussão com a comunidade acadêmica, resultando na elaboração de um relatório

final, que subsidiava a revisão do Projeto Pedagógico Institucional e do Projeto de Desenvolvimento Institucional.

Como legislação referente ao PAIUB, tem-se os Decretos n.º 2.026, de 10 de outubro de 1996, e n .º 2.306, de 19 de agosto de 1997; e Portaria MEC n.º

302, de 07 de abril de 1998.

2.2 O EXAME NACIONAL DE CURSOS

Apesar de o PAIUB, na opinião de vários estudiosos, ser uma ótima iniciativa, a política de avaliação do ensino superior tomou nova direção, a partir de

1995. À época, já se teciam as discussões finais para a nova LDB e, no mesmo ano, o MEC instituiu o Exame Nacional de Curso – ENC, o qual ficou conhecido entre a

comunidade acadêmica como “provão”.

Diferente do PAIUB o ENC não nasceu de estudos dos profissionais envolvidos com o ensino superior, mas sim de uma imposição legal. Esse sistema, que

perdurou entre 1996 e 2003, consistia em avaliações aplicadas aos alunos dos últimos períodos dos cursos de graduação, com vistas a, através dos resultados,

estabelecer um conceito para as instituições.

Dessa forma o Exame Nacional de Cursos preocupava-se com os resultados e não com o processo ensino/aprendizagem.

O ENC sofreu grande resistência por parte dos alunos de várias instituições. Esse fator aliado às disposições da Lei 9394/96 - nova LDB – levaram à

criação de um novo sistema de avaliação do ensino superior.

Nessa intenção, com a vigência da Lei 10.861, de 14 de abril de 2004, surgiu o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior – SINAES, o qual está

com suas diversas fases em implantação.

3. O SINAES E A LDB

Seguindo os preceitos constitucionais, a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, em seu artigo 9.º, já

cobrava um novo perfil para a avaliação da educação superior. O PAIUB representou um grande avanço nesse sentido pois levava a um diálogo com a comunidade

universitária, chegando a estimular a adesão voluntária das instituições (MEC, 2003, p. 14).

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Aos poucos, no entanto, o Governo deu novos rumos ao sistema, reduzindo-o a um processo interno avaliativo. No decorrer dessa mudança provocou-se

o distanciamento da população na tomada de decisões e na análise da qualidade, fazendo com que a comunidade assumisse um papel passivo (MEC, 2003, p. 15).

A nova LDB busca um perfil renovado para a educação nacional. Discorrendo sobre a avaliação da educação, assim dispõe:

Art. 9º A União incumbir-se-á de: (...) VI - assegurar processo nacional de avaliação do rendimento escolar no ensino fundamental, médio e superior, em colaboração com os sistemas de ensino, objetivando a definição de prioridades e a melhoria da qualidade do ensino; (...) VIII - assegurar processo nacional de avaliação das instituições de educação superior, com a cooperação dos sistemas que tiverem responsabilidade sobre este nível de ensino; IX - autorizar, reconhecer, credenciar, supervisionar e avaliar, respectivamente, os cursos das instituições de educação superior e os estabelecimentos do seu sistema de ensino.

Complementando, o artigo 46 dispõe:

“Art. 46. A autorização e o reconhecimento de cursos, bem como o credenciamento de instituições de educação superior, terão prazos limitados, sendo renovados, periodicamente, após processo regular de avaliação.”

Dessa forma, a LDB alia o processo de avaliação institucional à melhoria da qualidade de ensino. Buscando harmonizar-se com essas idéias o Governo

Brasileiro instituiu vários programas de avaliação, dos quais pode-se destacar o Exame Nacional de Cursos – ENC, que sofreu duras críticas da sociedade, apontando

características que importam em desarticulação, imposição de idéias sobre o mundo acadêmico por parte de participantes estranhos a ele, sistemática mercadológica e

pouco pedagógica, falta de critérios para avaliar os progressos ao longo do tempo, disparidade entre a idéia gerada pelos conceitos atribuídos e a real situação dos

cursos avaliados.

Frente a esse quadro, várias discussões seguiram-se entre as instituições, chegando a um consenso sobre alguns aspectos de um processo de avaliação

ideal. Levando em conta as experiências do PAIUB e outras formas avaliativas as partes envolvidas concluíram que são aspectos importantes para um sistema de

avaliação da educação nacional, iniciativas como manter um processo contínuo, com momentos de auto-avaliação, aliados à avaliação externa, considerando-se as

peculiaridades de cada instituição (MEC, 2003, p. 56).

Dessa discussão, procurando sintonia com as disposições da LDB, o MEC propôs o SINAES – Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior, o qual

foi legalmente instituído pela Lei 10.861, de 14 de abril de 2004, apresentando-se “como elemento fundamental de mudanças” (CONAES, 2004a, p.9), constituindo

uma nova tentativa de garantir a prestação de ensino superior de qualidade.

4. O SINAES

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O SINAES é, portanto, uma nova forma de aferição da qualidade do ensino superior, no nível da graduação, colhendo informações por canais variados e

em várias vertentes, a fim de esboçar um quadro que espelhe a real situação, para então ter subsídio para a formação de estratégias, objetivando expandir a oferta do

ensino superior, sua eficácia e seu compromisso social, conforme descreve a Lei 10.861/2004 em seu artigo 1.º.

Não se trata, entretanto, de mera novidade. Pelo estudo da legislação pertinente verifica-se constituir uma mudança na concepção da avaliação, tendendo

a proporcionar maior eficácia ao processo.

Essa nova sistemática se desenvolve, nos termos da Portaria MEC n.º 2.051, de 09 de julho de 2004, sob a coordenação de uma comissão nacional, a

CONAES – Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior (art. 3.º), através de três instrumentos: Avaliação Institucional (interna e externa) – AVALIES,

Avaliação de Cursos de Graduação – ACG e Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes – ENADE.

Explicando o funcionamento do SINAES em documento próprio (CONAES, 2004a, p. 7), a CONAES consigna que:

“As características fundamentais da nova proposta são: a avaliação institucional como centro do processo avaliativo, a integração de diversos instrumentos com base em uma concepção global e o respeito à identidade e à diversidade institucionais. Tais características possibilitam levar em conta a realidade e a missão de cada IES, ressalvando o que há de comum e universal na educação superior e as especificidades das áreas do conhecimento.”

Em suas bases o novo sistema apresenta-se estruturado sobre o conceito de avaliação como instrumento de política educacional, expondo seus resultados

como forma de prestação de contas à sociedade em geral, demonstrando a real situação das IES, para, além do comentado fornecimento de subsídios, dar maior

segurança aos envolvidos diretamente com essas instituições (CONAES, 2004a, p. 9) e evidenciar o cumprimento dos princípios constitucionais da Administração

Pública - CF/88, art. 37 -, para as Instituições Federais e, da educação em geral - CF/88, art. 206, inciso VII e 209 -, para a totalidade das instituições envolvidas na

educação superior.

Maria José Jackson (2003), membro da Comissão Especial de Avaliação da Educação Superior, falando sobre o novo sistema conceitua o SINAES como:

“Uma nova concepção de avaliação da educação superior calcada em outra lógica, integrante de um conjunto de políticas públicas, voltado para a expansão do sistema, pela democratização do acesso de forma que a qualificação do mesmo se integre a um processo mais amplo de revalorização da educação superior.”

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Jackson (2003) comenta ainda sobre a vantagem da forma com que o SINAES trabalha com vários tipos de avaliações, pois não os trata de forma

isolada, sendo que o resultado final é o fruto de todo um sistema, apto a demonstrar o perfil da IES.

4.1 DIRETRIZES

As bases legislativas do SINAES estão contidas em especial, em dois estatutos: na Lei 10.861, de 14 de abril de 2004, que o instituiu, e na Portaria MEC

2.051, de 09 de julho de 2004, que traz a regulamentação de seus processos.

Em meio aos seus dezesseis artigos, a lei que inseriu o SINAES no cenário educacional descreve suas finalidades (art. 1.º, § 1.º), define as diretrizes e

características de seus diferentes ramos de avaliação (art. 2.º ao 5.º e 11), institui a CONAES com suas atribuições e composição (art. 6.º e 7.º).

Regulamentando o sistema, a Portaria MEC 2.051/2004 repete alguns aspectos da Lei 10.861/04, de forma introdutória à sua regulamentação, o que faz

detalhando as competências da CONAES (art. 3.º), concedendo-lhe poderes para a consecução de seus fins (art. 3.º, parágrafo único). A portaria esclarece a forma

com que trabalhará a CPA – Comissão Própria de Avaliação, exigida pela Lei 10.861/04 para a avaliação institucional interna. No capítulo III explicita a avaliação

institucional (Seção I), a avaliação dos cursos de graduação (seção II) e avaliação de desempenho de alunos (seção III).

Além da legislação apresentada o SINAES está pautado em várias outras portarias do MEC, dentre as quais se podem citar:

• Portaria INEP nº 4, de 13 de janeiro de 2005 – Implanta o Instrumento de Avaliação Institucional Externa para fins de credenciamento e recredenciamento de

universidades.

• Portaria MEC nº 398, de 03 de fevereiro de 2005 - estabele que compete ao Presidente do INEP normatizar, operacionalizar as ações e procedimentos

referentes ao Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior - SINAES, ao Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes - ENADE, à Avaliação

Institucional - AI e à Avaliação dos Cursos de Graduação – ACG.

• Portaria INEP n° 31, de 17 de fevereiro de 2005 - estabelece os procedimentos para a organização e execução das avaliações institucionais externas das IES e

dos cursos de graduação, tecnológicos, seqüências, presenciais e a distância.

• Portaria MEC nº 300, de 30 de janeiro de 2006 - Aprova o Instrumento de Avaliação Externa de Instituições de Educação Superior do Sistema Nacional de

Avaliação da Educação Superior - SINAES.

• Portaria MEC nº 563, de 21 de fevereiro de 2006 - Aprova, em extrato, o Instrumento de Avaliação de Cursos de Graduação do Sistema Nacional de Avaliação

da Educação Superior – SINAES.

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4.2 DINÂMICA DO SINAES

Para chegar ao referencial final de cada IES, o SINAES desenvolve-se em suas três formas de avaliação, combinando os respectivos resultados:

• A avaliação das instituições (AVALIES), na perspectiva de identificar seu perfil e o significado da sua atuação, por meio de suas atividades, cursos,

programas, projetos e setores, respeitando a diversidade e as especificidades das diferentes organizações acadêmicas;

• A avaliação dos cursos de graduação (ACG), com o objetivo de identificar as condições de ensino oferecidas, perfil do corpo docente, instalações físicas e

organização didático-pedagógica;

• A avaliação do desempenho dos estudantes dos cursos de graduação, realizada pelo Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (ENADE), com a

finalidade de aferir o desempenho dos estudantes em relação aos conteúdos programáticos, suas habilidades e competências.

4.3 CONAES

A Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior – CONAES foi instituída pela Lei 10.861/04, em seu artigo 6.º com o objetivo de coordenar e

supervisionar o SINAES.

Trata-se de um órgão colegiado, vinculado diretamente ao Gabinete do Ministro da Educação, sendo composto por 01 (um) membro do Instituto Nacional

de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira - INEP, 01 (um) representante da Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior –

CAPES, 03 (três) representantes do Ministério da Educação, sendo 01 (um) obrigatoriamente do órgão responsável pela regulação e supervisão da educação superior,

01 (um) representante do corpo discente das instituições de educação superior, 01 (um) representante do corpo docente das instituições de educação superior, 01

(um) representante do corpo técnico-administrativo das instituições de educação superior e 05 (cinco) membros, indicados pelo Ministro de Estado da Educação,

escolhidos entre cidadãos com notório saber científico, filosófico e artístico, e reconhecida competência em avaliação ou gestão da educação superior, dentre os quais

será eleito, pelo colegiado, seu Presidente, para um mandato de 01 (um) ano, podendo ser reconduzido uma única vez.

As competências da CONAES estão descritas no artigo 6.º da Lei 10.861/04:

Art. 6º Fica instituída, no âmbito do Ministério da Educação e vinculada ao Gabinete do Ministro de Estado, a Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior – CONAES, órgão colegiado de coordenação e supervisão do SINAES, com as atribuições de: I – propor e avaliar as dinâmicas, procedimentos e mecanismos da avaliação institucional, de cursos e de desempenho dos estudantes; II – estabelecer diretrizes para organização e designação de comissões de avaliação, analisar relatórios, elaborar pareceres e encaminhar recomendações às instâncias competentes; III – formular propostas para o desenvolvimento das instituições de educação superior, com base nas análises e recomendações produzidas nos processos de avaliação;

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IV – articular-se com os sistemas estaduais de ensino, visando a estabelecer ações e critérios comuns de avaliação e supervisão da educação superior; V – submeter anualmente à aprovação do Ministro de Estado da Educação a relação dos cursos a cujos estudantes será aplicado o Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes - ENADE; VI – elaborar o seu regimento, a ser aprovado em ato do Ministro de Estado da Educação; VII – realizar reuniões ordinárias mensais e extraordinárias, sempre que convocadas pelo Ministro de Estado da Educação.

A Portaria MEC 2.051/04, em seu artigo 3.º, praticamente repete tais atribuições; aduz, no parágrafo único do mesmo dispositivo que:

Art. 3.º (...) Parágrafo único. Para o desempenho das atribuições descritas no caput e estabelecidas no art. 6.º da Lei no 10.861 de 2004, poderá ainda a CONAES:

I - institucionalizar o processo de avaliação a fim de torná-lo inerente à oferta de ensino superior com qualidade;

II - oferecer subsídios ao MEC para a formulação de políticas de educação superior de médio e longo prazo;

III - apoiar as IES para que estas avaliem, periodicamente, o cumprimento de sua missão institucional, a fim de favorecer as ações de melhoramento, considerando os diversos formatos institucionais existentes;

IV - garantir a integração e coerência dos instrumentos e das práticas de avaliação, para a consolidação do SINAES;

V - assegurar a continuidade do processo de avaliação dos cursos de graduação e das instituições de educação superior;

VI - analisar e aprovar os relatórios de avaliação, consolidados pelo INEP, encaminhando-os aos órgãos competentes do MEC;

VII - promover seminários, debates e reuniões na área de sua competência, informando periodicamente a sociedade sobre o desenvolvimento da avaliação da educação superior e estimulando a criação de uma cultura de avaliação nos seus diversos âmbitos;

VIII - promover atividades de meta-avaliação do sistema para exame crítico das experiências de avaliação concluídas; IX - estimular a formação de pessoal para as práticas de avaliação da educação superior, estabelecendo diretrizes para a organização e designação de comissões de avaliação.

Em uma visão “hierárquica”, a CONAES ocupa uma posição superior, posto que após formado o referencial final de cada IES, a partir dos diversos

instrumentos de avaliação, este é encaminhado pelo INEP àquela comissão, a qual emitirá parecer conclusivo, indicando, se for o caso, a necessidade de formalização

de Protocolo de Compromisso, documento em que a IES compromete-se em reparar as falhas apontadas pelo processo avaliativo, sob pena de incidir nas penas do

artigo 10, § 2.º, I a III, da Lei 10.861/04: suspensão temporária da abertura de processo seletivo de cursos de graduação, cassação da autorização de funcionamento

da instituição de educação superior ou do reconhecimento de cursos por ela oferecidos ou advertência, suspensão ou perda de mandato do dirigente responsável pela

ação não executada, no caso de instituições públicas de ensino superior.

4.4 ENADE

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ENADE é a sigla que representa o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes, integrado ao Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior –

SINAES. Sua ocorrência está prevista no artigo 5.º da Lei 10.861/04 e regulamentada pela Portaria MEC 2051/2004, em seu capítulo III, seção III. Na concepção do

SINAES esse instrumento foi denominado PAIDEIA, em alusão à educação integral dos gregos.

Como já comentado, tem o objetivo de verificar, junto aos alunos dos cursos de graduação, os resultados do processo ensino/aprendizagem.

É uma avaliação imposta aos alunos da graduação. De acordo com a Lei nº. 10.861/04, art. 5º, § 5º, o ENADE é componente curricular obrigatório dos

cursos de graduação, sendo inscrita no histórico escolar do estudante somente a sua situação regular com relação a essa obrigação, atestada pela sua efetiva

participação ou, quando for o caso, dispensa oficial pelo Ministério da Educação, na forma estabelecida em regulamento.

A primeira edição do ENADE foi realizada em 7 de novembro de 2004, à época, em 644 locais de prova, distribuídos em 361 municípios.

Esta forma de avaliação tem sido aplicada na forma prescrita pelo artigo 25, da Portaria MEC 2.051/04: a uma amostra de alunos de cada curso, nas áreas

definidas, anualmente, pelo Ministério da Educação. O grupo selecionado é formado por estudantes do final do primeiro e do último ano de cada curso. As áreas

avaliadas devem ser submetidas a novo exame, no prazo máximo de 03 (três) anos (Portaria INEP 107, de 22 de julho de 2004).

Para a obtenção de seus objetivos o ENADE desenvolve-se através de três instrumentos:

I – Prova única, aplicada a uma amostra de estudantes, definida pelo INEP, dentre alunos do final do primeiro e último ano de cada curso selecionado;

II - Questionário socioeconômico, aplicado aos alunos selecionados, a fim de compor o perfil dos estudantes; e,

III – aos coordenadores de curso, questionário objetivando reunir informações que contribuam para a definição do perfil do curso.

O questionário socioeconômico é enviado previamente aos estudantes selecionados, devendo o cartão-resposta ser entregue, já preenchido, no dia da

prova. Já o questionário destinado aos coordenadores é preenchido on-line, no prazo máximo de 15 dias após a aplicação do ENADE (Portaria INEP 107/04, art. 8).

4.5 AVALIAÇÃO DAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR

Outro importante instrumento integrado ao SINAES é a AVALIES – Avaliação das Instituições de Ensino Superior.

Buscando aferir a qualidade dos serviços prestados pelas instituições, de uma forma mais eficiente, o SINAES contempla a avaliação institucional sob duas

óticas: interna (auto-avaliação) e externa. Daí a previsão das Comissões Próprias de Avaliação – CPA, nos artigos 3.º, § 2.º e 11, da Lei 10.861/04 e 10 da Portaria

MEC 2.051/04, bem como das Comissões Externas (art. 13 da Portaria MEC 2.051/04).

4.5.1 COMISSÃO PRÓPRIA DE AVALIAÇÃO – CPA E AVALIAÇÃO INTERNA

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31

Cada instituição de ensino superior, pública ou privada, por força do disposto na Lei 10.861/04, artigo 11, deve possuir uma Comissão Própria de Avaliação

- CPA, a qual tem por atribuição legal a condução de sua auto-avaliação, a fim de sistematizar os dados solicitados pelo INEP.

A CPA deve ser constituída

(...) por ato do dirigente máximo da instituição de ensino superior, ou por previsão no seu próprio estatuto ou regimento, assegurada a participação de todos os segmentos da comunidade universitária e da sociedade civil organizada, e vedada a composição que privilegie a maioria absoluta de um dos segmentos. (Lei 10.861/04, art. 11, I).

A fim de obter eficiência e isenção em seus procedimentos a lei lhe assegura “atuação autônoma em relação a conselhos e demais órgãos colegiados

existentes na instituição de educação superior.” (idem, inciso II). O sucesso no alcance de seus objetivos será melhor alcançado quando a comissão envolver

representações significativas e proporcionais dos corpos docente, discente e técnico-administrativo.

A essa comissão, portanto, cabe o desenvolvimento da avaliação interna da IES. Essa etapa da avaliação institucional desenvolve-se a partir de orientações

gerais disponibilizadas pelo INEP, a partir de diretrizes estabelecidas pela CONAES, contemplando “os requisitos e os procedimentos mínimos para o processo de auto-

avaliação.” (Portaria MEC 2.051/04). Dentre esses requisitos estão os aspectos instituídos pelo art. 3.º da Lei 10.861/04, os quais alertam quanto à necessidade de

identificação do perfil da instituição, seu relacionamento com a sociedade, sua política de ensino, pesquisa e extensão, dentre outros.

Conforme descreve a CONAES (2004a, p. 20):

“A auto-avaliação constitui um processo por meio do qual um curso ou instituição analisa internamente o que é e o que deseja ser, o que de fato realiza, como se organiza, administra e age, buscando sistematizar informações para analisá-las e interpretá-las com vistas à identificação de práticas exitosas, bem como a percepção de omissões e equívocos, a fim de evitá-los no futuro.”

O objetivo da auto-avaliação, portanto, é fazer com que a IES verifique, em um processo cíclico, sua forma de atuação e contribuição no contexto do ensino

superior, identificando seus pontos fortes e fracos, buscando soluções para suas limitações, firmando um compromisso com a permanente manutenção da qualidade

nos serviços oferecidos à sociedade, utilizando-se da avaliação em sua função primordial: fornecer subsídios para a tomada de decisões. Para isso, se faz necessária a

observância de alguns requisitos essenciais: existência de uma equipe de coordenação; participação dos integrantes da instituição; compromisso explícito por parte

dos dirigentes das IES; informações válidas e confiáveis; e uso efetivo dos resultados.

Cada IES define a metodologia, os procedimentos e objetivo da avaliação que deseja realizar, levando em conta sua realidade. Entretanto, algumas etapas

sugeridas pela CONAES são de extrema importância. Na etapa de preparação, após constituída a CPA e devidamente cadastrada no INEP, a comissão deve definir seu

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plano de ação, estratégias, metodologias, seu projeto de avaliação, sempre levando em conta as diretrizes legais pertinentes. Visando buscar o engajamento de

todos os seguimentos acadêmicos deve ser buscada a sensibilização da comunidade através de seminários, reuniões ou palestras, entre outros.

Segue-se então a etapa do desenvolvimento da avaliação. Para tanto a IES cumprirá várias ações visando o levantamento dos dados e sua análise

preliminar. Essas ações envolvem, por exemplo: reuniões ou seminários para apresentação dos modelos de avaliação propostos, bem como do próprio SINAES;

definição de instrumentos de coleta de dados: entrevistas, questionários, etc; definição de grupos de trabalho para cada segmento da comunidade acadêmica;

definição da metodologia de análise dos dados coletados; organização e discussão dos resultados; definição do formato do relatório de auto-avaliação a ser

apresentado ao INEP.

Por fim, os dados coletados e analisados de forma preliminar devem ser consolidados em um relatório cujo modelo é definido pela própria IES. Esse

documento tem como destinatários diretos a comunidade acadêmica, os avaliadores externos e a toda a sociedade.

Os resultados devem ser publicados por diversos meios, possibilitando sua discussão e ainda o conhecimento por parte do corpo docente, discente e técnico

administrativo, das ações concretas definidas para a reparação das falhas constatadas.

Finalizados esses passos é necessário verificar a forma com que foi desenvolvido todo o processo avaliativo. Conforme observa a CONAES (2004b, p. 14):

“Deste modo, o processo de auto-avaliação proporcionará não só o auto-conhecimento institucional, o que em si é de grande valor para a IES, como será um balizador da avaliação externa, prevista no Sinaes como a próxima etapa da avaliação institucional.”

Esse “balanço crítico”, como é definido pela CONAES (2004b, p.14), é de fundamental importância à continuidade do processo avaliativo, como reflexão

crítica sobre a execução de cada etapa, verificando a adequação dos meios escolhidos bem como sua eficiência e importância para o alcance dos fins planejados.

O conteúdo buscado em todo esse processo está dimensionado na Lei 10.861/04, art. 3.º e explicitado, na forma de orientações gerais, pela CONAES em

seu documento “Roteiro de Auto Avaliação Institucional”. Nele a CONAES organiza a auto-avaliação em três núcleos: 1) Núcleo básico e comum – com tópicos exigidos

para a avaliação interna de todas as IES; 2) Núcleo de temas optativos – com tópicos que podem ser ou não selecionados, segundo julgue a IES serem adequados à

sua realidade e projeto de avaliação; e, 3) Núcleo de documentação, dados e indicadores – indicadores e documentos que podem contribuir para fundamentar e

justificar as análises e interpretações, os quais deverão ser aliados a outros instrumentos de coleta de dados definidos pela instituição.

Esses tópicos farão parte da avaliação da instituição, nas dez dimensões do SINAES: 1) a missão e o Plano de Desenvolvimento Institucional; 2) a política

para o ensino, a pesquisa, a pós-graduação, a extensão e as respectivas normas de operacionalização, incluídos os procedimentos para estímulo à produção

acadêmica, as bolsas de pesquisa, de monitoria e demais modalidades; 3) A responsabilidade social da instituição, considerada especialmente no que se refere à sua

contribuição em relação à inclusão social, ao desenvolvimento econômico e social, à defesa do meio ambiente, da memória cultural, da produção artística e do

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patrimônio cultural; 4) A comunicação com a sociedade; 5) As políticas de pessoal, de carreiras do corpo docente e corpo técnico administrativo, seu

aperfeiçoamento, desenvolvimento profissional e suas condições de trabalho; 6) Organização e gestão da instituição, especialmente o funcionamento e

representatividade dos colegiados, sua independência e autonomia na relação com a mantenedora, e a participação dos segmentos da comunidade universitária nos

processos decisórios; 7) Infra-estrutura física, especialmente a de ensino e de pesquisa, biblioteca, recursos de informação e comunicação; 8) Planejamento e

avaliação, especialmente em relação aos processos, resultados e eficácia da auto-avaliação institucional; 9) Políticas de atendimento a estudantes e egressos; 10)

Sustentabilidade financeira, tendo em vista o significado social da continuidade dos compromissos na oferta da educação superior; e outros itens que a instituição

julgue importante para a formação de seu perfil institucional.

O Relatório oriundo desse processo deve ser encaminhado ao INEP. As primeiras avaliações, desde a implantação do SINAES, têm o prazo máximo até 1º de

setembro de 2006, para apresentação dos respectivos relatórios de auto-avaliação.

4.5.2 AVALIAÇÃO EXTERNA

Após a realização da auto-avaliação é o momento da segunda etapa da Avaliação Institucional. A Avaliação Externa é regulada por vários documentos e

normas, dentre as quais se destacam a Lei 10.870, de 19.05.2004, a Portaria INEP 31, de 17.02.2005 com as inovações trazidas pela Portaria MEC 1.027, de

15.05.2006, além das disposições da Lei do SINAES e sua portaria regulamentadora.

Para a realização desse processo avaliativo o INEP efetua uma pré-seleção e a Comissão Técnica de Acompanhamento da Avaliação – CTAA, instituída pelo

MEC, a seleção final de docentes, dentre os cadastrados no Banco de Avaliadores do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior – BASis, a fim de compor

comissões avaliadoras.

As exigências para a candidatura às comissões são as dispostas na Portaria MEC 1.027, de 15.05.2006, artigo 5.º:

(...) I - titulação mínima de doutor; II - efetiva produção acadêmica e intelectual nos cinco anos imediatamente anteriores à seleção, comprovada através de currículo “Lattes”; III - reputação ilibada; IV - não ter pendências junto às autoridades tributárias e previdenciárias; V - disponibilidade para participação em pelo menos três avaliações anuais.

A Portaria estabelece uma exceção, no parágrafo quarto do mesmo artigo, à exigência da titulação de doutorado para os avaliadores, dispondo que:

Art. 5.º (...)

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§ 4o Excepcionalmente, poderão ser selecionados avaliadores que não atendam ao disposto no inciso I, fundamentadamente, em função das características próprias dos cursos avaliados, e desde que comprovado o notório saber e a reconhecida qualificação para atuar como avaliador.

Os procedimentos para a avaliação institucional externa são estabelecidos pela Portaria INEP 31, de 17.02.2005. Essa norma foi editada com base na

Portaria MEC 4.362/2004, revogada recentemente pela Portaria MEC 1.027, de 15 de maio de 2006. Por tratar-se de mudança recente, ainda não se tem uma nova

norma para os procedimentos da avaliação institucional, motivo pelo qual nesse período de transição há que se interpretar a Portaria 31/2005 combinando-se com as

disposições da nova regulamentação.

Pela análise das normas verifica-se que, para a avaliação institucional externa, a comissão avaliadora é composta de 03 (três) a 08 (oito) membros,

conforme o porte da instituição. A coordenação dos trabalhos recai sobre um dos membros, o qual tem por responsabilidade (art. 3.º, § 5.º da Portaria INEP 31, de

17.02.2005):

“Art. 3º (...) § 5º O Coordenador da comissão, referido nos parágrafos anteriores, será responsável pela mediação das relações entre a comissão e

as instâncias institucionais de gestão e de avaliação, assim como pela articulação entre a Comissão Própria de Avaliação (CPA) e o desenvolvimento do processo avaliativo e pela validação dos relatórios de avaliação dos cursos.”

A avaliação deve ser concluída no prazo máximo de 03 (três) dias e meio, podendo esse prazo variar “de acordo com o porte da instituição e o número de

cursos/habilitações da IES” (Portaria INEP 31/04, art. 3.º, § 6.º).

Seu objeto é analisar o atendimento às dez dimensões elencadas na Lei do SINAES (art. 3.º). Assim, dentre as atribuições das Comissões Externas de

Avaliação Institucional o art. 6.º da Portaria INEP 31/04, relaciona, como forma de subsidiar o trabalho de avaliação, o exame dos seguintes documentos: a) Plano de

Desenvolvimento Institucional (PDI); b) Projeto Pedagógico Institucional (PPI); c) relatórios parciais e finais do processo de auto-avaliação, produzidos pela IES; d)

dados gerais e específicos da IES constantes do Censo da Educação Superior e do Cadastro de Instituições de Educação Superior; e) dados sobre o Exame Nacional de

Desempenho dos Estudantes (ENADE); f) relatório de avaliação institucional produzido na última avaliação realizada por Comissão Externa de Avaliação Institucional;

g) dados do questionário socioeconômico dos estudantes produzidos pelo ENADE; h) relatório da Comissão de Acompanhamento do Protocolo de Compromisso,

quando for o caso; i) relatório e conceitos da CAPES para os cursos de pós-graduação da IES; j) documentos sobre o credenciamento e o último recredenciamento da

IES.

Após essa análise a Comissão Avaliadora Externa deve “elaborar relatório descritivo-analítico e parecer conclusivo sobre os resultados da avaliação,

utilizando o modelo fornecido pelo INEP, no prazo de 03 (três) dias, a contar do término da avaliação in loco” (Portaria INEP 31, art. 6.º, III).

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35

O relatório final da avaliação é encaminhado à Coordenação Geral de Avaliação Institucional de Educação Superior e dos Cursos de Graduação, a qual o

encaminhará à IES para conhecimento e análise, oportunizando-lhe a interposição de pedido de reconsideração da avaliação, caso haja discordância quanto ao

resultado.

Protocolado o pedido de reconsideração da avaliação junto à referida Coordenação, esta encaminha o documento à comissão avaliadora externa, para

análise por seus membros. Após a apreciação, em prazo fixado pelo INEP, o documento é devolvido à Coordenação que poderá encaminhá-lo à Comissão Técnica em

Avaliação Institucional e dos Cursos de Graduação, para parecer.

Em não havendo pedido de reconsideração ou, havendo, após as devidas formalidades, o relatório é encaminhado pela Coordenação à Secretaria de

Educação Superior - SESu e à Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica - SETEC, servindo de referencial para os processos de credenciamento e

recredenciamento.

4.6 AVALIAÇÃO DE CURSOS DE GRADUAÇÃO – ACG

A terceira fonte de dados do SINAES é a Avaliação de Cursos de Graduação – ACG, processo pelo qual são avaliadas todas as modalidades de graduação

(bacharelado, licenciatura e tecnologia), presenciais ou à distância, aproveitando seus resultados para subsidiar os processos de regulação (reconhecimento e

renovação de reconhecimento de cursos).

Esse processo é realizado por comissão externa, constituída nos moldes das comissões de avaliação institucional, composta, no entanto, por no mínimo 02

(dois) avaliadores, podendo variar o quantitativo de avaliadores considerando o número de habilitações do curso (Portaria MEC 1.027/06, artigo 8.º e Portaria INEP

31/2005, artigo 3.º, § 3.º). Os procedimentos dessa modalidade são também regulados pela Portaria INEP 31/2005, com as modificações da Portaria INEP 1.027, de

15.05.2006.

O art. 4.º da Lei n.º 10.861/2004 dispõe que a avaliação dos cursos de graduação tem por objetivo “identificar as condições de ensino oferecidas aos

estudantes, em especial as relativas ao perfil do corpo docente, as instalações físicas e a organização didático-pedagógica”.

Transparece, portanto, o entendimento de que a qualidade da educação superior, exigida pela CF/88 e LDB, tem esses três elementos como determinantes

à sua consolidação.

Assim, seus indicadores estão distribuídos entre esses três aspectos dos cursos de graduação, constituindo três categorias. Na primeira, “Organização

Didático-Pedagógica” tem-se: a) Administração Acadêmica: coordenação e colegiado de curso; b) Projeto Pedagógico do Curso: concepção, currículo e avaliação; c)

Atividades Acadêmicas Articuladas à Formação: prática profissional e/ou estágio, TCC e atividades complementares; e, d) Resultados do ENADE.

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Na segunda categoria, “Corpo Docente, Corpo Discente e Corpo Técnico-Administrativo”, os indicadores são: a) Perfil Docente; b) Atuação nas atividades

acadêmicas; c) Corpo discente: atenção aos discentes e egressos; e d) Corpo Técnico-Administrativo: atuação no âmbito do curso.

Por fim, os indicadores da terceira categoria que compõe a matriz do instrumento de avaliação de cursos de graduação, “Instalações Físicas”, são: a)

Biblioteca; b) Instalações especiais e laboratórios específicos: cenários / ambiente / laboratórios para a formação geral e básica.

Para aferir esses indicadores a comissão de avaliação de cursos examina os seguintes documentos: a) Projeto Pedagógico Institucional (PPI); b) projeto

pedagógico do curso; c) perfil do corpo social do curso: docentes, discentes, egressos, técnicos e administrativos; d) dados sobre o ENADE; e) dados do questionário

socioeconômico dos estudantes produzidos pelo ENADE; f) dados do Censo da Educação Superior e do Cadastro Geral dos Cursos; e g) relatório de avaliação do curso

produzido na última avaliação realizada por Comissão Externa de Avaliação de Curso.

Finda a verificação in loco, a comissão tem o prazo de três dias para elaborar relatório descritivo-analítico e parecer conclusivo sobre os resultados da

avaliação, utilizando o modelo fornecido pelo INEP.

A destinação do resultado e seus trâmites finais seguem as mesmas etapas da avaliação institucional externa, havendo igualmente possibilidade de

interposição de pedido de reconsideração pela IES.

4.7 – PROCEDIMENTOS FINAIS

Os resultados desses três instrumentos são analisados em conjunto, pelo INEP e CONAES, considerando ainda duas fontes acessórias: o Censo da Educação

Superior, que inclui informações sobre atividades de extensão e o Cadastro de Cursos e Instituições, ambos integrados ao SINAES.

Caso os resultados sejam considerados insatisfatórios há a previsão de celebração de um compromisso entre a IES e o MEC, para melhoria da qualidade, nos

termos do artigo 10, da Lei 10.861/04 e art. 35 e 36, da Portaria MEC 2.051/04.

Na hipótese de descumprimento do compromisso firmado, a instituição poderá sofrer as penalidades relacionadas nos incisos do artigo 10:

I - suspensão temporária da abertura de processo seletivo de cursos de graduação; II – cassação da autorização de funcionamento da instituição de educação superior ou do reconhecimento de cursos por ela oferecidos; III – advertência, suspensão ou perda de mandato do dirigente responsável pela ação não executada, no caso de instituições públicas de ensino superior.

Após todo o processo, com a união dos resultados de todos os instrumentos de avaliação, estará formado o referencial de cada IES avaliada, o qual será

publicado, para conhecimento da sociedade em geral, inclusive da própria IES, e encaminhado para setores do MEC, ligados ao acompanhamento da educação

superior.

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37

5. CONCLUSÃO

Após algumas formas de avaliação da educação superior, o Estado busca implementar um novo sistema. Um método, no entanto, mais complexo que os

antecessores, analisando a realidade das instituições de ensino superior, através de várias perspectivas: docente, discente, técnico-administrativa e externa.

Esses fatores conduzem ao entendimento de que o SINAES não constitui somente mais um sistema, mas uma nova etapa na avaliação da educação

superior. A continuidade da caminhada empreendida ao longo de anos, podendo ser considerado uma resposta eficiente às determinações da Constituição Federal de

1988 e da nova LDB.

Pela recente implementação e peculiaridade de seus instrumentos, ainda não se tem a confirmação da eficiência do sistema. Entretanto, as bases sobre as

quais está constituído demonstram grandes possibilidades de sucesso.

6. REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei n 10.870, de 19 de mai. 2004. Institui a Taxa de Avaliação in loco das instituições de educação superior e dos cursos de graduação e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, 20 de mai. 2004. p. 1 col. 3. BRASIL. Lei n 10.861, de 14 de abr. 2004. Institui o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior - SINAES e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, 15 de abr. 2004. Seção 1 p. 3. BRASIL. Lei n 9.394, de 20 de dez. 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, 23 de dez. 1996. COMISSÃO NACIONAL DE AVALIAÇÃO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR. Avaliação externa de instituições de educação superior: diretrizes e instrumento. Brasília, 2006. 180 p. ______. Instrumento de avaliação de cursos de graduação. Brasília, 2006b. 96 p. ______. Diretrizes para avaliação das instituições de educação superior. Brasília, 2004a, 30 p. ______. Roteiro de auto-avaliação institucional: orientações gerais. Brasília, 2004b, 44 p. DIAS, Alessandra C S M. Coletânea de textos de Legislação do Ensino Superior. Curso de Pós-Graduação em Metodologia do Ensino Superior. Faculdade São Lucas. Porto Velho-RO, 2006. INSTITUTO NACIONAL DE PESQUISAS E ENSINO ANÍSIO TEIXEIRA. ENADE: perguntas freqüentes. Brasília, 2006. Disponível em: <http://www.inep.gov.br/ superior/enade/perguntas_frequentes.htm>. Acesso em 13.jun.2006. ______. Portaria 31 de 17 de fev. 2005. Diário Oficial. Brasília, 21 de fev. 2005. Seção 1 p. 15. ______. Manual do ENADE – exame nacional de desempenho dos estudantes. Brasília, 2004, 71 p. ______. Portaria 107 de 22 de jul. 2004. Diário Oficial. Brasília, 15 de mai. 2006. Seção I p. 9. JACKSON, Maria José. [2003?] SINAES: a proposta de avaliação da educação superior. Disponível em <http://www.ufpa.br/beiradorio/arquivo/beira14/entrevista.htm>. Acesso em 10 mai. 2006. LOPES, Maria Fernanda Arraes [1999?]. Objetivos e perspectivas do programa de avaliação institucional das universidades brasileiras (PAIUB) e do exame nacional de cursos (ENC). Disponível em <http://www2.uerj.br/~anped11/23/1104p. htm>. Acesso em 10 mai. 2006. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Portaria 4.362 de 29 de dez. 2004. Diário Oficial. Brasília, 30 dez. 2004. Seção 1 p. 67. ______. Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior - SINAES: Bases para uma nova proposta da educação superior. Brasília, 2003, 98 p.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO

ANO V, Nº211 NOVEMBRO - PORTO VELHO, 2006 Volume XVII Setembro/Dezembro

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia FABÍOLA LINS CALDAS - História

JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL - Geografia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO - Filosofia

Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for

Windows” deverão ser encaminhados para e-mail:

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ISSN 1517-5421 lathé biosa 211

Educação e Diferença: A formação de

professores indígenas em Mato Grosso

Edmundo Antonio Peggion

PRIMEIRA VERSÃO

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Educação e Diferença: A formação de professores indígenas em Mato Grosso6

Edmundo Antonio Peggion

Introdução

Pretendo com este artigo realizar uma análise da experiência do Projeto Tucum, um programa de formação de professores indígenas que se desenvolveu no

estado de Mato Grosso. O texto está dividido em duas partes, que poderá ser notada pelo leitor: na primeira há um quadro geral dos princípios e da extensão do

projeto e na segunda uma análise de um caso específico. O foco, nesta segunda parte, está voltado para o pólo do projeto que atendeu ao povo Xavante.

Nas considerações finais tento esboçar um exercício crítico, com base em reflexões recentes acerca da Educação Escolar Indígena. É uma forma de estabelecer um

pequeno paralelo entre o Tucum e outros projetos em andamento na mesma época. É, também, um olhar um pouco distanciado da experiência, tão intensamente

vivida por todos que participaram da formação de professores indígenas no estado de Mato Grosso.

O projeto Tucum

O projeto Tucum iniciou-se em 19957 e terminou em 2000. Foi coordenado pelo governo do Estado de Mato Grosso, e contou com a participação de prefeituras

municipais, universidades e entidades civis leigas e religiosas. O objetivo, segundo a proposta, era capacitar e habilitar professores índios em nível de magistério que

atuavam ou iriam atuar em suas comunidades.

O currículo proposto aos cursistas pretendia abordar conteúdos das culturas indígenas e de outras, além do ensino da língua indígena e do português. A

intenção, de acordo com o projeto, era promover o desenvolvimento do estudante em seu universo cultural, além de permitir uma apropriação seletiva e crítica de

elementos de outras sociedades.

O projeto Tucum pretendeu a formação de indivíduos das sociedades indígenas como pesquisadores, alfabetizadores, escritores e redatores, administradores e

gestores, assessores e professores, além de intencionar formar técnicos e assessores não índios para as Secretarias de Educação e para a FUNAI.

A discussão que desembocou neste projeto iniciou-se em 1987, quando a Coordenadoria de Educação de Primeiro e Segundo Graus ligada à Secretaria de

Estado da Educação - SEDUC dava assistência às aldeias. Nesta época criou-se o Núcleo de Educação Indígena de Mato Grosso – NEI-MT, um fórum não oficial de

6 Este texto é parte de uma análise do projeto Tucum e tem como referência uma bolsa de Desenvolvimento Científico Regional, concedida pelo Conselho Nacional de

Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq com apoio da Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT. Este trabalho só se tornou possível pelo apoio recebido dos

professores indígenas, da Equipe de Educação Escolar Indígena da Secretaria de Educação do Estado de Mato Grosso, além dos assessores pedagógicos e docentes. Um agradecimento

aos que foram monitores do pólo II, em especial a Lucas ‘ruri’õ e ao cursista Xisto Tserenhi’ru. Agradeço também a Terezinha Furtado de Mendonça, Paula Vanucci, Judite

Albuquerque, Martha Genoveva Andino, Neide Siqueira, e Lúcia Schuster. 7 A elaboração do projeto iniciou-se em 1995, mas a primeira etapa de formação foi em janeiro de 1996.

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discussões que congregava diversas instituições (Secretaria de Estado de Educação, Fundação Educar, Museu Rondon (Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT),

Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Operação Amazônia Nativa (OPAN), Missão Salesiana e Coordenadoria de Assuntos Indígenas do Estado de Mato Grosso

(CAIEMT)). A partir do NEI, uma série de discussões desenvolveu-se, gerando a criação, em 1995, do Conselho de Educação Escolar Indígena.

O projeto Tucum possuiu uma estrutura que articulava as diferentes instâncias envolvidas. A Coordenação Geral realizou a articulação entre os municípios que

participaram do projeto, os encaminhamentos coletivos e os contatos com instituições e assessorias necessárias. A Coordenação Regional preparou as etapas de

formação nos municípios, garantiu o registro da avaliação individual do cursista tanto nas etapas intensivas quanto nas etapas intermediárias.

Os Assessores (ou consultores) eram os especialistas nas diferentes áreas do conhecimento que participavam das discussões do projeto, basicamente, nas

etapas de formação dos docentes que iriam ministrar as disciplinas nos pólos e que precediam as etapas intensivas. Circunstancialmente os consultores participavam

também das etapas intensivas. Os docentes eram graduados nas diversas áreas que ministravam disciplinas diretamente aos professores índios nos períodos

intensivos. Os assessores pedagógicos foram eleitos em concurso e deveriam realizar atividades de implementação das etapas intensivas que ocorriam, em geral, duas

vezes ao ano. Esta categoria, posteriormente, foi suprimida dos quadros do projeto. O papel de assessoria pedagógica passou a ser desempenhado por funcionários

das Secretarias Municipais de Educação. Por fim os monitores, que possuíam um papel fundamental no projeto. Eram eles que acompanhavam diretamente a

formação dos professores indígenas. Estavam presentes nas capacitações e realizavam o registro e a avaliação dos cursistas, tanto nas etapas intensivas quanto nas

etapas intermediárias.

O projeto desenvolveu-se de forma parcelada, contando com etapas intensivas, nos períodos de férias e recessos escolares; etapas intermediárias,

desenvolvidas entre uma etapa intensiva e outra sob supervisão dos monitores; e etapas de capacitação, que reuniam docentes e monitores para discutir com

assessores o encaminhamento dos trabalhos. A formação caracterizou-se pela modalidade suplência e previu uma duração de oito semestres (quatro anos). Como

requisito de admissão, ficou estabelecido que o professor tivesse, no mínimo, 16 anos, não fosse titulado, que estivesse em sala de aula e houvesse sido indicado pela

comunidade.

No pólo I eram 30 professores e 21 substitutos para atender uma população maior do que 793 alunos nas escolas dos municípios de Campo Novo do Parecis,

Barra do Bugres, Brasnorte, Juara, Sapezal e Tangará da Serra. Este pólo envolveu uma diversidade cultural grande, tendo como cursistas professores Paresi,

Umutina, Nambikwara, Rikbaktsa, Irantxe, Munduruku, Apiaká e Kaiabi. No pólo II, de Água Boa, que se dirigiu aos Xavante, eram 37 professores e 23 suplentes, que

atendiam 2251 alunos dos municípios de Água Boa, Barra do Garça, Campinápolis e General Carneiro. A população Xavante atual, com base nos dados apresentados

no Projeto Tucum é de 9.836 indivíduos, com 54 aldeias distribuídas nos municípios de Canarana, Novo São Joaquim, Paranatinga, Poxoréu, Ribeirão Cascalheira, além

de Água Boa, Barra do Garça, Campinápolis e General Carneiro. O pólo III possuía 12 professores e 20 suplentes, reunindo professores Bororo dos municípios de

General Carneiro, Rondonópolis, Barão de Melgaço e Santo Antonio do Leverger. Além dos professores e suplentes acima referidos, as comunidades Bororo indicaram

8 jovens para que estes pudessem se preparar para o futuro exercício do magistério. No pólo IV eram 17 professores, 15 suplentes, 08 indivíduos para as aldeias que

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ainda não tinham professor e 6 jovens indicados pela Associação Kurâ-Bakairi. Este último pólo, que envolveu os municípios de Nobres, Paranatinga e Planalto da

Serra, atendeu aos povos Bakairi e Xavante.8

O advento de um projeto de tal dimensão, que se propôs a responder à demanda dos povos indígenas no que toca à educação é de fundamental importância.

Temos, de fato, um paradoxo: em determinados momentos, os cursistas reivindicavam um ensino tradicional, definido por eles como “escola de branco”, enquanto os

assessores do projeto apresentavam-lhes um modelo de Educação Escolar, baseado na construção do conhecimento – mais de acordo com as novas propostas das

Escolas não indígenas. Assim, as discussões com relação à escola de nossa sociedade chegavam às aldeias. Era possível encontrar a resposta à desconfiança dos

professores indígenas nas aspirações destas populações, que querem dominar um método e uma reflexão que têm como referência o ensino baseado na educação

religiosa e nos modelos considerados tradicionais.

Questões aparentemente sem importância, não fossem as sociedades indígenas pautarem seus processos de aprendizagem em sistemas de observação e

repetição, que, em nossa sociedade são considerados “ultrapassados”. Lévi-Strauss (1986:382) já havia assinalado tal questão, dizendo que parte da aprendizagem se

dá através da imitação dos adultos de maneira difusa e parte através de uma experiência traumática, durante os rituais de iniciação.9

O domínio das técnicas (como as diversas atividades de qualquer sociedade - caça, coleta, agricultura, artesanato, etc.) por todos os membros da sociedade

permite que cada indivíduo possa criar por si mesmo (Lévi-Strauss, 1986:383). A formação de um professor cria uma nova categoria nestas sociedades, hierarquizando

as relações pautadas no conhecimento coletivo. Diferentemente do Xamã, que faz parte do sistema tradicional, o professor, bem como a escola, necessitam de uma

classificação para poderem inserir-se nas relações sociais. O trânsito pelos códigos ocidentais e o recebimento do salário podem fazer do professor uma pessoa fora do

grupo (Peggion, 1997).

As instituições

O projeto Tucum contou, desde sua concepção, com a participação de várias instituições. Foram entidades governamentais e associações civis que estiveram

presentes nas discussões iniciais do projeto. No seu transcurso, estas instituições participavam do desenvolvimento do Tucum através da indicação de membros que

seriam docentes ou monitores. Os assessores foram contratados pela coordenação de acordo com a especialidade de cada um e as necessidades do projeto. Foi

perceptível, num determinado momento, o caminho tomado pelo Tucum, passando do âmbito de uma discussão de modelos alternativos para o modelo oficial.

8 Estes dados tomam como base o projeto Tucum. Algumas alterações ocorreram durante o desenvolvimento do projeto.

9 Entretanto, processos internos às sociedades indígenas, não podem ser considerados equivalentes aos modelos tradicionais da sociedade ocidental, que induz a aprendizagem através

da repetição ad infinitum.

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As instituições envolvidas no projeto Tucum foram as seguintes: prefeituras municipais; Coordenadoria de Assuntos Indígenas do Estado de Mato Grosso/Casa

Civil; Secretaria de Estado de Educação; Fundação Nacional do Índio; Operação Amazônia Nativa; Conselho Indigenista Missionário; Sociedade Internacional de

Lingüística; Junta Missionária Nacional; Congregação das Irmãs Catequistas Franciscanas; Missão Laurita; Missão Salesiana-MT/MS; Associação Kurâ-Bakairi.

Concebido inicialmente como um projeto coletivo, envolvendo várias instituições, o Tucum caminhou para se tornar um programa de governo, que contou com a

legitimidade das instituições acima referidas. Tal tendência começou a se configurar a partir da Conferência Ameríndia de Educação Escolar Indígena realizada em

Cuiabá no mês de novembro de 1997. Houve, nesta ocasião, um grande investimento por parte do Governo do Estado, que patrocinou o evento, através do Banco

Mundial, e lançou em sua abertura a proposta do curso de terceiro grau para os povos indígenas10.

O Tucum pode ser entendido como resultado da interação destes diversos participantes, desde instituições a consultores, monitores, docentes e cursistas e,

neste sentido, escapou ao controle governamental ou não governamental11. Entretanto, seu viés caracterizou-se por uma complexa conjuntura, de certa forma

emblemática, da educação escolar indígena no Brasil.

Um estudo de caso

Para se compreender um pouco melhor o desenvolvimento do projeto, este tópico do artigo abordará a situação específica dos Xavante, que faziam parte do

pólo II, sediado em Água Boa (MT). Primeiro são apresentados alguns elementos da organização social Xavante, para depois adentrarmos a uma etnografia da sala de

aula.

Os Xavante são um povo definido na literatura como Jê Centrais e que se autodenominam A’uwe. Remanescentes de um grupo formado por Xavantes e

Xerentes, que se cindiu no século XIX (Maybury-Lewis, 1984:40, Lopes da Silva, 1992:365), os Xavantes ocupam uma região, no Estado do Mato Grosso, divididos em

várias aldeias e Terras Indígenas diferentes.

Os Xavante possuem muitas divisões internas, decorrentes de sua organização social em patrilinhagens. Isso significa que um homem e seus ascendentes e

descendentes masculinos constituem uma patrilinhagem, a qual defende seus interesses no grupo. Cada patrilinhagem, assim definida, é uma facção que, no plano

geral da sociedade, fica fragmentada pelo casamento.

A regra dos Xavante diz que um homem, depois de assumir definitivamente o matrimônio, deve morar na casa de seu sogro, ou seja, a regra é uxorilocal. Os

filhos nascidos do casamento possuem uma relação estreita com o pai, são seu esteio político, apesar de nascerem em uma patrilinhagem que exclui o pai (Maybury-

Lewis, 1984:145). É no grupo doméstico12 que se encontra um ponto importante da dicotomia faccional: a relação entre o marido da irmã e o irmão da esposa

10

Atualmente o Terceiro Grau para Professores Indígenas está em desenvolvimento. 11

Esta característica pode ser apenas a aparência de um processo centralizado, que acabou sendo legitimado pelo grupo que participou das etapas de Capacitação. 12

Um grupo doméstico é composto idealmente por um homem, sua esposa, seus filhos solteiros, suas filhas solteiras e casadas, seus genros e netos.

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(cunhados) e entre genro e sogro é formalmente dada através da etiqueta, ou seja, quando estes indivíduos estão juntos, o primeiro não pode dirigir-se diretamente

aos segundos (Maybury-Lewis, 1984:150-151). Estas relações dão-se, sempre, entre membros de clãs diferentes, importante referência para se compreender os

Xavante.

Esta sociedade compõe-se de três clãs, que se dividem em duas metades. Os clãs são Poredza’ono (girino); Öwawë (rio das Mortes) e Tobratató (círculo no

olho, segundo Maybury-Lewis, 1984:221). Toda pessoa que nasce pertence ao clã do pai e deve casar-se no clã oposto. Como Öwawë e Tobratató estão agrupados na

mesma metade, só podem casar-se com Poredza’ono e este com os outros dois. A definição clânica caracteriza uma divisão na sociedade entre o grupo do indivíduo e

seu oposto (Maybury-Lewis, 1984:222). Essa divisão é referência básica para se compreender a sociedade Xavante, mas não é a única divisão encontrada. É

perceptível um certo equilíbrio entre os clãs, uma vez que Öwawe e Tobratató aproximam-se em oposição a Po’redza’õno. Apesar disto, segundo os Xavante, há um

certo predomínio político do clã Po’redza’õno sobre os demais.13 Além dos clãs, muitas outras classificações estão presentes, ora opondo, ora agrupando indivíduos.

Os Xavante organizam-se em categorias de idade dispostas hierarquicamente: ai’uté, ‘watébrémi, ai’repudu, wapté, ‘ritéi’wa, danhohui’wa, ïprédu e ïhire

(Giaccaria, 1990:25). As principais categorias são wapté, ‘ritéi’wa e danhohui’wa, sendo que nesta última localizam-se os padrinhos dos wapté (Giaccaria, 1990:25) 14.

Como os professores, em geral, são indivíduos que já podem assumir suas responsabilidades no sentido de educar os mais jovens, dificilmente serão indivíduos de

categorias de idade abaixo do que, para o Xavante, é considerada a maturidade.

Além disso, há também as classes de idade: Hötörã, Tirowa, Etepa, Abare’u, Nodzö’u, Anarowa, Tsada’ro e Ai’rere. Estas classes possuem uma relação que

combina hostilidade entre as classes adjacentes e cooperação entre as alternadas (Maybury-Lewis, 1984:213). Disto resulta que se formam dois grupos, que são os

constituintes das Corridas de Tora. Estes conjuntos são permanentes, ou seja, um indivíduo pertence a apenas um deles durante toda a sua vida. São formados a

partir daqueles que entram na Casa dos Solteiros – hö, para a iniciação. Diferentemente, as categorias de idades correspondem a passagens na vida de um indivíduo,

e variam conforme a faixa etária.

Quando chegam na casa dos solteiros, pedra fundamental do sistema, os meninos são introduzidos na sociedade (Maybury-Lewis, 1984:153-155). Na hö, o

menino aprende a caçar, a cantar, a manipular o universo cerimonial, enfim, aprende a ser “um bom Xavante” (Maybury-Lewis, 1984:160-161). Os meninos que estão

na casa dos solteiros, conhecidos como wapté, passam por uma série de atividades como exercícios de imersão na água, corridas e perfuração de orelhas (Maybury-

Lewis, 1984:164-166). É nesta fase da vida que os jovens iniciam uma amizade formalizada com um indivíduo de sua categoria de idade e de outro clã. Essa relação,

definida como ï’amõ, será estabelecida pela primeira vez na hö e, posteriormente novos laços semelhantes serão criados, vinculando indivíduos afins, tanto da mesma

13

Convém notar, entretanto, que, segundo Maybury-Lewis (1984:220), a distinção entre 3 clãs e 2 metades é característica dos Xavante Ocidentais. Entre os Xavante Orientais existem

apenas os 3 clãs referidos. 14

Associadas por Giaccaria (1990:25), respectivamente com: nascimento, criança, pré-adolescente, adolescente, juventude, padrinho, adulto e velhice.

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idade quanto de gerações alternadas. Desta forma, laços formais e afetivos cruzam a sociedade como um todo, não permitindo que as oposições sejam levadas a

extremos (Maybury-Lewis, 1984:158; Lopes da Silva, 1986: 217 e ss.).

No caso da escola, é impossível pensá-la sem conceber a questão da visão dual dos Xavante. Conforme vimos acima, o dualismo é um princípio estruturante do

pensamento desta sociedade e regula todo o processo de aprendizagem (Ferreira, 1994:15). Assim, a concepção do mundo passa necessariamente por uma

perspectiva dualista: Homem/Mulher; espaço público/espaço doméstico; vivos/mortos, waniwimhã (nós, os do nosso lado) / tsiré’wa (eles, os que estão separados).

Além disso, a relação sogro-genro, parte do princípio da organização social Xavante, também está presente no processo educativo, podendo determinar o

resultado dos trabalhos. O dualismo, pouco notado, esteve presente em praticamente todos os momentos do curso de formação, na representação das reuniões

durante as etapas intensivas, na fila do refeitório e na própria concepção teórica dos professores indígenas. É notável que, sempre que se discutia uma questão

fundamental no curso de formação, os juízos divergiam e sempre resultavam em um salutar embate entre dois posicionamentos extremos. Tal complexidade estimula-

nos a refletir sobre a forma como os Xavante incorporaram toda sorte de discussão que lhes foi apresentada.

A sala de aula Xavante15

Em diversos momentos de acompanhamento do processo de formação dos Xavante, foi possível observar a presença da organização social e o interesse com

que os professores indígenas se envolviam nos debates que tocavam neste tema. Seguem algumas notas tomadas por mim durante estes acompanhamentos:

“A disposição da sala de aula em Água Boa demonstrava claramente o funcionamento do sistema Xavante. A sala obedecia ao formato de uma aldeia

tradicional, formando um semicírculo. No centro da sala, como no centro da aldeia, o espaço onde as pessoas reuniam-se para discursar e decidir todas as questões -

pátio central - Warã16.

A cada dia, um cursista designado pelo grupo tocava um apito às 8 da manhã para o início das atividades. O início era sempre uma leitura de um caderno

idealizado pela docente de língua portuguesa, então secretária de educação do município de Água Boa. Depois da leitura, avaliada pelo grupo, era dado início às

atividades, sempre com uma introdução do assunto pela docente, que depois designava a composição dos grupos e a elaboração das atividades.

Posicionando-se de maneira ostensiva, os cursistas iam participando das etapas de formação e refletindo sobre todos os assuntos que lhes eram apresentados.

Por outro lado, os docentes tentavam ter como referencial os próprios Xavante, estimulando a presença cultural em sala de aula. Assim é que alguns aportes culturais

apareceram de maneira mais evidente, definindo os registros em sala de aula. A’uwë Uptabi, por exemplo, foi o nome dado ao jornal que deveria circular por todos os

15

A discussão aqui está pautada em observações realizadas durante uma das etapas de formação, na disciplina de Língua Portuguesa ministrada pela docente Lúcia Schuster. A intenção

foi demonstrar, com um exemplo concreto, como se dá o desenvolvimento das aulas. Em linhas gerais, todo o curso desenvolveu-se da mesma maneira. 16

Para as questões mais sérias ou que diziam respeito somente aos Xavante havia um outro Warã na quadra de esportes ao lado dos dormitórios.

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pólos do Tucum, levando notícias sobre o curso de Água Boa.17 A decisão por este nome custou um dia à disciplina de língua portuguesa e exaltou os ânimos no

embate político, característico da organização social. Foi pedido aos cursistas que elaborassem algumas matérias para a próxima edição do jornal (o primeiro jornal,

denominado Projeto Tucum não havia ainda passado por tal discussão), e também fizessem, por grupos, a sugestão de novos nomes.

Os debates começaram de forma tranqüila e em língua portuguesa e, na medida em que a disputa foi se tornando acirrada, passou-se aos discursos apenas em

Xavante, no centro do sala-de-aula - Warã. Cada grupo apresentou o seu título e justificou por que o havia escolhido. Discutiu-se muito, sendo que depois de um

certo tempo, as falas passaram a ser acompanhadas de performances exaltadas, na tentativa de convencer os demais colegas de que o título defendido por quem

falava no momento era mais importante. Cada um deu sua opinião e depois de todos falarem, os títulos foram reduzidos a dois.

Nova discussão, neste momento mais exaltada, com falas emocionadas e novas performances. No final venceu o Jornal A’uwë Uptabi e imediatamente os

vencedores – aproximadamente metade da sala - começaram a cantar uma música para comemorar a vitória enquanto os perdedores ficaram, por sua vez,

lamentando o ocorrido. Semelhante situação ocorre na corrida de toras, quando os grupos, por vezes, reúnem-se no centro da aldeia para discutir o peso das toras e a

injustiça do resultado. A relação simétrica, questão fundamental na sociedade Xavante aflora em momentos de disputas que acabam tendo vencedores. Quando tal

fator é inevitável, a opressão imposta pelos vencedores aos vencidos pode resultar em conflitos e, desta maneira, no limiar, os vencedores passam a remediar a vitória

para não desmerecer tanto os vencidos.

Porém, antes da discussão do título do jornal, os Xavante haviam discutido profundamente uma outra questão que foi central para este processo de formação:

qual a língua da alfabetização. A discussão da alfabetização foi realizada primeiramente em grupo, a partir das propostas feitas pelos próprios cursistas. Os temas para

a composição dos grupos tiveram a seguinte perspectiva:

- língua materna

- língua portuguesa

- língua portuguesa e língua materna

Os grupos se uniram para discutir de acordo com a afinidade a cada uma das propostas e, após um período, voltaram para a plenária. Discussão fundamental, este

assunto foi sempre tomado seriamente pelos cursistas, que entravam em confronto direto, cada qual defendendo sua concepção teórica acerca da alfabetização

xavante.

O primeiro grupo a apresentar sua exposição preparou-se para as críticas, pois defendia a alfabetização apenas em língua portuguesa. Para este grupo, falta

ainda noção plena, por parte dos professores, para dominar a grafia xavante, sendo que existem muitas regras indefinidas. Segundo estes cursistas era preciso uma

definição ortográfica oficial da língua Xavante, que poderia ser feita durante o Tucum - enquanto isso, os professores iriam alfabetizando em língua portuguesa.

17

A’uwë Uptabi, povo autêntico, assim se definem os Xavante.

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O segundo grupo defendeu a alfabetização na língua xavante. Para este grupo, se houver alfabetização apenas na língua portuguesa, no futuro as crianças irão

largar a língua materna. As crianças, quando vão para a escola já falam a própria língua, aprendida na comunidade. Para um dos cursistas, a criança, na primeira

série, não aprende português. Se você pergunta para ela, na língua portuguesa, o que ela pescou, ela responde em Xavante. Para um outro, com os velhos se deve

falar na língua e com os estrangeiros, em português, para valorizar a própria cultura e não deixá-la desaparecer.

O grupo que defendeu a alfabetização nas duas línguas acabou se ligando ao que propôs a alfabetização na língua materna, explicando que ambos os processos

eram semelhantes. Este último grupo, apesar de defender a alfabetização nas duas línguas, propôs um período ideal para o início da língua portuguesa, o que acabou

definindo a alfabetização na língua Xavante e a posterior introdução da língua portuguesa. No final da discussão, ficou acertado que os cursistas iriam definir uma

proposta para alfabetização das crianças Xavante. Este encaminhamento seria a oficialização da proposta dos cursistas do Tucum, deveras representativo, para o povo

Xavante.”

***

Estes exemplos são ilustrativos da maneira como os Xavante enfrentavam os debates e como se deu o processo de formação do Tucum. Não têm, obviamente,

qualquer intenção de esgotar a riqueza dos debates e das questões surgidas no decorrer do curso. Servem para mostrar que não é possível pensar em processos

educativos com relação aos povos indígenas sem considerar a forma como o conhecimento será apreendido.

Considerações Parciais

Quando ocorriam as etapas de formação de projeto Tucum em Água Boa, os professores Xavante ficavam deveras exaltados. Era o momento do reencontro,

depois de uma temporada em que alguns nem chegavam a se ver. Posteriormente, com o projeto em vias de finalização, todos se conheciam e sabiam o devido

tratamento a dirigir a cada um.

Não foi o que ocorreu em janeiro de 1996, quando da primeira etapa do curso de formação. Todos se olhavam de maneira curiosa e o clima não era muito

claro, pois a organização social Xavante estabelece relações determinadas com os parentes, sejam eles reais ou classificatórios. De início, como quase ninguém se

conhecia efetivamente, tornou-se necessário um reconhecimento gradativo, que permitisse, através de um malabarismo genealógico, que cada indivíduo soubesse

como tratar o outro. Assim foi que, nas etapas subseqüentes, já era possível notar os tratamentos por intermédio de termos de parentesco (inclusive em português –

tio, primo, por exemplo). Estes termos trouxeram consigo um universo de relações características da sociedade Xavante. Sabe-se que o parentesco não se resume

apenas a um sistema de categorias, mas traz consigo outros preceitos que devem ser considerados (Barnard & Good, 1984:13). Em outras palavras, conceitos, regras

e atitudes constituintes do sistema de parentesco só podem ser analisados separadamente para limitados fins, pois são intimamente entrelaçados (Trautmann,

1981:22). No caso em tela, os pontos nevrálgicos destas relações são entre sogros e genros e entre cunhados.

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Logo na primeira etapa também já ocorriam interpretações culturais interessantes. A refeição era servida com a formação de uma longa fila. A um observador

desavisado, poderia parecer que os professores eram “mal educados”, pois a todo o momento chegavam atrasados e “furavam” a fila. Notável (ainda a este

observador), era que os prejudicados nunca reclamavam.

Mas o que se passava era que os Xavante seguiam a organização social, que nos rituais e na dança (muitas vezes em fila), intercalam os clãs no sentido de não

permitir que fiquem lado a lado dois indivíduos do mesmo grupo. Na fila do refeitório, quando isto ocorria, imediatamente um terceiro vinha interferir e colocar ordem

nas coisas.

Este é o procedimento, esta é a regra. Vigorou, cada vez mais, nas etapas de formação do projeto Tucum a valorização da forma, levada às últimas

conseqüências. Caráter forte presente na escola, dita de tipo “formal” e também da própria sociedade Xavante. Assim, há uma concomitância de intenções, ou seja, os

eventos estão, em aparência, coincidentes, tanto para os propositores quanto para os professores indígenas. Esta é uma questão fundamental que ainda não foi

considerada nos processos de formação de professores.

Há, sem dúvida, a apropriação da escola de diversas maneiras dentro do universo indígena. Há o uso da escola em função de um projeto hegemônico da

sociedade, como um todo, em embate direto com a sociedade nacional. Além disso, e também por conseqüência, há a “disputa interna” da escola, que ocorre entre

os diferentes grupos faccionais. As sociedades indígenas, ao contrário de serem agentes passivos, incorporando valores e perdendo suas tradições, são sujeitos que

fazem uso de instrumentos exógenos para estabelecer seu próprio projeto de sociedade. Em muitos casos, assessores, especialistas e envolvidos na educação

escolar indígena viram-se no centro de disputas inimagináveis e tornaram-se, inconscientemente, instrumentos nas mãos das facções que disputam o poder. No

caso em questão, ocorreu a criação de uma certa unidade no corpo de professores Xavante que participaram do curso. Havia uma solidariedade, que fazia com que

se amainassem os rancores que vinham das aldeias. Quando os ânimos se acirravam, em geral, os professores solicitavam a não intervenção de não índios,

conscientes que estavam das arestas internas.

Os professores envolvidos no projeto Tucum já chegaram com uma refinada reflexão acerca de processos educativos e dos objetivos de cada comunidade com

relação à escola. Logo no início da formação, muitos textos foram produzidos e em quase todos era visível o interesse pelo aprendizado de um universo cultural

diferente. Este aprendizado não se reduz aos alunos, mas a uma idéia de totalidade que abarcaria a todo o grupo.

Esta lucidez vinha sempre associada a uma outra, que era a preocupação em estabelecer uma educação escolar que não suprimisse o ambiente tradicional da

aldeia. Neste sentido, havia sempre uma preocupação com o aprendizado dos valores não indígenas, “para a defesa do povo Xavante”, num ambiente caracterizado

pelo respeito às tradições do grupo.

Esta preocupação fez com que os professores Xavante discutissem e refletissem profundamente sobre valores novos e tradicionais. A preocupação com a

necessidade de aprender “coisas do branco” ao mesmo tempo em que se “preserva a tradição” era visível em muitos discursos e produções textuais dos cursistas.

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Tudo se passou como se no processo de formação dos Xavante, simultaneamente imbricassem uma série de sistemas nativos. Assim, a sala de aula podia ser vista

como a casa dos solteiros e também a aldeia. Os indivíduos que participavam da formação, embora todos fossem ipredu (“adultos, maduros”), da perspectiva do

aprendizado dos valores ocidentais podiam ser considerados como jovens em iniciação, os wapté.

Este foi um dos pontos centrais para os Xavante: a formação de professores deveria, necessariamente, passar por uma questão intercultural. Embora tal

afirmação não seja novidade, cabe considerar que a reflexão acerca das informações recebidas no projeto Tucum passou, muitas vezes, por uma perspectiva dualista.

Houve, neste sentido, uma concomitância, uma vez que também o projeto propunha uma análise dual da questão. Entretanto, diferentemente da sociedade Xavante,

que possui, conforme vimos, um complexo sistema de relações binárias, colocando-se das mais diferentes formas, o dualismo do projeto acabou oferecendo apenas a

oposição entre índios e não índios. Tal oposição de base pode ser configurada em dois eixos sempre presentes – conhecimento ocidental x conhecimento indígena /

antes do contato x depois do contato – caracterizando duas maneiras diferentes de dizer a mesma coisa.

Considerações Finais

Este é um estudo específico, mas é sempre interessante notar pontos comuns do Tucum com projetos de Educação Escolar Indígena que se desenvolveram na

mesma época18. Currículo em construção, processos próprios de aprendizagem, educação específica, intercultural, diferenciada e bilíngüe. Certo que são diretrizes19,

que está na constituição, mas talvez por isso mesmo. É a normatização de um discurso que unificou governo e não-governo, defensores da integração e defensores da

autonomia.

Muito além das considerações de praxe como o compromisso do professor indígena com sua comunidade e sua participação no movimento indígena mais

amplo, deve-se levar em conta questões estruturais como o seu papel dentro da comunidade. A criação de categorias especializadas no interior de sociedades onde

todos os membros dominam as técnicas, pode trazer conseqüências para a organização social. A escola indígena pode incorrer neste caminho. Estimulada pelos

movimentos sociais com vistas à autonomia das sociedades indígenas, pode levar a um novo patamar a situação de contato, além de resultar em conflitos internos de

posições estruturais entre o professor e o cacique ou o xamã (Gow, 1991).

Uma questão fundamental a ser colocada na educação escolar indígena é a da relação entre escola e poder e entre cultura e política (Giroux, 1997). A escola é

um agente de socialização e deve ser pensada como tal. Mesmo as instâncias sendo diferenciadas, os professores intelectuais que refletem sobre sua prática, é preciso

discutir esta questão. O projeto Tucum foi, ele mesmo, uma escola, que formou professores indígenas. Profundamente imbricadas cultura e política estiveram postas e

18 Algumas observações aqui desenvolvidas levam em consideração diversas experiências de formação de professores indígenas – além do projeto Tucum no estado de Mato Grosso,

também a formação dos professores indígenas Sateré-Mawé e Mura (pelo Governo do estado do Amazonas) e dos professores Parintintin, Tenharim, Torá e Jiahui (pela Operação

Amazônia Nativa). 19

Ver Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar Indígena.

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sempre resultaram do embate dialético entre as diferentes forças que atuaram no projeto. O Tucum como uma escola foi parte de uma discussão mais ampla,

relacionada a uma conjuntura histórica e cultural determinada. As escolas não existem de forma independente da sociedade que as concebeu. Há, também, uma

consideração muito pouco discutida, que é a dos valores. Os valores, presentes nos projetos na forma de suposições ideológicas, podem ser mais determinantes do

que as metodologias, que propõem avaliações diferentes e modelos alternativos de educação escolar. É preciso um exame também das suposições ideológicas

presentes na própria linguagem de agentes que implementam a educação escolar indígena no país.

Um dos pontos centrais que ainda não foi considerado na maioria dos projetos é justamente acerca do estatuto dos conhecimentos. Ao propor perspectivas

consideradas interculturais, os projetos acabam por realizar uma diferença que estabelece o conhecimento indígena apenas como contraponto de um outro – este sim

considerado verdadeiro. Embora não seja uma ação intencional, a disposição das chamadas “disciplinas” toma como base conceitos e valores que reproduzem um

enfoque predominante, qual seja, o processo de produção de conhecimento não-indígena.

Entretanto, tais considerações são parte inerente de um processo em que estivemos, todos, envolvidos. O projeto Tucum foi uma grande conquista do

movimento indígena do estado de Mato Grosso e reflete, hoje, na formação universitária. Analisá-lo e criticá-lo é demonstrar sua ação positiva sobre a formação de

todos e não somente dos professores indígenas.

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Edmundo Antonio Peggion acompanhou, durante um período, projetos de formação de professores indígenas nos estados do Mato Grosso e Amazonas. No projeto Tucum esteve presente desde seu início e desenvolveu uma pesquisa, entre os anos de 1997 e 1999, com uma bolsa de Desenvolvimento Científico Regional (CNPq/UFMT), em que analisou o processo de formação dos professores indígenas no Mato Grosso e a atuação dos diversos agentes envolvidos. Este artigo é parte da pesquisa. Atualmente é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da USP e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO

ANO V, Nº212 DEZEMBRO - PORTO VELHO, 2006 Volume XVII Setembro/Dezembro

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia FABÍOLA LINS CALDAS - História

JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL - Geografia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO - Filosofia

Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for

Windows” deverão ser encaminhados para e-mail:

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TIRAGEM 150 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 212

UM SONHO DE LIBERDADE

ROBERT KURZ

PRIMEIRA VERSÃO

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UM SONHO DE LIBERDADE

ROBERT KURZ Sociólogo alemão, autor de Os Últimos Combates

Como se sabe, os conceitos de liberdade e igualdade formam os slogans centrais do Iluminismo. Desses ideais, todavia, o liberalismo não foi o único a se

apropriar. Paradoxalmente, eles desempenham no marxismo e no anarquismo um papel tão grande quanto. E também para os movimentos sociais contemporâneos

eles possuem um alto valor ideológico

A esquerda fita os ídolos da liberdade e da igualdade como o coelho fita a cobra. A fim de não ser cegado pelo esplendor desses ídolos, recomenda-se dirigir

o olhar para os seus fundamentos sociais. Marx [1818-83] desvendou esses fundamentos já há mais de cem anos. Trata-se da esfera do mercado, da circulação

capitalista, da troca de mercadorias, da compra e venda universais.

Nessa esfera predomina uma espécie bem determinada de liberdade e igualdade, que se refere única e exclusivamente a vender o que se quer -supondo

que se encontre um comprador-, e comprar o que se quer -supondo que se possa pagar.

E só nesse sentido predomina também a igualdade, isto é, a igualdade dos possuidores de mercadorias e de dinheiro. Nessa igualdade não importa a

quantidade, mas a forma social comum. Para o "cent" comprar não é o mesmo que para o dólar; mas tanto faz se é "cent" ou dólar, em termos qualitativos predomina

a igualdade da forma dinheiro. Na compra e venda não há senhores e escravos, ordem e obediência, mas apenas as pessoas livres e iguais do direito. Tanto faz se

homem ou mulher ou criança, tanto faz se branco ou preto ou marrom -o cliente é bem-vindo em todas as circunstâncias. A esfera da troca de mercadorias é a esfera

do respeito recíproco. Onde se realiza uma troca comercial de mercadoria e dinheiro não há violência. O sorriso burguês é sempre um sorriso de vendedor.

O sarcasmo de Marx se refere ao fato de essa esfera do mercado constituir somente um pequeno fragmento da vida social moderna. A troca de mercadorias

ou a circulação tem por pressuposto uma esfera bem diferente, nomeadamente a produção capitalista, o espaço funcional da economia empresarial ou do "trabalho

abstrato" (Marx). Aqui valem leis bem diferentes daquelas da circulação das mercadorias, aqui o sorriso do vendedor se congela no esgar cínico do feitor de escravos

ou do guarda da prisão.

No trabalho, assim já escrevia o jovem Marx, o trabalhador "não está em si, mas fora de si". A liberdade na produção de mercadorias é tão pequena que

nem sequer pode determinar o conteúdo, o sentido e o fim do que é produzido ali. Tampouco os proprietários de capital e os empresários possuem essa liberdade,

visto que eles estão sob a pressão da concorrência. Daí a produção seguir inteiramente os princípios de ordem e obediência.

Severidade produtiva

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Onde o regime da economia empresarial é especialmente "eficiente", as trabalhadoras e os trabalhadores nem sequer podem ir urinar com autonomia. Essa

severidade produtiva ganha dimensões extraordinárias justamente no neoliberalismo. Só na aparência a liberdade e a igualdade da circulação, por um lado, e a

ditadura da produção empresarial, por outro, se contradizem.

De um ponto de vista puramente formal, as trabalhadoras e os trabalhadores são não-livres na produção justamente porque antes efetivaram sua liberdade

no mercado na qualidade de possuidores de mercadoria, isto é, venderam sua força de trabalho. Naturalmente, essa liberdade de vender a própria força de trabalho

se deve a uma coerção, logo a uma não-liberdade: a modernização criou as condições históricas em que não mais há nenhuma outra possibilidade de se conservar em

vida.

É preciso ou comprar força de trabalho e empregá-la para o fim em si mesmo da valorização do capital ou vender sua própria força de trabalho e deixar-se

empregar para esse fim em si mesmo. Enquanto havia ainda produtores independentes (camponeses e artesãos), não existia um mercado universal, a maior parte das

relações sociais se desenrolava em outras formas. A ascensão do mercado universal foi acompanhada pelo declínio dos produtores independentes. Só porque há

mercado de trabalho, ou seja, só porque a força de trabalho humana assumiu a forma de mercadoria, todos os outros bens são comercializados também como

mercadorias.

Portanto, a esfera da liberdade e da igualdade só existe de modo geral porque a esfera da não-liberdade se constituiu na produção. É por isso que a

liberdade universal se realiza também na forma da concorrência universal.

Esse problema se estende ao âmbito da reprodução pessoal ou da privacidade, onde as mercadorias são consumidas e as relações sociais íntimas têm o seu

lugar. Aqui há muitas atividades e momentos da vida que não se reduzem à produção de mercadorias (economia doméstica, educação dos filhos, "amor" etc.).

No processo de modernização, a responsabilidade por esses aspectos foi impingida, no plano material, no sociopsíquico e no simbólico-cultural, às mulheres,

e justamente por esse motivo elas foram socialmente desvalorizadas: trata-se de momentos da vida social que não são "dignos de dinheiro", isto é, são de segunda

classe ou de valor menor no sentido da valorização do capital. Essa "cisão" (Roswitha Scholz [feminista alemã]) não se limita a uma esfera secundária demarcável:

atravessa todo o processo de vida social.

Assim, no interior da produção de mercadorias, as mulheres são mais mal pagas em regra, e é relativamente raro que cheguem a posições de liderança. Nas

relações pessoais predomina um determinado código dos sexos que implica para as mulheres uma relação de dependência estrutural, mesmo que esta seja algumas

vezes quebrada ou modificada na pós-modernidade. De modo análogo, a parte não-branca e não-ocidental da humanidade é abandonada a uma subordinação

estrutural, formulada de maneira racista já no Iluminismo.

Única e exclusivamente na esfera da circulação, do mercado, todas as relações próprias de uma "dominação do homem sobre o homem" parecem extintas.

Essa esfera hipócrita da liberdade e da igualdade não se baseia, no entanto, somente em estruturas de dependência; em um sentido direto, ela se constitui também

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como uma mera função para o fim em si mesmo da valorização do capital. Pois o mercado universal não serve, em crassa oposição ao intercâmbio de produtores

independentes entre si, à satisfação recíproca das carências.

Pelo contrário, ele é somente um estado de agregação ou um estágio de transição do próprio capital. Na venda o valor abstrato se "realiza" como dinheiro, e

exatamente nisso consiste a função da troca aparentemente livre. O capital monetário originário, que se metamorfoseia em mercadorias por meio da produção,

retorna à sua forma de dinheiro multiplicado pelo lucro. É nisso que se manifesta o caráter do capital como fim em si mesmo, isto é, fazer do dinheiro mais dinheiro e

assim acumular "riqueza abstrata" (Marx) em um progresso ao infinito.

Portanto, ao efetivarem sua liberdade e igualdade na esfera da circulação, as pessoas não fazem nada mais que efetuar a "automediação" do capital, ou

seja, fazem com que a mais-valia produzida ou o lucro deixe a forma mercadoria e se transforme de novo em forma dinheiro. Por isso a liberdade e a igualdade da

circulação não são nada mais que uma engrenagem para o fim da "realização" do capital. Cada ato de liberdade precisa efetuar uma espécie de operação de bombeio

para levar o capital do estado de agregação "mercadoria" ao estado de agregação "dinheiro".

A liberdade burguesa moderna possui, portanto, um caráter peculiar: ela é idêntica a uma forma superior, abstrata e anônima de servidão. A emancipação

social seria libertar-se dessa espécie de liberdade, em vez de "realizá-la". As coisas não são melhores com o conceito de igualdade, que implica abertamente uma

ameaça, a de espremer os indivíduos em uma única e mesma fôrma.

A modernização enfiou a humanidade, por assim dizer, em um uniforme homogêneo de sujeitos de dinheiro. Mas atrás disso se ocultam relações de

dependência estrutural. Na realidade, as carências, os gostos, os interesses culturais e os objetivos pessoais dos indivíduos jamais são "iguais"; eles foram somente

submetidos à igualdade da forma mercadoria. Por isso, como disse [o filósofo alemão Theodor] Adorno [1903-1969], emancipador seria poder ser "desigual em paz".

Desde o Iluminismo a igualdade recebeu seu falso nimbo por meio de um truque de prestidigitação dos ideólogos burgueses. O significado do conceito da

desigualdade foi deslocado da pura diversidade dos indivíduos para a subordinação de um indivíduo ao outro. O que em si mesmo é mera expressão da peculiaridade

individual, isto é, a desigualdade, aparece de repente como expressão da dependência. E vice-versa: o que em si mesmo é expressão da coerção uniforme, isto é, a

desigualdade, aparece de repente como expressão da libertação da dependência. Temos de lidar aqui, na ideologia moderna, com um caso típico de linguagem

orwelliana.

Na realidade, a desigualdade nada tem a ver com a dominação, e, a igualdade, nada a ver com a autodeterminação. Antes o contrário: a própria igualdade

na modernidade é uma relação de dominação.

O resultado é uma permanente contradição da ideologia moderna. De um lado, a esfera da circulação é separada do contexto inteiro da reprodução

capitalista e elevada a ideal. De outro, a ditadura factual na produção e a desvalorização estrutural do feminino são declaradas como "lei natural objetiva"

intransgredível. Incessantemente um aspecto precisa ser jogado contra o outro; e justamente em razão disso se consolidam nas cabeças as relações sociais. Liberdade

e igualdade representam exatamente o que Adorno designou de "contexto de cegueira".

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E a esquerda herdou tal cegueira juntamente com o aparato conceitual do Iluminismo. Particularmente os utópicos, socialistas democráticos e libertários,

anarquistas e dissidentes dos países do socialismo de Estado apelaram sempre para os ideais de liberdade e igualdade, sem reconhecer que eles se restringem à

esfera da circulação e sem enxergar o nexo interno de liberdade e não-liberdade existente na modernidade.

Hoje a crítica social parece mais do que nunca recair nos ideais da circulação. O que tem causas estruturais. A crise mundial provocada pela terceira

Revolução Industrial expulsa um número cada vez maior de pessoas da produção real, convertendo-os forçosamente em agentes da circulação. Como operadoras de

serviços baratos de todo tipo, como vendedoras, comerciantes de rua e até como pedintes, elas próprias vivenciam agora, de modo paradoxal, a esfera da liberdade e

da igualdade como o jugo de um trabalho secundário; a ditadura da produção se estende a atividades cada vez maiores da circulação, até chegar ao empresariado da

miséria. Liberdade e não-liberdade coincidem aí de imediato; mas, ideologicamente, esse paradoxo é tanto mais assimilado nos termos dos ideais da circulação.

Na medida em que os indivíduos se vivenciam a si próprios como pequeno-burgueses e como negociantes de seu "capital humano" cada vez mais em

circulação, o utopismo da troca de mercadorias retorna, depois do fim do socialismo do trabalho, em uma versão neopequeno-burguesa. Em uma sociedade em que

permanentemente todos querem empurrar a todos alguma coisa e em que as relações sociais se dissolvem em um bazar universal, os crescentes fenômenos de crise

são percebidos pela retícula da existência vivida na circulação.

De maneira francamente compulsiva, uma intelligentsia de vendedores de si próprios interpreta os problemas oriundos da terceira Revolução Industrial

segundo o modelo das relações da circulação: "Um possuidor de mercadorias afeta o outro". Mesmo a superação da produção de mercadorias é pensada conforme as

categorias da "troca eterna".

Os indivíduos, cuja constituição não é refletida de forma crítica e que só aparentemente são "independentes uns dos outros" na esfera da circulação, devem

presentear reciprocamente seu "favor" e "mostrar boa vontade", em vez de concorrerem entre si; tudo como se o problema não residisse no plano do modo de

produção e da vida social, mas sim no plano de uma "patologia" representável em termos individuais, a qual poderia ser "curada" por medidas pedagógicas e

terapêuticas.

Natal permanente

O sorriso falso dos vendedores é estilizado no idealismo de um tratamento mútuo simpático, não mais marcado pela concorrência, como se fosse factível

uma transformação social passando ao largo do modo substancial de produção e de vida e lançando mão somente dos construtos utópicos relativos ao

comportamento pessoal, os quais todos têm sua raiz na esfera idealizada da circulação -sendo que os utopistas neopequeno-burgueses se nomeiam a si próprios como

"médicos que estão junto do leito do sujeito".

Propagada em muitos países, a ideologia dos escambos praticamente não representa nada mais do que uma economia de hobby; onde ela foi praticada em

grande escala, como há pouco tempo durante a crise argentina, fracassou grandiosamente. Ainda mais insuficiente parece a tentativa apoiada nas investigações do

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etnólogo francês Marcel Mauss [1872-1950], sobretudo em sua principal obra, o "Ensaio sobre a Dádiva", de salvar da concorrência a "troca eterna" segundo o modelo

das assim chamadas sociedades arcaicas e transformá-la em uma permuta de presentes, ou seja, em uma espécie de Natal permanente.

Essa idéia de uma "economia do presente" não pode, segundo sua essência, ir além do âmbito das relações pessoais imediatas; daí ela ignorar a escala das

forças produtivas sociais e dos contextos sociais altamente organizados. Seria ridículo se um indivíduo dissesse ao outro: se me "doas" um transplante de rim, eu te

"dôo" uma debulhadora, caso sejas honesto. O problema não é "mostrar boa vontade" de maneira recíproca e individual, mas sim aplicar com sentido, e não de forma

destrutiva, as potências sociais (infra-estruturas, sistemas de formação e ciência, sistemas da produção industrial e da imaterial).

As utopias da circulação, ao contrário, buscam uma solução sempre e primariamente no plano dos modos de comportamento individual. Isso significa frear o

cavalo pelo rabo. Em vez, mediante uma revolução social da produção e do modo de vida, tornar supérflua a circulação de mercadorias e a concorrência nos mercados

ligada a ela, exige-se do sujeito isolado da circulação que ele realize a pretensa ontologia da troca em uma forma depurada. A concorrência deve ser "moralizada".

A emancipação social aparece então como mera conseqüência de uma utopia da liberdade e igualdade do sujeito da circulação, supostamente "realizada"

em pequenos grupos. A questão da solidariedade prática nos contextos sociais é ideologizada e convertida em um idealismo pedagógico mentiroso, muitas vezes

psicoterapêutico, o qual pode se tornar simplesmente o terror da gentileza e do controle social recíproco (por exemplo, segundo o modelo de seitas religiosas). Esse

utopismo neopequeno-burguês do capital humano em circulação está condenado ao fracasso tanto quanto todas as utopias anteriores.

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VITRINE

SUGESTÃO DE LEITURA

EM DEFESA DA SOCIEDADE

MICHEL FOUCAULT

Martins Fontes

RESUMO: Neste curso, Foucault define duas formas de poder: o poder disciplinar, que se aplica ao corpo por meio das técnicas de vigilância e das instituições punitivas e aquelas que daí em diante ele denominará o biopoder, que se exerce sobre a população, a vida e os vivos. A lógica das relações entre poder e resistênciaq não é a do direito e sim a da luta: ela não é a ordem da lei, mas a ordem da des-ordem.

SUMÁRIO: Aula de 7 de janeiro de 1976; Aula de 14 de janeiro de 1976; Aula de 21 de janeiro de 1976; Aula de 28 de janeiro de 1976; Aula de 4 de fevereiro de 1976; Aula de 11 de fevereiro de 1976; Aula de 18 de fevereiro de 1976; Aula de 25 de fevereiro de 1976; Aula de 3 de março de 1976; Aula de 10 de março de 1976; Aula de 17 de março de 1976; Resumo do Curso; Situação do curso; Índice das noções e dos conceitos.

Áreas de interesse: Filosofia, História, Direito, Lingüística.

Palavras-chave: poder, direito, política, análise do discurso